Oração: Experimentando intimidade com Deus – Tim Keller

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Transcript of Oração: Experimentando intimidade com Deus – Tim Keller

DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)

(CâmaraBrasileiradoLivro,SP,Brasil)Keller,TimothyOração:experimentandointimidadecomDeus/TimothyKeller;traduçãodeJurandyBravo.-SãoPaulo:VidaNova,

2016.ePub

BibliografiaISBN978-85-275-0748-6(recursoeletrônico)Títulooriginal:Prayer:experiencingaweandintimacywithGod

1.Oração-CristianismoI.TítuloII.Bravo,Jurandy.

16-0479 CDD248.32

Índicesparacatálogosistemático:

1.JesusCristo-Vidapública

©2014,deTimothyKellerTítulodooriginal:Prayer:experiencingaweandintimacywithGod,ediçãopublicadaporPENGUINGROUP(NovaYork,NovaYork,EUA).TodososdireitosemlínguaportuguesareservadosporSOCIEDADERELIGIOSAEDIÇÕESVIDANOVA

CaixaPostal21266,SãoPaulo,SP,04602-970vidanova.com.br|[email protected]ção:2016Proibidaareproduçãoporquaisquermeios,salvoemcitaçõesbreves,comindicaçãodafonte.TodasascitaçõesbíblicassemindicaçãodaversãoforamtraduzidasdiretamentedaNewInternationalVersion(NIV).

GERÊNCIAEDITORIAL

FabianoSilveiraMedeirosEDIÇÃODETEXTOMarisaK.A.deSiqueiraLopesREVISÃODATRADUÇÃOEPREPARAÇÃODETEXTOMarciaB.MedeirosREVISÃODEPROVASSylmaraBelettiREVISÃODEPROVASSérgioSiqueiraMouraDIAGRAMAÇÃO

LucianaDiIorioDIAGRAMAÇÃOPARAE-BOOK

YuriFreireCAPASoutoCrescimentodeMarca

ParaDickKaufmann,amigoehomemdeoração.

Sumário

Agradecimentos

Introdução:Porqueescreverumlivrosobreoração?

PRIMEIRAPARTERDESEJANDOAORAÇÃO

UMAnecessidadedaoraçãoDOISAgrandiosidadedaoração

SEGUNDAPARTERCOMPREENDENDOAORAÇÃO

TRÊSOqueéoração?QUATROConversarcomDeusCINCOEncontrarDeus

TERCEIRAPARTERAPRENDENDOAORAR

SEISCartassobreaoraçãoSETERegrasparaaoraçãoOITOAoraçãodasoraçõesNOVEAspedrasdetoquedaoração

QUARTAPARTERAPROFUNDANDOAORAÇÃO

DEZAoraçãocomoconversa:meditandoemsuaPalavraONZEAoraçãocomoencontro:buscandosuaface

QUINTAPARTERCOLOCANDOAORAÇÃOEMPRÁTICA

DOZEVeneração:louvandosuaglóriaTREZEIntimidade:encontrandosuagraçaCATORZELuta:pedindosuaajuda

QUINZEPrática:aoraçãodiária

Apêndice:Outrosmodelosdeoraçãodiária

Bibliografiacomentadasobreoração

N

Agradecimentos

enhumlivroficalegívelseescritoporumasópessoa.Osfeedbacksdomeueditor, Brian Tart, da minha esposa, Kathy, e de Scott Kauffman, meu

coleganoministérioCitytoCity,tornaramestelivromelhordoquejamaisteriasido sem a cooperação deles.Meu agradecimento se estende também àquelesquemepossibilitaramescrevê-lonosperíodosemque, todososanos,ausento-me para estudar: JaniceWorth, Lynn Land, Mary Courtney Brooks e John eCarolynTwiname.Sempreagradeçoameueditor,BrianTart, e ameuagente,DavidMcCormick,por todaaajuda,mas,acada livronovo—eesteénossodécimovolumejuntos—,aprendoaenxergaragrandiosidadedaminhadívidaparacomeles.

H

Introdução

Porqueescreverumlivrosobreoração?

áalgunsanospercebique,comopastor,eunãodispunhadeumlivroquepudesse recomendar a alguém desejoso de entender e praticar a oração

cristã. Isso não quer dizer que não existam livros excelentes sobre o assunto.Grandepartedessasobrasmaisantigascontémmuitomaissabedoriaesãobemmaistocantesdoquequalquercoisaqueeupoderiaescrever.Seguramente,oquehádemelhorsobreoraçãojáfoiescrito.No entanto, muitos desses livros excelentes se encontram numa linguagem

arcaica, inacessível à maior parte dos leitores contemporâneos. Além disso,tendem a ser primordialmente teológicos, ou devocionais, ou práticos, rarasvezes combinando teologia, experiência emetodologia em umamesma obra.1

Umaobrasobreaessênciadaoraçãodeveria tratardessas trêscoisas.Equasetodos os clássicos sobre oração dedicam boa parte do tempo advertindo osleitoresquantoapráticasdesuaépocaqueeraminúteisoumesmonocivasemtermosespirituais.Éprecisoatualizar taisadvertênciasparaos leitoresdecadageração.

Doistiposdeoração?

Jáosautoresmaisrecentesdeobrassobreotemasãopropensosadefenderumde dois pontos de vista. Hoje a maioria enfatiza a oração como meio deexperimentaroamordeDeuseauniãocomele.Elesprometemumavidadepaze descanso perene em Deus. Os escritores adeptos desse ponto de vista

costumamdar testemunhos radiantesdequese sentemhabitualmentecercadospelapresençadivina.Outroslivros,porsuavez,consideramaessênciadaoraçãonãocomoodescanso interior,mascomoumasúplicaaDeusparaque tragaoseureino.Nessesegundopontodevista,aoraçãoéconsideradaumembateemque,quasesempre—outalvezemgeral—nãoháumsensoclarodapresençaimediatadeDeus.Umaobradesse tipoéThestillhour [Horade sossego], deAustinPhelps.2SuapremissaéqueosensodaausênciadeDeuséaregraparaocristãoemoração,equeexperimentarapresençadeDeusédifícildeaconteceràmaioriadaspessoas.OutrolivrocomamesmaabordageméThestruggleofprayer [Oembateda

oração],deDonaldG.Bloesch.Elecriticaoquechamade“misticismocristão”.3

Opõe-seaoensinodequeoobjetivosupremodaoraçãoéacomunhãopessoalcomDeus.Consideraqueissofazdaoraçãoum“fimemsimesmo”decaráteregoísta.4 Do seu ponto de vista, o intuito maior da oração não é a reflexãopacífica,masasúplicafervorosaparaqueoreinodeDeusvenhaaseconcretizarnomundo e em nossa vida. O objetivomáximo da oração é a “obediência àvontade de Deus, não a contemplação do seu ser”.5 Ela visa acima de tudoconformidadeaospropósitosdivinos,enãoumestadointerior.O que explica essas duas visões, às quais poderíamos chamar de oração

“centradana comunhão” eoração “centradano reino”?Umaexplicação équeambasrefletemaexperiênciaconcretadecadapessoa.Algumaspercebemcertafrieza nas próprias emoções para comDeus e encontram extrema dificuldadepara fixar a atenção no ato de orar, mesmo por poucos minutos. OutrasexperimentamcomregularidadeosentimentodapresençadeDeus.Issoexplicaao menos em parte a diversidade de pontos de vista. Contudo, as diferençasteológicas também têm seu papel. Bloesch argumenta que a oração místicacombinamelhor comavisãocatólicadequeagraçadeDeusnos é infundidadiretamentepelobatismoepelamissadoquecomacrençaprotestantedequesomossalvospormeiodafénaPalavradivinadapromessadoevangelho.6

Qualvisãodaoraçãoémelhor?Qualéaformasupremadeoração,aadoraçãopacífica ou a súplica assertiva? Essa pergunta parte do pressuposto de que arespostasejaumacoisaououtra,oqueéimprovável.

Comunhãoereino

Em busca de auxílio para entender a questão, devemos primeiro recorrer aSalmos, o livro de oração bíblico e inspirado. Nele encontramos bemrepresentadasessasduasexperiênciasdeoração.Hásalmoscomoo27,o63,o84,o131eo“longoaleluia”queabarcaossalmos146a150,osquaisretratamacomunhãocomDeuspormeiodaadoração.EmSalmos27.4,Daviafirmapediremoraçãoumacoisa fundamental: “contemplarabelezadoSENHOR”.EmboraDavi na verdade orasse por outras coisas, nomínimo com isso quis dizer quenadaémelhordoqueconhecerapresençadeDeus.Porissodeclara:“ÓDeus[...]minhaalmatemsededeti;[...]Eutevinosantuárioecontempleiteupodere tuaglória.Porque teuamorémelhorqueavida,eu te louvarei” (Sl63.1-3).QuandoDavi adora a Deus em sua presença, diz que sua alma “se sacia dosalimentosmaisricos”(v.5).IssoédefatocomunhãocomDeus.Há,noentanto,aindamaissalmosdelamentos,gritosdesocorroeclamores

paraqueDeusexerçaseupodernomundo.Hátambémexpressões lancinantesdeexperiênciasdaausênciadeDeus.Vemosaquidefatoaoraçãocomoluta.Ossalmos10,13,39,42,43e88sãoapenasalgunsexemplos.Osalmo10começaperguntando por que Deus “permanece longe” e “se esconde” em tempos dedificuldade.Derepenteoautorclama:“Levanta-te,Senhor; levanta tuamão,óDeus.Nãoteesqueçasdosnecessitados”(v.12).Todavia,emseguidaparecesepôrapensaremvozalta,aomesmotempoemquefalacomDeus:“Mastu,óDeus,vêsimosofrimentoeador.Considera-osparaostomaresnatuamão.[...]Ésoamparodoórfão”(v.14,grifodoautor).Aoraçãoterminacomosalmistacurvando-se diante do tempo e da sabedoria de Deus em todas as questões,emboraaindaclameferozmenteporjustiçanaterra.Esseéoembatedaoraçãocentrada no reino. O livro de Salmos, portanto, corrobora os dois tipos deoração:aqueé“centradanacomunhão”eaqueé“centradanoreino”.Além de analisar orações reais da Bíblia, devemos considerar também a

teologiadaoraçãoexistentenasEscrituras—asrazõespresentesemDeuseemnossanaturezahumanacriadaquenostornamcapazesdeorar.AprendemosnasEscriturasqueJesusCristofazopapeldenossomediadorafimdeque,embora

não sejamos dignos por nós mesmos, possamos nos achegar com ousadia aotronodeDeuseclamarparaquenossasnecessidadessejamsatisfeitas(Hb4.14-16;7.25).AprendemostambémqueopróprioDeushabitaemnóspormeiodoEspírito(Rm8.9-11)enosajudaaorar(Rm8.26,27),demodoquehoje,pelafé,jápodemosfitarecontemplaraglóriadeCristo(2Co3.17,18).Assim,aBíblianosoferecebase teológica tantoparaaoração“centradanacomunhão”quantoparaa“centradanoreino”.Umabrevereflexãonosmostraráaindaqueessesdoistiposdeoraçãonãose

opõem nem mesmo pertencem a categorias distintas. A adoração a Deusaconteceemmeioàsúplica.LouvaraDeuséorar“santificadosejaoteunome”,pedir-lhe que revele ao mundo sua glória para que todos venham a honrá-locomoDeus.Contudo,assimcomoaadoraçãocontémasúplica,abuscadoreinotambém deve incluir a oração para conhecer a Deus. O Breve Catecismo deWestminster afirma que nosso propósito é “glorificar a Deus e dele desfrutarparasempre”.Nessafrasetãoconhecidavemosrefletidastantoaoraçãocentradanoreinoquantoacentradanacomunhão.Emboraasduascoisas—glorificaraDeusedesfrutardele—nemsemprecoincidamnestavida,no fimdevemseruma coisa só. Podemos orar pela vinda do reino de Deus, mas, se nãodesfrutarmos deDeus acima de todas as coisas, com todo o nosso ser, não ohonraremosdeverdade.7

Porfim,quandolemosoqueváriosdosmaioresescritoresdaantiguidade—comoAgostinho,MartinhoLuteroeJoãoCalvino—dizemsobreoração,vemosqueelesnãoseencaixamcomprecisãoemnenhumdosdoislados.8Aliás,atéofamoso teólogo católico Hans Urs von Balthasar procurou trazer equilíbrio àtradição da oraçãomística e contemplativa.Ele adverte contra o recolhimentoexcessivo. “A oração contemplativa [...] não pode nem deve ser umaautocontemplação,mas[sim]ovoltardeolhoseouvidosreverentespara[...]oNão-eu,ouseja,aPalavradeDeus”.9

Dodeveraoprazer

Onde, então, isso nos coloca? Não devemos traçar uma linha divisória entrebuscar a comunhão pessoal com Deus e buscar o avanço do seu reino noscoraçõesenomundo.Seasduascoisaspermaneceremjuntas,acomunhãonãoserá apenas consciênciamística sem palavras, por um lado, nem serão nossaspetiçõesummododeobterofavordeDeus“comnossasmuitaspalavras”(Mt6.7),poroutro.EstelivromostraráqueaoraçãoétantoconversaquantoencontrocomDeus.

Os dois conceitos nos oferecem uma definição de oração e um conjunto deferramentas para aprofundar nossa vida de oração. As formas tradicionais deoração — adoração, confissão, ações de graças e súplica — são práticasconcretasbemcomoexperiênciasprofundas.Precisamosconhecerareverênciade louvar suaglória, a intimidadedeencontrar suagraçaea lutadepedir suaajuda, e tudo isso pode nos levar a conhecer a realidade espiritual de suapresença. A oração, portanto, é reverência e intimidade, luta e realidade. Taiscoisasnãoacontecerãotodavezqueorarmos,mascadaumadelasdeveserumcomponenteimportantedenossaoraçãonodecorrerdavida.OlivrodeJ.I.PackereCarolynNystromsobreaoraçãotemumsubtítuloque

resumetudoissomuitobem.Oraréir“dodeveraodeleite”.Essaéajornadadaoração.

1JonathanEdwards ilustra bem isso.Amaneira pela qual trata a experiênciaespiritualéincomparável.SuaobraReligiousaffections[Afeiçõesreligiosas]eosermão“Adivineand supernatural light” [Uma luzdivinae sobrenatural],porexemplo,descrevememdetalhesa“percepção,docoração”,queéaessênciadoencontroespiritualcomDeus.Todavia,Edwardspoucofalademetodologia,ouseja,sobrecomomeditareorar.

2AustinPhelps,The still hour: or communionwithGod (Carlisle:Banner ofTruth,1974),p.9.

3Donald Bloesch, The struggle of prayer (Colorado Springs: Helmers andHoward, 1988). Bloesch segue muito de perto a tipologia e o argumento deFriedrich Heiler, que escreveu sobre oração “mística” versus “profética”.AnalisaremosaobradeHeilereessadistinçãocommaisdetalhesnocapítulo3.

4Bloesch,Struggleofprayer,p.131.5Ibidem,p.154.6Ibidem, p. 97-117. Na condição de protestante convicto, concordo com

DonaldBloeschnesseponto.Osprotestantescreemna“suficiência”daBíblia,ouseja,queoEspíritodeDeusnosfalaemsuaPalavra.TimothyWardescrevesobre“asEscrituras[...]comoomeiopeloqualDeusampliaseuagire,portanto,asimesmonomundoafimdeatuar,emrelaçãoanós,deformacomunicativa”.TimothyWard,Words of life: Scripture as the living and activeWord of God(Downers Grove: InterVarsity Press, 2009), p. 113.Ward compara a visão da“suficiência” bíblica com a católica romana. Reformadores protestantes comoMartinhoLuteroeJoãoCalvinoensinaramqueoEspíritofalava“porintermédiodas próprias Escrituras”, não por meio do “centro eclesiástico cada vez maisautoritárioemRoma”(p.109).UmavisãoforteereformadadasuficiênciadasEscrituras exerce grande influência na moldagem da prática da oração. OsreformadoresnegavamtantooensinocatólicodequeoEspíritofalapormeiodaigreja(interpretandoasEscrituras)enãopormeiodaprópriaBíblia,bemcomoaafirmação anabatista de que o Espírito concedeu novas revelações individuaisalémdasEscrituras.Consulte naConfissão deFé deWestminster (1646), 1.6,umresumodessepontodevista.AsduasalternativasdestroemaideiadaoraçãocomoumdiálogocomDeuspormeiodaPalavra.AvisãocatólicaminaaideiadequeDeusfaladiretamenteanósporintermédiodaPalavra.Avisãoanabatistafazamesmacoisa.Deacordocomela(edepoiscomosquacres),ouvimosDeusnosfalarprincipalmenteemnossocoração.

7VejacomoJohnPiper trataesseassuntoemDesiringGod:meditationsofaChristianhedonist(ColoradoSprings:Multnomah,1987)[ediçãoemportuguês:

EmbuscadeDeus:aplenitudedaalegoriacristã(SãoPaulo:Shedd,2008)].8Bloesch nota o “elementomístico persistente” no ensino deLutero sobre a

oraçãoemStruggleofprayer,p.118.9Hans Urs von Balthasar, Prayer (Ignatius Press, 1986), p. 28, citado em

Bloesch, Struggle of prayer, p. 118-9. Veja adiante, neste volume, maisdiscussõessobreospontosdevistadeBalthasar.

PRIMEIRAPARTER

Desejandoaoração

N

UM

Anecessidadedaoração

“Nãosobreviveremos”

a segunda metade da minha vida adulta, descobri a oração. Tive dedescobrir.

No outono de 1999,ministrei um estudo bíblico do livro de Salmos. Ficouclaro paramimque eumal arranhava a superfície do que aBíblia ordenava eprometiaemrelaçãoàoração.Vieramentãoassemanassombriasapósoataquede 11 de setembro de 2001 em Nova York, quando a cidade inteira afundounumaespéciededepressãoclínicacoletiva,mesmoenquanto se recuperavadetudo. Para minha família, as trevas forammais intensas, uma vez que minhaesposa, Kathy, lutava contra os efeitos da doença de Crohn. Por fim, fuidiagnosticadocomcâncerdetireoide.Emdeterminadomomentonomeiodissotudo,minhaesposainsistiuemque

fizesse com ela algo que nunca tivéramos autodisciplina para fazer comregularidade.Pediu-meparaorar comela todas asnoites.Todas asnoites.Elausouumailustraçãoquetraduziumuitobemoquesentia.Peloquemelembro,eladissealgomaisoumenosassim:Imaginequevocê recebeuodiagnósticodeumaenfermidade tão letalqueomédicolhedeupoucashorasdevida,amenosquetomedeterminadoremédio—umcomprimidotodanoiteantesdedormir.Imaginequeelelherecomendenãodeixarde tomaroremédioumanoitesequer,senãopoderámorrer.Você

achaque se esqueceria de tomá-lo?Oudeixaria de tomá-lo algumasnoites?Não.Seria tão crucial não se esquecer quevocê jamais deixaria de tomá-lo.Bem,senãoorarmosjuntosaDeus,nãosobreviveremosatudooqueestamosenfrentando.Eu comcertezanão sobreviverei.Temos de orar. Simplesmentenãopodemosdeixarqueissonossaiadacabeça.Talvez tenha sido a força da ilustração, talvez apenas uma questão de

momentocerto, talvezoEspíritodeDeus.Ou,ahipótesemaisprovável, tenhasidooEspíritodeDeususandoomomentoeaclarezadametáfora.Ofatoéquederepentetudoficouóbvio;percebemosaseriedadedaquestãoereconhecemosque qualquer coisa que constituísse uma necessidade verdadeiramenteinegociáveleraalgoquepodíamosfazer.Issoaconteceuhámaisdedozeanos,eminhaesposaeeunãonoslembramosdehaverperdidoumaúnicanoitesequerdeoraçãojuntos,nemquesejapor telefone,mesmoquandoestamoslongeumdooutro,emhemisfériosdiferentes.O desafio impactante de Kathy, bem como minha crescente convicção do

simples fato de que eu não entendia nada de oração, levou-me a iniciar umabusca.Euqueriaumavidapessoaldeoraçãobemmelhor.Comeceialermuitoea fazer experiências relacionadas à oração. Olhando à minha volta, percebidepressaquenãoestavasozinho.

“Seráquealguémpodemeensinaraorar?”

Quando Flannery O’Connor, a famosa autora sulista, estava com 21 anos deidadeeestudavaemIowaparasetornarescritora,buscouaprofundarsuavidadeoração.Tevedefazê-lo.Em1946, começouumdiáriodeoraçãoescrito àmão.Nelenarrou sua luta

parasetornarumagrandeescritora.“Queromuitoserbem-sucedidanomundocom a atividade que desejo desenvolver. [...] Sinto-me tão desencorajada commeutrabalho.[...]Mediocridadeéumapalavraduraparaaplicarasimesmo[...];noentanto,éimpossívelnãofazê-lonomeucaso.[...]Aindanãotenhonadadeque me orgulhar. Sou tão obtusa quanto as pessoas que considero ridículas.”

Esse tipodedeclaraçãopode ser encontradonodiário dequalquer aspirante aartista,masFlanneryO’Connorfezalgodiferentecomseussentimentos.Orouarespeitodeles.Trilhouumcaminhomuitoantigo,comoossalmistasdoAntigoTestamento, que não se limitavam a identificar, expressar e desabafar seussentimentos,mastambémosprocessavamcomsinceridadebrutalnapresençadeDeus.Flanneryescreveusobreo...esforçoempenhadonessedomínioartísticoemvezdepensaremtiedemesentirinspiradapeloamorquegostariadeter.QueridoDeus,nãoconsigoamá-locomodesejo.Tuésocrescentetênuedeumaluaquecontemploeeusouasombradaterraquemeimpededeenxergá-laporcompleto[...]Tenhomedo,querido Deus, medo de que minha própria sombra cresça tanto a ponto debloquear a lua inteira, e eume julgue por essa sombra que nada é. Não teconheço,Deus,porqueestoubloqueandoocaminho.1

Ela reconhece aqui algo que Agostinho viu com clareza em seu diário de

oração, asConfissões: viverbemdependede reordenarnossos afetos.Amarosucesso mais do que a Deus e ao próximo embrutece o coração e torna-nosmenoscapazesdesentireapreender.Issoironicamentefazdenósartistasmaismedíocres. Portanto, por ser sim uma escritora de talentos extraordinários quetalveztivessesetornadoarroganteeegocêntrica,aúnicaesperançadeFlanneryO’Connorestavanaconstantereorientaçãodaalmapelaoração.“Ó,Deus,porfavor,clareiae limpaaminhamente. [...]Por favor,ajuda-mea irmais fundonascoisasedescobrirondeestás.”2

Elarefletiusobreadisciplinadepassarasoraçõesparaopapelemseudiário.Ereconheceuoproblemadaforma.“Concluíqueestenãoéummeiodeoraçãotãodireto.Aoraçãonãoétãopremeditadaassim,masantesalgodemomentoeissoaquiélentodemaisparaummomento”.3Haviaaindaoperigodequesuasanotações não fossem orações de verdade,mas um desabafo. “Quero [...] queissoseja[...]algoemlouvoraDeus.Éprovávelqueestejamaispropensoaserterapêutico[...]comoelementodoegosubjacenteaospensamentos”.4

Todavia, com o diário, ela acreditava ter dado início “a uma nova fase daminha vida espiritual [...] desfazendo-me de determinados costumes daadolescência e hábitos damente.Não precisamuito para nos levar a percebercomosomos tolos,masessepouconecessáriodemoraanos sobrevir.Enxergomeuegoridículoaospoucos”.5FlanneryO’Connordescobriuqueaoraçãonãose resume à exploração solitária da própria subjetividade. Você está emcompanhiadeAlguémeeleéúnico.Deuséaúnicapessoadequemvocênadapodeesconder.Diantedele,inevitavelmentevocêseenxergarásobumanovaluzsem igual. A oração, portanto, leva a um autoconhecimento impossível dealcançardeoutromodo.Emsuma,perpassandotudoomaisnodiáriodeFlanneryO’Connorestavao

simples anseio de aprender a orar de verdade. Por intuição, ela sabia que aoração era a chave para tudo o que precisava fazer e ser na vida. Sentia-seinsatisfeitacomaspráticasreligiosassuperficiaisdeseupassado.“Nãotenhoaintençãodenegarasorações tradicionaisquefizavida inteira;massempreastenhorecitado,nãoassinto.Minhaatençãoésemprefugidia.Entretanto,desseoutromodo,euoroacada instante.Possosentirocalordoamorpulsandoemmimquandopensoeescrevoati.Porfavor,nãopermitaqueasexplicaçõesdospsicólogosfaçamtudoissoderepentesetransformaremalgofrio”.6

Aofinaldeumdeseusregistros,elasingelamenteclamou:“Seráquealguémpodemeensinaraorar?”.Milhõesdepessoashojefazemamesmapergunta.Háumsensodanecessidadedaoração—temosdeorar.Mascomo?

Umpanoramaconfuso

Por toda a sociedade ocidental vem crescendo o interesse por espiritualidade,meditaçãoecontemplação,algoqueseiniciouumageraçãoatrás, influenciadotalvez pelo interesse bastante divulgado dos Beatles por formas orientais demeditaçãoealimentadopelodeclíniodareligiãoinstitucional.Umnúmerocadavezmenordepessoasconservaohábitodoscultosreligiososregulares.Todavia,algum tipode anseio espiritual permanece.Hoje ninguémestranha ao ler umanota casual no New York Times sobre o fato de Robert Hammond, um dos

fundadores do parque urbano High Line, no bairro de Chelsea, a oeste deManhattan, estar indo para um retiro de meditação de três meses na Índia.7

PencasdeocidentaisinundamashranseoutroslocaisderetiroespiritualnaÁsiatodososanos.8Hápoucotempo,RupertMurdochtuitouqueestavaaprendendomeditação transcendental. “Todos recomendam”,disse ele. “Nãoé tão fácil decomeçar,masdizemquemelhoratudo!”9

Na igreja cristã, tem ocorrido um crescimento semelhante do interesse pelaoração.Háumfortemovimentoemdefesadasantigaspráticasdemeditaçãoecontemplação. Atualmente temos um pequeno império de instituições,organizações,redesepraticantesqueensinametreinammétodoscomoaoraçãodecentralização,aoraçãocontemplativa,aoraçãoda“escuta”,alectiodivinaemuitasoutrasdashojedenominadas“disciplinasespirituais”.10

Não se deve caracterizar todo esse interesse, no entanto, como uma “onda”única e consistente. Antes, é um conjunto de poderosas contracorrentes,provocandoáguasperigosamenteturbulentasparamuitosqueestãoembuscaderespostas.Temhavidocríticassubstanciaisvoltadascontragrandepartedanovaênfase na espiritualidade contemplativa dentro das igrejas católica eprotestante.11Aoprocurar ameu redor recursos que ajudassemminhavida deoração, bem como a vida de outras pessoas, percebi como o panorama eraconfuso.

“Ummisticismointeligente”

Nomeucaso,ocaminhoparaocrescimentofoiumavoltaàsraízesespirituaiseteológicas.Durantemeuprimeiroperíodocomopastor, naVirgínia, edenovodepoiscomopastornacidadedeNovaYork,viviaexperiênciadepregarsobretodaacartadePauloaosromanos.Nomeiodocapítulo8,eleescreve:OEspíritoquerecebestesnãoosescraviza,paraquevivamdenovoemtemor;antes, o Espírito que recebestes produziu sua adoção de filhos. E por eleclamamos “Aba, Pai”. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito quesomosfilhosdeDeus(v.15,16).

OEspíritodeDeusnosasseguradoamordeDeus.Primeiro,capacita-nosanosaproximarmos e clamarmos ao grande Deus como nosso pai amoroso. Emseguida, coloca-se ao ladodonosso espírito e acrescentaum testemunhomaisdireto. Entendi pela primeira vez esses versículos ao ler os sermões de D.Martyn Lloyd-Jones, pregador e escritor inglês de meados do século 20. EledefendiaaideiadequePauloestavaescrevendosobreumaprofundaexperiênciadarealidadedeDeus.12Maistarde,descobriqueháconsensoentreamaioriadoscomentaristasbíblicosmodernosnosentidodequeessesversículosdescrevem,naspalavrasdeumestudiosodoNovoTestamento,“umaexperiência religiosainefável”,umavezqueacertezadeamorseguroemDeusé“místicanomelhorsentidodapalavra”.ThomasSchreineracrescentaquenãodevemos“darpoucaênfase àbase emocional”da experiência. “Alguns evitamdepronto essa ideiaporsuasubjetividade,masoabusodasubjetividadeemcertoscírculosnãopodeeliminarasdimensões‘mística’eemocionaldaexperiênciacristã”.13

AexposiçãodeLloyd-Jonestambémmeapontouparaoutrosescritoresqueeulera no seminário, comoMartinho Lutero, João Calvino, John Owen, teólogoinglêsdoséculo17,eJonathanEdwards,filósofoeteólogoamericanodoséculo18.NãoencontreinelesumareferênciasequeraalgumaescolhaentreverdadeouEspírito, doutrinaou experiência.Um dos antigos teólogosmais hábeis—John Owen — foi-me bastante útil nesse ponto. Em um sermão sobre oevangelho,Owendedicouodevidoempenhoalançarofundamentodoutrináriodasalvaçãocristã.Masentãoexortouseusouvintesa“teremumaexperiênciadopoder do evangelho [...] sobre o próprio coração, dentro dele ou toda suaprofissão de fé estará fadada a definhar”.14 Essa experiência do poder doevangelho no coração só pode acontecer por meio da oração — tanto empúblico,naassembleiacristãreunida,quantoemparticular,nameditação.Emminhabuscaporumavidadeoraçãomaisprofunda,opteiporumrumo

contrárioaoqueditariaaintuição.Depropósitoeviteilerquaisquernovoslivrossobre o assunto.Emvez disso, voltei-me para os textos históricos de teologiacristãquemeformaramecomeceiafazerperguntassobreoraçãoeexperiênciacomDeus—perguntasquenãoestavammuitoclarasemminhamentenaépoca

em que estudei esses textos, décadas antes, na pós-graduação.Descobrimuitacoisa que deixara passar completamente. Encontrei um direcionamento sobrevidainteriordeoraçãoeexperiênciaespiritualquemeconduziuparaalémdascorrentes e dos turbilhões perigosos dos debates e movimentos espirituaiscontemporâneos.UmdosteólogosqueconsulteifoioescocêsJohnMurray,queofereceuumadasperspectivasmaisproveitosas:Precisamosreconheceraexistênciadeummisticismointeligentenavidadefé[...]deuniãoecomunhãovivascomoRedentorexaltadoeonipresente. [...]Eletemcomunhãocomseupovoeseupovotemcomunhãocomeleemamorrecíproco e consciente. [...] A vida de fé verdadeira não pode ser deassentimento metálico e frio. Deve ter a paixão e o calor do amor e dacomunhão, pois a comunhão com Deus é a coroa e o ápice da verdadeirareligião.15

Murraynãoeraumescritordadoapassagenslíricas.Noentanto,aofalarsobre

“misticismo”e“comunhão”comaquelequemorreueviveparasemprepornós,eleestásupondoqueoscristãosterãoumrelacionamentopalpáveldeamorcomo Senhor e que eles têm sim um potencial que ultrapassa os limites daimaginação para conhecer e experimentar a Deus pessoalmente. E tudo isso,claro,significaoração—masqueoração!Nomeiodoparágrafo,MurraycitaaprimeiracartadePedro:“Emboranãootenhamvisto,vocêsoamam;eemboranão o vejam agora, creem nele e estão cheios de uma alegria inexprimível egloriosa”. A antiga versão King James fala em “alegria indizível e plena deglória”. Alguns traduzem isso como “alegria glorificada para além daspalavras”.16

Enquantomeditavanesseversículo,nãopudedeixardememaravilharcomofato dePedro, ao escrever para a igreja, dirigir a palavra a seus leitores dessamaneira.Elenãodisse:“Bem,algunsdevocês,osquetêmumaespiritualidadeavançada, começaram a experimentar momentos de grande júbilo em oração.Esperoqueorestantedaspessoas tambémosalcance”.Não,elepresumiuque

essaexperiênciadeumjúbiloporvezesassombrosonaoraçãoeraalgonormal.Issometrouxeconvicção.Um ponto da declaração de Murray, o fato de que somos chamados a um

misticismo inteligente, levou-me a refletir.Misticismo inteligente significa umencontro comDeus que envolve não só os afetos do coração,mas tambémasconvicçõesdamente.Nãosomoschamadosaescolherumavidacristãpautadanaverdadeenadoutrinaouumavidacheiadeexperiênciasepoderespirituais.Asduascoisasandam juntas.Eunãoestava sendochamadoadeixarpara trásminha teologia e me lançar na procura de “algo mais”, de experiências. Aocontrário,eudeviapediraoEspíritoSantoquemeajudasseaviverexperiênciascomaminhateologia.

Aprendendoaorar

RetomoaquiaperguntaqueFlanneryO’Connorfezemtommelancólico:Como,afinal,aprendemosrealmenteaorar?No verão seguinte ao meu bem-sucedido tratamento do câncer na tireoide,

implementei quatro mudanças práticas em minha vida devocional particular.Primeiro,leveiváriosmesesparapercorrertodosossalmos,resumindocadaumdeles.Issomepossibilitoucomeçaraorarossalmoscomregularidade,passandoportodoselesdiversasvezesaolongodeumano.17Segundo,inseriadisciplinadeumperíodo regulardemeditaçãocomo transiçãoentrea leituradaBíbliaemeutempodeoração.Terceiro,fizopossívelparaorardemanhãeànoite,nãoapenasdemanhã.Quarto,comeceiaorarcomumaexpectativamaior.Asmudançaslevaramumtempoparadarfrutos,masdepoisdemanteressas

práticasdurantecercadedoisanos,comeceiafazeralgunsavanços.Apesardosaltos e baixos desde então, encontrei uma nova doçura em Cristo e um novoamargortambém,porqueagorapodiavermeucoraçãocommaisclareza,sobanovaluzdaoraçãovital.Emoutraspalavras,tivemaisexperiênciasserenasdeamor,assimcomomaislutasparaverDeustriunfarsobreomal,tantoemmeupróprio coração quanto no mundo. As duas experiências de oração quediscutimosnaintroduçãosedesenvolveramemconjuntocomoárvoresgêmeas.

Hojeacreditoqueéassimquedeveser.Umaestimulaaoutra.Oresultadofoiumavivacidadeeumaforçaespirituaisqueesteministrocristão,adespeitodetudooquepregara,jamaisconheceraantes.Orestantedestelivroéumrelatodoqueaprendi.Aoração,contudo,éumtemaextremamentedifícilsobreoqualescrever.Não

tanto pela dificuldade em defini-la, mas pelo fato de nos sentirmos muitopequenos e impotentes diante dela. Lloyd-Jones disse certa vez que nuncaescrevera sobre oração por ter uma percepção de inadequação pessoal nessaárea.18Duvido,noentanto,quequalquerdosmaioresescritoressobreoraçãodahistória se sentissemais adequado do que Lloyd-Jones. P. T. Forsyth, escritoringlês do início do século 20, expressoumelhor do que eumesmo aquilo quesintoeaspirocomrespeitoaessaquestão:É difícil, formidável até, escrever sobre oração. Sente-se temor de tocar naArca. [...] Mas talvez esse próprio esforço [...] também seja graciosamentevisto por aquele que vive para interceder [por nós] como uma oração parasabercomoorarmelhor.19

A oração é a única porta para o autoconhecimento genuíno. É também a

principalmaneiradeexperimentarmosprofundatransformação—areordenaçãodosnossosafetos.AoraçãoéomodopeloqualDeusnosconcedemuitasdascoisas inimagináveis que tem para nós. Aliás, do ponto de vista de Deus, aoração confere confiabilidade para que ele nos dêmuitas das coisas quemaisdesejamos.ÉamaneiradeconhecermosaDeus,ocaminhopara,enfim,tratá-locomoDeus.A oração nadamais é que a chave para tudo o que necessitamosfazeresernavida.Devemosaprenderaorar.Temosdeaprender.

1FlanneryO’Connor,Aprayerjournal(NewYork:Farrar,Straus,2013),p.3.2Ibidem,p.4.3Ibidem,p.20.4Ibidem,p.8.5Ibidem,p.20.6Ibidem,p.4.7MaryBillard,“RobertHammond:leavingthehighlife”,TheNewYorkTimes,

November27,2013.8Disponível em: http://goindia.about.com/od/spiritualplaces/tp/Top-10-

Rishikesh-Ashrams.htm.9DavidHochman,“Mindfulness:gettingitsshareofattention”,TheNewYork

Times,November1,2013.10VejaoartigodecapadaChristianityTodayde fevereirode2008,deChris

Armstrong, “The future lies in the past:why evangelicals are connectingwiththe early church as they move into the 21st century”, e a matéria adicional“Monasticevangelicals”,domesmoautor,publicadasem8defevereirode2008,disponívelem:http://www.christianitytoday.com/ct/2008/february/22.22.html.

11Na igreja católica, há uma crítica sistemática contra a “oração decentralização”, considerando-se sua dívida excessivamente grande para com opensamento das religiões orientais e não para com o entendimento cristão dodivino. Veja o documento de 1989: “Aspects of Christian meditation”, bemcomo: “Christian reflection on the new age”, disponíveis em:http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19891015_meditazione-cristiana_en.html ehttp://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/interelg/documents/rc_pc_interelg_doc_20030203_new-age_en.html. Para uma crítica protestante do recente interesse evangélico porespiritualidadeantigaemedieval,vejaD.A.Carson,“Spiritualdisciplines”,in:Themelios 36, n. 3 (November 2011). Veja também um artigomais antigo deCarson,“Whenisspiritualityspiritual?”,JournaloftheEvangelicalTheologicalSociety37,n.3(September1994).

12VejaD.MartynLloyd-Jones,ThesonsofGod:anexpositionofchapter8:5-17, Roman Series (Peabody: Zondervan, 1974), p. 275-399. Lloyd-Jonesdefendiaavisão(francamenteidiossincrática)dequeo“testemunhodoEspírito”descritoemRomanos8.15,16,o“selodoEspírito”deEfésios1.13(cf.Lloyd-Jones, God’s ultimate purpose: an exposition of Ephesians 1.1-23 [GrandRapids:Baker,1978],p.243-8)eo“batismodoEspírito”descritono livrodeAtos(cf.Lloyd-Jones,Joyunspeakable:powerandrenewal in theHolySpirit

[Marietta: Shaw, 2000]) eram todos amesma experiência. Ele enxergava essebatismodoEspíritocomoumaexperiênciasubsequenteàconversãoealgoquesócertoscristãosrecebemcomoumdompararevesti-losdepoder.Lloyd-Jonesentendia os “avivamentos” como épocas em que esse batismo do Espírito eraderramadosobreumaquantidadeextraordináriadepessoas.ComoamaioriadosoutrosadmiradoresdeLloyd-Jones,nãoaceitoque todosesses termosbíblicossejamequivalentes,nemachoquetodosapontamparaumaexperiênciaúnica.Oentendimento de Lloyd-Jones desse material bíblico foi formado por umaexperiênciaparticularmentepoderosadelequando,emfériasnoPaísdeGales,em1949,lutavacontraaexaustãoeaescuridãoespiritual(veja“WalesandtheSummerof1949”, in: IainH.Murray,DavidMartynLloyd-Jones: the fightoffaith1939-1981 [Carlisle:BannerofTruth,1990],p.201-21).Todavia,Lloyd-Jones ocupa terreno exegético mais seguro ao descrever o “testemunho doEspírito”deRomanos8.16comoumaexperiênciadeelevadograudesegurançaquepodenos sobrevirnaoração.Creioqueeleestejacertonessaquestão, e aexposição que faz dela é esclarecedora e inspiradora. Também a descrição daexperiênciadoamordeDeusemsuaexposiçãodaoraçãodePauloemEfésios3.13-21énotávelpelariquezadedetalhes.

13ThomasR. Schreiner,Romans,BakerExegeticalCommentary on theNewTestament(Marietta:Baker,1998),p.427.ObserveadiscordânciarespeitosadeSchreiner em relação a Lloyd-Jones quanto ao fato de que o testemunho doEspíritoéumaexperiênciaespecialdisponívelapenasaalgunscristãos(p.427,nota18).

14WilliamH.Goold,org.,TheworksofJohnOwen(Carlisle:BannerofTruth,1967),vol.9,p.237.

15John Murray, Redemption: accomplished and applied (Grand Rapids:Eerdmans, 1955), p. 169-70 (grifo nosso) [edição em português: Redençãoconsumadaeaplicada(SãoPaulo:CulturaCristã,s.d.)].

16Veja Karen H. Jobes, 1Peter: Baker exegetical commentary on the NewTestament (Marietta:BakerAcademic, 2005), p. 91.Esseversículobíblico eraum dos favoritos de Lloyd-Jones, que deu esse título ao seu livro sobre obatismodoEspíritoSanto.

17Parasabermaiscomo“orarossalmos”ouusarolivrodeSalmosnaoração,vejaoúltimocapítulodestevolume.

18D. Martyn Lloyd-Jones, Preaching and preachers (Peabody: Zondervan,1971), p. 169-70 [edição emportuguês:Pregação e pregadores (São José dosCampos:Fiel,2011)].

19P.T.Forsyth,The soulofprayer (1916; reimpr.,GrandRapids:Eerdmans,2012),p.9.

P

DOIS

Agrandiosidadedaoração

orisso,desdequeouvifalarsobreafédevocêsnoSenhorJesuseemseuamor por todo o povo de Deus, não parei de dar graças por sua vida,

lembrando-medevocêsemminhasorações.PeçosemprequeoDeusdenossoSenhor Jesus Cristo, o Pai glorioso, possa dar-lhes o Espírito de sabedoria erevelação, a fim de que vocês venham a conhecê-lomelhor. Oro para que osolhos do seu coração sejam iluminados a fim de que vocês conheçam aesperançaparaaqualeleoschamou,asriquezasdesuaherançagloriosanoseupovosantoeseugrandeeincomparávelpoderparanósquecremos(Ef1.15-19).

Asupremaciadaoração

Uma rápida comparação dessa oração de Efésios 1 com as de Filipenses 1,Colossenses 1 e depois com a de Efésios 3 revela que Paulo costumava orarassimporaquelesaquemamava.Noâmagogramaticaldalongafraseredigidapor Paulo, há uma revelação impressionante sobre a grandiosidade e aimportânciadaoração.Noversículo17eleescreve:“Peçosempreque[...]vocêsvenhamaconhecê-lomelhor”.É digno de nota o fato de que, em todos os escritos de Paulo, suas orações

pelos amigos não contenhamum pedido para transformar as circunstâncias. Écerto que viviam em meio a muitos perigos e dificuldades. Enfrentavamperseguição,morteporenfermidade,opressãoporforçaspoderosaseseparaçãodeentesqueridos.Suaexistênciaerabemmenosseguradoqueanossahoje.No

entanto,nessasoraçõesnãohápedidosporumimperadormelhor,porproteçãodebandosdesaqueadores,nemmesmoporpãoparaapróximarefeição.Paulonãoorapelosbensquecolocaríamosgeralmentepertodotopodanossalistadepedidos.Issosignificaqueseriaerradoorarportaiscoisas?Claroquenão.ComoPaulo

bemsabia,opróprioJesusnosconvidaapedirpelonosso“pãodecadadia”eDeushaveriadenoslivrardomal.Em1Timóteo2,Pauloorientaseusleitoresaorarem por paz, por um bom governo e pelas necessidades do mundo. Nasprópriasorações,portanto,Paulonãoestánosfornecendoummodelouniversal,como Jesus fez.Antes, nelas ele revela o que pedia namaior parte das vezespelosamigos: algoqueacreditava seracoisamais importantequeDeuspodialhesdar.Que coisa é essa?Conhecê-lomelhor. E Paulo explica isso com riqueza de

detalhes.Significa ter“osolhosdo[...]coração[...] iluminados”(Ef1.18).Nosentido bíblico, o coração é o centro que controla todo o ser. É onde ficamguardados os compromissos mais importantes, os afetos mais profundos e asesperanças mais básicas que controlam nossos sentimentos, pensamentos ecomportamentos. Ter “os olhos do coração iluminados” por uma verdadeparticular significa permitir que ela nos penetre e de nós se apodere emprofundidade, a ponto de nos transformar por inteiro como pessoa. Emoutraspalavras, podemos saber que Deus é santo, mas, quando os olhos do nossocoração são iluminados por essa verdade, então não só entendemos isso,cognitivamentefalando,mastambémemocionalmenteconsideramosasantidadede Deus magnífica e bela, e por vontade própria evitamos atitudes ecomportamentosqueodesagrademoudesonrem.EmEfésios3.18,PauloafirmadesejarqueoEspíritolhesdê“poder[...]paracompreender”todososbenefíciospassados,presentesefuturosquereceberamaocreremCristo.Claro, todososcristãos conhecem intelectualmente essesbenefícios,masoobjetivodaoraçãovai além disso: ela pretende que eles desenvolvam um senso mais vívido darealidadedapresençadeDeusedeumavidacompartilhadacomele.Paulo vê esse conhecimento mais profundo de Deus como algo mais

importante para receber do que a transformação das circunstâncias. Sem esse

sensopoderosodarealidadedeDeus,circunstânciasfavoráveispodemlevaraoexcessodeconfiançaeàindiferençaespiritual.QuemprecisadeDeus—seriaaconclusãodonossocoração—quandotudopareceestarsobcontrole?Eentãonovamente, sem o coração iluminado, as circunstâncias desfavoráveis podemlevaraodesânimoeaodesespero,porqueoamordeDeusseriaumaabstraçãoemvezdeapresençainfinitamenteconsoladoraquedeveser.Portanto,conhecermelhoraDeusédoquenecessitamosacimadetudo,sepretendemosenfrentaravidasejamquaisforemascircunstâncias.Dessemodo,aprincipalpreocupaçãodePauloécomavidadeoraçãotanto

públicaquantoprivada dos cristãos.Oapóstolo acreditaqueobemmaior é acomunhão com Deus. Uma vida de oração rica, vibrante, consoladora,conquistadaaduraspenaséoúnicobemquepossibilitarecebertodososoutrostiposdebensdemodocorretoebenéfico.OapóstolonãovêaoraçãocomoumsimplesmododeobtercoisasdeDeus,mascomoumamaneiradeobtermaisdopróprio Deus. Ela é uma luta para se apegar a Deus (veja Is 64.7) como, naantiguidade, as pessoas se agarravam ao manto de um grande homem ao lhefazeremumasúplica,oucomo,nos temposmodernos,abraçamosalguémparademonstraramor.Orandodessamaneira,Pauloestavapressupondoaprioridadedavidainterior

com Deus.1 A maioria das pessoas hoje baseia sua vida interior nascircunstâncias exteriores. Sua paz interior é baseada na avaliação que outrosfazemdelaseemsuaposiçãosocial,prosperidadeedesempenho.Eoscristãospensamissotantoquantotodoomundo.MasPauloestáensinandoque,paraoscrentes,deveriaserocontrário.Senão,seremosaçoitadospelamaneiracomoascoisasestãoacontecendonomundo.Seoscristãosnãobasearemaprópriavidanoamor imutáveldeDeus, então terãode“aceitar comosucessooqueoutrosgarantemsersucesso,eentenderafelicidadeeatémesmoopróprioeucombasenaopiniãodomomento.Elestremem,ecomrazão,diantedeseudestino”.2

Aintegridadedaoração

Se priorizarmos a vida exterior, nossa vida interior se tornará obscura eassustadora. Não saberemos o que fazer com a solidão. Sentiremos profundoincômodo em examinar a própria consciência e será cada vez menor nossacapacidade de dar atenção a qualquer tipo de reflexão. E o que é aindamaissério: nossa vida carecerá de integridade. Por fora, precisaremos projetar umaimagemdeconfiança,saúdeeintegridadeespirituaiseemocionais,enquantopordentropodemosestarrepletosdedúvidasarespeitodenósmesmos,ansiedade,autocomiseraçãoevelhosressentimentos.Contudo,nãosaberemospenetrarnosrecônditosdocoração,vercomclarezaoqueexistealidentroelidarcomessesproblemas. Resumindo, se não priorizarmos a vida interior, nós nostransformaremos em hipócritas. John Owen, teólogo inglês do século 17,escreveuumaadvertênciaaministrospopularesebem-sucedidos:Oministro pode encher os bancos da igreja, a lista demembros, a boca dopúblico,mas aquilo que ele é quando está de joelhos diante doDeus todo-poderoso,emsecreto,issoéoqueeleéemaisnada.3

Para descobrir seu verdadeiro eu, olhe para aquilo em que gasta tempo

pensandoquandoninguémestá olhando, quandonãohá nada forçandovocê apensaremalgumacoisaemparticular.Emocasiõesassim,seuspensamentossevoltamparaDeus?Talvezvocêqueiraservistocomoumapessoahumilde,semgrandespretensões,masseráquetomaainiciativadeconfessarseuspecadosaDeus? Quer ser visto como alguém feliz, positivo, mas será que costumaagradeceraDeusportudooquetemelouvá-lopeloqueeleé?Talvezfalemuitoemcomosuaféé“umabênção”enoquantovocê“amadeverdadeaoSenhor”,massenãocostumaorar,seráquetudoissoémesmoverdade?Senãoforfeliz,humildeefielemparticulardiantedeDeus,oquequiserdaraimpressãodeserporforanãocorresponderáaoquevocêdefatoé.Antes de ensinar a Oração do Pai-Nosso a seus discípulos, Jesus expôs

algumas ideiaspreliminares, incluindoesta: “Quandoorarem,nãosejamcomooshipócritas,poisamamorarempénassinagogasenasesquinasdasruasafimdeseremvistospelosoutros.[...]Masvocês,quandoorarem,fechemaportae

oremaseuPai,queestáinvisível[...]emsecreto”(Mt6.5,6).Otesteinfalíveldaintegridade espiritual, diz Jesus, é sua vida de oração privada.Muitas pessoasoramporexigênciadeexpectativasculturaisousociais,outalvezpelaansiedadeprovocada por circunstâncias difíceis. Aqueles que vivem de fato umrelacionamentocomDeuscomoPai,noentanto,internamentehaverãodequererorar e, portanto, orarão ainda que nada ao redor os pressione nesse sentido.Buscarão orar mesmo em tempos de aridez espiritual, quando não houverqualquerretribuiçãosocialouempírica.Priorizaravidainteriornãosignificalevarumavidaindividualista.Conhecer

melhor o Deus da Bíblia não é coisa que se consiga sozinho. Envolve acomunhãodaigreja,aparticipaçãonaadoraçãocomunitária,adevoçãoprivada,assim como a instrução naBíblia e ameditação em silêncio. E no centro dasváriasmaneirasdeconheceraDeusestáaoraçãotantopúblicaquantoprivada.Umpastoreamigomeu,JackMiller,certavezdissequeeracapazdeinferir

muitacoisasobreorelacionamentodealguémcomDeussódeouviressapessoaorar. “É possível dizer se umhomemou umamulher temde fato umdiálogocomDeus”, afirmou.Minha primeira reação foi tomar notamentalmente paranuncamaisoraremvozaltapertodeJack.TiveanosparatestaratesedeJack.Éperfeitamente possível ser rebuscado, teologicamente perfeito e sincero nasoraçõespúblicassemcultivarumavidaparticulardeoraçãoquesejarica.Masnão sepode forjaro tom inconfundívelde realidadeque sóvemdequemfalacomDeus, e não paraDeus.A profundidade da oração privada e a da oraçãopúblicacrescemjuntas.

Adificuldadedaoração

Nãoconsigopensaremnadaexcelentequetambémsejafácil.Portanto,aoraçãodeve ser uma das coisasmais difíceis domundo. Todavia, admitir que orar émuitodifícilpodeserencorajador.Sevocêtravaumagrandelutacomisso,saibaquenãoestásozinho.O livro The still hour, um clássico sobre oração de Austin Phelps, teólogo

americanodoséculo19,começacomocapítulo“AausênciadeDeusnaoração”

e o versículo de Jó 23.3: “Ah, se eu soubesse onde encontrá-lo!”. O livro dePhelpspartedapremissadeque“aconsciênciadaausênciadeDeuséumadascircunstâncias constantes da vida religiosa. Mesmo quando as formas dedevoçãosãoobservadasconscienciosamente,osensodapresençadeDeus,comoo Amigo invisível cuja companhia é uma alegria, não é de modo algumcontínuo”.4

Oautorprossegueexplicandoasvárias razõespelasquaishá tantaarideznaoraçãoecomosuportaressesensodairrealidadedeDeus.Aprimeiracoisaquedescobrimosaotentarorarénossovazioespiritual;umaliçãocrucial.Estamostãoacostumadosaservaziosquenãoreconhecemosessacondiçãocomotalatéquetentemosorar.AtécomeçarmosaleroqueaBíbliaeoutrosdizemsobreagrandiosidadeeapromessadaoração,nãoosentimos.Enfimcomeçamosanossentirsolitáriosefamintos.EsseprimeiropassoéimportanteparaalcançarmoscomunhãocomDeus,maséumpassoquenosdeixadesorientados.Quandoafinalnossavidadeoraçãocomeçaaflorescer,osefeitospodemser

notáveis. Podemos nos encher de autopiedade e acabar justificando oressentimento e a raiva. Então, quando nos sentamos para orar, a reorientaçãoqueacontecediantedafacedeDeusrevelaapequenezdosnossossentimentosnum instante. Todas as nossas justificativas caem por terra, aos pedaços. Oupodemos nos encher de ansiedade e, durante a oração, de repente nosperguntarmos com o que estamos tão preocupados. Rimos de nós mesmos eagradecemos aDeuspor quemele é e peloque tem feito.Pode ser dramáticoassim.Éaclarezarevigorantedeumanovaperspectiva.Comotempo,essapodetornar-seaexperiêncianormal,masnuncaéassimqueavidadeoraçãoseinicia.Noprincípio,ossentimentosdemisériaedeausênciacostumamdominar,masasmelhores orientações para essa fase insistem em que não desistamos,mas,sim,queresistamoseoremosdemododisciplinado,atépassarmosdodeveraoprazer,comodizemPackereNystrom.É preciso tomar cuidado para não entendermos mal essas afirmações, no

entanto.Épocasdearidezpodemvoltarporváriosmotivos.Nãopassamosumaquantidadeestanquedetemponodesertoatéadentrarmosdeformapermanenteem prazer e sentimento. Em vez disso, a vívida reorientação da mente e a

percepçãogeral deDeusno coraçãovêmcommaior frequência e às vezes demaneirasurpreendente, intercaladasatemposdelutaeatémesmodeausência.Apesardisso,abuscadeDeusnaoraçãoacabadandofrutos,porqueDeusnosbusca para adorá-lo (Jo 4.23) e porque a oração é tão infinitamente rica emaravilhosa.

Acentralidadedaoração

ABíblia todafaladeDeus;por isso,apráticadaoraçãoé tãodisseminadaemsuas páginas. A grandiosidade da oração nada mais é que uma extensão dagrandiosidadeedaglóriadeDeusemnossavida.AsEscrituras sãoum longotestemunhodessaverdade.Em Gênesis, vemos cada um dos patriarcas — Abraão, Isaque e Jacó —

orando com intimidade e franqueza. A oração obstinadamente insistente deAbraão para que Deus tivesse misericórdia das cidades pagãs de Sodoma eGomorraédignadenota(Gn18.23ss).EmÊxodo,aoraçãofoiamaneirapelaqual Moisés assegurou a libertação de Israel do Egito. O dom da oraçãoengrandeceIsrael:“QueoutranaçãoétãograndeapontodeterseusdeusestãopertoquantooSenhornossoDeusestádenós semprequeo invocamos?” (Dt4.7).5

Deixar de orar, portanto, não é simplesmente violar uma regra religiosa; édeixarde tratarDeuscomoDeus.Épecarcontra suaglória. “Longedemim”,disse o profeta Samuel a seu povo, “acontecer de eu pecar contra o SENHORdeixando de interceder por vocês” (1Sm 12,23, grifo do autor).6 O rei Davicompôs grande parte do Saltério, o livro de oração inspirado por Deus, comabundantesapelosa“tiquerespondesàsorações”(Sl65.2).SeufilhoSalomãoconstruiu o templo em Jerusalém e em seguida dedicou-o com uma oraçãomagnífica.7OprincipalpedidodeSalomãoemrelaçãoao temploeraqueneleDeus ouvisse orações do seu povo — de fato, a oração mais eminente deSalomão foi pela dádiva da própria oração.8 Além disso, ele esperava que ospovosdeoutrasnações“ouçamoseugrandenome[...]eoremvoltadosparaeste

templo” (1Re 8.42). De novo, vemos que a oração nada mais é que umreconhecimentodagrandiosidadedivina.OlivrodeJó,noAntigoTestamento,ébasicamenteoregistrodosofrimentoe

dadordeJó—enfrentadoscomoração.Nofim,DeusseiracontraosamigosinsensíveisdeJóelhesdizquesóseabsterádepuni-losseJóorarporeles(Jó42.8). A oração permeou o ministério de todos os profetas do AntigoTestamento.9 Pode ter sido a via comum pela qual a própria Palavra deDeuschegou até eles.10 A preservação e o retorno dos judeus do exílio babilônicoforamessencialmenteconduzidospormeiodaoração.Oexíliodelescomeçoucomumchamadoaorarpelacidadepagãeseusvizinhos(Jr29.7).Daniel,quaseexecutadopelasautoridadesbabilônicasporsuainsistênciaemorartrêsvezesaodia, faz uma oração de arrependimento por seu povo, pede seu retorno e éouvido.11Maistarde,NeemiasreconstróiosmurosemtornodeJerusalémcomumamescladegrandesoraçõesentremeadasdesábialiderança.12

Jesus Cristo ensinou seus discípulos a orar, curou pessoas com orações,denunciouacorrupçãodaadoraçãonotemplo(oqual,segundoele,deveriaseruma “casa de oração”) e insistiu em que alguns demônios só poderiam serexpulsospormeiodeoração.Oravadeformafrequenteeregularcomclamorelágrimasfervorosos(Hb5.7),àsvezesanoiteinteira.Enquantoorava,oEspíritoSanto desceu sobre ele e o ungiu (Lc 3.21,22) e, enquanto orava, foitransfiguradocomaglóriadivina(Lc9.29).Eleenfrentousuamaiorcrisecomaoração.Nósoouvimosorandopelosdiscípulosepela igrejananoite antesdemorrer (Jo 17.1-26) e depois, rogando a Deus em agonia no jardim doGetsêmani.Porfim,morreuorando.13

LogoapósamortedeseuSenhor,osdiscípulosseprepararamparao futuroestando juntos “constantemente em oração” (At 1.14). Todas as reuniões daigrejasão“dedicadas[...]àoração”(At2.42;11.5;12.5,12).OpoderdoEspíritodesce aos primeiros cristãos em resposta a orações poderosas, e líderes sãoescolhidoseconstituídos somentecomoração.Espera-seque todososcristãostenhamumavidadeoraçãoregular,fiel,dedicadaefervorosa.NolivrodeAtos,a oração é um dos principais sinais de que o Espírito entrou no coração dealguémpela fé emCristo.OEspírito nos dá a confiança e o desejo de orar a

Deusecapacita-nosaorarmesmoquandonãosabemosoquedizer.Oscristãosaprendemqueaoraçãodevedominarseusdiasinteirosesuavidatoda—elesdevemorar“semcessar”(1Ts5.17).14

Aoraçãoétãopoderosaque,semprequelemosaBíblia,láestáela.Porquê?Emqualquer lugarqueDeus seencontre, láestáaoração.UmavezqueDeusestáemtodaparteeéinfinitamentegrande,aoraçãodevepermeartodaanossavida.

Ariquezadaoração

Uma dasmaiores descrições de oração fora da Bíblia foi redigida pelo poetaGeorgeHerbert(1593-1633)emseuPrayer(I)[Oração(I)].Opoemaédignodenotaporlidarcomoimensotemadaoraçãoemapenascempalavras,nooriginalem inglês, sem usar um único verbo nem orações em prosa. Em vez disso,Herbertnosofereceduasdezenasdeimagensempalavras.Nospróximoscapítulos,trabalharemosparachegaraumadefiniçãodeoração,

mas há um perigo em fazer isso. Toda definição busca reduzir o objeto à suaessência.GeorgeHerbertquer,emvezdisso,conduzir-nosnadireçãooposta.Eledesejaexplorara riquezadaoraçãoemsuas infinitudee imensidão.E faz issoarrebatandonossasfaculdadesanalíticaseimaginativas.ORAÇÃO,banquetedasigrejas,tempodeanjos,soprodeDeusnohomemdevoltaaonascimento,almaemparáfrase,coraçãoemperegrinação,prumocristãoesquadrinhandocéuseterra;mecanismo[emluta]contraoTodo-Poderoso,torredopecador,trovãoreverso,lançaquetranspassaoladodeCristo,osseisdiasdetransformaçãodomundoemumahora,umaespéciedemelodiaquetodasascoisasouvemetemem;suavidade,epaz,ejúbilo,eamor,eêxtase,

manáexaltado,alegriasuperlativa,céunoprosaico,homemembelasvestes,vialáctea,avedoParaíso,sinosdeigrejaqueseouvemalémdasestrelas,sanguedaalma,terradeespeciarias,algocompreendido.Aoraçãoé“soprodeDeusnohomemdevoltaaonascimento”.Muitosquese

consideram céticos ou não religiosos ficam chocados quando se descobremorando,apesardenãoprofessaremumacrençaformalemDeus.Herbertnosdásuaexplicaçãoparaofenômeno.Otermohebraicopara“Espírito”e“sopro”éomesmo.Assim,segundoHerbert,algodeDeusemnóssabequenãoestamossósnoUniverso,equenãofomosfeitosparaatravessá-losozinhos.Aoraçãoéuminstintohumanonatural.Ela pode ser “suavidade, e paz, e júbilo, e amor, e êxtase”— o descanso

profundodequenossaalmanecessita.É“sanguedaalma”,a fontede forçaevitalidade.Por intermédiodaoraçãoemnomedeJesusedaconfiançaemsuasalvação apresentamo-nos como “homem em belas vestes”, espiritualmenteaptos para estar na presença do Rei. Por isso podemos nos sentar em suacompanhiano“banquetedas igrejas”.Banquetesnuncaforammeras refeições,mas um sinal e meio de aceitação e comunhão com o Anfitrião. A oração écomunhãoquealimenta.Tambémé“umaespéciedemelodia”.SintonizaseucoraçãocomDeus.Cantar

envolveocorpointeiro—ocoraçãofluiatravésdamúsica,bemcomoamenteatravés da letra. A oração também é uma melodia que outros, além de você,podem ouvir. Quando seu coração está sintonizado com Deus, sua alegriaprovoca efeito naqueles à sua volta. Você não é uma pessoa arrogante, fria,ansiosaouentediada—massimabnegada,calorosa,profundamenteempazeatenciosa. Os outros perceberão. Todos “ouvem e temem”.A oraçãomuda aspessoasànossavolta.Aoraçãopode ser aindauma“terradeespeciarias”,um lugarde sobrecarga

sensorial,dearomasesaboresexóticos—euma“vialáctea”,lugardeprodígiosemaravilhas.Quando isso acontece, a oraçãode fato é um“tempode anjos”,

uma experiência de eternidade atemporal. Contudo, ninguém na históriaencontrouessa“terradeespeciarias”demodofácilourápido.Aoraçãotambéméo “coração emperegrinação”.No tempodeHerbert, operegrino era alguémquesededicavaaumajornadalonga,penosaeexaustiva.Estaremperegrinaçãoéaindanãoterchegado.Hánaoraçãoumanseionuncasatisfeitonestavida,eàsvezeso contentamentoprofundoquebuscamosemoraçãonosparecepoucoemuitoespaçado.Aoraçãoéumajornada.Mesmo em tempos de seca espiritual, a oração pode ser uma espécie de

“maná”celestial,deplácida“alegria”quenosmantémsempreemfrente,comoomaná no deserto manteve Israel em busca de sua promessa. O maná era umsimples alimento, de sabor especial,mas dificilmente poderia ser consideradoum banquete. Contudo, ele sustentava o povo de forma maravilhosa, umaespéciedepãofeitoparaviajantesafimdelhesdarresistênciainterior.Aoraçãonosajudaaresistir,asuportar.Umdosmotivosqueatornamtãoárduaéofatodeaverdadeiraoraçãoser“a

almaemparáfrase”.Deusrequernãosónossassúplicas,mastambémtodonossoser;ninguémquecomeçaatrilharadurajornadadeumavidainteiradeoraçãojá sabede saídaquemé.Nada, exceto aoração, revelará anósmesmosquemsomos,poissódiantedeDeusconseguimosenxergarenostransformaremnossoverdadeiro eu. Parafrasear algo significa captar-lhe a essência e torná-laacessível. Orar é aprender quem somos diante de Deus e entregar-lhe nossaessência.OrarsignificaconhecerasimesmotãobemquantoDeusoconhece.Oração não é só silêncio, paz e comunhão.É tambémum “Mecanismo [em

luta]contraoTodo-Poderoso”,frasesurpreendentequefazalusãoamotoresoumáquinasdecerco,repletasdearqueiros,usadasnaépocadeHerbertparaatacaruma cidade. A Bíblia contém lamentos, súplicas e intercessões, pois orar érebelar-secontraostatusquomalignodomundo—enadadissoéemvão,poiseles são como “sinos de igreja que se ouvem além das estrelas”, como um“trovãoreverso”.OtrovãoéumaexpressãodoassombrosopoderdeDeusqueaoração de alguma maneira canaliza, de modo que nossas súplicas não sejamouvidas no céu como meros sussurros, mas sim como estalidos, rugidos eestrondosdetrovão.Aoraçãomudaascoisas.

Todavia, Herbert também declara que a oração é a “torre do pecador”. Umespírito arrogante não pode usar da maneira correta o poder dos motores decerco da oração.A “torre do pecador” quer dizer que nosso único refúgio doprópriopecadoédependeremoraçãodagraçadeJesus.NãopodemosentrarnapresençadeDeusamenosquesejamosdependentesdoperdãodeCristoedesuajustiçadiantedeDeus,nãodanossa.Defato,aoraçãoéa“lançaquetranspassaoladodeCristo”.QuandooramosporperdãocombasenosacrifíciodeJesusemnosso favor, graça emisericórdia fluem como a lança no lado dele fez verteráguaesangue.Aoraçãoéumrefúgio.Embora ela seja uma espécie de artilharia que muda as circunstâncias do

mundo,aoração,namesmaproporçãoouatémais,transformanossavisãodascircunstânciasenossaatitudediantedelas.Elaé“umaespéciedemelodia”quetransformaaté“osseisdias [...]domundo”.Essesseisdiasnãose referemaosabbath,diadeadoraçãoformal,masaosdiasdetrabalhodavidacotidiana.Noentanto, essa “uma hora” de oração transforma tudo completamente, como atransposiçãodeumapeçamusicalmudatonsetimbres.Pelaoração,quetrazocéuaoprosaicocotidiano,vemosomundodemaneiradiferente,aténastarefasdiáriasmaishumildesebanais.Aoraçãonostransforma.Como prumos quemedem a profundidade das águas sob as embarcações, a

oraçãoéum“Prumo[...]esquadrinhandocéuseterra”.Ouseja,écapazdenosmergulhar pelo poder doEspírito nas “profundezas deDeus” (1Co2.10). Issoincluiajornadaindescritívelpelaqualaoraçãopodenosconduzirpelalargura,comprimento, altura e profundidade do amor salvador de Cristo por nós (Ef3.18).AoraçãonosuneaopróprioDeus.ComoHerbertencerraessasucessãoesplêndidadeimagensempalavras?De

maneirasurpreendente,aoconcluirqueaoraçãoé“algocompreendido”.Muitosestudiosos têmdebatidooaparenteanticlímaxdessegrandepoema.Parece serum“abandonodametáfora[e,noentanto,]seucoroamentofinal”.15Depoisdetodas as imagensgrandiosas,Herbert desce à terra.Pelaoração“algo”—nãotudo — é compreendido, e as conquistas da oração de fato costumam sermodestas.Paulodizque,nestemundo,quemcrêenxergaascoisasapenas“emparte”,comoreflexosemespelhosvelhosecheiosdedistorções(1Co13.12).A

oração, todavia, limpa nossa visão aos poucos. Quando o salmista caía emespiral descendente rumo ao desespero mortal, entregou-se à oração no“santuáriodeDeus;entãocompreendi”(Sl73.17).Oração é deslumbramento, intimidade, luta—mas também caminho para a

realidade.Nãohánadamais importante,oumaisdifícil,oumaisrico,oumaistransformador da vida. Não existe absolutamente nada tão grande quanto aoração.

1Como já observamos várias vezes, essa “vida interior com Deus” não dizrespeitoapenasànossavidadeoraçãoprivada, individual.AvidacomDeusécultivadapelaadoraçãoepelaoraçãopúblicaeprivada.JoãoCalvinoeoutrosreformadoresdeixaramclaroqueaoraçãoeadevoçãopúblicas,naassembleiacristã reunida, eramabase formadoraquenosensinavaaorar aDeuse anoscomportar diante dele em particular. Michael Horton, ao descrever oentendimentodeCalvinodavidacristã,escreve:“Oministériopúblicomoldaadevoção privada, não o contrário”. Veja Michael S. Horton, Calvin on theChristianlife:glorifyingandenjoyingGodforever(Wheaton:Crossway,2014),p.154.

2Isak Dinesen, Out of Africa (New York: Modern Library, 1992), p. 270[edição em português: A fazenda africana (Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira,1986)].

3JohnOwen,citadoemI.D.E.Thomas,APuritangoldentreasury(BannerofTruth,1977),p.192.

4Phelps,Thestillhour,p.9(grifodesseautor).5Paraconheceravidadeoraçãodospatriarcas,vejaGênesis20.17;25.21;32.9

e15.2ss.IsaqueencontraumaesposapormeiodasoraçõesdoservodeAbraão(Gn24.12,15,45).SobreousodaoraçãoporMoiséscontraofaraó,vejaÊxodo8.8,9,28-30;9.28,29;10.17,18.

6Samuel era famoso por suas orações e pela vida de oração. Veja 1Samuel1.10-16;2.1ss.

71Rs8.22-53;2Cr6.14-42.81Rs8.30,33,35,38,42,44,45,49.9O livro de Jonas é em grande parte um registro de orações: a petição dos

marinheirosatemorizados(Jn1),aconfissãodeJonasnoventredograndepeixe(Jn2)esuamurmuraçãochocantecontra(conformelheparecia)airresponsáveleextravagantemisericórdiadeDeus(Jn4.2).Elias,pelaoração,invocoufogodocéu diante do povo em uma exibição espetacular (1Rs 18.36) e quase deimediato,abatidoeesgotado,recebeuaternamisericórdiadeDeuseajudapormeiodaoração(1Rs19.4ss).OsucessordeElias,Eliseu,salvouavidadeummenino e uma cidade inteira do cerco; ambos pela oração (2Rs 4.33; 6.18).Quandoo reiEzequias recebeuumacarta autoritária do rei assírio ameaçandoaniquilar Jerusalém, pegou a carta, que “estendeu diante do Senhor”, e orou.Deus livrou a cidade (2Rs 19.14-20). Ezequias foi mais tarde liberto daenfermidade pormeio da oração. O livro deHabacuque nadamais é que um

diálogoemformadeoraçãoentreoprofetaeDeus(Hc3.1).HabacuqueesperouemoraçãopelasrespostasdeDeusasuasquestões(Hc2.1-3).

10EssaéavisãodeJ.Thomsonemseuartigo“Prayer”,in:J.D.Douglas,org.,ThenewBibledictionary(GrandRapids:Eerdmans,1973),p.1020[ediçãoemportuguês:OnovodicionáriodaBíblia(SãoPaulo:VidaNova,2006)].VejaIs6.5ss;37.1-4;Jr11.20-23;12.1-6.

11ApráticadeDanieldeorartrêsvezesaodiaestáregistradaemDaniel6.7-12.Suaoraçãodearrependimento,pedindoqueopovofosse libertodoexílio,encontra-seemDaniel9.1-18;arespostaestánosv.21-23.

12Neemiasbuscao favordo imperadorpara reconstruiromurodeJerusalémpormeiodaoração(Ne1.1-11;2.4).Elecostumavaorar tambémporproteçãoaté que a obra domuro estivesse concluída (Ne 4.9; 6.9).Mais tarde, EsdrasprotegeopovoquevoltadoexílionaBabilôniaparaJudápormeiodaoração(Ed8.23).TantoEsdras(Ed9.1ss.)quantoNeemiassearrependemebuscamoperdãopelospecadosdopovo.

13Cristo ensinou seus discípulos a orar em Mateus 6.5-15; 21.22; Marcos11.24,25; Lucas 11.1-13; 18.1-8. Impôs as mãos sobre crianças para orar emfavordelas(Mt19.13).RessuscitouLázarodosmortosclamandoaseuPaiemoração (Jo 11.41,42). Salvou Pedro do esmorecimento espiritual através daoração (Lc 22.32).Disse que o templo deveria ser uma “casa de oração” (Mt21.13; Mc 11.17; Lc 19.46). Ensinou que alguns demônios só podiam serexpulsospelaoração(Mc9.29).Oravacomfrequênciaeregularidade(Mt14.23;Mc 1.35; 6.46;Lc 5.16; 9.18) e às vezes a noite toda (Lc 6.12).A oração nojardim do Getsêmani está registrada em Mateus 26.36-45; Marcos 14.32-40;Lucas 22.39-46. Seu pedido em oração — de que não tivesse de sofrer acrucificação—foinegado.Morreuorando—clamandoemagonia(Mc15.35),orandoemfavordeseusinimigos(Lc23.34)eentregando-seaDeus(Lc23.46).

14AoraçãotrazopoderdoEspíritoemAtos4.24,31.Líderessãoselecionadose nomeados mediante a oração em Atos 6.6; 13.3 e 14.23. Os apóstolos —mestres e líderes da igreja primitiva — acreditavam que precisavam dedicartantaatençãoàoraçãoquantodedicavamaoensinodaPalavra(At6.4).Espera-se de todos os cristãos que tenham uma vida de oração fervorosa (Rm 12.2;15.30;Cl4.2),orandodetodasasformasportudo(Ef.6.18).Espera-sequeoscônjuges até se afastem um do outro para ter períodos de oração ininterrupta(1Co7.5).OEspíritonosdáaconfiançaeodesejodeoraraDeuscomoPai(Gl4.6;Rm8.14-16)ecapacita-nosaorarmesmoquandonãosabemosoquedizer(Rm8.26).TodososdesejosdevemserentreguesaDeusemoração—aúnica

alternativaéaansiedade(Fp4.6).Todasaspessoasànossavoltadeveriamserobjeto de oração (1Tm 2.1), e os enfermos deveriam ser motivo especial deoração (Tg 5.13-16). Deus ouve as orações e as responde (Tg 5.17,18). Tododom que você recebe deve ser “consagrado” por meio da oração— deve-seagradecer aDeus por ele a fimde que o coração não endureça pela ilusão daautossuficiência (1Tm 4.5). Nossa vida deve ser dominada pela oração —devemos orar “sem cessar” (1Ts 5.17), buscando a glória de Deus comconsciênciaemtudooquefazemos(1Co10.31).AsoraçõeseoslouvoresdosnossoslábiossãoagoraosacrifíciomaisagradávelquepodemosofereceraDeus(Hb13.15;cf.Ap5.8).

15Charles Summers, citado em Helen Wilcox, org., The English poems ofGeorgeHerbert(NewYork:CambridgeUniversityPress,2007),p.177.

SEGUNDAPARTER

Compreendendoaoração

O

TRÊS

Oqueéoração?

que é oração? As inúmeras formas de oração existentes no mundo sãoessencialmenteamesmacoisa?Emcasonegativo,comodefinirediscernir

averdadeiraoração?

Umfenômenoglobal

Para as três grandes religiões monoteístas, o islamismo, o judaísmo e ocristianismo, a oração constitui o cerne do que significa crer.Osmuçulmanossãochamadosaorarcincovezesaodia,eosjudeustêmcomotradiçãoorartrêsvezesaodia.Ecadaramodaigrejacristãestáimpregnadodediversastradiçõesrelativasàoraçãoempúblico,emparticularepastoral.Éevidente,noentanto,queaoraçãonãoestárestritaàsreligiõesmonoteístas.

Osbudistasusamrodasdeoraçãoquelançampedidosdecompaixãoàatmosferaa fimde entrelaçar o espiritual e o natural, de aliviar o sofrimento e liberar abondade.1 Já os hindus, embora possam orar pedindo ajuda ou pazmundial aqualquer um de muitos deuses, têm como objetivo final a união com o SerSupremo, Brama, e escapar dos ciclos de reencarnação.2 Povos de outrasculturas,comoos índioscastores,dosudoestecanadense,eos índiospapagos,dosudoesteamericano,orampormeiodecantos.Suapoesiaemúsicaservemcomo orações que unificam os reinos espiritual e físico.3 A oração é um dosfenômenosmaiscomunsdavidahumana.

Até pessoas professadamente não religiosas às vezes oram. Estudosdemonstramque,empaísessecularizados,aoraçãocontinuaaserpraticadanãosó por aqueles que não têm nenhuma preferência religiosa, mas também pormuitosdaquelesquenãoacreditamemDeus.4Umestudode2004revelouquequase30%dosateusadmitemorar“àsvezes”,5eoutroverificouque17%daspessoasqueafirmamnãocreremDeusoramcomregularidade.6Afrequênciadaoraçãoaumentacomaidade,mesmoentreaquelesquenãovoltamparaaigrejanem se identificam com nenhuma fé institucional.7 O estudioso italianoGiuseppe Giordan resumiu: “Em quase todos os estudos da sociologia docomportamento religioso é bastante visível que um percentual muito alto depessoasdeclaraorartodososdias—emuitasdizemfazerissováriasvezesaodia”.8

Isso significaque todomundoora?Não.Muitosateuscertamente se sentemofendidoscomoditado“Nãoexistemateusnastrincheiras”.Hámuitagentequenão oramesmo em tempos de extremo perigo.Ainda assim, embora a oraçãonãosejaliteralmenteumfenômenouniversal,églobal,estápresenteemtodasasculturaseenvolveaesmagadoramaioriadepessoasaomenosemalgumpontodesuasvidas.9Osesforçosparaencontrarculturas,incluindoasmaisremotaseisoladas, sem alguma forma de religião e de oração, têm fracassado. Semprehouve entre os seres humanos alguma espécie de tentativa de “comunicaçãoentre os reinos humano e divino”.10 Parece que existe um instinto humano deorar. O teólogo suíço Karl Barth chama isso de nossa “ânsia incurável porDeus”.11

Dizer que a oração é uma prática quase universal não significa, todavia,afirmarquetodaoraçãoéigual.Háumavertiginosavariedadedelasaosolhosdeum observador. Basta ver os transes religiosos dos xamanistas americanosnativos; os cânticosnosmosteirosbeneditinos; entusiastaspraticando ioganosescritóriosemManhattan;aslongasoraçõespastoraisdosministrospuritanosdoséculo17;ofalaremlínguasnasigrejaspentecostais;muçulmanosentreguesàsujud, coma testa, asmãos e os joelhos no chão, voltados paraMeca; judeushassídicossebalançandoesecurvandoemoração;ouumsacerdoteanglicano

lendooLivrodeOraçãoComum.12Oquenoslevaàpergunta:emquesentidoessestiposdeoraçãosãosemelhanteseemquesãodiferentes?

Tiposdeoração

EntreosprimeirosteóricosmodernosdaoraçãoseencontramEdwardB.Tylor(1832-1917),JamesFrazer(1854-1941),autordeThegoldenbough[Oramodeouro],eSigmundFreud(1856-1939).Todoselesusaramummodelodarwinianoqueviaaoraçãocomoummododeossereshumanosseadaptaremaoambientepara controlar as forças da natureza. De acordo com essa teoria, a oraçãocomeçou quando a mente coletiva humana era “semelhante à mentalidade dacriança e do neurótico, sendo seu principal traço o pensamento mágicoinfantil”.13

Com o passar do tempo, a oração evoluiu para formas mais refinadas emeditativas.AoraçãonãoprocuravatantoacomunicaçãocomumDeuspessoal,mas,sim,olharparadentroebuscarmudançasdeconsciênciaepazinterior.Deacordocomessavisão,osexercícioscontemplativosdosfilósofosgregoseramum progresso que superava os sacrifícios e súplicas a Zeus para trazer chuvasobreacolheita.Contudo,nofim,peloqueacreditavamessesteóricos,ofuturoda oração humana era sombrio. Como ela nascera em meio a esforços pré-científicosdeusarreligiãoemagiaparacontrolaromundo,comosurgimentodaciência a oração nãomais contribui para nos adaptarmos ao ambiente.Nessascondiçõesela“minguaráaospoucos”.14

Outro pensador importante a ser considerado é o psicólogo Carl Jung, doinício do século 20, cujo entendimento da experiência religiosa tambémcompreendiaaoraçãomaiscomo“voltar-separadentro”doque“estenderamãoparafora”.15Jungacreditava,comoospensadoresorientais,quetodosossereshumanosfaziampartedeumaforçacósmicadevida.16Desfrutamosdesaúdeecompletudequandonosdamos contadenossaunião com toda a realidade eomundointerconectado.17Jungsalientouassemelhançasentreesseprocessoeaexperiência zen-budista do satori.18 Os seguidores de Jung desencorajavam aideia de que deveríamos buscar contato com um Deus pessoal fora de nós

mesmos.19 Segundo a visão deles, era melhor dedicar-se à transformação daconsciência,àcompreensãopuraeaosensodeuniãocomtodaarealidadequeacontemplaçãoespiritualtraz.20

Oraçãomísticaversusoração“profética”

Valenotarque tantonaavaliação freudianaquantona junguianade religião, acontemplaçãoévistacomoumtipodeoraçãomaiselevadoesofisticadodoqueasúplicaaumserdivinopessoal.Umaavaliaçãomuitodiferente,contudo,foiproposta pelo estudioso alemão Friedrich Heiler. Ele menciona a oração“mística”,cujofocoévoltadoparaointerior,eaoração“profética”,cujofocoévoltado para o exterior. Diferentemente dos teóricos anteriores, Heilerconsideravaosegundotiposuperior.Emboraacreditassequeaoraçãomísticamaispuraseencontravanasreligiões

orientais,Heilertambémcriticoualgumasformascristãsdeoraçãomística.21Omisticismo,deacordocomHeiler,minimizaadiferençaentreDeusequemoracom o objetivo de que “a personalidade humana seja dissolvida, desapareça esejaabsorvidanaunidadeinfinitadadivindade”.22Areligiãomística,portanto,consideraacontemplaçãosilenciosa,serenaesempalavrascomoaformamaiselevada de oração. Quando a atingimos, nãomais conversamos comDeus—somos parte de Deus. Heiler contrastava isso com “o clamor e os gemidosapaixonados[...]aqueixaeasúplica”daoraçãoverbalecombativadareligiãoprofética.23Comesse termo, ele aludia ao tipodeoraçãoque encontramosnaBíblianosescritosdosprofetas,dossalmistase,maistarde,dosapóstolosedopróprioJesus.Na visão de Heiler, os dois tipos de oração diferem principalmente em sua

noçãodeDeus.24Aoraçãomística,segundoeleacreditava,enfatizaDeuscomomaisimanentedoquetranscendente.Eleestádentrodenósedetodasascoisas.Portanto, o principalmodode conexão comDeus é voltar-se para o interior esentir a conexão com o divino. O teólogo ortodoxo Anthony Bloom, porexemplo, em seu famoso livro Beginning to pray, diz: “Os Evangelhos nosensinamqueoreinodeDeusestádentrodenósantesdemaisnada.[...]Senão

podemos encontrar Deus em nosso interior, no fundo de nós mesmos, apossibilidadedeencontrá-loforaémuitoremota.[...]Portanto,éparadentroquedevemosnosvoltar”.25Aoraçãoprofética,poroutrolado,enfatizaqueDeusestáforadenós,transcendenteacimadenós,santo,gloriosoe“Outro”.26

Outragrandediferençaentreosdoistiposdeoração,naconcepçãodeHeiler,era a sua compreensão da graça. A mística, segundo ele acreditava, podia setornar“umacoisa[...]meritória”,ummeiopeloqualaspessoastentavamsalvara própria alma.27 A oração mística costuma requerer um longo processo de“purgação”—uma“exaustivaescaladapassoapassoatéoápicedavisãoedaunião comDeus”28—atravésdoqual o adorador alcançaumestadode amorpuroesetornapreparadoparaapresençadeDeusedignodela”.29

Nosprofetase salmistas, contudo,HeilerpercebeuqueaoraçãonãoeraummododesepurificarparaDeus,mas,sim,deconfiarna“‘preveniênciaedádiva’dagraçadeDeus.Aoraçãonãoénossadescobertaouconquista;antes,éobradeDeusnohomem”.30OobjetivodaoraçãoproféticanãoéaabsorçãoemDeus,mas a proximidade deDeus— a proximidade do filho com o pai, ou de umamigocomoutro.Aoraçãomísticaalcançaseuclímaxnaplacidezsempalavras,ao passo que a oração profética encontra sua expressão final em palavras delouvor e em uma explosão de emoções poderosas. Enquanto a oraçãomísticatende para a perda do limite entre o eu eDeus, a oração profética leva a umsensomuitomaiordadiferençaentreoeueoDeusmajestoso—aconsciênciadacondiçãodepecador.Contudo,tambémserevelanagraçaque,nãoobstante,abrecaminhoparaaintimidadecomDeus.Osmísticosacreditamqueaoraçãoconsisteemestágiossucessivos,começandodapetiçãodirecionadaparaoalto,passando pela confissão até, por fim, a contemplação sem palavras, emadoração.31Aoraçãoprofética,todavia,recusa-seaenxergarumadessasformasdeoraçãocomomaiselevadadoqueasoutras.Elamesclameditação,súplicaeação de graças, confissão e adoração em uma coisa só. De fato, na oraçãoproféticaessasformasestimulam,aprofundamelevamumasàsoutras”.32

Oproféticomístico

Qual visão de oração está correta? De quem defende a volta mística para ointerior, ou de quem a rejeita por considerá-la “oriental” demais e nãointeiramentebíblica?33Umadasrespostaséarejeiçãodasduasvisões.AobradePhilipeCarolZaleski,Prayer:ahistory[Oração:umahistória],criticatantoasantigas teorias “evolutivas” quanto a teoria deHeiler. Segundo afirmam, cadaumadasabordagenséexcessivamentenegativaparacomdeterminadas formasdeoraçãoe,portanto,“excluiumpercentualsignificativodorepertóriomundialdeoração”.34Como,perguntameles, podealguémdescartar amaiorpartedasformas de oração humana por considerá-las simplesmente inválidas? Emborareconheçamalgumasdiferenças,recusam-seaverqualquertipodeoraçãocomomelhordoqueoutro,sejaelequalfor.35

AanálisedosZaleskiséinstrutiva,masacabafalhandopornãofazerjustiçaàsprofundasdiferençasentreas formasdeoraçãohumana.Seuesforçocorajoso,porexemplo,paracompararoêxtasedostransesdohinduSriRamakrishnacomo falar em línguas pentecostal36 não convence. A bhava shamadhi (êxtase daconsciência)doRamakrishnaeofalaremlínguasdospentecostaiscompartilhamumasemelhançaexteriordealegriaemocional,mas têmobjetivosopostos.Aodescreverosamadhi, ummongehinduafirmaque,quandoo alcança, “nãohádeus do qual falar, exceto eu mesmo”. Prossegue contando que “os judeusortodoxos,oscristãoseosmuçulmanosnaverdadenãopodembuscaressauniãoeserempiedososaomesmotempo,porqueperderaprópriaidentidadeetornar-seofundamentocósmicoéumaheresiamortalparaseusensinamentos”.37Umavez que os objetivos e os deuses são tão diferentes na mente de quem estáorando,édemasiadamenteenganoso insistiremque todasas formasdeoraçãosão,nofundo,amesmacoisa.CreioqueHeilerémuitomaissábiodoqueosZaleskisemsuasdistinçõese

corretoemseuinstintobásico.EleacreditavasermelhoraoraçãoquepresumiaapessoalidadedeDeusdoqueaoraçãoqueperdiaosensodecomunicaçãoentreaspessoas.38Eleviaaoraçãobasicamentecomoumaconversaemvezdeumencontromístico e sempalavras.Ainda assim, algumasdas distinções que elefazsãoexageradas.Heilercomparaacalmaeaserenidadebuscadaspelaoraçãomísticacomosclamoreseoembatedaoraçãoprofética.Noentanto,algunsdos

salmosfalam,sim,emcontemplaçãoserenadabelezadeDeus(Sl27.4)ouemsua glória e amor (Sl 63.1-3). EmSalmos 131.2,Davi descreve um profundocontentamentoespiritualemDeus:“Tenhomeacalmadoeaquietado,soucomoumacriançadesmamadacomamãe;comoumacriançadesmamadasoufeliz”.Mesmo alguém como JonathanEdwards—emmatéria de oraçãomuitomaispropenso à tradição “profética” protestante do que àmística católica— podeaindaassimfalaremser“esvaziadoeaniquilado”naoração.Emsua“Narrativapessoal”,umaespéciedediáriodeexperiênciasespirituais,Edwardsescreveu:Certavez[...]noannode1737[...] [em]divinacontemplaçãoeoração, tiveuma visão extraordinária da glória do Filho de Deus como mediador entreDeuseohomem,edeseuamoregraçamaravilhosos,excepcionais,plenos,puros e doces, e de sua mansa e gentil condescendência. [...] A pessoa deCristoapareciaeminefávelgrandeza,comexcelênciasuficienteparaabsorvertodopensamentoeconceito[...]algoqueprosseguiuquaseporumahora,tantoquantosoucapazdecalcular;issomemanteveamaiorpartedotempoemumatorrentede lágrimas, chorandoalto.Sentinaalmaumardorpor ser,queeu,esvaziadoeaniquilado,nãosoubeexpressardeoutraforma;deitarnochãoesercheiosomentedeCristo;amá-locomumamorsantoepuro;confiarnele;viver dele; servi-lo e segui-lo; e ser perfeitamente santificado e purificado,comumapurezadivinaecelestial.39

Qualquer pessoa dotada de ummínimo de familiaridade com a teologia de

Edwardssabequeelenãoestáfalandoemsefundircomadivindade,nememumadissoluçãopanteísticadoslimitesentreoeueoUniverso.Heileracertaaosalientarqueosmísticoscomfrequênciabuscamumtipodeautossalvaçãopelameditação,oqueestátãodistantequantosepossaimaginardoentendimentoqueEdwards tem da redenção pela fé e pela graça somente. Entretanto, suaexperiênciadecomunhãocomDeussoasemelhanteamuitasdasexperiênciasdeamoredeleiteprofundosdosrelatosdosescritoresmísticos.Por que, então, Edwards pode falar em oração a um Deus pessoal e

transcendente comessas conotaçõesmísticas?Porque, aomesmo tempoqueo

Deusbíbliconãoé“omesmoqueeu”,tampoucoestá“longedemim”deformacompletae inacessível.Oscrentescristãos têm“Cristoemvós,aesperançadaglória”(Cl1.27)pormeiodoEspíritoSanto.DeustambémnosdeusuaPalavra,as Escrituras, e, por ser ele divino, aBíblia não se reduz a um repositório deinformação,masépoderespiritualdinâmico.Edwardsescreveu:Experimentei nesse dia, e em outras ocasiões, o maior dos deleites nasEscrituras Sagradas, dentre todos os livros. Com frequência, ao lê-la, cadapalavrapareciatocarmeucoração.Sentiaharmoniaentrealgonomeucoraçãoeessaspalavrasdocesepoderosas.Parecia-mesemprehavertantaluzlançadapormeiodecadafrase,eelamepassavaumalimentotãorevigorantequenãoconseguia continuar lendo;muitas vezesme demorava longamente em umafraseparaenxergarasmaravilhasnelacontidas;noentanto,quase todaselasmepareciamrepletasdemaravilhas.40

Isso é profundamente místico e ricamente profético — ao mesmo tempo.

Edwardsnãomergulhaemsimesmoparatocarofundamentoimpessoaldoser.ElemeditanaspalavrasdeDeusnasEscrituras,eaexperiênciaresultantenãoselimitaaumaserenidadesempalavras. Issonãoéa“consciênciapura”quevaialém da predicação e do pensamento racional. Na verdade, Edwards ficaextasiadocomopoderdaspalavrasearealidadeparaaqualapontam.CreioqueHeilerestejacertoemsuavisão—deque,emúltimaanálise,aoraçãoéumarespostaverbaldeféaumaPalavradeDeustranscendenteeasuagraça,nãoummergulhointeriorparadescobrirquesomosumcomtodasascoisasecomDeus.A oração “profética” de Heiler está mais perto do entendimento bíblico deoraçãodoqueadeoutrospensadoresquetemosexaminado.Noentanto,emborasuasadvertênciascontraomisticismosejamcruciais,precisamosreconhecerqueaoraçãotambémpodelevarcomregularidadeaoencontropessoalcomDeus,oque pode ser de fato uma experiência extraordinária, misteriosa, repleta dereverência.41

Uminstinto,umdom

Vimosqueaoraçãoéumfenômenouniversale,noentanto,quehádiferençasgenuínaseirredutíveisentreseusváriostipos.Issonoslevadevoltaàpergunta:qual a essência da oração? Como defini-la de modo que sejamos capazes decompreendersuadisseminaçãonavidahumanae,noentanto,crescerempráticafielrumoàverdadeiraoração?Do ponto de vista bíblico, o fenômeno quase universal da oração não

surpreende. Todos os seres humanos são feitos à “imagem de Deus” (Gn1.26,27). Portar a imagem de Deus significa que somos criados para refletirDeusecomelenosrelacionar.Porisso,noséculo16oreformadorJoãoCalvinoescreveu sobre o divinitatis sensum, o senso da divindade que todos os sereshumanos possuem. “Existe dentro da mente humana, por instinto natural, naverdade, uma consciência da divindade”, portanto, “a semente da religião estáplantadaemtodos”.42Outrosteólogostambémconsideramodivinitatissensuma razão pela qual a oração é tão disseminada na humanidade. Em Romanos1.19,20 lemos que podemos olhar para o mundo e concluir que algum podergrandioso o criou e o sustém. Assim, uma experiência de fraqueza eprecariedade é capaz de desencadear esse conhecimento primevo na forma declamoresdeoraçãoporsocorro.OteólogoinglêsJohnOwentambémacreditavaqueoimpulsonaturaldeorar

estápresenteemtodosospovos,equeeleé“originalnaleidanatureza”eum“reconhecimento natural, necessário e fundamental do Ser Divino”. Eleacrescentouquemuitasreligiõeseculturasnãocristãsenvergonhamoscristãospelozelocomqueoram.43JonathanEdwardsacrescentouque“Deusàsvezesseagradaderesponderasoraçõesdosdescrentes”nãopornenhumaobrigação,masestritamenteporsua“piedade”e“misericórdiasoberana”,citandoosexemplosbíblicosdeDeusouvindoosclamoresdosninivitasemJonas3eatédomaldosoreiAcabe(1Re21.27,28).44

Com tudo isso em mente, podemos definir a oração como uma respostapessoalecomunicativaaoconhecimentodeDeus.Todosossereshumanostêmalgum conhecimento deDeus a sua disposição. Em algum grau, eles têm um

senso indelével de que precisam de algo ou alguém que esteja em um planosuperiorequesejainfinitamentemaiordoqueeles.Orar,mesmoquenãopassedeumclamorporsocorrolançadoaovento,ébuscarrespondereseconectaraessesereaessarealidade.Acreditoqueesse sejaodenominadorcomumde todaoraçãohumana.Mas,

comonossadefiniçãoentendeaoraçãocomoumarespostaaoconhecimentodeDeus, isso significa que a oração sofre profunda alteração de acordo com ovolumeeaprecisãodesseconhecimento.Embora todospossam terumsensusdivinitatis, Calvino observou que todos nós remodelamos esse senso dadivindade de modo a que se adapte a nossos próprios interesses e desejos, amenosquenossavisãodeDeussejacorrigidaeesclarecidapeloEspíritoepelasEscrituras.45

Ou seja, a oração é uma resposta ao conhecimento de Deus, mas que semanifestaemdoisníveisdiferentes.Emumdeles,elaéuminstintohumanodepedirajudacombasenumsensomuitogeraledesfocadodeDeus.Éumesforçodapessoapara se comunicar,masnãopode ser uma conversagenuínaporqueseuconhecimentodeDeusémuitovago.Emoutronível,aoraçãopodeserumdom espiritual. Os cristãos acreditam que, pelas Escrituras e pelo poder doEspíritoSanto,nossacompreensãodeDeuspodese tornarclara.NomomentoemquenascemosdenovopormeiodoEspírito,pelaféemCristo(Jo1.12,13;3.5), esse Espírito nos mostra que não somos meros súditos de Deus mastambémseusfilhos,epodemosconversarcomelecomonossoPai(Gl4.5,6).46

OconhecimentodeDeusnaoraçãoinstintivavemdaintuiçãoe,emgeral,pormeio da natureza (Rm 1.20). O que os cristãos sabem sobre Deus vem comespecificidadeverbalpormeiodaspalavrasdasEscriturasede suamensagemprincipal—oevangelho.NaBíblia,aPalavravivadeDeus,podemosouvi-lofalando conosco, e respondemos pormeio da oração, embora não devêssemoschamá-ladeuma simples “resposta”.PelaPalavra epeloEspírito, aoração seconverteemrespostaaDeus—umaconversanosentidoplenodotermo.47

Umaconversa,umencontro

Temos,portanto,umadefiniçãodeoraçãoquetantoconfirmaseucaráterdifusoquanto nos ajuda em uma distinção importante. Toda oração consiste emresponderaDeus.Emtodososcasos,ésempreDeusquemdáoprimeiropasso— o “ouvir” sempre precede o pedir. Deus vem a nós primeiro ou jamaisestenderíamos amão em sua direção.48No entanto, nem todas as orações sãosemelhantes ou igualmente eficazes em se relacionar comDeus. QuantomaisclaronossoentendimentodequeméDeus,melhoresasnossasorações.Aoraçãoinstintivaécomoumsinalizadordeemergênciareagindoaumsensogenéricodarealidade de Deus. A oração como dom espiritual é uma conversa genuína epessoalemrespostaàrevelaçãoespecíficaeverbaldeDeus.Contudo,aoraçãopodeseraindamaisqueisso.Muitasdenossasconversas,

ou talvez a maior parte delas são de certa forma superficiais. As pessoasconseguemtrocarinformaçõessemserevelaremmuito.Algumasconversas,noentanto,vãomaisafundoe,quandoissoacontece,sentimosqueambasaspartesenvolvidas estão revelando não só informação mas o próprio ser. A conversaentãosetornaumencontropessoal,umaconexãoverdadeira.OromanceThathideousstrength,deC.S.Lewis,narraaconversãodeuma

das personagens, Jane Studdock, após uma conversa crucial. Ela achava que“religião” era como uma nuvem de incenso “se desprendendo de almasespecialmentedotadas rumoaumcéu receptivo”,quepor suavez responderiapormeiodeváriasrecompensasebênçãos.Derepenteformou-seumaimagemmuito diferente dessa em suamente, não dos nossos esforços voltados para oalto,masdeum“Deus[...]demãosfortesehábeisestendidasparabaixoafimde criar e reparar”. Então, com base nessa nova informação, ela se sentiu“entrando na presença de uma Pessoa. Algo expectante, paciente, inexorávelencontrou-a sem nenhum véu ou proteção entre eles”. Deus a encontrou. Emconsequência disso, tudo mudou. “O húmus sob os arbustos, o musgo nocaminhoeapequenabordadetijolosnãosealteraramdemaneiravisível.Masestavammudados.Umafronteiraforacruzada”.49

Quasede imediato,vozes surgiramemsuamente.Aprimeira foiumataquefrontal. “‘Cuidado. Para trás. Cabeça fria. Não se comprometa’, diziam.” Asegunda, mais sutil, insistiu em que ela convertesse o sentimento em uma

experiência enriquecedora que a ajudaria a desfrutar melhor da vida atual:“‘Vocêteveumaexperiênciareligiosa.Oqueémuitointeressante.Nãoacontececom todo o mundo. Você entenderá muito melhor agora os poetas do século17!’”.Lewis,onarrador,acrescenta,concluindo:“Massuadefesaforarendidaeessescontra-ataquesfracassaram”.50

Lewisintitulouessecapítulode“Avidarealéencontro”.51Defatoé,eumaverdade particularmente válida na vida de Cristo. A vida de Jane foitransformada quando ela se encontrou com Deus. A Bíblia fala do nossorelacionamentocomDeuscomooatodeconhecereserconhecido(Gl4.9;1Co13.12).Oobjetivonãoésócompartilhar ideiasmas tambémanósmesmos.Acomunicação pode levar a uma revelação pessoal nos dois sentidos, a qualproduzalgoquesópodeserchamadodeexperiênciadinâmica.J.I.Packer,emsuafamosaobraKnowingGod,escreve:ConheceraDeuséumaquestãode tratativapessoal. [...]ConheceraDeusémaisdoquesabera respeitodele;é tratarcomeleàmedidaqueeleseabreparavocê,esertratadoporele.[...]Amigos[...]abremocoraçãoumparaooutropormeiodoquedizemefazem.[...]NãodevemosperderdevistaofatodequeconheceraDeuséumrelacionamentoemocional,bemcomointelectualevolitivo,eseassimnãofosse,nãopoderiaserdeverdadeumrelacionamentoprofundoentreduaspessoas.52

Sendo assim, o que é oração no sentidomais pleno da palavra?Orar é dar

continuidadeaumaconversaqueDeusinicioupormeiodesuaPalavraegraça,equecomotempovaisetransformandonumcompletoencontrocomele.

Ouvireresponder

NamaiorpartedograndelivrodoAntigoTestamentocujotítulolevaseunome,JóclamaaDeusemoraçãoangustiada.Apesardetodasassuasqueixas,jamaiseleseafastadeDeusoulhenegaaexistência—emvezdisso,processasuadore sofrimentopormeiodaoração.Todavia, Jónãoconsegueaceitar avidaque

Deusoestáchamandoaviver.EntãoocéuseenchedenuvenseDeuslhefala“deumredemoinho”(Jó38.1).OSenhorrelataemvívidosdetalhesacriaçãoeasustentaçãodouniversoedomundonatural.Atônito,JósehumilhadiantedessavisãomaisprofundadeDeus(Jó40.3-5)eétransformado.Eleenfimdirigeaocéuumaoraçãopoderosadearrependimentoeadoração(Jó42.1-6).Aquestãopropostapelolivrosurgebemnocomeço.Épossívelaumhomem

ou a umamulher amar aDeus somente por quemele é, demodo a sentir umcontentamento fundamental na vida independentemente das circunstâncias (Jó1.9)?53 No fim do livro, encontramos a resposta. Sim, é possível,mas só pormeiodaoração.O que aconteceu?Quantomaior a clareza com que Jó enxergava quem era

Deus,mais plenas suas orações se tornavam—passandoda simples queixa àconfissão,aoapeloeaolouvor.Nofim,eleétransformadoesetornacapazdeenfrentar qualquer coisa na vida. Ele alcançou esse novo nível de caráterrefinadopela interaçãoentreouviraPalavra reveladadeDeuse responderemoração.QuantomaisverdadeiroseuconhecimentodeDeus,maisfecundassuasoraçõessetornaram,emaisvastaeradicalfoiatransformaçãoemsuavida.O poder das nossas orações, portanto, não se encontra primordialmente em

nossoesforçoeluta,ouemumatécnicaqualquer,masemnossoconhecimentodeDeus.Você pode responder: “MasDeus proferiu palavras audíveis a Jó nomeiodeuma tempestade.Gostariaque tambémfalassecomigodesse jeito”.Arespostaé: temosalgomelhor,umaexpressão incalculavelmentemaisclaradocaráterdeDeus.“Nopassado,Deusfalouanossosancestraisporintermédiodeprofetasmuitasvezesedeváriasmaneiras,masnestesúltimosdias,elenostemfaladoporseuFilho[...]oresplendordaglóriadeDeusearepresentaçãoexatadoseuser”(Hb1.1-3).JesusCristoéaPalavradeDeus(Jo1.1-14),poisnãohácomunicaçãodaparte

de Deus mais abrangente, pessoal e bela do que ele. Não podemos olhardiretamente para o Sol. A glória dele arrebataria e destruiria nossa visão deimediato.Temosdecontemplá-loatravésdeumfiltro,paraassimenxergarseusmonumentais raiosecores.QuandoolhamosparaJesusCristocomoelenosémostradonasEscrituras,contemplamosaglóriadeDeusatravésdofiltrodeuma

natureza humana. Essa é uma dasmuitas razões, como veremos, pela qual oscristãos oram “em nome de Jesus”. Por intermédio de Cristo, a oração setransformanoqueoreformadorescocêsJohnKnoxchamoude“umaconversasincera e próxima com Deus”, e no que João Calvino chamou de “conversaíntima”doscrentescomDeus,ou,emoutraparte,“comunhãodoshomenscomDeus” — uma interação comunicativa de mão dupla.54 “Pois por meio dele[Cristo][...]temosacessoaoPaipelomesmoEspírito”(Ef2.18).

1PhilipZaleski;CarolZaleski,Prayer: a history (Boston:HoughtonMifflin,2005),p.4-5.Emdezembrode2013,centenasdepessoassereuniramemBodhGaya,naÍndia,cidadeconsideradaberçodobudismo,parabuscarapazmundialpormeio da oração. “Karmapabegins prayer forworld peace atBodhGaya”,ThetimesofIndia,December14,2013.

2Veja, por exemplo, “Reincarnation” no site oficial doDalai Lama, em queestáescritoqueaspessoaspodemescolherseulugareépocadenascimento,bemcomo os futuros pais, por meio da virtude de suas orações. Disponível em:http://www.dalailama.com/biography/reincarnation.

3Zaleski,Prayer:ahistory,p.6-8,23.Usarcânticosetransescomoformadecanalizar a energia do mundo spiritual para o mundo físico é chamado dexamanismo. Essa visão religiosa é extremamente antiga e parece haver sedifundido mundo afora. A Kalevala, uma compilação da antiga poesia épicafinlandesa, traz relatos clássicos de atividades xamanísticas. Criação, cura ecombateacontecempormeiodecânticoscomefeitosmágicosepoderosos.

4Citado em Bernard Spilka; Kevin L. Ladd, The psychology of prayer: ascientificapproach(NewYork:Guilford,2012),p.3.

5Disponível em:http://www.bbc.co.uk/pressoffice/pressreleases/stories/2004/02_february/26/world_god.shtmlEsse percentual de ateus e agnósticos que oram também foi detectado nolevantamentosocialgeralcitadoporSpilka;Ladd,Psychologyofprayer,p.37.

6“Nones’ on the rise: one-in-five adults have no religious affiliation”, PewForumonReligion&PublicLife,October9,2012.

7Veja“Religionamongthemillenials”,PewResearchReligion&PublicLifeProject, February 17, 2010. Disponível em:http://www.pewforum.org/2010/02/17/religion-among-the-millennials.

8Giuseppe Giordan, “Toward a sociology of prayer”, in: Giuseppe Giordan;WilliamH.SwatosJr.,orgs.,Religion,spiritualityandeverydaypractice (NewYork: Springer, 2011), p. 77. Giordan vai além e afirma que a oração é uma“experiênciaglobal”,umesforçoparaestabelecerumrelacionamentoentresereshumanoslimitadosefrágeisealgomaispoderoso(p.78).OspsicólogosBernardSpilkaeKevinLadd,autoresdomaisextensoestudopsicológicocientíficosobrereligião até hoje, dizem que do mesmo modo “a oração é [...] crítica para amaneira como a maioria das pessoas conduz sua vida”. Veja Spilka; Ladd,Psychology of prayer, p. 4. O mais importante levantamento contemporâneosobreoração,dePhilipeCarolZaleski,estudiososqueensinamemHarvard,noSmithCollege e na TuftsUniversity, também conclui que “onde houver seres

humanos,hásereshumanosorando”,eque,mesmoproscrita,aoração“passaasersecretaesegueseucursonasprofundezasdaalma”.Zaleski;Zaleski,Prayer:a history, p. 4. Um estudo clássicomais antigo,Prayer, do estudioso alemãoFriedrich Heiler, aponta a mesma conclusão, observando a “vertiginosamultiplicidade de formas” da oraçãomundo afora. FriedrichHeiler,Prayer:astudy in the history and psychology of religion (Oxford: Oxford UniversityPress,1932),p.353.

9Àsvezesacontecedealguémafirmarquetribosremotasvivemsemqualquerreligião. Daniel L. Everett, autor de Don’t sleep, there are snakes (London:ProfileBooks,2010),escreveusobreospirahãs(umapequenatribodemenosdequinhentos indivíduos da Floresta Tropical Amazônica Brasileira), que“acreditavam que o mundo era como sempre foi, e que não há nenhumadivindade suprema”, dando-se por satisfeitos emviver “semDeus, religião ouqualquerautoridadepolítica”.Apesardessasafirmações,ospirahãsacreditavammuito firmemente emespíritos e usavamdeterminadaspeçasde roupapara seprotegerem. Veja http://freethinker.co.uk/2008/11/08/how-an-amazonian-tribe-turned-a-missionary-into-an-atheist.

10Heiler,Prayer:astudy,p.5.11CitadoemBloesch,Struggleofprayer,p.vii.12AmaioriadessestiposdeoraçãoédescritaediscutidaemPrayer:ahistory,

dosZaleskis.UmestudoempíricodoJournalfortheScientificStudyofReligionpostulaaexistênciadepelomenos21 tiposdeoração,considerandoapenasascristãs.KevinL.Ladd;BernardSpilka,“Inward,outward,andupward:cognitiveaspectsofprayer”,JournalfortheScientificStudyofReligion41,p.475-84;e“Inward,outward,andupward:scalereliabilityandvalidation”,JournalfortheScientific Study of Religion 45, p. 233-51. Ladd e Spilka buscaram usarparâmetros objetivos e a análise de fatores para verificar as categoriasapresentadasporRichardJ.FosteremPrayer:findingtheheart’struehome(SanFrancisco: Harper, 1992) [edição em português: Oração: o refúgio da alma(Campinas:CristãUnida,1996)].

13Zaleski; Zaleski,Prayer: a history, p. 27.O tratamento dado por eles aosprimeirosteóricosdaoraçãoencontra-senasp.24-8.

14Ibidem,p.27.15DiferentedeseucontemporâneoSigmundFreud,CarlJungnãoviaareligião

comoumsinaldesexualidadereprimidaeimaturidadepsicológica.Paraele,asexperiênciasreligiosaspodiamserúteisnodesenvolvimentoparaacompletudeea saúde psicológica. Jung ensinava que todos os seres humanos tinham uma

consciência pessoal formada através da experiência, mas tambémcompartilhavam um “inconsciente coletivo”, uma consciência de símbolos etemascomosquaistodosnascemedosquaiscompartilham,equenãoresultamdaexperiênciapessoal.VejaRobertH.Hopcke,Aguided tourof thecollectedworksofC.G.Jung, ed.dedécimoaniversário (Boston:Shambhala,1999),p.13-20,68.

16O inconsciente coletivo é possível porque Jung estava convicto, como ospensadoresorientais,deque“omundo[é]umcampounificadoemquesujeitoeobjeto são fundamentalmente um só, duasmanifestações diferentes damesmarealidadebásica”(Hopcke,C.G.Jung,p.72).Oprocessodecrescimentoparaamaturidadeé,portanto,umprocessodefazeraconsciênciaindividualdealguémentraremcontatocomossímbolosdo inconscientecoletivo,a fimdealcançaruma espécie de equilíbrio. As pessoas precisam ser “individualizadas” com aprópriaautoimagem,noentanto, tambémdevempassarasevercomopartedotodo interdependente da realidade e, dessa forma, fugir do egocentrismo e dailusãodequenãosãopartedotododarealidade(Hopcke,C.G.Jung,p.14-5).

17Veja Hopcke, C. G. Jung, p. 68. “[Para Jung] religião era experiênciareligiosa,ocontatodiretocomodivino,aquiloqueelechamavadenuminoso,um termo emprestado de Rudolf Otto, manifestado em sonhos, visões eexperiências místicas. Segundo, religião consistia de práticas religiosas, dedoutrinasedogmasbemcomoderituaisepreceitos,osquaisJungconsideravanecessáriosparaprotegeraspessoasdopoderimpressionantedetalexperiênciadireta com o numinoso. Tanto a experiência quanto a prática religiosas eram,portanto,paraele,fenômenospsicológicosqueencontravamsuafonteinternaeexternamenteno inconscientecoletivo”.Veja tambémap.97,naqualHopckeescreve sobre o “arquétipo” junguiano no âmbito do inconsciente coletivo do“eu”,quesignificavaumaconsciênciadanossaunicidadecomtodaarealidade:“Jungviaque esse arquétipoorganizadorda inteireza eraparticularmentebemapreendidoedesenvolvidopelaimagéticareligiosa,vindoassimaentenderqueamanifestaçãopsicológicadoeueradefatoaexperiênciadeDeusoua‘imagemdeDeus dentro da alma humana’ ”.Hopcke insiste em que Jung não buscava“reduzir o Ser Divino todo-poderoso e transcendente a uma experiênciapsicológica”,mas tentavamostrar como a “imagem deDeus existe dentro dapsique”(p.97).Todavia,acrençadeJungdequeapessoavivenciaDeusaosevoltar para dentro do próprio eu e do inconsciente, em vez de ao ouvir aspalavras proferidas por esse Deus via revelação dada por meio dos profetas,mostraqueseuentendimentodeDeuseramuitomaisparecidocomoserDivino

imanenteeimpessoaldoOrientedoquecomoDeustranscendentequefalaporrevelaçãonaBíblia.Veja tambémM.EstherHardin,“Whatmakes the symboleffective as a healing agent?”, in: Gerhard Adler, org., Current trends inanalytical psychology, reimpr. (Abingdon: Routledge, 2001), p. 3. HardingexplicaqueospsicólogosjunguianosatribuemaoinconscientecoletivooqueosreligiososatribuemaDeus.

18JungescreveuumprefácioparaoclássicodeD.T.Suzuki,Anintroductionto Zen Buddhism (New York: Grove Press, 1964), p. 9-29. Nesse ensaio, eleargumenta que sua visão do inconsciente coletivo se coaduna com a visãobudista de que existe “umavida cósmica e umespírito cósmico, e, aomesmotempo, uma vida individual e um espírito individual” (p. 13). Jung tambémapontaemtomdeaprovaçãoparaassimilaridadesentreaexperiênciabudistadosatorieaexperiênciaespiritualdomísticocristãomedievalMestreEckhart.ElecitaEckhart dizendo: “No avanço [...], então, soumais que todas as criaturas,poisnãosouDeusnemcriatura:souoquesou,eoquecontinuareiaser,agoraeparasempre.Entãoreceboumimpulso,quemeelevaacimadetodososanjos.Nesseimpulsotorno-metãoricoqueDeusnãopodemebastar,apesardetudooqueeleécomoDeus,apesardetodasassuasobrasdivinas;poisnesseavançopercebooqueDeuseeutemosemcomum.Souentãooqueera,nãocresçonemmenosnemmais,poissouumserinamovívelquemovetodasascoisas”(p.14).

19Veja Harding, “Symbol effective”, p. 14. Ela escreve que, embora aexperiênciareligiosapudesseajudarumapessoaarenunciaraoegoemproldealgo maior e a evitar a imaturidade do egocentrismo, doutrinas religiosasparticulares eramdesnecessárias.Aindaqueos cristãos, por exemplo, cressemque seu egocentrismo podia ser combatido apenas pela “fé na eficácia dosacrifíciodeCristo”,ospsicólogossabiamqueisso“deveseralcançadonãopelafé,maspelacompreensãoepelotrabalho[psicológico]consciente”(p.15).

20VejaIraProgoff,traduçãoparaoinglês,Thecloudofunknowing(NewYork:JulianPress,1957),p.24.CitadoemZaleski;Zaleski,Prayer:ahistory,p.208.Amaioriadospensadorescristãosquetêmusadoemgrandemedidaperspectivase pressupostos junguianos sobre o inconsciente é católica. Veja T. E. Clarke,“Jungian types and forms of prayer,Review for Religious 42, p. 661-76.Vejatambém ChesterMichael;Marie Norrisey,Prayer and temperament: differentprayerformsfordifferentpersonalitytypes(Charlottesville:OpenDoor,1985).O movimento da oração centralizadora, conduzido por Basil Pennington eThomas Keating, combina pensamento junguiano e teologia católica. VejaSpilka;Ladd,Psychologyofprayer,p.49.

21AdistinçãodefendidaporHeilerentremisticismoereligiãoproféticasegueoteólogo luterano sueco Nathan Söderblom. Embora Heiler acreditasse que asversões mais puras de oração mística encontram-se nas religiões orientais,especificamente nos Upanixades e no budismo, ele enxergava dinâmicassemelhantes na tradição do misticismo cristão, a começar pelos escritos dePseudo-Dionísio (final do século 5), continuando posteriormente na obra doséculo13demestreEckhart,JohnTaulereThecloudofunknowing,bemcomocomJoãodaCruzeTeresadeÁvilano século16 (Heiler,Prayer: a study,p.129,136).Ele admitiaqueo “misticismodoDeus cristão”mostramuitomais“ternura e fervor pessoais” do que a “sobriedade, frieza e monotonia domisticismopuro”dasreligiõesorientais(Heiler,p.136).

22O misticismo é definido como “a forma de relação com Deus em que omundo e o eu são absolutamentenegados, emque a personalidadehumana sedissolve, desaparece e é absorvida na unidade infinita da divindade” (Heiler,Prayer:astudy,p.136).

23Ibidem,p.284.24Como Heiler diz em determinado ponto, há impressionante variedade e

diferençanos tiposdeoração—nãosónaaparência,masnoâmago.Diferem“emtodosossentidos:nomotivo,naformaenoconteúdo,nanoçãodeDeus,narelaçãoimplícitacomDeusenopadrãodeoração”(Ibidem,p.283).

25AnthonyBloom,Beginningtopray(Mahwah:PaulistPress,1970),p.45-56.BloomcitaLucas17.21aqui.MasJesususaasegundapessoadopluralquandodiz aos discípulos: “O reino de Deus está dentro de vós [todos]”. Segundo amaioria dos estudiosos Jesus não ensinava que o reino de Deus estivesse emcadacoração,masnelescomocomunidade.Algunstraduzem“oreinodeDeusestáentrevós”.É importanteobservarqueBloomtemocuidadodeesclarecerque,aomesmotempoquedirecionaaspessoasparasevoltaremparadentroemoração,nãoserefereaosentidopsicológicodaexpressão.“Nãoestouquerendodizer que devemos nos voltar para dentro como se faz na psicanálise oupsicologia.Nãosetratadeumajornadaparadentrodemimmesmo,masdeumajornadaqueatravessa omeu eu, a fimde emergir do nívelmais profundo domeueuatéondeDeusestá,nopontoemqueeleeeunosencontramos”(p.46).

26“Acrença na pessoalidadedeDeus é o pressuposto necessário [...] semprequeanoçãovitaldepessoalidadedivinafiqueobscura,casoemque,comonoidealfilosóficoounomisticismopanteísta,elasetransformeno‘UmeTodo’,ea oração genuína se dilui e se torna puramente absorção e adoraçãocontemplativa”(Heider,Prayer:astudy,p.356).

27Ibidem,p.358.28Ibidem,p.285.29Ibidem,p.30.30Ibidem,p.iv.Grifodooriginal.31Zaleski; Zaleski, Prayer: a history, p. 204-8. De acordo com Pseudo-

Dionísio,Deussópodeserconhecidoatravésda“escuridãododesconhecido”,não do intelecto. A racionalidade deve ser abandonada em um gesto deautoabnegação,“renunciandoatudooqueamenteécapazdeconceber”afimdeser“elevadoàdivinasombra”.Thecloudofunknowingrevisaereprocessaosinsights de Dionísio, insistindo que o que nos leva além do pensamento e daconcepção é um estado de perfeito amor. No entanto, chegar a isso requercrescimento em virtude e purificação da alma do pecado, um anseio e umapaixão pela união com Deus e, finalmente, o uso rigoroso do métodocontemplativo.Oobjetivoé“entrarnanuvemdodesconhecido”—napresençadeDeus—eapenasficarali,abertoparaDeus.TodasaspalavraseideiassãoconsideradascomodistraçõesdesseestarconscientedeDeus—atémesmoosditospensamentossobreelesãoconsideradosdessa forma.Assim,permanecernapresençadeDeussignifica“rejeitartodosospensamentosmundanos”,quaissejam, toda “associação, fantasia e análise”.O autor aconselha às pessoas queusemaoração repetitiva, instandoem favordeumaatitudecontemplativaquefaça “declaração repetitiva de uma palavra curta, de preferência ummonossílabo.ElesugereapalavraDeusouamor”.Essapalavra temumpapelduplo: “Primeiro, suprime o pensamento debaixo da nuvem do esquecimento,detendoopensamentoracional”.Depois,libertaocontemplativopara“aglutinartodoseudesejoporDeus”emtornodessapalavra,“libertandoavoliçãodespidaparaadentrarnanuvemdodesconhecidoemumgestodeperfeitoamor”(p.206-7).

32Veja o longo resumo das diferenças entre oração mística e profética emZaleski;Zaleski,Prayer:ahistory,p.283-5.

33Donald Bloesch diz: “A análise de Heiler costuma ser objeto de críticasseveras, em especial dos estudiosos católicos e anglicanos preocupados emdefender os fundamentos bíblicos do misticismo cristão”. Bloesch resume ascríticas na página 5 de Struggle of prayer. Ele apoia Heiler. Na verdade, seulivroéumaespéciedepromulgaçãoatualizadaemaisacessíveldatesedeHeilerde que a oração bíblica é preferível aomisticismo das religiões orientais e departe do catolicismo romano. Bloesch acerta ao estabelecer distinções entreumas e outras formas de oração católica. (Veja sua aprovação à “oração do

silêncio”deTeresadeÁvilanap.5).Nolivroqueescreveu,Bloeschcomparaomisticismocomoqueelechamade“personalismobíblico”.UsaestaexpressãoparadescreveravisãodaoraçãoemquesepresumequeDeus sejaumamigopessoal e pai, em vez de omero fundamento impessoal do ser.No entanto, éacertadaapreocupaçãodeBloeschdenãoexagerarnareaçãoaomisticismonemmenosprezar os aspectos verdadeiramente empíricos e místicos da oraçãobíblica.Vejaseucapítulo“Prayerandmysticism”,p.97-130.

34Zaleski;Zaleski,Prayer:ahistory,p.30.35NemmesmoosZaleskisconseguemsersempreconsistentesquantoà ideia

dequedevemosaceitartodosostiposdeoraçãohumana.Elestraçamumalinhadivisória, por exemplo, quando se trata do sacrifício humano, chamando-o“suicida”,esalientamque“asgrandestradiçõesreligiosasorejeitam”(Ibidem,p.65).Todavia,nãodizemporqueosacrifíciohumanoéerrado,apenasqueamaioriadaspessoasnãoopraticamais.

36Ibidem,p.161-71,179-89.37AgehanandaBharati,Thelightat thecenter:contextandpretextofmodern

mysticism(SantaBarbara:Ross-Erikson,1976),p.28,43,citadoemEdmundP.Clowneyem“Abiblicaltheologyofprayer”,in:D.A.Carson,org.,Teachustopray: prayer in the Bible and the world (Eugene:Wipf and Stock, 2002), p.336n1.

38“Acrença na pessoalidadedeDeus é o pressuposto necessário [...] semprequeanoçãovitaldepessoalidadedivinafiqueobscura,casoemque,comonoidealfilosóficoounomisticismopanteísta,elasetransformeno‘UmeTodo’,ea oração genuína se dilui e se torna puramente absorção e adoraçãocontemplativa”(Heider,Prayer:astudy,p.356).

39“Personal narrative”, in:George S.Claghorn, org., Theworks of JonathanEdwards (New Haven: Yale University Press, 1998), vol. 16: Letters andpersonalwritings,p.801.

40Ibidem,p.797.41Não quero dar a impressão de que a resposta seja uma “terceira via”

perfeitamenteequilibradaentreadosZaleskiseadeHeiler.Arealidadeéqueoentendimento protestante tradicional da oração — e aquele que descreverei,exporeieadotareinorestantedolivro—estámuitomaispróximododeHeileredeBloesch.Oquenãoédeadmirarconsiderando,comoobservado,queHeilerse converteu ao protestantismo e eu sou um ministro protestante de tradiçãoreformada.Todavia, a análisebrilhanteeeruditadosZaleskis, comrespeitoàspráticaseàhistóriadaoração,lembra-noscomvigordequeaoraçãoéalgoque

pertence a todos os seres humanos. É um instinto humano, não só um domespiritualparaoscrentescristãos.

42A primeira citação é das Institutes, 1.3.1, de JoãoCalvino.A segunda, docomentário de Calvino sobre João 1.5,9. Ambas se encontram em John T.McNeill, org., Calvin: Institutes of the Christian religion (Louisville:Westminster,1960),vol.1,p.43,43n2[ediçõesemportuguês:JoãoCalvino,Asinstitutas,traduçãodeWaldyrCarvalhoLuz(SãoPaulo:CulturaCristã,2006),4vols., eA instituição da religião cristã, tradução de Carlos EduardoOliveira;José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)]. Calvino cita Cícero, quepergunta:“Ondesepodeencontrarumaraçaoutribodehomensquenãotenha,seminstrução,algumapreconcepçãodosdeuses?”(deCícero,Onthenatureofthe gods, p. 44n4). Nem Calvino nem Cícero estão dizendo ser impossívelprofessaroateísmocomsinceridadeevigor.AdeclaraçãodeCíceroocorreemumlivroemqueeledialogacomoepicuristaVeleio,quenegavaaexistênciadosantigos deuses. Antes, tanto Cícero quanto Calvino estão afirmando que, emrazãodessesensointrínsecodeDeus,aoraçãoéumareaçãonatural,amenossereprimida. É difícil erradicar um instinto.Veja as Institutes de Calvino, 1.3.2:“Defato,buscamtodosubterfúgioparaseesconderemdapresençadoSenhor,eapagá-lodenovodamente.Contudo,apesardesimesmos,sãosemprepegosnaarmadilha. Embora às vezes possa dar a impressão de desaparecer por ummomento, retorna de imediato e com força renovada. [...]Os próprios ímpios,portanto,exemplificamofatodequealgumconceitodeDeusestásemprevivonamentedetodososhomens”(McNeill,Calvin:Institutes,p.45).

43WilliamH.Goold,org.,TheworksofJohnOwen(Carlisle:BannerofTruth,1967),vol.4,p.251-2.

44Veja “The most high a prayer-hearing God”, in: Edward Hicks, org., TheworksofJonathanEdwards(Carlisle:BannerofTruth,1974),vol.2,p.117.

45McNeill,Calvin: Institutes, 1.4.1, p. 47: “Como demonstra a experiência,Deus plantou uma semente de religião em todos os homens.Mas a cada cemhomens, raramente se encontra um que a cultive, uma vez recebida, em seucoração[...]todassedegeneramdoverdadeiroconhecimentodele.[...]Portanto,eles não apreendemDeus como ele se apresenta,mas o imaginam segundo oidealizaramnaprópriapresunção”.

46Outro teólogo protestante tradicional que reconhece esses dois níveis deoração é um teólogo de Princeton, Charles Hodge, que viveu no século 19 eescreveu: “É acima de tudo pela eficácia da oração que recebemos ascomunicaçõesdoEspíritoSanto.Aoraçãonãoémeroinstintodeumanatureza

dependente buscando a ajuda do Autor do seu ser; tampouco deve ser vistasimplesmente como uma expressão natural de fé e desejo, ou uma forma decomunhãocomoPaidonossoespírito;masdeveservistatambémcomomeioindicado para obter o Espírito Santo”. Hodge mostra que os cristãos têm o“instinto de uma natureza dependente”, mas também têm a oração como ummeiopeloqualoEspíritoSantotransmiteseusdons.Elecontinua:“Dessemodo,somosinstadosaserconstantesepersistentesemoração,pedindoespecialmentepor aquelas comunicações da influência divina pelas quais a vida deDeus naalma é mantida e promovida”. Charles Hodge, The way of life: a guide toChristianbeliefandexperience(1841;reimpr.,Carlisle:BannerofTruth,1978),p.231.Deigualmodo,J.G.Vosdiz:“Aoraçãoépraticamenteuniversalnaraçahumana. [...] A prática de algum tipo de oração está presente em todos ossistemasreligiososnãocristãos.Aoraçãonãocristã,contudo,nãoédirigidaao[...]DeustrinodasEscrituras[...][e]nãoseaproximadeDeusporJesusCristocomomediador.[...]NãodevemosnegarqueDeus,emsuagrandemisericórdia,possaàsvezesouvireresponderàsoraçõesdosnãocristãos.Mas taisoraçõesdiferememessênciadaoraçãocristã”.JohannesG.Vos,TheWestminsterlargercatechism:acommentary,ediçãodeG.I.Williamson(Phillipsburg:PresbyterianandReformed,2002),p.512-3.

47OlivrodeEugeneH.PetersonsobreoraçãoatravésdeSalmoséAnsweringGod: the Psalms as tools for prayer (San Francisco: Harper & Row, 1989).Emboraeleuseotítulo“AnsweringGod”[RespondendoaDeus]paradescreverosSalmos,creioqueissotambémsirvacomoexcelentedefiniçãocondensadadetodaoração.Também recorri aClowney, quedefine aoração como“dirigir-sepessoalmenteaumDeuspessoal”(Clowney,“Biblicaltheology”,p.136).EssecapítuloéinfluenciadoemgrandepartepeloresumodoartigodeEdClowney.Ele chama a oração de conversação dirigida a umDeus pessoal, de aliança etrino.

48DonaldBloesch citaKarlBarth: “Pormaisdifícil quepossaparecer, ouvirprecede mesmo o pedir. É sua base. Torna real o pedir, a súplica da oraçãocristã”(Bloesch,Struggleforprayer,p.55).

49C. S. Lewis, That hideous strength (NewYork:Macmillan, 1965), p. 318[ediçãoemportuguês:Umaforçamedonha (SãoPaulo:WMFMartinsFontes,2012)].

50Ibidem,p.319.51Sabemos que Lewis lera I and thou, de Martin Buber [veja C. S. Lewis,

Collectedletters(NewYork:HarperOne,2004),vol.2,p.526,528],quecontém

afrase“AlleswirklicheLebenitBegegnung”,[Todoviverrealéumencontro].VejaMartinBuber,Iandthou, traduçãoparaoinglêsdeRonaldGregorSmith(Edinburgh: T. & T. Clark, 1937), p. 20 [edição em português:Eu e tu (SãoPaulo:Centauro,2001)].

52J. I. Packer,KnowingGod (DownersGrove: InterVarsity, 1993), p. 39, 40[edição em português: O conhecimento de Deus (São Paulo: Cultura Cristã,2014)].

53VejaaversãomaisextensadessadiscussãoemTimothyKeller,WalkingwithGodthroughpainandsuffering(NewYork:Dutton,2013),p.270-93[ediçãoemportuguês:CaminhandocomDeusemmeioàdoreaosofrimento (SãoPaulo:VidaNova,2016)].

54John Know é citado por Bloesch, Struggle of prayer, p. 50. A primeira esegundacitaçõesde JoãoCalvino sãoextraídasdeMcNeill,Calvin: Institutes,3.20.16,3.20.2,p.872e851,respectivamente.

A

QUATRO

ConversarcomDeus

prendemos que a oração é tanto instinto quanto dom espiritual. Comoinstinto,elaérespostaaonossoconhecimentoinato,emborafragmentário,

deDeus.Écomoamensagemcolocadaemumagarrafaeendereçadaa“sejamquaisforemosdeusesqueexistem”.ComodomdoEspírito,noentanto,aoraçãosetornaacontinuaçãodeumaconversainiciadaporDeus.Seprosseguir,comoacontecenasmelhoresconversas,orarsetransformaráemencontrocomDeus—océunocotidiano.ComoaoraçãoénossarespostaaDeus,vamosagoraexplorarcomoacontece

deeleprimeironosfalar,eentãocomopodemosaprenderalheresponder.

EncontrandoumDeuspessoal

SeDeus fosse impessoal, comoensinamas religiõesorientais,oamor—algoquesópodeacontecerentreduasoumaispessoas—seriaumailusão.PodemosiralémeafirmarquemesmoseDeusfosseapenasunipessoal,nãohaveriacomooamortersurgidoatéDeuscomeçaracriaroutrascoisas.Significariaque,emessência,Deusseriamaispoderdoqueamor.Oamornãoseria tãoimportantequantoopoder.AdoutrinacristãdaTrindade,noentanto,ensinaqueexisteumDeusemtrês

pessoasqueseconhecemeamamumasàsoutrasdesdeantesdoalvorecerdostempos.1SeDeusétriúno,entãoaspalavrasealinguagemsãovistassobnovaluz.EmJoão14a17Jesusserefereàsuavidanocontextodadivindadeantesde

viràterra,quandofalada“glóriaqueeutinhacom[oPai]antesqueomundoexistisse” (Jo 17.5) e das “palavras” que recebera doPai (Jo 17.8).Dentro daTrindade,desdeaeternidade,existecomunicaçãopormeiodepalavras—oPaifalacomoFilho,oFilhofalacomoPai,eoPaieoFilhofalamcomoEspírito.2

EmJoão17,temosumvislumbredessefalarnaoraçãodeJesusaseuPai.Trata-sedeumdiscursodivino.3

Muitos filósofos afirmamque, porDeus ser um espírito puro, é inadequadodizerqueelefala.4Contudo,Jesusdisse:“Céueterrapassarão,masasminhaspalavrasjamaispassarão”(Mt24.35).OfilósofoNicholasWolterstorffeoutrosnegama ideiadequeDeusnãopossa falar enãoo faça.Wolterstorff aplica ateoriadosatosdefaladeJ.L.Austin,aqualsalientaquepalavrastambémsãoatos.As palavras não apenas dizem coisas, elas as realizam.SeDeus existe etem poder para agir, não há motivo para que não possa falar, pois palavrastambémsãoatos.Alémdisso,umavezqueadivindadecontémumacomunidadedepessoas,ecomoalinguageméintrínsecaaorelacionamentoentrepessoas,hátodos os motivos para se esperar que Deus se comunique por intermédio depalavras.Assim,aoraçãocristãnãoéummergulhonoabismododesconhecidonemum

estadodehiperconsciênciasempalavras.Estaúltimacondiçãoécriadanãopelaspalavras em si, mas por sons. “As técnicas que preparam para [o estado demeditaçãocommantraschamadosamadhi]dãoespecialatençãoasons,visõesouatosrepetitivos.Opensamentoanalíticoéhipnotizadoafimdeprivilegiaraconsciência intuitiva, um estado de relaxamento em que se suspende aconsciênciadeidentidadeindividualdapessoa.”5Aoraçãocristã,porsuavez,éumacomunhãocomoDeuspessoalquenostornaamigospormeiododiscurso.O padrão bíblico envolve meditação nas palavras das Escrituras atérespondermos a Deus com nosso ser inteiro, dizendo: “Dá-me um coraçãoíntegro,paraque[...]eupossalouvá-lo,SenhormeuDeus,de todoocoração”(Sl86.11,12).

EncontraraDeuspormeiodesuaPalavra

Ateoriadosatosdefaladefendeaideiaconvincentedequenossaspalavrasnãosó transmitem informação, mas também levam à realização das coisas. Noentanto,aspalavrasdeDeus têmumpoder infinitamentemaiorqueasnossas.No livroWords of life [Palavras de vida], Timothy Ward argumenta que aspalavrasdeDeussãoidênticasaseusatos.6ElecitaGênesis1.3:“‘Hajaluz’,ehouveluz”.Wardobservaqueapassagemnãoensinaque,primeiro,Deusfalou,depoisfoiefezoquedissequefaria.Não,aprópriapalavraditaporelegeroualuz.QuandoDeusdánomeaalguém,suapalavratambémconstituiapessoa.AorebatizarAbrãodeAbraão—“paideumamultidão”—apalavratransformouumcasalidosoempessoasbiológicaeespiritualmentecapazesdesetornaremosprogenitoresdeumaraça inteira (Gn17.5).Osalmo29édo inícioaofimumhinodelouvoraopoderdavozdeDeus.“AvozdoSENHORquebraoscedros—oSENHORdespedaçaoscedrosdoLíbano.AvozdoSENHORsacodeodeserto—oSENHORsacodeodesertodeCades”(Sl29.5,8).VemosdenovoqueDeusfazaquiloqueavozdeDeusfaz.OfalareoagirdeDeusseequiparam.EmIsaías55.10,11vemosesseprincípioteológicodemaneiramaispoderosa:Comoachuvaeanevedescemdocéu,enãovoltamparaelesemaguaraterraefazê-labrotareflorescer,afimdequeeladêsementeaosemeadorepãoaoquecome,assiméapalavraquesaidaminhaboca:nãovoltaráparamimvazia,mascumpriráoquedesejoeatingiráopropósitoparaoqualaenviei.Nós, humanos, podemos dizer “Haja luz neste cômodo”, mas em seguida

precisamos acionar um interruptor ou acender uma vela. Nossas palavrasnecessitamdeatosquelhesdeemsustentaçãoepodemfracassarematingirseuspropósitos.AspalavrasdeDeus,noentanto,nãofracassamemseuspropósitos,

porque,paraDeus,falareagirsãoamesmacoisa.ODeusdaBíbliaéumDeusque“pelapróprianaturezaagepormeiodafala”.7

QuandoaBíbliamencionaaPalavradeDeus,portanto,refere-seà“presençaativadeDeusnomundo”.8DizerqueapalavradeDeuséproferidapararealizaralgo equivale a dizer que Deus age para realizar algo. Violar um dosmandamentosoupalavrasdeDeuséviolaro relacionamentocomele. “Assim(podemosdizer)queDeusseinvestedesuaspalavrasouqueseidentificadetalformacomelasquefazeralgoàspalavrasdeDeus,sejaoquefor,[...]éfazê-loaopróprioDeus.[...]Osatosverbais[...]deDeussãoumaespéciedeextensãodopróprioDeus”.9

AsimplicaçõesqueesseensinamentobíblicobásicotemsobreaprópriaBíbliasão imensas. Uma delas está diretamente relacionada com o tema da oração.“Pessoas de mente mais mística às vezes supõem que as palavras, pela suanatureza,sãoumaobstruçãoaoobjetivodacomunhãoprofundacomDeus,masnãoéassimqueacontece.”SeaspalavrasdeDeussãosuapresençapessoaleativa,entãodepositarconfiançaemsuaspalavrasédepositarconfiançaemDeus.“A comunicação vinda de Deus é, portanto, comunhão com Deus, quandorecebidacomuma reaçãodeconfiançadanossaparte.”Claro,naoraçãopodehaver momentos de simples quietude em sua presença, mas mesmo no planohumano, “um homem e uma mulher sentados num restaurante fitandosilenciosamenteosolhosumdooutro[...]estãoenvolvidosnumrelacionamentomuitomaisgenuínoseagiremassimcombaseemvinteanosdeumcasamentorepleto de diálogo do que se estiverem no primeiro encontro e ainda não sefalaram”.10

ComodevemosreceberaspalavrasdeDeus?ElasnosvêmpelasEscrituras.ABíbliaafirmaqueDeuscolocarásuaspalavrasnabocadosprofetas(Dt18.15-20;Jr1.9,10).UmavezqueumprofetarecebeaspalavrasdeDeus,elaspodemserredigidaseefetivamente lidascomopalavrasdeDeusatéquandooprofetanãoestiverpresenteoumesmoapóssuamorte(Jr36.1-32).Portanto,aBíbliaéaPalavradeDeusescrita,epermanecePalavradeDeusquandoalemoshoje.Aconclusãoéclara.Deusagepormeiodesuaspalavras,aPalavraé“vivae

ativa”(Hb4.12), logo,omododeDeussemostrarativoedinâmicoemnossa

vida é por meio da Bíblia. Compreender as Escrituras não significa apenasadquiririnformaçãosobreDeus.Seaouvirmoscomconfiançaefé,aBíbliaéomodo de realmente escutar Deus falar e também de nos encontrarmos com opróprioDeus.

AoraçãopormeiodaimersãonaPalavradeDeus

Sósabemosparaquemoramosaoaprenderprimeiramente issonaBíblia.EsósabemoscomodevemosorarapreendendonossovocabuláriocomaBíblia.Nadadissodeveriasersurpresa,umavezquevemosessadinâmicabásicaemaçãonodesenvolvimentodecadanovoserhumano.Eugene Peterson nos lembra de que “como aprendemos a linguagemmuito

cedonavida,nãotemosnenhumalembrançadoprocesso”.Porissoimaginamosque tomamos a iniciativa de aprender a falar.Contudo, não é esse o caso. “Alinguagemnosétransmitida;nóssóaaprendemosàmedidaquenosdirigemapalavra.Nonascimento, somos imersosemummarde linguagem. [...]Depoisdisso,poucoapouco,sílabaporsílaba,adquirimosacapacidadederesponder:mamãe, papai,mamadeira, cobertor, sim, não.Nenhuma dessas palavras foi aprimeirapalavra.[...]Todafalaéemresposta.Alguémdissealgoanósantesquefalássemos.”11Desde que Peterson escreveu isso, estudos têmmostrado que ahabilidadedascriançasdeentenderedesecomunicaréprofundamenteafetadapelonúmerodepalavraseamplitudedovocabuláriocomosquais têmcontatoquandobebêseatéostrêsanos.Falamosapenasàmedidaquefalaramconosco.Ou seja, é fundamental para a prática da oração reconhecer o que Peterson

chama de “a impressionante anterioridade das palavras de Deus às nossasorações”.12 Esse princípio teológico tem consequências práticas. Significa quenossas orações devem brotar da imersão nas Escrituras.Devemos “imergir nomar” da linguagemdeDeus, aBíblia.Devemos ouvir e estudar asEscrituras,devemos pensar, refletir e ponderar sobre elas até que haja uma resposta emnosso coração, em nossa mente. Essa resposta pode ser de vergonha ou dealegria,oudeconfusão,oudesúplica—mastalrespostaàspalavrasdeDeusé,então,verdadeiraoraçãoedeveserdadaaDeus.

Se o objetivo da oração é uma conexão real e pessoal comDeus, então sóaprenderemosaorarpormeioda imersãona linguagemdaBíblia.Talvez issoaconteça tão devagar quanto uma criança aprende a falar. Isso não significa,claro,quedevamosliteralmenteleraBíbliaantesdecadaoraçãoquefizermos.Umaesponjasóprecisasermergulhadanaáguadetemposemtemposparafazerseutrabalho.PodemosclamaraDeusodia inteiro,desdequepassemostempocom sua Palavra periodicamente. Peterson observa as orações dos escritores epersonagensdaBíbliaeconcluique:...nãoforamfeitasporpessoasqueestavamtentandoseentender.Nãosãooregistrodegentequeestáembuscadosentidodavida.Foramproferidasporpessoasqueentendiamque[...]Deus,enãoossentimentosdelas,eraocentro.[...] As experiências humanas podem provocar a oração, mas não acondicionam.[...]OquecondicionaessasoraçõesnãoéasimplescrençaemDeus[...]massimadoutrinadeDeus.13

Na Bíblia, descobrimos um Deus real e complexo. Se você tiver um

relacionamentocomumapessoareal,detemposemtempossesentiráconfusoeexasperadocomela.Domesmomodo,detemposemtempossesentiráconfusocomoDeusqueencontranasEscrituras—etambémsesentiráimpressionadoeconsolado. Sua oração deve estar firmemente conectada à leitura da Palavra enelafundamentada.EssecasamentoentreaBíbliaeaoraçãoancoraasuavidanoDeusverdadeiro.

AoraçãoverbalcomorespostaàpessoadeDeus

Nocapítulo“Oraçãoemisticismo”deseulivro,oteólogoDonaldBloeschtratados escritos de dois místicos medievais, Mestre Eckhart e John Tauler. Eleobserva que “no sentido mais profundo, a experiência mística está além doracional, alémde palavras e ideias”.14ComodizThomasMerton, um escritorcatólico:“OconhecimentomísticodeDeus[...]estáacimadeconceitos.Éumconhecimento que se registra na alma, passivamente, sem uma ideia”.15 O

místico quer prestar atenção estritamente em Deus, não em palavras e ideiasacercadeDeus.Aracionalidadeévistacomoumalimitação,umabarreiraentreocoraçãoeDeus.No entanto, Paulo chama os cristãos a manter a racionalidade ao orarem.

“Orarei commeu espírito,mas também commeu entendimento; cantarei commeuespírito,mastambémcommeuentendimento”(1Co14.15).Afinal,oramoscompalavras para oPai pormeio doFilho, que éoVerbo (Jo 1.1).MartinhoLuterofoi inflexível:nuncadevemos ir“além”daspalavrasdeDeusnaBíbliaou não conseguiremos saber com quem estamos conversando. “Devemosprimeiro ouvir a Palavra, e então, posteriormente, o Espírito Santo opera emnossocoração;ele trabalhanocoraçãodequemquer,ecomoquer,masnuncasemaPalavra”.16

Um autor contemporâneo que apresenta argumentos semelhantes é JohnJefferson Davis em Meditation and communion with God [Meditação ecomunhão com Deus], uma obra valiosa.17 Davis conclui que, embora nãodeixemdeterseusméritos,astécnicasda“oraçãocentralizadora”eda“oraçãode Jesus” não são inteiramente adequadas para quem entende a oração comoumarespostaàrevelaçãoverbaldeDeusnaBíbliaecomoumdomconcedidoàquelesqueestãosegurosnagraçadeDeus.Aoraçãocentralizadorasebaseia,comoaobradoséculo14,Thecloudofunknowing[Anuvemdodesconhecido],naideiadeDeuscomoespíritopurodentrodenósealémdetodopensamento,conceito e imagem.18 O objetivo é a “oração apofática” — ir além dospensamentos discursivos e experimentar focar a atenção pura em Deus, oEspírito,atravésdousosilencioso, reflexivoe repetitivodeumaúnicapalavracomoDeusouamor.19Davisacertadamentecriticaissoinsistindoemqueousoda linguagem não é incidental, mas sim essencial para o ser eterno de Deuscomoumaunidadedetrêspessoas,equeoscrentesdevemsersantificadossobaformadaspalavrasdaverdadedadasaJesuspeloPai(Jo17.8,17)etransmitidasa nós pelo Espírito (1Co 2.13).20 Ele também salienta que o movimento daoração cristã na Bíblia não é tanto voltado para dentro (embora deva haverautoexame e arrependimento), mas sim para cima, a fim de compreendermosnossa verdadeira condição em Cristo e alinharmos nosso coração a esse fato.

“Portanto,umavezquefostesressuscitadoscomCristo,firmaivossoscoraçõesnas coisas do alto. [...] Firmai vossas mentes nas coisas de cima, não nasterrenas”(Cl3.1,2).Nãodevemosparardepensaremusara linguagem,esimemdirecionarnossaspalavraseideiasparaocéu.21

Davis é um pouco menos crítico em relação à “oração de Jesus” (“SenhorJesus Cristo, Filho de Deus, tem misericórdia de mim, pecador”), mas aindaassim adverte contra o excesso de confiança nela. Essa é uma oração antigausadapela igreja ortodoxaoriental coma finalidadede ser repetida sempararpor longos períodos de tempo ou baixinho e mentalmente o dia todo. Davismostra que, embora seja uma oração composta por palavras, muitos usam arepetição para bloquear todo e qualquer pensamento e, assim, ela pode serempregada com a mesma finalidade de supressão do diálogo, da troca, dalinguagemedopensamentocaracterísticadaoraçãocentralizadoraedeoutrasformas de meditação oriental. A repetição de sons com respiração ritmada écapazdeproduzirefeitospsicossomáticossemelhantesaosdasoraçõesepráticasdodhikr pelos sufis islâmicos.22 Além disso,Davis observa que a “oração deJesus” não inclui uma oração ao Pai por meio de Cristo, embora essa seja aessência da oração, de acordo com o próprio Jesus (Mt 6.9ss.). O Pai não émencionadoenósfiguramoscomomeros“pecadores”,nãocomofilhossegurosem seu amor, de modo que a oração não faz qualquer referência a nossacondiçãodejáperdoadoseaceitos.23A“oraçãodeJesus”poderiafacilmenteserempregada comoumaespécie demágicaoumantra, ummodode conseguir aatenção de Deus através do “muito falar” (v. Mt 6.7). Assim, Davis propõedesenvolver modos de fazer a meditação e a oração fundamentados em umentendimento mais robusto da personalidade do Deus que fala e de nossasegurançacomofilhosjustificadoseadotados.Comodehábito,éprecisoencontrarumequilíbrio,eJ.I.Packerfazisso.Ele

parte“dacrençacarcterística,quebrotadasreligiõesasiáticasedasaberraçõesgnósticas e neoplatônicas entre cristãos, de que Deus deve ser percebido econtemplado como uma presença impessoal em vez de um amigo pessoal”.Prossegue dizendo que uma “proximidade não cognitiva de Deus em que amenteéesvaziadadetodosospensamentospessoaisacercadelee,naverdade,

de todo e qualquer pensamento” é “misticismo oriental em roupagemocidental”.24

Todavia,Packernos lembraque“existe[defato] lugarparaosilênciodiantedeDeus [...] depois de lhe falarmos, enquanto a alegria pelo amor do Senhorinvadeaalma”.ÉapropriadoreservarumtempoparaadmirareadoraraDeusem silêncio porque “quando duas pessoas se amam, hámomentos em que seentreolham sorridentes e em silêncio, sem precisar dizer nada, apenasdesfrutando de seu relacionamento íntimo”.25 No entanto, mesmo as pessoasprofundamenteapaixonadasbuscarãoinstintivamentepalavraseexclamaçõesdeadmiração para transmitir e exprimir o que sentem. Portanto, conclui ele, “aoração sem palavras não é o ápice [...] mas a pontuação periódica da oraçãoverbal”.26

OraçõesvariadasemrespostaàglóriadeDeus

Temosdeusarpalavrasnaoração,masquetipodepalavras?Detodosostipos.OlivrodeSalmosrevelaumaextensagamadepalavrasemodosdeorar.Entreeles se encontram exclamações de maravilhamento, queixas virulentas,discussões fundamentadas, pronunciamentos e vereditos, apelos e súplicas,convocações e clamores, e sentenças de autocondenação. Representam não sótiposradicalmentediferentesdediscurso,masdeatitudeseemoçõestambém.Sedependesse de nós mesmos, de nossa cultura e nosso temperamento natural,haveria muitos tipos de linguagem que jamais usaríamos. Em Salmos, háexplosões culminantes e exuberantes sujeitosmelancólicos jamais produziriampor si sós.Háprofundaspercepçõesdocoraçãoàsquaispessoasextrovertidastalvez jamais chegariam. Há queixas e questionamentos diretos a Deus, dosquaispessoasintrovertidasecomplacentesnãoseriamcapazes.Jamais faríamos toda a gama de orações que vemos na Bíblia se

começássemosaorardeacordocomnossasnecessidadesepsicologiainternas.Essa oração só pode ser feita se nela estivermos respondendo de acordo comqueméDeus,conformereveladonasEscrituras.ODeusbíblicoémajestosoeterno,santoeperdoador,amorosoeinescrutável.Porissoaoraçãonuncapode

serbasicamenteconfissõesabjetasoulouvortriunfante,ousúplicasqueixosas—nãopode consistir primordialmente de apenas um tipo de expressão.AlgumasoraçõesnaBíbliasãocomoaconversaíntimacomumamigo,outras,comoumapeloaumgrandemonarcaeoutrasaindaseaproximamdeumaluta.Porquê?Emcadacaso,anaturezadaoraçãoédeterminadapelocaráterdeDeus,queéaomesmotemponossoamigo,Pai,amado,pastorerei.Nãodevemosdecidircomoorar baseados nos tipos de oração que seriam mais eficazes para gerar asexperiências e os sentimentos que desejamos.Oramos em resposta ao próprioDeus. A Palavra de Deus para nós contém essa diversidade de discurso— enossavidadeoraçãosomenteseráigualmentericaevariadaserespondermosàsuaPalavra.

Atragédiadaoraçãosemlimites

EugenePetersonafirmaqueopontodepartidaparaaoraçãodeveseraimersãonaPalavradeDeus.UmaabordagemdiferentepodeservistanolivrodeAnneLamott sobre o assunto, intitulado Help, thanks, wow: the three essentialprayers. Ela declara logo de início que nossa visão de Deus não é muitoimportanteparaaoração:Digamos [que a oração esteja para] o que os gregos chamavam de o“realmente real”, oque estádentrodenós, alémdovéudosnossosvalores,posições, convicções e feridas. Ou digamos que seja um grito que vem dedentro para aVida ou oAmor em letramaiúscula.Nada poderia termenosimportânciadoquecomodenominamosessaforça.[...]Nãofiquemospresosaquemouoqueoramos.Digamosapenasqueoraçãoéacomunicaçãodonossocoraçãocomograndemistério,ouDivindade[...]comaenergiavivificantedoamor em que às vezes somos ousados o suficiente para crer: com algoinimaginavelmente grande, que não nós mesmos. Poderíamos chamar essaforçadeNãoEu[...]ou,porconveniência,de“Deus”apenas.27

TalvezelasóestejatentandoconvidarpessoasinsegurasdesuaféemDeusacomeçar a estender a mão para ele. Se entendido dessa maneira, o livro deLamottéumconviteenternecedoràoração,dirigidoaquemduvida,masissosóéútil,quandomuito,comoumprimeiropassoprovisório.Dizerquealguémqueore e não se preocupe comqueméDeus ou no que crê acerca dele não podeservircomoumprincípiooperacionalsustentáveldaoração,poisnãoépossívelcrescer num relacionamento com alguém a menos que se saiba quem é essealguém.Lamott nomeia de forma memorável três categorias tradicionais de oração:

ajuda (súplica), agradecimento (ação de graças) e admiração (adoração). Éimpressionante, contudo, que o livro deixe de fora uma das categorias maiscruciais de oração, qual seja, a de confissão e arrependimento.28 SecompararmosolivretodeLamottcomostratadossobreaoraçãodeAgostinhoedeLutero,detamanhosemelhante,ecomaprópriaoraçãodoSenhor,afaltadeênfasenaconfissãoéumaomissãoflagrante.29Minhasuposiçãoédeque issoaconteceporelausarumpontodepartidaquenãoéoconhecimentodeDeusnaBíblia. Não deveríamos ficar “presos” a quem é Deus, mas orar apenas. Oproblema é que, se Deus não é o ponto de partida, então nossas própriasnecessidades emocionais se convertem nos propulsores e único foco da nossaoração.30 Isso inevitavelmente a tornará limitadadiantede seu amplo espectrobíblico.EdmundP.Clowneyescreveu: “ABíblianãoapresenta a artedaoração; ela

apresentaoDeusdaoração”.31Nãodeveríamosdecidircomoorarbaseadosnasexperiênciasesentimentosquedesejamos.Emvezdisso,deveríamosfazertodoopossívelparacontemplarnossoDeuscomoeleé,eaoraçãoaconteceriacomnaturalidade. Quantomaior a clareza com que entendermos quem ele é, maisnossaoraçãoserámoldadaedeterminadaporisso.SenãoestiveremimersasnaspalavrasdeDeus,nossasoraçõespodemnãosó

ser limitadas e superficiais, mas também não ter vínculos com a realidade.Podemosestar respondendonãoaoDeusreal,esimàquiloquedesejamosquetanto Deus quanto a vida sejam. De fato, se entregue à própria sorte, nossocoraçãocomtodacerteza tenderáacriarumDeusquenãoexiste.Nasculturas

ocidentais,aspessoasqueremumDeusamorosoeperdoador,masnãosantoetranscendente.Estudosdavidaespiritualdejovensadultosempaísesocidentaisrevelam que suas orações, por conseguinte, costumam ser destituídas tanto dearrependimentoquantodealegriaporteremsidoperdoados.32Semumaoraçãoque responda aoDeus daBíblia, estaremos apenas falando sozinhos. Petersonescreveissosemrodeios:Entreguesanósmesmos,oraremosaumdeusquedizoquegostamosdeouvirou à porção deDeus que somos capazes de entender.Crítico, no entanto, éfalarmoscomoDeusquenosfala,ecomtudooqueelenosdiz.[...]HáumadiferençaentreoraraumDeusdesconhecido,aquemesperamosdescobriremoração, e orar a umDeus conhecido, reveladopor intermédiode Israel e deJesusCristo,quefalanossalíngua.Noprimeirocaso,satisfazemosnossasedede realização religiosa;no segundo,praticamosa féobediente.Oprimeiroémuitomaisdivertido;osegundo,muitomaisimportante.Essencialnaoraçãonão é aprendermos a nos expressar, mas sim aprendermos a responder aDeus.33

Se deixarmos a Bíblia de fora, pode acontecer de sondarmos nossas

impressões e sentimentos e imaginarmosDeus nos dizendo várias coisas,mascomo ter certeza de que não estamos enganando a nós mesmos? GeorgeWhitefield, clérigo anglicano do século 18, foi um dos líderes do GrandeAvivamento, período de renovação maciça do interesse pelo cristianismo emtodas as sociedades ocidentais e tempo de significativo crescimento da igreja.Whitefieldprendiaaatençãocomsuaoratóriaeéconsideradoumdosmaiorespregadoresdahistóriadaigreja.Nofinalde1743,Georgeeaesposa,Elizabeth,tiveramoprimeirofilho.EleteveaforteimpressãodequeDeuslhediziaqueomenino cresceria para também se tornar um “pregador do evangelho eterno”.Diante dessagarantia divina, deu ao filhoonomede John, por causade JoãoBatista, cuja mãe também se chamava Elizabeth.34 George batizou JohnWhitefield perante grande multidão e pregou um sermão sobre as obras

grandiosas que Deus faria por intermédio do seu filho. Sabia que os cínicoszombavamdesuasprofecias,masignorou-os.Então,comapenasquatromesesdeidade,umaconvulsãorepentinamatouo

menino. Os Whitefields sentiram muito a perda, claro, mas George sentiu-separticularmente convencido do quanto errara ao equiparar seus impulsos eintuiçõesinterioresàPalavradeDeus.Epercebeuquelevarasuacongregaçãoacometeromesmoequívocoeasedesiludir.Interpretaraasprópriasemoções—seuorgulhoealegriapaternosdiantedonascimentodofilho,compreensíveisepoderosos, bem como as esperanças que nutria para ele— como seDeus lhehouvesse falado ao coração. Não muito tempo depois, escreveu uma oraçãodolorosa para si mesmo, para que Deus “tornasse esse pai enganado maiscauteloso, mais sensato, mais experimentado nos artifícios de Satanás e, porconseguinte,maisútilnasfuturasobrasparaaigrejadeDeus”.35

A lição aqui não é queDeus nunca direciona nossos pensamentos nem nosinduzaescolhercursossábiosdeação,masquenãopodemosestarcertosdequeeleestánosfalandoamenosqueleiamosissonasEscrituras.

Encontrandocoraçãoparaorar

Noaugedopoder,oreiDaviresolveuconstruirumtemploparaoSenhor.Deuslhe enviou uma mensagem pelo profeta Natã de que não deveria construir otemplo,mas em seguida prometeu: “O SENHORmesmo estabelecerá uma casaparati.[...]Levantareiseudescendenteparasuceder-te.[...]EleéqueedificaráumacasaparaomeuNome,eeuestabelecereiotronodoseureinoparasempre”(2Sm7.11-13).DaviqueriaedificarumacasaparaDeusque,noentanto,disse:“Não,euconstruireiumacasaparavocê”.Umjogodepalavraspoderoso.DaviqueriaedificarumlugarqueostentasseaglóriadoSenhor.Naverdade,Deuslhefezumacontraproposta.Eleestabeleceriaa linhagemdafamíliarealdeDavieelaacabariaporrevelaraglóriadeDeusdemodomaispermanente,abrangenteeuniversal.Em resposta a essa promessa graciosa, Davi diz: “SENHOR todo-poderoso,

DeusdeIsrael,revelasteaoteuservo:‘Edificareiumacasaparati’.Sendoassim,

teu servo se encheu de coragem para fazer-te esta oração” (2Sm 7.27). Issorevela a dinâmica interna de como a oração funciona. Na tradução dada pelaNew International Version (NIV) ao versículo 27, as palavras de Davi sãointerpretadascomoseele tivesserecebido“coragemparafazer-teestaoração”.O texto hebraico, contudo, diz literalmente que a Palavra de Deus capacitouDavi a “encontrar coração [leb, em hebraico] para fazer-te esta oração”. APalavradeDeuscrioudentrodeDaviodesejo,aenergiaeaforçaparaorar.Oprincípio é este:Deusnos fala em suaPalavra e nós respondemos emoração,passandoaparticipardaconversadivina,emcomunhãocomDeus.AoraçãodeDaviem2Samuel7époderosa,masoscristãostêmvantagensem

relação aos santos do Antigo Testamento, incluindo os maiores. Com certezaDavi se perguntou como seu trono poderia ser estabelecido “para sempre”.Tratava-seapenasdaantigahipérbolemajestática,comonaexpressão“Ó,vivaorei para sempre”?Não.Oprofeta Isaíasnos faladaqueleque “reinará sobreotronodeDavi[...]parasempre”edo“aumentodoseugovernoepaz[queserá]semfim”(Is9.7).Comopoderiaumindivíduoreinarparasempre?ArespostadeIsaías éque a criançapornascer seráo “PoderosoDeus” (Is 9.6).Nascerá—logo, será humana — mas também divina. Um dos descendentes de Daviassumiráumreinoaoqual jamais renunciará,dadoopoderdivinodesuavidaindestrutível(Hb7.16).Jesus,oFilhosupremodeDavi,faráisso.Há mais. Nós, os que nele cremos, haveremos de nos transformar em

“morada”deDeus—umtemplodepedrasvivashabitadopeloEspíritoSanto(1Pe2.4,5;Ef2.20-22).Amesmaglóriadivina,queteriasidofatalcasoMoiséstocasse nela (Êx 33.20), agora entra no coração dos que foramperdoados porCristo(Jo1.14;2Pe1.4).NãoadmiraqueCristopudessedizer,paraespantodeseus ouvintes, que embora JoãoBatista fosse omaior profeta a antecedê-lo, omenordosseusdiscípuloseramaiordoqueele(Mt11.11).APalavradivinadepoder “habita ricamente” em todos os que creem, dando-lhes coração paralouvar, cantar e orar aDeus comalegria e realidadequenemDavi, nem JoãoBatistapuderamconhecer(Cl3.16).Davi encontrou coragem para orar quando recebeu de Deus a Palavra da

promessa—deque estabeleceria seu tronoe edificariaumacasapara ele.Os

cristãos,todavia,têmumaPalavradepromessainfinitamentemaior.Deusnãosónos edificará uma casa como fará de nós sua casa. Ele nos encherá com suapresença, beleza e glória. Sempre que os cristãos tão somente se recordamdequemsãoemCristo,essagrandepalavravemanósenosfazencontrar,todasasvezes,coragemparaorar.

1ParasabermaissobreadoutrinabíblicadaTrindade,vejaocapítulo5.2OPai fala com o Filho e o Filho com o Pai: “Eu te trouxe glória na terra

completando a obra de que me encarregaste. Agora, Pai, glorifica-me na tuapresençacomaglóriaqueeu tinhacontigoantesqueomundoexistisse.Euotenhoreveladoàquelesquemedestedomundo.Eramteus;tuosdesteamimeelestêmobedecidoatuapalavra.Agorasabemquetudoquantomedestevemdeti.Porquelhestransmitiaspalavrasquemedesteeaaceitaram.Souberamcomcertezaquevimdeti,ecreramqueosenhormeenviou”(Jo17.4-8).OPaieoFilhofalamcomoEspírito:“Masquandoele,oEspíritodaverdade,vier,hádeconduzi-losatodaverdade.Nãofalarádesimesmo;falaráapenasdoqueouve,elhesrelataráoqueaindahádevir.Glorificaráamim,poisdemimreceberáoquerevelaráavocês.TudooquepertenceaoPaiémeu.PorissoeudissequeoEspíritoreceberádemimoquelhesfarásaber”(Jo16.13-15).

3Veja Vern S. Poythress,God-centered biblical interpretation (Phillipsburg:Presbyterian and Reformed, 1999), p. 16-25, obra da qual extraí muitas dasideiasdessapartedocapítulo.

4NicholasWolterstorffcitaSandraM.Schneidersemumexemplodessavisão.Segundo ela escreve: “O discurso divino não pode ser entendido literalmente.[...]Palavras[...]sãosonsfísicosinteligíveisemitidospeloaparelhofonador(oupor algum substituto dele). [...] A linguagem [...] é um fenômeno humanoenraizado em nossa corporalidade, bem como em nosso modo discursivo deentendimento e, como tal, não pode ser atributo de um espírito puro”.Traduzindo, palavras são sons físicos (ou marcas físicas impressas em umapágina)queexistemapenasparacriaturas físicas.DizerqueDeus,umespíritopuro,falaéerrado.ExtraídodeSandraM.Schneiders,Therevelatorytext(SanFrancisco: Harper, 1991), p. 27-29, citado em Nicholas Wolterstorff, Divinediscourse:philosophical reflectionson theclaim thatGodspeaks (Cambridge:CambridgeUniversityPress,1995),p.11.

5Clowney,“Biblicaltheology”,p.136.6Ward,Wordsoflife.EssaéumadasprincipaisideiasdolivrodeWard.7Ibidem,p.22.8Ibidem,p.25.9Ibidem,p.27,grifodooriginal.10Ibidem,p.31-2.11Eugene H. Peterson,Working the angles: the shape of pastoral integrity

(GrandRapids:Eerdmans,1987),p.49.12Ibidem,p.48.

13Peterson,AnsweringGod,p.14.14Bloesch,Prayer:astudy,p.101.15ThomasMerton,Theascenttotruth(NewYork:Harcourt,Brace,1951),p.

83,citadoemBloesch,Prayer:astudy.16CitadoemBloesch,Prayer:astudy,p.101.17JohnJeffersonDavis,MeditationandcommunionwithGod:contemplating

Scriptureinanageofdistraction(DownersGrove:InterVarsityPress,2012),p.16. Davis cita Diana Eck ao declarar que a transferência de práticas dameditaçãoorientalparaocristianismoé“umdosmaisimportantesmovimentosespirituaisdehoje”equeameditaçãobudista“estásetornandoumimportanteelemento da espiritualidade cristã”. Citações extraídas de Diana L. Eck,Encountering God: a spiritual journey from Bozeman to Banaras (Boston:Beacon Press, 1993), p. 153. Davis cita a pesquisa de Eck que mostra quãoabertamente muitos professores católicos romanos têm introduzido práticasbudistasehindusnasprópriaspráticasdeoraçãoemeditação(Davis,Meditationandcommunion,p.16,nota22).

18VejaThomasKeating, “Theorigins of centeringprayer”, in: IntimacywithGod (NewYork:Crossroad,1994),p.11-22 [ediçãoemportuguês: Intimidadecom Deus (São Paulo: Paulus, 1999)]; e Open mind, open heart: thecontemplative dimensionof theGospel (NewYork:Continuum, 1992) [ediçãoem português:Mente aberta, coração aberto: a dimensão contemplativa doevangelho(SãoPaulo:Loyola,2005)].

19EmPrayer:ahistory,p.204-8,osZaleskisfornecemumresumoexcelentedosensinamentosdaobraanônimaThecloudofunknowingesuaraiznotextoneoplatônico The mystical theology, de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, doséculo6.Mascriticam—quaserepudiam—amaneirapelaqualomovimentoda oração centralizadora de Thomas Keating, William Menninger e BasilPenningtondomesticouetalveztransformouemmercadoriaocaminhoindômitoedifícilparaacontemplaçãotrilhadoporautoresmedievaiscomooescritordeThecloud.Ostrêspassosbásicosdaoraçãocentralizadora:Regra 1: No início da oração, reservamos um ou dois minutos para nos

aquietarmoseentãoavançamosemféparaqueDeushabiteemnosso interior;nofimdaoração,separamosváriosminutosparasair[dedentrodenós],orandomentalmenteoPai-Nossooualgumaoutraoração.Regra 2: Após descansar um instante no centro do amor repleto de fé,

escolhemos uma palavra única e simples [comoDeus ouamor] que expresseessarespostaepermitimosquecomeceaserepetiremnossointerior.

Regra3:Sempreque,duranteaoração,tornarmo-nosconscientesdequalqueroutra coisa, gentilmente retornamos à Presença pelo uso da palavra de oração(M. Basil Pennington, O.C.S.O., Centering prayer: renewing an ancientChristianprayerform[GardenCity:Image,1982],p.65).OsZaleskiscomentam(inPrayer:ahistory,p.208):“Éfácildiscernirnesse

programaaessênciadoensinamentodaobraThecloud, emespecialoesforçopara suprimir a consciência das coisas criadas e o uso da oração de uma sópalavra. Mas sente-se falta da ousadia do original, aqui substituída porexpressões dolorosamente corteses. [...] Para o autor de The cloud, a oraçãocontemplativa é uma árdua provação com um fim incerto; o movimento daoração centralizadora [...] a converteu num exercício confortável com umaconclusãopreviamentedeterminada”.Terminamobservandoquehoje aoraçãocentralizadoratem“poucoemcomumcomorealismocríticodaobraThecloudepareceantescompartilhardoZeitgeistdofimdoséculo20,comseuecletismoespiritualeotimismo”.

20AscríticasesclarecedorasdeJohnJeffersonDavisàoraçãocentralizadoraeàoração de Jesus são encontradas nas páginas 134-242 do seuMeditationsandcommunion. Davis acerta ao criticar a oração centralizadora não só peladesarmonia com o ensino bíblico no que diz respeito ao discurso e àpersonalidade deDeus,mas também por não condizer com as crenças cristãssobreabondade(versus anatureza ilusória)dacriaçãoeo fatodaencarnaçãopermanentede Jesus.Omisticismooriental eoneoplatonismoqueaobraThecloud of unknowing representa veem o mundo físico e apersonalidade/racionalidade como ilusões ou, no mínimo, como meramenteepifenomênicosetemporários.Masnãoéessaavisãobíblica.Davisescreve:“Ofatodaencarnaçãosignificaquemesmoagora,nocéuepelaeternidade,oJesushistórico ainda tem uma forma corpórea determinada, embora glorificada. [...]PortodaaeternidadeoJesusglorificadoaindateráumanaturezahumanae,porconseguinte, uma experiência humana do conhecimento de Deus — umconhecimentodeDeusque,claro,transcendeonosso,masnãoécompletamentedistinto dele. Deixando palavras e imagens para trás, um estilo de meditaçãoexclusivamente apofático tende a apagar as fronteiras entre as formas demeditaçãoorientais(budismo,hinduísmo)eacristã”.

21Davis,Meditationandcommunion,p.141.22Zaleski;Zaleski,Prayer: a history, p. 143.OsZaleskis tratamaoraçãode

Jesus commuita simpatia, mas reconhecem que ela costuma funcionar comouma“forçamágica”(p.143-4).

23Ibidem,p.138.24Ibidem.A questão se impõe: se aceitarmos todas as advertências e alertas

acercadomisticismo,comointerpretaremosaexperiênciadosmísticoscristãosmedievais?ElesestavamligadosaoDeusverdadeiroounão?Creioque temosde responder isso caso a caso.Muitos dos místicos parecem orar a umDeusmuitopessoal,umDeustriúnodesantidadeeamor,tantotranscendentequantoimanente.EmboraomododeoraremnãolhesfundamenteaoraçãonaPalavratanto quanto gostaria um protestante, parece que, no âmbito de coração eimaginação, suas orações eram moldadas o suficiente pela Bíblia para que oDeusqueencontraramfosseoDeusbíblico.Outrosautorescristãosmísticos,noentanto, dão a impressão de haver sofrido na consciência psicológica umaespéciedealteraçãocapazde serproduzidapormuitas formasdemeditaçãoeprivação física. Não posso me sentir tão confiante de que essas experiênciassejamasmesmasqueasdescritaspelosescritoresbíblicos.Tambémépossívelquealgunsautoresmísticostenhampassadopelosdoistiposdeexperiênciaeédifícil,aomenosparamim,distinguirquaisforamencontrosgenuínoscomDeusequaisnão.

25J. I. Packer; Carolyn Nystrom, Praying: finding our way through duty todelight(DownersGrove:InterVarsityPress,2009),p.65[ediçãoemportuguês:Oração:dodeveraoprazer(SãoPaulo:CulturaCristã,2009)].

26Ibidem.27Anne Lamott,Help, thanks, wow: the three essential prayers (New York:

Penguin,2012),p.2-3[ediçãoemportuguês:Amar,agradecer,admirar(RiodeJaneiro:Sextante,2014)].

28Lamott (Help, p. 67) faz rápida alusão à confissão uma vez, de passagem.“Então orei: ‘Ajuda-me a não ser tão tola’”. Em seguida ela acrescenta entreparênteses:“Essanaverdadeéaquartagrandeoração,daqual talvez tratemosem outro momento”. No entanto, apesar de considerada a “quarta grandeoração”,elanãoénomeadanemtratadaemoutrapartedolivro.

29Veja a carta 130 de Agostinho (AD 412) para Proba, que se encontra emPhilipSchaff,org.,Niceneandpost-Nicenefathers,FirstSeries,1887(ChristianClassicsEtherealLibrary),vol.1,p.997-1015;MartinhoLutero,“Asimplewayto pray”, in: Gustav K.Wiencke, org., Luther’s works: devotional writings II(Philadelphia: Muhlenberg Press, 1978), vol. 43, p. 187-211 [edição emportuguês:Comoorar(SãoLeopoldo/PortoAlegre:Sinodal/Concórdia,1999)].

30Todavia, creio ser justo dizer que Lamott não segue realmente o próprioprincípio com consistência. Por exemplo, ela escreve: “Amaioria das orações

boas e sinceras lembra-me de que não estou no comando, de que não possoconsertarnadaedequemeabroparaserajudadaporalgo,umaforça,amigos,alguma coisa qualquer. [...] Não faço ideia da razão, mas alguma coisa faz”(Help,p.35).AafirmaçãodizrespeitoàsoberaniaeaopoderdeDeus,eànossadependência dele. Tais declarações teológicas são inevitáveis, na verdade,porque não podemos orar a Deus sem ter em mente algum conceito de suanatureza.MascomoLamottnãoescolheufundamentarseulivrosobreoraçãoemnarrativasbíblicas,nãonoséditoporquedeveríamoscrerqueDeus“fazideiadarazão”oudeondevemesseconhecimento.

31Clowney,“Abiblicaltheology”,p.136.ComparecomaspalavrasdeArthurW.Pink:“Nagrandemaioriados livrosescritosenossermõespregadossobreoração,oelementohumanoencheacenaquaseporcompleto.Sãoascondiçõesqueprecisamossatisfazer,aspromessasquedevemosreivindicar,ascoisasquetemosdefazerafimdeverconcedidososnossospedidos;eareivindicação[...]eosdireitosdeDeus [...] [à]glória sãodesconsiderados”.DeArthurW.Pink,The sovereignty of God (Carlisle: Banner of Truth, 1961), p. 109 [edição emportuguês:Deusésoberano(SãoJosédosCampos:Fiel,2011)].

32OlivrodeChristianSmith,Soulsearching: thereligiousandspiritual livesofAmericanteenagers(NewYork:OxfordUniversityPress,2005)exploraaféea vida espiritual de jovens adultos americanos, aos quais descreve comocaracterizadosporum“deísmomoralistae terapêutico”,acrençaemumDeusqueexiste,masquenãoseenvolveparticularmentenosassuntosdodiaadia,emqueolivre-arbítrioeasescolhasdoserhumanodeterminamascoisas.Segundoessa visão, o principal desejo de Deus para nós é que levemos boas vidas,sejamosgentisejustosparacomosoutros.Sevivermosdessemodo,eleentãonosoferece“benefíciosterapêuticos”—autoestimaefelicidade(p.163-4).Essavisão de Deus causa um efeito profundo na oração. Smith descobriu que osadolescentesamericanosoravamcomfrequência;40%oravamumavezoumaisaodiaesó15%disseramnuncaorar.Contudo,emgeralamotivaçãodelesparaa oração era a satisfação de necessidades psicológicas e emocionais. “Sempreque tenho um problema, eu oro.” “Isso me ajuda a lidar com os problemas,porque souexplosivo, emeacalmanamaioriadasvezes.”“Quando tenhoumproblema,possosimplesmentesuportá-loeDeussempremeapoiará.”“Orarfazcom que eu me sinta mais seguro, como se houvesse alguma coisa meajudando.” “Eu diria que a oração é uma parte essencial domeu sucesso” (p.151-3). Smith salienta que faltavam pelo menos duas coisas nas orações dosjovensamericanos.Primeiro,oarrependimento,quequaseinexiste.“Nãosetrata

de uma religião de arrependimento do pecado”, escreve Smith. Segundo, aoraçãoaesseDeuséquasevaziadeadoraçãoelouvor,porqueeleéum“Deusdistante” e “pouco exigente. Nem pode ser diferente, na verdade, porque suafunçãoéresolverproblemasefazercomqueaspessoassesintambem.Nãohánadaaquiqueevoquemaravilhamentoeadmiração”(p.165).NoestudosubsequentedeSmithsobreaféde“adultosemergentes”(de18a

29 anos de idade), Souls in transition: the religious and spiritual lives ofemergingadults (NewYork:OxfordUniversity Press, 2009), ele observa “umaumento no egoísmo e no uso instrumental da oração pessoal” (p. 102).Resumindo,emvezdeadoraçãoearrependimento—duasformasdeoraçãoquecolocam quem ora em perspectiva como alguém pequeno, limitado, frágil edependente—, adultosmais jovens oram quase exclusivamente por ajuda emseus problemas ou para se sentiremmelhor emais felizes.Estudos de adultosmais jovens na Europa têm mostrado uma mudança semelhante no uso daoração,quedabuscaaDeus,possaase tornar“umcaminhodedescobertado‘verdadeiroeu’.[...]Deacordocomessasentrevistas,Deuspodeserencontradoapenasdentrodo‘verdadeiroeu’”.VejaGiordan;Swatos,Religion,spirituality,p.87.VejatambémGiuseppeGiordan;EnzoPace,orgs.,Mappingreligionandspirituality in a postsecular world (Leiden: Brill, 2012). Uma visão tênue ouvagadeDeusnãoapenasreduzoconteúdodaoração,mastambémlheinverteamotivação.Naoraçãodosamericanosmaisjovens,Deuséummeioparaofimdeumavidafelizparaelesmesmos.GlorificaraDeusnãoentraemquestão—e,naverdade, seriaumconceitoobscuro e confuso.Emvezdisso, aoração éutilizadanabasedocusto-benefício(doeu).

33Peterson,AnsweringGod,p.5-6.34NaBíbliaeminglês,osnomesJoãoBatistaeIsabelcorrespondemaJohnthe

BaptisteaElizabeth,respectivamente.(N.doT.)35Essahistória é relatada em JohnPollock,GeorgeWhitefield and theGreat

Awakening (Oxford:LionPublishing,1972), p. 205-8; eArnoldA.Dallimore,GeorgeWhitefield: the lifeand timesof thegreatevangelistof theeighteenth-centuryrevival(Carlisle:BannerofTruth,1979),vol.2,p.168-9.VejatambémHarryS.Stout,Thedivinedramatist:GeorgeWhitefieldandtheriseofmodernevangelicalism (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), p. 170. Pollock salienta queumacidente de carruagemevitadoquando sua esposa estava grávida ajudou aconvencê-lodequeavidadofilhoestavasendopreservadaporqueDeus tinhagrandescoisasparaele.DallimoreacrescentaqueasuposiçãodeWhitefield,deque Deus lhe falara diretamente através de suas impressões, era um hábito

mentalcontraoqualJonathanEdwardsoadvertiraantese,aoquetudoindica,um conselho de que Whitefield não gostara. Stout contribui para a histórianarrandoofatodequeWhitefieldseculpoupelamortedeJohn,receandohavertransformadoofilhoem“ídolo”.EmboraStoutacreditequeWhitefieldestivesseerradoem interpretar esses reveses comocastigopor seuspecados,Whitefieldcom certeza estava certo ao acreditar que convertera o filho bebê em foco deidolatria do próprio anseio de ser usado e influenciar os outros. Se a criançativessevivido até amaturidade, sofreria opeso avassaladordas expectativas eesperançasdopai.

O

CINCO

EncontrarDeus

rar é conversar comDeus.No entanto, há conversas que podem ficar nasimplestrocadeinformação,semlevaraumverdadeiroencontropessoal,a

um relacionamento. Não queremos apenas conhecer a respeito de Deus, mas,sim, conheceropróprioDeus, buscar sua face e sua presença. TimothyWarddemonstrou que as palavras de Deus entregues aos profetas e apóstolos eregistradas na Bíblia consistem no principal modo de encontrarmos Deus.“EncontraraspalavrasdasEscrituraséencontrarDeusemação”.1Nãodevemos,portanto,jogaraverdadeteológicacontraoencontroexistencial.Antesdevemosexperimentaraverdade.Ecomoissoacontece?Nestecapítuloexaminaremosoque aBíblia diz sobre a experiência de encontrarDeus. Para isso, precisamosexplorarqueméoDeusaoqualoramose,depois,comoasEscriturasdizemquepodemosencontrá-lo.

Aquemencontramos:umDeustriúno

Ofatoteológicofundamentaldaoraçãoéeste:dirigimo-nosaumDeustriúnoenossas orações só podem ser ouvidas por intermédio da obra distinta de cadapessoadaTrindade.NoNovoTestamento, anatureza triúnadeDeus se tornaexplícita,2mas em

poucoslugaresissoétãocondensadoediretoquantoemMateus28.19,emqueJesusenviaosdiscípulosaomundoparabatizar“emnomedoPaiedoFilhoedoEspíritoSanto”.O textonãodiz “nosnomes”deles.Emvezdisso,declara

quePai,FilhoeEspíritoSantotêmtodosumúniconome.Parapessoasdonossotempo, o termo nome pode ser apenas um rótulo ou uma etiqueta a serdescartadooumudado à vontade,mas, nos temposbíblicos, ele simbolizava apróprianaturezaeessênciadapessoa.3IssoquerdizerquePai,FilhoeEspíritoSanto compartilhamumanaturezadivina, que sãoumúnico ser.Só existe umDeus—enãotrês.EmboraPaulofalesempararnadivindadedeCristo,dizendoquetodaaplenitudedadivindadehabitanele(Cl2.9),tambémafirmaque“nãoháoutroDeussenãoumsó”(1Co8.4)—ouseja,Deustemumanatureza,umnomeeumser.TodaviaoPai,oFilhoeoEspíritoSantosãotodosDeus,emplenacondição

deigualdade.OestudiosodaBíbliaR.T.Franceafirma:“Ofatodequeo‘Filho’ocupeaposiçãodomeioentreoPaieoEspíritoSanto,emumobjetotriúnodalealdade dos discípulos [...] [e] objeto legítimo de adoração [...] éextraordinário”.4Logo,há trêspessoasnaunidadedo serdeDeus, igualmentedivinas,queseconhecemeseamam,equedesde todaaeternidade trabalhamjuntaspornossasalvação.5

AsimplicaçõesdessacondiçãotriúnadeDeusparaaoraçãosãovárias.Paracomeçodeconversa,significaqueDeussempretevedentrodesiumaamizadeperfeita.OPai,oFilhoeoEspíritoSantoadoramunsaosoutros,glorificam-seno amor que dedicam uns aos outros e deleitam-se uns nos outros.Desconhecemosmaioralegriadoqueadeamareseramado;entretanto,oDeustriúno conhece esse amor e essa alegria em escala inimaginável e infinita.Portanto,Deuséinfinitoeprofundamentefeliz,repletodamaisperfeitaalegria— marcado não por uma placidez abstrata e sim pela felicidade intensa dosdinâmicosrelacionamentosemqueháamor.ConheceresseDeusnãoéalcançarumestadoalémdeemoçõesoupensamentos,masserimpregnadodeumamoreumaalegriagloriosos.Se Deus não necessitava criar outros seres a fim de conhecer o amor e a

felicidade,entãoporqueofez?EmAdissertationconcerningtheendforwhichGodcreated theworld [UmadissertaçãosobreofimparaoqualDeuscriouomundo],JonathanEdwardsargumentaqueoúnicomotivoqueDeus teriaparanos criar não seria paraobter o amor e a alegria cósmicos do relacionamento

(porque isso ele já tinha),masparacompartilhá-los.6Edwardsmostra comoéabsolutamentecoerenteparaumDeustriúno—emsuaessênciaorientadoparaooutro, que busca glória apenas para dá-la a outros— transmitir aos outros afelicidadeeodeleitepresentesnaprópriaperfeiçãoebelezadivinas.Como escreveu Agostinho em sua grande obraDe Trinitate [Da Trindade],

nossacapacidadedeamaroutraspessoaséapenasumaimagemdoamorinternodaTrindadeque fomos criadospara refletir.7 Podemosver, então, por queumDeus triúno nos chamaria para conversar com ele, conhecê-lo e com ele nosrelacionarmos—porquedesejacompartilharaalegriaquesente.OrarénossomododeparticipardafelicidadedopróprioDeus.

Aquemencontramos:nossoPaicelestial

Embora Deus tenha sido chamado de Pai no Antigo Testamento apenas emalgumasocasiões,quandoaTrindadesetornaexplícitanoNovoTestamento,ocaráterde suapaternidade tambémsedestacae ficamaisclaro.OPai enviaoFilhoparanossalvardenossospecadosafimdequepossamosnostornarfilhosefilhasadotivosdeDeus(Ef1.3-10).AonascermosdenovopelaféemCristo,recebemos o direito de sermos seus filhos e de chamá-lo de pai (Jo 1.12,13).Então, o Espírito coloca em nós a vida de Deus propriamente dita — a“semelhançafamiliar”,anaturezadeDeus.“DeusenviouseuFilho,nascidodeumamulher,debaixodaLei,pararedimirquemestavadebaixodalei,afimdequepudéssemos receber a adoçãode filhos.Porquevós sois seus filhos,DeusenviouoEspíritodoseuFilhoavossoscorações,oEspíritoqueclama‘Abba,Pai’”(Gl4.4-6).Muita gente pergunta: “Todas as pessoas não são consideradas filhas de

Deus?”.DevezemquandoaBíbliafaladoconjuntodossereshumanoscomo“descendência”deDeus,sendoeleocriadordetodasaspessoas(At17.28).ApalavrausadaemAtos17éotermogregogenos,quesignifica“descendentes”.DeusédefatoopaidetodosnomesmosentidoqueHenryFordépaidoModeloT.Contudo,apalavrapaitambémdenotaumrelacionamentodeamorecuidado.Você já ouviu (ou participou de) uma conversa em que um jovem diz a um

homemmaisvelho: “Vocênunca foiumpai de verdadeparamim!”.Talvezohomemtenharespondido:“Masvocêésanguedomeusangueecarnedaminhacarne”.Aoqueojovemretrucou:“Éprecisomaisdoqueissoparaserpai!Vocênuncaestevedomeulado”.Sóporquealguémémeugenitorbiológiconãosignificaquetenhacomigoum

verdadeirorelacionamentodepai.ABíblialançamãodamesmaperspectiva.Elareserva a riqueza da expressão “filhos de Deus” para aqueles que foramrecebidosporadoçãonafamíliadeDeus,pelagraça,pormeiodafé.Seradotadoéumfatodecaráterlegal,massignificabemmaisqueisso,claro.Seradotadoporumanovafamíliasignificapassarporumarevoluçãonamaneiradeviverodiaadia.EmCristo,portanto,oscrentessãonãoapenaslegalmentefirmadosnoamor paternal de Deus, mas também pessoalmente.8 Em uma passagemextraordinária, Jesus ora ao Pai por seus seguidores, “a fim de que o mundosaibaquetumeenviasteeostemamadocomo tensamadoamim”(Jo17.23).SeradotadosignificaqueagoraDeusnosamacomosetivéssemosfeitotudooqueJesusfez.SignificaqueCristo,comodissecertoteólogo,“nãoapenassofreuapunição”pornossospecados,mas“tambémfezpormereceremnossofavoravidaeterna[...]fezpormerecer[emnossofavor]arecompensaporsuaperfeitaobediência à lei divina”, de modo que podemos correr para nosso Pai semmedo.9TemosorelacionamentomaisindestrutíveleíntimopossívelcomoDeusdouniverso.SerfilhodeDeussignificaacesso.SabemosqueDeusnosouveeobservacom

atenção. Pense no que é necessário para ser recebido em audiência pelopresidentedosEstadosUnidos.Sópessoasmerecedorasdoseutempoeatençãoteriam permissão para isso. Precisam apresentar credenciais, proezas e talvezumabasepolíticaprópria.Mas, sevocê forumde seus filhos, tudomuda.Damesmaforma,oDeusdoUniversose“lembra”devocê(Sl8.4).Aoraçãoéocaminhoparaexperimentaresseacessoeesseamorpaternal,para

deles se apropriar e sentir em nossa vida a calma e a força decorrentes dessacertezadequealguémcuidadenós.

Comoencontramos:oEspíritodeadoção

EmEfésios2.18,PaulodissequenossoacessoaDeusPaiacontece“pormeiodele[CristoJesus]”e“nomesmoEspírito”.JonathanEdwardsdizque“aoraçãonada mais é [...] que a voz da fé”.10 Qualquer um que tenha fé de verdadedesejaráorarporque,peloEspírito,aoraçãoéaexpressãoaudíveldafé.PaulonosdámaisdetalhessobreessaobradoEspíritonaoraçãoquandoescreve:Pois aqueles que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. OEspíritoquerecebestesnãovosescravizademodoquevivaisoutravezcommedo;antes,oEspíritoquerecebestesproduziuvossaadoçãodefilhos.Eporeleclamamos“Abba,Pai”.OpróprioEspíritotestificacomnossoespíritoquesomosfilhosdeDeus(Rm8.14-16).Paulonosensinaque,nolugardemedo,oEspíritodeDeusencheoscristãos

de confiança no cuidado amoroso deDeus, análogo à confiança da criancinhanos pais.OEspírito nos leva a “clamar”—do termogregokrazdo, quequerdizerumbradoaltoe intenso, equecostumaserusadonoAntigoTestamentoparadesignaraoraçãofervorosa,comoem“Abba,Pai”.ComoescreveC.E.B.Cranfield,estudiosodaBíblia,essaé“originalmenteumafórmulaexclamativausada por crianças pequenas”, fácil de articular, um pouco parecida com apalavrapapai.11Eleobservaqueeraconsiderada“domésticaeafetuosa”demaisparaserumaformaapropriadadesedirigiraDeusnojudaísmo,equeaadoçãodotermopelopróprioJesusemsuavidadeoração(e.g.,Mc14.36)“expressavasuaconsciênciadeumrelacionamentoúnicocomDeus,eofatodeeleautorizarseus discípulos a se dirigirem aDeus dessamaneira deve ser entendido comouma concessão que Jesus fez a eles de parte do relacionamento quemantinhacomDeus”.12

Não se trata aqui de um “sinalizador de emergência” ou de alguma apostaansiosaedesesperada.OEspíritoconfereaoscrentesumacertezaexistencialeinterior de que o relacionamento deles com Deus não depende mais dedesempenho, como acontece no relacionamento entre empregado e supervisor.

Dependedoamorpaternal.OEspíritoSantotomaumaproposiçãoteológicaeatransformaemconfiançaealegria interior.PorquevocêestáemJesus,oFilhoverdadeiro, sabe que Deus responde a seu clamor com o amor e o cuidadointensos de umpai que responde ao clamor de dor de um filho ou uma filha.VocêpodecomparecerdiantedeDeuscertodequereceberáessetipodeatençãoe amor. Em outras palavras, o Espírito Santo nos dá uma fé confiante que setransformanaturalmenteemoração.Essa confiança era o cerne da poderosa teologia e prática de oração de

MartinhoLutero.Bastanteconhecidopororaraomenosduashoraspordiaesairdesseperíodocomgrandeousadia,LuteroensinavaqualquercristãoacomeçaraorardizendooseguinteaoSenhor:Embora[...]tupudessesjustaeapropriadamenteserumjuizseveroemrelaçãoanós,pecadores,[...]agora,pormeiodatuamisericórdia,implantasemnossocoração uma confiança reconfortante em teu amor paternal e permite-nosexperimentar o doce e agradável sabor da certeza, semelhante a de umacriança, de que podemos com alegria chamar-te de Pai, conhecendo-te,amando-teeclamandoatiemtodaaflição.13

DeacordocomPaulo,noentanto,aoração“Abba”nãoéoúnicotipoquenos

é concedido pelo Espírito. Paulo não fala apenas do Espírito de adoção, mastambémdoEspíritocomo“intercessor”:Domesmomodo,oEspíritonosajudaemnossafraqueza;poisnãosabemosorarcomodeveríamos,masopróprioEspíritointercedepornóscomgemidosprofundos demais para serem expressos em palavras. E aquele que sonda ocoraçãodoshomenssabequaléamentedoEspírito,poisoEspíritointercedepelossantossegundoavontadedeDeus.SabemosqueemtudoDeusfazcomque todas as coisas cooperem para o bem daqueles que o amam, que sãochamadosdeacordocomseupropósito(Rm8.26-28).

O significado desses “gemidos” do Espírito tem sido objeto de debate.14

AlgunsacreditamquesejaoEspíritonosajudandoquandoestamosdesesperadosenoslamentando,maséimprovávelqueaexpressãodescrevaapenastemposdedepressão.Antes,a“fraqueza”citadanoversículo26éadescritanosversículosprecedentes,osquaissereferemnãosóatemposdedesânimo,masatodanossasituaçãohumanadeanseios frustradosenquantoaguardamosaglória futura (v.18-25,principalmenteov.23).SabemosqueDeusestá fazendocomque tudocoopere para nosso bem segundo a sua vontade (v. 28), mas raras vezesconseguimos discernir que bemé esse.Emoutras palavras, namaior parte dotempo,nãosabemosaocertoporqual resultadodeveríamosorar.15OEspírito,noentanto, faz seus os nossos gemidos, colocando suas orações aoPai dentrodasnossas.EfazissopondodentrodenósumaânsiaprofundaeinexprimíveldefazeravontadedeDeusecontemplarsuaglória.Talaspiração—essedesejodeagradá-lo, em formade “gemido”—manifesta-se emnossas súplicas aDeus.Emcadapedidoespecífico,então,oPainosouveorando tantoporaquiloquerealmenteéomelhorparanósquantopeloqueéagradávelaele,“eaintercessãodo Espírito é respondida à medida que Deus faz com que todas as coisascooperempara nosso bem”.16 O Espírito nos capacita a ansiarmos pela glóriafutura deDeus e sua vontade, embora não saibamos omotivo específico peloqualdevemosoraraquieagora.17

OraréocaminhoparaexperimentaraconfiançapoderosadequeDeuscuidabemdenossavida,dequeascoisasruinsserãoparaobem,dequeasboasnãonospodemsertiradasedequeasmelhoresaindaestãoporvir.

Comoencontramos:oMediador

Achegamo-nosaoPainão sónoEspíritomaspormeiodoFilho.SópodemosconfiarqueDeusdefatoénossopaisechegarmosaelepelamediaçãodeCristo,emnomedeJesus.Tiveumprofessor,EdmundP.Clowney,quecertavezmedissequeprocurou

umdeseusmestres,JohnMurray,paradiscutirumaquestãoparticular.Murrayseofereceuparaorarporelee,aofazê-lo,opoderdaoraçãofoiformidável.A

maneira de Murray se expressar mesclava uma íntima familiaridade com umsensodamajestadeabsolutadeDeus.ApresençadeDeustornou-sepalpávelnomesmoinstante.FicouclaroqueMurrayconheciatantoaproximidadequantoatranscendênciadeDeus.Murray estava sendo o “mediador” de Edmund naquele momento, embora

apenasemsentido secundário.Conduziu-oàpresençadeDeuse falouemseulugar.AfédeMurraynagraçadeDeuseacertezaemsuaformadeabordá-lopermitiramqueEdmunddescansassenoamorsoberanodeDeus,eeradissoqueelemaisnecessitavanaocasião.ClaroqueMurray,oteólogo,sabiaqueambosestavam se colocando juntos na presença de Deus apenas pela mediação deCristo.EmseucomentáriosobreRomanos,elediscuteoversículo“CristoJesus[...]estáàdireitadeDeusetambémintercedepornós”(Rm8.34),eargumentaquea“intercessão”deJesuspornósàdireitadeDeus,assegurandooauxíliodoPai para nossas necessidades em razão de sua obra expiatória, não deve serconsiderada “um mito, tanto quanto a própria ressurreição não deve serconsideradaummito”.Elecontinua:Nada serve para comprovar a intimidade e a constância da preocupação doRedentor com a segurança do seu povo, nada nos assegura do seu amorimutável mais do que a ternura que sua intercessão celestial evidencia e,particularmente,àmedidaqueseexpressaemintercessãopornós.18

Edmundmedisse:“Fuimuitoajudadopelaintercessãodessehomempiedoso

emmeu favor diante deDeus. Então percebi: se considero isso reconfortante,não deveria sermuitomais confortado por saber da intercessão de Cristo pormim?”.Por mais encorajadora que tenha sido a experiência para Edmund, seu

sentimento de condenação também era profundo. Ouvir Murray orar a Deusbastou para lhe revelar que suas próprias orações eram insípidas, formais emecânicas.PoucosabiadaconversaíntimanapresençadeDeus.PercebeuquenãoestavalevandoasériooqueamediaçãodeJesussignificavaparasuavidadeoração.

JesuséomediadorentrenóseDeus (1Tm2.5;cf.Hb8.6;12.24).TodasasnaçõeseculturasdaAntiguidadeconstruíamtemplosporqueossereshumanosperceberaminstintivamentequehaviaumhiato,umaenormelacunaentrenóseo divino. Deus é grande e nós, pequenos — Deus é perfeito e nós, falhos.Templos eram lugares em que havia um esforço de criar uma ponte paraatravessar essa distância. Neles eram feitos sacrifícios e ofertas; rituais eramseguidos por “mediadores” profissionais (sacerdotes) que buscavam trazer adivindade, distante, para perto. Todo esse empenho era visto como parcial efragmentário.Nenhumareligiãoalegavaqueessalacunapudessesereliminada.Aristóteles, por exemplo, disse que, embora talvez fosse possível venerar eaplacarosdeuses,umaamizade reale íntimacomumdelesera impossível.Ofilósofo concluiu que a amizade requer de ambos os lados muita coisa emcomum, como iguais. Eles têm de ser semelhantes. Mas, como Deus éinfinitamente maior do que os seres humanos, “a possibilidade de amizadeacaba”.19

Agora,noentanto,temosomediadoresacerdotesupremoparapôrfimatodosossacerdotes(Hb4.14,15).EleeliminaalacunademodoquepodemosconheceraDeuscomoamigo(cf.Êx33.11),poisoFilhodeDeusfoi“feitosemelhanteaeles,plenamentehumanoemtodosossentidos,afimdequepudessese tornarumsumosacerdotemisericordiosoe fiel” (Hb2.17).Eporque“não temosumsumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas,mas [...] quetem sido tentado em todas as coisas, como nós somos—mas sem pecado”,podemos“nosachegaraotronodagraçadeDeuscomconfiança”(Hb4.15,16).Aqui,então,estáumaafirmaçãoqueAristóteles—naverdade,todososoutrosfilósofosemestresreligiososdomundo—considerariamultrajante.ComoDeuspoderia ser nosso amigo íntimo? Como poderíamos nos aproximar dele comtotalconfiança?IssoaconteceporqueDeussetornoucomonós,mortalesujeitoao sofrimento e à morte. E o fez para que pudéssemos ser perdoados ejustificados pela fé, sem depender de nossos esforços e méritos. Por issopodemosnosaproximardele.PorqueDeus se tornouhumanoemJesus, eleénãosomenteadivindadedo

outro ladoda lacuna,mas, sim,apontesobreoprecipício.Portanto, Jesuséo

mediadordeumnovorelacionamentocomDeusquenãopodefalhar,vistoqueébaseadoemsuafidelidade,nãonanossa(Hb9.14-16).Portanto, irmãos e irmãs, tendo confiança de entrar no lugar santíssimo pormeiodosanguedeJesus,porumnovoevivocaminhoabertoparanósatravésdovéu,istoé,oseucorpo,ecomotemosumsumosacerdotesobreacasadeDeus,aproximemo-nosdeDeusdecoraçãosinceroecomaplenacertezaqueaféproduz(Hb10.19-22).

AoraçãoemnomedeJesus

IssonoslevaaumaimportanteorientaçãodoNovoTestamentosobreaoraçãocristã: Jesus ensinou aos discípulos que devem sempre orar em seu nome (Jo14.13,14; 15.16; 16.23,24). “Orações em seu nome são orações [...] emreconhecimentodequeaúnicaformadesechegaraDeus[...]oúnicocaminhoparaDeuséopróprioJesus”.20

Empoucaspalavras,issodizrespeitoaqualificaçãoeacesso.Lembroque,naépoca em que eu fazia mestrado, procurei, ansioso, um orador bastanteconhecido após uma palestra. Ele parecia distraído enquanto cumprimentavaoutros estudantes com amabilidades convencionais. Ao cumprimentá-lo, noentanto,pudemencionarqueconheciaumamigodele.Quandolhedisseonome,na mesma hora ele fixou a atenção em mim e me dirigiu a palavra comentusiasmoeinteresse.Obtiveessetipodeacessoaelenãoemmeunome,masno nome do nosso amigo comum. Essa é uma fraca ilustração do acesso quetemos aDeus, oPai. Por conhecermos Jesus, por estarmos “emCristo”,Deusconcentraseuamoreatençãotodo-poderososemnósquandooramos.A versão de Paulo para essa orientação dada por Jesus encontra-se em sua

fórmula de oração profundamente trinitária, registrada em Efésios 2.18: “Pormeiodele [Cristo] ambos temos acesso aoPai por um sóEspírito”.ApalavraacessocostumavaserusadaquandoumreidaAntiguidadeconcediaaudiênciaaalguém. A ninguém era permitido simplesmente entrar na presença de um

monarcapoderoso.Asconsequênciaspodiamseroencarceramentooumesmoamorte(cf.Et4.9-16).Isso,noentanto,apenasmostraadiferençadepoderentreum antigo rei oriental e um plebeu. O abismo entre um Deus santo e sereshumanospecadoreséinfinitamentemaior(1Sm6.20;Sl130.3;Na1.6).NenhumserhumanoécapazdeolharparaDeuseviver(Êx33.20).Portanto,aafirmaçãode Paulo de que agora temos acesso à presença de Deus “por meio dele” ébastantesurpreendente.SempretemosumaaudiênciagarantidacomDeusgraçasaoqueJesusCristofez.Suamortenacruzreconciliou-noscomele(Ef2.16)efezdelenossoPai.

ConheceraDeusporquemeleé

Lemos emGálatas 4.6,7 que oEspírito nos leva a clamar compaixão aDeuscomonossoPaiamoroso.Pauloserefereaessaexperiênciacomo“conheceraDeus” (v. 4.8).Esse é omotivo da oração dirigida peloEspírito,mediada porCristo—simplesmenteconhecê-lomelhoredesfrutardesuapresença.Considerecomoissodiferedamaneiraemquecomumenteusamosaoração.

Em nosso estado natural, oramos a Deus para conseguir algo. Até podemosacreditaremDeus,masnossasesperançasefelicidademaisprofundasresidememcoisascomoosucessoalcançadoounossosrelacionamentossociais.Logo,oramos sobretudo quando nossa carreira profissional ou finanças passam porproblemas,ouemalgumrelacionamentoounossostatuscorremperigo.Quandoavidaseguetranquilaeostesourosmaisverdadeirosdonossocoraçãoparecemseguros, não pensamos emorar.Alémdisso, emgeral nossas orações não sãovariadas — em geral consistem em petições, de vez em quando em algumaconfissão (se tivermos acabado de fazer algo errado). Raramente ou nuncagastamos tempomaisprolongadoadorandoe louvandoaDeus.Emsuma,nãotemos nenhum desejo interior e positivo de orar. Só oramos quando ascircunstâncias nosobrigam.Por quê?SabemosqueDeus está lá,mas temos atendênciadevê-locomoummeioatravésdoqualconseguimoscoisasparanosfazer felizes. Para amaioria de nós,Deus não se tornou nossa felicidade. Porisso,oramosparaconseguircoisas,nãoparaconhecê-lomelhor.

Tudo issomudaquando,depoisdedescobrirquechafurdamosavida inteiraemformasdeautossalvação,nósnosvoltamosparaCristo.Quandoentendemosseu impressionante e custoso sacrifício por nós, quando transferimos nossaconfiança e esperanças de outras coisas para Cristo e quando pedimos aaceitação e a graça de Deus por causa de Cristo. A partir desse momentocomeçamos a perceber, com a ajuda do Espírito, a magnitude dos nossosbenefícios e bênçãos emCristo. Começamos, então, a sentir um desejo quasedesesperado de conhecer e amar aDeus por quem ele é. Seu amor e cuidadofazemapopularidadeeostatusqueomundoproporcionapareceremcoisassemgraça e superficiais. Deleitarmo-nos nele e lhe deleitarmos tornam-se coisasinerentementebelasequenosrealizam.VeraleicumpridaporCristoeouvirsuavozdeperdãotransformaumescravoemfilhoedeveremopção.

—WilliamCowper,OlneyhymnsNosprimeiroscapítulosdesuaexposiçãodafécristã,Institutes,JoãoCalvino

argumentaquepodemosconhecermuitacoisasobreDeus,masnãoconhecê-lode verdade até que o conhecimento do que ele fez em nosso favor em JesusCristo tenha transformado a estrutura fundamental do nosso coração. “Pois apalavradeDeusnãoérecebidapelaféquandopairasobreotopodacabeça,masquandocriaraízesnofundodocoração[...]adesconfiançadocoraçãoémaiordoqueacegueiradamente.Émaisdifícilsuprirocoraçãodacerteza[doamordeDeus]doqueproveramentedepensamento”.21Osinaldequeoevangelhofincou raízes no coração é que os cristãos são levados a “firmar sua plenafelicidadeemCristo”.Amenosqueaspessoasvivamessaexperiência,“jamaisseentregarãodeverdadeecomsinceridadeaele”.22VocênãoteráoverdadeiroconhecimentosalvadordeDeusenquantonãoansiarporconhecê-loeservi-lo.Umaalmaassim“serefreiadepecar,nãosópormedodocastigo,masporamar

ehonraraDeus,oPai. [...]Mesmoquenãohouvesse inferno,elaaindaassimestremeceriaanteapossibilidadedeofendê-lo”.23

EsseéummodovívidodedizerqueocristãoquecompreendeoevangelhonopoderdoEspíritoSantobuscaaDeusacimadetudo,masnãoparaganharumarecompensa ou para evitar algum castigo (uma vez que as duas coisas sãogarantidas em Cristo). Os cristãos buscam a Deus para si mesmos. Sem oevangelho,podemoschegarepedircoisas.Semoevangelho,podemosconceberumDeussantoqueintimidaedoqualsópodemosnosaproximarcompetiçõesseformosmuitobons.OupodemosconceberumDeuscujo“amor”sóquerdizerque ele considera a todos de forma positiva. Achegar-se ao primeiro tipo de“Deus”éapavorante;aproximar-sedosegundotiponãoégrandecoisa.Portanto,semoevangelho,nãoexistepossibilidadealgumadepaixãoedeleiteemlouvareseaproximardoverdadeiroDeus.OsZaleskis argumentam que toda oração humana é um esforço por exercer

poderpormeiodealgumaformadesacrifíciopeloqualDeusouosdeusessãolevados a responder. No entanto, a oração bíblica é apresentada com base nagraçasalvadoraegratuitadeDeuseemseuamorpaternalconstanteeinfinito.SeDeusénossopaicelestial,nemmagianemsacrifíciosãonecessários.24

Ocustodaoração

Como são possíveis acesso e liberdade em tais proporções? Em todos osEvangelhos,aúnicavezemqueJesusCristooraaDeusenãoochamadePaiénacruz,quandodiz:“MeuDeus,meuDeus,porqueteesquecestedemim?Porquemeabandonaste?”(Mt27.46).EleperdeuorelacionamentocomoPaiafimdequepudéssemosnosrelacionarcomDeuscomopai.Jesusfoiesquecidoafimde que nós pudéssemos ser lembrados para sempre — de eternidade aeternidade.JesusCristolevousobresitodoocastigoeternoquenossospecadosmereciam.Esseéocustodaoração.JesuspagouopreçoparaqueDeuspudessesernossopai.Talvez você levante uma objeção, dizendo que seu próprio pai ou mãe lhe

fizeramalgummal. Issonãodeveserumabarreiraàoração,pois somenteem

Cristo você encontrará o amor de quenecessita para compensar esse históricofamiliarinfeliz.Nãoadiantanadaseperguntar:“Porqueelesnãoforamospaisquedeveriamser?”.Nãoexistempaisquesejamoquedevemser.EmSalmos27.10 lemos: “Aindaquemeupai eminhamãemeabandonem,oSENHORmesustentará”.25ÉdessenovorelacionamentocomDeusquevocêprecisaseteveumhistóricofamiliarruim.Édissoquevocêprecisacasosesintaumfracassadoou solitário, ou se está cada vez mais afundando no desespero. Por causa dopreçoinfinitoqueJesus,seuirmão,pagou,Deus,seupai,osustentará.ConversarcomDeusnoslevaaumencontrocomele.Aoraçãonãoéapenaso

mododeaprendermosoqueJesusfezemnossofavor,mastambémomodopeloqual“recebemosdiariamenteosbenefíciosdeDeus”.26Elatransformateologiaemexperiência.Pormeiodela,sentimossuapresençaerecebemossuaalegria,seu amor, sua paz e confiança, sendo assim transformados em atitude,comportamentoecaráter.

1Ward,Wordsoflife,p.48.Ogrifoédooriginal.WarddemonstratambémqueaBíbliaéumdocumentodealiança.QuandoDeusentraemumrelacionamentoconosco, seres humanos que somos, não se trata de mero ato pessoal, mastambémdeumaaliança.Significaqueestamos ligadosaDeuseeleanósporpromessasdefidelidademútua—equeagoratemosdireitodeacessoaele.Écomoumcontratodecasamento.TantoaBíbliaquantoaoração,portanto,sãoprivilégiosdeumaaliança.Deusfalaaseupovo(pelaBíblia)eouveseupovo(pelaoração),oqualestáunidoaelepelorelacionamentodealiança.VejaWard,p.22-3.

2Muitos discordam, pois, como o termoTrindade não aparece naBíblia e adoutrinacorrespondentesófoiformuladanoterceiroequartoséculosdepoisdeCristo, alegam tratar-se de uma imposição da teologia extemporânea ao textobíblico.Nadapoderiaestarmais longedaverdade.ONovoTestamentoafirmatrêscoisas repetidasvezesacercadeDeus: (1)sóexisteumDeus; (2)oPai,oFilho e o Espírito Santo são todos igualmente Deus — na verdade, “toda aplenitudedadivindade”habitaemcadaumdeles(cf.Cl2.9),enãoapenasemum terçoda divindade; (3) os três se conhecem, amame trabalham juntos, demaneirasdistintas,pornossasalvação.SóadoutrinadaTrindadeexplicatodasastrêsproposiçõesbíblicas.J.I.Packerusaailustraçãodealgo“emsolução”.Oaçúcar que se dissolve no chá não é visível — está “em solução”, mas umquímicoconseguiriacristalizá-losenecessário.PackerinsistecomacertoqueaTrindadeestava“emsolução”naBíblia,e tudooqueaigrejaprimitivafezfoicristalizá-la.Packer;Nystrom,Praying:findingourway,p.23-4.

3Quando Deus anunciou que faria seu nome “habitar” no tabernáculo (Dt12.5,11; cf. 1Re 8.16,29), quis dizer que ele próprio viveria ali. Quando osalmista diz que seu “nome [de Deus] está perto”, quer dizer que Deus empessoa está perto (Sl 75.1). E toda vez que um ser humano passou portransformaçãoprofundadecaráterounaturezanaBíblia,teveonomemudado:deAbrãoparaAbraão,deSimãoparaPedro,deSauloparaPaulo.NaBíblia,seunomeésuanatureza.Portanto,quandoJesusdizquePai,FilhoeEspíritoSantotêmumnomeúnico,onomedivino,estádizendoqueemborasejamtrêspessoas,sãoumsóserecompartilhamumanatureza.

4R.T.France,TheGospelofMatthew,NewInternationalCommentaryontheNewTestament(GrandRapids:Eerdmans,2007).Eleacrescenta:“Ofatodeastrês pessoas divinas serem citadas como tendo um ‘nome’ único é indicativoimportantedadoutrinatrinitáriadastrêspessoasemumDeus”(p.1118).

5VejaoWestminsterlargercatechism,questões9e10[ediçãoemportuguês:Ocatecismo maior de Westminster (São Paulo: Cultura Cristã, 2013)]. “Q. 9.QuantaspessoasexistemnaDivindade?R.HátrêspessoasnaDivindade:oPai,oFilhoeoEspíritoSanto.EssastrêspessoassãoumDeusverdadeiroeeterno,idênticas em substância, iguais em poder e glória, embora distintas por suaspropriedades pessoais. Q. 10. Quais são as propriedades pessoais das trêspessoasdaDivindade?R.ÉprópriodoPaigeraroFilho,edoFilhosergeradodoPai,edoEspíritoSantoprocederdoPaiedoFilhodesdetodaaeternidade.”IssoresumeadoutrinadaTrindade:(1)háumDeusexistenteemtrêspessoas,e(2)essaspessoassãoiguaisempoder,divindadeeglória.Astrêsnãosãoapenasmodos diferentes da mesma pessoa, tampouco são intercambiáveis. Elas seconhecem,amam-seetrabalhamjuntaspelacriaçãoeredençãodomundo—emqueoPaienviaoFilho,eoPaieoFilhoenviamoEspírito.Nesse ponto todos os ramos do cristianismo — ortodoxo, católico e

protestante—concordam.SevocênãocrênaTrindade,nãoapenasentendemalaoraçãocomodistorceporcompletoocristianismoapontodedeformá-loeeledeixarde seroqueé.Negar (1)emumsentido, afirmandohaver sóumDeuscomumapessoa, issoéunitarismo.Negar(1)emoutrosentido,dizendohavertrês deuses em três pessoas, isso é politeísmo.Negar (2) dizendoqueDeus, oPai, é o Deus real e os outros dois são derivados, isso é subordinacionismo.Negar (3) declarando haver um sóDeus,mas que habita diferentes formas ouformatosemdiferentesmomentos,issoémodalismo.Nadadissoétrinitarismo.HáumDeusemtrêspessoasigualmentedivinas,queseconhecem,seamametrabalhamjuntasemequipeparacriareredimiromundo.Aigrejacristãinteira,aolongodetodososséculos,sempredeclarouseressaaverdade.Semisso,seuentendimentodetudoomaisdesanda.Valenotarque,emboradiversasanalogiaspossamserutilizadaspara ilustrar

determinadosaspectosdaTrindade,qualqueranalogiaquesejatomadadeformaúnica e exclusiva pende demais para um aspecto (unicidade ou trindade,igualdadeoudiversidade).Entreasanalogiasmaiscomunsestãoadocubocomsua altura, largura e profundidade; a do sol com sua fonte, calor e luz; asanalogias sociais—emqueDeuséuma famíliaoucomunidade;ouanalogiaspsicológicas, tais como a do amado, o ser que ele ama e o amor com que oamado ama o ser. Veja os esforços de Agostinho para encontrar imagens daTrindadenamentehumananoLivro9daobraDeTrinitate.Pormaisfascinantese esclarecedoras que sejam, quaisquer analogias adotadas com exclusividadelevamopensamentonadireçãodeumadasheresiasmencionadasacima.

6Paul Ramsey, org.,Ethical writings: theworks of Jonathan Edwards (NewHaven:YaleUniversityPress,1989),vol.8,p.403-536.

7William G. T. Shedd, “Introductory essay” à obra On the Trinity, deAgostinho,in:PhilipSchaff,org.,AselectlibraryoftheNiceneandpost-Nicenefathersof theChristianchurch (GrandRapids:Eerdmans,1979),vol.3,p.14.“AquiestáasociedadenaEssênciaecompletamenteindependentedouniverso;eacomunhãoeabem-aventurançaresultantesdisso.Masissoéimpossívelparauma essência sem distinções pessoais. O que explica isso não é a unidadesingulardodeísta,masaunidadepluraldotrinitário.Umsujeitosemobjetonãopoderia conhecer.O que há para ser conhecido?Não poderia amar.O que háparaseramado?Nãopoderiaseregozijar.Emquepoderiahaverregozijo?Eoobjetonãopodeserouniverso.Oobjetoinfinitoeeternodoconhecimento,doamoredaalegria infinitoseeternosdeDeusnãopodesersuacriação:porqueelanãoéeternaneminfinita.Houveumtempoemqueouniversonãoexistia;ese a consciência de si mesmo e a bem-aventurança do Senhor dependem doUniverso,houveum tempoemqueDeusnão tinhaconsciênciade si,nemerabendito”(p.14-5).

8Esse fato— de que a metáfora da adoção combina o aspecto jurídico dasalvação(comooperdãoeajustificação)comorelacional(comoaregeneraçãoe a santificação)—significa que a doutrinabíblica da adoçãovem recebendomuitaatençãonosestudosteológicosdehoje.VejaJ.ToddBillings,“Salvationas adoption in Christ: an antidote to today’s distant yet convenient deity”, in:Union with Christ: reframing theology and ministry for the church (GrandRapids: Baker Academic, 2011), p. 15-34. Billings vê a doutrina da adoçãocomoumantídotopoderosoao“deísmomoralistaterapêutico”(assimchamadoporChristianSmith)dosjovensadultosamericanos.OtermorepresentaacrençaemumDeusprocuradoapenasparaemergênciaseque,emoutrascircunstâncias,não faz nenhuma exigência. Veja também Michael S. Horton, “Adoption:forensicandrelational,judicialandtransformative”,in:Covenantandsalvation:unionwithChrist (Louisville:Westminster JohnKnox Press, 2007), p. 244-7.ComosugereosubtítulodeHorton,adoutrinadaadoçãoemCristoforneceaosprotestantesumarespostaparaaacusaçãodequesuacrençanaplenaaceitaçãoem termos jurídicos — a justificação somente pela fé isolada de qualquertransformaçãointeriorouméritopessoal—incentiva-osanãofazeremnenhumamudança ou esforço para levar uma vida santa e justa. A adoção une ojurídico/legal e o relacional/transformativo.A criança adotada tem, aomesmotempo,acondiçãojurídicatransformadaeospadrõesdevidaerelacionamentos

radicalmente alterados. As duas coisas andam juntas de forma intrínseca.Qualquer um, justificado de verdade pela fé emCristo à parte de boas obras,necessariamenteproduziráboasobras.OconceitodeadoçãonosimpededeoporaspectosdanossasalvaçãoemCristounsaosoutros.

9A citação é de uma transmissão radiofônica de J. GreshamMachen, “Theactive obedience of Christ”, do começo do século 20. Segue o trecho inteiro:“[A]aliançadasobrasfoiumperíododeexperiência.SeAdãoguardassealeideDeus por um certo período, receberia a vida eterna. Se desobedecesse, teria amorte. Bem, ele desobedeceu e o castigo, amorte, foi infligido a ele e a suaposteridade.Depoisdisso,Cristo,porsuamortenacruz,pagouopreço[...]masse isso fosse tudooqueCristo fezpornós, vocênão entendequedeveríamosvoltaràsituaçãoexataemqueAdãoestavaantesdepecar?ApenalidadeporseupecadoteriasidoafastadadenósporquefoitodapagaporCristo.Paraofuturo,noentanto,aobtençãodavidaeternadependeriadenossaobediênciaperfeitaàleideDeus.Simplesmentevoltaríamosaoperíododeexperiência.Naverdade,[Cristo] não só pagou o preço do primeiro pecado de Adão (e o preço dospecadosquetemos,cadaumdenós,cometido),mastambémfez juspornósàvidaeterna.Emoutraspalavras,foinossorepresentantetantonopagamentodopreço quanto no período de experiência. Pagou o preço [da experiênciafracassada]pornósesustentouaexperiênciapornós.[...][Cristonãosótomoupara si o castigo, comsuamorte],mas também fezpormerecer, embenefíciodaspessoas, a recompensapor suaobediênciaperfeitaà leidivina. [...]Foramessasasduascoisasqueele fezpornós”.Pode-seencontrar esse trechoemJ.GreshamMachen,Godtranscendent(Carlisle:BannerofTruth,1982),p.187-8.

10Vejao sermãodeEdwards“Justificationby faith alone”, in:M.X.Lesser,org., The works of Jonathan Edwards (New Haven: Yale University Press,2001),vol.19:Sermonsanddiscourses,1734-1738,p.204.

11C.E.B.Cranfield,AcriticalandexegeticalcommentaryontheEpistletotheRomans (Edinburgh: T. & T. Clark, 1975), vol. 1, p. 400. No artigo bastanteconhecido“Abbaisn’t‘Daddy’”,TheJournalofTheologicalStudies39(1988),p. 28-47, JamesBarr tenta corrigir a ênfasede Joachim Jeremias e outrosquesalientaram que abba queria dizer “paizinho” e seria um termo de supremafamiliaridade.Barrexplicaqueapalavraabbanãoerausadaapenasporcriançaspequenas,mas também por filhos de judeus depois de crescidos. Havia outrotermogrego—papas—usadosóporcriançasedepoisdescartado,oqualseria,portanto, equivalente a “papai” ou “paizinho”.A ideia defendida porBarr eraquenãoseriaapropriadosedirigiraoDeustodo-poderosoemoraçãotratando-o

por “paizinho”. Todavia, a ideia de Barr também pode ser um exagero. Namaioriadasculturas,osfilhos—emespecialdosexomasculino—tendem,sim,adescartarostermosinfantis(e.g.,de“paizinho”para“Pai”).Todavia,quandoum adulto continua a chamar os pais de mamãe ou papai, mistura respeito àvelhaintimidade,deleiteeacessodequedesfrutavaquandocriançapequena.

12Cranfield,Criticalandexegeticalcommentary,p.400.13MartinLuther,“Personalprayerbook”,in:GustavK.Wiencke,org.,Luther’s

works:devotionalwritingsII(Minneapolis:FortressPress,1968),vol.43,p.29.14Alguns comentaristas argumentam que os gemidos aqui são apenas do

Espírito, não nossos. Portanto, ignoramos-lhes a existência por completo.ElessobemaDeus ao ladodenossas petições.A intercessãodoEspírito, portanto,ergue-seotempotodoeaconteceseparadadenósedasnossasorações(entreoscomentaristasdeRomanos8.26,27queadotamessavisãoestãoDouglasJ.MooeJosephA.Fitzmyer).Outroscreemque,apesardeosentidogramaticaleestritosermesmodequeosgemidospertencemaoEspírito,aideiacentraldapromessaéquenossentimosfracosenãosabemoscomoorar,eoEspíritonosajudanessesentido.Afinaldecontas,Deusé“aquelequesondaocoração”(Rm8.27),eissoquerdizerqueele estáolhandoparadentrodocoraçãodoscrentes.Assim,osgemidos do Espírito são os gemidos e anseios dos crentes pela conformidadecomavontadedeDeus,masoriginadosdoEspíritoSanto.ComentaristascomoJohnMurray,PeterO’Brien,JohnStotteThomasSchreineradotamestavisão.VejaSchreiner,Romans,BakerExegetical,p.445-7.

15“Em vista disso, não sabemos por que coisas orar, como deveríamos, nastribulações”,carta130deAgostinho,in:Schaff,Niceneandpost-Nicenefathers,p.1011.

16Clowney,“Biblicaltheology”,p.170.17GraemeGoldsworthy,Prayer and the knowledge ofGod (DownersGrove:

InterVarsity,2003),p.169-70.18JohnMurray,TheEpistletotheRomans(GrandRapids:Eerdmans,1968),p.

330.19VejaNicomacheanethics,BookVIII.7,traduçãoparaoinglêsdeW.D.Ross

(Digireads,2005)[ediçãoemportuguês:ÉticaaNicômacos(Brasília:Ed.UNB,1985)].

20EssaéaexplicaçãodeD.A.CarsonemTheGospelaccordingtoJohn,PillarNewTestamentCommentarySeries(GrandRapids:Eerdmans,1991),p.496-7.

21McNeill, Calvin: Institutes, 3.2.36., p. 585 [edições em português: JoãoCalvino,As institutas, tradução deWaldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura

Cristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de CarlosEduardoOliveira;JoséCarlosEstêvão(SãoPaulo:Ed.Unesp,2008)].

22McNeill,Calvin:Institutes,1.2.1.,p.41.23McNeill,Calvin:Institutes,1.2.2.,p.43.24Claro, muitas coisas que fazemos agora, como orar e louvar, podem ser

chamadasde“sacrifícioagradável”aDeus(Hb13.15,16),masdeixaramdeserum sacrifício apaziguador. Em Hebreus 13, a oração cristã é descrita comoofertadeagradecimentoporumasalvaçãojáasseguradaporCristo.Nosentindoneotestamentário, a oração não é um sacrifício expiatório ou apaziguador quedesvieairadeDeusouquebusqueemereçaaatençãoeofavordesseDeus.

25Tradução minha. Para uma versão literal, consulte a versão da NewAmericanStandardBible:“Poismeupaieminhamãemeabandonaram,masoSENHORmeacolherá”.

26McNeill,Calvin:Institutes,3.20.,p.850.

TERCEIRAPARTER

Aprendendoaorar

A

SEIS

Cartassobreaoração

prendemos que a oração é a continuação de uma conversa iniciada porDeus.Elea iniciouaocolocaroconhecimentode simesmoem todo ser

humano,aofalarpelosprofetaseemsuaPalavraescrita,eprincipalmenteaonoschamar para simesmo pormeio do Espírito Santo enviado ao nosso coração.Tambémexploramosoquepoderiaserchamadodeteologiadaoração.OcaráterdaoraçãoédeterminadopelocaráterdoDeusquedesejamosalcançar.ODeusaquemoscristãosoramétriúno.PodemosorarporqueDeusénossoPaiamoroso,porque Cristo é o mediador que nos concede acesso ao trono do universo eporqueopróprioEspíritoSantohabitaemnós.Deagoraemdiante,tentaremosresponderaperguntaspráticas.Comoedificar

combasenesse fundamento?EmDeusenoevangelho,encontramosas fontesespirituaisparaaoração,mascomooramosdefato?Voltamo-nosprimeiroa trêsdosmaioresmestresnahistóriada igrejacristã:

Agostinho,MartinhoLuteroeJoãoCalvino.Embora todoseles tenhamescritoextensamentesobreaoraçãoemmuitoslugares,cadaumdelestambémproduziuumclássicoatemporal—trêsobras-primas—sobreoassunto.TantoAgostinhoquanto Lutero redigiram uma carta pessoal a um conhecido sobre como orar,enquantoCalvinoincluiuumtratadomagistralsobreaoraçãoemseuresumodedoutrina, a Institutes.1 Neste e nos próximos capítulos nós os ouviremos eaprenderemosdeles.

OqueAgostinhodissesobreaoração

Anícia Faltônia Proba (falecida em 432 a.D.) foi uma nobre romana queprofessavaafécristã.TeveahonradeconhecerAgostinho,omaiorteólogodoprimeiro milênio da história cristã, bem como João Crisóstomo, o maiorpregadordaépoca.HáduascartasdeAgostinhoendereçadasaela,eaprimeira(Carta 130) é o únicomaterial escrito por ele totalmente dedicado ao temadaoração. Anícia escrevera a Agostinho porque temia não estar orando comodeveria.Agostinhorespondeu-lhecomumensaiobreveeprático.2

OprimeiroprincípiodeAgostinhoéque,antesdesaberporqueassuntosorare como fazê-lo, você deve se tornar um tipo peculiar de pessoa. “Precisa seconsiderar ‘desolado’ nestemundo, pormaior que seja a prosperidadeque lhecaiba”.Asescamasdevem tercaídodosseusolhosevocêdeveenxergarcomclareza que pormais excelentes que se tornem as circunstâncias terrenas, elasjamais poderão lhe trazer a paz duradoura, a felicidade e a consolaçãoencontradasemCristo.Amenosquetenhaessavisãoclara,suasoraçõespodemserequivocadas.Aqui,denovo,aplicadoàoração,estáumdosprincipaistemasdateologiade

Agostinho. Precisamos entender que os afetos do nosso coração estão“desordenados”,ouseja,foradeordem.Oquedeveríamosamaremterceiroouquartolugarocupaoprimeirolugaremnossocoração.Deus,aquemdeveríamosamaracimadetudo,éalguémquetalvezconheçamos,mascujofavorepresençanão são, da perspectiva existencial, tão importantes para nós quanto aprosperidade,osucesso,ostatus,oamoreoprazer.Senãoreconhecermospelomenosessadesordemdocoraçãoenãopercebermosoquantoelanosdistorceavida,nossasoraçõesserãopartedoproblema,nãoumagentedanossacura.Porexemplo,seolharmosparanossaprosperidadefinanceiracomoafonteprincipalde segurança e confiança na vida, quando nossa riqueza correr grave risco,clamaremos a Deus pedindo ajuda, mas nossas orações não passarão de“preocupaçãovoltadanadireçãodeDeus”.Aofimdasorações,estaremosmaisaborrecidoseansiososdoqueantes.Aoraçãonãonos traráforças.Nãosararánosso coração pela reorientação da nossa visão, não nos ajudará a colocar as

coisas em perspectiva nem nos levará a descansar em Deus como nossaverdadeirasegurança.E Agostinho continua. Se resolveu esse problema — se você entendeu o

caráterdoprópriocoraçãoereconheceusuadesolaçãolongedeCristo—então,segundoAgostinho,vocêpodecomeçaraorar.Eporqueassuntosquedeveriaorar? Com um pequeno sorriso (acho eu), ele responde que deveria orar poraquiloquetodosoram:“Oreporumavidafeliz”.Masoquelhetraráessavidafeliz? Se acatou o primeiro princípio da oração que Agostinho ensina, jápercebeu que comodidades, recompensas e prazeres em si mesmos sóproporcionamumentusiasmopassageiroeque,sedepositarnelesocoração,eleslhe trarão uma felicidade passageira. Agostinho se volta para Salmos 27.4 eaponta para a grande oração do salmista: “Uma coisa desejo doSENHOR, umacoisabuscarei:queeupossamorarnacasadoSENHORparacontemplarabelezadoSENHOR”.Essa é a oração fundamental por uma vida feliz que brota da mente que o

Espírito purificou de ilusões. Agostinho escreve: “Amamos a Deus, portanto,pelo que ele é em simesmo, e [amamos] a nósmesmos e nosso próximo porcausa dele”. Isso não quer dizer, acrescenta rapidamente, que não deveríamosorarpormaisnadaquenãosejaconhecer,amareagradaraDeus.Emabsoluto.AOraçãodoSenhornosmostraquenecessitamosdemuitascoisas.Contudo,sefizermos deDeus nossomaior amor, e se conhecê-lo e agradá-lo for o nossomaiorprazer, isso transformará tantoomotivopeloqual oramosquanto comooramosporumavidafeliz.Em seguida, Agostinho cita Provérbios 30.7-9 como exemplo: “Nãome dê

nempobrezanemriquezas:alimente-menaquantidadeapropriadaparaqueeunãomefarteeonegue[...]ouparaquenãoempobreçaeroubeetomeonomedo meu Deus em vão”. Esse é um excelente teste. Considere a petição “ÓSenhor,dá-meumempregoparaqueeunãofiquepobre”.Umpedidoadequadoparaapresentar aDeus.Aliás,no fundoéomesmoqueorar “Opãonossodecada dia nos dá hoje”. No entanto, a oração de Provérbios 30 revela a únicamotivaçãoapropriadaportrásdopedido.Sevocêsepuseraorarsimplesmente,semreconheceranaturezadesordenadadosafetosdocoração,aintençãodasua

oração será: “Faça-me o mais rico possível”. A oração de Provérbios 30 édiferente. Consiste em pedir: “Senhor, supreminhas necessidadesmateriais, edá-meriqueza,sim,masapenasàmedidaquetenhocondiçõesdelidarcomela,semqueprejudiqueminhacapacidadedecolocá-loemprimeiro lugarnavida.Porque,nofim,nãoprecisodestatusnemdeconforto—precisodeticomomeuSenhor”.Imagine ummenino de oito anos brincando comum caminhãozinho que de

repente sequebra.Desconsolado, elechora,pedindoaospaisqueconsertemobrinquedo.Enquantoelechora,noentanto,opai lhediz:“Umparentedistantequevocênuncaconheceuacabadefaleceredeixoucemmilhõesdedólaresparavocê”. Qual será a reação da criança? Chorará ainda mais alto até que seucaminhão seja consertado. Ele não dispõe de capacidade cognitiva suficienteparareconhecersuarealcondiçãoesesentirconsolado.Damesmaforma,aoscristãos falta a capacidade espiritual de perceber tudo o que temos em Jesus.EsseéomotivopeloqualPaulooraparaqueDeusdêaoscristãosacapacidadeespiritualdecompreenderaaltura,aprofundidade,alarguraeocomprimentodasalvação de Cristo (Ef 3.16-19; Ef 1.17,18). Em geral, nossa falta de alegriacorresponde ao que Shakespeare escreveu: “A culpa, caro Brutus, não é dasestrelas, mas de nós mesmos” (Júlio César, ato 1, cena 2). Somos como omenino de oito anos que coloca a felicidade em suas “estrelas” — nascircunstânciasdasuavida—emvezdereconheceroquetemosemCristo.Porisso, na Oração do Senhor, não chegamos a suplicar pelo pão e pelasnecessidadesdiáriassemantespassarmostempolembrando-nosdagrandezadeDeus e reacendendo nosso amor por ele. Só então podemos orar corretamenteporfelicidadeepornossasnecessidades.A terceira instrução de Agostinho é tanto abrangente quanto prática, e já

fizemos menção a ela. Depois de aprender a orar com plena consciência dadesordem dos afetos em seu coração e de onde se encontram as verdadeirasalegrias, diz ele, vocêpode ser conduzidopelasparticularidadesde comoorarestudandoaOraçãodoSenhor.Vejatodosostiposdeoraçãoqueelacontém—adoração, petição, ação de graças, confissão. Veja a ordem e a forma daspetições. Reflita muito e sem pressa sobre esse grande modelo de oração e

certifique-se de que suas súplicas se enquadram nele. Agostinho escreve, porexemplo:Aquele que diz na oração [...] “Dá-me tanta riqueza quanto deste a este ouàquelehomem”ou“Aumentaminhadistinção;torna-meeminenteempoderefamanomundo”, equemsuplicapelo simplesdesejodessascoisas, enãoafimde,pormeiodelas,beneficiarhomensconformeavontadedeDeus,nãocreio que encontrará parte alguma daOração do Senhor que tenha conexãocomissoenaqualpossaencaixar taissolicitações.Portanto,envergonhemo-nosdepediressascoisas.3

O quarto princípio de Agostinho trata da oração em tempos sombrios. Ele

reconhece que,mesmo depois de seguir as três primeiras regras, “[ainda] nãosabemosorarcomodevemosemrelaçãoàstribulações”.Mesmooscristãosmaispiedososnãoconseguemtercertezadoquepedirquandoestãoemaranhadosemdificuldades e sofrimento. “As tribulações [...] podem nos fazer bem [...], noentanto,porseremdifíceisedolorosas[...],oramos[...]paraquesejamafastadasdenós.”Deveríamosorar,então,pelaalteraçãodascircunstânciasouapenasporforça para suportá-las? Agostinho aponta para a oração do próprio Jesus noGetsêmani,emperfeitoequilíbrioentreodesejosincero—“afastademimestecálice”—easubmissãoaDeus—“noentanto,nãoaminhavontade,massimatuasejafeita”(Lc22.42).ApontaaindaparaRomanos8.26,comapromessadequeoEspíritoguiaránossoscoraçõeseoraçõesquandoestivermosgemendoeconfusos— e que Deus as ouvirá mesmo sendo imperfeitas. Assim, concluiAgostinho,derrameodesejodo seucoração,mas lembre-seda sabedoriaedabondadedeDeusaofazê-lo.Anícia Proba foi uma viúva de trinta e poucos anos que estava presente

quandoRoma foi saqueada em 410.A fim de se salvar, precisou fugir com aneta,Demétrias,paraaÁfrica,ondeambasconheceramAgostinho.Avidaqueelaconheciaviraradecabeçaparabaixoe,tantoquantosabemosaseurespeitopormeiodo registrohistórico,Anícianuncamaisdesfrutoudavida seguradeantes.Agostinho,noentanto,argumentaquepodemoscresceremoraçãonãosó

apesar das dificuldades, mas graças a elas. Ele conclui a carta indagando àamiga: “Ora, o que torna esse empreendimento [a oração] adequadoespecialmenteparaviúvas senão suacondiçãoenlutadaedesolada?”.Aviúva,perguntaele,“nãodeveriaconfiarsuaviuvez,porassimdizer,aDeuscomoseuescudo em oração contínua e fervorosa?”. Que declaração notável! Ossofrimentos dela lhe serviam de “escudo” — defendiam-na das ilusões daautossuficiênciaedacegueiraqueendureceocoração,eabriamocaminhoparaavidadeoraçãoricaefervorosa,capazdetrazerpazemqualquercircunstância.Eleaconvidaaaceitarsuasituaçãoeaprenderaorar.Hátodososmotivosparacrerqueelaaceitouoconvite.4

O“modosimplesdeorar”deMartinhoLutero

AobramaisfamosadeMartinhoLuterosobreaoraçãotambémsegueaformadecartaaumamigo.OpróprioLuterofoiumextraordináriohomemdeoração.Veit Dietrich, um de seus amigos, escreveu: “Não há um dia em que ele nãodediqueaomenostrêshoras,justoasmaisadequadaspara[trabalhar],àoração.Certavez tive a fortunadeouvir suaoraçãopor acaso.BomDeus,que fé emsuaspalavras!Ele falacomagrande reverênciadealguémquesedirigeaseuDeus,ecomaconfiançaeesperançadealguémquefalacomopaieamigo”.5

PeterBeskendorferaobarbeiroqueatendiaLuteroelhecortavaocabelo.Umdia,elepediuaLuteroquelhemostrasseummodosimplesdeorar.Obarbeiroeraumhomemdevoto,emborativesseláseusdefeitos.Certavezembriagou-seduranteumarefeiçãoemfamíliaedesferiuumgolpemortalde facanogenro.EmpartegraçasàintervençãodeLutero,Peterfoiexiladoenãoexecutado,masseusúltimosanosforamdifíceis.Contudo,levouconsigoumdosgrandestextosdetodaahistóriacristãsobreotemadaoração.Luterolhedeuumconjuntorico,masbempráticodeorientaçõessobrecomoorar.Já de início, aconselha a cultivar a oração como um hábito, por meio de

disciplina regular. Propõe que se ore duas vezes por dia. “É uma boa coisapermitir que a oração seja a primeira tarefa da manhã e a última da noite.Guardem-se contra as ideias falsas e enganosas que lhes dizem ‘Esperarei só

mais um pouco. Orarei dentro de uma hora; primeiro devo cuidar disso oudaquilo’.”6Luteronãoénenhumromântico.Eleconclui:“Recebemosaordemdeorartãoestritaesolenequantoasoutras[...]denãomatar,nãoroubaretc”.7

Devemosorarquersintamosvontade,quernão.Emseguida,elepropõemaneirasdeconcentraropensamento,animarecativar

nossos afetos para a oração.Trata-se de umaverdade que equilibra a ideia daoraçãocomodever.Sim,devemosorarindependentementedossentimentos;noentanto,devemosfazertodoopossívelparacativareanimarnossocoração,poisoraréelevarocoraçãoaDeus(Lm3.41).8Éerrada,escreveLutero,aideiadequeoscrentes têmdeser“friosesemalegrianaoração”.Por isso,elepropõeumpreparopara a oração.Aconselha fazer o que chamade “recitaçãopara simesmo” de algum trecho dasEscrituras, como “osDezMandamentos [ou] aspalavras de Cristo etc.”.9 Essa declamação é uma forma de meditação (ou“contemplação”, como chama Lutero) das Escrituras, mas não um simplesestudobíblico.ÉpegarpalavrasdasEscriturasemeditarnelasdetalmodoqueseuspensamentos e sentimentos convirjamparaDeus.Pormeiodessaprática,diz ele, “Quero que seu coração seja estimulado e guiado [...] corretamenteanimado e inclinado para a oração”. Essa meditação na Palavra é então umaespécie de ponte, já que você passa do estudo mais formal da Bíblia para aoração.10

Apráticadameditação

Depois de recomendar a meditação, Lutero descreve como praticá-la. Usa ametáfora de uma guirlanda. “Divido cada mandamento [bíblico] em quatropartes, formando uma guirlanda de quatro cordões. Primeiro considero cadamandamentoumainstrução,aquiloquedefatosepretendequeeleseja,emeditocomgrandezelonoqueoSenhorDeusrequerdemim.Segundo,converto-oemumaaçãodegraças;terceiro,emumaconfissão;equarto,emoração.”11Dessemodo, todo texto bíblico se transforma em “um manual escolar, um livro decânticos,umlivrodepenitênciaseumlivrodeoração”.Comoissofunciona?

Primeiro,precisamosdiscernir a “instrução”dedeterminado textodaBíblia.Significa que precisamos destilar-lhe o conteúdo essencial, o que a passagemquer que acreditemos ou façamos. Essa é a obra de interpretar a passagembíblica. Lutero diz que essa é a parte do “manual escolar” da meditação. Éevidente que isso pode levar poucos segundos se você tiver estudado o textoantes e compreendido o ensinamento do versículo. Nesse caso, é possível selimitararesumi-loeausaroresumoduranteorestodameditação.Contudo,senão compreender o texto, não terá como meditar nele de verdade. Se estivermeditandonosDezMandamentos,porexemplo,edepararcomosegundosemestarcertodoquesignifica“tomaronomedeDeusemvão”,precisaráestudaroassuntoeresolveroproblemaemsuamenteantesderesumirotextoemeditarnele.Uma vez extraída a “instrução” do texto—que expressa o ensinamento do

texto em poucas palavras — perguntamos então como esse ensinamento nosdirige a louvar e agradecer a Deus, como nos conduz ao arrependimento e àconfissãodepecadoecomonoslevaaapelaraDeusempetiçãoesúplica.Porexemplo, se ponderarmos no início da Oração do Senhor— “Pai nosso”—poderia ser assim: como instrução, o texto nos mostra que não podemosconheceraDeussóporesforçopróprio,masquedevemosfazê-loemcomunhãocom outros. Jesus não nos ensina a orar “pai meu”, mas “pai nosso”.Prosseguimos louvando aDeus por todos os amigos que nos têm ajudado emnossajornadaespiritual,eporeleserumDeusquecriacomunidadeelaçosdeamor.Podemosseguiremfrenteeconfessarquenãooramosmuitocomoutraspessoasenãopermitimosquenossosamigosnoscobremconsistênciaemnossacaminhada cristã. Por fim, podemos começar a orar pormais amigos íntimoscom quem possamos compartilhar nossa caminhada de fé. Essas, claro, sãoapenas três de muitas implicações, aplicações e reflexões possíveis com basenessetexto.Lutero está nos ensinando a gerar um espectro de percepções pequeno,mas

rico,asquaispossamoselevaraDeusdeimediatonaformadeoração.Aquelesquetêmpraticadoadisciplinadameditaçãosabemqueàmedidaqueseavança,elacriaenergiaprópria.Comengenhosidade,elaoforçaasairdoplanoteórico

paraconsideraroqueaverdadebíblicasobreaqualestámeditandodeveriafazerefetivamenteavocêeemvocê—comodeveria levá-loa louvaraDeus, a searrepender e amudar seu coração, e tambémoque deveria levá-lo a fazer nomundo. Às vezes as percepções adquiridas são bastante impressionantes ecomoventes, e você se vê recorrendo à oração demaneira espontânea.Comotempo, essa prática meditativa será exercitada durante o dia, voltandonaturalmenteseucoraçãoparaDeus.Vocêpoderápercebermuitacoisadoqueouve,vêelê,oqueolevaráespontaneamenteasearrepender,alouvarearogara Deus. Isso o ajudará a desenvolver o hábito de incluir Deus em todas ascircunstâncias, amadurecendo-lhe os sentimentos e pensamentos, levantando-oquandoestiverdesanimadoequebrantando-oquandoforbem-sucedido.Luterodáexemplosbrevesmasbemcompletosdecomoelemeditava sobre

cadaumdosDezMandamentos.Aquiestáumexemplodeumameditaçãoemrelaçãoaoprimeirodeles:“EusouosenhorteuDeus”etc.“Nãoterásoutrosdeusesdiantedemim”etc.Aqui eu considero sinceramente que [...] meu coração não deve sefundamentar em mais nada, ou confiar em qualquer outra coisa, seja elariqueza, prestígio, sabedoria, poder, piedade, seja o que for. Segundo, dougraçasporsuacompaixãoinfinita,pelaqualeleveioamimdeumamaneiratãopaternale,semqueeupedisse,semqueconvidasseoufizessepormerecer,ofereceu-separa sermeuDeus,paracuidardemime sermeuconsolo,meuguardião,minhaajudaeminha forçaemcadamomentodenecessidade. [...]Terceiro,confesso[...] terprovocado,emumaatitude temerária,sua iracomincontáveis atos de idolatria.Arrependo-me deles e peço sua graça.Quarto,oro [...] para que preserve meu coração de modo que nunca mais sejanegligente e ingrato, a fimdeque eu jamaisprocureoutrosdeusesououtroconsolo na terra ou em qualquer criatura, mas me agarre de verdade eunicamenteati,meuúnicoDeus.12

ObservecomoLuterotrabalhaaverdadedotextoàmedidaqueelaafetaseu

relacionamentocomDeus,consigomesmoecomomundo.Asmeditaçõesque

eleregistrasãocombinaçõesdepensamentoracionaleexpressãopessoal.Nãosetratamprecisamentedeestudosbíblicos,tampoucodeoraçõesnosentidoestritodapalavra.SãofrutodareflexãonapresençadeDeus—meditação.Sãomodosde inclinar eprepararo coraçãopara aoraçãousandoamente emplenitudeetomandoasEscriturascomextremaseriedade—tudoaomesmotempo.

“Improvisações”espirituaissobreaOraçãodoSenhor

Apósameditação,lançamo-nosàoração?Poderíamosfazê-lo,sim,masLuterocompartilhamaisumexercícioqueelepraticaantesdeseentregaràoraçãolivrepelas coisas que lhe vão pelo coração. Ele sugere que, depois demeditar nasEscrituras,vocêoreseguindocadapetiçãodaOraçãodoSenhor,parafraseandoepersonalizandocadaumadelasusandoasprópriasnecessidadesepreocupações.Lutero dá um exemplo pessoal de como faria cada petição.As orações que

propõe são mais ou menos como refrões musicais improvisados— variaçõessobre um tema. “Dá-nos [...] o pão de cada dia”, diz ele, e imediatamenteacrescenta:“Confioatiminhacasaepropriedade,esposaefilho.Concedaqueeuconsigaadministrá-losbem,mantendo-oseeducando-os”.13Éinflexível,nãoquerendo que os leitores do seu ensaio não recitem as palavras exatas queescreveu,situaçãoemque“nãopassariamdetagareliceinútil,textolidodeumlivro”. Isso frustraria o propósito do exercício. De fato, Lutero diz que elepróprionãoparafraseariaaOraçãodoSenhordomesmomodonodiaseguinte.“Nãome atenho às palavras ou sílabas,mas façominhas orações de um jeitohoje,deoutroamanhã,dependendodomeuestadodeânimoedesentimento”.14

Ele insiste em que as pessoas, ao orar, devem personalizar cada seção,traduzindosuasnecessidadeseaspiraçõesnasprópriaspalavras.Ovalordesseexercícioémúltiplo.Eletratadeumadasgrandesdificuldades

práticas da oração — os pensamentos que desviam a atenção. Partimos daatitudedeplanejaralgoparaadecomeçaraoraredescobrimosquecontinuamospensandonessealgo.Aoraçãocomum,queouétotalmenteimprovisada,ousebaseiaemumalistadecoisasquenecessitamdeoração,emgeralnãoconsegueatrairporcompletoaatençãodamentedaquiloqueantesaocupava.Oexercício

deelaborarcombasenaOraçãodoSenhorexigetodaafaculdademental,oqueajudamuitocomaquestãodedartotalatençãoaDeus.Alémdisso,fazeraGrandeOraçãonosforçaausartodaalinguagemeformas

básicasdaoração.Seficasseanossocritério,éprovávelqueorássemosapenassobreos itensquemaisnosatormentamnomomento.Aspetições“santificadoseja o teu nome” e “venha o teu reino” levam-nos a orar pelo progresso doevangelhoemnossacomunidade,sociedadeerelacionamentos.“Sejafeitaatuavontade” nos constrange a aceitar aquilo que Deus tem permitido e que nosincomoda. “Perdoai as nossas dívidas” nos leva à lista dos nossos pecados efracassos mais recentes, enquanto “como temos perdoados nossos devedores”nos força a questionar nossos ressentimentos e rancores. Fazer a Oração doSenhornosobrigaaprocurarcoisaspelasquaisagradecere louvaraDeusnosperíodossombrios,enospressionaanosarrependermoseabuscarmosperdãoem temposdeprosperidadee sucesso.Disciplina-nosaapresentarcadaporçãodavidaaDeus.Por fim, fazer a Oração do Senhor, diferentemente de meditar sobre uma

passagemdasEscrituras,éorardefato.Édirigir-seaDeus—comaautoridadedaspalavrasdopróprioJesus.Trazousadiaeconsoloe,claro,animaocoraçãoapassar diretamente para uma oração mais fervorosa por nossas preocupaçõesmaisurgentes.Esseexercícionãoédaquelesqueconsomemmuitotempodeformaopressiva.

Costumalevardedoisatrêsminutosapenas,embora,comoveremosembreve,aoraçãopode“incendiar-se”edurarumtempobastantelongo.15

Para resumir esse item: Lutero afirma que deveríamos começar meditandosobreumtextoestudadoanteriormenteeentão,depoisdelouvareconfessardeacordocomoquemeditamos,deveríamosparafrasearaOraçãodoSenhordiantedeDeus.Porfim,deveríamosnadamais,nadamenosqueorardecoração.Esteexercíciocompleto,acrescentaele,deveriaserpraticadoduasvezespordia.

ApregaçãodoEspíritoSanto

Luterodámaisumconselho.Nãose tratademaisum“passo”oupráticaparaacompanharosanteriores,masdealgoasemanteremmenteaopassarportodoo processo de oração e meditação. Ele chama os crentes em oração para,essencialmente, terem sempre os olhos postos no Espírito Santo. Se, aomeditarmosouorarmos,“umaabundânciadebonspensamentosnossobrevier,devemosdesconsiderarasoutraspetições,abrirespaçoparaessespensamentos,ouviremsilêncioeemhipótesenenhumaobstruí-los.ÉopróprioEspíritoSantoquempregaaqui,eumapalavradoseusermãoémelhordoquemildasnossasorações.Muitas vezes aprendomais com uma oração do que aprenderia commuitaleituraeconjecturas”.16Esseprincípioéimportanteosuficienteparaserrepetido.Denovoeleescreve:“SenomeiodetaispensamentosoEspíritoSantocomeçarapregaraoseucoraçãocompensamentosricos,esclarecedores,honre-oabrindomãodoroteirotraçado.[...]Lembre-sedoqueelediz,observebemecontemplarácoisasmaravilhosasnaleideDeus”(Sl119.18).17

Oequilíbrioaquiédignodenotaeraroemoutrasobrassobreoração.LuteroesperaqueouçamosDeusfalarporintermédiodesuaPalavra.ElenãocometeomesmoerroqueGeorgeWhitefield,presumindoquesuasimpressõesinterioresfossem revelações de Deus. A comunicação de Deus acontece em suasEscrituras. Isso não significa, contudo, que a meditação seja mero exercíciomental.Eleesperaque,aorefletirmossobreaverdadebíblicadiantedeDeus,oEspírito às vezes encha nosso coração de pensamentos e ideias ricos que nospareçamincisivosenovos,mesmoquandoestivermospensandoemumtextoouemumaverdadequejáouvimoscentenasdevezes.Luteroestáfalandosobreosolhos do nosso coração serem iluminados (Ef 1.18) para que as coisas queconhecemoscomamentesetornemmaisenraizadasnoâmagodenossoser.Claro,eleacreditavaquetodaoraçãoanossoPaiéviabilizadapeloEspíritode

adoção,pelamediaçãodeJesus,oFilhoverdadeiro.Nenhumaoração,portanto,acontece sem a obra do Espírito. No entanto, Lutero aprendeu a ver que oEspíritopodeiluminardemodoespecialnossamenteeassegurarnossocoraçãodarealidadedivina,comoPaulosugereemtextoscomoRomanos5.5e8.15,16.ParafraseandoopequenotratadodeLutero:elenosdizparaedificarmosnosso

estudodasEscrituraspormeiodameditação,respondendoàPalavraemoração

aoSenhor.Aofazermosisso,devemosestarconscientesdequeoEspíritoSantopodecomeçara“pregar”paranós.Quandoissoacontecer,devemosabandonarnossasrotinaselhededicartodaatenção.

1AobradeCalvino, Institutes, émaisoumenosoquehoje chamaríamosdeteologia sistemática.Por isso, impressiona e confundeumpoucoo fatode atéautores de teologia sistemática segundo a tradição calvinista reformada nãodedicarem geralmente um capítulo à oração [edições em português: JoãoCalvino,As institutas, tradução deWaldyr Carvalho Luz (São Paulo: CulturaCristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de CarlosEduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)]. Umaexceção é Charles Hodge, teólogo de Princeton do século 19, cuja teologiasistemáticacontémumaseçãosubstancialsobreaoração,emespecialsobreasimplicaçõesdadoutrinacristãdeDeusparaaoraçãocristã.VejaCharlesHodge,Systematictheology(GrandRapids:Eerdmans,1965),vol.3,p.692-700[ediçãoemportuguês:Teologiasistemática(SãoPaulo:Hagnos,2001)].

2Schaff,Niceneandpost-Nicenefathers,p.997-1015.3Ibidem.4Veja mais no capítulo 8 sobre a exposição da Oração do Senhor por

Agostinho.5CitadoemMarkRogers,“‘DeliverusfromtheEvilOne’:MartinLutheron

prayer”,Themelios34,n.3(November,2009).6Luther,“Asimplewaytopray”,p.193[ediçõesemportuguês:Lutero,Como

orar (São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1999)]. Vale notar que,para Lutero, esse regime de duas orações ao dia tanto poderia acontecer emprivado, no quarto, como na igreja, com a congregação reunida. Escreve ele:“Quando sintoqueme tornei frio e semalegrianaoração [...] corroparameuquarto,ou, se fordiaehorapara isso,paraa igrejaondeháumacongregaçãoreunida” (p. 193). Isso é testemunho da importância da oração coletiva nateologia de Lutero. Não é sozinho, por meio de exercícios pessoais, quesubjugamosumcoraçãoduro,frio,quenãoora.AcasadeadoraçãodopovodeDeuseraumlugarondesepodiaouviraPalavradeDeussendopregada—nãoapenaslidaemprivado—eondearespostadeoraçãoelouvoreramcoletivos,nãoapenasindividual.

7MartinLuther,Luther’slargecatechism,traduçãoparaoinglêsdeF.SamuelJanzow (St. Louis: Concordia, 1978), p. 79 [edição em português: MartinhoLutero,Catecismomaior do dr.MartinhoLutero (SãoLeopoldo/PortoAlegre:Sinodal/Concórdia,s.d).

8Calvinotambémacreditavasercrucialcativarocoraçãoeamenteemoração,e, como Lutero, aconselha a fazê-lo com meditação disciplinada sobre osignificadodaPalavraeoqueestásendodito.Escreve:“Umenganoqueparece

menos sério, mas tampouco se pode considerar tolerável, é o de outros quemurmuramsuasoraçõessemmeditação,tendosidoimbuídosdesteprincípio—dequeDeusdeveserapaziguadopelasdevoções.Ora,ospiedososdevemteracautelaparticulardeseapresentaremdiantedeDeusparapedirqualquercoisasomente quando anseiem por essa coisa com afeição sincera do coração e, aomesmotempo,adesejemobterdele.Defato,emboranãoparecemos,àprimeiravista,estarprovendonossasnecessidadesnessascoisasquebuscamossomenteparaaglóriadeDeus,oadequadoéquesejambuscadascomnãomenosardoreansiedade.Quando,porexemplo,oramos“sejasantificadooteunome”(Mt6.9;Lc11.2),devemos,porassimdizer,terfomeesedeávidasporessasantificação(McNeill,Calvin:Institutes,3.20.6;p.857).

9Luther,“Asimplewaytopray”,p.194.10OúnicotemapropostoporLuteroparaessameditaçãoquenãoserestringe

àsEscrituraséoCredoApostólico, talvezporqueele estivessecompletamenteconvencidodequenãopassavadeumadestilaçãodaverdadebíblica.LuterodáexemplosdecomomeditarsobreoCredoem“Asimplewaytopray”,p.209-11.

11Ibidem,p.200.12Ibidem,p.200-1.13Ibidem,p.196-7.14Ibidem,p.198.15OconselhodeLuterosobrecomomeditaredepoisparafrasearepersonalizar

aOraçãodoSenhorpodeseraplicadoaqualquerpartedasEscrituras.OrarosSalmoseoutraspartesdaBíbliadiantedeDeuséumapráticacristãmuitoantigae testadapelo tempo,mas raras vezes ela tem sido esboçada e apresentadademodomaisacessíveldoqueLuterofazaqui.Em“Asimplewaytopray”,obradeLutero,hátambémumaaprovaçãoimplícitadarepetiçãodeoraçõesescritaspor outras pessoas para você. Enquanto alguns, como John Bunyan, eramcompletamente contra o uso de orações prontas, o Small catechism de Luterooferecealgumasoraçõesescritasaseremfeitasemfamíliaantesdesairparaotrabalhoeparaaescolademanhãeantesdeirparaacamaànoite[ediçãoemportuguês:Catecismomenor, 20. ed., versão popular (São Leopoldo: Sinodal,s.d.)].Calvinopropôsamesmacoisa.Luteronãotinhaproblemacomousodeorações escritas, desde que as personalizássemos ao repeti-las—do contrárionão seriam nada mais do que “tagarelice inútil”. Veja “Daily prayers”, in:Luther’ssmallcatechismwithexplanation(St.Louis:Concordia,1986),p.30-2.

16Luther,“Asimplewaytopray”,p.198.17Ibidem,p.201-2.

N

SETE

Regrasparaaoração

ossa terceira obra-prima sobre a oração se encontra nas Institutes of theChristian religion, de João Calvino. Talvez a parte mais notória do

tratamento dado ao tema por Calvino seja o que ele chama de “regras para aoração”.1

Otemorjubiloso

AprimeiraregradeCalvinoparaoraréoprincípiodareverênciaoudo“temorde Deus”. Calvino chama os cristãos a, antes de tudo, ter o devido senso daseriedadeedamagnitudedoqueéaoração.Elaéumaaudiênciaeumaconversapessoal comoDeus todo-poderoso do universo.Não há nada pior do que ser“destituído de reverência”.2 Em vez disso, devemos entrar em oração “de talmodocomovidospelamajestadedeDeus”quesomos“libertosdoscuidadosedas afeições terrenas”. Aqui, Calvino toca em um dos conceitos mais malcompreendidos e, no entanto, mais importantes da Bíblia — o “temor doSenhor”.TemeraDeusevidentementesignificatermedo,masmedodoquê?Eporquê?ÉnaturalpensarqueotemordoSenhorsignifiquetermedodequeelevános

castigar.Todavia, 1João4.18nosdizque “operfeito amor expulsaomedo”eacrescentaqueo tipodemedoqueeleexpulsa“temrelaçãocomcastigo”.EmRomanos8.1aprendemosquenãohácondenaçãoalgumaparaaquelesqueestãoem Cristo Jesus. Disso concluímos que o temor cristão de Deus não pode

significarquesentiremosotempotodomedodenosperdermosespiritualmentesenãovivermoscorretamente.Outrostextos,comoosurpreendenteversículo4dosalmo130,afirmamqueaexperiênciadoperdãonaverdadeaumentaotemordeDeus.Sendo assim, o que o cristão deveria temer em relação a Deus? Pense no

assunto do seguintemodo. Imagine que você de repente é apresentado a umapessoapor quem sempre nutriu enorme admiração— talvez alguémquevocêadmirecomoumherói.Vocêestendeamãoparaapertaramãodessapessoaedesúbito toma consciência da situação. Não consegue acreditar que a estáconhecendo de verdade. Descobre-se, para seu constrangimento, tremendo esuandomuito. Quando tenta falar, percebe que o fôlego lhe falta. O que estáacontecendo?Oproblemanãoéomedodesemachucarnemdesercastigado.Antes, você experimenta omedo genuíno de cometer alguma estupidez ou dedizeralgo inadequadoparaessapessoaeparaaocasião.Suaalegreadmiraçãotemumafacetademedo.Reverente,vocênãoquerestragartudo.Experimentamosessasensaçãoaténapresençadeumserhumanoadmirável.

Quãomais apropriada é essa reação diante de Deus. No clássico de KennethGrahame,Thewindinthewillows,háumcapítulo,“Oflautistanosportõesdaalvorada”, emqueos personagensToupeira eRato conhecema divindadedosanimais,odeusPã,eouvem-notocarsuaflauta.Ficamatônitos:—Rato—eleachoufôlegoparasussurrar,trêmulo.—Estácommedo?—Medo?—murmurouRato, os olhos brilhando de amor inexprimível.—Medo!Dele?Ó,jamais,jamais!E,noentanto—e,noentanto—ó,Toupeira,estoucommedo!3

Essa é a melhor tradução do conceito de “temor do Senhor” que conheço.

Poderíamos dizer que o medo da punição é um medo característico do servoltadoparasipróprio.Acontececompessoasfechadasdemaisemsimesmas.Naquelesquecreemnoevangelho—queacreditamseremrecebedoresdegraçaimerecida,mas inabalável—cresceum temorparadoxal,vistoqueamorosoerejubilante. Por causa do amor e da alegria inexprimíveis emDeus, trememos

anteoprivilégiodenoscolocarmosemsuapresençaeanteoanseiointensodehonrá-loquandoalinosencontramos.Sentimosprofundomedodeentristecê-lo.Emoutraspalavras:vocêsentiriamuitomedosealguémpusesseumvasoantigoebelodadinastiaMing,devalor incalculável,emsuasmãos.Nãotremeriademedo de que o vaso o machucasse, mas sim de você acabar por danificá-lo.Claro, realmente não podemos prejudicar a Deus, mas todo cristão deveriamanifestarintensapreocupaçãodenãoentristeceroudesonraraquelequeétãogloriosoequetantofezpornós.Calvinoafirmaqueessesensodereverênciaéumapartecrucialdaoração.Ela

tantoo requerquantooproduz.Opróprio fatode termosacessoàatençãoeàpresença de Deus deveria concentrar nossos pensamentos e elevar nossocoração.

Insuficiênciaespiritual

AsegundaregradeCalvinoparaaoraçãoé“osensodenecessidadequeexcluitoda irrealidade”.4 Ele aqui está se referindo ao que poderia ser chamado de“humildadeespiritual”.ElaincluiumfortesensodanossadependênciadeDeusemgeraleaprontidãodereconhecermosenosarrependermosdenossasfaltasemparticular.Calvinoadvertiucontraavisãocomummedieval(emoderna)dequeaoraçãoéummododenos revestir denossosmelhores trajes espirituais,como que para impressionar a Deus com nossa devoção. Ele rejeitacompletamenteaideiadequeDeuspossaser“apaziguadopordevoções”ouquedê ouvido a orações “em virtude de uma simples performance”.5 Na verdade,aquele que produzmuitos frutos em oração deve se achegar com uma atitudetotalmenteoposta.Devemosserimplacáveisemnossasinceridadecomrespeitoa nossas falhas e fraquezas, fazendo tudo o que estiver ao nosso alcance paraevitar a “irrealidade” de vestirmos nossa melhor máscara. Devemos nosaproximar de Deus sabendo que nossa única esperança está em sua graça eperdãoesermossincerosacercadenossasdúvidas,temoresevazio.PrecisamosnosapresentaraDeuscoma“disposiçãodeummendigo”.

Assimcomoochamadoparao“temordoSenhor”, essa regra tambémpodesoar desagradável aos ouvidosmodernos, mas não precisa ser assim. Calvinoestáapenasnosdizendoparadeixarmosdeladotodofingimento,parafugirmosde toda falsidade. O escritor Francis Spufford, usando linguagem muitocontemporânea, conclama à mesma coisa da forma que vemos a seguir. Aodiscutirnossacondiçãodepecadores,elediz:Estamosfalandoaquinãosódanossatendênciaavacilar,tropeçaremeterospéspelasmãossemquerer,nossopapelpassivocomoagentesdeentropia.Énossa propensão ativa a de quebrar coisas, incluindo [...] promessas,relacionamentoscomosquaisnosimportamosenossoprópriobem-estaredeoutros.[...][Vocêé]umsercujosanseiosnãofazemomenorsentido,nãoseharmonizam:cujosdesejosnofundosãodiscordantementedispostos,demodoquevocênaverdadequer ter enão ter aomesmo tempo.Percebeuqueestámaisequipadoparaafarsa(oumesmoa tragédia)doqueparafinais felizes.[...]Vocêéhumano,eéaíquevivemos;essaénossaexperiêncianormal.6

Atéchegarmosaoplenoreconhecimentodocaosdentrodenós,queaBíblia

chamadepecado,vivemosnoqueCalvinochamade“irrealidade”.Terapeutaslhedirãoqueosúnicosdefeitosdecarátercapazesdedestruí-lo realmente sãoaqueles que você não admitir. Portanto, a confissão e o arrependimento sãocruciaisparaaoraçãoverdadeira.Denovo,aoraçãotantorequerquantoproduzessahumildade.ElanosconduzàpresençadeDeus,emquenossosdefeitossãoexpostos. Então, a nova consciência da insuficiência leva-nos a buscar comintensidademuitomaioraDeusporperdãoeajuda.Calvinoescreve:“Aquelesque o buscarem de todo o coração o acharão” (Jr 29.13,14). [...] A oraçãolegítima,portanto,requerarrependimento”.7Sevocêforpresunçosoeculparaspessoasporseusproblemas,emvezdeassumiraresponsabilidadepeloquefazde errado, não estará buscando aDeus de todo o seu coração.A oração tantorequerquantoconcedepoderesparaabandonaraautojustificação,atransferênciadeculpa,aautocomiseraçãoeaarrogânciaespiritual.

Suavidadeoraçãosetornarámaisricaemaisprofundanamesmaproporçãoem que você conseguir tirar dos próprios ombros a “irrealidade” daautocomiseração.

Confiançaserena,mastambémfirmeesperança

A terceira e a quarta regra de oração de Calvino deveriam ser agrupadas econsideradasemconjunto.AterceiraéquedevemosterumaconfiançasubmissaemDeus.“QualquerpessoaquesecolocadiantedeDeusparaorar[...] [deve]abandonartodosensodeglóriaprópria.”8Devemosconfiarnelemesmoquandoascoisasnãoestiveremcaminhandocomogostaríamos.Essatambémeraa“lei”de Jesus para a oração, pois todos que oram devem dizer “Seja feita a tuavontade”. Um dos propósitos da oração é levar nosso coração a confiar nasabedoriadeDeus,nãonanossa.Significadizer:“Eisoqueeupreciso—masoSenhoréquemsabe”.Édeixartodasasnossasnecessidadesedesejosemsuasmãosdeumamaneiraque só épossível pormeiodaoração.Essa atitude trazconsoloedescansocomonadamaisconseguetrazer.Mas há ainda a quarta regra, também crucial e que deve ser seguida com a

terceira.Devemosorarcomconfiança e esperança.Calvino escreve: “[Apesarde]abatidosederrotadospelaverdadeirahumildade,devemosaindaassimnossentir encorajados a orar por uma firme esperança de que nossa oração serárespondida”.9 Ele reconhece de imediato que “essas de fato são coisas queparecemcontraditórias”.Entãoprossegueargumentandoporqueacontradiçãoéapenasaparente,nãoreal.SeavontadedeDeusésemprecertaeasubmissãoaelaétãoimportante,por

queorarpeloquequerquesejacomfervorefé?Calvinolistaasrazões.Deusnos convida a fazê-lo e promete responder as orações— porque ele é bom enosso Pai celestial amoroso.10 Além disso, Deus com frequência espera paraconcederumabênçãoatéquevocêoreporela.Porquê?Coisasboaspelasquaisnãopedimoscostumamserinterpretadaspornossocoraçãocomofrutodanossaprópria sabedoria e diligência.Dádivas deDeus que não reconhecemos como

taissãofataisparaaalma,poisintensificamailusãodeautossuficiênciaquelevaaoexcessodeconfiançaenosdestinaaofracasso.Porfim,Calvinoargumentaqueessasduasverdadesemequilíbrionãosónão

são contraditórias como são complementares. De um lado, sabemos que “nãorecebemosporquenãopedimos”(Tg4.2).HámuitasdádivasqueDeusnãonosdaráamenosqueohonremosetornemosnossocoraçãoseguropararecebê-laspormeiodaoração.Mas,poroutro lado,quepessoasponderadas, conscientesdos limites da própria sabedoria, ousariam orar se achassem que Deusinvariavelmentelhessatisfariaosdesejos?Umnúmerosemfimdehistóriasdegênios,lâmpadasedesejosilustraaverdadeconsideradajáquaseumclichêdeque nossos desejos são, como vimos, “discordantemente dispostos” e comfrequênciafatalmenteinsensatos.Contudo,nadaháatemer.Deusnãonosdaránadacontrárioasuavontade,eessavontadesempreincluioqueémelhorparanósemlongoprazo(Rm8.28).Podemos,portanto,orarcomconfiançaporqueele não nos dará tudo o que quisermos. “Ele ajusta o resultado dosacontecimentos de acordo com seu plano incompreensível de talmodo que asoraçõesdossantos,umamisturadeféeerro,nãosejamanuladas”.11

SeconsiderarmosaterceiraeaquartaregradeCalvinoemconjunto,veremosquecriamumenormeincentivoàoração.“Pedierecebereis”(Mt7.7,8)—peçacomféeesperança.Nãotenhamedodepedirpelacoisaerrada.Claroqueissoacontecerá!MasDeus“ajustaoresultado”comsuaincompreensívelsabedoria.Clame,peça, suplique—você receberámuitas respostas.Por fim,quandonãoreceber uma resposta ou quando a resposta não for a que você deseja, use aoraçãoparacapacitá-loadescansarnavontadedoSenhor.

Aregracontraasregras

Depoisdeapresentarsuasquatroregrasparaaoração,Calvinoacrescentouumaextensa“conclusão”, tãoimportantequeamaioriadosleitoresaentendecomoumaquintaregra.Essa quinta regra é na verdade uma importante limitação precisamente da

palavraregra.Dizele:“Oqueestabelecinasquatroregrasdaoraçãocorretanão

éexigidocomtantorigorapontodeDeusrejeitaraquelasoraçõesemquenãoencontrar nem fé nem arrependimento perfeitos, acompanhados de um zelofervorosoedepetiçõesconcebidascorretamente”.Emboraissopareçaumrecuo,nãoé.“Ninguémjamaispôsemprática [aoração]comacorreçãodevida. [...]Sem essa misericórdia não haveria liberdade para orar.”12 A quinta regra deCalvino é a regra da graça. Ele nos admoesta a não concluirmos que seguirqualquer conjunto de regras poderia tornar nossas orações dignas de seremouvidas.Nada que formulemos ou façamos pode nos qualificar a ter acesso aDeus.Sóagraçaécapazdisso—baseadanãoemnossodesempenho,masnaobraredentoradeCristo.Qualé,então,afunçãodas“regras”?Porqueaformadeorarmosimportaseé

tudopelagraça?Arespostaéqueaoraçãodevesermoldadapelagraçaeestarde acordo com ela. O temor jubiloso, o sentimento de impotência apesar daconfiança,tudoissosãoformasdenosaproximarmosdeDeuspossíveisapenasse nosso acesso não for merecido, mas recebido como dádiva. Só quandonotamos que não conseguimos seguir as regras e que necessitamos damisericórdiadeDeus,tornamo-nospessoasquecomeçamasegui-las.Asregrasnão fazempormerecer a atenção deDeus, antes alinhamnossas orações comquemDeusé—oDeusdagraçalivre—unindo-nos,dessemodo,aelecadavezmais.Eisumailustraçãoquetalveznosajudeapensarsobreoassunto.Quandovocê

aciona o interruptor de luz, a lâmpada se acende. O interruptor fornece forçaelétricaparaa lâmpada?Não—elaprovémdaeletricidade.O interruptornãotempoderalgumemsimesmo,apenasconectaalâmpadaàenergia.Damesmaforma,nossasoraçõesnãotêmnenhumavirtudedenosprovidenciaracessoaoPai. Cristo já fez isso. As orações que estiverem de acordo com um Deusgracioso,contudo,podemnosconectaraele.Seorarmossemhumildade—seorarmos com o coração cheio de impaciência exigente — nossa oração nossepararádele.Seorarmossemconfiançaouesperançadesermosouvidos, issotambémbloquearáqualquer sensodesuapresença.Essesdoiserros são falhasquecometemosaonãooraremnomedeJesus,aonosapresentardiantedeDeus

baseados em umamisericórdia imerecida. Calvino diz isso em uma passagemquedefiniuocaminhoparaacompreensãocristãdaoraçãoduranteséculos:Pois tão logo a temívelmajestade deDeus nos vem àmente, não podemosfazer senão tremer e sermos levados a nos afastar pelo reconhecimento denossa própria indignidade, atéCristo se apresentar como intermediário, paratransformarotronodeglóriaterrívelemtronodegraça.[...]“Atéagora”,dizele,“nadapedistesemmeunome;pedierecebereis”(Jo16.24)[...]ComodizPaulo:“TodasaspromessasdeDeusencontramneleseusimeamém”(2Co1.20).Ouseja,sãoconfirmadaseconsumadas.13

Oraremnomede Jesus,portanto,nãoéuma fórmulamágica.Nãodevemos

pensarquesignifiquequesósedissermosliteralmenteaspalavras“emnomedeJesus” as nossas orações serão respondidas. Como vimos, Deus pode ouvir eresponderasoraçõesdequalquerum,mesmodequemnãooracomféemJesus.Ele com frequência ouve e responde aos clamores do pobre oprimidomesmoquando ele ora a um deus falso, argumenta Calvino, indicando passagens naBíblia que ensinam isso. Isso acontece pelo simples fato de ser ele umDeusmisericordioso.14Portanto,“emnomedeJesus”nãoéumafórmulamágica.Orar em nome de Jesus significa comparecer diante de Deus em oração

conscientemente confiando em Cristo para nossa salvação e aceitação, e nãodependendodenossacredibilidadeoudenossosfeitos.Emessência,édarnovofundamentoaonosso relacionamentocomDeus,baseando-o reiteradamentenaobrasalvadoradeJesus.Tambémsignificareconhecernossacondiçãodefilhosde Deus, independentemente do nosso estado interior. Deus, nosso Pai, estácomprometidocomobemdeseusfilhostantoquantoqualquerbompaiestaria.

AsreivindicaçõesdeJesusaoPai

Por que sempre somos ouvidos por causa de Jesus? O teólogo australianoGraeme Goldsworthy delineia como, desde que Adão foi expulso da família,Deusprometeufazerdenósseusfilhosoutravez.ElechamouanaçãodeIsrael

de “meu primogênito” (Êx 4.22,23) e chamou seu filho do Egito através doêxodo(Os11.1).NomeouosreisungidosdeIsrael—DavieSalomão—paraseremseusfilhos.Todavia,ahistóriadeIsraeledeseusreisfoidefracassoemconfiar e obedecer a Deus e ser de fato seus filhos. No batismo de Jesus,contudo,Deusfaloudocéu:“TuésmeuFilho,aquemeuamo;detimeagrado”(Lc 3.22). Como diz Goldsworthy: “Quase se pode ouvir o céu suspirar dealívio”, pois aqui, enfim e afinal, está umFilho de verdade, alguém capaz deconfiarnoPai,obedecê-loesatisfazê-locomperfeição,equeofará.15

Logo, a ele— e somente a ele, entre todos os seres humanos da terra—pertenceoprivilégiodaoraçãoedoacesso.EleéoúnicocapazdedizeraDeuscomconfiança: “Eu seiqueo senhor sempremeouve” (Jo11.41,42).QuandocremosemJesusCristo,unimo-nosaele.Estamos“nele”,emCristo,comodizPaulorepetidasvezes.IssosignificaqueoqueéverdadesobreJesuséverdadesobrenós.Porqueele temoacessoperfeitoesegurodeumfilhoobedienteaoPai,omesmoacontececonoscoagora.“SeoPaisempreouveoFilho,entãoelesempreouveaquelesque,emCristo,sãoseusfilhos”.16AoorarmosemnomedeJesus, portanto, nós o fazemos com suprema confiança e, no entanto, emhumildedependênciadagraçaimerecida.O pregador americano R. A. Torrey conta a história de um homem que

conheceuquandopregavaemMelbourne,Austrália.Umdia,quandoestavanopúlpito preparando-se para falar, entregaram-lhe um bilhete anônimo. Era umapeloparaquetratassedoproblemadaoraçãonãorespondidaemseusermão.Obilhetedizia:Caro dr. Torrey, enfrento grande perplexidade. Tenho orado há longo tempoporalgoqueestoucertodeserdavontadedeDeus,masnãosouatendido.Hátrinta anos sou membro da igreja presbiteriana e tenho tentado me manterfirme todo o tempo. Sou superintendente da escola dominical há 25 anos epresbíteronaigrejahávinte;noentanto,Deusnãorespondeminhaoraçãoeeunãoconsigoentenderisso.Osenhorpodeexplicarparamim?

Torreypercebeuasentrelinhasdoargumentoeaceitouodesafio.Encaminhou-se para a frente do púlpito, leu o bilhete e usou-o para expressar um pontocrucial.Dissequeoproblemanãoeradifícildeperceber. “Essehomempensaque pelo fato de ser um membro constante da igreja há trinta anos,superintendente fiel da escola dominical há 25 anos e presbítero na igreja hávinteanos,Deustemaobrigaçãoderespondersuaoração.Naverdadeeleestáorando em seu próprio nome.” Sem dúvida, o sujeito certamente entoava umobediente“emnomedeJesus”nofimdecadaoração,massócomopartedoseuprojeto para alcançar o favor de Deus através da conformidade perfeita comtodasasregras.Torreycontinuou:“Devemos[...]abandonartodopensamentodeque temos quaisquer reivindicações a fazer aDeus. [...]Mas JesusCristo temgrandesreivindicaçõesperanteDeus,enósdevemoscomparecerdiantedeDeusemnossasoraçõesnãocombaseemqualquervirtudenossa,mascombasenasreivindicações de Jesus Cristo”. Após o encerramento da reunião, o autor dobilhete se aproximou de Torrey e se revelou. “O senhor acertou em cheio omartelonacabeçadoprego”,disse.17

1Edições em português: João Calvino, As institutas, tradução de WaldyrCarvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols., e A instituição dareligiãocristã, traduçãodeCarlosEduardoOliveira; JoséCarlosEstêvão (SãoPaulo:Ed.Unesp,2008).

2McNeill,Calvin:Institutes,3.20.5.,p.854.3KennethGrahame,Thewindinthewillows,capítulo7,“Thepiperatthegates

ofdawn”[ediçãoemportuguês:Oventonossalgueiros(SãoPaulo:Salamandra,2007)].

4McNeill, Calvin: Institutes, p. 856. Esse é o título do capítulo para o item3.20.6.Eleémarcadocomumasterisco,significandoqueoeditoroincluiu—nãoexistianooriginaldeCalvino.Dequalquerforma,éumbomresumodessasegundaregraparaaoração.

5Ibidem,p.857.6FrancisSpufford,Unapologetic:why,despiteeverything,Christianitycanstill

makesurprisingemotionalsense(NewYork:HarperOne,2013),p.27.7McNeill,Calvin:Institutes,3.20.7.,p.858.8McNeill,Calvin:Institutes,3.20.8.,p.859.9McNeill,Calvin:Institutes,3,20.11.,p.862.10McNeill,Calvin:Institutes,3.20.13.,p.867.11McNeill,Calvin:Institutes,3.20.15.,p.872.12McNeill,Calvin:Institutes,3.20.16.,p.872.13McNeill,Calvin:Institutes,3.20.17,p.874-5.14McNeill,Calvin:Institutes,3.20.15,p.870.15Ibidem.16Ibidem.17R.A.Torrey,Thepowerofprayerandtheprayerofpower(GrandRapids:

FlemingH.Revell,1924),p.106-7.

N

OITO

Aoraçãodasorações

enhum dos nossos três mestres da oração, Agostinho, Lutero e Calvino,desenvolveu suas instruções baseando-se acima de tudo em suas

experiências pessoais. Em cada caso, tudo aquilo em que acreditavam e quepraticavamemrelaçãoàoraçãodesenvolveu-seprincipalmentedoentendimentodelesdaobramagnaedefinitivasobreoração—aOraçãodoSenhor,queestáregistrada emMateus 6.9-13, no coração do Sermão doMonte proferido porJesus.Nas Institutes de Calvino, amaior parte do capítulo 20 sobre oração édedicadaaumestudoqueanalisaversículoporversículodomodelodeoraçãofornecidopelopróprio Jesus.Omesmoacontececomgrandepartedaclássicacarta de Lutero. Cada um desses três grandes teólogos explana à exaustão aOraçãodoSenhor,emmaisdeumlugar,nãosóemcomentáriosbíblicoseobrasexegéticas,mastambémemescritosdecunhopastoraleteológico.1

Neste capítulo analisaremos a Oração do Senhor da perspectiva desses trêsmestres, extraindo desse modo a plenitude da sabedoria deles — e aprofundidadedaprópriaoraçãodeJesus—sobreoassunto.

Operigodafamiliaridade

AOração do Senhor talvez seja o conjunto de palavras proferido commaiorfrequênciadoquequalqueroutronahistóriadomundo.JesusCristoodeuanóscomo a chave para acessar todas as riquezas da oração.No entanto, ele é umrecursosubutilizado,emparteporserfamiliardemais.

Imagine-se visitando, pela primeira vez, alguém que tem uma casa ou umapartamento perto da linha do trem. Você está sentado na casa da pessoa,conversando, quando de repente o trem se aproxima, chacoalhando tudo bempertodeondevocêestásentado.Vocêsepõeempédeumsalto,alarmado.—Oqueéisso?—exclama.Suaamiga,moradoradacasa,responde:—Issooquê?.—Essebarulho!Penseiquealgumacoisafosseatravessaraparede.—Oh,isso,replicaela.—Ésóotrem.Sabe,achoqueestoutãohabituadaquejánemopercebomais.Deolhosarregaladosvocêprotesta:—Nãoseicomoissoépossível.Masé.AmesmacoisaacontececomaOraçãodoSenhor.Omundointeirotemfome

de experiência espiritual e Jesus nos dá o meio para satisfazê-la em poucaspalavras.Écomoseelenosdissesse:“VocêsnãogostariamdepoderficarfaceafacecomoPaieoreidouniversotodososdias,derramarocoraçãodiantedeleesentirqueosouveeama?”.Evidentementerespondemosquesim.Jesusentãoensina:“TudoissoestánaOraçãodoSenhor”.Aoqueretrucamos:

“Onde?”.Elanosé tãofamiliarquenãoconseguimosmaisouvi-ladireito.Noentanto,tudodequenecessitamosestánela.Comovencermosoperigomortaldafamiliaridade?Umadasmelhoresformaséouvindoessestrêsgrandesmentoresquesondaramasprofundezasdaoraçãoaolongodeanosdereflexãoeprática.OqueelesacreditavamqueaOraçãodoSenhorestavadizendo?

“Painossoqueestásnocéu”

Essepequenotrechodaoraçãoéapenasumchamamentoouinvocação,nãoédefato uma das petições. Calvino explica que chamar Deus de “Pai” é orar emnomedeJesus.“QuemhaveriadesertãoprecipitadoapontodearrogarparasiahonradeserumfilhodeDeus,amenosquetivessesidoadotadoemCristocomofilhodagraça?”2Luterotambémacreditavaqueessechamamentoeraummodo

de não sair falando diretamente com Deus, mas de primeiro relembrar nossasituação e perceber nossa condição emCristo, antes de prosseguir emoração.Devemos dizer a Deus: “Tu tens nos ensinado a considerá-lo e a clamar a ticomoPaidetodosnós[...]embora[...]pudessespordireitoecomrazãoserumjuiz severodenós”.Portanto, devemos começarpedindo aDeuspara infundir“emnosso coração a confiança reconfortante em seu amorpaternal”.3Calvinoconcordacomofatodeque“pelagrandedoçuradeseunome[Pai]elenoslivradetodadesconfiança”.4

“Santificadosejaoteunome”

Essaprimeirapetiçãoéumtantoobscuraparaaspessoasdomundoatual.Umaexplicaçãoparaissoéqueapalavrasantificadoédeusorarohojeemdia;outraéquea ideiade santidade (o sentidobásicodapalavra santificado)éestranhapara nossa sociedade secularizada. A terceira explicação é um problemaaparentementedelógica,expressoporLutero.“PorqueassuntoestamosorandoquandopedimosqueonomedoPaisejasantificado?Deusjánãoésanto?”.Depronto ele responde que sim, claro que é santo, porém “seu nome não seconservasantonousoquefazemosdele”.5LuterochamaaatençãoparaofatodequetodososcristãosbatizadoscarregamonomedeDeus.Comoportadoresdessenome,representamumDeussantoebom,demodoqueoramosparaqueoSenhornosimpeçadedesonraronomepeloqualsomoschamados,paraquenoscapacite a nos tornarmos bons e santos. Essa petição, no entanto, tem umsegundosentidoparaLutero,quesejuntaaAgostinhoquandodizqueelaéumaoraçãoparaqueDeus“sejaglorificadoentretodasasnaçõescomoéglorificadoentrenós”.6 É umpedido para que a fé emDeus seja difundidamundo afora,paraqueoscristãoshonremaDeuscomasemelhançaouasantidadedeCristoemsuasvidaseparaquemaisemaispessoashonremaDeuseclamempeloseunome.Calvino concorda,mas acrescenta uma ideia que cala fundo no coração: “O

quehádemaisindignodoqueaglóriadeDeusserparcialmenteobscurecidapornossa ingratidão?”. Em outras palavras, a ingratidão e a indiferença para com

Deussãoatitudesquefalhamemhonrarseunome.“Santificar”onomedeDeusnãoéapenaslevarumavidajusta,masterumcoraçãodegrataalegriaparacomDeus — e, mais ainda, um senso de fascinação por sua beleza. Não lhereverenciamosonomeamenosqueele“nosencantecomumfascínioporsuapessoa”.7

“Venhaoteureino”

AgostinhoafirmaqueDeusreinahoje,mascomoaluznãoexisteparaquemserecusa a abrir os olhos, assim tambémépossível rejeitar ogovernodeDeus.8

Essa é a causa de todos os nossos problemas humanos, uma vez que fomoscriados para servi-lo, e quando servimos outras coisas em lugar de Deus, oresultado é todo tipo de problemas espirituais, psicológicos, culturais e atémesmo materiais. Sendo assim, precisamos que seu reino “venha”. Calvinoacreditava que havia duas maneiras de o reino de Deus vir — por meio doEspírito, que “corrige nossos desejos”, e por meio da Palavra de Deus, que“moldanossospensamentos”.9Esse,então,éumpedidopor“senhorio”:érogaraDeusqueestenda seupoder real sobre cadaáreadanossavida—emoções,desejos, pensamentos e compromissos. Isso faz lembrar a “compilação” deThomas Cranmer para o décimo quarto domingo após a Trindade, “para quepossamosalcançaroqueprometeste,faz-nosamaroqueordenaste”.PedimosaDeusquegovernetãocompletamentesobrenósapontodedesejarmosobedecê-lodetodoonossocoraçãoecomalegria.Luteroacrescentatambémumadimensãoexteriorefutura.OreinodeDeusna

terraéapenasparcialhoje,masaplenitudedoreinofuturoéinimaginável.Todosofrimento, injustiça, pobreza e morte cessarão. Orar “venha teu reino” é“almejaressavidafutura”de justiçaepaz,epedirque“teureinofuturopossaserofimeaconsumaçãodoreinoquecomeçasteemnós”.10

“Sejafeitaatuavontade”

Luteroéomais intensoe francoemrelaçãoaosignificadoda terceirapetição.Eleaparafraseiadaseguinte forma:“Concede-nosgraçaparasuportardebom

grado toda enfermidade, pobreza, desgraça, sofrimento e adversidade e parareconhecer que nisso tua divina vontade é crucificar a nossa vontade”.11

Podemos ser reticentes em fazer uma declaração assim ousada, mas agoraconseguimos discernir a importância do chamamento inicial. A menos queestejamos profundamente certos de que Deus é nosso Pai, jamais seremoscapazesdedizer“sejafeitaatuavontade”.Ospaiscostumamserinescrutáveispara filhos pequenos. Uma criança de quatro anos não é capaz de entendermuitas das proibições do pai—mas confia nele. Só se confiarmos emDeuscomo Pai conseguiremos pedir graça para suportar nossos problemas compaciênciaegraça.Bem,alguémhádeperguntar,comopodemostercertezadequeDeusédigno

deconfiança?ArespostaestánofatodeseresseotrechodaOraçãodoSenhorqueopróprioJesusorounojardimdoGetsêmani,sobcircunstânciasmuitomaisdevastadorasdoquequalquerumdenós jamais enfrentará.Ele se submeteuàvontadedoPaiemvezdeseguirosprópriosdesejos,eissonossalvou.Porissopodemosconfiarnele.Jesusnãoestánospedindoparafazermosporelealgoqueelepróprio jánãotenhafeitopornós,sofrendodificuldadesqueestãoalémdanossacompreensão.Luteroacrescenta,namesmalinhadeAgostinho,que,semessaconfiançaem

Deus, tentaremos tomar-lhe o lugar e buscar vingança contra aqueles que nosfizerammal.12Somenteestaremosprotegidos“dosvícioshorríveisdoatentadoàreputação, da calúnia, da difamação [...] que condenam os outros” seaprendermosanos entregar aDeus.13 Se não pudermos dizer “seja feita a tuavontade”dofundodocoração,jamaisteremospaz.Seremostentadosacontrolaraspessoas,acontrolaroambientequenoscercaeafazerascoisasdojeitoqueacreditamos que devam ser feitas.Contudo, controlar a vida assim é algo queestáalémdanossacapacidade,esónoschocaremoscontraasrochas.Por issoCalvinoacrescentaqueorarpedindoque“seja feitaa tuavontade”é submeternãosónossavontadeaDeus,masatémesmonossossentimentos,demodoanãoficarmos desanimados, amargurados nem endurecidos pelas coisas que seabateremsobrenós.14

ConsideramosastrêsprimeiraspetiçõesdaOraçãodoSenhor.Osnossostrêsmestresobservamaimportânciadolugarqueocupam—ofatodeessaspetiçõesvirem em primeiro lugar. O início da oração tem a ver só com Deus. Nãodevemos deixar que nossas próprias necessidades e problemas dominem aoração;antes,devemosdarprimaziaalouvá-loehonrá-lo,adesejarcontemplarsua grandeza e vê-la reconhecida em toda parte, e a aspirar ao pleno amor eobediência.GeorgeHerbertexpressoutudoissoempoucasebelaspalavras:Poisodesejodomeucoraçãoprostra-seperanteti:aspiroàplenaconcordância.15

Adoraçãoeaçãodegraças—centradasemDeus—vêmemprimeirolugar,

pois curam o coração do egocentrismo, o qual nos volta para nós mesmos edistorcetodaanossavisão.Agoraqueaoraçãochegouquaseàmetadeenossavisão foi reorganizada e esclarecidapelagrandiosidadedeDeus, podemosnosvoltarparanossasnecessidadeseasdomundo.

“Opãonossodecadadianosdáhoje”

Agostinho nos lembra que o “pão de cada dia” é uma metáfora paranecessidades, não para luxos. Como acabamos de passar as três primeiraspetiçõesdaoraçãoreconhecendoDeuscomonossoverdadeiroalimento,saúdeefelicidade, Jesus nos encarrega agora de fazer nossa “lista de oração” pornecessidades alinhar-se a essa nova disposição do coração. Como vimos,AgostinhoacreditaqueapetiçãoemsuatotalidadedeveriaseradeProvérbios30.8:“Nãomedêsnempobreza(paraquenãoteofenda)nemriquezas(paraquenão te esqueça)”.16 Calvino acompanha o raciocínio deAgostinho quando dizque,aofalardopãonossodecadadia,“não[...]nosdesvencilhamosdaglóriadeDeus [...] [mas] pedimos somente o que lhe convier”.17 Achegamo-nos comnossas necessidades, cheios de expectativas de que receberemos uma resposta

positiva,masagimosassimporquefomostransformadospornossasatisfaçãoeconfiança nele. Não nos aproximamos com arrogância nem lhe dizendoansiosamente o que tem de acontecer. Muitas coisas pelas quais antes nosangustiaríamospodemosagorarogarsemdesespero.Luterovêtambémumadimensãosocialnessaoração.Paraquetodosrecebam

opãodecadadia,devehaverumaeconomiapujante,umbomníveldeempregoeumasociedadejusta.Ouseja,orar“dá-nos—atodoopovodanossaterra—opãonossodecadadia”éorarcontraa“exploraçãodesumana”nosnegócios,nocomércioenotrabalho,aqual“massacraopobreeoprivadeseupãodiário”.Emtomdeameaça,elefazumaadvertênciaquantoaopoderdessapetiçãosobretodoaquelequepraticaainjustiça.“Queestejamconscientesda[...]intercessãoda igreja,equecuidemdequeessapetiçãodaOraçãodoSenhornãosevoltecontraeles”.18ParaLutero,portanto,orarpelopãonossodecadadiaéorarporumaordemsocialprósperaejusta.

“Perdoa-nosasnossasdívidas,assimcomotambémtemosperdoadoaosnossosdevedores”

Aquintapetiçãodizrespeitoaosnossosrelacionamentos,tantocomDeusquantocom os outros. Lutero, que durante anos lutou demaneira vigorosa e pessoalcom as questões da culpa e do perdão, faz um chamado pungente parabuscarmosoperdãodeDeusacadadiaemoração:Se alguém insiste na própria bondade e desprezaos outros [...] que se voltepara simesmoquandoessapetiçãooconfrontar.Descobriráquenãoénadamelhor do que os outros e que, na presença deDeus, todos devembaixar acabeçaeadentrarnaalegriadoperdãoexclusivamentepelaportamodestadahumildade.19

Eleacrescentaqueessapetiçãonãoéapenasumdesafioparanossoorgulho,

mastambémumtestederealidadeespiritual.Seconsiderarmosaconfissãoeoarrependimento insuportavelmente traumáticos ou humilhantes, isso é sinal de

quenosso“coraçãonãoestáajustadocomDeusenãopodeextrair[...]confiançadoseuevangelho”.Seaconfissãoregularnãoproduziremnossavidaaumentodeconfiançaealegria,entãonãocompreendemosasalvaçãopelagraça,queéaessênciadafé.Jesus atrela firmemente nosso relacionamento com Deus ao nosso

relacionamento comosoutros.Adinâmica funcionanosdois sentidos.SenãoenxergarmosnossopecadoenãobuscarmosoperdãoradicaldeDeus,seremosincapazes de perdoar e de buscar o bem daqueles que nos têm injustiçado.Portanto,aamarguramalresolvidaéumsinaldequenãoestamosafinadoscomDeus. Também significa que, se guardamos rancor, devemos perceber ahipocrisia de buscar o perdão de Deus para os próprios pecados. Calvino seexpressadeformavívida:Se conservamos sentimentos de ódio no coração, se planejamos vingança econsideramos qualquer ocasião para causar dano, emesmo se não tentamosfazeraspazescomnossosinimigos,nemportodasortedebomauxíliofazerjusaquenostenhamemboacontaearecebersuaaprovação,pormeiodessaoraçãoestamosrogandoaDeusquenãoperdoenossospecados.20

“Nãonosdeixesentraremtentação”

Com essa súplica, Agostinho faz uma distinção importante. Ele observa: “Aoraçãonãodizquenãodevamossertentados,massimquenãosejamoslevados[ouconduzidos]aentrarem tentação”.21A tentação,nosentidodeserporelaprovado e testado, não só é inevitável como desejável. A Bíblia fala desofrimentoedificuldadecomoumafornalhaemquemuitasimpurezasdaalmasão“refinadas”enósganhamosmaisautoconhecimento,humildade,féeamor.Noentanto,“entrarem tentação”,comoopróprioJesusapontou(Mt26.41),éacalentareconsiderarapossibilidadedecederaopecado.Calvinorelacionaduascategorias de tentação: a da “direita” e a da “esquerda”. Da direita vêm“riquezas, poder e honras”, tentando-nos com o pecado de pensar que não

precisamosdeDeus.Daesquerdavêm“pobreza,desgraça,desprezoeaflições”,tentando-nos a nos desesperarmos, perdermos toda esperança e nosdistanciarmoscomraivadeDeus.22Tantoaprosperidadequantoaadversidade,portanto, são testes dolorosos, e cada uma delas traz o respectivo conjunto detentações que nos afastam da confiança em Deus e nos levam em direção acentraravidanopróprioeueemnossos“desejosilegítimos”poroutrascoisas.23

“Livra-nosdomal”

Calvino combinou essa expressão com “não nos deixes entrar em tentação” echamou-adesextaeúltimapetição.AgostinhoeLutero,contudo,viamasúplica“livra-nosdomal”comoumasétimapetiçãoemseparado.Elatambémpodesertraduzidapor“livra-nosdoMaligno”,ouseja,doDiabo.Luteroescrevequeessapetiçãoé“direcionadacontramalesespecíficosqueemanamdoreinodoDiabo[...] pobreza, desonra,morte, em síntese [...] tudo o que ameaçar o bem-estarfísico”.24Agostinhoindicaqueenquantoasextapetiçãoéporlibertaçãodomalremanescentedentrodenós,essasétimapetiçãoéporproteçãodomalqueestáfora de nós, das forças malignas no mundo, especialmente dos inimigos quedesejamnosprejudicar.25

“Poisteussãooreino,opodereaglória,parasempre”

Porfim,apareceoquesechamadeimputação:“Poisteussãooreino,opoderea glória, para sempre. Amém”. Agostinho não menciona o texto porque nãoconstavadosprimeirosmanuscritosdaBíbliaounaVulgata latina.Luteronãotrata dele. Mas Calvino, embora observe que “o trecho inexiste nas versõeslatinas”,acreditaser“tãoapropriadoparaesselugarquenãosedeveomiti-lo”.Depoisdedesceràsnossasnecessidades,problemaselimitações,retornamosàverdade da plena suficiência divina. Nosso coração pode então terminar em“repousotranquilo”,nalembrançadequenadajamaisconseguiránosroubaroreino,opodereaglóriadonossoamorosoPaicelestial.26

“Dá,perdoaelivra—anós”

Asponderações finaisdeJoãoCalvinosobreaOraçãodoSenhorsãobastanteúteis.ComoLuteroem“Asimplewaytopray”,CalvinoinsisteemqueaOraçãodoSenhornãonosamarraàconfiguraçãodaspalavrasqueutiliza,mas,sim,aseu conteúdo e padrão básico. De fato, nem mesmo Lucas registrou oensinamento de Jesus sobre a oração exatamente com asmesmas palavras. AOração do Senhor é uma síntese de todas as outras orações, fornecendoorientação essencial sobre ênfases e tópicos, sobre propósito e até espírito.Portanto,emnossasorações,“aspalavraspodemsercompletamentediferentes,maso sentidonãodevevariar”.27AOraçãodoSenhor deve estar gravada emnossas orações, moldando-as de ponta a ponta. Não poderia haver melhormaneira de assegurar isso do que o exercício sugerido por Lutero, queparafraseiaepersonalizaaOraçãodoSenhor,duasvezesaodia,comomaneiradeintroduzirumaformamaislivredelouvorepetição.UmaobservaçãoigualmenteimportanteélembrarqueaOraçãodoSenhornos

foidadanoplural.NóspedimosaDeusquenosdêaquilodequenecessitamos;isso significa que, tanto quanto possível, “as orações dos cristãos devem serpúblicas [...]paraoaperfeiçoamentodacomunidadedoscrentes”.28O teólogoamericanoMichaelS.HortonsalientouqueCalvinoacreditavaque“oexercíciopúblicodoministériomoldaadevoçãoprivada,nãoocontrário”.29Calvinotevegrandecuidadoemdefinir asorações feitas empúblico e a liturgiaporquererqueasoraçõesprivadasfossemfortementemoldadaspelaadoraçãocomunitáriadaigrejacristã.Sendoassim,aoraçãonãoéalgoestritamenteprivado.Semprequepossível,

devemos orar em companhia de outras pessoas, tanto de maneira formal, naadoração comunitária, quanto informal. Por quê? Se a essência da oração émanterumaconversacomDeuseseseupropósitoéconhecê-lomaisafundo,entãoamelhormaneiradefazerissoéemcomunidade.C.S.Lewis argumentaque éprecisoumacomunidadepara se conhecerum

indivíduo. Refletindo sobre as próprias amizades, ele observou que certosaspectosdapersonalidadedeumdeseusamigossóvinhamàtonanainteração

dele com um segundo amigo. Isso significava que, se ele perdesse o segundoamigo, perderia parte do primeiro amigo que, sem o segundo, permaneceriainvisível.“Sozinhonãosougrandeosuficienteparaconclamarohomeminteiroàação;queroluzesoutrasquenãoaminhaparamostrartodasassuasfacetas.”30

Seéprecisoumacomunidadeparaconhecerumúnicoserhumanocomum,quãomaisnecessáriaelanãoéparaconheceraJesusjuntocomoutros?Aoorarcomamigos,vocêserácapazdeouvireverfacetasdeJesusqueaindanãopercebeu.Por isso, acreditaLewis, em Isaías 6 os anjos clamam“Santo, santo, santo”

unsaosoutros.Cadaanjotransmiteatodososdemaisaporçãodaglóriaquevê.Conhecer o Senhor é algo comunitário e cumulativo, por isso devemos orar elouvarjuntos.Dessemodo“quantomaiscompartilhamosdopãocelestialentrenós,maistodosteremos”.31

1DeLutero, veja não só “A simpleway to pray”,mas seu “Personal prayerbook”, in: Luther’s works e tanto seu Large catechism quanto seu Smallcatechism, bem como Luther’s works: the Sermon on the Mount and theMagnificat (St.Louis:Concordia,1968),vol.21[ediçõesemportuguês:Comoorar (SãoLeopoldo/PortoAlegre:Sinodal/Concórdia, 1999);Catecismomaiordo dr.Martinho Lutero (São Leopoldo/PortoAlegre: Sinodal/Concórdia, s.d.);Catecismomenor, 20. ed., versão popular (São Leopoldo: Sinodal, s.d.)]. DeCalvino, além de suas Institutes [edições em português: João Calvino, Asinstitutas,traduçãodeWaldyrCarvalhoLuz(SãoPaulo:CulturaCristã,2006),4vols., eA instituição da religião cristã, tradução de Carlos EduardoOliveira;José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008)], veja David; ThomasTorrance, orgs.,A harmony of the Gospels: Matthew, Mark and Luke (GrandRapids: Eerdmans, 1994), vol. 1. De Agostinho, veja especialmente Paul A.Boer,org.,St.AugustineofHippo:ourLord’sSermonontheMountaccordingtoMatthew&theharmonyoftheGospels(CreateSpace,2012),extraídodePhilipSchaff,Niceneandpost-Nicenefathers(ChristianLiterature,1886),vol.6.

2McNeill,Calvin:Institutes,3.20.36.,p.899.3Luther,“Personalprayerbook”,p.29.4McNeill,Calvin:Institutes,3.20.36.,p.901.5Luther’slargecatechism,p.84.6Augustine, Letter 130, in: Schaff,Nicene and post-Nicene fathers, capítulo

12.7McNeill,Calvin:Institutes,3.20.41.,p.903-4.8Augustine,“OurLord’sSermonontheMount”,traduçãoparaoinglêsdeS.

D. F. Salmond, in: Philip Schaff, org.,Nicene and post-Nicene fathers (1886;ediçãoeletrônica,VeritatisSplendor,2012),vol.6,p.156.

9McNeill,Calvin:Institutes,3.20.42.,p.905.10Luther,“Personalprayerbook”,p.32.11Ibidem,p.33.12Augustine,“OurLord’sSermonontheMount”,p.158-9.13Luther,“Personalprayerbook”,p.34.14McNeill,Calvin:Institutes,3.20.43.,p.907.15GeorgeHerbert,“Discipline”,in:HelenWilcox,org.,TheEnglishpoemsof

GeorgeHerbert,(NewYork:CambridgeUniversityPress,2010),p.620.16Augustine, Letter 130, in: Schaff, org., Nicene and post-Nicene fathers,

capítulo12.17McNeill,Calvin:Institutes,3.20.44.,p.907-8.

18Luther’slargecatechism,p.92.19Luther’slargecatechism,p.93.20McNeill,Calvin:Institutes,3.20.45.,p.912.21Augustine,“OurLord’sSermonontheMount”,p.167.22McNeill,Calvin:Institutes,3.20.46.,p.913.23Ibidem.24Luther’slargecatechism,p.96-7.25Augustine, Letter 130, in: Schaff, org., Nicene and post-Nicene fathers,

capítulo12.Vejatambémseu“OurLord’sSermonontheMount”,p.171.26McNeill,Calvin:Institutes,3.20.47.,p.915-6.27McNeill,Calvin:Institutes,3.20.49.,p.917.28McNeill,Calvin:Institutes,3.20.47.,p.915.29Horton,CalvinontheChristianlife,p.154.30C.S.Lewis,The four loves (NewYork:Harcourt,1960),p.61 [ediçãoem

português:Osquatroamores(SãoPaulo:Wmfmartinsfontes,2009)].31Ibidem,p.62.

N

NOVE

Aspedrasdetoquedaoração

estaseçãodo livro,estamospassandoda teoriaparaapráticaaoouvirasprincipais reflexões sobre oração que nos foram transmitidas por alguns

dosgrandesmestresdahistóriadaigreja.Seráqueagoraconseguiremosjuntareresumir todas as regras e princípios individuais em um único conjunto depontos?Arespostaénão—esim.Um problema que enfrentamos ao unificar esses tópicos é que eles com

frequênciadizemamesmacoisadepontosdevistadiferentes.Calvinoescreveuemtommaisteológico,extraindoimplicaçõesdasdoutrinasdeDeus,dopecado,deCristoedoevangelhoaoestudaraoração.OensinodeLuterosobreaoraçãoémuito prático, pois em sua carta ele escrevia a um homem simples que lhepediu um modo concreto de orar. Agostinho abordou a oração de umaperspectivamaisexistencial,concentrando-semaisnasmotivaçõesdocoração.Issoquerdizerqueosprincípiosdecadaumdessespensadoresseentrecruzam.Alémdisso, devemos tambémnos lembrarda regradopróprioCalvino contraregrasinflexíveis.Receioquemuitoslivroscontemporâneossobreoraçãotentemdaraos leitoresuma“chave”oualgumtipodeexperiênciado tipo“Ah!Entãoesseéosegredodaoração!”.Talcoisanãoexiste.Oextremoopostoédizersimplesmentequeaoraçãonãopodeserreduzidaa

princípiosequenãohánadaadizersobreoassunto,alémdequedevemosnosesforçar muito e persistir na oração. Mas se ela de fato fosse indescritível,quandoodiscípulopediuaJesus“Senhor,ensina-nosaorar”(Lc11.1),eleteria

respondido: “Não posso— a oração é algo indefinível”. Ele não disse que aoraçãoécomoo somdobaterdepalmasdasmãos.Emvezdisso,deua seusdiscípulosumconjuntodepalavras,aOraçãodoSenhor.Podemos então extrair algo do que aprendemos comnossosmestres? Penso

quesim.Chamareios resultadosde“pedrasde toque”.Essaexpressãodesignaumpequenofragmentoderochacontendosílicaqueseesfregacontraumpedaçodeouroouprataparatestarseugraudepurezaouautenticidade.Comovimos,toda oração é um pouco impura. Nunca é feita pela motivação do coraçãointeiramenteapropriadasouemlinguagemdignadeseuobjeto.Elaérecebidaerespondida por Deus, portanto, somente pela graça. Contudo, há indicaçõesclarasnaBíbliadequedevemosnosesforçarparaorardamaneiracorreta.SeasoraçõesnãosãofeitasnadependênciadeJesus(Jo16.24-26)oucomfé(Tg1.6)—seforemfeitaspormotivaçãoegoísta(Tg4.3)ousetentarmosorarenquantodesobedecemosvoluntariamenteaDeusemalgumaáreadavida(Sl66.18)—,talveznãosejam“poderosaseeficazes”(Tg5.16).Segue-senãoumconjuntoderegrasquemerecemouprovocamarespostade

Deusdealgumaformamágicaoumecânica.Emvezdisso,sãodozepedrasdetoquepelasquaispodemosjulgararelativaforçaoufraquezadenossasoraçõesno que diz respeito a honrar a Deus e nos conectar com ele. Agrupei-as emquatroconjuntos,cadaumcomtrêspedrasdetoque.

Oqueéoração

Trabalho—aoraçãoédeveredisciplina

A oração deve ser praticada com regularidade, perseverança, determinação etenacidadeaomenosumavezaodia,sintamosvontadeounão.“Opiorpecadoéa falta de oração”, escreveu Peter T. Forsyth. “O pecadomanifesto [...] ou asincoerênciasflagrantesquecomfrequêncianossurpreendemnopovocristãosãoefeitodisso,ouseucastigo.[...]Nãoquererorar,então,éopecadoportrásdopecado.”1 Devemos orar mesmo quando não conseguimos extrair nada dessaprática.Imaginequevocêmorecomalguémquequasenãolhedirigeapalavra.

Tudo o que essa pessoa faz é deixar recados. Quando menciona o fato, elaretruca: “Bem, não ganho grande coisa falando com você. Acho entediante eminha mente fica vagando para todo lado, por isso simplesmente nem tentomais”.Qualserásuaconclusão?Independentementedeseu traquejonaartedaconversação,é indelicadodapartedelanão falarcomvocê.Eladeveàpessoacom quem divide a moradia ao menos uma interação face a face. Claro queindelicadeza é uma palavra fraca demais para descrever o fracasso em serelacionar com seu Criador, Sustentador e Redentor, a quem você deve atémesmoofatoderespirar.Aoração deve ser perseverante. “Rogo-vos”, escreveuPaulo aos cristãos de

Roma,“quesejuntememminhalutaorandoaDeuspormim”(Rm15.30).Oraré lutar. Isso quer dizer agarrar-se à oração durante os altos e baixos dossentimentos.“Nãodiga:‘Nãoconsigoorar.Nãoestoucomespíritoparaisso’”,escreve Forsyth. “Ore até estar com espírito.”2 Isso significa que a oraçãotambém tende a ter efeito cumulativo. Austin Phelps escreve sobre suaexperiênciadeobservarpessoasnaRoyalGallery,emDresden,sentadasdurantehoras diante de uma única obra-prima. “Semanas são gastas todos os anos noestudodaquelaúnicaobradeRafael.Osamantesdaartenãopodemdesfrutá-laplenamenteatéqueconsigamcaptá-laparasipormeiodacomunhãoprolongadacomsuaformainigualável.”Elecontaumaconversacomumdosadmiradoresda obra, que disse ter passado anos olhando para o quadro e ainda achavapossível toda vez “descobrir algum novo toque de beleza e alegria”. Quãoinfinitamentemaisnãodeveríamosnósdedicaresse tipodeatençãopacienteàoração?Quequadro,perguntaPhelps,poderiachegarpertodeseparecercomograndeDeus,“aquemaalmanecessitaconcebervividamente,afimdeconhecerabem-aventurançadaoração?”.3

A oração é sempre um trabalho árduo e muitas vezes uma agonia.Ocasionalmentetemosatémesmodetravarumabatalhaparaorar.Issoacontece“quando chega aquela hora do dia em que deveríamos nos recolher para umperíododeoraçãocomDeus,masmuitasvezespareceque tudoconspiraparanos impedir.” É comum travarmos uma batalha em oração só para nosconcentrarmos. “Seuspensamentosdivagampara lá e para cá entreDeus e os

muitos afazeres urgentes que o esperam.”4 EmboraDeus possa e vá concedertempos de paz e tranquilidade, nenhum cristão supera a necessidade de travarbatalhaseperseveraremoração.

ResponderàPalavra—oraréconversarcomDeus

No jardimdoÉden,Deus andava conosco (Gn3.8). “Andar comalguém”, naBíblia,émanterumaamizade,poisaspessoasconversamenquantocaminhamjuntas.OraremnomedeJesusenopoderdoEspíritoéarestauraçãodacoisamaispreciosaquetivemoscomDeusnoinício—alivrecomunicaçãocomele.Há doismodos de entender a oração como um diálogo. O primeiro é vê-la

comoumarespostaàvozdeDeusdiscernidasubjetivamentedentrodocoração.Nessa visão, sentamo-nos em silêncio e aguardamos intuições, impressões esentimentosquejulgamosnãoseremapenaspsicológicos,masavozdeDeusemnosso interior. O outro modo é considerar Deus como alguém que nos falaprincipalmente por meio das Escrituras. Como vimos emMartinho Lutero, oEspíritonosconvencedopecadoenosiluminaàmedidaquelemosaPalavra,demodoqueoouvimospormeiodela. Jáexplicamosantes,neste livro,queesteúltimoentendimentoéoquedevemosseguir.Essa tem sido uma das questões fundamentais na história da piedade e

espiritualidadecristãs.Umdospontoscríticosfoiodebatedoséculo17entreospuritanosingleseseosantigosquacres.Paraospuritanos,aspalavrasdoEspíritoeramaBíblia,jáqueoEspíritonosfalapormeiodaPalavraeatravésdela.Osquacresemuitosoutrosquelhesseguiramospassosacreditavamque,emboraasEscrituras sejam inspiradas, havia revelaçãonova, atual e interna pormeiodoEspíritoeestadeveriaserbuscada.5 IssosignificariaqueasEscriturasnãosãoumrequisitonecessárioparaaconversa—podemosandarcomDeusdeumladopara o outro dentro do nosso coração. Já exploramos o caráter nada confiáveldessaabordagem.J.I.Packercomentaque,aoentendermosaoraçãocomoumaconversa, temos de vincular a meditação bíblica criteriosa à oraçãoregularmente. A meditação é uma ponte entre a interpretação e o estudo daBíblia,porumlado,eaoraçãolivre,poroutro.Apráticaadotadapelopróprio

Packer consiste em “ler as Escrituras, pensar bem no que minha leitura memostraarespeitodeDeuseconverteressavisãoemlouvorantesdeavançar[naoração]”.Eleacrescentaqueesseéummeiovitalde“conheceraDeus”.6

Aoraçãoéumainteraçãoequilibradadeadoração,confissão,agradecimentoesúplica

AOraçãodoSenhorpassadaadoraçãoedolouvor(“Painossoqueestásnocéu,santificado seja o teu nome. Venha o teu reino. Seja feita a tua vontade”) àpetiçãopornossasnecessidades(“Opãonossodecadadianosdáhoje[...]livra-nos do mal”), à confissão de pecados e à súplica por transformação interior(“perdoa as nossas dívidas, como nós perdoamos os nossos devedores”), àsaçõesdegraçaspornossasbênçãos(“pois teuéoreino,opodereaglória”)epassa até por nossas dificuldades (“seja feita a tua vontade”). A Oração doSenhor eo saltério, o livrodeoraçõesdaBíblia,mostramqueousode todosesses“princípioselementares”oudimensõesdaoraçãosãocruciais.Todavia, nenhuma dessas formas de oração deve ser preferida a qualquer

outra. Não devemos considerar algumas delas como estágios inferiores oupreparaçãodocaminhoparaoutros,maiselevados.Naverdade,cadaumadelasé necessária para as demais. São interativas e estimulam umas às outras.EntenderagrandezadeDeusnoslevaaumanovacompreensãodenossaprópriacondição de pecador. Então, o reconhecimento mais profundo e oarrependimento pelos pecados resultam em grato maravilhamento diante dagraça de Deus. “Aquele a quem se perdoa muito, ama muito” (cf. Lc 7.47).Quanto mais virmos o poder de Deus, mais desejaremos depender dele paranossas necessidades. Todos esses modos de orar ao Senhor devem estarpresentes,serinterativoseequilibradosquandooramos.

Oqueaoraçãorequer

Graça—aoraçãodeveserfeita“emnomedeJesus”,baseadanoevangelho

Tratamosdessapedradetoquecrucialantes.Aoraçãodeveaconteceremplenaegrata consciência de que nosso acesso a Deus como Pai é um dom gratuitoconquistado pelo sacrifício custoso de Jesus, o Filho verdadeiro, e entãoratificadoemnóspeloEspíritoSanto,quenosajudaasaber interiormentequesomos seus filhos.Orar em nome de Jesus não é como uma fórmulamágica,como se o simples proferir dessas palavras constrangesse o poder deDeus oumecanicamente acionasse forças sobrenaturais.O nome de Jesus é uma formasintéticadeexpressarsuapessoadivinaeobraredentora.Apresentarmo-nosaoPai em nome de Jesus, não em nosso nome, é achegarmo-nos em plenaconsciênciadequeestamossendoouvidosporcausadagraçapreciosasobreaqual estamos firmados. Esse único princípio da oração possibilita sermosouvidos porDeus, embora ninguémconsiga seguir todas as outras diretrizes e“regras”,comodeveria.A ideia de orar ao Pai em nome de Jesus suscita a questão: devemos orar

apenas aoPai, e não aoFilho ou aoEspírito? Jesus convida seus discípulos aorarem a ele (Jo 14.13,14; Mt 11.28). No entanto, ele também ensinou osdiscípulos a orarem a nosso Pai e, embora não estejamos presos às palavrasexatas da Oração do Senhor, essa orientação inicial deve ser levada a sério.SomentetrêsvezesapósaascensãodeJesus—norestantedoNovoTestamento—aoraçãoédirecionadadiretamenteparaele.Naamplamaioriadoscasos,édirigidaaoPai.EmboranãosejaabsolutamenteinadequadofalarcomoFilhooucomoEspírito,emgeralaoraçãoserádirecionadaaoPai,comgratidãoaoFilhoenadependênciadoEspírito.7Packerusaumaregrageralinteressante.“OroaoPaicomamediaçãodoFilhoepelacapacitaçãodoEspíritoSanto.PossofalartambémaoFilhoeaoEspíritodiretamente,quandoapropriado:ouseja,quandoestouorandosobrealgumacoisaqueasEscriturasespecificaramserconcernenteaumdeles.”8

Temor—oraréterocoraçãoenvolvidoemreverênciaamorosa

Sabemosqueocoraçãodeveestar“envolvido”naoração.Esta,porsuavez,nãodevesermeradeclamaçãodepalavras.“Essepovomehonracomoslábios,masseucoraçãoestálongedemim”(Mt15.8).Umsinalimportantedoenvolvimentodo coração é a reverência diante da grandiosidade deDeus e do privilégio daoração.OWestminsterlargercatechismdizqueaoraçãodeveenvolverosafetosea“devidaapreensão”dopoder,majestadeegraçadeDeus.9

Hoje ninguém pensa nessa aproximação de Deus como algo traumático ouletal.Noentanto,quandoMoiséspediuparaseaproximareveraglóriadeDeus,o Senhor recusou porque, como disse ele, isso omataria (Êx 33.18-23).Deuspermitiu queMoisés visse apenas suas “costas” ou “contorno” e avisou que ocobriria com amão a fim de que ficasse protegido da santidade divina e nãomorresse.MoisésfoiprotegidodeDeusporDeus.Issoéoevangelho.EmJoão1.18,noentanto,ficamossabendoqueemJesusCristocontemplamosaglóriadeDeus.Como issoépossível?PorqueemCristonossospecadosestãocobertos.Estamos escondidos no recôncavo dasmãos deDeus, ou seja, comCristo (Cl3.1-3).Noentanto, issonãoquerdizerquepossamos tomarcom leviandadeoprivilégiodenosaproximarmosdo“trono”.Éumdireitosublimequetemos—conquistadoaumcustoinimaginável.IssoéoquefazemosquandooramosemnomedeJesus,eprecisamosnoslembrardoqueestáacontecendotodavezqueorarmos.Devemosreservartempoemeditarsobreessaverdadeatéelanosfazervibrardeentusiasmo.“Reverênciaamorosa”transmiteaideiadequenãodeveríamosnosaproximar

de Deus nem com uma familiaridade sentimental ou casual, nem com umaformalidade empolada e distante.Muitos dos melhores livros sobre oração jáescritosaconselhamque,antesdecomeçaraorareameditar,concentremo-nosedespertemosparaamagnitudedoqueestáprestesaacontecer.Umdelessugerequefaçamososeguintediscursoanósmesmos:Deusestáaqui,dentrodestasparedes;diantedemim,atrásdemim,àminhadireita,àminhaesquerda.Aquelequeencheaimensidãodesceuatémimnestelugar.Agoraestouprestesamecurvaraosseuspésea lhe falar. [...] Possodespejarmeusdesejosdiantedele,enemsequerumasílabadosmeus lábios

escaparáaosseusouvidos.Possolhefalarcomofalariaaoamigomaisqueridoquetenhosobreafacedaterra.10

Essa “concentração” pode acontecer ao refletirmos brevemente sobre algum

aspecto da teologia da oração. Lembre-se, por exemplo, de que agora somosfilhosadotadoseamadosqueseachegamaoPai.Oulembre-sedequetemosumgrandesumosacerdoteeadvogadoàdireitadeDeus,razãopelaqualpodemosnosaproximardo tronocomconfiança.Ou lembre-sedeque temosoEspíritoSanto dentro de nós, motivando-nos e ajudando-nos a orar. Isso prepara ocoraçãoparaaoração.

Impotência—oraréaceitarafragilidadeeadependência

Ole Hallesby, autor norueguês, começa seu pequeno livro Prayer [Oração]definindoaoraçãocomoumaatitudedamenteedocoraçãocaracterizadaacimadetudopelaimpotência.“Tantoquantoconsigoenxergar,aoraçãofoiordenadaapenas para os impotentes. [...] Oração e impotência são coisas inseparáveis.Somentequeméimpotentedefatoécapazdeorardeverdade.”11Essaoraçãoéapenas um desdobramento da fé do evangelho, pois só alguém que confessacompleta ruínaespiritualpode recebera salvaçãodeCristo.AgostinhodisseaAnicia não ser possível orar de verdade amenos que quem ora “se consideredesoladonomundo”.Emboraessapedradetoqueestejaintimamenterelacionadaaoraremnomede

Jesus, ela merece um tópico próprio por ser um princípio prático de grandeimportância.Muitaspessoasseenvolvememsituaçõesnasquaissesentemtãodesamparadas e impotentes a ponto de não terem vontade de orar. Todavia, aoração é feita para quem não conta com nenhum outro abrigo, nenhum outrorecurso. De certa forma, orar nada mais é do que conectar Jesus à nossaimpotência absoluta, nosso senso de fragilidade e dependência. A evidênciadissopodeserencontradanoensinodePaulodequeoEspíritonosajudaquandonos sentimos tão impotentes que não sabemos nem por quemotivos orar. “OEspírito nos ajuda em nossa fraqueza. Não sabemos por que assuntos que

devemos orar, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidosinexprimíveis”(Rm8.26).QuasecomoseaajudadoEspíritofosseacionadapornossa impotência. Orar é aceitar que somos, e sempre seremos, totalmentedependentesdeDeusparatudo.Naverdade,nossaimpotênciatambémpodeserfontedeconfiança.Afamosa

declaração de Jesus à igreja de Laodiceia— “Vede, estou à porta e bato. Sealguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e elecomigo”(Ap3.20)—costumaserusadaparaconvidarincrédulosaacreditaremem Cristo. Mas, na Antiguidade, o convite para jantar era uma oferta deamizade.Jesusestáconvidandooscrentesàcomunhãoíntimaconsigo—aorar.A oração, nessa imagem, é uma resposta a Jesus, que bate à porta. Não lheabriríamos a porta se ele não viesse até nós. Como nenhum coração humanobuscaaDeusnaturalmente(Rm3.11)oupodeseachegaraelesemqueoSenhorotraga(Jo6.44),ninguémnemmesmopensaemoraranãoserqueDeusoleveouconduzaàoraçãoporseuEspíritoSanto.Resumindo,sevocêquiserorar,nãoprecisaficaransiosopensandoseDeuso

ouvirá.VocênemsequerestariasesentindoimpotenteenecessitadoemrelaçãoaDeusseelenãoestivesseaseulado,capacitando-oasesentirdessamaneira,levando-oapensaremorar.Quandonossentimosmaisimpotentes,deveríamostermaiscertezadequeDeusestáconoscoeouvenossaoração.

Oqueaoraçãoproporciona

Perspectiva—aoraçãoreorientasuavisãoparaDeus

A oração em todas as suas formas— adoração, confissão, ação de graças epetição — reorienta sua noção e visão de todas as coisas. Ela traz novaperspectivaporquereintroduzDeusemcena.OsimplesfatodenosdirigirmosaDeusverbalmenteparafalaracercadenossasnecessidades,temores,esperanças,preocupações, questionamentos, perplexidades e pecados nos obriga quase deimediatoapensardeformadiferentesobretudoisso.

Umaimagemqueretrataareorientaçãoproporcionadapelaoraçãoéadevocêsaindoemumajornadaechegandoaumpontomaiselevado,deondeconseguecontemplarporcompletooterrenoqueestáatravessandoeconstatar:“Jáavanceimaisdoqueimaginava”,ouentão:“Fizmenosprogressodoqueimaginava”.Naoração conseguimos enxergar que somos mais amados e cuidados do quepensávamos, e isso diminui nossos temores. Ou enxergamos que somos maistoloseestamosmaisabsortosemnósmesmosdoquepensávamos,eelaacabacomnossaraivaeautocomiseração.Um exemplo prático da reorientação proporcionada pela oração se encontra

emSalmos 73.17-20.Vemos aqui umhomemcheio de inveja e ressentimentodas muitas pessoas que na vida abusam de outras e as exploram, e parecemnuncapagarporisso.Elasprosperam,enquantoavidadessehomemestácheiadeproblemas.Queproveitoháentãoemservir aDeus?“Comcertezaemvãotenhomantidopuromeucoraçãoelavadominhasmãosnainocência.Odiatodotenhosidoafligido”(v.13,14).Atéqueelediz“entreinosantuário”—atoequivalenteàoração—e“discerni

ofimdelas”.EleprosseguedemonstrandocomoofatodeestarnapresençadoSenhor o lembrou de que Deus está no controle de toda a vida e de toda ahistória.Nãosóopecadoacabanosalcançandonestavida,mastambémexisteumjulgamentofinal.Eleentãoinsereumanovaimagemparareorientaraoração—écomoquemacordadeumsonhoparaarealidade.“Comoquemacordadeumsonho[...]comodevaneiostuasdesprezarás”(v.20).Nessecaso,aoraçãoécomodespertardeumpesadeloparaarealidade.Rimosdoquelevamosasériodemaisdentrodeumsonho.Constatamosque,naverdade,estátudobem.Claro,a oração pode ter o efeito oposto; pode destruir ilusões e nos mostrar quecorremosmaiorperigoespiritualdoqueimagináramos.Tambémpodesercomoo despertar de um sonho agradável para uma realidademais dura. Portanto, aoração pode fazer com que levemos uma sacudidela e falemos: “Por que euestava tãoapavorado? Issonãopodemeferir seDeusestácomigo!”.Tambémpodenoslevaradizer:“Porquefuitãocego?Comopudeencontrarjustificativapara uma coisa dessas?”. A oração traz perspectiva, mostra o cenário mais

amplo,tira-nosdeumavisãorasteiradascoisas,reorienta-nosparaondedefatoestamos.

Força—aoraçãoéuniãoespiritualcomDeus

“Aoraçãoéumafontedeenergia”,escreveJ. I.Packer.“Umestadoespiritualvigilante, cheio de vigor e confiante são os benefícios costumeiros da oraçãodiligente sobre qualquer assunto. Os puritanos referiam-se à oração como olubrificanteparaasengrenagensdaalma”.12P.T.Forsythescreve:Assim como um alimento, a oração traz consigo uma sensação renovada deforça e saúde. [...] A vida de todo organismo nada mais é que a vitóriacontínua de uma energia superior e constantemente alimentada sobre forçasinferioresemaiselementares.AoraçãoéaassimilaçãodaforçamoraldeumDeussanto.Devemostrabalharporessavida.Paraalimentaraalmatemosdelabutaremoração.[...]Aoraçãoéumaapropriaçãointensadepoder,dopoderdivino.É,portanto,criativa.13

Quandonos tornamoscristãos, somosensinadosanos“unirmosaCristo”.14

Issoquerdizer,entreoutrascoisas,quesomoscomogalhosenxertadosemumavideira,afimdequeavidadeCristo,aVideira,sejavistacadavezmaisemnós(Jo15.1ss.).Umadasmaneiraspelasquaisissoaconteceépelaoração.NofimdaCartaaosEfésios,Pauloosinstruia“sefortaleceremnoSenhore

em seu imenso poder” (Ef 6.10). Ele não faz disso uma orientação abstrata.Instrui os crentes a vestirem a “armadura” espiritual. A verdade deve ser seucinto;a justiça, suacouraça;eapazquevemdoevangelho, seucalçado.Elesdevem se defender como escudoda fé e o capacete da salvação.As imagensdessametáforatêmsidoexplicadasetêmbeneficiadomilharesdecongregaçõesaolongodosanos.AideiabásicaéadequetodososbenefíciosdasalvaçãodeCristo—perdão,paz,oamordeDeuspornós—,queobjetivamentenosforamassegurados,sejamapropriadosnavidadiáriadecadaum.AgarantiadoamordeDeus,apromessadapresençadoEspíritoquehabitaemnós,aconsciênciado

nosso perdão, o acesso à sua presença, o poder para vencer nossos hábitospecaminosos— todas essas coisas são abstrações até que sejam interiorizadaspara nosso uso real. Elas devem não só dominar nosso coração comomoldarnossavidapormeiodaaçãodoEspíritodeDeus.Como nos prepararmos de verdade para as batalhas da vida? Como nos

fortalecermosnoSenhor?Comonos tornarmos tão sensíveis espiritualmente aponto de conseguirmos discernir o que de fato está se passando em situaçõescomplicadas?Comotermosacertezadasabedoria,doamoredopoderdeDeusdemodoquenosvoltemosaeleeneledescansemos?Nofimdessapassagem,Pauloencerraametáforaediz:“EoremnoEspíritoemtodasasocasiõescomtodosos tiposdeoraçõese súplicas.Com issoemmente, estejamvigilantesesempre continuem orando por todo o povo do Senhor” (Ef 6.18). Muitosintérpretes tentamlistaraoraçãocomoumdositensdaarmadura, juntocomaverdade, a justiça, a paz, a fé, a salvação e a Palavra de Deus. Mas esseexpedientenãofunciona,porquetodososdemaisitensestãorelacionadosaalgocomo um capacete, uma espada ou uma couraça. Quando chega ao fim, eleapenas recomenda que orem orem e orem no Espírito, orem com vigilância,oremdetodasasmaneiras,oremotempotodo.Nãohácomosermaisbásicodoqueisso.Aoraçãoéamaneirapelaqualtodas

ascoisasemqueacreditamosequeCristoconquistouparanóstornam-sedefatonossaforça.Éamaneirapelaqualaverdadeoperaemnossocoraçãoparacriarnovosinstintos,reflexosedisposições.

Realidadeespiritual—aoraçãobuscatrazeraocoraçãoapercepçãodapresençadeDeus

EdmundClowneyescreve:“Deusnãoapenasfala[...]eleestápresente.Aoraçãoé algo saturado de consciência, com frequência uma consciência repleta dereverência,dapresençadeDeus”.15Pelaoração,nossoconhecimentoumtantoabstratodeDeussetornarealparanósdopontodevistaexistencial.NãoapenascremosnaglóriadeDeus;sentimosagrandiosidadedela.NãoapenascremosnoamordeDeus;sentimosnossocoraçãoinundadodesseamor.

OWestminsterlargercatechismdizqueumdospapéisdoEspíritoSantoemnossavidaéajudar-nosaorar“aooperareprecipitaremnossocoração(aindaque não o faça na mesma medida para todas as pessoas nem em todos osmomentos) as apreensões, afeições e graças que são condição para o corretodesempenhodessedever”.16Umadeclaraçãoextraordinariamenteequilibrada:aoração é um dever — temos de cumpri-lo haja o que houver; contudo, as“afeições”envolvidas—umcoraçãoenvoltoemtemor,maravilhamentoeamor— são necessárias para a “prática correta” da oração. Convém, portanto, quenossasoraçõesnãosejamdistraídaseapáticas.EssanãoéamelhormaneiradehonraraDeus.Todavia,não temosplenocomandodonossocoração.NemoEspíritoSanto

ageassimemtodasaspessoasotempotodoeemigualmedida.JohnNewton,compositordehinoseministrodo século18, falavada“presença sensível”deDeus—um sentimento da sua presença em nosso coração— como um domdivinoquenãopodemoscontrolar.Eleescreveu:“OSenhoràsvezesretirasuainfluênciasensível,eentãoozumbidodeumamoscaseráumadversárioetantoparanossapaciência:emoutrasocasiões,elenosmostraráoquepodefazeremepornós”.17

OLargercatechism,noentanto,nãorecomendapassividadequantoaisso.AodiscutircomooscristãosdevemreceberaceiadoSenhor,ensinaqueprecisam“meditarafetuosamentesobreamorteeossofrimentosdeCristoe,dessemodo,instigarasimesmosaumexercíciovigorosodagraçadeles”.18IssoquerdizerquedevemosmeditarnaverdadeatéosafetosdonossocoraçãoseremsuscitadosedescobrirmosemnósodesejodeserviraDeus.ComosãoessapresençaeessarealidadedeDeusnaoração?Lembre-sedequeoEspíritonãonosajudanessesentido o tempo todo nem da mesma maneira; no entanto, um exemploimpressionantedoqueépossívelpodeservistonumclássicoespiritualdoséculo17,The Christian’s great interest [O grande interesse do cristão], deWilliamGuthrie:É umamanifestação divina e gloriosa sobre a alma, derramando o amor deDeusnocoração; algomais sentidodoqueexpressado:não se tratadeuma

vozaudível,masdeumraiodeglóriaenchendodeDeusaalma,umavezqueeleévida,luz,amoreliberdade;umraioquecorrespondeàquelavozaudível:“Óhomem,muitoamado”(Dn9.23).[...].FoiissoquesepassouentreCristoe Maria, quando ele apenas lhe mencionou o nome— “Jesus disse a ela:Maria”. [...]Quandoelepronunciouessaúnicapalavra,“Maria”,houveumacomunicação e uma manifestação divinas e admiráveis discernidas em seucoração, pelas quais ela foi tão satisfatoriamente preenchida que não haviaespaçoparadiscutirequestionarseaqueleeraCristoounão.19

Guthriediznãosetratardeumavozaudívelaosouvidosoudealgovisívelaos

olhos.Noentanto,éumaespéciedevozedevisão—umasensaçãonocoração,não fisicamente captada pelos sentidos. Pela oração você consegue entrar napresençadeDeus.

Paraondeaoraçãonosleva

Autoconhecimento—orarrequeregerasinceridadeeautoconhecimento

Jáobservamosqueaoraçãonãopodecomeçarsemhumildade.Noentanto,como tempo ela deve nos levar além do simples senso de insuficiência para umaprofundasinceridadeemrelaçãoanósmesmos.Orarcomsinceridadediantedeum Deus onisciente é algo que pareceria óbvio; em vez disso, costumamostagarelar sobre trivialidades em tom de oração, sem reservar tempo nem nosesforçar para expor a Deus e a nósmesmos nossos temores, feridas, falhas epecados mais profundos. “A oração, a verdadeira oração, não permite queiludamosanósmesmos.Eladiminuiatensãodadilataçãodonossoego.Produzuma clareza de visão espiritual. [...] Exaure nosso autoengano e respectivofarisaísmo.[...]Portanto,pelaoraçãoalcançamosnossoverdadeiroeu.”20

Aoraçãonãoapenas requeraconfissãoexplícitadepecadose transgressõestambémexigetrazeràluzasposturas,atitudes,perspectivasedesejosinterioresdescontroladosquenos levamapecadosgrandesepequenos.21Éumasimples

constatação de que, quanto mais perto chegamos da beleza, inteligência oupurezasupremas,maiscientesficamosdaprópriafeiura,estupidezeimpureza.São famosasaspalavrascomqueCalvinoabriu suas Institutes: “Quase toda

nossasabedoria,ouseja,asabedoriaverdadeiraesadia,consistededuaspartes:oconhecimentodeDeusedenósmesmos”.22Emoutraspalavras,nãopodemosconhecermelhor aDeus de fato sem passar aomesmo tempo a nos conhecermelhor.Tambémfuncionaemsentidoinverso.Senegominhaprópriafraquezaepecado,haveráumacegueiraconcomitantedagrandezaedaglóriadeDeus.NãohámaiorexemplodissodoqueIsaías.QuandolhefoidadaumavisãonotemplodasantidadedeDeus,nomesmo instanteele respondeudizendo:“Aidemim!Estouarruinado!Poissouumhomemdelábiosimpuros,evivoentreumpovodelábiosimpuros,eporquemeusolhosviramoRei,oSenhor todo-poderoso”(Is6.5).FoiporqueviraoreideumnovomodoqueIsaíasseviudeumnovomodo. As duas coisas devem andar juntas. Se não estivermos abertos areconhecernossapequenezepecaminosidade,jamaisperceberemosagrandezaeasantidadedoSenhor.EdmundClowneyobservaqueaoraçãoimplicaumasinceridadesemparalelos

na realidade dos relacionamentos humanos, pois toda relação humana envolvenecessariamenteapenasumapartedanossapersonalidade.Relacionamo-nosdemaneiradiferentecomnossocônjuge,comnossosócionosnegóciosecomumconhecido casual na rua, pois cada um dos nossos papéis sociais expressasomenteumapartedanossapersonalidade.Aténossocônjugevêapenaspartedequemsomos.“EmrelaçãoaDeus,noentanto,estamos‘nuseexpostos’(Hb4.13). Nossas máscaras desaparecem, o fingimento é inútil: o relacionamentonão é parcial,mas total.Tudooque somos semantémem relação comnossoCriadoreRedentor”.23

Confiança—aoraçãorequeregeraconfiançaserenaefirmeesperança

Assimcomoaoraçãodeve combinar reverência e intimidade, tambémprecisacombinarsubmissãoe“importunação”.Opensamentofinaldecadaoraçãodeve

serpelaajudadequenecessitamosparaaceitarcomgratidãodasmãosdeDeusoquequerqueelenosenvieemsuasabedoria.Mesmoascrianças,cujoinstintoéderesistirquandolhescontrariamavontade,nofundocostumamsaberquenãoentendemomundocomoseuspais.NossoPai“conhececomoninguémoqueémelhor;atendernossopedidopoderia,emmuitoscasos,sernossadestruição”.24

Poroutrolado,somosconvidadosatornarnossasnecessidadesconhecidasdemaneira específica, intensa e reiterada na oração, confiantes de que serãoouvidas. O autor norueguês Ole Hallesby, em sua obra clássica sobre oração,refere-seaelacomo“trabalho”e“luta”.25Emborasempredevamosencerrarasoraçõescom“entretanto,sejafeitaatuavontade”,elasdevemsemprecomeçaremgrandelutacomDeus.Luteroteveaousadiadedizerqueaoraçãoinsistente“conquistaaDeus”.26Aoraçãonãoéumapráticapassiva,calma,tranquila.Um equilíbrio entre as duas atitudes exigidas — confiança serena e firme

esperança—écrucial.Emsuateologiasistemática,sobotema“requisitosparaa oração”, Charles Hodge relaciona “importunação” e “submissão” emsequência. Se enfatizarmos exageradamente a submissão, acabaremos ficandopassivosdemais.Nuncaoraremoscomaforçaeosargumentosextraordináriosque vemos em Abraão, quando ele pressiona Deus para salvar Sodoma eGomorra(Gn18.16-33),ouemMoisés,quandosuplicaaDeuspormisericórdiapara Israeleparasipróprio (Êx33.12-22)ouemHabacuqueeemJó,quandoquestionam os atos de Deus na história. Contudo, se enfatizarmosexcessivamentea“importunação”,senosentregarmosàoraçãosúplicesemumabase anterior de aceitação da sabedoria e da soberania de Deus, acabaremosenfurecidosdemaisquandonossasoraçõesnãoforemrespondidas.Emambososcasos, deixaremos de fazer orações pacientes, longânimas, persistentes, aindaquenãohistéricas,pornossasnecessidadesepreocupações.Hallesbycomparaaoraçãoàmineração,comoerafeitanaNoruega,noinício

doséculo20.Ademoliçãousadaparaabrirasminasrequeriadoistiposbásicosdeação.Por longosperíodosde tempo,escreveele,“perfurava-secomgrandeesforço a rocha dura para fazer buracos profundos”. Abrir buracos fundos osuficientenospontosmaisestratégicospararemoveroblocoprincipaldarochaera trabalho que exigia paciência, constância e grande habilidade. Uma vez

feitosessesburacos,noentanto,acargadeexplosivoserainseridaeconectadaaum detonador. “Acender o detonador e explodir a carga não só é fácil, mastambém muito interessante. [...] Os ‘resultados’ são visíveis. [...] A explosãoecoaevoamfragmentosem todasasdireções.”Eleconcluique“qualquerumpode acender umdetonador”, ao passo que o trabalhomaismeticuloso requertantohabilidadequantoforçadecaráterpaciente.27Essa ilustração interessantenosadverte contra fazer somenteoraçõesque“acendemodetonador”, aquelasdo tipo que logo abandonamos se não obtivermos resultados imediatos. Seacreditarmos tanto no poder da oração quanto na sabedoria deDeus, teremosuma vida de oração paciente e dedicada a “perfurar buracos”. Os crentesmadurossãoconscientesdequepartedoquetornaaoraçãoeficazésaberlidarcomamonotonia.Devemosevitarosextremos—tantoodenãopedirnadaaDeusquantoode

achar que podemos “dobrar” a vontade de Deus para o lado que queremos.Precisamoscombinaraimportunaçãotenaz,ouseja,a“lutacomDeus”,comaprofundaaceitaçãodasábiavontadedeDeus,qualquerquesejaela.

Rendição—aoraçãorequeregeraaentregadavidatodaemamoraDeus

EmSalmos66.18lemos:“Seeutivesseacalentadoopecadoemmeucoração,oSENHORnãoteriameouvido”.Àprimeiravista,issoparecesignificarquepossomerecerarespostadeDeusàminhaoraçãosetivermaiorpurezamoral.Claro,tudooquevimosatéagorasobreateologiabíblicadeoraraoPaiemnomedeJesuscontradizessaideia.Oqueissoquerdizer,então?Tiagofaladasoraçõesque não funcionam porque “vocês pedem pelos motivos errados, para quepossamgastaroqueobtêmcomosprópriosprazeres”(Tg4.3).Aideiaéaseguinte:assimcomoaféemCristoénecessáriapararecebermosa

salvação,masnãopodeserconquistadaoumerecida,tambémocompromissodepôrDeusemprimeirolugar,amá-loesegui-loacimadetudoénecessárioantesqueoSenhorpossaatendernossasoraçõessemprejuízoparanós.Se levamosuma vida em que não dedicamos a Deus nossa mais elevada lealdade, então

usaremos a oração como instrumento, de maneira egoísta, apenas para tentarconseguirascoisasquejápodemestararruinandonossavida.EssaverdadeestáportrásdaspalavrasdeTiago1.6-8:quandovocêora“deve

crer e não duvidar. [...] Essas pessoas [que duvidam] não deveriam esperarreceber nada do Senhor. Tais pessoas são indecisas e instáveis em tudo o quefazem”.Issodeixamuitosleitoresemgrandeansiedade,porque,emumaanálisesuperficial,parecequeTiagoestádizendoquedevemosterabsolutacertezaemnossamentequandosuplicamosaDeus.Nãoédissoqueeleestá falando.Eledefine duvidar no versículo 8 como ficar “indeciso” — usando a palavradipsychosis, ou, literalmente, “duas psiques”. J. I. Packer e Carolyn Nystromexplicam o termo fazendo referência ao livro clássico de Søren Kierkegaard,intituladoPurityofheartistowillonething[Purezadecoraçãoédesejarumasócoisa].Nãosignificaquevocêsejaperfeitooumoralmentepuro,oudestituídodequaisquerincertezas.SignificaquetomouadecisãodequeDeuséseuDeusedeque você se livrará de quaisquer preocupações que concorram com isso nomomento em que conseguir discerni-las. É tomar posse de Salmos 73.25 —“Quemtenhoeunocéusenãoati?Enaterranãohánadaquedesejealémdeti”.Packeracrescenta:“Nada,ouseja,nãohánadaqueeunãoadmitiriaperderseminhauniãocomDeusassimoexigir.Éumaquestãodedesejar evalorizar aamizade com [Deus]maisdoquedesejo evalorizoqualqueroutra coisanestemundo”.28

Àprimeiravista,podemosleroúltimoparágrafoeperguntar:“Quem,então,podeorar?”.A resposta certa é “Todocrentenascidodenovo, semumaúnicaexceção”.29 Crentes de verdade, embora profundamente conscientes do quãoimperfeitoéoamorquesentemporDeus,aindaassimqueremamá-lomaisdoquetudo.Podemclamar“Nãofaçoobemquequero”e“emboranocoraçãoeumedeleitenavontadedeDeus,aindavejo tantos impulsosdentrodemimquedelameafastam”.30ApassagemdeRomanos7eoutrasindicamque,emboraoscristãossempreserãocapazesdecometergrandesdeslizesaopecarealutarcoma dúvida, uma transformação fundamental aconteceu em sua fidelidadeprimordial.Essatransformaçãofundamentaléumrequisitodaoraçãoquenãoésuperficialnemegoísta.

Nesseponto,deveríamosnoslembrardacartadeAgostinhoaAnícia.Alielediz,empoucaspalavras,quenãosedevecomeçaraorarportudooquedesejaenquantonãoseconscientizardequeemDeusjátemtudodequenecessita.Ouseja, amenosque saibamosqueDeus é a única coisa dequenecessitamosdeverdade, nossas petições e súplicas podem se tornar simples formas depreocupação e ambição. Podemos usar a oração somente como mais umamaneira de conseguir diversas coisas que desejamosmuito. Não sóDeus nãoouvirá essas orações (porque a motivação de nossos pedidos é egoísta, paragastarcomnossosprazeres[Tg4.2,3]),mastambémasoraçõesnãoreorientarãonossa perspectiva nem nos darão qualquer alívio do fardo melancólico dapreocupaçãoexcessivaconoscomesmos.UmadascoisasmaisimpressionantesqueJoãoCalvinoafirmasobreaoraçãoéqueelaéoprincipalmodopeloqualrecebemostudooqueexisteparanósemCristo:“Resta-nosbuscarnele,eemoraçõeslhepedir,oqueaprendemosasernele”.31 Pense nisso. Não podemos receber a Cristo e crer em seu nome (Jo1.12,13)excetoatravésdaoração.MartinhoLuteroescreveuque“avidatodaéarrependimento”eéassimquecrescemosemgraça.Mas,denovo,issoéoração.Nosso“principalfim”,dizoWestmintershortercatechism,32é“glorificaraDeusedeledesfrutarparasempre”.Todasessascoisassão,emessência,oração.No fimdos tempos, ahistóriaculminaráemumgrandebanquete (Ap19.9),

mas, como temos visto, podemos cear com Jesus agora. Como? Por meio daoração.Os comentaristas entendem que o convite de Jesus para “ouvirem suavoz”e“abriremaporta”demodoqueelepossa“entrarecearcomaspessoas,eelas com ele” (Ap 3.20) é um convite à amizade e à comunhão com ele pelaoração.Aoração—emborasejacomfrequênciaextenuante,umaagoniamesmo—emlongoprazoéamaiorfontedepoderpossível.

ORAÇÃO

OqueéTRABALHO Aoraçãoédeveredisciplina.PALAVRA OraréconversarcomDeus.

EQUILÍBRIO Oraçãoéadoração,confissão,agradecimentoesúplica.

OqueelarequerGRAÇA Aoraçãosefaz“emnomedeJesus”,baseadanoevangelho.TEMOR Oraréterocoraçãoenvolvidoemreverênciaamorosa.IMPOTÊNCIA Oraréaceitaraprópriafragilidadeedependência.

OqueelaproporcionaPERSPECTIVA AoraçãoreorientasuavisãoparaDeus.FORÇA OraçãoéuniãoespiritualcomDeus.REALIDADEESPIRITUAL

AoraçãobuscatrazeraocoraçãoapercepçãodapresençadeDeus.

ParaondeelanoslevaAUTOCONHECIMENTO Aoraçãorequeregerasinceridadeeautoconhecimento.CONFIANÇA Aoraçãorequeregeraconfiançaserenaefirmeesperança.RENDIÇÃO AoraçãorequeregeraaentregadavidatodaemamoraDeus.

1Forsyth,Soulofprayer,p.9-10.2Ibidem,p.62.3Phelps,Thestillhour,p.61-2.4OleHallesby,Prayer(Minneapolis:Augsburg,1975),p.89-90.5Vejaa importante e extensadiscussãodoconflito entrepuritanos equakers

em:PeterAdam,HearingGod’swords:exploringbiblicalspirituality(DownersGrove:InterVarsityPress,2004),p.175-201.Adamtomaoladodospuritanos,que acusaramosquakers de separarem Palavra e Espírito,mas acrescenta serpossível exagerar na identificação do Espírito com a Palavra, demodo que oEspíritonãotenhaemabsolutocomonosinfluenciaràpartedanossaleituradaBíblia.Issoéincorrernoerrooposto.“UmaidentificaçãopróximademaisentreEspírito e Palavra cai por terra quando refletimos que o Espírito habita noscrentesmesmoquandoelesnãoestãopensandonaspalavrasdasEscrituras.Umaseparação radical entre Espírito e Palavra diminui dois dos meios que Deusforneceueescolheuusar:aBíbliaeseumestre”,p.199.

6J. I. Packer, “Some lessons in prayer”, in:KnowingChristianity (Wheaton:HaroldShaw,1995),p.129-30.

7Veja a evidência dessa conclusão em: Wayne R. Spear, The theology ofprayer: a systematic study of the biblical teaching on prayer (Grand Rapids:Baker, 1979), p. 28-30; eGraemeGoldsworthy,Prayer and the knowledge ofGod,p.82-3.

8Packer,KnowingChristianity,p.127.9Westminster larger catechism, q. 189 [edição em português: O catecismo

maiordeWestminster(SãoPaulo:CulturaCristã,2013)].10Phelps,Thestillhour,p.55.11Hallesby,Prayer,p.16.12Packer,KnowingChristianity,p.128.13Forsyth,Soulofprayer,p.10.14NomomentoemquecremosemCristo,somosinstruídosaestar“emCristo”

—unidoscomele.SinclairFergusondistingueváriosaspectosdanossauniãocom Cristo: estamos unidos com ele, pela fé, em termos legais, espirituais evitais(S.Ferguson,TheChristianlife[Carlisle:BannerofTruth,1981],p.107-10).

15Clowney,“Abiblicaltheologyofprayer”.16Westminsterlargercatechism,Q.182.17John Newton, “Letter II to Mr. B****”, in: The works of John Newton

(Carlisle:BannerofTruth,1985),vol.1,p.622.

18Westminsterlargercatechism,Q.174.19WilliamGuthrie,TheChristian’sgreatinterest(Glasgow:W.Collins,1828),

p.156.20Forsyth,Soulofprayer,p.18-9.21Westminster larger catechism, q. 105. Aqui, explicando o primeiro

mandamento — não terás outros deuses diante do Deus verdadeiro — ocatecismonosdizquedevemosextirpar“oamorpróprio,abuscadoeuetodasas demais disposiçõesdesordenadas e imoderadasdanossamente, vontadeouafetosporoutrascoisas,eafastá-lasdissonotodoouemparte[...]e[extirpar]aatribuição de louvor ao destino, a ídolos, a nós mesmos ou a qualquer outracriaturaporqualquerbemquedesfrutemos,tenhamosoupossamosfazer”.

22McNeill,Calvin: Institutes, 1.1.1 [edições em português: JoãoCalvino,Asinstitutas,traduçãodeWaldyrCarvalhoLuz(SãoPaulo:CulturaCristã,2006),4vols., eA instituição da religião cristã, tradução de Carlos EduardoOliveira;JoséCarlosEstêvão(SãoPaulo:Ed.Unesp,2008)].

23Clowney,“Abiblicaltheologyofprayer”,p.142.24Hodge,Systematictheology,p.703.25Hallesby,Prayer,p.61-118.26CitadoemBloesch,Struggleofprayer,p.ix.27Hallesby,Prayer,p.76.28Packer;Nystrom,Praying:findingourway,p.40.29Ibidem.30UmaparáfrasedeRomanos7.19,20,22,23.31McNeill,Calvin:Institutes,3.20.1.,p.850.32Ediçãoemportuguês:ObrevecatecismodeWestminster(SãoPaulo:Cultura

Cristã,s.d).

QUARTAPARTER

Aprofundandoaoração

D

DEZ

Aoraçãocomoconversa:meditandoemsuaPalavra

issemos que, quando respondemos à Palavra de Deus com confiança, aoração se transforma em uma conversa comDeus.Muito se tem escrito

sobre a hiperatividade da sociedade contemporânea e problema cultural dedéficit de atenção dela, que fazem da reflexão pausada e da meditação artesperdidas. No entanto, se a oração deve ser uma genuína conversa comDeus,deveserprecedidapelohábitodeouviravozdeDeuspormeiodameditaçãonasEscrituras.

Aportadeentradaparaaoração

Bem-aventuradosaquelesquenãoseguemospassosdoímpio,nemsedetêmnocaminhodospecadores,nemseassentamnacompanhiadoszombadores,mascujodeleiteestánaleidoSENHOR,eemsualeimeditamdiaenoite.Sãocomoaárvoreplantadajuntoàscorrentesdeágua,quedáseufrutonaestaçãocertaecujasfolhasnãomurcham—tudooquefazemprospera.Nãoéassimcomos ímpios!Sãocomoapalhaqueoventodispersa.Por isso,os ímpiosnãoprevalecerãonojulgamento,nemospecadoresnaassembleiadosjustos.PoisoSENHOR vigiao caminhodos justos,masocaminhodos ímpios levaàdestruição(Sl1.1-6).

Salmos é o livro de oração da Bíblia. Vale notar, contudo, que o primeirosalmo não é em si uma oração,mas sim umameditação— na verdade, umameditaçãosobreameditação.Aposiçãoprincipalqueeleocupanãoéacidental.EugenePeterson salienta queSalmos é um livro editado, e queo salmo1 é aportadeentradaparaosdemais.“Otexto[deSalmos]quenosensinaaorarnãocomeçacomumaoração.Aindanãoestamosprontos.Estamosimersosemnósmesmos.Eomundonos levade láparacáa todo instante.”Osalmo1éuma“pré-oraçãoquenosprepara”.1

Essa é uma descoberta importante. Na vida devocional de muitos de nós,passamosbruscamente de umestudodaBíbliamais acadêmicopara a oração.Háum“meio-termo”,noentanto,entreestudobíblicoeoração,umaespéciedeponteentreasduasatividades.EmboraexperiênciasprofundasdapresençaedopoderdeDeuspossamacontecerdeinúmerasmaneiras,omodohabitualdenosaprofundarmosespiritualmentenaoraçãoéatravésdameditaçãonasEscrituras.“Se orarmos semmeditar”, escreve EdmundClowney, “nossa comunhão comDeussetornarápobreedistante”.2

De acordo com o salmo 1, a meditação promete ao menos três coisas. Aprimeira é estabilidade. A pessoa acostumada a meditar é como uma árvoreenraizadade tal formaqueoventonãoconseguederrubá-la.Observequeessaárvore está plantada junto a correntes de águas. Árvores que ficam junto acorrentes de águas se desenvolvem mesmo que haja pouca chuva. Essa é aimagem de alguém capaz de seguir em frente mesmo em tempos difíceis, desequidão. Precisamos ter as raízes do coração e da alma em Deus nessesmomentos,eameditaçãoéocaminhoparaconseguirmosisso.Ascorrentesdeáguas representama “lei doSenhor”, aPalavra deDeus, a imagemdas raízesmergulhadasnessaáguaéumametáforadameditação.3Portanto,ameditaçãoéoquenosconfereestabilidade,pazecoragememtemposdegrandedificuldade,adversidadeeturbulência.Elanosajudaapermanecermosenraizadosna“água”divinaquandotodasasoutrasfontesdeumidade—dealegria,esperançaeforça—secam.Emcontraposiçãoaisso,apalha—acascaqueenvolveasementeouo grão— é muito leve e qualquer brisa a sopra para longe. Qualquer coisa

consegueremovê-la.OmododeevitarserpalhaemvezdeárvoreépormeiodameditaçãonaPalavradeDeus.Háumtomderealismoaqui.Observequeaárvore,mesmodandofrutoapenas

naestaçãoapropriada,nuncaperdeasfolhas.Ameditaçãolevaàestabilidade—a árvore está sempre verde! — mas não à imunidade completa contra osofrimento e a seca. Não devemos esperar que ela sempre nos conduza aexperiênciasconstantesdealegriaeamor.Háperíodosdegrandedeleite(talvezcomo as flores da primavera?) e períodos de sabedoria e maturidade (talvezcomoosfrutosdoverão?).Todavia,hátambéminvernosespirituais,quandonãosentimosqueDeusestápertomesmoquenossasraízespermaneçamfirmesemsuaverdade.Ameditaçãotambémtrazapromessadesolidez,decaráter.Apalhanãopode

produzirnada,aopassoqueaárvorepodedarfrutos.Arazãodadiferençaéquea árvore é algoque cresce e a palha, não.Aspessoasquemeditam se tornamindivíduoscoerentesqueponderambemascoisase têmconvicçõesprofundas,são capazes de explicar conceitos difíceis em linguagem simples e têm bonsmotivos para tudo o que fazem. Há muitas outras que não meditam. Passammuitode leveporcimade tudo, fazendosuasescolhasaquiealipor impulso,sem razões bem pensadas para seu comportamento. Seguem caprichos, levamumavidasuperficial.Quemmeditaconsegueresistiràpressão—jáquemnãoconsegueacompanhaamultidão,feitopalha,paraondequerqueelaestejaindo.Ameditação dá frutos, o que biblicamente significa traços de caráter como

amor, alegria, paz, paciência, humildade, domínio próprio (Gl 5.22ss.). Averdadeirameditação,portanto,nãoapenasfazcomquenossintamos“pertodeDeus”,mas transforma nossa vida.ComoobservaDerekKidner, estudioso doAntigo Testamento: “A árvore não é um mero canal que transporta água emestado inalterado de um lugar para outro, mas sim um organismo vivo que aabsorveparaproduzirnodevidotempoalgonovoedelicioso,próprioparasuaespécieeseutempo”.4

Porfim,ameditaçãotrazbem-aventurança—umaideiaabundantenaBíblia.Significa paz e bem-estar em todas as dimensões. Significa crescimento decaráter, estabilidadeedeleite (Sl 1.2).Meditar na lei doSenhor, asEscrituras,

nos leva do dever à alegria. As promessas bíblicas para a meditação sãoenormes.

Ameditaçãoeamente

Aonosconvidarameditar,oprimeirosalmousaumapalavracujosentidoliteralé “sussurrar”. Refere-se ao fato de que, especificamente na Antiguidade, asEscrituras eram recitadas em voz alta e de cor. Não há melhor maneira demeditarsobreumversículoeextrairtodososaspectos,implicaçõeseriquezasdoseu significado do que o memorizando. Outras palavras traduzidas como“meditar”emSalmossignificamponderarequestionarmeticulosamente(cf.Sl77.3,6,12).Meditaréproporperguntasasimesmosobreaverdade, taiscomo:“Estouvivendoàluzdessaverdade?Quediferençaelafaz?Eualevoasério?Seeucresseemeapegasseaessaverdade,dequeformaissomudariaminhavida?Quando esqueço dessa verdade, de que modo isso afeta a mim e a meusrelacionamentos?”. Em todos os casos, meditar significa fazer uso intenso damente.5

AmeditaçãoemumtextodaBíbliapressupõequevocêjásaibaalgosobreosignificadodotexto,pormeiodoestudoedainterpretação.Nãosepoderefletirsobre o que não se entende nem disso desfrutar. Compreender um trecho dasEscrituras implica responder a duas perguntas básicas sobre ele. Primeira: “Oque o autor original pretende transmitir a seus leitores nessa passagem?”Segunda: “Que papel o texto desempenha na Bíblia como um todo; comocontribuiparaamensagemdoevangelhoeseinserenoarconarrativoprincipaldaBíblia,cujoápiceéasalvaçãopormeiodeJesusCristo?”.Trata-sededuasquestões“hermenêuticas”—respondê-lasnosajudaa interpretarosignificadodo texto, demodo que possamos então passar ameditar nas implicações e naaplicaçãodaverdadequeelecontém.Amenosquevocêprimeirosedediqueaotrabalhoárduoderesponderaessas

perguntassobredeterminadotextobíblico,suasmeditaçõesnãoseembasarãonoqueDeusdefatoestádizendonaquelapassagem.Algumacoisanotextobíblicopode“falaraoseucoração”—mastalvezfalepraticamenteoopostodoqueo

autor da passagem, inspirado pelo Espírito, estava dizendo. Quando issoacontece,vocêestáouvindooprópriocoraçãoouoespíritodasuacultura,nãoavozdeDeusnasEscrituras.Hojeemdiaumgrandenúmerodelivrosrecomendaa “leitura divina” [lectio divina] da Bíblia e define essa atividade, com certadisplicência, como uma leitura feita “não em busca de informação, mas paraouvirumapalavrapessoaldeDeusparavocê”.Aoposiçãopropostaé falsa.Éverdade que a meditação personaliza a Palavra, sem dúvida, mas, antes quepossamosmeditarnoqueo textosignificapessoalmenteparanóseparanossotempo,devemosprimeirosaber,tantoquantopossível,oqueoautorquisdizeraseusleitoresquandooescreveu.MartinhoLuterodiziaque,antesdeconseguirtransformar um texto bíblico em louvor, ele tinha primeiro de compreendê-locomo “instrução”, como informação verdadeira.6 Resumindo, a meditaçãobíblicafundamenta-senotrabalhodeinterpretaçãoeestudobíblicossólidos.A meditação bíblica não esvazia a mente do pensamento racional. Para

estabelecer um contraste, considere a “meditação commantras”.Uma de suasversõeséapopularmeditaçãotranscendental(ouMT).NaMT,osparticipantesrepetem uma palavra ou frase que a princípio elimina outros pensamentos edepoisperdeoprópriosignificado.Umestudorecentedefiniuameditaçãocommantrascomo“arepetiçãodeumafrasedetalmodoqueelatranscendeapessoaaté um estado que não exige esforço algum, onde a atenção concentrada estáausente”.7Oresultadoéquesedeixadeterconsciênciadequaisquerpalavras,ideias, imagens ou conceitos — tornando-se consciente apenas da própriaconsciência. Além desse ponto existem outras formas de consciência que noslevamemdireçãoaosensodesermosumcomtudooqueexiste,comDeusqueestáemtodasascoisas.Comoumteólogocristãoobservou,issoéoopostodoobjetivodameditaçãocristã.Nãoéumaexperiência“deconheceraDeus,mas[...]deserDeus”.8

A meditação cristã, no entanto, é bastante racional, até argumentativa. “Óminhaalma,porqueestásabatida?Porque teperturbasdentroemmim?”,dizDavino salmo42, travando literalmenteuma luta contraoprópriocoração.Ameditaçãocommantrasbuscasuprimiro ladoanalíticodamente.Ameditação

cristã,noentanto,estimulanossaanáliseereflexão—eseconcentranaglóriaenagraçadeDeus.

Ameditaçãoeocoração

Meditar sobreaBíbliaémaisdoqueapenas refletir com intensidade.Emboracontenhainformação,aBíbliaémaisdoqueisso.Elafaladesimesmacomoumagentevivoeativo(Hb4.12).Elaproclamaqueoevangelho,amensagemdela,não é só uma palavra,mas um poder (Rm 1.16; 1Ts 1.5).Quando Paulo falasobre a Palavra de Deus “habitando ricamente” dentro de nós (Cl 3.16), ficaclaro que se refere a algo além damera concordância com informações. Estáfalandode“umacontemplaçãoprofundaepenetrante”quecapacitaamensagembíblicaaterpoderdetransformação.9

Asmetáforasdosalmo1 transmitemtudoisso.Ameditaçãoécomparadaàsraízes de uma árvore que absorvem água. Significa não apenas conhecer umaverdade, mas absorvê-la e convertê-la em parte do próprio eu. Meditar é“saborear” espiritualmenteasEscrituras—deleitar-senelas,provandoogostodoce do ensino, sentindo convicção acerca do que elas nos contam sobre nósmesmos,elouvandoaDeuspeloquenosrevelamsobreele.Meditartambémé“digerir”espiritualmenteasEscrituras—aplicá-las,pensarsobrecomoelasnosafetam, descrevem e conduzem de maneira mais prática. É tirar forças dasEscrituras,permitindoquenosdêesperança,usá-lasparanoslembrardoquantosomosamados.Passandoparaoutrametáfora,meditaréabsorveraverdadenofundodocoração, atéque se incendeie e comeceaderreter e amoldarnossasreaçõesaDeus,anósmesmoseaomundo.EmSalmos103.1,2háumexemplodemeditação:“LouvaaoSENHOR,óminha

alma;etodoomeuinterior,louveseusantonome.LouveaoSENHOR,óminhaalma,enãoteesqueçasdetodososseusbenefícios”.NotequeDavinãodirigeapalavraaDeus,emboraestejacientedeestaremsuapresença.Elefalaconsigomesmo,comsuaalma.Levaaverdadeparadentrodeseucoração,diantedafacede Deus. Isso é meditação. Os “benefícios” que Davi relaciona são os dasalvação—operdãodospecados;orecebimentodagraça;eoamorinfinitoe

incondicional de Deus (Sl 103.3,8-12). Ele toma essas verdades bíblicas e asleva para dentro do próprio coração, até ser por elas influenciado, alegrado etransformado. Faz isso repreendendo seu coração pela tendência de se“esquecer”daprópriasalvação.IssonãopodesignificarliteralmentequeDaviseesquecedequeécrente.Antes,devesignificarqueseucoração seesquecedeque nossas reações instintivas, nossos impulsos, nossas emoções e nossasatitudesnãoestãoconectadosàsverdadesqueprofessamos.Seguindoporessalinha,ameditaçãodeumcristãopodesermaisoumenosassim:Quandomeesqueçoquesoujustificadopelafésomente,doulugaràculpaeao arrependimento em relação ao passado. Vivo, então, escravizado pelosídolosdopoderedodinheiroquemefazemsentirmelhorcomigomesmo.QuandomeesqueçoqueestousendosantificadopelapresençadoEspírito

SantodeDeus,desistodemimmesmoeparodetentarmudar.Quando me esqueço da esperança da minha ressurreição futura, passo a

sentirmedodavelhiceedamorte.QuandomeesqueçodequefuiadotadonafamíliadeDeus,passoateruma

porçãodemedos.Nãoorocomsinceridade.Percoaconfiança.TentoescondermeusdefeitosdeDeusedemimmesmo.

Fixaramente

EmboraexistamdiversosmodosespecíficosdemeditarsobreumapassagemdasEscrituras,oteólogobritânicoJohnOwenacreditavaseremtrêsosmovimentosou estágios básicos da meditação.10 Ele começa distinguindo meditação deestudobíblicoedaoraçãopropriamentedita.Escreve:Ela [ameditação]édiferentedoestudodapalavra, cujoobjetivoprincipal éaprenderaverdadeouproclamá-laaoutros;etambémdaoração,cujoobjetoimediatoéopróprioDeus.Ameditação[...],porém,[...]éoafetardenossocoraçãoementepeloamor,deleitee[humildade].11

Ele prossegue explicando o primeiro estágio, que consiste em selecionar echegar a umavisão clara—“fixandoos pensamentos”—de umaverdade daBíblia:Pela meditação solene ou determinada, tenho em mente [primeiro] ospensamentossobrealgumassuntoespiritualedivinopelofixar,constrangereordenar pormeio de nossos pensamentos a seu respeito. [...] [É] o exercitarreal da mente, em seus pensamentos, meditações e desejos, das coisasespirituaisecelestiais.[...]Elesocupam-sedissofixandonelaspensamentosemeditações.Háváriasmaneiras tradicionais de chegar a essavisão claradedeterminado

texto.Umadelasé lendo-odevagare respondendoaquatroperguntas:“OqueessetextomeensinasobreDeuseseucaráter?Eoqueensinasobreanatureza,ocarátereocomportamentohumanos?”.EsobreCristoesuasalvação?Eaindasobreaigreja,ouavidaentreopovodeDeus?Poderíamosentão,porexemplo,lerJoão2.13-22,textoquenarraoepisódioemqueJesusexpulsaoscambistasdotemplo:Quase na hora da Páscoa dos judeus, Jesus subiu a Jerusalém.No pátio dotemplo ele encontrou quem vendesse bois, ovelhas e pombas, e pessoassentadasjuntoasuasmesastrocandodinheiro.Fezentãoumchicotedecordase expulsou todos do pátio, bem como as ovelhas e os bois; esparramou asmoedas dos cambistas e virou-lhes asmesas. Para quemvendia pombos eledisse: “Tirem-nos daqui! Parem de transformar a casa do meu Pai emmercado!”.Seusdiscípulosselembraramdoqueestáescrito:“Ozeloporsuacasameconsumirá”.Osjudeusentãolheresponderam:“Quesinalpodesnosmostrar para provar tua autoridade para fazer tudo isso?”. Jesus lhesrespondeu: “Destruam este templo e eu o reerguerei em três dias”. Ao quedisseram: “Foram necessários 46 anos para construir este templo, e tu oerguerásemtrêsdias?”.Masotemplodequefalaraeraseucorpo.Depoisque

ressuscitou dentre os mortos, seus discípulos se lembraram do que dissera.EntãocreramnasEscriturasenaspalavrasqueJesusproferira.OqueaprendemossobreDeusnessapassagem?TalvezvejamosqueDeusnão

podesertomadocomleviandade,poiseleésanto.Emsuapresença,sua“casa”,faz diferença como vivemos. O que aprendemos sobre quem somos e comodeveríamosviver?Talveznosocorraquão importanteéconcentrarmo-nosneledurante a adoração, e não divagarmos por outros assuntos. Podemos tambémmeditarnoque significaestar altamentecomprometido, ser “zeloso”paracomDeusnasoutrasáreasdavida.OqueaprendemossobreCristoesuasalvação?Nessa passagem Jesus não apenas prevê sua ressurreição,mas também afirmaque ele é o templo definitivo, a ponte sobre o abismo entre Deus e ahumanidade.OqueaprendemossobreseropovodeDeus?Descobrimosquantoé importante estudar as Escrituras, embora isso exija tempo e paciência paracompreendê-laenosregozijaremseuensino.Outraformaprodutivadeabordarameditaçãoéfazerperguntasdeaplicação

prática. Procure na passagem: por quaisquer exemplos pessoais a imitar ou aevitar,porquaisquerordensaobedecer,porquaisquerpromessasareivindicareporquaisquer advertências a dar atenção.Vamosusar essasquestões emoutrapassagemdoevangelhodeJoão(1.29-42):No dia seguinte, João viu Jesus vindo em sua direção e disse: “Vejam, oCordeirodeDeusquetiraopecadodomundo!Aelemereferiquandodisse:‘Um homem que vem depois de mim me sobrepujou porque era antes demim’.Eumesmonãooconhecia,masomotivoporquevimbatizandocomáguaeraparaqueelepudesseserreveladoaIsrael”.EntãoJoãodeuoseguintetestemunho:“VioEspíritodescerdocéucomopombaepermanecersobreele.Eumesmonãooconhecia,masaquelequemeenviouparabatizarcomáguamedisse: ‘Aquele sobrequemvires descer oEspírito e permanecer é oquebatizará com o Espírito Santo’. Vi e testemunho que este é o escolhido deDeus”.

Nodia seguinte, láestava Joãooutravezcomdoisdosdiscípulos.AoverJesuspassar,disse: “Vejam,oCordeirodeDeus!”.Aoouvi-lodizer isso,osdois discípulos seguiram Jesus. Voltando-se, Jesus os viu a segui-lo eperguntou: “O que querem?”. Responderam: “Rabi” (que quer dizer“Mestre”),ondeestáshospedado?”.“Venham”,elereplicou,“everão”.Assimelesforameviramondeelesehospedara,epassaramodiacomele.Eraporvoltadequatroda tarde.André, irmãodeSimãoPedro,eraumdosdoisqueouviramoqueJoãodisseraeseguiramJesus.AprimeiracoisaqueAndréfezfoi procurar o irmão, Simão, e lhe dizer: “Achamos o Messias” (ou seja,Cristo).Elevou-oaJesus.Jesus olhou para ele e disse: “Tu ésSimão, filho de João. Serás chamado

Cefas”(que,traduzido,querdizerPedro).Eisumexemploaseguir.JoãoBatistaémestre,temdiscípulosfiéis,massabe

queamaior lealdadedequalquerserhumanodeveserparacomJesus.Assim,dispensa seus discípulos deliberadamente, e eles partem. Também deveríamosnos certificar de não considerar nenhum relacionamento humano maisimportantedoquenossorelacionamentocomCristo.Háaindaumaordemaqui,asaber,“vejam”,paraquecreiamoseaceitemosJesuscomooCordeirodeDeus.Devemos confiar em Jesus como nosso sacrifício expiatório, nosso cordeiropascal, aquele atravésdequemnossospecadospodemser perdoados.Háumapromessatambém:“Venhameverão”.SeguirJesuséumprocesso.Elenãonosdátudooquedesejamosdeimediato.Chama-nosaviragoraenoscomprometercomele;comopassardotempo,“veremos”eaprenderemoscoisasfantásticas.Háatéumalertasuaveimplícitonapassagem.SedefatoformosaJesusenoscomprometermos em ser seus discípulos, “veremos”, mas isso tambémdesestruturaránossasvidasenostransformará,comoJesusexplicaaSimão,aoavisá-lodequereceberáumnovonome.Nãoseremosmaisosmesmos.OutraformadeabordarameditaçãosobreasEscrituras,emespecialquando

setratardeumapassagemcurta,édestacarumversículocrucialerefletirsobreele enfatizando palavra por palavra. Pergunte como cada palavra contribui demodo exclusivo para o significado do texto ou que sentido se perderia da

declaração se aquela palavra em particular fosse excluída. Considere Marcos1.17emeditenesseversículodandoênfaseacadapalavra.“Sigam-me,eeuvosfareipescadoresdehomens”.Querdizerquenãodevemosserapenasestudantesqueabsorveminformações,masdiscípulosquealiamsuavida inteiraaCristo.“Sigam-me, e eu vos farei pescadores de homens”. Jesus não disse apenas“obedeçamatalcoisa”,mas“obedeçamesigam-me”.EmboratenhamossimdeobedeceràspalavrasdeJesus,emúltimaanáliseocristianismoérelacionamentopessoal e íntimo comele.Devehaver afeto e comunhão com Jesus, nãomeraobservânciaética.“Sigam-me,eeuvosfareipescadoresdehomens”.Issoéumapromessa,umagarantiadequeelenostransformará.“Sigam-me,eeuvosfareipescadoresdehomens”.Noentanto,trata-sedeumprocesso.Nãodevemosnosimpacientar.Vejacomocadapalavra revelaumaspectodiferenteda instrução,queseperderiasevocênãomeditasseemsuaexpressãoespecífica.Outramaneira de fixar amente na verdade da passagem é parafraseando o

versículo com as próprias palavras. Leia o(s) versículo(s) em que estivermeditando, feche a Bíblia e tente reproduzi-lo(s) com as suas palavras. Emseguida,torneaolharparaotextoeverátudooquedeixoudefora.Façaissoatése sentir satisfeito comsuaparáfrase.Esse tipodemeditação força apessoa aponderarsobreotextocommaiorprofundidadedoquefariadeoutraforma.Seperceberquenãosabedeverdadeoqueumapalavraouumconceitoquerdizer,reserve tempo para estudar e descobrir. Repetir o(s) versículo(s) com as suaspalavras—comsuapróprialinguagemdocoração—permitiráavocêintrojetarotextocommaisfacilidade.Como observamos antes, um último modo de meditar em um texto é

memorizá-lo. Essa ferramenta de aprendizado é ummétodo tradicional muitomais utilizado em tempos antigos do que hoje, o que é uma pena. Amemorização pode ser bastante produtiva e, em certos sentidos, combina asdemais abordagens.Enquantoestiver trabalhandopara se lembrardaspalavrasexatas, significados particulares lhe ocorrerão, os quais, de outra forma, vocêdeixaria passar, e muitas ideias surgirão espontaneamente no decorrer doprocesso. Além disso, os textosmemorizados lhe virão àmente naturalmentedurante o dia, quando você perceber como eles se aplicam a determinada

situação em que se encontrar. Não é à toa que nos referimos a memorizartambém como saber “de cor”, que vem do latim de core, que significa “decoração”.Defato,éassim,eissonoslevaaosegundomovimentodameditação.

Inclinarocoração

Depoisdeenvolveramente,JohnOwendizqueasegundapartedameditaçãoconsiste em inclinar o coração. Após envolver a mente para enxergar comclareza o que nos está sendo ensinado sobre Deus, Cristo, a salvação, aeternidade e nossa condição, devemos buscar inclinar o coração até que suaesperançaealegriarepousemnessascoisasdemodomaispleno.Owendescreve issocomo“a inclinação, adisposiçãoeoenquadramentoda

mente[...]emtodos[...]osafetos”,demodoqueocoração“seapegueàscoisasespirituais[...]peloamaredeleitar-se[...]nelasepeloenvolver-secomelas”.12

A isso, umcontemporâneodeOwen,RichardBaxter, chamoude “solilóquio”.SignificaenxergarcomoaverdadedeDeusdeve terumimpactoemvocê,emsuavidaeemtodososseusrelacionamentos—eentãoapelarepregaraoseucoraçãoatéqueele seconectecomaverdadeecomeceaseafastardas falsasesperançasqueabriga,eamudaratitudes,sentimentose lealdades.Baxterfalaemautoexortação,termocomoqualquerdizer“argumentarconsigomesmoatépassardetorrão[decarvão]achama;depecadornegligenteeamantedomundoaumardenteapaixonadoporDeus;decovardemedrosoacristãodecidido;datristeza infrutífera à vida alegre; em uma palavra, até que você tenhaargumentadocomseucoração[parair]daterraparaocéu”.13

Comose faz issonaprática?UmdosmodosépelaabordagemdeMartinhoLutero.Após fixar averdadenamente como instrução,Luteropergunta comoelalhemostraalgosobreocaráterdeDeuspeloqualvocêpodelouvá-lo,algodeerradoemvocêdequepodesearrependerealgodequenecessitapeloquepossasuplicar.Emcada caso,Lutero introduz a verdadeno relacionamentoque temcomDeus,consigoecomomundo.Com isso ele “des-abstrai” a verdade das Escrituras, recusando-se a

contemplá-la de longe, preferindomergulhar nela e empurrá-la para dentro da

própriaalmaafimdevercomoaverdadehaverádetransformá-lo.Umantigoditado diz que a diferença entre conhecimento abstrato e sabedoria real é que“sabedoria é o conhecimento que não deixa de fora aquele que conhece”. Éintroduziraverdadeemtodososseusrelacionamentos.Éperguntar:“Oqueissosignifica parameu relacionamento comDeus? Comigomesmo?Com essa ouaquelapessoaouesseouaquelegrupo?Comesseouaquelecomportamentoouhábito?Commeusamigos,comminhacultura?”.Outramaneiradediscernircomoumaverdadepodetransformá-loéolharde

formamaisprofundaparasimesmo.Pergunte-sequaispensamentoserradoslhevêm à mente quando essa verdade é esquecida. Em seguida, considere ossentimentosexacerbadosedifíceisdecontrolarquesurgemquandovocênãocrênemabraçaplenamenteessaverdade.Pergunte-secomoperderorumoparaessaverdadepodelevá-loanutrirexpectativasdesmedidasparaquecertascoisaslhedeem algo que só Deus pode lhe dar. Considere que pecados e transgressõesreais poderiam resultar do fracasso em compreender essa verdade e deladesfrutar. Seja prático: há algoquevocêdevedeixar de fazer por causa dessaverdade?Háalgoquedeveriacomeçarafazer?Um último modo de discernir como uma verdade das Escrituras deve

transformá-loéconsiderandoomomentoemqueelalhevemàmente.PorqueDeus estaria lhemostrando isso justamentehoje?Essa verdade seria relevanteparaalgoqueestejaacontecendoemsuavidanomomento?São questões muito penetrantes e o processo de respondê-las costuma ser

emocionante,masnãonecessariamenteagradável.Aotrabalharparaincorporaruma verdade, você pode se sentir culpado, humilhado e perturbado, outranquilizado e reconfortado, ou ainda animado e tomado de uma alegriaincontrolável.Ameditaçãoapontaparaocoração.Owenéassertivoaoescreversobreisso:Se nos acomodarmos com meras especulações e noções mentais acerca deCristo como doutrina, não encontraremos nenhum poder transformador oueficácia transmitida a nós dessamaneira.Mas quando, sob a direção de luzespiritual, nossos afetos se apegam de fato a ele com pleno propósito do

coração,enossamenteseenchedepensamentosedeleitenoSenhor—entãoa virtude [a transformação de caráter] procederá dele para nos purificar,aumentarnossasantidade,fortalecernossasgraçaseencher-nosàsvezescomalegriaindizívelerepletadeglória.14

SegundoOwen,nãoécertoacomodarmo-noscomameraaquiescênciamental

às doutrinas a respeito de Jesus, porque isso não o honra.Deve haver “amor,confiança, deleite e anseio por exultar plenamente nele” (1Pe 1.8).15 O únicomodo de conseguir isso é estudando a Palavra, meditando a ponto de nelaencontrarseuprazer (Sl1.2)eentãoexperimentandoamorealegria interiores,bem como mudança de vida. Owen chama isso de caminho para chegar à“temperaturajusta[ouapropriada]deumestadodesaúdeespiritual”.Issoocorrequando a quantidade do nosso “conhecimento da glória de Deus em Cristo”corresponde,namesmaproporção,aosafetosdonossocoração.16Ouseja,tudooquesabemosteologicamentedeveser“acessado”pornossocoraçãocomtodaa alegria, paz, domínio próprio, amor, fidelidade, paciência e benignidade quedeveriaproduziremumserhumano.

Deleitar-seouclamar

MaisquedepressaJohnOwenacrescentaque,apóstermosmeditadoplenamente— processando a verdade e introduzindo-a no coração — os resultadosimediatospodemvariar.Ocoraçãoexperimentaráaverdade“deacordocomosváriosgraus[deverdade]—poisalgunstêmmaiseoutros,menos”.Qual,então,éoterceiroestágiodameditação?Dependedopontoemqueestamosaolongodesseespectro(dos“váriosgraus”)entredoispolos.PodeserqueocoraçãosintaapresençadeDeusearealidadedesuasalvação

de forma comovente. Nesse caso, Owen nos convida a parar e saborear aexperiência.Eleusa a antigaexpressãogozo para falar deuma experiência dedoçuraesatisfaçãoespirituais:

Nessegozoeprazerestãoadoçuraea satisfaçãodavidaespiritual.Noçõesespeculativas sobre coisas espirituais, quando isoladas, são áridas, fracas eestéreis.Nessegozoprovamos,pormeiodaexperiência,queDeuségracioso,queo amor deCristo émelhor doqueo vinhooudoquequer que tenhaomelhordossaboresparaumapetitesensual.Esseéofundamentoapropriadoda“alegriaindizívelecheiadeglória”.17

FoisobreissoqueDavifalou:“Umacoisa[...]busco[...]contemplarabeleza

doSENHOR” (Sl 27.4) e “Todo omeu ser anseia por ti. [...] Contemplei-te nosantuário e observei poder e glória. Pois teu amor émelhor que a vida,meuslábios teglorificarão. [...]Ficareiplenamente satisfeito, comocomamais ricacomida”(Sl63.1-5).MartinhoLutero sabia que às vezes oEspíritoSanto começa a “pregar para

você” de imediato, e outras vezes, não. Como ele, Owen é bastante realista.Reconhece que, de vez em quando, não importa o que façamos, nãoconseguimos nos concentrar, ou percebemos que nossos pensamentos não setornamgrandiososeemocionantes.Emvezdisso,sentimo-nosentediados,friosedistraídos.Nessecaso,dizOwen,volte-separaDeusefaçasúplicasbreveseintensasporsocorro.Àsvezesissoétudoquevocêconseguiráfazerpelorestodotempoprogramado,eoutrasvezes,osprópriospedidosdeajudaservirãoparaconcentrar amente e suavizar o coração. Ele escreve: “Quando, depois dessapreparação, vocês se descobrirem ainda perplexos e confusos, incapazes depersistir comodamente nos pensamentos espirituais para seu refrigério [...]clamem e suspirem diante de Deus por socorro e alívio”.18 Mesmo se suasmeditaçõeslhederemapenasum“sensograciosorenovadodaprópriafraquezaeinsuficiência”,demodoalgumissoseconfiguraumaperdadetempo,poisestálevando você a entrar em maior contato com a realidade espiritual. Então,acrescentaOwen,adorqueexpressamosdiantedasensaçãodaausênciadeDeuséemsiumamaneiradedemonstraramoraDeus,enãodeixarádeserapreciadaporele.19

Owenaconselhaaencerraroperíododetemposeparadoparaissoeretomá-lonodiaseguinte.“Aconstânciaéoque traráaptidãoaessedever.Aquelesque

conscientementepersistiremnadedicaçãoa isso crescerão em luz, sabedoria eexperiência, até conseguirem administrar essa prática com grande sucesso.”20

Talvezosalmo1possadenovonosdaralgumaajudaemrelaçãoaesseassunto.Aquelequemeditaécomoumaárvore.Árvoresnãocrescemdodiaparaanoite.Ameditaçãoéumprocessoprolongadocomoodaraizdeumaárvorequecresceemdireçãoàfontedeágua.Osefeitossãocumulativos.Vocêprecisasemanterfirme.Devemosmeditar“diaenoite”—comregularidadeeconstância.DeacordocomOwen,meditarsignificaanalisaraverdadecomamente;levá-

la para dentro dos sentimentos, atitudes e compromissos do coração; e emseguidaresponderdeacordocomograudeiluminaçãoerealidadeespiritualqueoEspírito Santo conceder. Poderíamos dizer que ameditação antes da oraçãoconsiste em pensar, depois inclinar e, por fim, desfrutar da presença oureconheceraausênciadeDeusepedirporsuamisericórdiaeauxílio.Meditarérefletirsobreumaverdadeeentãoabsorvê-laatéqueasideiasqueelatransmitesetornem“grandiosas”e“doces”,comoventeseinefáveis,eatéquearealidadedeDeussejasentidanocoração.21

MeditarnaPalavraencarnada

O salmo 1 nos ensina que o homemou amulher piedososmeditamna leidoSenhor. A expressão se refere às Escrituras inteiras, mas com uma visãoparticularmentevoltadapara seu caráter normativo.Ela énossa “regrade fé eprática”. Mostra-nos a vontade de Deus para nossa vida, e isso suscita umaquestão prática importante. Como alguém que de fato medita na vontade deDeus expressa na Palavra pode encontrar prazer nela? Veja as meditações deJesus sobre os DezMandamentos no Sermão doMonte. Ele pondera sobre osignificado de “não adulterarás” e conclui que o simples desejo sexual poralguémquenãosejaseucônjugeépecado(Mt5.27-30).Meditanomandamento“nãomatarás”e extrai a implicaçãodequenãopodemosnemmesmoguardarressentimento contra nosso irmão (Mt 5.21,22).Comopode alguém realmentemeditarintensamentenaleidoSenhorenãocairemdesespero?

A resposta está em voltar os olhos para a figura central de toda a Palavraescrita, aquele a quem o Evangelho de João chama de “oVerbo [que] se fezcarne”(Jo1.14)—JesusCristo,asupremaexpressãoecomunicaçãodeDeus.IssonoslevaráaolharparaomododeopróprioJesusenxergarasEscrituras.ElefoiograndeMeditador.Eleéaquelequesedeleitaemfazeravontadede

Deus.EmHebreus10.7vemosacitaçãodeSalmos40.8comopalavrasdeJesus:“Deleito-meemfazertuavontade[...]tualeiestádentrodomeucoração”.Eleéaquele que ora dia e noite (Lc 5.16: “Jesus se retirava com frequência paralugares isoladoseorava”;6.12:“Jesussubiuaummonteeoroutodaanoite”;9.18,28;11.1; 22.39,40: “Comode costume”).Ele é aqueleque, aoolharparaDeus, experimenta prazer (Lc 3.21,22: “Enquanto orava, o céu se abriu, oEspíritoSantodesceueumavozdisse: ‘tu ésmeuFilho’ ”).Ele é aquelequemeditava sobre aPalavra demodo tão profundoquepraticamente “sangra” asEscrituras,citando-ascomoporinstintonasocasiõesmaisextremasdesuavida.Ele rebatecadaumdosataquesdeSatanáscomaspalavras“Estáescrito”(Mt4.1-11).Cita inclusiveSalmos22.1nahoradamorte: “MeuDeus,meuDeus,por queme desamparaste?” (Mt 27.46). Foi assim que permaneceu firme. Foipor isso que ele de fato era uma árvore “sempre-viva”, cujas folhas nãomurcham, pois usava a Palavra deDeusmesmo enquanto suportava a agoniainfinitadacruz.Vocêquersercapazdesuportaratéadormaisintensa?FinqueraízesnasEscrituras,comoJesusfez.Noentanto,Jesusnãoéapenasumbomexemplo.Seelefosseapenasisso,sua

vida nos esmagaria de culpa, visto que ninguém conseguiria meditar nasEscriturascomoelefazia.GraçasaDeus,eleéinfinitamentemaisdoqueisso.AlémdeexemplonasEscrituras,JesuséaqueleparaquemasEscriturasinteirasapontam,poisaprincipalmensagembíblicaéasalvaçãopelagraçapormeiodeJesusCristo(Lc24.27,44).ABíbliatodatratadele.MoisésescreveusobreeleeAbraãoseregozijavaemveroseudia(Jo5.46;8.56).APalavraescritaesualeipodemserumdeleiteporqueoVerboouaPalavra

encarnada veio emorreu por nós, assegurandoo perdão por nossos pecados efraquezasdiantedaleideDeus.VocênãopodesedeleitarnaleidoSenhorsemcompreender a missão completa de Jesus. Sem ele, a lei nada mais é que

maldição, condenação, testemunhocontranós (Gl3.10,11).Eleobedeceuà leiplenamentepornós (2Co5.21),demodoqueagoraelaéparanósumdeleite,nãoumdesesperoeterno.Acimadetudo,Jesustambéméaquelesobrequemmeditamos,porqueeleéa

meditação de Deus. Ele é a verdade de Deus que se torna “real”, concreta eaplicada. Ele é aquele que nos capacita a permanecer de pé no dia do juízo.AquelequenosconcedeofrutodoEspírito(Gl5.22ss.).Devemosmeditartantosobreelequantocomele,eentãonãosóosalmo1setornarávivoparanósdenovasmaneiras, comonosconverteremosemárvores inabaláveis, comoJesus.RichardLovelaceescreveu:ÉquestãodeféofatodesermosfilhosdeDeus;hábastanteexperiênciaemnósacontradizerisso.Aféquesobrepujaessaevidênciaesemostracapazdese aquecer no fogo do amor de Deus, em vez de precisar roubar amor eautoaceitação de outras fontes, é na verdade a raiz da santidade. [...] Nãosomossalvospeloamorqueexercitamos,maspeloamoremqueconfiamos.22

Quando fala sobre se aquecer “no fogo do amor de Deus”, Lovelace está

descrevendo o que significa meditar sobre a justiça que temos em Cristo pormeiodesuamortesacrificial.Senãomeditarmosnissoatésentirmosocoraçãoardente com essa convicção, “roubar[emos] amor e autoaceitação” de outrasfontes,derealizações,belezaestatusmundanos.MeditesobreJesus,asupremameditaçãodeDeus.Vejaoamordeleporvocê.

Veja-omorrendoporvocê.Veja-oseregozijandoemvocê.Veja-odandobradosdealegriaporvocê(Sf3.17).Olheparatudoissoeeleseráumdeleiteemsuavida,eentãovocêencontraráprazerna leidoSenhoreserácomoumaárvoreplantada junto às correntes de água. Dará seu fruto na estação certa e, nãoimportaoqueaconteça,suasfolhasnãomurcharão.

1Peterson,AnsweringGod,p.23-4.2EdmundP.Clowney,Christianmeditation[CM](Nutley:CraigPress,1979),

p.11.3As pessoas atualmente podem achar que a expressão a “lei do Senhor” se

referisse apenas aos Dez Mandamentos ou aos livros da Bíblia que tratamexplicitamente de legislação divina.Mas o amplo uso da expressão na Bíbliamostraque a “lei doSenhor”pode se referir—e com frequênciao faz—àsEscriturascomoumtodo.Doinícioaofim,asEscriturassão“lei”nosentidodequesãototalmentenormativas,impondo-seporinteiroaocrentecomoexpressãodavontadedeDeus,sejasobaformadepreceitoslegaisdefato,sejacomoumahistóriaesualição.

4Derek Kidner, Psalms 1—72, Tyndale Old Testament Commentaries(DownersGrove:InterVarsityPress,1973),vol.15,p.48.

5Palavras do Novo Testamento associadas à tarefa da meditação incluemlogizdomai, uma das prediletas de Paulo, que quer dizer “calcular, estimar ovalor, contabilizar” (1Co 13.5; 2Co 2.6) ou “avaliar, estimar, considerar” (Rm2.26;9.8)ou“pensarem,ponderar,deixaramentesedemorarem”(Fp4.8;2Co10.11).VejaP.T.O’Brien,TheEpistletothePhilippians:acommentaryontheGreek text (Grand Rapids: Eerdmans, 1991), p. 436. Termos semelhantes emPaulo podem ser vistos em Efésios 3.18, em que ele ora pelo “poder decompreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor deCristo”—o que significa entender ou assimilar tanto em relação ao intelectoquantoaosafetos.

6Luther,“Asimplewaytopray”,p.200[ediçãoemportuguês:Lutero,Comoorar(SãoLeopoldo/PortoAlegre:Sinodal/Concórdia,1999)].

7Lindsay Gellman, “Meditation has limited benefits, study finds”, The WallStreetJournal, January7, 2014.Oestudonãoencontrounenhumbenefícionameditação com mantras e poucos e limitados benefícios na meditação da“atençãoplena”ouda“consciênciafocadanopresente”.

8Clowney,CM,p.7.9DouglasJ.Moo,TheLetters to theColossiansand toPhilemon,PillarNew

TestamentCommentary (GrandRapids:Eerdmans, 2008), p. 286.Moo chamaacertadamenteaatençãoparaofatodeColossenses3.16,aosedirigira“vós”,noplural,tratarnãoapenasdameditaçãoindividualsobreasEscrituras,masdoestudoedacontemplaçãocoletivosdaPalavra.

10Dois textos protestantes clássicos, do século 17, sobre a meditação foramescritos por Richard Baxter, em The saints’ everlasting rest [edição em

português:O descanso eterno dos santos (São Paulo: Shedd, 2007)], e JohnOwen,emThegraceanddutyofbeingspirituallyminded.Baxterescreveusobredoismovimentosbásicosnameditação.Primeiro,haviaa“consideração”—nosentidodeumalongaecuidadosareflexão—e,segundo,haviao“solilóquio”,significando uma pregação para si mesmo, a autocomunicação e a exortação.Veja Richard Baxter, The saints everlasting rest, condensado por BenjaminFawcett(TheAmericanTractSociety,1759).VejaoresumodePeterAdamdoensinodeBaxtersobreameditaçãoemAdam,HearingGod’swords,p.202-10.AprincipalobradeJohnOwensobremeditaçãoéThegraceanddutyofbeingspiritually minded, in: William H. Goold, org., The works of John Owen(Carlisle:Banner ofTruth, 1965), vol. 7, p. 262-497.Os passos dameditaçãoprescritosporOwen—“fixaramente”naverdadeeentão“inclinarocoração”emsuadireção—sãocorrespondentesaosdeBaxter.Veja também,deOwen,“MeditationsanddiscoursesonthegloryofChrist”,in:WilliamH.Goold,org.,WorksofJohnOwen(Carlisle:BannerofTruth,1965),vol.1,p.274-461.Nessetexto Owen dá um exemplo prático e extenso de como meditar sobre váriosaspectosdaglóriadeJesusCristo.

11Owen,Thegraceanddutyofbeingspirituallyminded,p.384.Vejatambémp.270,emqueelerelacionaostrêsestágiosoufasesdameditação.“Trêscoisaspodem ser discernidas na grande tarefa de sermos espiritualmente informados[...] [1-Fixar a mente] [É] o exercitar real da mente, em seus pensamentos,meditaçõesedesejos,acercadascoisasespirituaisecelestiais.[...]Elesocupam-se disso fixando nelas pensamentos emeditações. [2-Inclinar o coração] [É] ainclinação, a disposição e o enquadramento da mente [...] em todos [...] osafetos,demodoqueocoraçãoseapegueàscoisasespirituais [...]peloamaredeleitar-se[...]nelasepeloenvolver-secomelas.[3-Deleitar-senoSenhor][É]umcontentamentodamente,provenientedogozo,doprazeredosaborqueelaencontra em coisas espirituais, advindos da adequação dessas coisas à suaconstituição, inclinações edesejos.Há sal nas coisas espirituais, peloqual sãopreservadaseadquiremsaborparaamenterenovada,aindaqueparaoutroselassejamcomoaclaradoovo, semgostonemsaboralgum.Nessegozoeprazerestão a doçura e a satisfação da vida espiritual. Noções especulativas sobrecoisas espirituais, quando isoladas, são áridas, fracas e estéreis. Nesse gozoprovamos,pormeiodaexperiência,queDeuségracioso,queoamordeCristoémelhordoqueovinhooudoquequerquetenhaomelhordossaboresparaumapetitesensual.Esseéofundamentoapropriadoda‘alegriaindizívelecheiadeglória’”,p.270-1.

12Ibidem.13CitadoemAdam,HearingGod’swords,p.209.14ExtraídodeJohnOwen,MeditationsanddiscoursesonthegloryofChrist,p.

400-1.15Ibidem,p.400.16Ibidem,p.401.17Owen,Works,vol.7,p.270-1.18Ibidem,p.393.19Ibidem.20Ibidem,p.394.21É interessante comparar os três passos de meditação de Owen com os da

prática tradicional católica e beneditina da lectio divina, ou “leitura divina”,como descrito por Thelma Hall em Too deep for words: rediscovering lectiodivina (Mahwah: Paulist Press, 1988). Os quatro passos da lectio divina sãoleitura,meditação,oraçãoecontemplação.(1)LerasEscriturasnalectiodivinasignifica fazer um exame minucioso, lento e meditativo de uma passagembíblica.Nalectionãoérecomendávelquevocêtenteanalisarteologicamenteotexto em busca de sentidos doutrinários. Em vez disso, deve aguardar que oEspíritoSantolhemostrealgodentrodotexto,específicoparavocê.Esperequealgoatraiaseuinteresse,chamesuaatençãoeentãooobserve.Vocêprocuraalgoquepareçamuitorelevantepara“simesmo,agora”,nasituaçãopresente(p.36-38). Feito isso, prossiga para a (2) Meditação. Hall sugere dois tipos demeditação. Um acontece pelo uso da imaginação, colocando-se no interior dacena bíblica (se for uma narrativa) e pensando em como teria sido ver osacontecimentos e ouvir as palavras ao vivo. Se Jesus estiver presente napassagem bíblica, imagine-o olhando dentro dos seus olhos e dirigindo-lhe apalavra (p. 40). O segundo tipo demeditação consiste em repetir as palavrasreaisparasimesmo,ponderandonosignificadodecadaumadelas,oudecadafrase.Halldizque,dequalquerforma,ameditaçãoébasicamenteumaatividadecognitiva e intelectual. Mas seu objetivo, independentemente do método, écomeçaraexperimentaroamordeDeus(p.40-1).Assimquecomeçarasentirseu coração aquecido por esse amor, você deve avançar para a (3) Oração.Emprega-se nesse ponto uma metáfora do fogo, extraída de Teresa de Ávila.Quandoameditaçãolevaaumpequenofogodesentimentoeamor,nãocontinuemeditando — seria como lançar mais lenha na fogueira, e excesso decombustívelpodeapagarachama.Emvezdisso,agorasedeveorarapenas.FalecomDeus como você conversaria com um ente querido. Alimente o fogo do

amorcompequenosfragmentosde“combustível”—umolharderelanceparatrechosdasEscriturasaquieali—esimplesmentecomeceaorar,ansiandopelauniãocomaqueleaquemamamos.Issoleva,porfim,à(4)Contemplação,queHall define como “silêncio interior”. Qualquer tipo de elaboração depensamentos,análiseeraciocínioconsistebasicamenteemestar“nocomando”enão se render aDeus.Ela recomenda livros sobre “oração centralizadora” (ouoração centrante) para nos ajudar a chegar ao ponto de não termos quaisquerpensamentos “sobre” ele, mas experimentarmos a consciência dele e de suapresençadeformadireta,sempalavras,emadoração(p.45-55).As semelhanças e diferenças entre as abordagens de Owen/Lutero e essa

descrição da lectio divina são fáceis de enxergar. Os pensadores protestantesconcordamquedevemosmeditarnaBíbliademodoaenvolverosafetoscomoforma de a pessoa inteira responder e orar a Deus. Também querem queintrojetemos deliberadamente a verdade bíblica no coração até que ele “seincendeie”,eacreditamqueoEspíritoSantopodeaplicardiretamenteaPalavraanossasvidas.MasOweneLuteronãoaconselhamqueignoremosateologiadotextoesaiamosàprocuradeuma“palavrapessoal”.Naverdade,LuteropropõeameditaçãohabitualnoCredoApostólico.TantoelequantoOwendesejamqueponderemosas implicaçõeseaplicaçõesdanossadoutrinae teologiaatéqueoEspírito Santo torne as verdades reais em nossos afetos. Segundo, Lutero eOwen não esperariam nem aconselhariam que nosso único ou principal alvofosseconheceroamordeDeus.Claroqueoconhecimentodoseuamoregraçaem Cristo devem estar presentes o tempo todo, do contrário não teríamos amenor confiança na possibilidade de nos aproximarmos dele. Oramos apenas“emnomedeJesus”.Mas,emvezdeseuamor,seupoder,santidade,majestade,soberaniaou sabedoriapoderiamsero temadominantedo textobíblicoe,porisso, aquiloque encontramosnaqueledia.Por fim,OweneLuteronãodiriamqueestamos tentandoiralémdopensaredospensamentos,paraaconsciênciapura. Eles presumiam que as Escrituras são o modo pelo qual Deus estáativamentepresentenomundoeemnossasvidas(vejaocomeçodocapítulo4,“ConversarcomDeus”)enãoinstigariampensamentoesentimentoumcontraooutro,comoatradiçãocontemplativaparecefazer.Tendo registrado todas essas críticas, vale notar que a ordem essencial das

coisasdelineadaporHall—lerasEscrituras(fixaramente),meditar(inclinarocoração)eorar(deleitar-senapresençadeDeus)—é,decertaforma,parecidacomasdiretivasdeOweneLutero.

22RichardF.Lovelace,Dynamicsofspiritual life:anEvangelical theologyofrenewal(Eugene:WipfandStock,2012),p.213[ediçãoemportuguês:Teologiadavidacristã:adinâmicadarenovaçãoespiritual(SãoPaulo:Shedd,2004)].

A

ONZE

Aoraçãocomoencontro:buscandosuaface

oração é uma conversa que leva ao encontro comDeus.Como vimos, oWestminster largercatechism reconheceque esse “operar eprecipitar em

nossocoração”nãoacontece“namesmamedidaparatodasaspessoas,nememtodososmomentos”.1Todavia,éeleonossoobjetivo.NaabordagemfeitaporJohn Owen da meditação, o terceiro estágio antecipa uma experiência dapresençaedarealidadedeDeusqueformanossocaráter.João Calvino argumenta que os dons de Jesus para seu povo não são

experimentadospormuitosdeseus integrantes.Talprazer,dizele,sóacontecepela“comunhãocomCristo”e“pelaenergiasagradadoEspíritoSanto,pormeioda qual passamos a desfrutar de todos os seus benefícios”.2 Mais adiante,acrescenta:“PoisaPalavradeDeusnãoérecebidapelafécomosepairassenotopodocérebro,masquandocria raízesno fundodocoração”.3Nãodevemosnoscontentarcomumamenteinformadasemumcoraçãoengajado.Tudo isso leva commuita naturalidade à pergunta: que tipo de experiência

devemosesperarecomodevemosbuscá-la?

Serrico,masvivercomopobre

AideiadeCalvino—dequetemosbênçãosemCristoquenãoexperimentamos—éexpressatambémnagrandiosaoraçãodePauloemEfésios3.

DobromeusjoelhosdiantedoPai.[...]OroparaquedesuasriquezasgloriosaselevospossafortalecercompoderatravésdoseuEspíritoemvossointerior,demodoqueCristopossahabitarvossoscoraçõespelafé.Eoroparaquevós,estandoenraizadosefirmadosemamor,possaisterpoder,juntamentedetodoosantopovodeDeus,paracompreenderalargura,ocomprimento,aalturaeaprofundidadedoamordeCristo,equeconheçaisesseamorqueultrapassaoentendimento—que sejaispreenchidosatéamedidade todaaplenitudedeDeus(Ef3.14,16-19).Paulooraporseusleitorespara“queCristopossahabitarvossoscoraçõespela

fé” (v. 17) e a fim de que “conheçais esse amor” de Cristo (v. 18,19).Finalmente, eleoraparaqueeles sejampreenchidoscom“todaaplenitudedeDeus”(v.19).EssassãoastrêsprincipaispetiçõesdePaulo.4

Noentanto,esses leitoresefésioseramtodoscrentescristãos,ePauloensinaemoutrolugarque,seoEspíritoeCristonãohabitarememsuavida,vocênãoécristãodeformaalguma.EmEfésios2,elediscorredemoradamentesobrecomotodososseusleitoresforamunidosaCristoeunidosaosoutrosquetêmCristoemseuinterior.EmEfésios1,ensinaque,estandounidoscomCristo,elesjátêmaplenitudedeDeus(Ef1.22,23).Tudoissonoslevaaperguntar:Cristojánãovivenoscristãos?Elesjánãoconhecemseugrandeamorsacrificial?Comopodealguémsercristãodeoutraforma?PorquePauloestápedindoaDeusparadaraoscristãosoqueelescomcertezajádevemter?Só pode haver uma resposta para isso.Em certo grau, os cristãos têm essas

coisas.Emoutro,nãoasexperimentam.5UmacoisaésaberdoamordeCristoedizer“Seiqueelefeztudoisso”.Outraécompreenderquãoamplo,extenso,altoe profundo é o seu amor. Paulo está falandoda diferença entre ter algo que éverdade para você como princípio e apropriar-se plenamente dessa verdade,usando-aevivendo-a—“emseuinterior”(Ef3.16)ouem“vossoscorações”(v.17).Os cristãos podem ter uma vida marcada por um alto grau de falsidade,

aparências e falta de autenticidade. A razão para isso é o fato de haverem

deixado de aplicar essa verdade ao próprio coração. Portanto, ela nãotransformoudefatoquemelessãoecomovivem.Blaise Pascal foi cristão e filósofo, e uma das grandes mentes da história.

Quandomorreu,descobriu-sequecoseranoforrodocasacoadescriçãodeumaexperiência por que passara certa noite. Dizia o seguinte: “No ano de 1654,segunda-feira,23denovembro,demaisoumenosdezemeiadanoiteatémeia-noiteemeia[...]FOGO[...]DeusdeAbraão,IsaqueeJacóenãodosfilósofosedos eruditos.Certeza.Certeza.Emoção.Alegria. Paz”. Pascal não se referia aumavisãodechamasreais,masaumaexperiênciadapresençadeDeus—algoqueofogotantasvezesrepresentanaBíblia.ElecriaemDeus,masaoafirmarqueencontraraoDeusdeAbraão,IsaqueeJacó—nãoo“Deusdosfilósofos”— quis dizer que agora conhecia de coração o que até então conhecera emabstrato.6 Outro exemplo, menos famoso, é Dwight L. Moody, renomadoministroeevangelistadeChicagodofinaldoséculo19.Eleescreveu:“Umdia,na cidade de Nova York— ó, que dia!— sou incapaz de descrevê-lo, rarasvezesmerefiroaoocorrido;umaexperiênciaquasesagradademaisparanomeá-la.[...]SópossodizerqueDeusserevelouamim,evivitamanhaexperiênciadeseuamorquepreciseilhepedirparadetersuamão”.7NãoqueMoodynãofossecristão,ouqueaindanãoconhecesseoamoreapresençadeCristo.TalvezsepossadizerquearealidadeobjetivadequemeleeraemCristoeaexperiênciasubjetivainteriorseencontraram.Eporuminstanteeleviveucomoapessoaquedefatoera.Esses são casos bem conhecidos de encontros espirituais fora do comum e

intensos. Mas não sejamos apressados demais em classificá-los comoexcepcionais.Paulonãoorariaemfavordequecadaumdeseusleitoresefésiostivesseumaexperiênciainatingíveldetãoelevadaerara.EmEfésios3,eleoraparaque,pelopoderdoEspírito,possamosternossocoraçãoeafetosenvolvidosemoldados pelas verdades da fé que abrigamos namente. Tal sentimento docoração pode vir em vários graus, desde um calor ameno a uma epifaniaexplosiva.Nãoprecisaserumaexperiênciasobreaqualescrevemosepensamospelo restodanossavida, embora tais dádivas sejambem-vindas.Oquehá decomumemtodosessesmomentoséquevocêsenteopoderdoquelhefoidado

em Cristo de modo que suas atitudes, sentimentos e comportamento sãoalterados. Imagine-se recebendo a notícia de que alguém lhe deixou algumdinheiro, mas por diversos motivos, você presume que seja uma quantiamodesta.Acabaseocupandodevárioscompromissosenãosedáaotrabalhodeverificar a questão desse dinheiro durante algum tempo. Faz isso afinal e ficaatônito ao descobrir que é uma fortuna e que não lhe dera atenção até omomento.Naverdade,vocêera rico,masviviacomopobre.É issoquePauloquer que os amigos cristãos evitem, mas isso é algo que somente através doencontrocomDeusemoraçãoépossívelevitar.Talvez seja essa a sua posição hoje. Você está emCristo. Foi adotado pela

famíliadoPai.Temavidadivinaemseuinterior,oEspíritoSanto.Éamadoeaceito em Cristo. Sabe dessas coisas e, no entanto, em outro nível, não asconhece, não as compreende.Ainda é perseguido por seusmaus hábitos, comfrequência se sente ansioso ou entediado, ou desencorajado, ou com raiva.Talveztenhacertosproblemasequestõesqueprecisamserenfrentadosetratadospordiversosmeiosespecíficos.Contudo,todosessesproblemastêmumasóraiz:ofatodequevocêéricoemCristo,masaindavivecomopobre.

“Averdadecomeçaabrilhar”

Oque significa falar de experiência espiritual no ser interior?O que é o “serinterior”?Omesmo que coração, o centro tanto da nossa consciência pessoalquantodosnossoscompromissosdefémaisfundamentais.8Éonde,poralgumafalha, pode não estar registrado o conhecimento mental que detemos dasverdadesacercadeJesus.PodemosaquiescerracionalmentecomaideiadoamordeJesuspornós,masonossocoraçãopodeestarcomprometidoemencontraroamor através da aclamação popular. Nesse caso, o ser interior não foiinfluenciadoporaquiloemqueamentecrê.OEspíritodeveprepará-loparaserremodeladoeformadopelaverdade.Comoissoacontece?OEspírito criauma sensibilidade espiritual interior àverdadedo evangelho.

Paulodiz:“Oroparaque,comsuasriquezasgloriosas,elevospossafortalecercompoderatravésdoEspíritoemvossointerior,demodoque[...]possais[...]

compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor deCristo”. Essa palavra compreender é importante — quer dizer mais do queapenas“crer”.Significaterodomíniosegurodealgo.Antigamente fotografar costumava exigir que a câmera contivesse um filme

quesetornavasensívelàluz,graçasaumtratamentocomsubstânciasquímicas.Oobturadordacâmeraseabriaealuzentrava,refletindoumobjetocomoumaárvore.Ofilme,tratadoquimicamente,“capturava”aimagemdaárvore,quealipermanecia.Nelea imagemdaárvoreera impressaemcaráterpermanenteeotransformava.Imagine,noentanto,queumafalhaqualquerimpedisseofilmedereceberotratamentoquímicoadequado.Entãooobturadordacâmeraseabririae a luz entraria,mas o filme não estaria suficientemente sensível para receberuma imagem clara, ou mesmo alguma imagem. A entrada da luz não farianenhumadiferençaparaofilme.AoraçãodePaulosugerequeoscristãosnecessitamdo“tratamentoquímico”

doEspírito,deumasensibilizaçãoespiritual,ouasverdadesqueprofessamosecomasquaisconcordamosnãofarãonenhumadiferençarealemnossomododevida.Sevocêforexpostoà“luz”daverdadecristãdequeDeusésanto,eseoEspírito Santo sensibilizou seu coração, você então responderá não só comemoção — com lágrimas, tremor ou alegria — mas mudará em caráterpermanente o modo de viver e se comportar no mundo. Quando seussentimentosecomportamentossãoafetados,querdizerque,decertaforma,vocêcaptouumaverdadeespecíficaacercadeDeus.Aluzentraecausaimpressõespermanentes.Ninguém expressou melhor essa ideia do que Jonathan Edwards em seu

grande sermão “Uma luz divina e sobrenatural”. No centro do sermão está afamosailustraçãodomel.Háduasmaneirasdesaberqueomelédoce,dizele:oucomamenteracionaloupelasensibilidadedalíngua.Vocêpodesaberqueomel é doceporque aspessoas lhedisseramevocê acredita nelas,masquandosaboreardefatoadoçuradomel,saberáporcompleto—atravésdamenteedaexperiência.Quandovocêpassadoconhecimentoapenasracionaldadoçuradomelparaa

experiência de prová-lo de formadireta, pode ser que diga algo como: “Sabia

queeradoce,masnãopercebiaoqueissosignificavadeverdade.Eusabia,masnãoconhecia”. Edwards conclui que, damesma forma, “existe uma diferençaentreserdaopiniãodequeDeusésantoegraciosoesentirnocoraçãooamoreabelezadessasantidadeegraça”.Vocêpodedizer:“AcreditorealmenteemDeus,acreditorealmentequeJesus

morreunacruz.Nãotenhodúvidasquantoaisso”.Edwardstalvezrespondaquepodeserquevocêtampoucotivessequaisquerdúvidasquantoàdoçuradomel.Podeserquetivesseconversadocomcempessoasquelhecontaramisso.Podeserquetivesselidorelatórioscientíficosprovandoqueomelédoceeagradávelao paladar humano. Talvez você se sentisse bastante certo quanto a isso, semnuncahaverprovadodomel.Mas mel é uma coisa e Deus é outra muito diferente. Conhecê-lo não é

opcional, e é nesse sentido que Paulo ora. Ele pede que o Espírito Santosensibilizenossocoraçãodemodoqueprovemosessasverdades,espiritualmentefalando,ou—comoafirmaemEfésios1.18,quandoorapedindoque“osolhosdo vosso coração possam ser iluminados” — para que as vejamos,espiritualmente falando. Quando o Espírito realiza sua obra, as verdades daPalavraedoevangelhonosenlevam,comovem,abalam,talveznossensibilizemeconstranjam.Éalgoqueacontececonosco,enãoalgoquerepetimossemprecomo: “Está bem, sei de tudo isso”. Há um velho hino que usa esse tipo delinguagemsensorial:Quandotuvisitasocoração,entãoaverdadecomeçaabrilhar,entãoasvaidadesterrenassevão,entãoseinflamaoamordivino.9

ConhecendooPai

HáoutraexpressãonaoraçãodePauloquenosajudaacompreenderanaturezada experiência espiritual. O apóstolo começa dizendo: “dobro meus joelhos

diantedoPai”(Ef3.14).Aposturanormaldeoraçãoparacristãosejudeusnãoera ajoelhada, assim, “dobrar os joelhos” implicava um ato de reverênciaespecial.10PodeserquePauloestejadandoatençãoespecialaofatodeDeusserrealmentenossoPaiagora.EmRomanos8,elechamaoEspíritoquenosajudaaorar de “Espírito de adoção”, o qual nos leva a orar “Abba, Pai” (v. 15).ProsseguedizendoqueocernedoministériodoEspíritoé“testificarcomnossoespírito”—assegurar-nosinteriormente—“quesomosfilhosdeDeus”(v.16).Portanto, outro aspecto da comunhão com Deus é entender com maisprofundidadenossorelacionamentofamiliarcomoPaiedeleseapropriar.QuandooEspíritoSantovemsobreJesusnobatismo,eleouveumavozdizer:

“Este é meu Filho amado, de quem me agrado. Tu és meu Filho, em ti medeleito”(Mt3.17).Domesmomodo,Romanos8.16nosfalaqueoEspíritodátestemunhoaonossocoraçãodequesomosfilhosdeDeus.PartedamissãodoEspíritoénoscontardoamordeDeuspornós,doseudeleiteemnós,edofatodequesomosseus filhos.Podeserque tenhamosconhecimentomentaldessascoisas,masoEspíritoSantoas transformaemumaardenterealidadeemnossavida.ThomasGoodwin,pastorpuritanodoséculo17,escreveusobreumaocasião

emqueviupaiefilhocaminhandoladoaladopelarua.Derepente,opaitomouofilhonosbraços,abraçou-oebeijou-o,edisseaomeninoqueoamava—emseguida,passadoumminuto,colocou-odevoltanochão.Seráqueomenininhoeramais filho quando estava nos braços do pai do que com os pés no chão?Objetivaelegalmente,nãohavianenhumadiferença,masdeformasubjetivaedaperspectivadaexperiência,haviatodaadiferençadomundo.Nosbraçosdopai,omeninoexperimentavasuacondiçãodefilho.QuandooEspíritoSanto desce emplenitude sobre nossa vida, conseguimos

sentirosbraçosdoPaiànossavolta.Éumagarantiadequemsomos.OEspíritonoscapacitaadizerparanósmesmos:“Sealguémtãoonipotenteassimmeamadessemodo, se deleita emmim, fez esforços infinitos parame salvar, diz quejamaismeabandonará,quemeglorificaráemefaráperfeitoetirarátudooquehá de ruim em minha vida — se tudo isso é verdade — por que estou

preocupado com o que quer que seja?”. Isso no mínimo significa alegria,ausênciademedoedeinquietações.EmEfésios5.18,Paulodiz:“Nãovosembriagueiscomvinho,masenchei-vos

doEspírito”.Lembre-sedosdiscípulosnoPentecostes.Elessaíramepregaramoevangelhoempúblicocomumamaravilhosafaltadeconstrangimento,apontodealgunspensaremquetivessembebidodemais(At2.13).Masaousadiadeleseradiferentedeestarbêbadonoaspectomais importante.Oálcooldeprime—entorpece porções da mente racional. A felicidade que alguém pode sentirquando está bêbado acontece porque a pessoa se torna menos consciente darealidade. O Espírito, no entanto, confere intrepidez jovial, tornando a pessoamaisconscientedarealidade.ElenosasseguraquesomosfilhosdoÚnicocujaopiniãoepoderimportam.Elenosamaatéoinfinitoejamaisnosabandonará.

Compreendendooamor

PaulopedeaoEspíritoSantoquedê“poder[...]paracompreender”.Apalavracompreendersignifica“dominar”,mastambémpodesignificar“capturar”,comoquando se capturam prisioneiros em uma batalha. Significa pular em cima dealguém,subjugá-lo,derrubá-lonochãodurantealutaenocauteá-lo.Aprincípiopareceumtermoumpoucoestranhodeusarquandoseestádiscorrendosobreoamor de Deus, mas Paulo está falando de meditar e ponderar sobre algo atéconseguirdominá-lo,até,comocostumamosdizer,“cairaficha”.Essamudançasóacontecerá,evidentemente,comaajudacapacitadoradoEspírito.Como isso acontece? Por meio do Espírito, que abençoa nossa meditação

sobreaobraredentoradeJesus.CreioqueEfésios3nosapresentaumestudodecaso disso. Por que Paulo explicita a questão, chamando-nos a considerar alargura, o comprimento e a altura do amor deCristo?Ele está propondo umaformademeditareconvidando-nosapraticá-la.Aceitemososeuconvite.Quão largo éo amordeDeus?Pense em Isaías1.18: “Aindaqueosvossos

pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve”. Aescarlata é cor de sangue. Foi esse o jeito escolhido por Deus para dizer porintermédio de Isaías: “Mesmo que vocês tenhammatado alguém,mesmo que

sejam culpados de sangue, que tenham sangue nasmãos,meu amor é largo osuficienteparaenvolvê-loseabraçá-los.Nãoimportaquemvocêssãoouoquefizeram.Nãoimportasemataramalguém.SeJesusCristomorreunacruzparaquefossemsalvossomentepelagraça,entãoalarguradomeuamoréinfinita.Eleélargoosuficienteparavocês”.QuãocompridoéoamordeDeus?JesusdizemJoão10:“Conheçoosquesão

meus.Eulhesdouvidaeterna[...]eninguémécapazdearrancá-losdaminhamão”. Em Filipenses 1.6, Paulo afirma para os cristãos, a todos aos quais sedirigiaemFilipos:“Estouconvencido [...] [deque]aquelequecomeçouaboaobraemvós iráaperfeiçoá-laatéodiadeCristoJesus”.Elenãodiz“poderá”,massimiráaperfeiçoá-la.Ocomprimentodeseuamoréinfinito.Equandoesseamorcomeçou?OlivrodoApocalipsenosdizqueoCordeirodeDeusfoimortoantesdafundaçãodomundo.Deuscolocouseuamorsobrenósnasprofundezasdotempoejamaisoremoverá.Porquê?Porqueasalvaçãoépelagraça.Nãoporobras. Não nos é concedida pelo que fazemos. Começou nas profundezas dotempoedurarátodaaeternidade.Seucomprimentoéinfinito.OmotivodeoamordeDeusemCristoterlarguraecomprimentoinfinitosé

pelo fato de ele ser infinitamente profundo. Qual a profundidade do amor deDeus? Sem JesusCristo, falar sobre a “profundidade do amor deDeus” seriauma simples abstração. Sem Jesus Cristo, Deus poderia nos mandar sessentavolumesemqueestivesseescritoemcadapágina“Euosamoprofundamente,euosamoprofundamente,euosamoprofundamente”eessecontinuariasendoumconceitoabstratoparanós,nãouma realidadeque transformanossavida.Paraentender de verdade a profundidade do amor de Deus devemos conhecer aprofundidadeaqueJesusCristosesubmeteuafimdenosamar.Quãofundoelefoi? “MeuDeus, meu Deus, por queme desamparaste? (Mt 27.46)” Isso é oinferno. Ele foi lançado dentro do poço mais profundo a que alguém jamaisdesceu, e fez isso por vontade própria. Desceu, desceu e desceu — até asprofundezas. Graças ao evangelho, podemos saber que o amor de Deus temlargurainfinitaecomprimentoinfinitoporquetemumaprofundidadeinfinita.OamordeDeusé infinitamentealto.QualéaalturadoamordeDeus?Em

João 17, Jesus diz: “Pai, quero que eles [nós] tenham a glória que eu tinha

contigoantesdacriaçãodomundo”.Em1João3.2estáescrito:“Amados,nãosabemos como havemos de ser.Mas sabemos que seremos como ele, porquequandoovirmos,veremoscomoeleé”.EssaéaalturadoamordeDeus.Elenosdará o mesmo que lhe enche o coração de alegria imperecível desde toda aeternidade.Elenosmostrarásuaglóriaenosdaráessaglória.Vocêconsegueimaginaralgomaisaltodoqueisso?OamordeJesusestános

levandoparaessepatamar.Oqueacabamosdefazer?Fizemosumabrevemeditação.Meditamossobreas

dimensões do amor deCristo. Se, aomeditar, oEspírito nos der algumpoderpara compreendê-lo, encontraremos Deus. Isso transformará o modo deenxergarmos toda a vida e de nos comportarmos nestemundo. A experiênciaespiritual consiste na verdade resplandecente e na certeza profunda do amorpaternaldeDeus.Noentanto,háoutromododefalardesseamor.

AfacedeCristo

Davideclara:“Tua facebuscarei” (Sl27.8).Deus,claro,éonipresente—estáem toda parte (Sl 139.7-12). O que significa, então, buscar-lhe a face e“aproximar-se” dele, considerando que ele já está em todo lugar? Quandofalamos com alguém, não olhamos nem nos dirigimos para seus joelhos, pés,costasoubarriga.Dirigimo-nosaorostodapessoa.Eleéo“portãorelacional”de entrada damente e do coração das pessoas. Buscar a face de Deus não étentar encontrar um lugar no espaço em queDeus se encontra.Antes, é ter ocoração capacitadopeloEspíritoSanto para sentir a realidade e a presença deDeus.“OSENHORlhesfaloufaceaface,domeiodofogo,nomonte”(Dt5.4;cf.Gn32.30;Nm6.25,26).AspessoassãochamadasporDeusa“orarebuscaraminhaface”(2Cr7.14).PerderosensodapresençadeDeuséperderafacedeDeus(Sl13.1),ebuscar-lheafaceébuscarcomunhãocomele,umainteraçãorealcomDeus,compartilhandopensamentoseamor.Noentanto,oAntigoTestamentonosensinaqueninguémpodeverafacede

Deuseviver(Êx33.20).Apesardisso,oiníciodoEvangelhodeJoãorelataque

Jesus,oVerbodeDeus,fez-secarnee“contemplamossuaglória”(Jo1.14).Emrazãodeseusanguederramadoedeseuperdão,podemosterumaproximidadecomDeusquenãoerapossívelantes.ApessoaeaobradeJesussãoomarcoparaqualquerumquedesejeseaproximardafacedeDeusebuscá-la.JohnOwendeugrandeatençãoa2Coríntios3.18—“Etodosnós,quecomo

rostodescobertocontemplamosaglóriadoSenhor,estamossendotransformadosà sua imagem com a glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é oEspírito”—emconexãocom2Coríntios4.6, emquePaulodizqueDeusnostemdado“aluzdoconhecimentodaglóriadeDeusexibidanafacedeCristo”.PortodososescritosdeOwen,elesempreretomaoassuntodoquevemsendochamado de visão beatífica. A expressão descreve a visão direta da glória deDeus.Issoéoqueosredimidosverãonocéuemplenitude,eoqueoscrentesveemagorana terra emparte, pelosolhosda fé,masnão ainda comosolhosfísicos.EnquantooteólogocatólicoTomásdeAquinofezdissooobjetocentralde seu pensamento, pouquíssimos teólogos protestantes tocaram no assunto.Todavia,Owen“insisteobstinadamenteemquemeditarsobreavisãobeatíficaéuma prática vital para todos os cristãos cultivarem”, porque “nossa vida epensamentocristãosdeveriamservoltadosparaaesperançadavisãobeatífica,esermoldadospeloantegozoquedelarecebemosaquieagora”.11

Owen não entendia que “contemplar a glória deDeus na face JesusCristo”fosse um assunto esotérico ou algo exclusivo para certo tipo de pessoasaltamente espiritualizadas. Com grande veemência argumentava que “jamaiscontemplará a glória deCristo porvista no porvir quemnão a contemplar emalgumamedidaporféaquinestemundo”.12Issoelevaoinvestimentoemoraçãoemeditaçãoeaníveisbemmaisaltos.Owendefendiaaideiadeque,amenosque aprenda a contemplar a glória deCristo, você não estará vivendo de fatoumavidacristãdeverdadenestemundo.O que “contemplar” a glória de Cristo significa, na visão de Owen? É

importanteque“nãonosapoiemosnanoçãodessaverdade[adaglóriadeCristocomo] [...]mera anuência a sua doutrina”. Ele observou corretamente que, aofalar emcontemplar a glória deCristo, Paulo nãopoderia estar se referindo àsimplescrençadequeJesuseraglorioso.Antes,“éaseupoderdeafetarnosso

coração que devemos visar. [...] Ela não preenche e sacia [...] com alegria,descanso, deleite [...] e satisfação inefável?Nossa presente visão da glória deCristo é nossa iniciação no assunto, se nele formos exercitados, até quetenhamosumaexperiênciadoseupodertransformadoremnossaalma”.13

ContemplaraglóriadeJesussignificaquecomeçamosaachá-lobelopeloqueeleé.Significaumtipodeoraçãoemquenãovamosaeleapenasparaobterseuperdão,seuauxílioparanossasnecessidades,seufavorousuabênção.Emvezdisso,areflexãosobreseucaráter,palavraseobraemnossobenefíciosetornainerentemente satisfatória, agradável, reconfortante e fortalecedora.14 Oweninsistia em que era crucial que os cristãos fossem capacitados a isso. Eleargumentava que se a beleza e a glória de Cristo não capturarem nossasimaginações, dominarem nosso pensamento consciente e não encherem nossocoração de anseio e desejo, alguma outra coisa o fará. Ficaremos “ruminandoconstantemente”algumacoisaoucoisascomosenissoestivessenossaesperançae alegria. Sejamquais forem essas coisas, elas “moldarão nossa alma” e “nostransformarão à sua semelhança”. Se não contemplarmos a glória deDeus naface de Cristo, então alguma outra coisa governará nossa vida. E seremosescravos.15

Há alguns anos, falei com um homem que frequentara uma igreja a vidainteira,masaindaassimeraumapessoabastantemedrosaeansiosa.Noentanto,depois de ouvir uma pregação do evangelho bastante clara, ele percebeu quetodaavida forabasicamenteummoralista,presumindoqueDeusouviria suasoraçõeseosalvariaporsuadecência,vidaéticaesinceridadeinterior.Segundoessavisão,Deuseraalguémcomquemeleprecisavanegociarafimdeconseguiro tipo de vida que desejava.Até que, pormeio do evangelho, ele percebeu aextensão e a profundidadede seu egocentrismo, de sua obstinação espiritual epecado.PercebeuqueeraimpossívelvenceroproblemaaosolhosdeDeuscomseuhistóricodeboasobras repletodemanchas.Tambémconstatouoquantooamor deDeus por ele era imerecido, e o quanto essa graça custou a Jesus nacruz.Pelaprimeiraveznavidasentiu-seatraídoporesseDeus.Poucoapouco,começouaencontrarsuaalegriaemDeus.Aoraçãosetornounãosóumtempo

de repassar uma lista de pedidos, mas também de adoração, confissão e ummomentoparaapenassedeleitaremDeus.ÀmedidaqueDeusfoisetornandomaisemaisaalegriadoseucoração,ele

foi ficandomenos ansioso,mais corajoso. “No passado, parecia tão afetado eirrealdizer ‘Deusémeu tesouro’,mas, agoraqueele estámesmose tornandoissoparamim,nãoconsigomepreocupartantocomdinheirocomoantes.”Aescolhaénossa.Sequisermosnoscertificardequeteremosnofuturoessa

experiência pela visão, devemos conhecê-la pela fé agora. Se quisermos ficarlivresdesermosconduzidospelomedo,pelaambição,pelacobiça,pelaluxúria,pelosvíciosepelovazio interior,devemosaprenderameditarsobreCristoatéquesuaglóriairrompaemnossaalma.

Mantendojuntasaverdadeeaexperiência

O equilíbrio de John Owen é impressionante.16 Ele é desconcertante de tãoexperiencial. O termo que usa para isso é ser “espiritualmente inclinado”.Escreveele:“Nãonosenganemos.Serespiritualmenteinclinadonãoéternoçãoeconhecimentodecoisasespirituaiscomamente;nãoéserconstante,não,nemabundarnodesempenhodedeveres:essasduascoisaspodemacontecerquandonãohágraçanenhumanocoração,emabsoluto”.Ouseja,vocêpodetertodaasãdoutrinapossíveledesempenharàexaustãoseusdevereséticosereligiososdeacordo com princípios bíblicos e ainda não ter “graça nenhuma no coração”.Qualéaessênciadoverdadeirocristianismo?Imediatamenteeleacrescenta:“Éteramenteexercitadadeverdadecomodeleitepelascoisascelestiais,ascoisasquesãodoalto, emespecialopróprioCristoàmãodireitadeDeus”.17 Owenpromove o que se poderia chamar de misticismo radicalmente bíblico. Eledecorre da meditação sobre as Escrituras, sobre a verdade teológica, sobre oevangelho—masdeveavançarparaaexperiênciarealcomDeus.Emvirtudedesuapreocupaçãoemmanteraexperiênciaespiritualatreladaàs

Escrituras,Owensesentiareceosodatradiçãodomisticismoquesedesenvolveuna igreja medieval. Em seu único livro sobre oração, ele dedica um capítulo

inteiroaavaliaratradiçãocontemplativacatólica.ComeçacomumadeclaraçãosurpreendentedaimportânciadoencontrocomDeus:Afixaçãoespiritualintensadamente,pelacontemplaçãodeDeusemCristo,atéaalmasercomoquetragadaporadmiraçãoedeleiteetrazidaaumaperdacompleta, pela infinitude dessas excelências que ela admira e adora [...] sãocoisas para se ter em vista na oração, e que, pelas riquezas da divinacondescendência,sãocomfrequênciadesfrutadas.18

Eisumescritorquenão temeaexperiênciaespiritual.De fato, comovimos,

eleensinaqueodeleitar-seregularmenteemDeuseasexperiênciasdedoçuraeamorsãoasúnicasmaneirasdeevitarserdominadonosentidopráticoporfalsosdeuses, paixões e impulsos que escravizam. Contudo, ele critica a tradiçãocatólica porque nela a Bíblia não é enfatizada o bastante como o principalmaterialparameditaçãoecontemplação.Emdeterminadoponto,Owentraçaumprincípiosobreorelacionamentoentre

verdadeeexperiência.Eleescreve:“Quandoaluzdeixaosafetosparatrás,elaterminaemformalidadee/ouateísmo;quandoosafetosultrapassama luz,elesafundam no lamaçal da superstição, adorando imagens, figuras ou coisaparecida”.19

Por “luz”Owen entendenosso conhecimento corretodo ensinooudoutrina.Nossoconhecimentodoutrinárioebíbliconãopode“deixarosafetosparatrás”.SecremoscomamentequeDeusésanto,devemostambémacharsuasantidadeagradávelesatisfatórioosimplesfatodelouvá-la.SecremosqueograndeDeusdo universo nos ama de verdade, isso deveria nos tornar inabaláveisemocionalmente diante da crítica, do sofrimento e da morte. Resumindo,devemos ser capazes de acessar existencialmente nossas convicçõesdoutrinárias.Seasolidezdoutrinárianãoforacompanhadapelaexperiênciadocoração, acabará levandoao cristianismonominal— isso é, sódenome—e,por fim, à descrença.A ironia é quemuitos cristãos conservadores, amaioriapreocupadaemconservaraverdadeiraesãdoutrina,negligenciaa importânciadaoraçãoenãofaznenhumesforçoparaexperimentarDeus,oquepodelevarà

futura perda da sã doutrina. Owen acredita que o cristianismo sem a realexperiênciadeDeusacabarápornãosercristianismocoisanenhuma.Ainda assim, há também um perigo na outra direção. “Os afetos podem

ultrapassaraluz”,oquenoslevanãoàdescrença,masà“superstição,adorandoimagens,figurasoucoisaparecida”.Aqui,Owentememmenteacimadetudovárioselementosdatradiçãomísticadaigrejamedieval.Épossívelusartécnicasde meditação e imaginação para gerar mudanças na consciência totalmentedesvinculadas da realidade de quem é Deus. Pode ser uma experiência deextraordináriopoder, por exemplo, imaginar Jesus entrandocheiodevigor emsuacasaeproferindopalavrasdeafirmaçãoeconfiança.Ouvocêpodeimaginá-lo em algum incidente do passado em sua vida, intervindo, defendendo-o eabraçando-o. Nesse exercício, seria fácil pôr palavras na boca de Jesus quecontradizemfrontalmenteseuensinonaBíblia.Ou,comotemosvisto,palavraseexpressões repetidas que conseguemproduzir transformações na consciência eestadoscomodetranse.Nocapítulosobreaoraçãocontemplativadatradiçãocatólicaromana,Owen

relaciona diversas críticas. Afirma que a experiência da paz e tranquilidadeperfeitas, inteiramente livres de sentimentos, sejam eles de raiva, sejam dedesejo,vêmdefilósofosneoplatônicoscomoPlotino.Jesus,porém,oravacomsúplicas veementes (Hb 5.7).O amor deDeus não extingue o desejo, antes osatisfaz.Owenargumentaqueaoraçãosempalavras,emboraaconteçaàsvezes,jamais é prescrita ou vista como um ideal. Em Lucas 11, Jesus disse aosdiscípulosparausarempalavras.Em1Coríntios14,Pauloinstouoscristãospara“oraremcomamente”empalavras.OutroproblemaparaOwenéqueaênfasenastécnicasascéticas—concebidas

comodegrausemumaescadaquecomeçanasformaspurgativaseinferioresdeoração(comoapetiçãoeaconfissão)evaiatéasformasmaissublimes—podeobscurecer a verdadedagraçadeDeus.Aoração se converte em regimepeloqualapessoa sepreparapara serdignadavisão.Ela tambémse tornaelitista,algoquesóosmongeseoutrosconseguemfazerporquerequerhorasdiáriasetécnicas complicadas. Por fim, Owen argumenta que, em muitas oraçõesmísticas, há uma perda de orientação quanto à centralidade da mediação de

CristoentrenóseoPai.Grandeparteda linguagemda tradiçãomedieval falasobre experimentar diretamenteDeus em sua essência. Isso tende a deixar deladooevangelhoesuaobraredentora.ParaOwen,issoéfatal.Significaqueasexperiências dessas pessoas são psicológicas. Elas não estão estabelecendocontato com o Deus real, que se revela pessoalmente somente por meio deCristo.20

Não obstante isso e apesar de suas profundas preocupações, no final Owenconclui:“Émelhorquenossosafetosexcedamnossaluzporcausadadeficiênciado nosso entendimento do que nossa luz exceder nossos afetos por causa dacorrupçãodosnossosdesejos”.21Algonotávelparaserditoporumpuritano.Sedevemosficaremdesequilíbrio,melhorquesejamosfrágeisdoutrinariamenteetenhamosumavidadeoraçãovitaleumsensorealdeDeusnocoraçãodoquetermostodaadoutrinaperfeitaesermosfrioseespiritualmenterígidos.EmseutratadoSpiritual-mindedness[Inclinaçãoespiritual],háumapassagemquetratadesseconceitoeédignadeumacitaçãomaisextensa:Em seus pensamentos sobre Cristo, tenha o cuidado de que eles sejamconcebidos e direcionadosde acordo coma regra da palavra, a fim de quevocênãoenganeaprópriaalmaenãoentregueaconduçãodeseusafetosavãsimaginações.[...][Mas]nãodevemosnegligenciarnossodever[decontemplarCristo] porque outros homens erraram em relação aos seus, tampoucodevemosnosapartardosprincípiospráticosefundamentaisdareligiãoporquetêm sido abusados pela superstição. [...] Contudo, devo dizer que prefeririaestar entre aqueles que, na expressão de seu amor e afeto para comCristo,incorremsimemalgumasirregularidadeseexcessosnamaneiradeexpressá-los[...]doqueentreaquelesque,professando-secristãos,quaserepudiamterquaisquerpensamentossobreapessoadeCristoouafetosporele.22

Autores católicos romanos modernos, como Hans Urs von Balthasar,

reconhecem a dificuldade demanter unidas a “Palavra exterior” daBíblia e a“Palavrainteriorqueemnóshabita”doEspírito.23VonBalthasaradmitequeatradição mística católica tende a confiar demais no íntimo, passando

excessivamenterápidoparaacontemplaçãoserena,aopassoqueosprotestantessãomelhoresemestudarasEscriturascomointuitodeouvirDeusfalaredepoislutarcomelee lheresponder.Replica,noentanto,queosprotestantes,porsuavez, têm uma compreensão frágil demais do Espírito que em nós habita paraconduzi-los a uma experiência profunda. Acha que eles se dão por satisfeitoscom o mero conhecimento doutrinário.24 Como vimos, é verdade que muitosprotestantestitubeiamdiantedaexperiênciaespiritual.Apesardisso,asmelhoresteologiasprotestantesdoEspíritoSantosãomaisdoqueadequadasparaatarefa,comoatestamostratadosmaciçosearobustateologiaespiritualdeOwen.

Cautelaeapreciação

A crítica de JohnOwen ao que ele consideramisticismo não bíblico anda demãosdadascomaapreciaçãoporaquelesqueanseiamcomgrandeintensidade— como no caso dosmísticos medievais— serem envolvidos pela glória deDeus.Owennãotevereceiodedizerquedeveríamosansiaruma“contemplaçãodeDeusemCristoatéaalmaficarcomosetivessesidoenvolvidaporadmiraçãoe deleite”. No entanto, ele dirige uma crítica contundente àqueles que nãofundamentamessacontemplaçãonaPalavraenoevangelhodagraça.Creio que Owen poderia ter sido mais generoso em reconhecer, em

determinados pontos, a semelhança entre suas descrições da experiênciaespiritual emuitas das descrições dosmísticos.Contudo, no geral,Owen estácorreto e alcança um equilíbrio raro e acertado, ainda que tenha preferido—levemente!—osafetosdesveladosemdetrimentodasãdoutrina.Com isso em mente, acho que os protestantes que consideram atraente o

misticismobíblicodeumJohnOwenoudeumJonathanEdwardsdeveriamlerosmísticosmedievaiscomapreciação,mastambémcomboadosedecautela.25

Noartigo“WhyshouldthoughtfulevangelicalsreadtheChristianmystics?”[Porqueevangélicossériosdevemlerosmísticoscristãos?],ohistoriadorda igrejaCarlTruemandestacaqueaespiritualidadecatólicamedieval abraçaoqueele(assim como eu) considera um erro crasso — a crença de que Jesus é“ressacrificado” na missa e, assim, o perdão dos nossos pecados não estaria

totalmente“concluído”nemnossaglória futuragarantidapelamortedeCristonacruz.IssolevaamuitasdasdistorçõesnomisticismomedievalparaasquaisOwenchamanossaatenção:a ideiadequevocêpodesepurgaresequalificarpara experiências mais sublimes, a forte impressão de que pode se conectardireto com Deus e uma falta generalizada de uso do próprio evangelho naoração.Contudo,Truemandiz o seguinte dosmísticosmedievais: “Há um senso da

santidadeedatranscendênciadeDeusnessasobrasqueestásignificativamenteausentedemuitosescritosedopensamentomodernossobreDeus.[...]Oqueostornamísticosésuasensibilidadeàprópriapequenezeinsignificânciadiantedaimensidão de Deus, que, em si, é incognoscível e escolheu se revelar sob asformas frágeis da palavra e da carne humanas. Se a teologia com frequênciadeixamuito adesejar, parece-meque a respostanão é rejeitar a aspiraçãodosmísticos,mascombinaressaaspiraçãocomateologiaapropriada”.26

No jardim do Éden, pecamos e perdemos a face deDeus. Esse foi omaiordesastrequepoderiaacontecer,poisfomoscriadosparaviversobaluzsingular,perfeita emaravilhosa do seu semblante.Temos vagado pelomundo, vazios emiseráveis.Moisésconstatouque,navisãobeatíficadafacedeDeus, todososseus anseios seriam satisfeitos. Pediu para vê-lo—mas seu pecado era umabarreira.Em Jesus, essa barreira é afastada e podemos começar a ver, emboraapenasemparteepela fé, a luzdaglóriadeDeusna facedeCristo.Quando,pelameditaçãoeoração,acolhemosemnossocoraçãooevangelhoerespectivasverdades,pelopoderdoEspírito,essesanseiossãopoucoapoucosatisfeitoseoutrascoisasnavidapassamaserdádivas,emvezdedeuses,edeformalenta,porém inexorável e radical, mudamos nosso caráter e todos os nossosrelacionamentos. Agostinho expressou isso com perfeição nas Confissões.ConcluiuquetodasascoisasqueamavaestavamemDeus,afontedetodasascorrentesdodesejo:Masoqueamo,quandoatiamo?Nãoamoabelezadeumcorpo;nemoritmodotempoemmovimento;nemoesplendordaluz,tãocaroaosnossosolhos;nem as doces melodias num mundo de sons múltiplos; nem o perfume de

flores,bálsamoseespeciarias;nemomanáouomel;nemosmembrosqueocorpotantosedeleitaemabraçar.Nãoénadadissoqueamo,quandoamomeuDeus.E,noentanto,quandoamomeuDeus,eudefatoamoumaluz,umsom,um

perfume,umalimentoeumabraço—luz, som,perfume,alimentoeabraço[que estão]nomais íntimodomeu ser.Ali,minha almaé inundadaporumesplendorque espaçonenhumé capazde conter; ali, soaumamúsicaqueotempo jamaisdispersa; ali, sintoumperfumequeventonenhumdissipa; ali,saboreio um alimento que a saciedade não consegue amargar; ali, braços seentrelaçamnumabraçoqueasatisfaçãonuncadesata.Éissoqueamo,quandoamomeuDeus(Confissões10.6.8).

1Westminster larger catechism, Q. 182 [edição em português: O catecismomaiordeWestminster(SãoPaulo:CulturaCristã,2013)].

2McNiell, Calvin: Institutes, 3.1.1., p. 537 [edições em português: JoãoCalvino,As institutas, tradução deWaldyr Carvalho Luz (São Paulo: CulturaCristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de CarlosEduardoOliveira;JoséCarlosEstêvão(SãoPaulo:Ed.Unesp,2008)].

3McNiell,Calvin:Institutes,3.2.36.4Veja emD.M.Lloyd-Jones—a quemdevomuitos das perspectivas deste

capítulo—, uma exposiçãominuciosa, em forma de sermão, dessa oração. D.Martyn Lloyd-Jones, The unsearchable riches of Christ: an exposition ofEphesians3:1to21(GrandRapids:Baker,1979),p.106-315.

5Esse é o entendimento de Lloyd-Jones do que Paulo quer dizer aqui. VejatambémP.T.O’Brien,TheLetter to theEphesians (GrandRapids:Eerdmans,1999).“Àprimeiravista,pareceestranhoPauloorarparaqueCristohabitenocoraçãodoscrentes.Jánãovivianeles?Emresposta,observa-sequeofocodasúplica não está na habitação inicial deCristo,mas em sua presença contínua[...]paraestabeleceroscrentessobreumfirmefundamentodeamor”(p.258-9).

6Vejaocapítulo5,“Thenightoffire”,in:MarvinRichardO’Connell,BlaisePascal:reasonsoftheheart(GrandRapids:Eerdmans,1997),p.90.

7WilliamR.Moody,ThelifeofDwightL.Moody(Albany:BookfortheAges,AgesSoftware,1997),p.127.

8VejaO’Brien,LettertotheEphesians,p.258.9OJesus,kingmostwonderful,autordesconhecido,século12,traduçãoparao

inglêsdeEdwardCaswall,1814-1878.10O’Brien,LettertotheEphesians,p.255.11SuzanneMcDonald,“BeholdingthegloryofGodinthefactofJesusChrist:

JohnOwenandthe‘reforming’ofthebeatificvision”,in:KellyM.Kapic,MarkJones,orgs.,TheAshgateresearchcompaniontoJohnOwen’stheology(Surrey:Ashgate,2012),p.142.

12Owen,Works,vol.1,p.288,citadotambémemMcDonald,“Beholdingtheglory”,p.143.

13Ibidem,p.307-8.14Muitos reconhecerão na argumentação de Owen sobre a visão beatífica

váriasideiasbásicassobreaexperiênciaespiritualmaistardedesenvolvidasporJonathan Edwards. Para Edwards, a diferença entre o cristão regenerado peloEspíritoSantoeapessoameramentereligiosaeéticaéqueocristãoexperimenta“umatransformaçãoocorridanasperspectivasdesuamenteenodeleitedoseu

coração, por meio da qual ele apreende uma beleza, uma glória e um bemsupremonanaturezadeDeussegundoéemsimesma”(JohnE.Smith,org.,Theworks of Jonathan Edwards [New Haven: Yale, 1959], vol. 2: Religiousaffections,p.241).Emoutrolugareledescreveessatransformaçãodoseguintemodo: “É o prazer da alma pela excelência suprema da natureza divina,inclinandoocoraçãoparaDeuscomoobemmaior”(SangHyunLee,org.,TheworksofJonathanEdwards[NewHaven:Yake,2002],vol.21:WritingsontheTrinity, grace, and faith, p. 173). Os dois pontos que Edwards distingue naexperiênciaespiritualgenuínasão:(1)atransformaçãodapessoacomoumtodo(tantodasperspectivasdamentequantodo“deleite”docoração);(2)ofatodequeDeusnãoémaisummeioparaumfim,paraoutrosbens,maspassaagoraaser o bem supremo.Edwards afirma isso de outrasmaneiras—anteriormenteDeuseraútilparanós,masagoraébeloparanós,satisfatóriopeloqueéemsimesmo.AglóriaeafelicidadedeDeusagorasetornamaglóriaeafelicidadedanossavida.Por trás tantodeOwenquantodeEdwards, claro, estáAgostinho,comseu ensinamentodequepecado é amordesordenado, e que somente se amaior alegria do coração for transformada e Deus for amado acima de tudo,outrasvirtudescomeçarãoasedesenvolvereocarátercomeçaráaserrenovado.

15Owen,Works,vol.1,p.307.VejatambémMcDonald,“Beholdingtheglory”,p.143.

16Emumimportanteartigo,SuzanneMcDonaldressaltaofatodeaênfasedeJohnOwennavisãobeatíficadecertaformaocolocaremdesacordocomoutrosprotestantes da época. A maioria dos seus colegas encarava a visão beatíficacomo algo sobrenatural ou “católico” demais. Só Francis Turretin, teólogoprotestante reformado de Genebra e contemporâneo de Owen, dedicou-lheatenção. Contudo, tanto Tomás de Aquino como Turretin consideravam-nabasicamente uma visão de apreensão intelectual deDeus em geral, com Jesusfigurandocomoumaespéciedecanalparaela(vejaMcDonald,“Beholdingtheglory”, p. 151-4). Owen aceitou a ideia da visão beatífica,mas em seguida a“reformou”segundoumaabordagemqueconsideravamenosespeculativaemaisbíblica,enquadrando-aemumarcabouçoteológicoprotestanteereformado.Emvez de entendê-la como uma apreensão genérica da infinitude de Deus, ele aentendia comocentradanapessoa e obradeCristo. Jesusnão constituíameroveículo para a visão,mas seu objeto central.De fato, argumentavaOwen, atémesmono futuro, seriananaturezaglorificadadeCristoqueveríamosaDeuscontinuamente. Então, em vez de uma experiência completamente futura eintelectual,Owendescreviaavisãobeatíficacomopossíveldeagoraacontecer

emparte,pelafé,equeafetariaintegralmenteapessoapormeiodoseuimpactono coração. Owen converteu o conceito aparentemente esotérico da visãobeatífica em uma base prática para a oração e a experiência no momentopresente.Comopodemossermoldadospelaantecipaçãodavisãobeatífica,elaconseguemoldaremprofundidadecomovivemosdefato,diaadia,nomundo.Owen observou textos de 2Coríntios e notou a natureza incomum do verbo

“refletindocomoumespelho”.Em1João3.2,aprendemosqueavisãodeCristoéfutura,mas2Coríntios3.18nosensinaquepodemosverecontemplaraglóriadeCristoagora.Overbogregokatoptrizdomenoiéumapalavracompostaequerdizer“fixaroolharemumaimagemrefletidanoespelho”.Issofazsentidonosdois textos. Quando olhamos em um espelho, não vemos o objeto em si;olhamosparaumreflexobidimensionaldeumobjeto tridimensional.Podemos“ver”Cristoagora,aindaquesomentepelafé.O que significa contemplar Jesus pela fé? “ParaOwen, o espelho pelo qual

enxergamosaglóriadeCristoéoevangelho.NãotemosacessosemmediaçãoàpessoadeCristo em suaglória celestial; contemplamos a glória deCristo, emsua divindade e humanidade, pormeio do espelho das Escrituras” (Ibidem, p.149.OwentambémdefendeessaideiaemWorks,vol.1,p.305.“Temos‘aluzdoconhecimentodaglóriadeDeus somente emsua face [na facedeCristo]’.[...]Esseéomistérioeaverdadefundamentaiseprincipaisdoevangelho.”Cf.capítulo 2 emMeditations and discourses on the glory of Christ, p. 293-309.OwenapresentaamesmaideiaportodaasuaobraThegraceanddutyofbeingspiritually minded). Portanto, quando é pregado e explicado o evangelho dasalvaçãodeCristoéqueaglóriadapessoadeJesuse suaobrasão revelados.Quando meditamos especialmente nas verdades do evangelho, conformereveladasnaBíblia,éque,comoauxíliodoEspírito,averdadecomeçaabrilhar,o amor de Deus se torna palpável e a glória de Cristo reluz e nos comove,sensibilizaetransforma.Essa leitura das passagens de 2Coríntios conta com bom apoio de

comentaristas atuais (vejaPaulBarnett,TheSecondEpistle to theCorinthians[GrandRapids:Eerdmans,1997],p.206).“QualseráatochadePauloparafazerbrilharaglóriadessaluznocoraçãodaspessoas?É‘oevangelho’,apalavradeDeus”,pelaqualo“conhecimentodeDeus”iluminaocoraçãodosouvintesdePaulo (2Co 4.4,6; cf.Gl 1.16). Paradoxalmente, portanto, os leitores de PauloveemaglóriadeCristoaoouviremoevangelho,oqual,porsuavez,forneceoconhecimentodeDeus”(p.206).VejaMurrayJ.Harris,TheSecondEpistle tothe Corinthians: a commentary on the Greek text (Grand Rapids: Eerdmans,

2005). “‘A glória do Senhor’ é a glória de Deus conforme revelada em suaimagem,Cristo.Se temosde identificaro‘espelho’emqueaglóriadeDeusévista, é mais provável que ele seja o Cristo apresentado no evangelho, cujaessênciaéCristo,ouoevangelhoatreladoàvidacristãvividanoEspírito,doqueosministrosdoevangelhoouoscristãosemgeral”(p.315).Portanto, concluiOwen, nossa “visão” deCristo é parcial e ocorre somente

pela fé, por meio do evangelho. No futuro, nós o veremos face a face (1Co13.12).

17Owen,Works,vol.7,p.348.18Owen,Works,vol.4,p.329-30.19Owen,Works,vol.1,p.401.20Todos esses pontos são extraídos do capítulo, escrito por Owen, sobre a

“Oraçãomental”deRoma.Ibidem,p.328-38.21Owen,Works,vol.1,p.401.22Owen,Works,vol.7,p.345-6.23VonBalthasar,Prayer,p.28.24Ibidem, p. 28-9. Von Balthasar diz que o pietismo e o revivalismo

protestantes vêm tentando recuperar o elemento faltante da realidade dahabitaçãodoEspírito,mastaistentativasnãotêmsidobem-sucedidasemrazãoda “ausência de um ato eclesiástico de adoração objetivo e oficial, com arespectiva liturgia”, p. 29. Trata-se evidentemente de uma declaração muitoradicaldizerqueosesforçosprotestantesparapromoveraexperiênciaespiritualtêmsidobasicamenteumfracasso.

25Coloco-me ao lado de outros que fazem uma diferenciação entre omovimento contemporâneo da Oração Centralizadora e os místicos medievaismais antigos — apesar de os proponentes da Oração Centralizadora seesforçaremparadefenderqueaabordagemdeleséapenasumamodernizaçãodatradição medieval. Entre os críticos mais surpreendentes da OraçãoCentralizadora estão os Zaleskis. Apesar de sua simpatia (exageradamente)amplaporquase todosos tiposdeorações,elesveemaOraçãoCentralizadoracomoumaversão“emburrecedora”e consumistadaantiga tradiçãomísticadaobraThecloudofunknowing.“Éfácilidentificarnesseprogramaoesqueletodoensino de The cloud, em especial o esforço para suprimir a consciência dascoisascriadaseousodapalavraúnicacomooração.Masseperdeaousadiadooriginal,aquisubstituídaporexpressõesdolorosamentepolidas.[...]ParaoautordeThecloud,aoraçãocontemplativaéumaprovaçãoárduacomumfimincerto;o movimento da oração centralizadora [...] transformou-a em exercício

confortável com um resultado predeterminado [...]”. A Oração Centralizadoratem“poucoemcomumcomo realismo imparcialdeThecloud epareceantespartilhar doZeitgeist do século 20, com seu otimismo e ecletismo espiritual”(Zaleski, Prayer, p. 208). Para uma crítica protestante apreciativa, mascontundente, tantodas tradiçõesquantodaspráticasantigascomoaOraçãodeJesus, veja John Jefferson Davis, Meditation and communion. Veja tambémEdmundP.Clowney,Christianmeditation [CM] ePeterAdam,HearingGod’swords.

26Carl Trueman, “Why should thoughtful evangelicals read the medievalmystics?”,Themelios33,n.1(May2008).

QUINTAPARTER

Colocandoaoraçãoemprática

E

DOZE

Veneração:louvandosuaglória

xistemtrêstiposbásicosdeoraçãoaDeus.Háaoraçãovoltada“paracima”—louvoreaçõesdegraçasdirigidosaopróprioDeus.Poderíamoschamar

essetipode“oraçãodereverência”.Hátambémaoraçãovoltada“paradentro”—oautoexameeaconfissãoquetrazemumsensomaisprofundodepecadoe,emtroca,umaexperiênciamaiselevadadagraçaedacertezadoamor.Essaéaoraçãodaintimidade.Porfim,háaoraçãovoltada“parafora”—asúplicaeaintercessão que se concentram emnossas necessidades e nas necessidades daspessoasnomundo.Essaoração requer perseverança e com frequência implicaluta. Nos próximos três capítulos, examinaremos cada uma dessas formasfundamentaisdeoração.

Aoraçãoalfa

NaOraçãodoSenhor,quecontémoensinodeJesussobreoassunto,o louvorvemprimeiro.Emquesentidoolouvoréprimordial?Elemotivaosoutrostiposdeoração.QuantomaisvoltarmosaatençãoparaaperfeitasantidadeejustiçadeDeus, mais rapidamente enxergaremos as próprias imperfeições e asconfessaremos. Ver a grandiosidade de Deus também leva à súplica. Quantomais experimentarmos sua majestade e percebermos nossa dependência dele,mais prontamente recorreremos a ele diante de cada necessidade. Poderíamosdizer que a adoração repleta de veneração aDeus corrige as outras formas deoração.

Há alguns anos, ao pregar sobre a Oração do Senhor, comentei— em tommaisoumenoscasual—que,comoaadoraçãoantecedeopedidopelo“pãodecadadia”,precisamosdedicartempoaagradecerelouvaraDeuspeloqueeleé,antesdepassarmosparaa listadenossasnecessidades.Umamulherdaminhacongregação levou isso a sério e, cerca de duas semanasmais tarde, relatou adiferençaquea sugestão fizera.“Antes”,disseela,“eucorria logoparaminhalistadeoraçãoe,quantomaisrepassavatodososproblemasenecessidades,maisansiosaesobrecarregadaeuficava.AgoracomeceiadedicartempoparapensaremquantoDeusébomesábio,eemquantasoraçõesminhaselerespondeunopassado.E,quandochegoaminhasnecessidades,descubroquepossodeixá-lasemsuasmãosesintoofardosaindodosmeusombros,emvezdepermanecerneles.”Nuncame esqueci do seu testemunho, porque ela pegara umprincípioqueeumesmomalcompreendiaeseapropriaradele,colocando-oempráticanasuavida.Louvor e adoração são os pré-requisitos necessários para a elaboração e a

motivação adequadas de todos os outros tipos de oração. Não quer dizer quenuncapossamosirdiretoparaapetiçãoouparaaconfissão,massignificaque,em nossa vida de oração como um todo, o louvor e a adoração devem ter aprimazia.

Asaúdedolouvor

Outrarazãoparaaprimaziadolouvoréseuenormepoderdecuraroquehádeerradoconoscoedetrazersaúdeespiritualinterior.Umdos escritos contemporâneosmais influentes sobre o louvor aDeus é o

ensaio “Uma palavra sobre o louvor”, que integra a obra de C. S. Lewisintitulada Reflections on the Psalms [Reflexões sobre os Salmos].1 Lewiscomeçarelatandoumproblemaquetinhacommuitosdossalmos,ouseja,ofatodeDeusconclamaraspessoasalouvá-locomtantafrequência.“Menosprezamosohomemque requerelogioconstantedasuavirtude, inteligênciaouencanto”,reageele.QuasemepareciaqueDeusestivessedizendo:“Oquemaisqueroéquemedigamquesoubomemaravilhoso”.2

Com o passar do tempo, Lewis começou a refletir sobre a razão pela quallouvamos o que quer que seja. O que queremos dizer, por exemplo, quandoafirmamos que um quadro, uma obra musical ou um livro é “admirável”?Queremos dizer que as pessoas deveriam admirar essas coisas e, se não ofizerem,serãoprejudicadasedeixarãodeconheceralgomaravilhoso.Areflexãocomeçou a ajudar Lewis a compreender os chamados para louvar a Deus. SeDeuséograndeobjetodeadmiraçãoqueestáportrásdetodasasoutrasbelezasemagnificências,louvá-loeadmirá-loseria“nadamaisdoquedespertar,entrarnomundoreal”,aopassoquedeixardefazê-loseriatornar-seumapessoacujadeficiênciaémuitomaisprofundadoqueadaquelasquesãocegas, surdasouestãopresasaumacama.3

Issonãofoitudooqueeledescobriu.“Ofatomaisóbviosobreolouvor—aDeusousejaláaoquefor—estranhamentemeescapava.”Elenuncanotaraquetodoprazertransbordaespontaneamenteemlouvoramenosque“atimidezouomedodeaborrecer aspessoas sejadeliberadamente trazidoà cenapara refreá-lo”.Quandovocêdescobrealgograndiosooufascinante,senteumanecessidadequase visceral e instintiva de louvá-lo para os outros e fazer com que eles oreconheçam. “Ouça isso!”, você diz para seu amigo. “Mal posso esperar paraquetambémoleia!Vocêvaiamar.”“Nãoéótimo?Nãoémaravilhoso?”Porqueserá que, quandonossa imaginação é capturadapor alguma coisa, é inevitávelqueajamosassim?Lewisrespondeu:Pensoqueapreciamoslouvaraquilodequegostamosporqueolouvornãoselimita apenas a expressar nosso prazer, mas também o completa; é suaconsumação determinada. Não é por cortesia que o tempo todo os amantesenaltecemabelezaumdooutro;odeleitenãoécompletoatéserexpresso.[...]Isso acontece mesmo quando nossas expressões são inadequadas, como emgeral acontece, claro.Mas como—se possível fosse alguémde fato louvarporcompleto taiscoisasàperfeição—“pôrpara fora”demaneiracabal, emforma de poesia oumúsica, ou pintura, a irrupção de apreço que quase lheexplodeopeito?Nessahipóteseoobjetodefatoseriaapreciadoporinteiroenossodeleiteteriaalcançadoaperfeitaprogressão.4

Essa percepção representou um marco para Lewis, e o mesmo acontece a

muitos que leem seu capítulo, incluindo eu. Ele revela que devemos louvar aDeus ou viver na irrealidade, na pobreza.Nãopodemos apenas crer emnossamentequeeleéamorosoousábio,ougrande.Devemoslouvá-loporessascoisas—e louvá-loparaoutraspessoas—sepretendemos ir alémdoconhecimentoabstratoealcançarumenvolvimentocapazdetransformarocoração.Aprenderalouvar,portanto,nostransforma.Lewisnãopodiadeixardenotar

que...asmentesmaishumildese,aomesmotempo,maisequilibradasegenerosas,louvammais,aopassoqueasmaismal-humoradas,desajustadaseinsatisfeitaslouvam menos. Os bons críticos encontram alguma coisa para louvar emmuitas obras imperfeitas; osmaus, reduzem continuamente a lista de livrosque teríamospermissãopara ler.Ohomemsaudável e semafetação,mesmoquandocriadonaopulênciaecomvastaexperiêncianaboamesa,seriacapazdelouvarumarefeiçãobemmodesta:oirritáveleoesnobeencontramdefeitoem tudo.Excetoonde interferemcircunstâncias intoleravelmente adversas, olouvorparecepraticamenteseravozdasaúdeinterior.5

Oreordenamentodosnossosafetos

Por que o louvor e a adoração haveriam de causar tamanho efeito em nós?Porque,dos três tiposdeoração—adoração,confissão,súplica—,o louvoréaquelequedesenvolvediretamenteamorporDeuse,seAgostinho tiver razão,somosbasicamenteoqueamamos.JamesK.A.Smith,emseu livroDesiring thekingdom:worship,worldview,

and cultural formation [Desejando o reino: adoração, cosmovisão e formaçãocultural],apresentaváriosmodelosdepersonalidadeeidentidadehumanas.Emcontrastecomtodoseles,eleescolheummodeloagostiniano—“Souaquiloqueamo”.6ComoAgostinho coloca em seu comentário de 1João: “Cada um é tal

qualseuafeto”.7Nossamaisfundamentalidentidadeemododesernavidasãodefinidosporaquiloqueamamos.Agostinhoensinavaque todasaspessoasbuscama felicidadeeseapegama

coisas que, segundo acreditam, as fará felizes. Esse apego é vivenciado comoamor. O principal problema humano, contudo, é que, por causa do pecado,identificamoserroneamenteoquenostornaráfelizes.Comodiscutimosantes,oresultadosãoamoresouafetosdesordenados—“foradeordem”.Ouamamosoquenãodeveríamos,oudeixamosdeamaroquedeveríamos,ouamamosmaisoquedeveríamosamarmenos,ouamamosmenosoquedeveríamosamarmais.8

Se um homem ama ganhar dinheiromais do que fazer justiça, explorará seusfuncionários e empregados. Se ama sua profissãomais do que os filhos, seusrelacionamentosfamiliaresruirão.Arazãofundamentaldanossamiséria,noentanto,énãoamarmosaDeusde

modo supremo. Como Agostinho afirmou em uma oração famosa: “Tu nosfizeste para ti mesmo, e nosso coração fica inquieto enquanto não encontrardescansoemti”(Confissões,1.1.1).Issosignifica,demodobemsimples,quesevocêamaralgonestemundomaisdoqueaDeus,esmagaráesseobjetodebaixodopesodassuasexpectativas,eeleacabaráporpartirseucoração.Porexemplo,seseucônjugeeoamordeleoudelaporvocê foremmais importantesnasuavidadoqueoamordeDeus,vocêficarátremendamentefuriosoedesesperadoquandoeleouelafalharemlhedaroapoioeoafetodequevocênecessita;vocêtambémficaráextremamentereceosodaraivaedacontrariedadedoseucônjugeparadizeraverdade.SóseoamordeDeusforacoisamaisimportanteparaasuavida,vocêteráaliberdadedeamarseucônjugedeformasatisfatória.Elaborando sobre essa ideia mais adiante em suas Confissões, Agostinho

escreveu:Paraondequerqueaalmahumanasevolte, amenosquesejaemdireçãoaDeus,elaseapegaàdor,mesmoquesejambelasascoisasforadeDeusedesimesmaàsquaiselaseapega(Confissões,4.10.15).9

SeguindoAgostinho, Smith argumenta que nossos afetosmais fundamentaisconstituem a nossa identidade. Determinam “aquilo para o que somosessencialmenteorientados,oqueemúltimaanálisegovernanossavisãodavidaboa, o que molda nosso “ser no mundo” [...] e dá sentido a todos os nossosdesejos e ações menos fundamentais”.10 Não somente o que amamosindividualmente determina nosso caráter, mas o que a sociedade amacoletivamentemolda sua cultura. Essa última ideia estava no cerne da grandeobra deAgostinho,A cidade deDeus.11 Ele acreditava que as sociedades sãoassociaçõesmútuasentreindivíduosunidosporafetoscomuns.Oqueissosignifica?OlivrotododeSmithempenha-seemdefenderatesede

que, para transformar as pessoas em profundidade, devemos mudar o queadoramos.Pensamentos, argumentosecrenças sãomeiosde suma importânciapara comovero coração,mas somos, emúltima análise, aquiloque adoramos.Somos o que prende nossa imaginação, o que nos leva a louvar e a compeliroutrosalouvá-lo.Nossaraiva,ansiedadeedesânimodescontroladosresultamdeafetos desordenados. Nossos problemas de relacionamento resultam de afetosdesordenados, e nossos problemas sociais e culturais também. O que poderefazer a engenharia do nosso ser mais íntimo, a estrutura da nossapersonalidade?Oquepodecriarumacomunidadehumanasaudável?Louvoreadoração a Deus. Devemos amar a Deus acima de tudo, e isso só pode sercultivadopormeiodolouvoredaadoração.

Aimportânciadeagradecer

Muitosfalamem“louvor”e“açãodegraças”comosendodoistiposdeoração,ecomcertezahádistinçõesimportantesquedevemosmanteremmenteafimdesermoscuidadososnapráticadeambas.Todavia,emúltimaanálise,aaçãodegraçaséumasubcategoriadolouvor.AçãodegraçasélouvaraDeuspeloqueele tem feito, ao passo que o “louvor propriamente dito” é adorar aDeus porquem ele é.O salmo 135 nos chama a louvar o Senhor, e o salmo 136 a dargraças. No entanto, uma análise mais próxima mostra como as duas coisastendemasesobrepor.Osalmo135 louvaaDeusporhaver libertadoIsraelda

escravidãonoEgito,eosalmo136agradeceaDeusporseramorosoebom.Aação de graças por uma bênção automaticamente volta nossa atenção para osatributos e propósitos amorosos doDeus que operou a bênção.O louvor peloamorebondadedivinosseconvertecomfacilidadeemaçãodegraçasportodososexemplosdasuabondadeemnossavida.Se pretendemos fazer progressos na tarefa do louvor e da ação de graças,

precisamos saber o que teremos de enfrentar.A confissão e o arrependimentocostumam ser movidos pelas circunstâncias. Caímos ou fracassamos e somospressionados por culpa e vergonha — de modo que oramos com fervor. Asúplicaeaintercessãotambémsãomovidaspelascircunstâncias.Umamigooumembrodafamíliarecebeodiagnósticodecâncerounossacarreiraprofissionalpareceprestesaenveredarporumcaminhoruim—eassimoramoscomfervor.Nesses casos, as orações são alimentadas pelas circunstâncias externas e pornossosensodeimpotência.Quandocoisasboasnosacontecem,esperaríamosqueprovocassemgratidãoe

louvordomesmomodoqueasruinsmotivampetiçõesesúplicas.Todavia,nãoéesseocaso.EmRomanos1.18-21,Paulodescreveocaráterdopecadohumano.Dizele:“Porque,emboraconhecessemaDeus,nemoglorificaramcomoDeus,nemlhederamgraças”.Issosoaumtantodesapontador.Ora,essaéaessênciadopecado—ofatodequenão“damosgraças”? Issoé tão importanteassim?Sim,é.Pensenaquestãodoplágioporuminstante.Porqueélevadotãoasério?Ele

sedefineporalguémafirmarqueéautordeumaideiaquandonãooédefato.Plagiar é não reconhecer umadependência, não reconhecer que se apossoudaideiadeoutrapessoa.Oplágioéarecusaemdargraçasecrédito;portanto,éumaformaderoubo.Nãoéapenasinjustoparacomoautordaideia—tambémcolocaoplagiadoremposiçãovulnerável,jáquenãoserácapazdetertaisideiascomoaquelanofuturo.Vocêpercebe,então,porqueDeuslevatãoasérioessaquestão?Aingratidão

cósmica é viver na ilusão de que você é autossuficiente espiritualmente. Éasumirocréditoporalgoquenosfoidado.Éacrençadequevocêsabemelhordoqueninguémcomoviver,dequetemopodereacapacidadedemantersua

vida no caminho certo e se proteger do perigo. Isso é ilusão, e uma ilusãoperigosa. Não fomos nós que nos criamos, tampouco podemos preservar umsegundo sequer de nossa vida sem o poder sustentador de Deus. Contudo,odiamosesseconhecimento,dizPaulo,eoreprimimos.Odiamosaideiadequesomos total e completamente dependentes de Deus, porque então estaríamossujeitosaeleeseríamosincapazesdevivercomobementendemos.Teríamosdenossubmeteràquelequenosdátudo.Portanto, como o pecado em nosso coração nos deixa desesperados para

manter o controle de nossa vida e viver como queremos, não conseguimosreconhecer a magnitude e o alcance do que lhe devemos. Nunca somos tãogratosquantodeveríamos.Quandocoisasboasnosacontecem,fazemos todoopossívelparanosconvencermosdequefomosnósqueasconseguimosou,pelomenos,queasmerecemos.Ficamoscomocrédito.Equandoavidaseguesemsobressaltos,semmaioresdificuldades,nãovivemoscomumaconsciênciaquedemonstreabeatitude,omaravilhamentoeagratidãoporessefato.Nofim,nãosó roubamos de Deus a glória que lhe é devida, como a suposição de quemantemos nossa vida em movimento nos rouba da alegria e do alívio que agratidãoconstanteaumDeustodo-poderosoproporciona.Temos um problema com a gratidão e o louvor. No entanto, o louvor é a

oração alfa — o único tipo de oração que motiva, energiza e moldaadequadamenteasdemais.Oquefaremosemrelaçãoaonossoproblema?

Ohábitodelouvar

Seonossocoraçãoémaisavessoàgratidãoeaolouvordoqueaoutrostiposdeoração,comopodemosdesenvolvermelhoreshábitosmentais?Hátrêsmaneirasquemeocorrem,graçasatrêsescritorescristãosbritânicos.Primeiro, deveríamos aprender a fazer o que C. S. Lewis fala em seu livro

sobre oração, Letters to Malcolm. Ele deliberadamente procura ver todos osprazerescomo“dardosdaglóriaquandonosatingemasensibilidade.[...]Tenhotentado [...] transformar cada prazer em um canal de adoração”. Por “prazer”Lewisquerdizercoisas tãodiversascomoumbelovaleentremontanhas,uma

comida deliciosa, um ótimo livro ou uma peça musical. O que significatransformar cada prazer em adoração? Mais que depressa ele ressalta que,embora devêssemosdar graças aDeuspor todoprazer, ele está se referindo aalgomais.“Agratidãoexclama[...]‘QuantabondadedeDeusemmedarisso’.A adoração diz: ‘Qual deve ser a qualidade do Ser cujos raios distantes emomentâneos são assim!’Nossa mente vai do raio ao sol que o emite”.12 Eaprende a pensar instintivamente: “Que tipo de Deus criaria isso e me dariaisso?”.Por fimconcluique,emboranãosejasemprebem-sucedidoemmanteressadisciplina,elatemenriquecidotantosuaalegrianavidadiáriaquantoseusperíodosconcentradosdeoração.Eledizque“nãoseremoscapazesdeadoraraDeusnasocasiõesmaissublimessenãoadquirimosohábitodefazê-lonasmaistriviais”.13

A segunda maneira de desenvolver o hábito da adoração vem do grandereformador inglês do século 16,ThomasCranmer, autor do primeiroLivro daOraçãoComum.As“coletas”ouoraçõescoletivasqueCranmerescreveuparaolivroseguiamumaestruturalgeral.

1. Oendereçamento—umnomedeDeus2. Adoutrina—umaverdadesobreanaturezadeDeusqueéabaseparaa

oração3. Apetição—oqueseestápedindo4. Aaspiração—quebomresultadoadviráseopedidoforatendido5. EmnomedeJesus—partequelembraopapelmediadordeJesus

Vemos essa estrutura na famosa coleta de Cranmer para o culto da SantaEucaristia:

1. Deustodo-poderoso,2. diante de quem todos os corações estão abertos, todos os desejos são

conhecidosedequemnenhumsegredoestáoculto,3. purifica os pensamentosdonosso coraçãopela inspiraçãodo teuEspírito

Santo,

4. a fimque de possamos amá-lo comperfeição e enaltecer dignamente teunomesanto,

5. pormeiodeJesusCristo,nossoSenhor.Amém.

Veja como a oração passa de uma fundamentação na natureza deDeus (porquepodemospedir)paraapetição(oquedesejamos)eentãoàaspiração(oquefaremos com o objeto do nosso desejo, caso o obtenhamos). É extraordináriocomo esse padrão combina louvor com petição, teologia saudável comaspiraçõesprofundasdocoraçãoeobjetivosconcretosparanossavidadiária.14

Uma dasmaneiras de cultivar essamesmamaturidade na oração é escreversuasoraçõesaDeusemumdiárioeseguiresseesquemabásicoatéissosetornarumhábito.Comotempo,vocêdescobriráque,quandooraremvozaltaouemprivado, começará instintivamente todapetiçãoolhandoparaopróprioDeus eapelandoparaissoenquantoclamaaele.IssoéoquesignificaclamaremnomedeDeus,emquemeleé.NossoterceiroeúltimoguiaéMatthewHenry,ministropresbiterianogalêsdo

fim do século 17. Mais conhecido por seu comentário sobre toda a Bíblia,tambémescreveuAmethod forprayer [Ummétododeoração].O livroéumacompilação enciclopédica das orações da Bíblia — das curtas às longas —classificadas sob os seguintes títulos: Louvor, Confissão, Petição, Ação degraçaseIntercessão.Dentrodecadacapítuloasoraçõestambémsãoagrupadasemsubseções,etenhodescobertoqueessassubseçõespodemserextremamenteúteis.Escolhaumdos títulos, emseguidaveja algumasdaspassagensbíblicasrelacionadasabaixodelee,porfim,reproduzaaoraçãocomsuaspalavras.EsseesforçonosajudaafazercomaBíbliainteiraoqueLuteropropõequefaçamoscomaOraçãodoSenhor—torná-laumaoraçãonossa.Aquiestáumalistademeusprópriostítulos,baseadaemgrandepartenosde

Henry,mas semaspassagensbíblicas.Elespodemsugerirmaneirasdeusarotempoquevocê reservaparaoraçãoem louvor e açãodegraças.15Digaessascoisas a Deus, dirigindo-se a ele como “tu”, e tudo isso se converterá emlouvores.

AdoreaDeus

Deus é transcendente e infinitamente resplandecente, bendito e belo. Éautoexistente—nãodependedenadaparaser.Aocontrário,todasascoisasdependemdele.ÉumEspíritoinfinitoeeterno,oúnicoserperfeito,oDeusdeglóriaeimportânciaabsolutas.As perfeições de Deus são inigualáveis e incomparáveis. Entre elas secontam seu caráter eterno e imutável; sua onipresença; seu conhecimentoperfeitodetodasascoisas;suasabedoriaperfeitaeinsondável;seupoderesoberania absolutos e irresistíveis sobre tudo o que acontece; sua pureza,beleza e santidades morais imaculadas; e sua justiça — seu juízoinexorável,quenofimendireitarátudo.EleéoDeuscriador,oartífice,oprotetor,osustentadoreogovernantedetoda a criação. Ele é o Deus da verdade, o Deus que fala, com quempodemos ter um relacionamentopessoal.ODeusda aliança, fiel em suaspromessas,queseligouanósparaquepudéssemosnosligaraele.ODeustriúno,ume,noentanto,três:Pai,FilhoeEspíritoSanto.Nãoapenasnossorei,mas nosso amigo e esposo.Nosso coração foi feito para que ele sejanossaúnicaalegria.

AgradeçaaDeus

Por ele dar e sustentar nossa vida física. Por nos fazer à sua imagem,capazes de conhecê-lo, amá-lo, servi-lo, desfrutar dele e de outrosrelacionamentos;porpreservarnossavidaatéaqui—conduzindo-nosemmeio adanos e enfermidadesparaquepudéssemos estar vivoshoje; pelosustento e pela consolação que tornam nossa vida prazerosa, agradável etolerável;pelosnossosêxitos,pelosobjetivosatingidosepelasbênçãosquenãofomossábiosoucapazesosuficientedealcançar,masqueeleenvioudomesmojeito.Porconcederesustentarnossavidaespiritual.Peloplanodasalvaçãoemsie como o Pai, o Filho e oEspírito Santo o traçaramdesde a vastidão da

eternidade; por Cristo se esvaziar de sua glória em nosso favor; por seuensinoecaráterquenosrevelamabelezadasantidade;pelamortedeJesusem nosso benefício, pagando por nossos pecados, satisfazendo todas asexigências, levando-nos a um novo relacionamento de aliança comDeuspormeiodagraça;peloEspíritoSanto,porseupoderepresençaemnossavida,capacitando-nosacompreenderaverdadedivina,aconhecerseuamoreglória, a sermos conformados ao caráter deCristo e a servir as pessoascomosdonsdele;pelaPalavradeDeus,asEscrituras—porsuasabedoria,porsuaverdadeeporseupoder;pela igreja, suascongregaçõese líderes,que nos têmmoldado e formado, que nos têm ajudado a crescer em fé,esperançaeamor;pelosamigoscristãosquetantacoisanosproporcionam;pela certeza da nossa salvação, por podermos descansar na esperança daressurreiçãoedavidafuturacomeleparasempre;porconseguirmossaberque,hajaoquehouver,tudodarácerto.Pelasmisericórdiasespeciaisconferidasanós.PelasmaneirasemqueDeustemsidopacienteconosco;porcomonostemajudadoamudarearompervelhos hábitos e padrões de pensamento, atitudes do coração e práticas;porquenostemprotegidodaplenaconsequênciadenossacegueiraetolice;porserevelaranós,dando-noscomunhãocomele;pelasrespostasanossasorações;porcaminharconoscoemmeioàdoreaosofrimento.

Aoraçãoômega

Osúltimossalmosdosaltériosãotodossalmosdelouvor,eoúltimodeles—osalmo150—refere-seaolouvordemodomaiscontundente.LouvemaoSenhor.LouvemaDeusemseusantuário;louvem-noemseupoderosocéu.Louvem-noporseusatosdepoder;louvem-noporsuainsuperávelgrandeza.Louvem-nocomosomdatrombeta,

louvem-nocomaharpaealira,louvem-nocomtamborimedanças,louvem-nocomcordaseflauta,louvem-nocomobaterdecímbalos,louvem-nocomcímbalosretumbantes.TudoquetemfôlegolouveoSenhor.LouvemoSenhor.Por que o saltério termina com um louvor ininterrupto? Eugene Peterson

acreditaque,comotodaoraçãoémoldadapelolouvor,nofim,todaoraçãodeveterminareterminaráemlouvor.Escreveele:Toda oração [genuína], quando nela nos empenhamos tempo suficiente,transforma-se em louvor.Qualquer oração, pormais desesperada que seja oseu motivo, por mais enfurecidas e temíveis as experiências que atravessa,acabaemlouvor.Nemsempreelachegaaessepontodeformarápidaoufácil—ajornadapodelevarumavidainteira—masofimésemprelouvor.[...]Háinsinuações a isso em todo o livro deSalmos.Comnão pouca frequência olouvorbrota,mesmoemmeioaumterrívellamento,desafiandotodalógicaesemfazerqualquertransição.[...]O salmo 150 não está sozinho; mais quatro salmos de aleluia foram

inseridos antes dele, de modo que se torna o quinto de cinco salmos queconcluem o saltério. Esses cinco salmos de aleluia são extraordinariamentefortes.[...][Issosignifica]quenãoimportaoquantosoframos,nãoimportamnossasdúvidas,nãoimportaquãobravosfiquemos,nãoimportaquantasvezestenhamos perguntado, desesperados: “Até quando?”, a oração enfim evoluiparaolouvor.Tudoencontraseucaminhoatéosdegrausdeentradadolouvor.Isso não significa dizer que outras orações são inferiores ao louvor, massomentequetodaoraçãoemquenosempenhamosbastantetransforma-seemlouvor. [...] Não tenha pressa. Pode levar anos, décadas até, antes quedeterminadasoraçõescheguemàsaleluias,comonossalmos146—150.Nemtoda oração termina em louvor. Na verdade, a maioria, se considerarmos o

saltério um guia fiel, não é.Mas a oração sempre se inclina na direção dolouvoreacabachegandolá.Assim[...]nossavidasecompletaembondade.Terraecéuseencontramem

uma conjunção extraordinária. Címbalos retumbantes anunciam a glória.Bênção.Amém.Aleluia.16

C.S.LewisafirmaquefaltadelouvoraDeuséfaltaderealidade,equelouvá-

lonosajudaaentrarnomundorealeadesfrutardeDeusmaisplenamente.Issonosdáumavisãodofuturoconcretaeentusiasmada.Eleargumentaque,quantomaior a perfeição comque pudermos louvar umobjeto,maior nosso prazer, e“quantomaisdigno[delouvor]foroobjeto,maisintensoessedeleiteserá”.Oqueaconteceráquando,nocéu,formoscapazesdeamarenosdeleitarnoDeustriúno, omaiorde todosos seres, e “simultaneamente, a cadamomento, dar aesse deleite perfeita expressão”? Como isso será? A resposta é que “a almaestaráemsupremabeatitude”.Portanto,paraentenderocéueofuturoparaoscrentes:Devemos supor que estamos completamente apaixonados por Deus —inebriados,mergulhados,dissolvidosnaqueledeleiteque,longedepermanecerconfinado em nosso interior como algo incomunicável, e por conseguintequaseintolerável,fluidenósincessantemente,numaexpressãofácileperfeita;nossaalegrianãomaisécapazdeseseparardolouvoremqueselibertaeseexprimetantoquantoobrilhointensoqueumespelhorecebenãoseseparadoesplendorqueelereflete.Ocatecismoescocêsdiz:“ofimprincipaldohomemé glorificar a Deus e dele desfrutar para sempre”.Mas [no céu] saberemosentãoqueessasduassãoamesmacoisa.Desfrutarplenamenteéglorificar.Aonosordenarqueoglorifiquemos,Deusnosconvidaadesfrutarmosdele.17

Essa é uma visão impressionante do nosso futuro e nos capacita a quase

experimentar a visão beatífica. Soa grandiosa, no entanto é amais prática dasverdades.

VocêcrêemumDeusamoroso.Então,eisquesurgeumacríticaourejeição(digamos,umrelacionamentoserompe),oualgumfracassoquefuncionacomoumgolpe em sua reputação em determinada área.Qualquer pessoa namesmasituação se sentiria abatida e deprimida. Mas há uma diferença entre ficardesencorajado e ficar consumido, entre cair em desânimo e não ser capaz deoperar normalmente. Se o amor de Deus for uma abstração, não serve deconsolaçãoalguma.Masseforumarealidadesentidaeexperimentadapormeiodaoração,entãoeleserásuatábuadesalvação.Vocêjánotouque,quandoexecutaumatarefa,seouvirvozesouumamúsica,

ououtros sons, consegue sedesligar?Noentanto, se estiver tentandoexecutarumatarefae,aomesmotempo,veralgumacoisaemvídeo,équaseimpossívelsedesligardaimagem.Assimageaoração—pegaalgoemquevocêacreditaacercadeDeus,que sejadesconhecidoedesconectadodecomovocê leva suavida,eotornavívido.OencontrocomDeusnaoraçãopegaoamordeDeus,agrandezadeDeus,opoderdeDeus,asabedoriadeDeus—coisasqueamaioriadenóssóexperimentaemáudio—epõeemvídeo.Aoraçãonosmergulhanaplenitudedequemeleé,e seuamorse tornamais realdoquea rejeiçãoouodesapontamento que estamos vivendo. Podemos então lidar com nossosproblemaseergueracabeçaoutravez.Oquepoderiasermaispráticodoqueisso?

1Trueman,p.9-98.2Ibidem,p.90-1.3Ibidem,p.92.4Ibidem,p.95.5Ibidem,p.94.6JamesK.A.Smith,Desiringthekingdom:worship,worldview,andcultural

formation(GrandRapids:Baker,209),p.46-7.7Citado emDavidK. Naugle,Reordered love, reordered lives: learning the

deepmeaningofhappiness(GrandRapids:Eerdmans,2008),p.xi.8“Ora,umhomemdevida justae santaéaquelequechegaaumaavaliação

imparcialdascoisasemantémseusafetos tambémdebaixodecontroleestrito,de modo que nem ama o que não deveria amar, nem deixa de amar o quedeveria,nemamaigualmenteaquiloquedeveriaseramadomaisoumenos,nemamamenosoumaisoquedeveriaseramadoigualmente.Nenhumpecadordeveseramadocomopecador;etodohomemdeveseramadocomohomemporcausadeDeus;masDeusdeve ser amadopor simesmo.E seDeusdeve ser amadomaisdoquequalquerhomem,cadahomemdeveriaamaraDeusmaisdoqueasipróprio”(Agostinho,OnChristiandoctrine,vol.1,p.27-8).CitadonoartigodeDavidK.Nauglede1993,“St.Augustine’sconceptofdisorderedloveanditscontemporary application”, disponível em:http://www3.dbu.edu/naugle/pdf/disordered_love.pdf.

9Ibidem.10Smith,Desiringthekingdom,p.51.11SãoPaulo:Ed.dasAméricas,1964.12C. S. Lewis, Letters toMalcolm: chiefly on prayer (NewYork: Harcourt,

Brace, 1963), p. 90 [edição em português: Oração: cartas a Malcolm (SãoPaulo:Vida,2009)].

13Ibidem, p. 91. Outro autor que usou os prazeres domundo natural para aadoraçãoéJonathanEdwards.Vejaseu“Imagesofdivinethings”,in:WallaceE.Anderson, org., Typological writings: the works of Jonathan Edwards (NewHaven:YaleUniversityPress,1993),vol.11.

14VejaC.FrederickBarbee;PaulF.M.Zahl,ThecollectsofThomasCranmer(GrandRapids:Eerdmans,1999),p.ix-xii.

15VejaMatthewHenry,Methodforprayer:freedominthefaceofGod,ediçãodeJ.LigonDuncan(ChristianHeritage,1994)eAwaytopray,ediçãoerevisãodeO.PalmerRobertson(Carlisle:BannerofTruth,2010).

16Peterson,AnsweringGod,p.128.

17Ibidem,p.96-7.

TREZE

Intimidade:encontrandosuagraça

Perdãogratuito;preçoinfinito

Deus perdoa. Para pessoas contemporâneas, que costumam ter uma visãounidimensional de Deus como um espírito de amor, isso não parece tãoextraordinário assim. Para os profetas e autores das Escrituras hebraicas,contudo, o perdão divino era uma maravilha impressionante, em que malconseguiamacreditar.1Deusé“umDeusdeperdão”(Ne9.17),“misericordiosoe perdoador” (Dn 9.9). Todavia, essa misericórdia divina não deve ser vistacomoalgo“líquidoecerto”.LemosemÊxodo34.6,7queDeus“mantémoamorpormilhareseperdoaamaldade,arebeliãoeopecado.Contudo,elenãodeixaoculpadoimpune”.Asduasdeclarações—umaemseguidadaoutra—sãosurpreendentespara

osleitorescontemporâneos.Deusperdoa,mastambémétãosantoquenãopodedeixarainjustiçaeamaldadepassaremsempunição.Asduasideiassãomuitoclaras em si mesmas, mas como se harmonizam não é explicado nessaspassagens.Nomínimo,otextodeÊxodo34.6,7revelaqueoperdãodeDeusnãoé nem simples, nem previsível. Por issoDavi afirma emSalmos 130.3,4: “Semantivessesumregistrodospecados,óSENHOR,quemresistiria?Mascontigoháperdão,portanto,éstemido”.Davinãodiz:“Claroqueperdoas,Senhor—essaésuafunção”.EletremedeperplexidadeanteofatodequeoDeusdoUniverso,aquemdevemostudo,perdoaarebeliãoeopecado.OprofetaMiqueiasdizissodemodoaindamaismajestoso:

QueméDeuscomotu,queperdoasopecadoeesquecesatransgressão?[...]Nãopermaneces iradoparasempre,mas tedeleitasemmostrarmisericórdia.[...] Pisarás nossos pecados debaixo dos teus pés e lançarás todas as nossasiniquidadesnasprofundezasdosmares(Mq7.18,19).OenigmadeÊxodo34.6,7énaverdadeatensãoqueconduzoenredodetodo

oAntigoTestamento.Deusse relacionacompessoaspormeiodeumaaliança— um relacionamento solene e de compromisso, mas altamente pessoal eíntimo.Osdoisladosjuramfidelidadeumaooutro.“Sereismeupovo,eeusereivossoDeus”(Êx6.7).Adespeitodasmuitascerimôniasedosvotosdealiança,ahistória registrada na Bíblia traz um relato de indivíduos e comunidades quequebram o tempo todo suas promessas e obrigações para comDeus. Seria deesperar que isso significasse a anulação e a invalidação da aliança divina. Ainfidelidade do povo deveria desqualificá-lo para receber a bênção de Deus.SeriadeesperarqueDeussimplesmenteoseliminassedafacedaterra.Contudo,existem inúmerasdeclaraçõespor todooAntigoTestamentodeque,dealgummodo,Deusaindaassimpermaneceráfiel,edequeelenosperdoaráerestaurará(Jr 31.31-34; Ez 36.24-29). Pelas páginas da Bíblia hebraica deparamos comessaquestão:nossorelacionamentodealiançacomDeusécondicional,baseadoemnossaobediênciaaele,ouincondicional,baseadoemseuamorpornós?Nofim, sua santidade e justiça serão mais fundamentais do que seu amor emisericórdia, ou será o contrário? Ele nos punirá ou perdoará? A aparentecontradição de Êxodo 34.6,7 expressa esse mistério repleto de suspense, essagrandetensão.Comoelaserásolucionada?OsautoresdoNovoTestamentoapontamarespostaparatodososenigmasdo

Antigo.“Deusapresentou[Jesus]comoumsacrifíciopropiciatório,pormeiododerramamento do seu sangue. [...] Ele assim o fez [...] para ser justo ejustificador dos que têm fé em Jesus” (Rm 3.25,26). A aliança com Deus écondicional porque Deus é justo, ou incondicional porque Deus é nossojustificador?EmrazãodagrandeobradesalvaçãodeJesusCristo,arespostaé:as duas coisas. Quando Jesus morreu na cruz, tomou nossa maldição pela

infidelidade,demodoquepudéssemosreceberabênçãoqueelefezpormerecerpormeiode sua fidelidadeperfeita (Gl3.10-14).Ele cumpriuas condiçõesdaaliançaeporissopodemosdesfrutardoamorincondicionaldeDeus.Porcausada cruz, Deus pode tanto ser justo em relação ao pecado quanto, ao mesmotempo,misericordiosamentejustificadoremrelaçãoaospecadores.Nãocausasurpresaofatodeque,emtodooNovoTestamento,Jesussejavisto

comoa fontedomais improváveldosdons,odoperdãodivino.Seusangueéderramado pelo perdão (Mt 26.28); ele ascendeu à mão direita de Deus paraconceder perdão (At 5.31); e a mensagem com que enviou seus discípulosmundo afora é para “pregar o arrependimento e o perdão dos pecados” (Lc24.47). Paulo conclui: “Nele temos a redenção por seu sangue, o perdão dospecados”(Ef1.7).Somente emcontraste comopanode fundodoAntigoTestamentoe como

grandemistériodecomoDeuspôdecumprirsuaaliançaconosco,conseguimosenxergaraliberdadedoperdãoeseucustoespantoso.Issosignificaquenenhumpecado pode nos condenar agora graças ao sacrifício propiciatório de Cristo.Também significa que o pecado é tão sério e hediondo para Deus que Jesusprecisoumorrer.DevemosreconheceressesdoisaspectosdagraçadeDeusoucairemos em um de dois erros fatais: ou acharemos que o perdão é algo queDeusdáfacilmente,ouduvidaremosdarealidadeedaperfeiçãodoperdãoqueelenosdá.Ambososerrossãoespiritualmentemortais.Perderdevistaopreçodoperdão

resulta em uma confissão superficial, passageira, que não leva a umatransformação real do coração. Não há mudança de vida. Perder de vista agratuidade do perdão, no entanto, leva à culpa, à vergonha e ao autodesprezoconstantes.Nãohánadaquenosaliviedisso.Somentequandoenxergamostantoa gratuidade quanto o custo do perdão, temos alívio da culpa, bem comolibertaçãodopoderdopecadoemnossavida.

Lembrandodagratuidadedoperdão

Jesuspagoupornossopecado.Acondenaçãodopecadonãopodemais recairsobrenós,quenosarrependemosecremosnele(Rm8.1).Senosesquecermosdisso,transformaremosaconfissãoemumapenitênciafatigante,deautopunição,emvezdeconsiderá-lacomoarrependimentoconformeoevangelho.MartinhoLuterodesafiouasautoridadesdaigrejaadebateremsuas95teses,

que, em 1517, ele afixou na porta da abadia do Castelo de Wittenberg, naAlemanha.Aprimeiraera“nossoSenhoremestreJesusCristo [...]querqueavidainteiradoscrentessejadearrependimento”.2Àprimeiravista, issopareceafirmar que os cristãos nunca fazem nenhum progresso, que estão semprepedindoperdãoporfalhasrepetidas.Naverdade,eleestavadizendoooposto,ouseja, que o arrependimento é amaneira pela qual fazemos progresso na vidacristã.EleéachaveparacrescermosprofundaefirmementenocaráterdeJesus.Na visão de Lutero, o evangelho da justificação gratuita — o fato de que

somossalvoseaceitospormeiodeCristo,semqueselevememcontaquaisquerdas nossas boas obras ou esforços — muda a natureza do arrependimento.Quandoesquecemosagratuidadedagraça,opropósitodonossoarrependimentosetornaoapaziguamentodeDeus.QuandonãoestamoscertosdequeDeusnosamaemCristo,entãoaconfissãoeoarrependimentosetornamummododenosmantermosbemcomDeus,epara issousamosexpressõesdedornaesperançadeimpressioná-lopornossasinceridadeelevá-loaterpiedadedenós.Quandosetransformanisso,oarrependimentoéhipócritaeamargoatéofim.Conduziráapenasaumasujeiçãoforçadadavontade,enãoaumatransformaçãodevisão,motivaçãoecoração.Lutero acusava esse tipo de arrependimento legalista de ser farisaico por se

tratar,naessência,deumatentativadeexpiarnossopecado.Podesetornarumaespécie de autoflagelação, de autocrucificação até, pormeio da qual tentamosconvencer a Deus (e a nós mesmos) de que estamos tão verdadeiramenteinfelizesearrependidosquemerecemosserperdoados.Issonãoéconfissãoemnome de Jesus, mas em nosso próprio nome. Tentamos fazer por merecer amisericórdiadeDeusatravésdosofrimentodaprópriaconsciência.Todavia,pormeiodoevangelhoaprendemosqueJesussofreupornossopecado.Nãotemos

de nos impor sofrimento para merecer o perdão de Deus. SimplesmenterecebemosoperdãoconquistadoporCristo.OapóstoloJoãoescrevequeseconfessarmosnossospecados,Deusé“fiele

justoparanosperdoarospecados”(1Jo1.9).Elenãodizqueseconfessarmosnossos pecados,Deus nos perdoa porque ele émisericordioso (embora, claro,issotambémsejaverdade).ABíbliaafirmaqueeleperdoaquandoconfessamosporque é justo. Em outras palavras, seria injusto da parte de Deus negar-nosperdãoporqueJesusfezpormerecernossaaceitação,comoJoãoprossegue,pararessaltarlogoemseguida:“Sealguémpecar,temosumadvogadojuntoaoPai—JesusCristo, o justo.Ele éo sacrifíciopropiciatóriopornossospecados” (1Jo2.1,2a). Todos aqueles que estão emCristo devem ser e serão perdoados. Porquê?Eletomousobresiocastigoepagouadívidaportodososnossospecados.SeriainjustodapartedeDeus—edeslealemrelaçãoàsuaaliançaconosco—receber dois pagamentos pela mesma dívida. Seria, portanto, injusto da partedele não nos perdoar. Essa profunda certeza e segurança transformam oarrependimentodemeiodeexpiaçãopelopecadoemmeiodehonraraDeuserealinharnossavidacomele.Oarrependimentolegalistaédestrutivo.Paulofalasobreoarrependimentodo

evangelho,“queconduzàsalvaçãoenãotraznenhumremorso”,emcomparaçãoà“tristezadomundo[que]trazamorte”(2Co7.10).Nareligiãomoralista,nossaúnicaesperançaélevarumavidaboaosuficienteparareivindicarabênçãodeDeus. Dentro dessa visão, toda ocasião de arrependimento é traumática eartificial—porquesóserve(segundonósachamos)parareconquistarofavordeDeuspormeiodanossamiséria.Semofirmeentendimentodanossajustificaçãogratuita,admitiremosatransgressãoapenasdebaixodegrandecoação,somentecomo último recurso. Nós nos concentraremos no comportamento em si epermaneceremos cegos para as atitudes e o egoísmo por trás dele. Tambémassumiremos omínimode culpa possível, enumerando todas as circunstânciasatenuantesparanósmesmoseparaosoutros.Quandotentamosnosarrependerdeverdadedentrodessaconcepçãolegalista—jáquenuncapodemossabercomcertezase temossidomiseráveisosuficienteparamerecero favordeDeus—

jamaisconseguimosexperimentaralibertaçãoeoalíviodedescansarnoperdãodeJesus.Lembro-medeumaocasiãoemquemeencontreicomumhomemquevivia

emprofundaafliçãoporumcasoextraconjugalocorridoanosantes.Mantivera-oem segredo da mulher, que depois ficara firme ao seu lado durante umaenfermidade muito grave que ele enfrentara, bem como em alguns revesesprofissionais. Ela agora estava morta. Ele não achava que Deus o perdoara.Perguntei-lhe por que não.Embora vivesse esmagado pela culpa, explicou-meque não acreditava ter se arrependido com humilhação suficiente para serperdoado. Propus que pedisse perdão não só pelo caso extraconjugal, mastambémpornãoterumcoraçãocompletamentecontrito.Eleolhou-mesurpresoeperguntouseDeusseriacapazdeconcedertalcoisa.Ora,respondi,Jesusteriamorrido só por casos extraconjugais e nãopelos corações endurecidos? Isso olevou a um divisor de águas. Quando ele entendeu que Jesus pagou o preçotambém pelo pecado do seu coração inflexível sentiu o coração começar aenternecer.UmaconsciênciamaisprofundadagratuidadedagraçadeJesus—umagraçanãocondicionadaporsentimentosdepenitênciaquefossemperfeitos—trouxeaessehomemlibertaçãoealívioe,pormaisirônicoquepareça,umahumildademaisprofundaecheiadegratidãodiantedeDeus.Tudo isso se encontra na primeira tese de Wittenberg de Martinho Lutero.

Saberquesomosamadoseaceitosapesardosnossospecadostornamuitomaisfácil admitir nossas falhas e delitos. Dá-nos a profunda certeza espiritual epsicológica necessária para reconhecermos sem demora quando erramos. Issoabrandaquasetodososconflitos,umavezqueaceitaroerrodeixadesercomoarrancar um dente. Isso simplifica muitos problemas pessoais, pois aoenveredarmosporumcursodeaçãoerrado,somosmaisprontamentecapazesdeenxergá-loederetroceder.Acimadetudo,podemosrecorreraDeusdemaneiramais imediatae frequentepornossospecados,confessá-los, lembrarmo-nosdamorte sacrificial de Jesus e revivermos em pequenas doses a alegria da nossasalvação. Embora sempre haja certa amargura e dor no arrependimento, acompreensãomaisprofundadopecado levaàmaiorcertezadagraçadeJesus.

Quanto mais sabemos que somos perdoados, mais nos arrependemos; quantomaisrápidocrescemosemudamos,maisprofundaénossahumildadeealegria.

Lembrandodopreçodoperdão

É errado, então, conceber a confissão como um processo árduo deautopurificação. A gratuidade do nosso perdão em Cristo corrige esse erro.Contudo, igualmente errado é encarar o perdão com leviandade e esquecer opreçomedianteoqualelefoiobtido.Certavez,ouviumsermãodeD.MartynLloyd-JonesemqueeledissequeperdoaropecadofoiomaiorproblemaqueoDeus justo e santo já enfrentou.Mas logoemseguida ele cercouadeclaraçãodas precauções necessárias. Claro que Deus é todo-poderoso e soberano.Entretanto,continuouele, todosospecadossãocomodívidasqueprecisamsersaldadas.Perdoarumadívida significaquevocê absorveocustoearcacomopagamento. Nossa grande dívida e pecado contra Deus exigiu um pagamentoinfinito,eaúnicamaneirapelaqualDeuspoderianosperdoareraarcandoelemesmocomocusto.Paraisso,oDeusPaienviouoDeusFilhoparatomarsobresi nosso castigo, o qual, por sua vez, com o Pai enviou o Deus Espírito aosnossos corações, tantopara nosmostrar quantopara nos ajudar a receber esseperdãodealtíssimopreço.Porqueissoéimportante?Sevocêesqueceopreçodopecado,suasorações

deconfissãoearrependimentoserãosuperficiaisebanais.NãohonrarãoaDeusnemmudarãosuavida.O teólogobritânicoJohnR.W.Stott,no livroConfessyour sins [Confesse seus pecados], reconhece que muitos cristãos adotam arotinadeconfessarosprópriospecados.Noentanto,amaioriadaspessoasnãoachaque suas confissões as transformam.Emgeral, elas sempre retornamaosmesmospadrõesnocivosdeatitudeecomportamento.Stott argumentou que confessar nossos pecados implica abandonar esses

pecados.Confessareabandonarnãodevemsercoisasdissociadas;noentanto,amaioria das pessoas confessa— admite que o que fez era errado— sem aomesmo tempo rejeitar o pecado e voltar o coração contra ele de modo queenfraqueça sua capacidade de tornar a cometê-lo.3 Precisamos nos sentir

internamente entristecidos e chocados o suficiente por um pecado—mesmocercandotodooprocessocomoconhecimentodanossaaceitaçãoemCristo—afimdequeelepercaopodersobrenós.4

Quando pastoreei em uma pequena cidade do sul dos Estados Unidos, nadécadade1970,aconselheiumcasaldaminhaigreja.Omaridotinhaproblemascomuma raivadescontroladaecomfrequênciadirigiapalavrasmuitocruéisàesposa.Quandocomeçamosnossoencontro,eleencaroua situaçãocommuitadisplicência. Entre seu grupo de amigos e em sua própria subcultura, muitoshomenserammaisabusivosdoqueele.Afinal,justificavaparasimesmo,nuncabatera na esposa, nematirava ou quebrava coisas durante os acessos de raiva.Procurei fazê-lo enxergar a gravidade da situação, mas ele não se deixavaconvencer.Por fim, a esposa saiude casa.Ohomemmeprocurou empânico,agora disposto ansiosamente a aceitar todos os meus conselhos sobre comomudar e se reconciliar com a mulher. Insistiu em que estava pronto para searrepender.Seguiumeusconselhoseelavoltouparacasa.Poucosmesesdepois,noentanto,voltouausarsualinguagemabusiva,eelafoiemboradevez.Ficouclaro que, ainda que infeliz com as consequências do seu comportamento, emmomentoalgumeleenxergouoquehaviadeerradocomocomportamentoemsi. Por isso, nunca se arrependeu de verdade do pecado que cometia contra aesposa.EssaéumademonstraçãoclássicadoprincípiodeStott.Épossívelmeramente

concordarquealgoépecadosemadotarumanovaperspectivaarespeitodissonemsentirumanovaaversãointerioraessepecadoquelhedêpodereliberdadeparamudar.Emoutraspalavras,existeumtipodearrependimentofalsoquenaverdadenãopassadeautocomiseração.Vocêpodeadmitirseupecado,masnãoseentristecede fatopelopecadoemsi.Fica tristeapenaspelasconsequênciasdolorosas em sua vida. Você quer que a dor pare, então põe fim aocomportamento.Noentanto,talveznãotenhahavidonenhumamudançainteriorreal em relação a crenças e expectativas falsas, a desejos desordenados e aautopercepçõesequivocadasquecausaramopecado.Porexemplo,omaridoquecitei não enfrentou sua arrogância inapropriada, suas inseguranças, nem aquestão da deferência e do respeito exagerados que exigia das mulheres. Seu

“arrependimento” era absolutamente egoísta, preocupando-se apenas com aprópriadorenãocomosofrimentoqueestavacausandoàesposaeaDeus.Sósentiamuitoporsimesmo,nãopelopecado.Por essa razão, Stott argumenta que o arrependimento verdadeiro deve ter

esses dois componentes — reconhecimento e rejeição. Começamosreconhecendo o pecado pelo que ele é, mas então, “em segundo lugar, nós oabandonamos,rejeitando-oerepudiando-o.[...][Issosignifica]adotaraatitudecerta tantopara comDeusquantoem relaçãoaopecadoemsi”.5Paradarumexemplobíblico,Stottsevoltaparaomaiordetodosossalmospenitenciais,emqueDavi não apenas reconhece o próprio pecado como ainda diz: “Contra ti,contra ti somente,pequei” (Sl51.4).Elenãoestavanegandoquehavia erradocontrasereshumanos—claroqueerrara.Noentanto,estavalevandoasimesmoaenxergarquequandopisavanaspessoas,ofendiaaoDeusqueascriara.EsseprincípioestábemvisívelemLevítico6.2,quandootextodiz:“Sealguémpecare for infiel ao SENHOR enganando seu próximo [...]”. Davi estava levando oprópriocoraçãoaenxergarque“todosospecadossãoprimeiroeacimadetudoumdesafioàsleissagradasdeDeus”.6

Outroestudodecasoparailustraressesdoiscomponentesdoarrependimentoé o salmo 32. Primeiro, há a simples honestidade. “Reconheci meu pecadodiantede ti” (v.5a).Davidizque“nãoencobriminha iniquidade” (v.5b).Háváriasmaneirasdeencobrirnossopecado.Podemosjustificá-loouminimizá-lopondoaculpanascircunstânciaseemoutraspessoas.Todavia,oarrependimentorealprimeiroreconheceopecadocomopecadoeassumetotalresponsabilidadeporele.Averdadeiraconfissãoeoverdadeiroarrependimentocomeçamquandosepõefimaoprocessodecolocaraculpanooutro.MasDavinãoparaporaqui.Dizainda:“Nãosejacomoocavaloouamula,

quenãotêmentendimentoalgum,antesprecisamsercontroladosporcabrestoefreio,ounãoseaproximarão”(v.9).Amulanãoamaninguémosuficienteparachegar perto só porque a pessoa quer. Tem de ser controlada por meio derecompensas e punições. Só se aproximará se você conseguir fazer com quevalha a pena para ela. Só chegará perto por interesse próprio, não pelo seuinteresse. Davi não se arrepende como a mula — não o faz só porque as

circunstânciasoobrigaram.Arrepende-seporentenderqueopecadoestáàvistadeDeuse,poramor,desejaagradarseuSenhor.Assimcomooarrependimentoverdadeirosócomeçaquandoterminaoprocessodecolocaraculpanooutro,eletambém só começa quando a autopiedade termina, e nós começamos a nosafastardonossopecadoporamoraDeusenãopormerointeressepróprio.Davi não rasteja como um adulador diante de um tirano; ele afirma que “o

amor inesgotáveldoSENHORcercaaquelequeneleconfia”(v.10).Trata-sedeuma referência não ao amor de Deus em geral, mas a seu hesed, seu amorprometido, de aliança, leal. Os cristãos, claro, contam com uma fonte muitomaiordegrataalegriadoquetinhaDavi.EleconheciaapromessageraldeDeusdeserfielanós(Gn15).Masnósconhecemosopreçoeaprofundidadeinfinitadafidelidadedivina,porverqueJesusmorreunacruzemnossofavor.Portanto,Davinãosóreconheceseusatospecaminosos,mastambémdescobre

asatitudesdocoraçãoquelevamàstransgressõeseasoprime,porassimdizer,com pensamentos sobre a grandiosidade e o amor leal de Deus, até que osmotivos para a obstinação e o egoísmo comecem a enfraquecer e a ruir. Elereconheceopecadocomamenteeorejeitacomocoração.

JohnOweneamortificaçãodopecado

Nadamaisnaturaldoqueperguntar:“Masesse‘rejeitaropecado’nãoémaisoumenos como chafurdar na culpa?”. Não devemos nos ver como filhosgratuitamente justificadoseamadosdafamíliadeDeus?Sim,masser filhodeDeusnãoéapenasdescansarseguroemseuamor—étambémquereragradaranosso Pai e a ele nos assemelharmos. Isso significa que, quando pecarmos,aproveitaremos cada oportunidade para buscar o perdão de Deus por tê-lodesagradado, e tambémassumiremos as dores de procurar ter umcoraçãoquenãoodesagrade tãoprontamenteno futuro.Nãosó reconheceremosopecado,mastambémorejeitaremos,comodizStott.Contudo,comofaremosisso?UmpequenoclássicodaautoriadeJohnOwensobreesseassuntorecebeuum

títulosinistro:Themortificationofsin.7Mortificaçãoéumapalavraantigaquesignifica matar algo. Significa fragilizar o pecado no plano motivacional ao

meditarsobreasantidadeeoamordeDeusemCristo,esobreoutrasdoutrinasbíblicas, e então enxergar nosso pecado específico à luz dessas coisas. Oprocessofazopecadoparecernadaatraenteparanós.Sobessa luzverdadeira,passamos a ver sua insensatez emalignidade e nos tornamosmais capazes deresistiraelenofuturo.Isso só pode acontecer, escreve Owen, se nosso propósito for mais do que

apenas enxergar o perigo do pecado — isto é, as suas consequências — eestivermos dispostos a encontrar maneiras de convencer nosso coração dagravidade dopecado—de comoeledesonra e entristece aquele a quem tudodevemos.Sepensarmossomentenoperigodopecadoeentãooconfessarmos,descobriremos que nosso arrependimento é voltado para nós mesmos eacabaremoscometendoasmesmasfalhasdecaráterereproduzindoosmesmospadrõesdetransgressãovezessemconta.8Emvezdisso,Owennosaconselhaaidentificarnossospadrõeshabituaisdepecadoeaoprimi-loscompensamentos“espiritualmentevivos” sobreDeuse a salvação,que funcionamcomovenenoparaoshábitospecaminosos.9Quepensamentossãoesses?Owenapresentaumagamanotáveldedoutrinasparaaplicarmosanósmesmos

com o objetivo de enfraquecer o poder do pecado sobre nós. Exorta-nos apensarmosnanossaatualintimidadecomoPaieoEspíritoSanto,najustiçadaLei,noaltopreçodosacrifíciodeCristo,naglóriaenamajestadetranscendentedeDeus e na paciência doSenhor para conosco.10 Elemostra como podemosmeditaremcadaumadessasverdadesbíblicasdemodoavermosdiminuiremnósos temores, o egoísmo,oorgulhoe aobstinação, comoo fungoeomofomorremsobosraiosquentesdosol.Nãonosofereceumtemplatedeprogramaparaserusadoportodos.Emvezdisso,chama-nosaaprendermososcaminhosdonossocoraçãoeaelaborarmos solilóquiosespirituais—modosde falaroumesmopregar ao próprio coração empregando verdades bíblicas demaneira aenfraqueceremespecialasnossasfalsascrençaseatitudeserradas.Owennosdáalguns discursos impressionantes— nitidamente extraídos da própria vida deoração—mostrandodeformavívidacomoa“mortificação”defatoacontecenocoração.11Seusmodelosdesolilóquiosnuncadizem“Precisopararcomissoouserei punido”, o que só alimenta o egocentrismo do pecado, ainda que você

pensequeestásearrependendo.Antes,dizem,porexemplo,“ComopossotratarJesusassim—aquelequemorreuafimdequeeununcafossepunido?Éassimquetratoaquelequemetrouxeaesseestadodeseramadoincondicionalmente?Éassimqueotratodepoisdetudooqueelefez?Fracassareiemperdoarquandoelemorreuparameperdoar?Ficareiansiosoporperderdinheiroquandoeleseentregou para ser minha segurança e riqueza verdadeiras? Alimentarei meuorgulhoquandoeleseesvazioudaprópriaglóriaparamesalvar?”.EmboraOwenmostreserpossívelenfraqueceropecadomeditandoemgrande

variedade de doutrinas bíblicas, ele privilegia as verdades no coração doevangelho. Diz que os esforços para deter o pecado provenientes das“condenações da lei” só conseguem deter por algum tempo “determinadospecados”,masaquelesesforçosquebuscamenfraqueceropecado“peloespíritodo evangelho” transformamapessoapor inteiro—mente, vontade e afetos.12

Owenestáafirmandoaquiqueamortificaçãoquebrotaapenasdasconvicçõesda lei — isto é, da crença de que podemos nos salvar por meio de esforçopróprio—nãoconseguemudardeverdadeumcoraçãopecador.Elasóécapazdereprimirocomportamentoporalgumtempomediantepressãoexterna.Sãoasverdades do evangelho— o amor de Jesus que o leva amorrer por nós, seucompromisso incondicionalconosco, seusacrifíciodealtocusto,nossaadoçãonafamíliadeDeus—quetornamopecadoemsiodiosoaosnossosolhos.13

Esse modo centrado em Deus de confessar e rejeitar o pecado é uminstrumento poderoso de transformação. O medo das consequências muda ocomportamento por meio de coerção externa — os impulsos internospermanecem.Contudo,odesejodeagradarehonraraquelequenossalvouequeédignodetodolouvor—issosimnostransformadedentroparafora.OautorpuritanoRichardSibbes,emseuclássicoThebruisedreed [Acanaferida],dizqueoarrependimentonãoé“opequenogestodeabaixaracabeça[...]massimaatitude de levar o coração a experimentar tamanha dor a ponto de tornar o[próprio]pecadomaisodiosoparanósdoqueocastigo”.14

Autoexameearrependimento

Aconfissãonãodeveserfeitasimplesmenteemrespostaaumpecadodoqualvocê já está ciente e convicto. Nossa vida de oração é o momento em quedevemosexaminarnossavidaeencontrarospecadosaosquais,nãofosseesseexame, permaneceríamos insensíveis ou estaríamos ocupados demais parareconhecer. Devemos ter períodos regulares de autoexame e neles empregardiretrizes provenientes de descrições bíblicas do que um cristão deve ser.MartinhoLutero,comovimos,aconselhavaaadoçãodemeditaçõesregularesoumesmo diárias sobre os Dez Mandamentos. Seu método de meditaçãorecomendavaqueapessoaponderasseacercadamaneirapelaqualviolavacadamandamentocomatosouatitudesdocoração.Essetipodeautoexamerequerumbomdomíniodoquecadamandamentoproíbeeordena.MuitosdoscatecismosdaReforma, como oCatecismo deHeidelberg, oCatecismoMaior e oBreveCatecismodeWestminster,oferecemlistaslongaseespecíficasqueoajudarãoaconfessar seus pecados. Outro guia para o autoexame pode ser o fruto doEspíritolistadoemGálatas5.22-24.Issorequerquevocêestudeecompreendaquaissãoosfrutosespirituais,sejaoamor,aalegria,apaciência,aamabilidade,odomíniopróprio,sejaalgumoutro.Vocêdeveterumaboaideiadoaspectodecadafrutonavida,bemcomodaausênciadecadaumdeles.Umavezdepossedopróprioesboçodetudoissopormeiodoestudo,vocêpodeaplicarométododemeditaçãodeLuteroacadafrutoeassimfazerumbomautoexameespiritual.No século 18, por exemplo, o evangelista britânico George Whitefield

escreveu certa vez: “Deus, dá-me uma humildade profunda, um zelo bem-direcionado, um amor ardente e um olhar determinado, e deixe então quehomens ou demônios deem o pior de si!”.15 Essas quatro característicascompõem um bom resumo da vida cristã essencial. Veja como poderíamostransformá-lasemumautoexamediário.Humildade profunda. Exame: Tenho menosprezado alguém? Tenho meofendido demais com críticas? Tenho me sentido esnobado e ignorado?ConsideroalivregraçadeJesusatésentir:(a)odesdémdiminuindo,umavezquetambémsoupecador;(b)diminuindoadordacrítica,vistoqueeunãodeveriavalorizaraaprovaçãohumanamaisdoqueoamordeDeus.À

luz de sua graça, posso abrir mão da necessidade de manter minha boaimagem—éumfardopesadodemaiseagoradesnecessário.Reflitosobreagraçaatéexperimentaralegriaserenaeplenadegratidão.

Umzelobem-direcionado.Exame:Tenhoevitadopessoasoutarefasqueseique deveria enfrentar? Tenho me sentido ansioso e preocupado? Tenhodeixadodeagircomprudênciaousidoprecipitadoeimpulsivo?ConsideroalivregraçadeJesusatéquenãohaja:(a)fugacovardedasdificuldades,uma vez que Jesus enfrentou o mal por mim; (b) nem comportamentoansioso ou precipitado, uma vez que amorte de Jesus prova queDeus seimporta comigo e cuidará de mim. É preciso orgulho para ser ansioso, ereconheçoquenãosousábioosuficienteparasabercomominhavidadevese desenrolar. Reflito sobre a graça até experimentar uma contemplaçãoserenaeumaousadiaestratégica.

Um amor ardente. Exame: Tenho falado ou pensado de forma grosseiraacerca de alguém? Justifico-me caricaturando alguma pessoa em minhamente? Tenho estado impaciente e irritado? Tenho andado absorto,indiferente e desatento às pessoas?Considero a livre graça de Jesusatéquenãohaja: (a) nenhuma frieza oudescortesia, enquanto pensono amorsacrificialdeCristopormim;(b)nemimpaciênciaalguma,enquantopensoem sua paciência comigo; (c) tampouco haja qualquer indiferença quandopensoemcomoDeuséinfinitamenteatenciosoparacomigo.Reflitosobreagraçaatéconseguirsentircarinhoeafeição.

Umolharvoltadoparaumasódireção.Exame:FaçooquefaçoparaaglóriadeDeuseparaobemdaspessoasouimpulsionadoportemores,necessidadedeaprovação, amoraoconforto e à tranquilidade,necessidadedeestarnocontrole, fome de aclamação e poder ou medo das pessoas? (Lc 12.4,5.)Tenho olhado para alguém com inveja? Estou cedendo nem que seja aosprimeirosimpulsosdelascíviaouglutonaria?Gastomeutempocomcoisasurgentes em vez de coisas importantes, por causa desses desejosdescontrolados?ConsiderocomoalivregraçadeJesusmeforneceaquiloqueestouprocurandonessasoutrascoisas.

Talvezapartedoarrependimentomaiscrucialecommaiorcapacidadedenos

vivificarseencontrenousodaalegriaedosbenefíciosdoevangelhotantoparatrazerconvicçãoquantoparatrazersegurançaaomesmotempo.Asoraçõesdearrependimentopeloorgulho,pelafriezaepelafaltadeamor,pelaansiedadeepeladúvidapoderiam,porexemplo,serassim:ÓSenhor,caínopecadodoorgulho,masnacruztuteconvertesteemalguémsemreputaçãonenhumaeabristemãodetodoteupodereglória—pormim!Quantomaisteagradeçoemeregozijoporteresfeitoisso,menosprecisomepreocuparcomminhaprópriahonraereputação,comofatodeaspessoasmeaprovaremounão.Ó Senhor, caí no pecado da frieza e da irritabilidade, mas naquele jardim,pouco antes de morrer, foste tão gentil e nos reafirmaste, mesmo quandodormimos e o abandonamos. Na cruz te entregaste por pessoas que teabandonaramouescarneceramdeti.Quantomaisagradeçoemeregozijopelofatode teres feito issopormim,mais issoabrandaminhadurezae torna-mecapazdeserpacienteeatenciosocomaspessoasaomeuredor.Ó Senhor, caí no pecado da ansiedade e do medo, mas tu enfrentaste osperigosmaisassombrosospormim.Tufosterasgadoempedaços,commuitacoragem,pormim,afimdequeeupudessesercompletamenteamadoesalvoem ti por toda a eternidade.Se foste corajosopormimao enfrentar aquelasmaldades esmagadoramente cósmicas, sei que estás comigo agora. Por isso,possomemanterfirmeenquantoenfrentomeusproblemas.

Jesusécapazderemoveramancha

Quando Jesus transformou a água em vinho emCaná, usou grandes jarros depedra como vasos para seumilagre. Esses jarros eram utilizados nos ritos da

purificação cerimonial prescritos pela lei judaica (Jo 2.6-8). A lavagem e aaspersãoerammaneiraspelasquaisosistemacerimonialjudaicotransmitiaumaverdadecrucial—dequenenhumdenóséoquedeveríamosser,dequetodossabemosdavergonhaedaculpaedequedevemosfazeralgumacoisaparanospurificarmosdasujeiraedamanchadopecado,antesdeentrarmosnapresençadeDeus.Aopôr seuvinhoem tais jarros, Jesusanunciou simbolicamentequeveioparatrazerarealidadeparaaqualtodososritoscerimoniaisapontavam—aexpiaçãoeapurificaçãodefinitivasdopecado.Talveznãohajaretratomaiscativantedaagoniadaculpadoqueosdiscursos

torturados de Lady Macbeth. Tendo ajudado o marido nos assassinatos deDuncaneBanquo,amentedelaseesmagadebaixodavergonhaedaculpapeloque fizera. Ela vêmanchas de sangue namão. “Fora, manchasmalditas! [...]Quemhaveriadepensarqueovelhotivessetantosanguedentrodesi.”Elasenteocheirodosangueevêamanchanamão,epormaisqueseesforcenãoécapazde removê-la.Esse é um retrato da raça humana, claro. Sabemosque estamosmanchados, podemos senti-lo, mas esmurrar-nos e fazer boas obras nãoconsegue erradicar o problema. A mancha parece indelével. “Nem todos osperfumes daArábia conseguirão limpar essa pequenamão.” Nada do que elapudessefazertirariaamancha.Jesus, no entanto, diz que consegue fazê-lo. Ele morreu na cruz para levar

emboraassujeirasemanchasque,sozinhos,nãoconseguimosremover.Porissodevemos parar de tentar nos purificar através da autopunição ou de obter umsensodepurezavivendoemconstantenegaçãodopecado.Emvezdisso,temosdeiraeleemoração,olhandoparasuaobranacruz,e tantoreconhecernossopecadoquantorejeitá-lo.

1PelasreferênciasdasEscriturasepelateologiadesteparágrafoedopróximo,estouemdébitocomD.A.Carson,Love inhardplaces (Wheaton: Crossway,2002),p.74-7.

2Debate do dr. Martinho Lutero sobre o poder e eficácia das indulgências,1517,tese1.

3JohnR.W.Stott,Confessyoursins:thewayofreconciliation(WordBooks,1974),p.19.

4O principal guia, sem paralelos, para o que Stott chama de “rejeitar” opecado, e que teólogosmais antigos chamavam demortificação do pecado, é“On themortification of sin”, de JohnOwen, in:WilliamGoold, org.,Works(Carlisle:BannerofTruth,1965),vol.6.AobradeOwenestáeminglêsarcaico,difícildeler,maséumaobrasingulardaespiritualidadeprotestantereformada.

5Stott,Confess your sins, p. 20. Em seu livro, Stott diferencia “confessar opecado” (que ele considera omesmo que reconhecer o pecado) de “rejeitar opecado”(queelevêcomotrabalharumaatitudemaisprofundadecontriçãonocoração). Concordo que a “confissão propriamente dita” é um processo maismentalemquevocêpõefimaoprocessodecolocaraculpanosoutroseassumearesponsabilidadepelopecadocomopecado.OqueStottchamade“rejeitar”opecadoé,então,aobradocoraçãoqueJohnOweneospuritanoschamavamde“mortificação”.Euprefeririamereferirtantoaoreconhecimentomentalquantoàcontriçãodocoraçãocomoasduaspartesdaconfissãoouarrependimento.

6Stott,Confessyoursins,p.21.7Ediçãoemportuguês:Amortificaçãodopecado:umclássicodo século17,

traduçãodeGordonChown(SãoPaulo:Vida,2005).8Veja Owen, “On the mortification of sin”. “Em tempos de algum juízo,

calamidadeouafliçãopremente,ocoraçãoéentãoassaltadoporpensamentosemaquinações de fuga dos problemas, temores e perigos presentes. Isso, comoconcluiumapessoaconvicta, sódeveser feitopela renúnciaaopecado,oqueconfere paz comDeus. É a raiva deDeus em cada aflição que desgasta umapessoa convicta. Para se livrar disso, os homens deliberam em taismomentoscontraosprópriospecados.Opecadonuncamaisdeveterqualquerlugarneles;jamaisseentregarãooutravezaserviçodopecado.Consequentemente,opecadosilencia, não se agita, parece mortificado; não que tenha sido ferido de fato,apenas que a alma apossou-se das próprias faculdades, por meio das quaisdeveria se impor compensamentos incompatíveis comos impulsosdomesmo[do pecado], as quais, quando postas de lado, permitem ao pecado retornar àantigavidaevigor”(p.26-7).“Deve-seinsistir[...]nosprincípiosverdadeirose

aceitáveisdamortificação[quaissejam]oódioaopecadocomopecado,nãosóporquedesgastanteouinquietante.[...]Ora,écertoqueissodequefaloprocededo amor-próprio. Você está determinado, com toda diligência e seriedade, amortificartalluxúriaoupecado;porquerazão?Eleoinquieta,levouemborasuapaz,encheseucoraçãodedor,eaborrecimento,emedo;vocênãotemdescansoporcausadele”(p.41).

9“Sufocá-lo diariamente com todas as coisas mencionadasmais adiante quesãorepugnantes,mortaisedestrutivasparaeleéopontoaltodessaluta.”Ibidem,p.32.

10Vejaibidem,p.54-118.11Ibidem,p.58.12Owen,“AdiscourseconcerningtheHolySpirit”,in:Works,vol.3,p.547.13Issonãoquerdizerqueoscristãosqueentendemasverdadesdoevangelho

nãopossamrecorreràleideDeuscomoauxílioparaenfraqueceropecado.Emmuitos lugares ele diz aos cristãos para que “tragam seu pecado” à lei e aoevangelho (“Mortification of sin”,Works, vol. 6, p. 57-8). No entanto, esseconselho vem acompanhado de advertências lembrando aos cristãos que nãopodemvoltarasecolocardebaixodacondenaçãodaleiporseupecadoequeaênfaseexageradanoperigodopecadoena leipode levaraoespírito legalista,quesóconseguedeterosatospecaminosostemporariamenteenãotransformarocoração.

14Alexander B. Grosart, org.,Works of Richard Sibbes (Carlisle: Banner ofTruth,1973),p.47.

15GeorgeWhitefield,citadoemArnoldDallimore,GeorgeWhitefield:thelifeandtimes,vol.1,p.140.

U

CATORZE

Luta:pedindosuaajuda

Petiçãoardorosa

ma terceira forma de oração é a súplica— pedir a Deus coisas para simesmo, para outros e para omundo.A oração primordial é um grito de

ajuda.“Ouveaminhaoração.Dosconfinsdaterraclamoa ti,clamoenquantomeucoraçãoseabate”(Sl61.1,2).Essetipodeoraçãoparecesimplesedireto,edificilmente requer muita instrução para que seja bem feita. Contudo, asaparênciasenganam.OlivrodeTiago,noNovoTestamento,diz:“Nãotendesporquenãopedis.[E]

quandopedis,nãorecebeis,porquepedispelosmotivoserrados,paraquepossaisgastaroqueganhastescomvossosprazeres”(Tg4.2,3).UmadasmaneiraspelasquaisaoraçãodesúplicapodenoscausardanorealéseavirmoscomoummeiodedizeraDeus:“Sejafeitaaminhavontade”.Tendemosaserindulgentescomnossos apetites dizendo aDeus, em termosnada titubeantes, comoeledeveriagovernarouniverso.Umaoraçãodessasnemoagradanemnosajudaacresceremgraça.Aoração pode evitar uma arrogânciamais explícita e, no entanto, ainda ser

manipuladora.MuitospedidosaDeus sãocomoa“oração ritual”deFriedrichHeiler—modosdeobterbênçãosdadivindadeatravésdasujeiçãoaformasepráticas elaboradas. Têm o propósito de colocar Deus em dívida com osuplicante.Nãobuscamaface,agraçaeaglóriadeDeustantoquantoopoderparagranjearcoisasparasi.Naoração,émuitofácil,naturalaté,pedirerrado.

Contudo, diante de todos esses alertas necessários sobre cometer erros aopedir,épossívelqueapessoaseacanhedemais.Aoraçãonãoémeromododealcançarapazinterior—étambémummeiodeolharparaforaeparticiparcomDeus de sua obra no mundo. Donald Bloesch diz: “A oração não é simplessúplica,massúplicaardorosa.É[...]pleitoativocomDeus.ConsistenãoapenasnareflexãosobreaspromessasdeDeus,masemtomarpossedessaspromessas”(cf.Is64.7).Paulopedeaoscristãosromanosque“sejuntemamimemminhaluta,orandoaDeusemmeufavor”(Rm15.30).Aoraçãotemsidochamadade“rebeliãocontrao statusquomalignodomundo”.De fato, ela é listada comoumaarmanaguerraespiritualcontraasforçasdastrevas(Ef6.12).É bastante natural pedir errado ou não pedir nada, em absoluto, na oração.

Precisamosaprenderapedir,eafazê-locorretamente.

Opoderdaoração

ABíbliaestárepletadepromessassobreopoderdaoraçãonahistória.Nolivrode Tiago do Novo Testamento, o autor ressalta que Elias, “um homem comonós”,pelaoraçãoafastouachuvadeIsraeledepoisorouparaqueelaretornasse,comoformadeconfrontarumgovernantecorrupto.Tiagoconcluiqueaoraçãopode “ter grande poder e produzir resultados maravilhosos” (Tg 5.16). JoãoCalvino,famosoporsuasideiassobreapredestinaçãoeasoberaniadeDeus,fazalgumasdeclaraçõesimpressionantesarespeitodaoraçãocombasenoensinodeTiago.Dizele:FoiumacontecimentonotávelqueDeuscolocasseocéu,emcertosentido,sobocontroledasoraçõesdeElias,obedienteaospedidosdoprofeta.Pormeiodesuasorações,Eliasmanteveocéufechadopordoisanosemeio.Entãooabriuefezcomquederepentederramassegrandechuva,pelaqualpodemosveropodermiraculosodaoração.1

Calvinoéaomesmotempoousadoecautelosoemsualinguagem.Afirmaque

a oração, “em certo sentido”, afetou as condições meteorológicas de Israel.

Evidentemente,emúltimaanálise,Deusestánocomandodetudooqueacontece—nãohaveria amenor possibilidadede quenossas orações disputassemcomDeusocontrolesobrequalquerpartedoUniversoeotirassedesuasmãos.Noentanto,fazpartedabondadeedodesígniodeDeuspermitirqueomundosejasuscetívelanossasorações.Comoele faz isso—comomantémocontroledahistória e, ainda assim, torna a oração e os atos humanos responsáveis dentrodessahistória—éumdosmistériosmaispráticosdaBíblia.EmNeemias4,osjudeus reconstruíamomurode Jerusalémquando ficaramsabendoque seriamatacados pelos inimigos. Que atitude tomaram? “Oramos a nosso Deus emontamosguardadiaenoiteparafazerfrenteàameaça”(Ne4.9).EmIsaías38,oreiEzequiasestavamorrendoeoprofetaIsaíaslhedisseisso.EzequiasentãooroueoSenhor respondeu: “Ouvi tuaoração [...]; acrescentarei15anosà tuavida”(Is38.5).Todavia,aolevaramensagemaorei,Isaíastambémoinstruiuaprepararumemplastroeaplicá-loàinfecçãoafimdeserecuperar(Is38.21).Por que chamar isso de mistério “prático”? O ensinamento é que nossas

oraçõesimportam—“nãotemosporquenãopedimos”—;noentanto,oplanosábiodeDeusésoberanoeinfalível.Essesdoisfatossãoverdadeirosaomesmotempo,ecomoissoépossíveléummistérioparanós.2Temosasensaçãodeque,seDeusestánocontroleabsoluto,entãonossosatosnãoimportam—ouvice-versa.Maspenseemcomoissoéprático.SeacreditássemosqueDeusestánocomando e que nossos atos não importam nada, isso levaria à passividadedesencorajadora.Se,poroutrolado,crêssemosdefatoquenossosatosmudamoplano divino — isso levaria ao medo paralisante. Se as duas coisas foremverdade,entretanto,temosmaisincentivoparaoesforçodiligentee,aomesmotempo,podemossempresentirosbraçoseternosdeDeussobnós.Nofim,nãotemoscomofrustrarosbonsplanosdeDeusparanós(cf.Jr29.11).Essa é uma verdade tremenda. Deus se digna a dar ouvidos à oração. Ele

permite que o mundo esteja “em certo sentido” sob o controle do poder daoração.Dessemodoaoraçãoépoderosaeeficaz.AustinPhelpsdefendeessaideiaemumcapítulodoseulivrosobreaoração.

ElecontaahistóriadeEthelfrith,reisaxãopagãodaNortúmbria,queinvadiraoPaís de Gales e estava prestes a lutar. Os galeses eram cristãos. Quando

Ethelfrithobservouoexércitodosseusoponentesespalhadoàfrente,notouumexército de homens desarmados. Quando perguntou quem eram, disseram-lhequeeramosmongescristãosdeBangororandopelosucessodoexércitodeles.NomesmoinstanteEthelfrithsedeucontadaseriedadedasituação.“Ataquem-nosprimeiro”,ordenou.Phelpsprossegueafirmandoqueosnãocristãosdomundocomfrequênciatêm

maisrespeitopela“robustarealidade”daoraçãodoquenós.Opoderdaoração“nãoéumaficção,independentementedoquepensemossobreoassunto”.3Seétãopoderosa,comodevemosutilizá-la?

Comodevemospedir

Comousaresseaspectopoderosodaoração?Temosvistoqueépossívelpedirerrado ou ser tímido demais ao fazê-lo. Como prosseguir?Creio que oBreveCatecismo de Westminster nos oferece uma orientação excelente e variada.PrecisamoselevarnossosdesejosaDeustendosempreemvistasuasabedoria.Ocatecismoabordaaquestãodaseguinteforma:Q.98:Oqueéoração?R.Oração é um santo oferecimento aDeus dos nossos desejos pelas coisasconformescomasuavontade,emnomedeCristo,comaconfissãodosnossospecadoseumagradecidoreconhecimentodassuasmisericórdias.De fato, devemos pedir a Deus que satisfaça desejos— não recuemos em

relaçãoaisso.OssalmosestãocheiosdeexemplosdeadoradoresderramandoosdesejosdoprópriocoraçãodiantedeDeus.No entanto, o catecismo presume que nossos desejos podem ser não só

pecaminosamentedesordenados,mastambémperfeitamentebem-intencionados,emboraequivocados.Podemospensarquedeterminadopedidoajudaráanósouaoutraspessoas,masseDeusoconcedesse,maisadianteperceberíamos,paranossohorror e sofrimento,queestávamosenganados.Portanto, comoproteçãocontra as motivações egoístas, bem como contra nossa miopia espiritual,

pedimosaDeusquesatisfaçanossospedidoscomcoisas“conformescomasuavontade”.Devemoslhepedircoisasqueatendamtantoosnossosdesejosquantoavontadeeasabedoriadele(Jo14.13,14;1Jo5.14).Énaturalperguntar:“Mascomo saber que coisas são essas?”. A resposta, claro, é que nem sempresabemos.Oramos por elas damelhor forma que pudermos concebê-las e comuma mentalidade mais aberta, uma disposição para deixar Deus fazer algodiferente. Nesse sentido, J. I. Packer nos oferece ao menos três maneiras desolucionaroproblema.Parainíciodeconversa,elesugereque,aosuplicarmosaDeus,“devemoslhe

apresentar,comopartedanossaoração,osmotivospelosquaispensamosqueoque pedimos é o melhor”.4 Essa é uma ideia perspicaz e prática. Packermenciona quemuitos autores cristãosmais velhos falam sobre “discutir” comDeusemoração,oquenãosignificaquepresumamsermaissábiosouterumavontademaisperfeitadoqueadeDeus.Antes,por“discutir”elesqueriamdizer“contaraDeusporqueaquiloquetemospedidonospareceseromelhor,àluzdo que sabemos serem os objetivos do próprio Deus”.5 Significa introduzirraciocínioteológicoemtodasasnossasorações.Significaque,emvezdelistarrapidamentetudooquequeremos,devemosrefletirsobreoquedesejamosàluzdetudooquesabemosdasEscriturassobreascoisasquedeleitameentristecemaDeus,à luzdoquesabemossobrecomosuasalvaçãooperaeoqueelequerparaomundo.Quempraticaessadisciplinadescobrequeelaajudaarever—àsvezesaprofundando,àsvezesdiminuindo—seusdesejosepropósitospessoais.Tambémdámaiorpoderanossasorações,demodoque,quandoacabamosdeorar, sentimos que de fato lançamos nossos fardos sobreDeus (Sl 55.22; 1Pe5.7)epodemosretomarnossavidaaliviadosdessepeso.Umasegundaimplicaçãodaorientaçãodocatecismo,deacordocomPacker,é

que,ao tornarmosconhecidasasnossasnecessidades,estaremosexplicitandoaDeus“queseeledesejaalgodiferente[doqueestamospedindo],sabemosqueserámelhor, portanto é isso (e não omelhor que conseguimos pensar) que defato queremos que ele faça”.6 Tentar falar essas palavras a Deus comsinceridade,especialmentequandopedimosalgoquequeremoscomdesespero,reordena nosso coração. Se nos descobrirmos incapazes de dizer algo nesse

sentido, é sinaldequeestamos lidandocomumdos“afetosdesordenados”deAgostinho,um ídolodocoração,umrivaldopróprioDeusemnosso sermaisíntimo. Isso deveria levar a um sério autoexame. Caso não façamos essetrabalho,acabaremosnosdescobrindoescravizadosporemoçõesparalisanteseporumcomportamentoforadecontrole.Seconseguirmosproferiressaspalavrasdecoração,descobriremos,maisuma

vez, que elas nos tranquilizam. Podemos deixar as preocupações com Deus,sabendoqueeleasouviráenelastrabalharáquandoecomoformelhor.Háumapazeconfiançaresultantesdessaoraçãoquenãopodemserexperimentadasdeoutra maneira. Claro, enfrentamos aqui a questão perene— se Deus tem umplanoe estáno controle, porqueorar?Amelhor resposta éque, emessência,“nãoexisteoraçãodeumfilhodeDeusquefiquesemresposta”.7Porquenão?TemosacertezadequeDeus,nossoPaicelestial,semprequeromelhorpara

seusfilhos.Portanto,comoCalvinoescreve:“Deusouvenossaoração,[mesmoque] nem sempre responda da forma exata que pedimos”.Mais tarde ele diz:“mesmo quando não atende nossos desejos, [ele] se mantém atento ebenevolenteparacomnossasorações,demodoqueaesperançadepositadaemsuapalavrajamaisnosdecepcionará”.Resumindo,ouDeusnosconcederáoquepedimos,ouoqueteríamospedidosesoubéssemostudooqueelesabe.Maisdoqueisso,noentanto,sabemos,quandooramosporcoisasboas,quejá

temosamelhorde todas.NopróprioDeus temosanascenteeomanancialdetudo o que desejamos, ainda que um dos canais da nossa alegria, algo queamamos neste mundo, seque. “Pois mesmo que tudo nos decepcione, aindaassimDeus,aquelequenãopodedesapontar,nuncanosdesamparará,[...]umavez que todas as coisas boas estão contidas nele e ele as revelará a nós [...]quandoseuReinoforplenamentemanifesto”.8

Esse é o “dispositivo de segurança” da oração — sem ela, pessoas sábiasjamaisvoltariamaorar.Podemosestarcertosdeque,sepedirmosporalgoquenãoseráomelhorparanós,Deusnãooconcederá.Precisamosteracertezadequeeleatenderáodesejobásico,masencontraráumaformaeummeiodequeissonãonossejanocivo.AbraãopediuaDeusquedesseaofilhoqueelejátinha—Ismael—abênçãodivinaespecial,emvezdofilhoqueaindanãotinha—

Isaque.“SeaomenosIsmaelpudesseviverdebaixodatuabênção!”(Gn17.18).ArespostadeDeusfoisimenão.Não,poisfoiIsaque,nãoIsmael,oescolhidodeDeusparatrazerseupovodaaliançaeasalvaçãoaomundo.Todavia,DeusdizsobreIsmael:“fareideleumagrandenação.MasminhaaliançaestabelecereicomIsaque”(Gn17.20,21).Nos anos domeu treinamento para oministério, tentei me tornar o tipo de

pessoa capaz de atuar como pregador e pastor. Quando entrei no seminário,relacionava-mecomumamulherquelogodepoisquisrompercomigo.Demodoqueoreicomfervor:“Ó,Senhor,nãopossofazerissosemela.Precisodeladeverdade.Porfavor,nãorompaesserelacionamento”.Emretrospectiva,vejoquefoi uma oração mal orientada. Foi bom o relacionamento haver se rompidoporquemais tardeme casei comKathy,mas não foi isso que senti na época.Deusdissenãoparaminhaoração?Simenão,porquenocentrodaoraçãohaviaodesejodequeDeusmedesseumaparceiradeministério.Eraumasolicitaçãoimplícita.Ehaviaaindaaparteequivocada:“Essaéamulherquemeajudará”.O Espírito, mesmo quando você não sabe orar, apreende o âmago de sua

oração e ora como você deveria estar fazendo diante do trono (cf. Rm 8.26).Quandotravaumalutaemoração,vocêpodecomparecerdiantedeDeuscomaconfiançadequeelelhedaráoquevocêteriapedidosesoubessetudooqueelesabe.Eleseimportasim,eoamasemlimites.ElevarnossosdesejoscomumavisãodasabedoriadeDeus temumterceiro

efeitosobrenossassúplicasquenãomencionamos.Precisamosnosperguntar“oque nós mesmos talvez tenhamos de fazer para facilitar respostas a nossasorações”?9Atécertoponto,asrespostasparamuitasdasnossassúplicasseriamfomentadas por mudanças em nós, mas geralmente não dedicamos tempo aconsiderar issoquandooramos.DeveríamosnosdisciplinarparaconectarcadapetiçãoaoquesabemosacercadeDeus,mastambémdeveríamosnosperguntaro que nossa súplica revela sobre nossasmotivações, nossos afetos e até sobrenossospecadosefraquezas.Portodosessesmotivos,Packerestápreocupadocomaquantidadedecristãos

quetendeaorarcombaseemlongas“listasdeoração”.Opensamentoteológicoeaautorreflexãoquedeveriamacompanharumasúplicaexigem tempo.Listas

de oração e outros métodos semelhantes podem nos levar a passarapressadamentepornomesenecessidadescomumadeclaraçãosuperficialcomo“sefordatuavontade”,semanecessáriadisciplinadedarsustentaçãoanossospedidos com um raciocínio bem elaborado. Packer escreve que “se formosdedicar tempo para refletir acerca das situações e vidas sobre as quais nossasintercessões se concentram”, talvez não sejamos capazes de orar por tantosassuntos e questões. “Nossas reflexões mais pormenorizadas e nossaargumentação[...]elevarãonossasintercessõesdoníveldeumaoraçãotipolistadecomprasourodadeoraçãoparaacategoriaapostólicaaquePaulochamavade‘luta’”(Cl2.1-3).10

Doispropósitosdaoraçãodepetição

Estamosvendooequilíbrionecessárioentredoispropósitosdaoraçãodepetição— endireitar o mundo (“venha o teu reino”) e alinhar nosso coração a Deus(“sejafeitaatuavontade”).Nenhumdosdoisdeveocuparposiçãodevantagem,senão nossas súplicas se tornarão ou vivas e frenéticas demais, ou passivas ederrotistas demais. Precisamos tornar nossos desejos conhecidos— e tambémdescansar na sabedoria doSenhor.Esses elementos vêmum atrás do outro naOraçãodoSenhor,etambémosvemosjuntosnagrandeoraçãodopróprioJesusnoGetsêmani:“Sepossível,afastademimestecálice.Todavia,nãosejafeitaaminhavontade,masatua”(Mt26.39).Umdospropósitosdaoraçãodepetiçãoéexterno.Porintermédiodasnossas

súplicas,Deusproduzascircunstânciasdahistória(Tg5.16b-18).Eleoperaráajustiçanomundopormeiodasnossasorações(Lc18.7,8).Eleafirmaquemuitascoisas ele não dará nem fará até pedirmos (Tg 4.2b). Quando de fatosuplicarmos, então ele nos darámuitomais e alémdoquepedimos (Ef 3.20).Não relutará emnos concedernadadebomquepedirmos (Tg1.6).Tudo issosignifica que devemos orar de forma assertiva e com confiança.Devemos sercomoEzequias,quepegouascartasameaçadorasdo reiassírioe“estendeu-asdiantedoSENHOR”(Is37.14),apresentandoumapoderosaoraçãoporproteção.TemosumDeusquegovernaoUniversoetambéménossoPaicelestial.Porisso

Jesus diz que devemos orar com “audácia sem pudores” (Lc 11.8). O termogrego aqui é notável — costuma significar “insolência ou impertinência”.EmboraoautordeHebreusafirmequedevemos“adoraraDeusdemodoquelheseja aceitável, com reverência e temor” (Hb 12.28), devemos ainda assimderramarassertivamentenossaspreocupaçõesdiantedele.Por outro prisma, vemos que o segundo objetivo da oração de petição é

interno. Através das nossas petições, recebemos paz e descanso.Assim comodormiré“abrirmãodocontrole”,asúplicatambémoé:elasignificadescansareconfiar queDeus cuidará das nossas necessidades.Devemos orar não só comuma assertividade sem pudores, mas, ao mesmo tempo, com uma submissãoserena,umaconfiançadequeDeusémaissábioequeromelhorparanós.VemosessesdoispropósitosdaoraçãodepetiçãobemnoiníciodoSaltério.O

salmo4éumaoraçãonoturnavoltadaparaaceitaroqueaconteceuaolongododiaerefletirsobreissoàluzdeDeus.Osalmo5éumaoraçãomatutinapedindoaDeus quemude o status quo domundo. Bastante direta, solicita ao Senhorproteção contra os assassinos ementirosos que ameaçamcausar danos ao quesuplica(Sl5.4-6).Nãoobstante,antesdaassertividadedosalmo5vemaoraçãosubmissa,decoraçãodescansado,deSalmos4.4-8.Tremei e não pequeis; quando estiverdes na cama, sondai vosso coração eaquietai-vos. Oferecei sacrifícios da justiça e confiai no SENHOR. Muitos,SENHOR,estãoperguntando:“Quemnostraráprosperidade?”.Permitequealuzdatuafacebrilhesobrenós.Enchemeucoraçãodealegriaquandoogrãoeovinhonovodelesabundar.Empazmedeitoedurmo,poissó tu,SENHOR,mefazeshabitaremsegurança.ObservecomoDavi,osalmista,atingeoobjetivodaoraçãonoturna.“Empaz

medeitoedurmo”.Opropósitodessaoraçãopodeservistonaexpressão“empaz”.Aoraçãonoturnaalmejadardeformaespiritualàalmaamesmapazqueosonodanoiteforneceaocorpofísico.Aalmaeocorporepousammelhorjuntos.Aalmaatribuladalevaaosonoirregular,eocorponãoalcançaemplenitudeoquenecessita.

Aoração que diz “seja feita a tua vontade”—a oração de umcoração quedescansa em Deus — não é fundamentalmente uma oração de louvor ouarrependimento. Ela é sim uma oração de súplica pela qual necessidades epreocupações que pesam sobre nós são depositadas em oração nas mãos deDeus,demodoquenossaalmanãosigasobrecarregadaparaosonodanoite.ComoDaviconseguedescansarseucoração?Nosalmo4vemosumaespécie

de“conversaconsigomesmo”oumeditação,emqueDavi trabalhanoprópriocoração:“Enchemeucoraçãodatuaalegriaquandoogrãoeovinhonovodelesabundar”(Sl4.7).Eleestádizendoalgocomo:“Secontocomosprivilégiosdoevangelho—garantiadoamor,dagraçaedaamizadedeDeuseacessoatodoseles, então todas as outras formas de prosperidade e tesouro empalidecem nacomparação”.Háalgunsanos,o jovemJonathanEdwardsescreveuumsermãocomoseguinteesquema:11

1. Nossascoisasruinssereverterãoemboas(Rm8.28).2. Nossascoisasboasnuncapodemnossertiradas(Sl4.6,7).3. Asmelhorescoisasaindaestãoporvir(1Co2.9).

Se, ao apresentarmos nossos pedidos aDeus, descobrirmo-nosmergulhandomais fundo no desânimo, na raiva ou na autopiedade, é porque falhamos emrealmentefazeressetipodetrabalhonocoração.

Oquedevemospedir

Com base em exemplos bíblicos, detectamos três tipos de petição: súplica,queixa e espera. São categorias que se sobrepõem, que não são nitidamentediferenciadas,mas,mesmoassim,ébomconsiderarcadaumaemseparado.Existemasoraçõeshabituaisemquepedimospornossasnecessidadeseasdos

outros.Orarpelo“pãonossodecadadia”epornósmesmosdevecobrirtodooespectro doquenecessitamosnos aspectos espirituais, emocionais emateriais.Significaorarpelalibertaçãodosnossospecadosedatentaçãoquenosassedia,porclarezaeenergiaparafazerbemnossotrabalhodiário,porproteçãocontra

danos e enfermidades, pormeios financeiros para nos sustentarmos e à nossafamília.Incluipedir,acimadetudo,porcomunhãoerelacionamentocomDeus.A oração em favor de outras pessoas e do mundo tem sido chamada de

intercessão. Inclui as necessidades de membros da família e de amigos, bemcomodosoponenteseatédosinimigos.Certifique-sedeselembrardeorarpelaspessoas que encontra durante o dia e que estão passando por sofrimento oudificuldades.MuitaspassagensdaBíbliaincentivamaoraçãopeloenfermo(cf.Tg. 5.15). Isso significa orar por fé em favor daqueles ao seu redor que nãoconhecem a Cristo e, em especial, por quem parece estar empreendendo umabuscaespiritual.Abrangetambémasoraçõesemgeral,tantopelaigrejaquantopelomundo.Pensandona igreja, ore por sua vitalidade, proteção e fidelidade.Nomundo,oreparaquehajapazemvezdeguerraeconflito;prosperidadeemvezdepobrezaefome;liberdadeemvezdetiraniaeescravidão;orepelavirtudedoslíderesepelasaúdedassociedades.OutracategoriadeoraçãodepetiçãoqueocupaposiçãodedestaquenaBíblia

tem sido chamada tradicionalmente de lamento, quando presente nos salmos.Trata-sedaoraçãodealguémquesofreepassapordificuldade,quevemlutandocomavontadedeDeus,talvezquestionandoseuscaminhosebuscandoauxíliopara compreender e suportar alguma tribulação.12 J. I. Packer se pronuncia deprontoechamaessetipodesúplicade“queixa”.Reconhecequeninguémgostade pessoas que só choramingam e reclamam, mas ressalta o fato de que, naBíblia,quando“coisasruinsacontecemapessoasboas[...]elasreclamamcomgrande liberdade e por um período de tempo considerável com seu Deus. Eacrescenta que as Escrituras não parecem considerar essas orações de queixaoutra coisa senão sabedoria”.13 Ele continua observando que a questão maismelancólica dirigida a Deus, “Até quando?”, é feita quase vinte vezes nasorações dos salmos. Chega a ser quase uma marcação técnica desse tipo dequeixa.14

Umavariedadedecircunstânciassuscitacomacertoasoraçõesde lamentoequeixa.Háoraçõesdiantedaoposição,quando indivíduosou forçasnos traemouperseguem(cf.Sl13;55).Hátambémasquetratamdaprivação,emespecialda saúde ou dos bensmateriais da pessoa (cf. Sl 6; 38). Por fim, existem as

oraçõesdeisolamento,quandoquemoraestálongedecasa,ouperdeuafamíliaeosamigos,oufoiporelesabandonado(cf.Sl39;79).15

Hátambémumtipodeoraçãode lamentaçãoque,embora típicodeSalmos,cruzaasdemaiscategorias.Seriarazoávelchamarossalmos39e88deoraçõesda mais absoluta escuridão. Às vezes o senso da presença de Deus e o deesperança desaparecem por completo. Na maioria dos “salmos deesmorecimento”,comoo42eo43,vemososalmistatomandoasiprópriopelamãoeseafastandodeliberadamentedesuadepressão,masosalmo88começaetermina em escuridão.Às vezes, pode acontecer de os cristãos se sentirem naescuridãoespiritualporumperíodomuitolongo.Por que a lamentação e a queixa costumam ser deixadas de fora dos livros

contemporâneos sobre oração?As razões sãomuitas.O historiadorRonaldK.Rittgers, emseu livroThereformationofsuffering [A reformado sofrimento],chama a atenção para o fato de tanto a igreja católica medieval quanto osreformadores luteranos terem minimizado a legitimidade do lamento porqueacreditavamser importantequeoscristãosdemonstrassemdiantedeDeusumaaceitação inabalável e jubilosa de sua vontade.16 Claro, pode haver aqui umlegalismo sutil, uma forma de assegurar o favor de Deus sendo bom e nãoreclamando de nada. Outro motivo para a lamentação estar ausente dopensamentoedapráticacristãdehojeéocaráterconsumistadeumapartetãograndeda religião contemporânea.Nas sociedades ocidentais atuais, amaioriadaspessoasqueacreditaemDeusovêcomoalguémobrigadoaprovidenciarascoisasembenefíciodelas,desdequelevemumavidaboaosuficientesegundopadrõesqueelasmesmasescolheram.Essaé,nafrasehojefamosadeChristianSmith, a cosmovisão do “deísmo moralista e terapêutico”.17 Esse moralismocontemporâneo atenuado, acompanhadodeum legalismomais antigo e rígido,combinam-separadescartaraqueixacomoformaválidadeoração.J. I. Packer trata desse erro de modo muito direto. Por ser britânico, ele

escreveuque“aculturainfluenciadapelonortedaEuropahistoricamenteadotouo ideal de comportamento humano de quem se mantém impassível, semdemonstrarqualquersentimento,ecostumamenosprezarquemdávozaqueixaspessoais em público, considerando tais pessoas inferiores e fracas em termos

morais”.Argumentaque issocombinamelhorcomo legadodoplatonismodoque com uma visão bíblica do ser humano. Os platônicos acreditavam nodualismomente-corpo, emque amente racional era suprema, aopassoque asemoçõesfaziampartedocorpo.Criamquedevemoscontrolaresufocarnossasemoções para que a nossa racionalidade atue sem dificuldades. A Bíblia,contrastando com essa ideia, vê o coração e seus afetos, esperanças ecompromissos de fé como base tanto do raciocínio quanto do sentimento.Devemos oferecer e submeter nossos pensamentos, bem como nossossentimentos, em oração a Deus. Packer conclui: “As queixas [...] são parteintegrante dessa nova vida regenerada de comunhão e oração [...] portanto, areclamaçãoserá,oupelomenosdeveser,umelementorecorrentenaoraçãodequemnasceudenovo”.18

A terceira e última categoria mais geral da oração de petição costuma serchamada de “espera emDeus”. Em uma famosa parábola sobre oração, Jesusconta a história de uma viúva oprimida que “vivia procurando” um juiz“suplicando:‘Concede-mejustiçacontrameuadversário’”.Eleconclui:“AcasoDeusnãofarájustiçaaseusescolhidos,queclamamaelediaenoite?”(Lc18.1-8).AideiacentraldaparáboladeJesusédupla.DevemosestarconfiantesdequeDeus nos ouvirá, mas também ser extremamente pacientes com o tempo deDeus.Devemosestardispostosaorarcomousadiaeperseverança,etambémaaguardar meses ou anos até Deus responder a certas coisas. “O Senhor nãodemoraemmanter suapromessa, segundoavisãodedemoraquealguns têm”(2Pe3.9).Issoquerdizer,muitosimplesmente,quenossasestruturastemporaisnão estão em contato com a realidade suprema. Nossa perspectiva do tempo,comparadacomadeDeus,éanálogaàdacriançadedoisanosemrelaçãoàdeumadulto.Deus tembonsmotivosparanos fazeresperarumlongo tempoatévermosalgumasoraçõesrespondidas.Contudo, em geral é preciso anos de experiência em oração de petição até

alcançaraperspectivanecessáriaparaenxergaralgunsdosmotivosparaotempodeDeus.Emcertoscasos,constatamosqueprecisamosmudarantesdesermoscapazesdereceberoquepedimosdeformacorretaouquenãonoscausedanos.Emoutroscasos,ficaclaroqueaesperanostrouxeoquequeríamosetambém

desenvolveuemnósumtemperamentomuitomaispaciente,serenoeforte.Háoutras nuances e belezas no plano sábio de Deus que conseguimos apenasvislumbrar.

AoraçãosemrespostadeJesus

Jáargumentamosque,emúltimaanálise,“oraçãosemresposta”éalgoquenãoexiste. No entanto, essa é uma compreensível declaração quando feita porpessoasqueorarampedindoaDeusquemantivesseumentequeridocomvidaevirammesmoassimapessoamorrer.AlgumassúplicasrejeitadasporDeussãoterríveis.Depoisdeumaexperiênciacomoessa,comomanteraconfiançaparaorardenovo?ComocrerdeverdadequeDeusestáouvindoerespondendo,seelenegapedidostãodesesperadosesinceros?Quando olhamos para os salmos de Davi, percebemos que ele manteve a

confiançanaoraçãoapesardosmuitosdesapontamentosprofundosnavidaedosmuitospedidosnegados,taiscomoquandoseufilhinhomorreu(2Sm12;Sl51).Comoeleencontrouânimoparaorardepoisdisso?Algumascoisasoajudaram.ElecontoucomsuasexperiênciascomDeusaolongodosanos,quandooSenhoro salvouvezesemaisvezes, e tambémas revelações recebidasdoEspíritodeDeus em seu coração. Nós que vivemos depois de Cristo e que cremos noevangelho,contudo,dispomosderecursosaindamaiorespara termosacertezade queDeus ouvirá nossas petições. Sabemos que ele nos responderá quandoclamarmosporque,emumdiaterrível,elenãorespondeuquandoJesusclamou.Jesus orou no Getsêmani para que o “cálice” do sofrimento na cruz fosse

afastadodele,mas seupedido foi rejeitado.Naprópria cruz ele bradou “Deusmeu,Deusmeu”,masfoidesamparado(Mt27.46).Comoissopôdeacontecer?Jesuseraohomemperfeito—serviuaDeusdetodoocoração,almaemente,amouopróximocomoasimesmo(Mc12.28-31)eassimcumpriuporinteiroaleideDeus.NolivrodeSalmosestáescrito:“Setivesseacalentadoopecadoemmeucoração,oSENHORnãometeriaouvido”(Sl66.18).Pecadoresmerecemficarcomasoraçõessemresposta. Jesus foioúnicoser

humanonahistóriaquemereceuquetodasassuasoraçõesfossemrespondidas

emrazãode suavidaperfeita.Noentanto, foi rejeitadocomoseacalentasseopecadoemseucoração.Porquê?A resposta, evidentemente, está no evangelho. Deus tratou Jesus como nós

merecíamos ser tratados— ele tomou sobre si nosso castigo— para que, aocrermos nele, Deus pudesse então nos tratar como Jesus merece (2Co 5.21).Sendo mais específico, as orações de Jesus receberam a rejeição que nóspecadoresmerecemos,demodoqueasnossaspudessemterarecepçãoqueelemerece.Porisso,quandooscristãosoram,confiamqueserãoouvidosporDeuse receberão uma resposta da maneira mais sábia. Quando ensinava seusdiscípulossobreaoração,Jesusdeu-lhesaseguinteilustração:Qualdevocês,pais,seseufilholhepedirumpeixe,emseulugarlhedaráumacobra?Ouseelelhepedirumovo,lhedaráumescorpião?Portanto,sevocês,emborasendomaus,sabemdarboasdádivasaseusfilhos,quantomaisseuPaicelestialdaráoEspíritoSantoàquelesqueopedirem!(Lc11.11-13.)Jesusestádizendoalgomaravilhosoepoderoso.Seospaisterrenos,quesão

pecadores,emgeralqueremfazerosfilhosfelizes,“quãomais”comprometidocom nosso bem-estar e felicidade não é nosso perfeito Pai celestial? IssosignificaquenuncahouvepaioumãesobreafacedaterraquedesejassetantaalegriaparaseusfilhoscomooPaicelestialadesejaanós,seusfilhos.NuncahouveumpaihumanoquequisesseatenderàssúplicasdeseufilhotantoquantoDeus quer atender às nossas.No entanto, sabemos que ele não só é amoroso,mas também santo e justo. Como pode derramar bênçãos sobre pessoaspecadorasquemerecemooposto?ArespostaéqueJesusrecebeuoescorpiãoeacobraafimdequenóspudéssemosteroalimentodamesadoPai.Elerecebeuoaguilhãoeovenenodamorteemnosso lugar (cf.1Co15.55;Hb2.14,15;Gn3.15).Quandoclamarmos“Deusmeu,Deusmeu”,sabemosqueelenosresponderá,

porquenãorespondeuquandoJesusfezessamesmapetiçãonacruz.ParaJesus,os “céus eram como bronze”; ele recebeu o maior dos silêncios para quepudéssemossaberqueDeusouveeresponde.

DevemosfazerpedidosaDeuscomousadiaedeformabemespecífica,comardor,sinceridadeediligência,mascompacientesubmissãoàvontadeeaoamorsábiodele.TudoporcausadeJesus,etudononomedele.

1Citadoin:Horton,CalvinontheChristianlife,p.159.2Paralermaissobreesseassunto,vejaKeller,WalkingwithGodthroughpain

and suffering, em especial o capítulo 6, “A soberania de Deus”, p. 130-46[ediçãoemportuguês:Caminhando comDeus emmeio à dor e ao sofrimento(SãoPaulo:VidaNova,2016)].

3Phelps,Thestillhour,p.27-8.4Packer;Nystrom,Praying:findingourway,p.157.5Ibidem,p.158.6Ibidem,p.157.7Packer;Nystrom,Praying:findingourway,p.55.8McNeill, Calvin: Institutes, 3.20.52., p. 919 [edições em português: João

Calvino,As institutas, tradução deWaldyr Carvalho Luz (São Paulo: CulturaCristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião cristã, tradução de CarlosEduardoOliveira;JoséCarlosEstêvão(SãoPaulo:Ed.Unesp,2008)].

9Ibidem,p.178.10Ibidem,p.179.11Essa é aminha paráfrase dos tópicos elencados por Edwards.O sermão é

“Christianhappiness”epodeserencontrado in:WilsonH.Kimnach,org.,Theworksof JohnathanEdwards (NewHaven:Yale, 1992), vol. 10:Sermons anddiscourses1720-1723,p.296-307.AtesedeEdwardséqueocristãoconsegueserfelizsejamquaisforemascircunstânciasexteriores.

12Trato desse tipo de oração com mais detalhes no capítulo 12, “Weeping”[Chorando],emWalkingwithGodthroughpainandsuffering,p.240-54.

13Packer;Nystrom,Praying:findingourway,p.181.14Ibidem.15Ostermosdescritivosparaascategoriasdeoraçãodequeixanesseparágrafo

vêmdePacker;Nystrom,Praying:findingourway,p.194-9.16VejaKeller,WalkingwithGodthroughpainandsuffering,p.240-2.17Smith,Soulsearching.18Packer;Nystrom,Praying:findingourway,p.192-3.Paravermaissobreo

processamento das nossas queixas e sofrimentos na oração, vejameuWalkingwithGod through pain and suffering, em especial os capítulos de 12 a 16, p.240-322.

P

QUINZE

Prática:aoraçãodiária

Umahistóriadeoraçãodiária

aulodissequedeveríamos“orarsemcessar”(1Ts5.17)querendodizerque,sepossível,precisamosfazertudo,todoosdias,tendoDeusemmente(1Co

10.31). Em cada episódio do nosso dia deve soar uma música de fundo degratidãoealegriacaptadasomentepornossosouvidos(Cl3.16,17).Essetipodeoraçãoespontâneaeconstanteao longododiadeveserumhábitodocoração.Jamaisodesenvolveremos,noentanto,senãoadotarmosadisciplinadaoraçãoregularediária.Aoraçãodiária é umapráticabíblicadesde tempos imemoriais. “Trêsvezes

pordia[Daniel]seajoelhavaeorava,dandograçasaDeus”(Dn6.10).Dizia-seque a prática cristã medieval da horae canonicae, liturgia organizada emhorários fixos e diários de oração— também chamada emOfícioDivino—,fundamentava-senodesafiolançadoporJesusaosdiscípulosadormecidos:“Nãofostescapazesdevigiarcomigonemumahora?”(Mt26.40).Nosmonastérios,oficiavam-se múltiplas cerimônias de oração diária. No entanto, Alan Jacobsargumentaqueosoitoperíodosfixosdodiaparaaoraçãomonástica—matinas(meia-noite),laudes(3damanhã),prima(6damanhã),terça(9damanhã),sexta(meio-dia),noa (3da tarde),vésperas (6da tarde)ecompletas (9danoite)—comotemposerevelaramfisicamenteinsuportáveis.Muitasordensmonásticasdiminuíramonúmerodecerimôniasoudistribuíramaresponsabilidadeporessesváriosperíodosdeoraçãoentrediferentesirmãoseirmãs.1

QuandoaReformaProtestantechegouàGrã-Bretanha,oreformadorThomasCranmerprecisouenfrentaraquestãodecomoajudarpessoascomuns,comumdiacheiodetrabalho,afazeremsuasoraçõesdiárias.Preocupou-setambémcomo fato de as práticas de oração medievais, tão amarradas a um calendáriolitúrgicodediassantosextremamentedetalhado,forneceremàspessoasapenasfragmentosdepassagensbíblicascurtasediáriasaseremusadasnessesdias.EleacreditavaqueissoasimpediadesefamiliarizaremcomaBíbliainteira.Emseuprefácio ao primeiro Livro de Oração Comum de 1549, Cranmer defendeu aideiadequeosantigospais secertificavamdeque“todaaBíblia (ouamaiorpartedela)deveriaserlidaumavezporano”noscultosregularesenasoraçõesdaigreja.2

A solução que ele encontrou foi, primeiro, eliminar os vários períodos deoraçãoao longododia, exceto aoraçãodamanhã (matinas) e ada tarde.Emseguida forneceu, bem no início do seu livro de oração, um “cronograma”segundooqualquatrocapítulosdaBíbliadeviamserlidostodososdias—doisna oração da manhã e dois na da tarde. Como Cranmer observa em suaintrodução ao cronograma de leitura da Bíblia, isso significa que o AntigoTestamentointeiroserialidoumavezeoNovoTestamento,duasvezesemumano,excetooscapítulosdegenealogias,partesdeLevíticoepartesdolivrodoApocalipse.3 Além disso, Cranmer prescreveu a imersão em Salmos. Issotambémfoiumaadaptaçãodapráticaclericalparaleigos.Enquantoosmonges,comsuascerimôniasdiárias,eramcapazesdepercorrerolivrodeSalmostodasemana,Cramnerdelineouumcronogramasegundooqualtodosos150salmospoderiamserlidospelamanhãeànoiteefinalizadosemummês.4

Oresultadofoiabrilhanterevisãodeummodeloantigo.ElecriouumOfícioDivino protestante com um foco maior na leitura sistemática das Escrituras.Demandava duas orações diárias, que podiam ser conduzidas tanto emcomunidade quanto em particular. Oferecia orações escritas de adoração, deconfissãoedeaçõesdegraças,espaçoparaoraçõesdepetiçãoemformalivre,alémdeumplanoparaaleiturasequêncialdoslivrosdaBíblia,oqualtemsidochamadodelectiocontinua.

A“protestantização” da oração diária também foi experimentada por igrejasnãoanglicanas,emborapresbiterianos,congregacionalistaseoutroscolocassemmenor ênfase do que Cranmer nas orações escritas. João Calvino, contudo,preparoucincomodelos simplesdeoraçõesbrevesa seremutilizadosemcadauma das cinco vezes do dia em que aconselhava os cristãos a orarem,5

conclamando-os a oferecerem orações “quando nos levantamos pela manhã,antes de darmos início ao trabalho diário, quando nos sentamos para comer,depois de acabarmos a refeição pela graça deDeus e quando nos preparamospara nos recolher”.6 Por sua vez, a maioria das igrejas protestantes decidiuadotarcomopadrãoumaoraçãomatutina individual eumaoraçãonoturnaemfamília.O famosocalendáriode leiturabíblicaanualdoministropresbiterianoRobert Murray M’Cheyne, desenvolvido no início do século 19 na Escócia,incluía dois capítulos de manhã, acompanhando a oração individual, e dois ànoite, para acompanhar a oração em família.7 Somando-se a isso, as igrejasreformadaslivrespraticavamocânticocongregacionaldealgumsalmonolugardaleituramatutinaenoturnadosaltério,afimdeinculcarolivrodeSalmosnocoraçãoenamentedopovo.8

Emtemposmaisrecentes,apráticadeuma“horasilenciosa”únicaediáriafoiconsiderada obrigatória durante duas ou três gerações de estudantesuniversitários cristãos. Nas décadas de 1930 e 1940, líderes evangélicosbritânicoseaustralianosproduziramumpequenolivretointituladoQuiettime:apractical guide for daily devotions [Hora silenciosa: um guia prático paradevoçõesdiárias].Aobra foipublicadapelaprimeiraveznosEstadosUnidos,em1945,pelaInterVarsityPress.9Olivretode30páginasviriaase tornarumsucesso,vendendoummilhãodecópias,alémdehavermoldadoeinfluenciadonomínimopor50anososlivroseguiasevangélicosquesurgiramdepoisdele.10

Quiettimededicaboapartedesuaspoucaspáginasainsistiremqueadevoçãodiária é uma disciplina que requer um ato de vontade bastante deliberado.Aconselha a encontrarmos um lugar tranquilo e a acalmarmos nosso espíritocomopensamentodequeopróprioDeusbuscaumencontroconosco.Instrui-nosausarumdiárioparaanotaros resultadosdonossoestudobíblico,apósoqualdevemosfinalizarcomumaquantidadedetempodeoraçãomaisoumenos

equivalente.Oúnicoperíodode tempoespecificadoé20minutos,consideradomínimo.NomeiodapartemaispráticadeQuiet time há um resumode algumasdas

práticas de oração de George Mueller (1805-1898), célebre ministro alemãobatistaefundadordeorfanatos,quepassouamaiorpartedavidanaInglaterra.Muellerficoufamosoporsuavidadeoração,sobreaqualescreveuemalgunstextosautobiográficos.Preocupava-separticularmenteemmeditarnasEscriturascomo forma de advertir o próprio coração e levá-lo à oração. Nesse aspecto,Mueller seguia a orientação de Martinho Lutero. Seu método de meditaçãotambémeraumclássico.Eletinhaumconjuntodeperguntasquepropunhaparaqualquer texto, ecoando as de Lutero.Quiet time lhes confere notoriedade aorelacioná-las:Hánotextoalgumexemploparaeuseguir?Háalgumaordemparaeuobedecer?Háalgumerroparaeuevitar?Háalgumpecadoparaeuabandonar?Háalgumapromessaparaeureivindicar?HáalgumaideianovasobreopróprioDeus?11

Apósoestudobíblicoeameditação,aoraçãoéinicialmenteformuladacomo

umaproximar-sedeDeusemconfissãodosnossospecadose,depois,comoumarespostadeagradecimentoelouvorpornossasalvaçãopelacruz.Apósolouvorvêm a intercessão por outras pessoas e, por fim, a petição pelas própriasnecessidades.12

Praticandoaoraçãodiáriahoje

Ahorasilenciosapraticadanofimdoséculo20tendiaaminimizarosaspectosmais experienciais da oração. Enfatizava-se o estudo bíblico interpretativo, oqualincluíaoesboçodeumapassagembíblica,arespectivaparáfraseeabuscapelasestruturasliteráriasdecomposição.Umdevocionaldiárionosconvidavaa

perguntaracadapassagem:“Existealgumpensamentorecorrenteilustradopelautilização repetida de uma mesma palavra, expressão, termo ou ideiacontrastante? [...] Qual a orientação da passagem — do particular para ogenéricooudogenéricoparaoparticular—aotratardoassuntoabordado?”.13

Isso requermuita prática, e é difícil imaginar que alguém consiga fazê-lo empouquíssimosminutosacadamanhã.Opropósitoera fomentarummétododeestudobíblicoindutivodiáriovoltadomaisparaainterpretaçãodotextodoquepara a meditação e a experiência com Deus. Depois dessa espécie de estudobíblico, vinha a oração,mas o estudo de carátermais cognitivo não conduziacom grande naturalidade à adoração. Portanto, a oração era dominada porpetiçõesemfavordenecessidadesepelaconfissãodepecados.Muitosconsideramahorasilenciosaevangélicatradicional—comsuaênfase

noestudobíblicointerpretativoenaoraçãodepetição—umexercícioracionaldemais. Em reação a isso e desejosos de uma experiência maior com Deus,muitos protestantes têm se voltado para tradições mais católicas e ortodoxasorientais, incluindoa lectiodivina, a oração contemplativa e as horas fixas deoraçãolitúrgica.Uma das revisões contemporâneasmais bem-sucedidas da antiga oração em

horários fixos são os livros de Phyllis Tickle, The divine hours [As horasdivinas]. Tickle dispõe convenientemente namesma página uma leitura brevedosSalmosedasEscrituras,versosdehinos,declaraçõeseorações,propiciandouma referência mais fácil do que os guias de Ofício Divino tradicionaisoferecem.Contudo,seutrabalhoresisteadiversasdasinovaçõesprotestantesdeCranmerparaaoraçãodiária.Eladefendede trêsaquatroperíodosdiáriosdeoração em vez de dois e afasta-se da leitura bíblica sistemática e sequencialassociadaaCranmer,CalvinoeoutrasigrejasdaReforma.14

Todavia,oestímulodeTickleparaasoraçõesescritasnãocontrariaapráticareformada. Embora alguns ministros não anglicanos, como John Bunyan, seopusessem com veemência a todas as formas escritas de oração,15 outroscontemporâneos deBunyan, como JohnOwen, acreditavam que as formas deoraçãoprescritaspodiamserúteisseredigidaspor“pessoas[piedosas]combase

emexperiênciasprópriaseàluzdasEscrituras”.16Taisoraçõespodemcomoverocoraçãoeservirdeestímuloedireçãoparanossasprópriasorações.17

Ainda compete a cadaumdenós, portanto, a tarefa de encontrar formasdepraticaraoraçãoeadevoçãodiárias.Emgeral,creioqueprecisamosiralémdaprática devocional evangélica do século 20, bem como da atual tendência derestauração de formas de oração medievais. Nenhum leitor deste livro sesurpreenderá, a essa altura, ao me ouvir dizer que, a meu ver, poderíamosaprendermaiscomaspráticasdeoraçãodos teólogosprotestantesdos séculos16,17e18.Olhandoparatrás,paraessesautores,comofizportodoestelivro,detectováriasmudançasimportantesaseremimplementadas.Creioqueaoraçãodeveriasermaisfrequentedoqueaclássicapráticadahora

silenciosa uma vez ao dia. Como vimos, Lutero acreditava que se devia orarduas vezes ao dia, enquanto Calvino aconselhava que a oração fosse breve eaindamaisfrequente.Pensandoemumdiainteiro,parecehaverunanimidadeemtodososramosdopassadocristãodequedeveríamosvoltarnossospensamentosa Deus emmomentos determinados e mais do que uma vez ao longo de umperíodode24horas.Concordocomamaioriadasigrejasprotestantesqueduasvezes ao dia é bom, embora não possamos insistir demais num cronogramaúnico.Pessoalmente,consideroqueasoraçõesdamanhãedocomeçodanoitefuncionammelhornomeucaso,mas tambémtentoàsvezespraticar,aomeio-dia, um curto período, “em pé”, de oração focada parame reconectar com osinsightsdaoraçãodamanhã.Creioqueaoraçãodiáriadeveriasermaisbíblica,istoé,maisfundamentada

naleituraenoestudobíblicossistemáticos,bemcomonameditaçãodisciplinadasobreaspassagens.Jáexpusminhasrazõesparaessaconvicçãoemdetalhesportodo este livro. O plano anual de leitura da Bíblia proposto por Cranmer nãoconstamaisdosLivrosdeOraçãoComummaisusadosmundoafora,maspodeser encontrado em reimpressões das obras de 1549 e 1552. O calendário deleitura da Bíblia deM’Cheyne, facilmente encontrado em vários formatos nainternet e em outros lugares, conduz o leitor pela Bíblia em diversos ritmos,dependendodoseutempodisponívelparadedicaràatividade.Emtodocaso,aleiturasistemáticaesequencialdaBíbliadeveprecederouacompanharaoração.

A oração diária individual, em privado, deve sermais interligada à oraçãocoletivadaigreja.Calvinoqueriaqueoscristãosaprendessemaoraçãoprivadapor meio das orações públicas e do cântico conjunto dos salmos comoadoração.18Luteroescreveuqueoravaduasvezesaodia,apressando-separaoquarto “ou, sendo a hora e o dia apropriados, rumo à igreja, onde há umacongregação reunida”.19 Isso mostra como era importante para os grandesmestres da igreja que nossa vida de oração não acontecesse só emprivado.ÉcertoenecessárioaprendermosaorarnãoapenasapartirdaleituradosSalmosedorestantedaBíblia,mastambémescutandoelendoasoraçõesdaigreja.Hoje,muitas igrejas, em especial as que adotam o chamado louvor contemporâneo,quasenãooferecemaoscongregantesajudaalgumacomaoraçãonessesentido.Asúnicasoraçõesqueelesouvemsãoexpressões“espontâneas”doslíderesdelouvor, ou a oração do pregador ao término do sermão.Orações testadas pelotempoepensadascomgrandecuidadonãosãoapresentadascomoacontecianopassado. Assim, muitos cristãos de hoje têm de procurá-las, e é aqui que asincomparáveis“compilações”deCranmer,bemcomooutrosrecursos,comoasobrasThedivinehours[Horasdivinas],dePhyllisTickle,ouThevalleyofvision[Ovaledavisão],deArthurBennett,podemserúteis.20

Porfim,aoraçãodiáriadeveincluirameditação,nãosóoestudodaBíblia,eno geral devemos nutrir muito mais expectativas de experiência em sentidoamplo.Devemosesperarmaisluta,queixase“escuridãodaalma”,mastambémmaisreverência, intimidadeeexperiênciadarealidadeespiritualdeDeus.JohnOwen é bastante claro ao afirmar que, se os afetos do coração não estiveremenvolvidosnaoração,averdadeiratransformaçãodecarátereocrescimentoemsemelhança com Cristo são impossíveis. E não podemos nos contentar commenos.

Umpadrãoparaaoraçãodiária

Portanto, a questãomais prática de todas é: “Como gastar tempo de fato emoração?”. Um livro de grande ajuda, My path of prayer [Meu caminho deoração], contémuma série de ensaios bem curtos, de autoria de vários líderes

cristãos,emquemuitosdeles relatamoprópriopadrãodeoraçãodiária.21Umdoscolaboradores,SelwynHughes,fezaseguintedescriçãodaprópriavidadeoração:depoisdeselevantarpelamanhã,elecostumavaorarassimquepossível.LiaumapassagemdasEscriturasemeditavasobreela,incluindoumsalmo,sehouvesse tempo.Emseguidaseparavaummomentopara“aquietaramente”elembrar-setantodapresençadeDeusquantodoprivilégioedopoderdaoração.Issofeito,punha-seaorar,começandopelaadoração,olouvoreaaçãodegraçasa Deus. Depois disso, escreve, passava para “a oração em favor da minhacondição espiritual pessoal”, com isso estava se referindo ao autoexame, àconfissãoeaoarrependimento.Faziaentãooquetemoschamadodeoraçãodepetição por si próprio, pelos conhecidos, pela igreja e pelo mundo. No final,contaele,terminavaaquietandooutravezamenteeocoraçãoparasecertificarde que ouvira o que Deus queria que ele aprendesse com esse tempo demeditaçãoeoração.22

O relato impressiona pelo fato de não sermuito original. Surpreende por seassemelhar muito às descrições de oração diária que, pelo que vimos, foramfeitasporváriosmestres,incluindoMartinhoLutero.Porconseguinte,achoquepodemos traçar um padrão de oração diária com certa confiança de que eleserviráamuitaspessoas,sempre lembrandoquenemosdetalhesnemaordemque ofereço estão gravados em pedra ou na Bíblia, ou pertencem a algumatradição religiosa em particular. Sugiro esta estrutura— evocação,meditação,oraraPalavra,oraçãolivreecontemplação.Evocação. Evocar significa “trazer àmente”, embora também possa incluir

invocação,oclamoraDeus.Existeumentendimentopraticamenteuniversaldequeaoraçãodevaseriniciadapela“reflexãosobreaqueleaquemvocêestarásedirigindo, sobreoqueele fezpara lhedaracessoa simesmo [...] sobrecomomanterarelaçãocomele[...][e]sobreofatoverdadeiramenteimpressionantedeque, por intermédio de sua Palavra e Espírito, o senhor Jesus está edificandouma amizade com você”.23 Um dos modos de fazer isso é recapitulandomentalmente a teologia trinitária da oração. Deus agora é seu Pai e estácomprometidocomoseubem.Jesuslheconcedeacessoaotronouniversalporser seu mediador, advogado e sacerdote. O Espírito Santo é o próprio Deus

dentrodevocê,constrangendo-oeajudando-oaorardemodoapodersaberque,sevocêestáorando,Deusoestáouvindo.Pondere brevemente nos versículos que lhe falam ao coração acerca dessas

verdades,muitosdosquaisjáforamdiscutidosnestelivro.OuvocêpodelerumdossalmostradicionaisutilizadosnaadoraçãoparaentrarnapresençadeDeus,comoosalmo95.Outrométodoéescolherumadasoraçõesdaigrejajátestadaspelo tempo, como as da coletânea de Thomas Cranmer, para usar como umaespéciedeinvocaçãoeassiminiciarseuperíododeoração.24Levenãomaisdoquealgunsminutosparaoqueestamoschamandodeevocação.Meditação. Para responder a Deus em oração, devemos ouvir sua Palavra.

IssoimplicareservartempoparameditarsobrealgumapassagemdaBíbliacomouma ponte para a oração. Essa não é uma prática que normalmente enriquecenossavidadeoraçãodanoiteparaodia.QuantomaisvocêtiverlidoeentendidoaBíblianodecorrerdosanos,muitomaisfácilsetornarámeditarapósaleiturabíblica.Oestudobíblicosériodeveserfeitoafimdefomentarocrescimentodocristão,maséumerropassaramaiorpartedo tempodiáriocomDeusemumminuciosoestudo interpretativodaBíblia. Isso lhedeixapouco tempoe talveznenhumapropensãoparameditareorar.Para quem está se iniciando na vida cristã, portanto, seria melhor reservar

algumperíodoregular—foraoperíododeoraçãodiária—paraumestudosériodaBíblia.Dessemodoelapoucoapoucosetornarámenosumamisturaconfusadeideias,emaisumaleiturafácileútilcomobaseparaameditaçãodiária.Ummodo de praticar esse tipo de estudo sério é ler a Bíblia inteira uma vez,lentamente,talvezumcapítulopordia,percorrendo-atodaemtrêsanosmaisoumenoseusandoumbomcomentáriosucinto,deumvolume,comooNewBiblecommentary, para fazer isso, tomando notas em um diário à medida que foravançando.25 Enquanto se dedica a esse estudo, você pode marcar algunscapítulos para desenvolvermelhor a reflexão. Então, na oração diária, poderávoltaraessescapítulosparafazerumaleiturareflexivaemeditaçãonosmoldesquetemosdiscutidoaqui.Aordemconcretadesuadevoçãodiáriaseria,então,mais ou menos assim: primeiro a evocação, depois a leitura bíblica e ameditação,eemseguidaaoração.

OrandoaPalavra. DeMartinho Lutero extraímos um passo importante naoração diária, com frequência negligenciado. Depois de meditar sobre asEscrituras,Lutero reservavaum tempopara “orar o texto” antesdeprosseguirparaumaoraçãomaislivre.Ameditação,comotemosdito,nãoéaoraçãoemsi.Ela é uma forma de reflexão e concentração.Quando o salmista diz “Volta-teparaDeus,óminhaalma”,estásereferindoaessetipodeinclinaçãodocoraçãoque é a meditação. Contudo, se você usar a abordagem de Lutero para ameditação—descobriralgumacoisanotextoquesirvacomobaseparaolouvor,oarrependimentoeaaspiração—ameditaçãoemsipoderáserimediatamenteconvertidaemoração.Ossalmos também têmuma forma talque lhespermiteserem convertidos com relativa facilidade em orações, e de retornarem paraDeusnaformadeoração.“Orarossalmos”éummodoimportanteetradicionaldeoraraPalavra(vejaaseguirmaisalgumasideiasaesserespeito).Omodopredileto deLutero para orar um texto dasEscrituras já foi tratado

nesta obra. Ele aconselha à pessoa que ora que parafreseie cada petição daOraçãodoSenhorcomasprópriaspalavras,incluindoaspreocupaçõesquelhevão no coração naquele dia. Creio que essa talvez seja a melhor maneira deestabelecerumaponteentrePalavraeoração,porque,claro,aOraçãodoSenhoréomodeloabrangentedopróprioJesus.Aconselhoqueseadoteessapráticaaomenos umavez por semana comoparte desse passo em seu padrão de oraçãodiária.Oração livre. Nesse momento simplesmente derramamos o coração em

oração.Noentanto,quasetodososguiasdeoraçãomaissériosnoslembramdanecessidadedeequilibrarnossasoraçõesentreastrêsformas—adoraçãoeaçãodegraças,confissãoearrependimento,petiçãoeintercessão.Esseequilíbrionãoprecisaserrígido,emborapossaserumaboadisciplinacriarohábitoderepassá-lasemumaordemquefuncionebemparavocê.Aqui tambéméondeas listascommotivosepreocupaçõesdeoraçãopodemajudar,desdeque tenhamosemmenteaadvertênciadeJ.I.Packerdequeaoraçãodepetiçãosóépoderosaetransformavidassenãorepassarmosapressadosuma“listadesupermercado”depedidos, mas sim elevarmos cada causa a Deus com motivação teológica eautoexame.

Acimadetudo,paraosiniciantespodesermuitoútilusarumaobraantigadeMatthewHenry,Amethod forprayer,withScripture expressions, proper tobeused under each head [Um método de oração com expressões da Escrituraapropriadas para ser usadas sob cada título].26 Como já observamos, HenryextraidasEscriturascentenasdeoraçõeseentãoasorganizaeclassificadebaixode subtítulos dos títulosmais abrangentes: louvor, confissão, petição, ação degraças, intercessão e conclusão. Se achar que seus períodos de oração livreestagnaram, o livro deHenry o suprirá comuma quantidade quase infinita dematerialútil.Contemplação.Jágastamosmuitotempofalandosobreoquequeremosenão

queremosdizerporcontemplação.EdwardsdescreveuacontemplaçãocomoosmomentosemquenãosósabemosqueDeusésanto,mastambémsentimos—“vemos”e“experimentamos”—queeleassimoéemnossocoração.Luteroadescreveu como um tempo em que ele sentia estar se “perdendo” em algumaspecto da verdade ou do caráter de Deus. No original alemão, ele dizliteralmente que às vezes, quando estava envolvido em sua prática de oração,sentia que “seus pensamentos saíam para fazer um passeio”. Os pensamentossobreDeussetornavam“grandes”eimpactantes.EntãoelefaziaumapausaesepermitiaumtempoparaseguiraconduçãodoEspírito.Eleescreveu:Comfrequênciaacontecedeeumeperder[...]emumapetiçãodaOraçãodoSenhor, e então abromão de todas as outras seis.Quando tais pensamentosricosebons sobrevêm,apessoadeve [...]dar-lhesouvidosemsilêncioedemodoalgumreprimi-los.PoisopróprioEspíritoSantoestápregandoaqui,euma palavra do seu sermão é melhor do que milhares de nossas própriasorações. [...] [Assim,] se o Espírito Santo vier e começar a pregar ao seucoração,dando-lhepensamentosricoseiluminados[...]aquiete-seeouça-o.27

Como vimos ao estudar os ensinamentos de JohnOwen sobre ameditação,

não devemos presumir que, depois de seguir certos passos, necessariamenteencontraremos nosso coração e afetos envolvidos, e o Espírito Santo abrindonosso pensamento de novas maneiras, como Lutero descreve. Essa não é a

normaparaamaioriadaspessoasnamaiorpartedasvezes.Podemoscomeçareterminarnossotempodeoraçãocomumsensodearidezespiritualoumesmodaausência do Senhor. Nesse caso, esse momento final da “contemplação”significariacaptaromelhorpensamentoquerecebemossobreDeus,entãolouvá-lo e agradecê-lo por ele e por quem ele é, e, por fim, pedir-lhe com todasinceridadequeseaproximeenosmostresuafacenoseudevidotempo.Seguemagoradoisplanosdeoraçãodiária:um,maiscompletoedesafiador;

outro,maissimplesparaquemestácomeçando.Nãosedeixeintimidarporeles.Siga os passos do esquema — abordagem (evocação), meditação, orando aPalavra, oração livre, contemplação — sem a obrigação de realizar todas aspropostas específicas nem de responder todas as perguntas correspondentes acadaparte.Aoraçãosedesenvolveráeoenvolverá.

1Alan Jacobs, The “Book of common prayer”: a biography (Princeton:PrincetonUniversityPress,2013),p.24.Jacobsbaseia-seemEamonDuffy,Thestripping of the altars: traditional religion in England c. 1400-c. 1580 (NewHaven:YaleUniversityPress,1992).

2EdgarC.S.Gloucester,org.,ThefirstandsecondprayerbooksofEdwardVI(WildsidePress,reimpr.daediçãode1910),p.3.

3Ibidem,p.8.4Jacobs,The“Bookofcommonprayer”,p.24-7.5TraduçõesparaoinglêspodemserencontradasemEnsieAnneMcKee,John

Calvin:writingsonpastoralpiety(Mahwah:PaulistPress,2001),p.210-7.6McNeill,Calvin: Institutes, 3.20.50., p. 917-8.Calvino acrescenta, contudo,

queashorasoficiaisdaoraçãodiárianãodeveriamsetornar“umaobservânciasupersticiosa [...] como de quem salda uma dívida com Deus” [edições emportuguês: JoãoCalvino,As institutas, tradução deWaldyrCarvalhoLuz (SãoPaulo:CulturaCristã,2006),4vols.,eAinstituiçãodareligiãocristã, traduçãodeCarlosEduardoOliveira;JoséCarlosEstêvão(SãoPaulo:Ed.Unesp,2008)].

7Existem diversas versões on-line do calendário. Vejahttp://www.mcheyne.info/calendar.pdf.

8VejaemMatthewM.Boulton,LifeinGod:JohnCalvin,practicalformation,and the future of Protestant theology (Grand Rapids: Eerdmans, 2011) umaextensadiscussãodequeaspráticasformativascristãsdeCalvinorepresentaramumaespéciede“monasticismoleigo”.Issoédeparticularinteresseàluzdoquehoje é chamado de novo monasticismo ou monasticismo leigo. O idealmonásticooriginaldefendiaummododetrabalhoevidadiárioscompletamenteenquadradosnaspráticascristãsdaoração,daleituraedainstruçãobíblicas,docântico e da recitação de salmos e da adoração coletiva. Isso costumavasignificarinterromperalidacotidianatodososdiasparaobservânciadehoráriosfixos tanto para a oração privada quanto para a adoração comunitária. Osmongestambémsesujeitavamàprestaçãodecontasmuitorígidadesuasvidasunsaosoutros,bemcomoapadrõesdevidamodestoseaumcompromissodeserviraopróximo.Onovomonasticismotemcrescidoemgrandepartegraçasaevangélicos insatisfeitos com a vida e a prática da igreja atual. Visa criar umnovomonasticismoleigo,nãoexigindoqueosmembrosdeixemotrabalhoouavida secular, ou que vivam literalmente debaixo do mesmo teto, mas, aindaassim,chamando-osaviveremestreitaproximidadegeográfica,tendoemvistaaprestaçãodecontasunsaosoutros,apreocupaçãocomosmarginalizadoseaspráticasdatradiçãocontemplativaqueincluemaoraçãolitúrgicadiáriacomum

emhoráriosfixos.Umadasprincipaisrazõesdadasparaomovimentoéamortedacristandade.Àmedidaquenossaculturasetornamaispós-cristã,oscrentesnecessitam estar mais imersos em práticas cristãs comunitárias a fim de nãoassimilar demais os valores da cultura circundante. Veja Jonathan Wilson-Hartgrove,New monasticism: what it has to say to today’s church (Brazos,2008),eRobMoll,“Thenewmonasticism”,ChristianityToday,April24,2008.Os promotores do novo monasticismo leigo quase sempre recorrem a fonteshistóricas católicas ou anabatistas, e isso, até certo ponto, acontece porque osprotestantes anabatistas têm atuado há séculos comominorias sob combate, epelo ideal monástico original haver sido herdado do catolicismo. Mas édiscutível que Calvino tenha proposto o primeiro esforço sério de adotar ummonasticismoleigo.SeuprogramaeramuitomaisextensodoqueodeLutero.Como explicaBoulton,Calvino estava preocupado em“reformar”uma cidadeinteira,nomeiodaEuropacatólicamedieval,segundooscontornosdoqueeleconsideravaafécristãbíblica.Portanto,eleoferecemuitosrecursosparaquembusca desenvolver uma comunidade cristã espiritualmente formativa hoje noocidente pós-moderno. Veja também Scott Manetsch, Calvin’s company ofpastors(NewYork:OxfordUniversityPress,2012).

9Quiet time: an InterVarsity guidebook for daily devotions (DownersGrove:InterVarsityPress, 1945).Emboraos autores sejamapresentados comoEquipeda InterVarsity, o livro foi compilado dos escritos de muitos missionáriosevangélicos de longa data, incluindo o bispo Frank Houghton, W. GrahamScroggie, Paget Wilkes e a sra. Harry Strachan. C. Stacey Woods, fundadoraustraliano-canadense da InterVarsity dos Estados Unidos, editou o livrobritânicoparalivrá-lodos“anglicismos”epublicou-onosEstadosUnidos.VejaA.DonaldMacLeod,C. StaceyWoods and theEvangelical rediscovery of theuniversity(DownersGrove:InterVarsity,2007),p.107.

10Cf.: um dosmelhores foiAppointment with God: a practical approach todevelopingapersonalrelationshipwithGod(TheNavigators,1973).

11Quiettime,ediçãorevista,1976(InterVarsityPress),p.21.12Ibidem, p. 15-6.Mais adiante no livreto, um esboço diferente de oração é

apresentado— ação de graças, louvor e adoração usando os nomes deDeus,confissão, intercessão por outros e entrega do novo dia a Deus (p. 21). Issoreflete o fato deque embora seja bastante curto, o livro é uma compilaçãodereflexõessobredevoçõesdiáriasdeseteautoresdiferentes.

13AppointmentwithGod,p.16.

14PhyllisTickle,Thedivinehours,prayersforspringtime:amanualforprayer(Image,2006);Thedivinehours,prayersforsummertime:amanualforprayer(Image,2006);Thedivinehours,prayersforautumnandwintertime:amanualforprayer(Image,2006).

15VejaJohnBunyan,Prayer(Carlisle:BannerofTruth,1965).16Owen,Works,vol.4,p.348.17VejaocapítulointeirodeOwen“Prescribedformsofprayerexamined”,in:

Works,vol.4,p.338-51.18Horton,CalvinontheChristianlife,p.154.19Luther,“Asimplewaytopray”,p.193[ediçãoemportuguês:Lutero,Como

orar(SãoLeopoldo/PortoAlegre:Sinodal/Concórdia,1999).20ArthurG.Bennett,Thevalleyofvision:acollectionofPuritanprayersand

devotions(Carlisle:BannerofTruth,1975).21DavidHanes,org.,Mypathofprayer(Wales:CrosswayUKBooks,1991).22Ibidem,p.57-65.23Packer;Nystrom,Praying:findingourway,p.286.24VejaBarbee;Zahl,CollectsofThomasCranmer.Aobraoferecenãosóum

ano(52semanas)deoraçõesdeCranmer,mastambémumabreveexplanaçãoemeditação sobre cada uma delas. Isso torna o livro extremamente útil para omomentoinicialdaoraçãodiáriade“evocação/invocação”.

25D. A. Carson et. al., eds., New Bible commentary, 21st century edition(DownersGrove: InterVarsity Press, 1994) [edição em português:ComentáriobíblicoVidaNova(SãoPaulo:VidaNova,2009)].

26Henry,Amethodforprayer.Vejatambémumaediçãomenosextensa:Henry,Awaytopray.Oresponsávelpelaprimeiraedição,LigonDuncon,descreveemlinhas gerais o livro inteiro emumapêndice.Sóo apêndice já oferece grandequantidade de ideias específicas sobre como adorar, confessar, agradecer,suplicar e interceder a Deus. Para usar o livro em oração, você só precisapersonalizaroscabeçalhoseorarcomasprópriaspalavrasecombaseemsuasnecessidadesespecíficas.

27Extraídode“Asimplewaytopray”,deLutero,citadoemPacker;Nystrom,Praying: finding our way, p. 288. Packer aqui cita com base na tradução deWalterTrobisch,emseulivreteeclássicoMartinLuther’squiettime.

UMPADRÃOPARAAORAÇÃODIÁRIA

Oraçãodamanhã(25minutos)

APROXIMANDO-SEDEDEUS

PeçaapresençaeaajudadeDeusenquantoestiver lendoeorando.Escolhauma das seguintes invocações bíblicas: Salmos 16.8; 27.4,9,10; 40.16-19;63.1-3; 84.5-7; 103.1,2; 139.7-10; Isaías57.15;Mateus11.28-30; João4.23;Efésios1.17-19;3.16-20.

LEITURABÍBLICAEMEDITAÇÃO

(Tenhaemmentequeninguémécapazdefazertudooquevemaseguiremumasósessãodemeditaçãoeoração.)

Para estudar a passagem leia-a três ou quatro vezes. Em seguida, faça umalista de tudo o que ela diz acerca de Deus (Pai, Filho e Espírito Santo);relacione qualquer coisa que ela revele sobre você mesmo; por fim, listeexemplos a serem seguidos, ordens a serem obedecidas (ou coisas queprecisamserevitadas)epromessasareivindicar.Quandotudoissotiversidofeito,escolhaoversículoeaverdademaistocanteseúteisavocê.Parafraseieaideiaouoversículocomasprópriaspalavras.

Parameditarnapassagem,escrevarespostasparaasperguntasabaixo:O que esse texto me mostra sobre Deus e que me levaria a louvá-lo eagradecê-lo?

Oqueotextomemostrasobremeupecadoqueeudeveriaconfessaredequedeveriame arrepender?Que falsas atitudes, comportamento, emoções ouídolosganhamvidaemmimsemprequemeesqueçodessaverdade?

O que o texto me mostra sobre alguma necessidade que tenho? O quenecessito fazeroume tornarà luzdisso?ComodevosuplicaraDeusporisso?

ComoJesusCristo,ouagraçaqueencontronele,écrucialparameajudaravenceropecadoqueconfesseiouatenderàminhanecessidade?

Porfim,seeu levasse issoasério,seessaverdadefosseplenamentevivaeefetiva emmeu ser interior, comomudariaminha vida? E por queDeuspode estarmemostrando isso agora?O que está acontecendo emminhavidaparaelechamarminhaatençãoparaessefatohoje?

ORAÇÃO

Orearespeitodecadaumadasmeditações—adoração,confissão,petiçãoeaçãodegraçasporJesusesuasalvação.

Oreporsuasnecessidadesepreocupaçõesurgentes.Reserveumtempofinalsóparadesfrutardeleedasuapresença.

Oraçãodanoite(15minutos)

APROXIMANDO-SEDEDEUS

Peçaapresençaeaajudadeleàmedidaquelereorar.

LEITURABÍBLICAEMEDITAÇÃO

Leiaumsalmo,atérepassartodooSaltérioduasvezesporano.

ORAÇÃO

TransformeosalmoemumaoraçãoparaDeus.Reflitasobreseudiaeconfesseomomento(ousituação)emquevocêpecououdeixoudereagircomodeveria.

Reflitasobreseudiaeorepelaspessoasqueencontrououdequeouviufalarquepassampornecessidadesouestãoemdificuldade.

Ore por algumas das necessidades mais urgentes e importantes em seucoração.

Umplanodeoraçãodiáriaparainiciantes(15minutos)

APROXIMAÇÃO

Pense no privilégio da oração. Conscientize-se de que Deus está presente.Peça-lhequeoajudeemsuaoração.

MEDITAÇÃO

Leia uma passagem das Escrituras. Identifique uma ou duas verdades quevocê aprende comela.Escolha aque lhe causamais impacto e traduza-aem uma frase. Agora pergunte: como essa verdade me ajuda a louvar aDeus? Como me mostra um pecado a confessar? Como me mostra umpedidoafazeraDeus?

ORANDOAPALAVRAAgora transforme as respostas para as três perguntas anteriores em umaoração—compostadeadoração,petiçãoesúplica.

ORAÇÃOLIVRE

Ore sobre quaisquer necessidades que estejam em seu coração. Passe umtempo também agradecendo a Deus as maneiras pelas quais o vêtrabalhandoemsuavidaecuidandodevocê.

CONTEMPLAÇÃO

Reserve um momento para agradecer e admirar a Deus pelo que ele lherevelouhoje.Terminecomumanotadelouvor.

Orandoossalmos

Desde os primeiros tempos, a igreja cristã adotou os salmos do AntigoTestamento como livro de oração. Uma carta famosa de Atanásio, grandeteólogoafricanodoséculo4,dirigidaaMarcelinodeixaissoclaro.Eleescreveu:“Qualquerquesejasuanecessidadeouproblemaparticular,desseprópriolivro[Salmos]vocêconsegueselecionarumconjuntodepalavrasqueseenquadreaocaso,demodoquevocê [...]aprendea remediarseumal”.Atanásioprossegue

argumentando que os salmos nos mostram como louvar a Deus, como nosarrependermos dos pecados e sermos gratos, e em cada caso nos dá “palavrasadequadas”parafazê-lo.Porfim,conclui:“Sobtodasascircunstânciasdavida,descobriremos que esses cânticos divinos nos convêm e irão ao encontro danecessidadedanossaalma todavez”.1Nãoexiste situaçãoouemoçãoqueumser humano possa experimentar que não encontre reflexo em algum lugar deSalmos. Mergulhar nos salmos e convertê-los em oração é ensinar ao nossocoração a “linguagem” da oração e propiciar a nós mesmos a instrução maispedagógicasobrecomoorardeacordocomocarátereavontadedeDeus.O que significa orar os salmos ou transformá-los em oração? Há inúmeras

maneiras de fazer isso, mas aqui estão alguns métodos que têm se mostradoproveitososparamuitos.2Umdelesfoidenominadodeoraçãoliteral.MuitosdossalmosjásãoescritoscomooraçõesdirigidaspeloautoraDeus,razãopelaqualpodemos simplesmente “orar as palavras como já se encontram dispostas”. Osalmo 90 funciona bempor essemétodo: “Senhor, tu tens sido nosso refúgio.[...]Antesqueasmontanhasnascessemouque formassesomundo inteiro,deeternidadeaeternidade,tuésDeus”.3

Osegundométodo,talvezomaiscomumdetodos,consisteemparafrasearepersonalizar os salmos. O exemplo dado por Lutero, de como parafrasear eelaborarcombasenaspetiçõescontidasnaOraçãodoSenhor,enquadra-sebemaqui.Aoparafrasearmososalmo59,quecomeça“Livra-medosmeusinimigos,óDeus”,podeserquenão tenhamosnenhumoponentehumanodeterminadoanosmatarouadestruirnossavida.Todavia,oNovoTestamentodescrevenossosinimigos: “o mundo, a carne e o Diabo” (1Jo 2.16; Ap 12.9). Você podeparafrasearosalmodemodoafalardas tentaçõesquevemenfrentando,oudeoutrasarmadilhasespirituaisemqueseriafácilcair.4

Um terceiro método básico de oração dos salmos às vezes é chamado deoraçãoresponsiva.5Muitossalmossãolongosouconsistemmaisemensinodoque em oração, portanto, não têm forma de oração. Segundo esse método,pegamostemasedeclaraçõesedeixamosqueestimulemaadoração,aconfissãoeasúplica.EssaformadeoraçãousabasicamenteotipodemeditaçãobíblicadeLuteroaplicadoaossalmos.Nãodevemosserrígidosacercadenenhumdesses

métodos.Muitossalmosseprestammaisparaummétododoqueparaoutro.Noentanto, comopassardo tempo, apessoaqueosutiliza emsuasoraçõesnempensamais nométodoque está usando.Vocêpodepassar deummétodoparaoutrooucriarmétodoshíbridostambém.Vamos, como exemplo, selecionar cinco versículos do salmo 116 (v. 1,2,

7,17,18):AmooSENHOR,poiseleouviuminhavoz;ouviumeuclamorpormisericórdia.Porqueinclinouoouvidoparamim,euoinvocareienquantoviver[v.1,2].Retornaaoteudescanso,almaminha,poisoSENHORtemsidobomcontigo[v.7].OferecereisacrifíciosdeaçãodegraçasatieinvocareionomedoSENHOR.CumprireimeusvotosaoSENHORnapresençadetodooseupovo[v.17,18].Podemosorarosmesmosversículosdoseguintemodo:Versículos 1,2: “Eu o amo, Senhor, pois quando pedi misericórdia, tu aconcedeste.Tensfeitoissovezesemaisvezes.Eporessemotivo,Senhor,jamaisdeixareidedependerdeti—jamais.Nãohálugaralgumaqueeupossair,lugaralgumaqueeudevesseir”.(Oraçãoemparáfrase.)

Versículo7:“Ó,Senhor,meucoraçãonãodescansaemtuabondade,nuncaseconsolacomaprofundidadequedeveriana tuagraça.É inquietodemais.Ajuda-mea teconhecer—que tuabondadeseja tãorealaomeucoraçãoqueelepermaneçaemabsolutosossego”.(Oraçãoresponsiva.)

Versículos17,18:“Oferecereiumsacrifíciodeaçãodegraçasatieclamareino nome do Senhor. Levarei uma vida coerente commeu batismo, comminhacondiçãodemembrode tua igreja.Não farei isso sozinho,masnacomunhãodoteupovo”.(Oraçãoliteral,levementeparafraseada.)

Grandeparte da doçura e da beleza dos salmos está emcomoeles apontam

paraoMessiasporvir—JesusCristo.Opoderdelesparanossavidadeoraçãopode ser liberado se aprendermos a orá-los tendo Jesus emmente.Mas comofazerisso?Paracomeçar,devemosnoslembrardeque,defato,opróprioJesusdeveter

entoado e orado os salmos ao longo de sua vida inteira. Ao considerardeterminadosalmo,imagineoqueeleteriapensadosobreessesalmo,sabendoquemeleeraeoqueveiofazer.Quandodeparamoscomum“lamento”,emgeralpensamos nele da perspectiva do sofrimento ou sentimentos que estamosenfrentando. Lembre-se, contudo, do que Jesus sofreu.Ao procurar um salmoembuscaderefúgio,lembre-sedequenós“nosrefugiamos”emJesusequeelenosperdoaepurificadosnossospecados,quesãooperigomaisrealparanós.6

Porfim,diversossalmosdeevidentecarátermessiâniconosoferecemvisõesparticularmente ricas de Cristo. Dentre eles estão os seguintes: o Messiasentronizado (Sl 2,110), o Messias rejeitado (Sl 118), o Messias traído (Sl69,109),oMessiasmoribundoe ressurreto (Sl22,16),onoivocelestialdoseupovo(Sl45)eoMessiastriunfante(Sl68,72).7SãooportunidadesdeconsideraragrandiosidadeeabelezadeJesus,deadorá-loedescansarnele.

Emquepontovocêestá?

Costumopediraoscristãosqueavaliemsuasituaçãoemrelaçãoàoraçãousandoumametáfora. Imagine que sua alma é um barco, um barco que tem remos evela.Nessecaso,aquivãoquatroperguntas:Você está “velejando”? Velejar significa viver a vida cristã com o vento

soprandonascostas.Deusérealparaoseucoração.Vocêsenteseuamorcomfrequência.Vêoraçõessendorespondidas.AoestudaraBíblia,encontracoisasextraordinárias com regularidade e consegue sentir que ele lhe fala. Vocêpercebe as pessoas ao seu redor sendo influenciadas pelo Espírito por seuintermédio.

Você está “remando”? Remar significa que orar e ler a Bíblia lhe dá aimpressão de ser mais um dever do que um deleite. Deus com frequência(embora não sempre) parece distante, e a sensação da sua presença é bastanterara.Vocênãovêmuitasdesuasoraçõessendorespondidas.Podeserqueestejalutando com dúvidas acerca deDeus e de simesmo. Todavia, apesar de tudoisso,vocêrejeitaaautopiedadeouoorgulhopretensiosodepresumirquesabemelhordoqueDeuscomosuavidadeveriaser.VocêcontinuaaleraBíbliaeaorar com regularidade, frequenta os cultos de adoração e estende amão paraserviràspessoas,apesardasecuraespiritualinterior.Vocêestá“àderiva”?Ficaràderivasignificaexperimentartodasascondições

de quem está remando — secura espiritual e dificuldades na vida. Mas suareação,emvezderemar,ésedeixarlevar,ficaràderiva.VocênãosentevontadedeseaproximardeDeusoudelheobedecer,portanto,nãooranemlê.Cedeaoegocentrismoque lhevemcomnaturalidadequandosentepenadesimesmoesegue à deriva com comportamento autoindulgente a fim de se consolar, sejapelafugapormeiodacomidaoudosono,sejaporpráticassexuais,sejapeloquefor.Você está “naufragando”? Com o passar do tempo seu barco, sua alma, se

desviará das rotas de navegação— e perderá de verdade qualquer impulso àfrentenavidacristã.Oentorpecimentodocoraçãopodeseconverteremdurezapelo fato de você se entregar a pensamentos de autopiedade e ressentimento.Caso alguma dificuldade ou problemamais grave lhe ocorrer, é bem possívelqueabandoneporcompletoaféeaidentidadedecristão.Nessa metáfora, vemos que existem algumas coisas pelas quais somos

responsáveis, como o uso dos meios de graça — a Bíblia, a oração e aparticipaçãonaigreja—demododisciplinado.Hámuitasoutrasdasquaisnãotemosmuitocontrole—porexemplo,setudocorrerábemcomascircunstânciasdanossavidaecomnossasemoções.Sevocêorar,adorareobedecer,apesardascircunstânciasesentimentosnegativos,nãoficaráàderiva,equandoosventossopraremoutravez,seguiráemfrenteatodavelocidade.Poroutrolado,senãoaplicar os meios de graça, na melhor das hipóteses ficará à deriva e, sesobrevieremtempestadesemsuavida,vocêcorreráoriscodenaufragar.

Ore,qualquerquesejaocaso,hajaoquehouver.Oraréremar,eàsvezesécomoremarnoescuro—vocênãoperceberáseestáfazendoalgumprogresso.Masestá,equandoosventossopraremoutravez,ecomcertezao farão,vocêvelejarádenovoàfrentedeles.

Ograndebanquete

Quem gosta de velejar talvez considere as imagens náuticas bastantesproveitosas.Contudo,hánaBíbliaumametáforamaisfrequenteparadescreveracomunhãocomDeus:ametáforadobanquete.IsaíasaguardavacomansiedadeodiaemqueoSenhorporáfimàmorte,restauraráomundoemergulharáseupovoemseuamor.Eleviaissocomoumgrandebanquete.OSENHORtodo-poderosoprepararáumbanquetedericasiguariasparatodosospovos,umbanquetedevinhoenvelhecido—asmelhorescarneseosmaisfinosvinhos.[...]destruiráomantoquecobretodosospovos,ovéuquecobretodasasnações;tragaráamorteparasempre.OsoberanoSENHORenxugaráaslágrimasdetodososrostos;afastaráadesgraçadoseupovodetodaaterra.AssimdisseoSENHOR(Is25.6-8).Apalavravéu se refereaomantocolocadosobreosmortosnosfunerais.No

fimdostempos,nãosóreceberemosoperdãodeDeus(ele“afastaráadesgraçadoseupovo”),mas tambémseráo fimdo“véu”—de todosofrimento,dorelágrimas.Comer juntos éumadasmetáforasmais comunspara a amizadee acomunhãonaBíblia,demodoqueessavisãoéumaprofeciapoderosadeumacomunhão inimaginável de tão íntima com o Deus vivo. Evoca as alegrias

sensoriaisdepratosexcelentesnapresençadeamigosamorosos.O“vinho”daplenacomunhãocomDeusecomnossosentesqueridosseráumdeleiteinfinitoeeterno.ÉbempossívelqueJesustivesseemmenteessasprofeciasdodiadogrande

banquete quando foi convidado para um casamento emCaná.Ele sabia que ograndebanquetedo fimdos temposseriauma festadecasamento (Ap19.6-9)em que ele tomaria a noiva, seu povo, para si (Ap 21.2-5). Em Caná, aodescobrirqueumerrodeplanejamento significarao fimdovinhonomeiodeumacelebraçãoquedeveriaseestenderdurantedias,eletomouastalhasusadasparapurificaçãoetransformouaáguaemvinho.Assim,aalegriadaocasiãonãodiminuiu, mas aumentou (Jo 2.1-11). Pelo fato de ele mesmo comparar seusangueaovinhonaCeiadoSenhor,vemosqueamortedeJesusnacruzseráabaseparaaalegriadobanquetefinalqueteremoscomeleparasempre.Contudo, esse vinho espiritual, essa comunhão com o Senhor, não reside

inteiramente no futuro.Como vimos, somos convidadosmesmo no presente a“provar e verqueoSENHOR é bom” (Sl 34.8). Podemos “ver” e “provar” seuamor, aomenos emparte, agora (2Co 3.18).No século 18, o grande autor dehinosWilliamCowpersofriasurtosdedepressão,masfoicapazdeescrever:Àsvezesumaluzsurpreendeocristãoquecanta,éoSenhorqueselevanta,comacuraemsuasasas:Quandoasconsolaçõesescasseiam,eledenovoconcedeàalmaumperíododepurobrilho,paraanimá-ladepoisdachuva.Emsantacontemplaçãobuscamosentão,docemente,otemadasalvaçãodivina,eaencontramosnova,sempre.Libertosdapresentedor,alegrementepodemosdizer:deixequeoamanhãdesconhecidotragaconsigooquevier.AcomunhãocomDeuspodeserintermitenteeesporádica,masestádisponível

hoje. Lembre-se que George Herbert chamava a oração de “banquete dasigrejas”.Lembre-se tambémdeDwightMoody, queumdia, quandoorava, só

conseguiu dizer: “Deus se revelou amim, e vivi tamanha experiência do seuamorquepreciseilhepedirpararetersuamão”.8

Porquenoscontentarmoscomáguaquandopodemostervinho?

1Citado em GordonWenham, The Psalter reclaimed: praying and praisingwiththePsalms(Crossway,2013),p.39.

2O que segue foi extraído de T. M. Moore, God’s prayer program:passionatelyusingthePsalmsinprayer(ChristianFocus,2005).

3Ibidem,p.83.4Ibidem,p.88.5Ibidem,p.95.6Muitas pessoas que buscam orar os salmos se descobrem confusas e com

aversãoaossalmos“imprecatórios”:aquelesemqueosalmistaorapedindoairaeocastigodeDeusaseusinimigos,comfrequênciaemtermosviolentos.Umaoraçãoassimaparecenofimdosalmo137,emqueosalmistaesperaquealguémfaçaaosbabilôniosoqueelesfizeramquandosaquearamJerusalém.Eleesperaque tomem os bebês dos guerreiros pelos pés e os matem esmagando-lhes acabeçacontraasrochas(v.8,9).DerekKidner,estudiosodoNovoTestamento,ressaltasabiamentequeoscristãosnãodevemorardomesmomodohoje,àluzda cruz, mas que ainda precisamos ser capazes de compreender tais orações.Sobreosalmo137eleescreve:“Sugerimosquenossa respostaaesses trechosdasEscriturasdeveriasercompostadetrêspartes.Primeiro,[devemos]extrair-lhe a essência, como o próprio Deus fez com os clamores de Jó e Jeremias.Segundo, [devemos] receber o impacto do texto.Essa ferida aberta, imposta anossa frente, proíbe-nos de dar respostas brandas diante da crueldade. Excluiresse testemunho do Antigo Testamento seria enfraquecer-lhe o valor comorevelação, tanto do que existe no homem quanto do que se exigiu que a cruzalcançasseparanossasalvação.Terceiro,nossarespostadeveserreconhecerquenossochamado,desdea cruz, é clamarpela reconciliação,nãopelo juízo. [...]AssimessesalmoocupaseulugarnasEscriturascomoumprotestoinflamado,que ultrapassa qualquer possibilidade de ignorar ou minimizar a questão; umprotestonãosócontraumatoparticulardecrueldade,mascontratodasasvisõesindulgentesdamaldadehumana,sejaemrelaçãoao juízoqueelamerece,sejaemrelaçãoaolegadoquedeixa;enãomenosimportante,emrelaçãoaocusto,para Deus e para o ser humano, de deixar em paz sua hostilidade e agrura”(Derek Kidner, Psalms 73-150: an introduction and commentary [DownersGrove:InterVarsityPress,1975],p.497).

7Paravermuitomaissobreoassunto, leiaEugenePeterson,AnsweringGod;TremperLongman,HowtoreadthePsalms(DownerGrove:InterVarsityPress,1988); e Derek Kidner, Psalms: an introduction and commentary (DownersGrove:InterVarsityPress,1973),2vols.

8Moody,LifeofDwightL.Moody,p.127.

ApêndiceOutrosmodelosdeoraçãodiária

Ofíciodiáriocomtrêshoráriosfixosdeoração

Oraçãodamanhã(35minutos)Oraçãoaolevantardacama(veja“Oraçõesdiárias”,maisadiante)Leiaeoreosalmo95.Ponha em prática a leitura bíblica de Robert Murray M’Cheyne — dois

capítulosdiários.1

Escolhaseusversículosfavoritosemediteneles(métododeMartinhoLutero).ApresentesuasmeditaçõesaDeusemoração.Oraçãolivre:adoração,confissão,súplica.

Oraçãoantesdeiniciarotrabalhoouoestudo(veja“Oraçõesdiárias”,maisadiante)

Oraçãodomeio-dia(5minutos)Leiaeoreosalmo103.ParafraseieeoreaOraçãodoSenhor(métododeLutero).Autoexame:vocêtemsidoarroganteeirritadiçoougraciosoehumilde?Tem

sidofrioeindiferenteouafetuosoegentil?TemestadoansiosoeestressadooutemdependidodeDeus?Temsidocovardeousincero?

Oraçãolivrepelosdesafiosdodiaedomomento.

Oraçãoapósarefeiçãodomeio-dia(veja“Oraçõesdiárias”maisadiante)

Oraçãodanoite(20minutos)Leiaeoredoissalmos,estudando-oscomumcomentário.Confesseesearrependadospecadosdodia.Orepelaspessoasnecessitadascomasquaisvocêseencontrouduranteodia.Oração intercessória em favor da família, dos amigos, dos adversários, dos

vizinhos, de pessoas que você conhece que passam por problemas, fardos eaflições,daigrejaemgeral,desuaigrejaemparticular,dasnecessidadesdesuacidadeecomunidade,dasnecessidadesdomundo.

Oraçãoantesdedormir(veja“Oraçõesdiárias”,maisadiante)

OraçõesdiáriasbaseadasnasoraçõesdeJoãoCalvino2

OraçãoaoacordarMeuDeus,PaieSalvador,assimcomoteagradasteemmeconcederagraçadeatravessaranoiteatéopresentedia,concede-meagoraqueeupossautilizá-lointeiramente a teu serviço, de modo que todas as minhas obras sejam para aglória do teu nome e para a edificação dos meus próximos. Assim como teagradaste em fazer teu sol brilhar sobre a terra para nos aquecer o corpo,concedealuzdoteuEspíritoparailuminarmeuentendimentoecoração.Ecomonãosignificanadacomeçarbemodiaseeunãoperseverar,peçoquecontinuesaaumentartuagraçaemmimatémeconduziresàplenacomunhãocomteuFilho,JesusCristo,nossoSenhor,overdadeiroSoldasnossasalmas,quebrilhadiaenoite, eternamente e sem fim.Ouve-me,Paimisericordioso,pornossoSenhorJesusCristo.Amém.

OraçãoantesdeiniciarotrabalhoouoestudoMeu bom Deus, Pai e Salvador, ajuda-me por teu Espírito Santo a trabalharagoraeadarmuitosfrutosemminhavocação,queveiodeti,afimdeamá-loeàspessoasameuredor,emvezdeviverparameupróprioganhoeglória.Dá-mesabedoria,juízo,prudênciaelibertaçãodosmeuspecadospersistentes.Coloca-me sob a lei da humildade verdadeira. Permita-me aceitar com paciência sejaqual for aquantidadede frutosoudedificuldadesquemedereshoje emmeutrabalho.Eemtudooqueeufizer,ajuda-meadescansarsempreemmeuSenhorJesusCristoenagraçadelesomenteparaminhasalvaçãoevida.Ouve-me,Paimisericordioso,pornossoSenhorJesusCristo.Amém.

Oraçãoapósarefeiçãodomeio-diaÓ Senhor Deus, eu te agradeço por todos os benefícios e as dádivas queconstantementederramassobremim.Obrigadoporsustentaresminhavidafísicapor meio do alimento e do abrigo; por me dares vida nova por meio doevangelhoeacertezadeumavidamelhoreperfeita,queaindaestáporvir.Àluz de todas essas bênçãos, agora te peço que não permitas que meus afetosfiquem emaranhados em desejos desordenados pelas coisas destemundo,masquetumepermitassemprefirmarmeucoraçãonascoisasdoalto,ondeCristo,que é a minha vida, está assentado à tua mão direita. Ouve-me, Paimisericordioso,pornossoSenhorJesusCristo.Amém.

OraçãoantesdedormirÓ Senhor Deus, concede-me agora a graça não só para descansar meu corpoduranteestanoite,masparaterdescansoespiritual,daalmaedaconsciência,emtuagraçaeamor.Queeupossamelivrardetodasaspreocupaçõesterrenasafimde ser consolado e tranquilizadode todososmodos.Eporquenemumdia sepassa sem que eu peque demuitasmaneiras, por favor, cobreminhas ofensascomtuamisericórdia,paraqueeunãofiquesematuapresença.Perdoa-me,Paimisericordioso,porCristo.Equandoeumedeitarparadormiredenovoacordarem segurança por tua graça somente, mantém em mim uma alegre e vivalembrançadeque,hajaoquehouver,umdiaconhecereimeudespertarfinal—a

ressurreição—porqueJesusCristoseentregouàmortepormimeressuscitouparaminhajustificação.EmnomedeJesuseuoro.Amém.

1LendodoiscapítulospordiadoCalendáriodeleiturabíblicadeM’Cheyne—umpelamanhãeoutroànoite—vocêconcluirátodooAntigoTestamentoumavez e o Novo Testamento duas vezes em dois anos. Vejahttp://www.mcheyne.info/calendar.pdf.

2Aqui estão orações adaptadas livremente, compostas por João Calvino eincluídasnoCatecismodeGenebrade1545comointuitodefornecerorientaçãoparaasocasiõesdeoraçãoprivadaqueCalvinoqueriaqueindivíduosefamíliasobservassem. As traduções originais em inglês encontram-se em Elsie A.McKee,org.etrad.,JohnCalvin:writingsonpastoralpiety,p.210-7.

Bibliografiacomentadasobreoração

Esta bibliografia se restringe aos livros que foram de grande apoio tanto àsminhasideiasenquantoescreviaquantopessoalaminhavidadeoração.

Teologiadaoração

CALVIN, John. Institutes of the Christian religion. Edição de John T. McNeil(Louisville:WestminsterJohnKnowPress,1960).vol.2,livro3,capítulo20.

______ [JOÃO CALVINO]. A instituição da religião cristã. Tradução de CarlosEduardoOliveira;JoséCarlosEstêvão(SãoPaulo:Ed.Unesp,2008).2vols.Traduçãode:InstitutesoftheChristianreligion.

______ [JOÃO CALVINO]. As institutas. Tradução de Waldyr Carvalho Luz (SãoPaulo:CulturaCristã, 2006). 4vols.Traduçãode: Institutesof theChristianreligion.Não existe nada que se compare ao tratamento que Calvino deu à oração.PouquíssimasteologiassistemáticasseguiramCalvinoeincluíramumgrandecapítulosobreoassunto.Calvinoétantoteológicoquantopráticoe,comodehábito,bemcompleto. Issoéuma raridade:uma teologiaprofundade tomesaborespiritualmenteelevadosquefazemoleitorsentirvontadedeorar.

CARSON, D. A. A call to spiritual reformation: priorities from Paul and hisprayers(GrandRapids:BakerAcademic,1992).

______ .Umchamadoà reformaespiritual (SãoPaulo:CulturaCristã, 2007).Traduçãode:Acalltospiritualreformation.Aobra não é nemum tratado teológico nemummanual do tipo “faça vocêmesmo”.Todavia,porestudarasoraçõesdePauloesuavidadeoração,olivroestárepletodereflexõesteológicasepráticas.

______,org.Teachustopray:prayerintheBibleandtheworld(Eugene:WipfandStock,2002).Aobramaiscompletadestarelação.Exploraaoraçãosobtodososângulos—bíblico,teológico,antropológico,histórico,psicológicoeprático.Seusensaiostambémretratammúltiplasperspectivasculturais.

CLOWNEY,EdmundP.Christianmeditation[CM](Nutley:CraigPress,1979).Há muito esgotado, mas útil como nenhum outro. Clowney oferece umcomentáriocríticoincisivodameditaçãotranscendental,queseencontravanoauge da popularidade na década de 1970. As ideias básicas do misticismooriental, contudo, estão mais difundida do que nunca e por isso o livrocontinuasendorelevante.Clowneyexpõeumateologiabíblicanãosóparaaoraçãomastambémparaameditaçãocristã.

_______ . “Abiblical theologyofprayer”. In:CARSON,D.A., org.Teachus topray:prayerintheBibleandtheworld(Eugene:WipfandStock,2002).Obranãomuitofácildelernemmuitoprática,masqueprovavelmentetrazaabordagemmais completa domaterial bíblico sobre oração.Veja também olivroPrayer,deGoldsworthy.

DAVIS, John Jefferson. Meditation and communion with God: contemplatingScriptureinanageofdistraction(DownersGrove:InterVarsityPress,2012).Davis expõe uma teologia bíblica dameditação nas Escrituras. Ele faz issorefletindo sobre as implicações de vários temas e doutrinas bíblicosfundamentais.Atingeumequilíbrioraro,sendopositivoacercadaexperiênciaespiritual, mas cauteloso em relação a métodos de meditação das religiõesorientais,bemcomodaortodoxiaedocatolicismoocidentais.Segundoasuavisão, elesnão fazemmuita justiça à autoridadedaPalavra e à liberdadedagraça.

GOLDSWORTHY, Graeme. Prayer and the knowledge of God (Downers Grove:InterVarsityPress,2003).Goldsworthyreúnedadosbíblicossobreoração,primeirodeformatemáticaedepois tópica.Emseguida,volta apercorrerosdadosbíblicose consideraaoraçãoemestágios sucessivosnahistóriada redenção,desdeacriaçãoatéa

Queda, IsraeleavindadeCristo.Esse livrodeveser lidoemconjuntocomTeachustopray,deCarson,eprincipalmentecomocapítulodeClowney,“Abiblicaltheologyofprayer”.

Práticadaoração

EDWARDS,Jonathan.“Personalnarrative”e“Adivineandsupernaturallight”.In:SMITH,JohnE.;STOUT,HarryS.;MINKEMA,KennethP.,orgs.AJonathanEdwardsreader(NewHaven:YaleUniversityPress,2003).Esses dois textos de Edwards são complementares. Um é o relato de suaexperiência espiritual e o outro, uma narrativa bíblico-filosófica de comofuncionaaexperiênciaespiritual.Asduasleiturasemconjuntotêmpotencialparatransformarvidasou,pelomenos,deveriatransformaravidadeoração.

HALLESBY,Ole.Prayer(Minneapolis:AugsburgFortress,1975).Essepequenoclássicoabordaotemadaoraçãopormeiodolevantamentoedasoluçãodeproblemas.Emvezdeesboçarateologiadaoraçãoouexporpassospráticos a serem seguidos na oração, Hallesby adota um caminho pastoral,respondendo a uma série de reclamações e dificuldades das pessoas comrelação à oração. Talvez por esse motivo, a abordagem às vezes pareçateologicamenteraraouespeculativa.Apesardisso,olivrocomoumtodotemoefeitodeassegurar,àquelesquelutam,queJesusestácomelesedeincentivá-losapersistir.

HENRY,Matthew.Amethodforprayer:freedominthefaceofGod.EdiçãodeJ.LigonDuncan(Tain:ChristianFocus,1994).Esse também é um livro singular. Henry extrai das Escrituras centenas deorações e em seguida as organiza e classifica em subseções, debaixo dasseçõesmaisamplasdolouvor,daconfissão,dapetição,daaçãodegraças,daintercessão e da conclusão das nossas orações. O editor, J. Ligon Duncan,resumeolivrointeiroemumapêndice.Elefornecemuitas ideiasespecíficassobrecomoseguiravidaadorando,confessando,agradecendoesuplicandoaDeus.Vocêapenasprecisapersonalizarasseçõescomproblemasecondições

pessoais. Descobri que se pode passar facilmente um dia inteiro em oraçãocomesseguiaeauxílio.

LUTHER,Martin.“Asimplewaytopray”e“Personalprayerbook”. In:WIENCKE,GustavK.,org.Luther’sworks:devotionalwritingsII(Minneapolis:FortressPress,1968).vol.43.

_______ [MARTINHO LUTERO]. Como orar (São Leopoldo/Porto Alegre:Sinodal/Concórdia,1999).Traduçãode:Asimplewaytopray.AobradeLutero,“Asimplewaytopray”,éextremamentepráticaeprofundaaomesmotempo.Deiaessapequenaobraumaatençãosubstancialnestelivro.Valeapenaserlidatodososanos.

OWEN,John.“Adiscourseontheworkof theHolySpirit inprayer”.In:GOOLD,WilliamH.,org.TheworksofJohnOwen (Carlisle:BannerofTruth,1965),4:235-350.

_______ . “On the grace and duty of being spiritually minded”. In: GOOLD,WilliamH.,org.TheworksofJohnOwen (Carlisle:BannerofTruth,1965),7:262-497.

_______ . “Meditations and discourses on the glory of Christ”. In: GOOLD,WilliamH.,org.TheworksofJohnOwen (Carlisle:BannerofTruth,1965),1:274-461.Não era fácil ler Owen nemmesmo em sua época. Hoje, seus escritos sãoaindamais difíceis de digerir.Mas suas obras sobre a experiência espiritualsãoinigualáveis.Elecombinaexaustivareflexãoteológicacomoschamadosmais impactantes para ir além da subscrição doutrinária, até chegar aoconhecimentodeDeuscomtodoocoração.

Oraçõesedevoção

BARBEE,C.Frederick;ZAHL,PaulF.M.ThecollectsofThomasCranmer (GrandRapids:Eerdmans,1999).EssaobraapresentaascoletasdeThomasCranmercomomodelosdeoraçãopública e privada, com breves explicações da teologia de cada oraçãoacompanhadasdeumaobservaçãohistóricasobreodesenvolvimentodecada

uma porCranmer. São de fatomodelos inestimáveis de oração—muitos aconsideraminigualável,comexceçãodaprópriaBíblia,evidentemente.

BENNETT,ArthurG. ed.The valley of vision: a collection ofPuritan prayers&devotions(Carlisle:BannerofTruth,1975).Esse compêndio de oração dos puritanos foi editado e transposto para umalinguagem mais contemporânea. A coleção está sobrevivendo ao teste dotempo.Umarazãoparaissoéqueasoraçõessãomuitodiferentesdasquesãofeitasnamaiorpartedaliteraturadevocionaldehoje.Opecadoélevadomaisasério,demodoqueaglóriaeagraçabrilhammais.

Obraspopularescontemporâneas

PACKER,J.I.;NYSTROM,Carolyn.Praying:findingourwaythroughdutytodelight(DownersGrove:InterVarsityPress,2009).

_______ ; _______ .Oração: do dever ao prazer (São Paulo: Cultura Cristã,2009).Traduçãode:Praying:findingourwaythroughdutytodelight.Abasedo livroéumasériedepalestras.Por isso, àsvezeseleé irregularerepetitivo.Emgeral,porém,éomelhortrabalhopopularsobreoração.Cobretodasasquestõesenosconvida,exortaeincentivadiretamenteaumavidadeoração.

PETERSON, Eugene H. Answering God: the Psalms as tools for prayer (SanFrancisco:Harper&Row,1989).Omelhorlivrosobrecomousarossalmosnaoração.Tambémincluiaolongodocaminhoumateologiabastantesólidasobreoassunto.PetersondesenvolveumtrabalhoexcelenteconectandoaoraçãointimamentecomaBíblia,tantonoaspectoteológicoquantonoprático.

WARD,Timothy.Words of life: Scripture as the living and activeWord ofGod(DownersGrove:InterVarsityPress,2009).EmborasejaumlivrosobreadoutrinadasEscriturasemaltoquenoassuntoda oração,Ward defende a ideia de que a Bíblia é “omeio primordial queDeusnosdeupara encontrá-lo”.Ele argumentanesse sentido, expondouma

visãobastanteelevadadaautoridadeedainerrânciadaBíblia.Asimplicaçõesde sua definição são enormes para a oração. Com essa visão da Palavra deDeus,aoração,combinadacomameditaçãosobreasEscrituras,podeserumverdadeirodiálogoouconversacomDeus.

AOraçãodoSenhor

PACKER, J. I. “Learning to pray: the Lord’s prayer”. In: Growing in Christ(Wheaton:Crossway,2007).p.153-220.Aexposição feitaporPackeracercadaOraçãodoSenhor talvezsejaamaisacessível e concisa disponível. Para algumas abordagens um pouco maislongas,vejatambém:

COEKIN,Richard.OurFather:enjoyingGodinprayer(Nottingham:InterVarsityPress,2012).

LLOYD-JONES, D. Martyn. Studies in the Sermon on the Mount (Grand Rapids:Eerdmans,1984).

______ . Estudos no Sermão do Monte (São José dos Campos: Fiel, 2011).Traduçãode:StudiesintheSermonontheMount.

STOTT, JohnR.W.Themessageof theSermonon theMount (DownersGrove:InterVarsityPress,1985).

______.AmensagemdoSermãodoMonte(SãoPaulo:ABU,1997).Traduçãode:ThemessageoftheSermonontheMount.

WRIGHT,N.T.TheLordandhisprayer(GrandRapids:Eerdmans,1997).

Espiritualidadecontemplativa

Apresenteiamplacríticadatradiçãocristãmística/contemplativa.Noentanto,háoqueaprenderaquiparaaquelesdenósqueseposicionamforadela.

BLOOM,Anthony.Beginningtopray(Mahwah:Paulist,1970).Essa émais uma obra bastante conhecida, um clássico da tradição ortodoxaoriental.

HALL, Thelma. Too deep for words: rediscovering Lectio Divina (Mahwah:Paulist,1988).AobradeHalltalvezsejaaintroduçãoaessataduçãoeolivromaisacessívelsobreela.

VONBALTHASAR,HansUrs.Prayer(Ignatius,1986).Essetalvezsejaolivromaissubstancialarespeitodaespiritualidadecatólicaromana,fornecendoumareflexãoteológicasériaeequilibradasobreaoraçãocontemplativa.