Onde andarà o meu amor?

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Onde Andará o meu Amor? 1 Para Ricardo Soares "Não diria que estava feliz. Não era nada assim tão simples. Eu estava apenas presente, talvez pela primeira vez na minha vida adulta. O momento não era extraordinário. Mas eu tinha o momento, eu o possuía por completo. Ele me habitava. Senti que se morresse logo teria conhecido isso, uma conexão com a minha vida, com seus erros e tortos sucessos" Michael Cunninghan Nos anos 80, urbanóide, intelectualizado, tímido, pop, trazendo no corpo e nos silêncios os ecos de uma abertura política lenta e gradual, não me via no cinema brasileiro, na sua história. Aprendi a gostar de filmes brasileiros não pelo Cinema Novo nem pelo Cinema Marginal, mas pelo chamado Neon-Realismo, nome que prefiro a outros mais localistas como novo cinema paulista ou “cinema da Vila Madalena” (ver BERNARDET, J. C.: 1985, 66). Me vi na solidão geracional do 1 Partes deste ensaio foram publicadas em Cinemais, 28, março/abril 2001 e em Aletria, 8, 2001, Centro de Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG. 156

Transcript of Onde andarà o meu amor?

Onde Andará o meu Amor?1

Para Ricardo Soares

"Não diria que estava feliz.Não era nada assim tão simples. Euestava apenas presente, talvez pelaprimeira vez na minha vida adulta. Omomento não era extraordinário. Maseu tinha o momento, eu o possuía porcompleto. Ele me habitava. Senti quese morresse logo teria conhecidoisso, uma conexão com a minha vida,com seus erros e tortos sucessos"

Michael Cunninghan

Nos anos 80, urbanóide, intelectualizado, tímido, pop,

trazendo no corpo e nos silêncios os ecos de uma abertura

política lenta e gradual, não me via no cinema brasileiro,

na sua história. Aprendi a gostar de filmes brasileiros não

pelo Cinema Novo nem pelo Cinema Marginal, mas pelo chamado

Neon-Realismo, nome que prefiro a outros mais localistas

como novo cinema paulista ou “cinema da Vila Madalena” (ver

BERNARDET, J. C.: 1985, 66). Me vi na solidão geracional do

1 Partes deste ensaio foram publicadas em Cinemais, 28, março/abril 2001

e em Aletria, 8, 2001, Centro de Estudos Literários da Faculdade de Letras

da UFMG.

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adolescente de “Nunca Fomos Tão Felizes” de Murilo Salles

(1983). Peguei ansiosamente a fila no Festival de Cinema de

Brasília pra ver a estréia de “Anjos da Noite” de Wilson

Barros (1987). Houve troca de rolo. Não importou. Me

apaixonei por Shirley Sombra/Carla Camuratti em “Cidade

Oculta” de Chico Botelho (1986). A felicidade estava no

cinema, ainda mais em meio aos desencantos após o fracasso

da campanha pelas Diretas Já. Aquele era meu cinema, não

Glauber nem Bressane, que aprendi a respeitar e gostar

depois. Desses filmes eu não precisei aprender nada. Esses

filmes eram meus, os filmes que faria se fosse cineasta.

Curiosamente, dos realizadores da trilogia “Anjos da

Noite”/”Cidade Oculta”/”A Dama do Cine Shangai” (1987),

Guilherme de Almeida Prado foi o único a sobreviver e fazer

outros filmes2. Mais de uma década depois, com seu “Hora

2 Destoando do silêncio da crítica brasileira sobre este período e para

uma visão mais abrangente deste momento, ver os ensaios de Fernão Ramos

(1991), José Carlos Avellar (1994) e Renato Pucci (2001). André Parente

(1998) reafirma o mal-estar diante dessa produção, chamando esta geracão

de “cinema de replicantes” (p.131), meros “dubladores colonais” (p.132),

“pseudo-cineastas que pretendiam fazer uma nova indústria” (p.133).

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Mágica” (1998), ele reafirma na apresentação de seu filme em

outro Festival de Cinema em Brasília o que tanto irritava

cinemanovistas, experimentais, marginais, críticos ou

cineastas, de então: cinema é ilusão, magia, fantasia. Hoje,

quando ele fala, não noto reação, a não ser um

distanciamento frio. Parece antigo, parece anos 80, cinema

publicitário, cinema de cinema. Mas com esse filme,

Guilherme está dando mais um passo rumo à afetivização das

imagens, através da nostalgia do noir, das divas e de homens

viris que acabam traídos. Os espaços urbanos e envelhecidos,

as cidades feitas de filmes não foram abandonados. O que

antes era uma saída, uma alternativa às banalizações da

procura do novo parece ter sofrido um sutil deslocamento.

Não mais espectador, não mais a voz de um outro, não mais

ser “ventriloqist” (Gerald Thomas). O final não é apenas

bem-feito, dramaticamente acabado. Ele é uma virada. O

dublador (Raul Gazzola) mostra a cara. O tom não é o

agridoce esperançoso de “Melhores Dias Virão” de Cacá

Diegues. Guilherme não fala diretamente do Brasil, nem se

encaixa no discurso fácil, quase hegemônico da crítica e do

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cinema que deu certo no Brasil dos anos 90 de volta à

realidade, ainda que não necessariamente ao Neo-Realismo,

fazendo alianças ambíguas com o Cinema Novo, como podemos

ver na polêmica quando do lançamento de “Central do Brasil”

de Walter Salles.

Para os que gostam de coerência, Guilherme com sua

“Hora Mágica” retoma o trilho de “A Dama do Cine Shangai”.

Há inclusive auto-referências. O restaurante chinês. Maitê

Proença aparece no mesmo papel. Esse mundo já não me seduz

tanto quanto antes mas me leva a problemas não resolvidos. O

fascínio pelas divas é um deles. Mas não é só sobre elas que

quero falar. O que incomoda aqui é que a pose tem o tom frio

do pastiche, das meta-estrelas. A relação de desejo, como o

olhar de Gloria Swanson no final de “Crepúsculo dos Deuses”

de Billy Wilder, não se faz. Não há mais tensão, nem entrega

ao olhar para o público, ao olhar para a câmara. Ao caminhar

para a câmara, Gloria Swanson desaparece como uma imagem. A

nostalgia de tempos áureos é redimida por uma farsa. Em

Guilherme, não há farsa, não há paródia, mas também não há

deslumbramento, parece algo mais neutro como o pastiche, que

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não busca tirar o fascínio pelas imagens. Ao contrário, elas

se ampliam. Mas há algo suspeito, para além da trama

policialesca. Mulher fatal acaba por enganar homem vivido.

Ao invés do assassinato da diva, temos o homem ocupando seu

lugar como diva, deixando de ser dublador. Curioso como os

homens viris nos filmes de Guilherme parecem falsos,

exagerados na sua imagem de uma masculinidade antiquada. Mas

não é só a voz de Raul Gazzola, seu rosto substitui

irrealisticamente o do ator protagonista. Vitória na

fantasia, no mundo da imagem. Nem ressentimento, nem

conquista. O lugar é um lugar na cena. O filme começa e

termina com uma cena de dublagem, recheadas por clichês

novelescos. Se, no ínício, a frase do protagonista é “Chega

de enigma, eu quero a verdade”. No final, a verdade aparece,

como uma decisão. “Eu sei que vou me arrepender, mas eis

minha resposta” e beija a heroína na última cena.

Seria interessante fazer um contraponto com a obra de

Caio Fernando Abreu, em que é recorrente a espetacularização

do cotidiano, particularmente no que se refere à identidade

feminina, com nos contos “Fotografias” em Morangos Mofados,

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“Dama da Noite” e “Os Sapatinhos Vermelhos” em Os Dragões não

Conhecem o Paraíso. Em “Mel e Girassóis” (também em Os Dragões

não Conhecem o Paraíso), um despudorado sentimentalismo ecoa o

fascínio que o melodrama exerce junto a um público feminino

mas também junto a um público gay3, criando um espaço

paradisíaco, de férias na praia, em que as emoções não são

corroídas pela ironia, mas suavizadas num espaço de

artifício, com num cenário de filme hollywoodiano, repleto

de músicas sentimentais e falas espirituosas: “Lugar-comum,

sonho tropical: não é excitante viver?” (p. 101) ou “Virou

de costa, debruçou-se na janela, feito filme: Doris Day,

casta porém ousada. Então ele veio por trás: Cary Grant,

grandalhão porém mansinho” (p. 113).

Para além do culto às divas, o que interessa é uma

novelização da realidade que coloca em pauta os fãs, o

público, este que escreve. Sabemos pelos estudos de Wayne

Koestenbaum (1993), entre outros, do estreito vínculo entre

homens gays e divas, especialmente mulheres de personalidade

3 O que ainda pode ser observado em textos imaturos de Caio, como o

melodrama assumido de “A Maldição dos Saint-Marie” e o anti-conto de

fadas “O Príncipe Sapo”, ambos publicados na coletânea Ovelhas Negras.

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forte, que impõem sua excentricidade, sua diferença ao

mundo, mesmo ao custo da solidão, como uma forma de ir além

do silêncio e do estigma. Os eventos em torno destas divas

criam espaços homossociais, espaços de encontros e de

reconhecimentos, da ópera ao teatro e shows de música. Mesmo

agora, em épocas de multiplicação de espaços gays tal culto

não parece ceder. Mudam as divas. O desejo de fantasia, de

prazer permanece mesmo entre os mais politizados. Não se

trata, necessariamente, de ser uma diva da primeira à ultima

hora do dia, de viver uma outra vida, de fugir da realidade,

mas de afirmar uma presença, por mais patética, ridícula que

ela possa ser, afirmar possibilidades de mudança, mesmo de

utopia, do sublime, para além do arco-íris ou na vida

cotidiana. Não só ter personalidade, mas ter caráter.

Repito. As divas são apenas uma parte da estória. Hoje,

o cinema brasileiro me pertence ainda menos do que nos anos

80. O que me fascina no cinema não encontro entre nós.

Cansado do excesso de referências e citações explícitas, o

voyeurismo cede lugar a uma ética dos sujeitos e das

imagens, particular e concreta, construída por filmes como

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“Sexo, Mentiras e Videotapes” de Soderbergh, “O Fim de Um

Longo Dia” de Terence Davies, “Confiança” de Hal Hartley,

“Segredos e Mentiras” de Mike Leigh, “Traídos pelo Desejo”

de Neil Jordan, “O Doce Amanhã” de Atom Egoyam, “Anjos

Caídos” de Wong Kar Wai, “A Flor do Meu Segredo” de

Almodóvar, entre outros, e o que eles representaram. “Ter

por ponto de partida não as imagens mas as emoções”

(PEIXOTO, Nelson B.: 1997, 365), sem que seja necessário

negar o mundo das imagens, como ainda em veteranos como

Ettore Scola e Eric Rohmer. Mas nesta guinada rumo a uma

experiência afetiva mais direta, ainda assim me senti

excluído no Brasil, pelo tipo de filme e por suas estórias.

É como se tivesse que traduzir o tempo todo. Não haveria

cineastas gays no Brasil? Como cineastas engajados, parece

que não. Talvez possamos entender a trajetória de Djalma

Limongi Batista dentro de uma estética camp. Mas a

afetividade entre homens só seria colocada no espaço da

violência (“Matadores” e “Ação entre Amigos” de Beto Brant),

na relação de amizade (“Alma Corsária” de Carlos

Reichenbach) ou nos espaços anônimos (“Romance” e

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“Cronicamente Inviável” de Sérgio Bianchi)? Seria tão fora

de lugar o amor entre homens no horizonte do cinema

brasileiro? E pensar afetividade, identificação e

envolvimento é pensar as possibilidades de um cinema

narrativo contemporâneo, dentro de uma estética que

privilegia uma maior comunicação com o público e com o

mercado, ao invés de estabelecer uma relação de ruptura, de

choque com o público. Teria que recolher fragmentos, cenas

para que, como os espectadores gays da era clássica do

cinema hollywoodiano, no auge da censura moralista, pudesse

ir além dos assasssinos, michês, travestis e afetados que

aqui e acolá aparecem? Por que filmes como “Aqueles Dois” de

Sérgio Amon (1984) não tiveram herdeiros? Ou eu teria que

procurar fora do universo dos longa-metragens? Nos vídeos do

Festival Mix?

Como não me interesso por estudar a representação da

homossexualidade no cinema brasileiro4 e sim pelas relações

entre afetividade e narrativa, na busca de uma obra, ao

mesmo tempo, comercial e polissêmica, o veio das comédias

4 Trabalho já introduzido por Antonio Moreno (1995).

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românticas ou dramas familiares poderia ser um caminho.

“Pequeno Dicionário Amoroso” e “Amores Possíveis” de Sandra

Werneck, “Como ser Solteiro no Rio de Janeiro” de Rosana

Svartman, “Bossa Nova” de Bruno Barreto, “Até que a Vida nos

Separe” de José Zaragoza. Nada muito animador. Mesmo o

competente “Amores” de Domingos Oliveira5. Nada, nem de

longe, perto do cinema de Cristopher Münch, na sua delicada

sutileza. É uma sensação que a realidade é um peso tão

sufocante que não podemos lidar com ela a não ser para

retratar sua dureza ou exasperá-la pela alegoria, pelo

grotesco, pelo ceticismo e/ou cinismo. Ou então, a realidade

vira paisagem de cartão-postal, de classe média mtvizada, em

que a afetividade não é forma de pertencimento ao mundo.

5 “Um exemplo interessante de um cinema urbano sem crispações, disposto

a fazer da conversa informal e da fala direta para o espectador os

canais de fluência que dão o tom, é “Amores” (98) de Domingos de

Oliveira. Ele funciona, nesse contexto, como se tivesse sido programado

para negar ponto a ponto essa pauta das frustrações, ressentimentos,

retaliações, vinganças” (XAVIER, I.: 2000, 133). Lembro ainda que Ismail

Xavier denominou a presença de uma dramaturgia do macho ressentido como

elemento importante no cinema brasileiro contemporâneo em palestra no

Festival de Cinema de Brasília de 1999.

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Não me contento mais em revisitar clássicos como

Visconti, Cocteau, Pasolini, mesmo Warhol e Anger, nem me

sinto próximo de um cinema demasiado político como o de

Marlon Riggs, nem da brilhante e desconstrutora revisitação

do melodrama empreendida por Fassbinder e Almodóvar (SILVA,

W.da: 1999). Me sinto desamparado, eles não me satisfazem.

Seria, seguindo o lema punk de faça você mesmo, o caso de

realizar o filme que não encontro no cinema? Parece que se o

cinema brasileiro me empurra para fora dele, a literatura

não faz o mesmo. É nela, em particular na obra final de

Caio Fernando Abreu, que encontro uma pessoal mistura de

ética, homoafetividade e sublime. “O destino das imagens não

está sendo jogado no experimentalismo de vanguarda nem no

engajamento ideológico, discursos completamente integrados

no sistema de produção de clichês. O futuro das imagens está

no procura do sublime” (PEIXOTO, N.B.: 1997, 318). O

discurso do sublime ainda pode ser contraposto ao do

simulacro, que fala em desaparecimento da arte na sua

incapacidade de propor uma outra cena6. Sublime que não está6 O que no cinema, para Baudrillard (1997, 80/1), seria colocado pela

valorização dos efeitos: “O cinema atual não conhece mais nem a alusão

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necessariamente em um Deus ou numa religião, mas no

cotidiano, nas pequenas alegrias diante de uma situação

inesperada, um gesto, uma paisagem que emerge. Sublime não

como volta de fundamentalismos, certezas incontestáveis

sobre que se apoiar, mas de leveza e delicadeza. Sublime

associado a uma ética ambivalente, pluralista, concreta,

calcada numa experiência reencantadora do mundo, para além

do cinismo e da solidão.

O protagonista de Onde Andará Dulce Veiga? começa onde o de

“Hora Mágica” termina. Ele vai buscar se livrar pouco a

pouco de um mundo das imagens. As referências a estrelas,

filmes, a sensação de ser filmado vão desaparecendo. No

entanto, o último capítulo, o encontro com Dulce Veiga, se

não é filtrado diretamente pelas poses e artifícios de uma

diva da canção, tudo parece filtrado por uma outra luz.

Efeito do chá que o protagonista toma? Os capítulos se

tornam curtos e poéticos. O cotidiano se faz sublime e, na

nem a ilusão, ele encadeia tudo de um modo hipertécnico, hipereficaz,

hipervisível. Sem branco, sem vazio, sem elipse, sem silêncio, não mais

do que na televisão, com a qual o cinema se confunde cada vez mais,

perdendo a especificidade de suas imagens: vamos cada vez mais no

sentido da alta definição, isto é, da perfeição inútil da imagem”.

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despedida, Dulce aparece de branco, envolta em luz. Será que

mesmo o sublime aqui não mantém os clichês da cultura de

massa, a estética B, evocada no subtítulo do romance? Frases

de impacto, impostura em cena. Ela atua como uma diva

recolhida, afastada de seu público, mas ainda assim uma

diva. O filme continua também apesar do desejo de vida

simples, estórias simples, da experiência concreta. A

possibilidade de redenção não se confunde com certa

nostalgia ou ingenuidade de autores contemporâneos que

apostam numa ética que abandona as imagens, como o

salvacionismo de certo trabalho de Wim Wenders (“Tão longe,

tão perto”) ou o encontro mítico com o pai em “Central do

Brasil” de Walter Sales e “Paisagem na Neblina” de

Angelopoulos, encontro este anunciado no primeiro filme e

apresentado, num misto de sonho e realidade, no segundo.

Como no primeiro mandamento de Kieslowski em que a

imagem última do filho morto aparece na televisão ou no

final de “A fraternidade é vermelha”, não se trata de

denunciar simplesmente a banalidade midiática, escapar do

excesso informacional. O protagonista de Caio, como em

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“Central do Brasil”, também viaja para o norte, de São Paulo

para uma comunidade esotérica, não no Nordeste, mas em

Goiás. Também as metáforas religiosas abundam, mas no

romance de Caio elas são híbridas, não só católicas, são

ecléticas, afro, orientais, rápidas como imagens, como as

aparições de Dulce, momentos de sublime ou clichê de filme

de suspense? A possibilidade de redenção se dar num ícone da

música popular tira qualquer hieratismo e imponência que as

imagem da multidão de peregrinos têm em “Central do Brasil”.

O protagonista de Caio quer acreditar, mas o escritor filtra

esse olhar. Em “Central do Brasil”, personagens e diretor

vão na mesma direção, um olhar reafirma o outro, no mesmo

impasse, mas na mesma crença. O distanciamento de Caio não é

do descrente, do realista, é de quem não consegue abandonar

o mundo das imagens, não consegue pensar o mundo sem beleza.

A imagem traz, ao mesmo tempo, o sublime e a dúvida.

· “Should I wait for you· My substitute for love· And now I find· I’ve changed my mind· This is my religion”· Madonna ·

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A capa de Onde Andará Dulce Veiga? de Caio Fernando Abreu

remete a uma representação fake. Bonecos de papel com que

crianças em outras eras menos tecnológicas se divertiam.

Aparece supostamente a própria Dulce, ladeada por onças e

palmeiras. A mistura entre o artifício e o mau gosto ganha

um suporte no subtítulo: romance B. O que não deve ser

entendido como mero elogio do trash, do lixo, de um deboche

que reúne desde o cinema marginal até fascínio de um certo

público jovem que ri de filmes de terror mal-feitos. Há

menos um deboche do que um olhar que não pode ser virgem

diante do mundo das imagens. Ecoa o bordão dos velhos anos

80: tudo já foi dito, só podemos falar de cinema ou de

literatura. Mas o passado nunca volta tal qual ele foi,

restam ruínas de cenários já usados em filmes A, citações

que tiveram outro sentidos. Obras-primas e medianas se

misturam e se constituem num imenso “museu imaginário”, para

usar o termo conhecido de Malraux, mas o que mais me fascina

é o que vai além do simples imobilismo de ser um espectador

do mundo.

170

Há um sutil contraponto entre o subtítulo, a estética

B, e as epígrafes, no início e no fim do romance. A

primeira, de John Fante, remete à pobreza material e à

fragilidade do escritor. Evocando deus e um escritor, o

começo do livro é um ato de necessidade, de vida e de fé:

“Please God, please Knut Hamsum, don’t desert me now. I

started to write and I wrote” (p. 7)7. A escrita como uma

necessidade se traduz no próprio movimento existencial do

protagonista: “Eu precisava falar de Dulce Veiga. Dela, de

mim, do tempo” (p. 30). O livro termina com Clarice

Lispector, novamente pedindo auxílio: “Ah Força do que

Existe, ajudai-me, vós que chamam de o Deus” (p. 215).

Poderíamos pensar numa saída de redenção do mundo, mas paira

uma dúvida se esta possibilidade de redenção ainda é

possível. Em meio a esta dúvida, a escrita se faz, o

protagonista-jornalista busca voltar a escrever “ao querer

desesperadamente dar forma através de palavras a algo que só

existe, sem face nem nome, nessa região longínqua do cérebro

7 Por favor Deus, por favor Knut Hamsum, não me abandonem agora. Eu

comecei a escrever e eu escrevi.

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onde a fantasia cruza com a memória e a intuição cega” (p.

54).

As imagens mais cinematográficas e menos televisivas

são o horizonte de constituição do mundo do protagonista, de

sua forma de ver o mundo. Gradualmente, um mundo

desencantado vai se reencantar, as imagens não são só

internalizadas, mas afetivizadas, para além de uma inflação

metatextual. Resta saber se este encantamento ainda está sob

o signo do artifício, mesmo no final. Ou ainda, o afetivo

está predestinado ao clichê8? O tempo faz de tudo um lugar

comum?

A dedicatória feita a todas as cantoras do Brasil pode

nos dar uma pista. Dulce Veiga nunca existiu mas parece uma

síntese das damas da MPB e do cinema clássico hollywodiano,

ora mulher fatal de filme noir, ora heroína melodramática. O

8 Vai ao encontro de que Eucanãa Ferraz (2000) fala sobre Morangos

Mofados: “O subliterário e o lugar-comum contaminam a escrita de tal

modo que já não podemos diferenciar com total segurança a ironia, a

paródia e o puro fluxo do pensamento, despido então de travas seletivas,

e, quanto mais intenso e apaixonado, mais propenso a um amplexo que

generosamente abraça e aceita a contribuição milionária de todos os

clichês, desde que possam exprimir um desejo, uma verdade, um espinho

íntimo”.

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título do romance de Caio é também o título do livro-

reportagem (p.106) que o patrão do protagonista sugere sobre

Dulce, a cantora desaparecida vinte anos atrás, quando

justamente ia fazer o show que a colocaria entre os grandes

nomes da música popular para não ser só uma cantora cultuada

por poucos.

O livro poderia ser situado num intervalo entre romance

e jornalismo, traduzindo, a partir de diferentes

depoimentos, a ascensão e queda de um ícone contemporâneo,

procedimento recorrente, desde o clássico “Cidadão Kane” de

Orson Welles até “Velvet Goldmine” de Todd Haynes. Mas

sobretudo num filão que vai refletir sobre a presença das

divas e de suas existências trágicas, fora das telas, longe

do palcos. É só lembrar das várias versões de “Nasce uma

Estrela”. Ou entre nós, Ester Góes em “Stelinha” e a atriz

decadente que Marília Pera interpreta em “Anjos da Noite”.9

9 Uma constante na obra de Guilherme de Almeida Prado, a quem também o

livro de Caio é dedicado. A presença de Caio tem outras curiosidades.

Ele aparece como figurante em “Perfume de Gardênia”. Sua personagem

Dulce Veiga é mencionada em “A Hora Mágica”. Um exemplar de sua peça

“Maldição do Vale Negro” também aparece em cena. Retribuição da

dedicatória ou uma afinidade artística maior?

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A diferença com os filmes brasileiros contemporâneos é

que neste romance de Caio, a diva, responsável por uma

presença aurática em meio a uma sociedade marcada pela

reprodutibilidade técnica e eletrônica das imagens, não fica

apenas como um objeto de culto, ser por excelência do mundo

do simulacro, em que imagens e realidade não se dissociam. O

romance de Caio é um elo entre os pastiches e as metaficcões

que saturaram os anos 80 e o desejo de narrativas simples,

despojadas de referências explícitas. Não se trata de um

fascínio vazio, mas de uma busca desesperada de sentido e

afeto num mundo empobrecido. O que começa como simples

obrigação profissional, a procura de Dulce Veiga, traduz-se

num acerto de contas com o passado. Foi com ela que o

protagonista fez sua primeira entrevista. É também nessa

procura policialesca que seu passado afetivo vai se

constituindo como questão ética.

O protagonista é apresentado, na segunda-feira, quando

vai começar um novo trabalho. Jornalista, de meia-idade,

autor de um livro de poemas que ninguém leu, descrente em si

e no mundo, sozinho, sem amigos (p. 74), pouco sexo, pouco

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amor (p. 76), morando num apartamento minúsculo (p. 11), de

um “edifício doente, contaminado, quase terminal” (p. 37),

vivendo numa São Paulo “infernal” (p. 11), sufocante (p.

16), à beira da explosão (p. 81). Uma vida em crise, em que

o simples ato de conseguir emprego num jornal de quinta

categoria é visto por ele como um milagre.

Este mundo empobrecido, em que a presença da AIDS

aparece como uma metáfora de personagens infelizes, é

marcado por uma construção cinematográfica, repleta de

clichês, lugares-comuns, simulacros e é redimido pela música

como possibilidade de recuperar uma memória, uma

possibilidade de afetividade, de sublime, de pertencimento

ao presente. A cidade doente é também o espaço de uma

busca. Não mais o tom libertário de outros momentos, como em

“Anotações sobre um Amor Urbano” (em Ovelhas Negras): “Não vê

que é isso que eles querem que você sinta? medo, culpa,

vergonha — eu aceito, eu me contento com pouco — eu não

aceito nada nem me contento com pouco — eu quero muito, eu

quero mais, eu quero tudo” (p. 205). Há o desejo de

desaparecer como Dulce Veiga: “Eu não tinha nada especial.

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(...) Uniforme de guerra, ou de quem quer ficar invisível. E

eu queria, há tanto.” (p. 23). Aos poucos, ir além de

sobreviver, do se negar. É uma outra invisibilidade que vai

surgir, não esta negação, esta ausência.

Mais singular é a forma como a questão ética — o que

fazer? — se articula desde o início com a música. “Eu

deveria cantar. Rolar de rir ou chorar, eu deveria, mas

tinha desaprendido essas coisas” (p. 11). O uso do verbo

dever ressalta não uma obrigação, mas uma necessidade, uma

premência. E o não saber cantar é associado a esta perda de

expressar sua afetividade: “Eu sorri. Quer dizer, contraí os

músculos da face para mostrar os dentes” (p.16) e

“...ternura, sensibilidade, emoção: eu não gostava nem um

pouco dessas palavras” (p. 83). Trata-se de reaprender a

sentir, a acreditar, sem idealização, nem cinismo. Estar à

margem sem vitimização, autocomiseração, ainda quando estes

sentimentos sejam justos. O ressentimento é um veneno maior

para quem o sente do que para quem o causa. Não desistir,

mesmo diante do cansaço. Posicionar uma voz, mas não ter a

voz. O protagonista sem nome sente uma nostalgia de outros

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tempos em que tinha fé e alegria, reage à pose, à afetação,

recusa um mundo referencializado e vigiado pelo cinema:

“Sem juiz nem platéia, sem close nem zoom” (p. 11). Mas ao

buscar negar o simulacro, nasceria uma outra pose, a da

autenticidade? Não importa. Há muito a cultura pop constitui

nossos afetos e vivências. Não há nada escandaloso, nem é

simplesmente colonização do imaginário, é só cotidiano o

cruzamento das fronteiras ente erudito, pop e popular. O que

importa talvez seja o imperativo da alegria (p. 12), na

deriva entre um real “sem nada por trás além dele mesmo”(p.

40), “bem menos retórico”, direto, o mundo de fatos

jornalísticos, sem afeto, sem memória, imagens substituindo

umas as outras, parecendo com outras, e o mundo da ilusão.

Como diz uma música: “A realidade não importa, o que importa

é a ilusão” (p. 13). Mundo repleto de lembranças. O

invisível revelado pela música. O cinema reafirma a

banalidade do mundo da cidade, “chatíssimo roteiro” (p. 13),

transformada em imagem, ao mesmo tempo, caos e diversidade.

É a música, ouvida no cotidiano ou lembrada, a presença de

Dulce Veiga é que vão dar um foco ao personagem,

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afetivizando o mundo da informação. Quando ouve uma música

pelo rádio é que se coloca o desafio de como mergulhar no

passado sem voltar com clichês, como contar esta estória,

como viver esta vida.

É possível contar a estória de alguém? “Perdera o vicio

paranóico de imaginar estar sendo sempre filmado ou avaliado

por um deus de olhos multifacetados(...), mas não o de estar

sendo escrito” (pags. 12/3). Poderia a escrita ainda

conseguir o que as imagens não conseguem mais? Não se trata

da afirmação do papel da escrita contra as imagens, mas

simplesmente uma forma do protagonista lidar com a escrita,

voltar a escrever, sem temor da afetividade, do seu

ridículo, do seu mau gosto, da sua pobreza. Uma escrita não

mais associada à dor, nem fruto da dor (p.53).

A voz ouvida no rádio é reconhecida depois, voz de

Márcia Felácio, vocalista da banda Vaginas Dentatas, filha

de Dulce Veiga, “voz de vidro moído, áspera e aguda, girando

dentro de um liquidificador, nem feia nem desafinada, mas

incômoda na maneira como ocupava espaço dentro do cérebro da

gente, aquela voz que, independente do que cantasse, dava a

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impresão de sair do fundo de ruínas atômicas, não as ruínas

falsificadas daquele cenário de papelão, mas as de

Hiroshima, as de Köln, depois do bombardeio” (p. 27).

Márcia, nova diva, “sereia radioativa” (idem), canta “Nada

além”, canção que Dulce também cantava. Novamente, o

protagonista move os lábios, mas não canta (idem). A

felicidade estaria só na ilusão momentânea de uma música?

Dulce volta pela imagem da filha.

No limite, não sei como proceder, ou me encanto ou vejo

a ironia. Mas aqui, o humor nunca nega a afetividade. Não

resisto à imagem de Dulce Veiga, na sua aparição, “toda

vestida de vermelho, uma rosa branca aberta, presa na gola

do casaco” (p. 30), toda composta numa pose, feita para ser

vista, contemplada, mesmo que não houvesse ninguém para ver.

“Como se depois de todos aqueles anos, esperasse por mim”

(p. 31). E que termina por desaparecer após um raio de

prata (p. 31).

“Dulce Veiga, a melhor de todas. A maiselegante, a mais dramática, a maismisteriosa e abençoada com aquela vozrouca que conseguia dar forma a qualquersentimento, desde que fosse profundo. E

179

doloroso, Dulce cantava a dor de estarvivo e não haver remédio nenhum paraisso. E era linda, tão linda. Não só avoz, mas a maneira como se debruçavasobre o piano com um cálice de dry-martini na mão, mexia lenta a azeitona epegava devagar o microfone com a outra.Não, por favor, não pense nenhumavulgaridade” (pags. 48/9).

Fascínio é o que pede Castilhos, diretor do Diário da

Cidade, ao protagonista, a nós leitores. É algo para além da

relação desigual e de adoração estabelecida entre fâ e

ídolo. O caráter mágico e religioso que vai constituir o

culto às estrelas de cinema, na análise clássica de Edgar

Morin, pode dar uma sugestão do que está em jogo. Do cinema

mudo até os nossos dias, a indústria de imagens reproduzidas

tecnicamente inundou o planeta com uma quantidade nunca

antes vista de informação rápida. É uma verdadeira proeza se

manter no topo. A indústria é voraz, descarta pessoas como

fatos envelhecidos. Por isso, a surpresa, uma cantora

desaparecida há vinte anos suscita emoções ocultas e

inesperadas em Castilhos, na contracorrente do esquecimento.

Refulge fragilmente uma lembrança, um momento, estrelas que

lembram um passado. Fala o protagonista: “De repente,

180

lembrei de Jayne Mansfield nos bailes do Copacabana Palace,

eu era muito antigo. Ou não havia mais estrelas, como

antigamente” (p. 144).

Uma das aparições de Dulce conduz o jornalista ao

pianista que a acompanhava, Pepito Moraes. A fantasia e o

acaso emolduram a realidade e o encontro do que se

procurava, mesmo que se encontre uma outra coisa. Não há

lógica racional, engenhosa a ser descoberta, como em

romances policiais tradicionais, em que o mistério é

revelado no fim, o criminoso punido. A ambiência é noir, mas

há algo além. As aparições camp de Dulce oscilam entre um

recurso banal de filme policial e o sublime no cotidiano, o

sublime no artificial. “Faz mal lembrar das coisas que se

foram e não voltam” (p. 65), fala Pepito, agora pianista de

bar. Para o protagonista, “o pior não seria nunca a morte

real, o nada e o nunca, pior era não lembrar, não poder ou

não querer lembrar” (p. 69). “Tudo aquilo que eu esquecia ou

negava, soube vagamente, em plena queda, era o que eu mais

era” (idem), como estava escrito num poema de Cecília

Meireles, enviado por Lídia, sua ex-companheira. Esta

181

lembrança que tentava esquecer, revelava “um vazio que nem

todas as obscenidades que Jacyr continuava dizendo poderiam

preencher, tornar engraçado ou mais leve, dentro daquela

saudade que não ia embora por mais que o tempo passasse e

dentro dele, mesmo sem lembrar, apenas agindo” (p. 78). Um

“dia de cão” o tira da autocomiseração, evita que ele

momentaneamente se lembre do que não queria lembrar (p. 79)

A lembrança de Dulce vem como “num filme qualquer, em

preto e branco, da década de 40 ou começo dos 50” e, como

fundo musical, a voz de Billie Holiday (p. 33). Há um desejo

de pureza, de uma imagem forte, mas irremediavelmente no

passado. “Tudo isso que agora parece clichê banal, naquele

tempo — repito e não me canso, porque é belo e mágico na sua

melancolia: naquele tempo — tudo era novo, eu nem suspeitava

das marcas pelo caminho” (p. 34), relembra o protagonista da

primeira entrevista que fizera, justamente com Dulce Veiga.

A entrevista é um encontro de duas vidas, como o que

acontece com Márcia. Sem nostalgia, Márcia parecia compor

sua vida, “futura cinebiografia de artista quando jovem”.

“Ela soava falso ao contar essas coisas, mas essa falsidade,

182

percebi aos poucos, não passava de um jeito de esconder a

emoção, porque no fundo, além de todos os filtros

glamourosos, algum coisa daquela história verdejante devia

mesmo ser verdadeira. Pelo menos, a voz dela, às vezes, era

realmente assim como buscara” (p. 93). Nesse ato de se falar

para outro, no que pode haver de falso, montado, composto,

se revela a verdade do jogo, do simulacro da subjetividade e

da confissão.

Através do fascínio por Márcia, mas sobretudo por

Dulce, por sua voz, o passado conduz o protagonista no

resgate do que foi perdido, encarnado sobretudo na lembrança

de Pedro. Com um mês separado de Lídia, acontece Pedro. As

oscilações das escolhas sexuais do protagonista, que de

resto ecoa com a transitividade de gêneros, a ambigüidade de

outros personagens, não impede que falemos de

homossexualidade, recusada numa fala de Márcia como

limitadora (p. 168), mas certamente se trata de uma

homoafetividade10. Ao lembrar Pedro, não se trata de

esconder a homossexualidade atrás de uma pansexualidade

10 Ver em “Escritor, Gay”

183

difusa, que reafirma preconceitos. É a partir desta

homoafetividade que emerge uma experiência, uma ética e

estética da amizade11, fundadas não a partir de códigos

morais impostos e universais, mas condutas e modos de vida

particulares, mas sobretudo um caminho mesmo para um sublime

ou mesmo uma espiritualidade homossexual.

Se a fragilidade institucional e histórica da amizade

entre homens é decorrente do Cristianismo e seu pânico da

homossexualidade (ERIBON, D.: 1996, 200), esta relação,

atualmente, não é um artificio compensatório, um ornamento

afetivo a que reservamos um lugar espremido e residual entre

as obsessões amoroso-sexuais e os deveres cívicos (COSTA,

J.: 1999, 11); representa algo inquietante e perigoso, que

possui um caráter inesperado e intenso, jogo agonístico e11 Ver o romance Aimer de René de Ceccatty ou a fotógrafa Nan Golding

(1986, 6/7) falando de sua “família de amigos” que ela retratou por anos

e anos numa espécie de diário visual: “Pessoas partem. Pessoas retornam,

mas estas separações não são rupturas na intimidade. Nós estamos ligados

não por vínculos de sangue, nem pelo lugar, mas por uma moralidade

semelhante, a necessidade de viver a vida completamente e no presente,

uma descrença no futuro, um respeito pela honestidade, uma necessidade

de quebrar limites e uma história comum. Nós vivemos uma vida sem levá-

la a sério, mas levando-a a sério. Há entre nós uma habilidade em ouvir

e compartilhar que ultrapassa a definição normal de amizade”.

184

estratégico (idem,12), nunca uma coisa dada no presente, ela

faz parte da experiência da espera, da promessa ou do

compromisso (Jacques Derrida apud ORTEGA, F.: 2000, 7), não

exclui o desejo sexual12, tornando-se um espaço de constante

experimentação e, ao mesmo tempo, uma base para positivizar

os encontros casuais e curtos, bem como para apreender uma

gama enorme de sentimentos, necessidades e redes afetivas

que se formam para além ou no lugar da família patriarcal ou

nuclear urbana.

A identidade se traduz em, se define por experiências:

“O beijo de Pedro não era desses de amigo bêbado, encharcado

de álcool e solidariedade masculina, carência etílica ou

desespero cúmplice. A língua de Pedro dentro da minha boca

era a língua de um homem sentindo desejo por outro homem”

(...) “Eu gostava de mulher, eu tinha medo. Todos os medos

12 “O problema não é de descobrir em si a verdade do sexo, mas sobretudo

de agora em diante usar a sexualidade para chegar a multiplicidades de

relações. É esta, sem dúvida, a razão pela qual a homossexualidade não é

uma forma de desejo mas algo de desejável. Portanto, nós devemos nos

bater para nos tornar homossexuais e não nos obcecar para reconhecer que

o somos. É nesta direção que vão os desenvolvimentos do problema da

homossexualidade: o problema da amizade” (FOUCAULT, M.: 1994, 163).

185

de todos os riscos e desregramentos” (p. 113). Do pouco e

mau prazer com as mulheres à alegria: “Só alegria, eu senti

com Pedro. Uma alegria que era o avesso daquela que tinham

me treinado para sentir” (p. 115). Quando Pedro sumiu,

“desde esse dia, perdi meu nome. Perdi o jeito de ser que

tinha antes de Pedro, não encontrei outro. Eu queria que

voltasse, não conseguia viver outra vez uma vida assim sem

Pedro. (...) Parei de trabalhar. Parei de ser e de fazer

qualquer outra coisa além de esperar que ele voltasse. Mas

Pedro não voltou, eu não voltei” (p. 116). Pedro e Dulce

voltam não como no passado, mas para serem outros. A

lembrança de Pedro não o traz de volta. Ele pode até ter

morrido. O protagonista tem que aprender a viver, e não só a

sobreviver, sem Pedro. E diante de Dulce, no fim, que este

aprendizado se afirma. Mas o seu sentido é como um exercício

de meditação, em que o essencial é vivenciado, não

transmitido. O leitor deve, se quiser, ser tocado.

Durante todo o romance, aparece o fascínio do

protagonista pela música e por Dulce Veiga, que o tira de um

certo mal-estar, ainda que o fato de não saber cantar

186

retorne (p. 76). Se as aparições de Dulce o retiram, às

vezes, de situações em que o sexo pode acontecer (com

Filemon, nas pags. 59/61, ou na conversa com o jovem

português no bar, na p. 135), trata-se menos de fuga do que

posicionar o desejo em outro foco. Dulce Veiga representa,

ao mesmo tempo, algo que ele não tem, talvez tenha tido, e

algo que pode acontecer quando menos se espera. Algo belo,

algo importante. Algo oculto. Não é à toa que na procura

jornalística e memorialista atrás de Dulce, é o nome de

Pedro que vai aflorar também pouco a pouco.

A associação entre Dulce Veiga e Pedro, a diva e seu

grande amor, não só afetiviza um ícone do universo pop(ular)

mas dramatiza, espetaculariza um encontro privado. As

aparições fantasmagóricas de Dulce Veiga na cidade se

equivalem às lembranças de Pedro. Umas e outras se

indissociam. Amar Pedro. Amar Dulce. Algo se perdeu. Ao

lembrar quando Dulce desaparecera, o protagonista se

pergunta onde andaria naquela época (p.56). Algo pode ser

reconquistado? Não se trata de proceder o luto, mas reavivar

187

mais o passado até que sua força passada lance a beleza

sobre o presente, lance perspectivas sobre o desamparo.

Estrelas, lembranças, pessoas. Não resisto também a

Pedro. “Pedro era tão claro que, no escuro, quando estava

nu, eu ficava olhando para ele à espera de que sua pele

fosforecesse como roupa branca na luz negra” (p. 100). Tanto

Pedro como Dulce se descorporificam, perdem em materialidade

e ganham em espiritualidade. Em Dulce Veiga, não só está uma

homenagem às cantoras do Brasil, mas a cada gesto seu, ecoam

imagens, a que o protagonista não resiste associar a

Isabella Rosselini e seu charme cult (p. 55) ou a Rita

Hayworth em “Gilda” com seus cabelos louros, a Silvinha

Telles (p.57) ou a uma espiã de filme dos anos da Guerra

Fria (p. 62). Dulce retorna em fragmentos, imagens e frases,

como Pedro. O canto para Dulce, segundo sua provável última

entrevista, cria um sentido, embora seja inútil. O canto,

numa sociedade mercantilizada, traz vantagens materiais, mas

Dulce procura uma outra coisa, “maior que eu mesma ou que

qualquer canção” (p. 56).

188

Da obtenção do emprego, como mudança do “pântano de

depressão e autopiedade onde refocilava há quase um ano” (p.

12), ao encontro com Dulce Veiga, objetivo de seu artigo, o

protagonista religa seu passado a um vislumbre de futuro. Na

parte final, mais curta e sintética do livro, a realidade de

Estrela do Norte, no centro do Brasil, se apresenta quase

mágica. A presença do caos paulistano e das referências

cinematográficas cedem lugar a uma comunidade esotérica,

onde o protagonista toma uma bebida para relaxar. Duas

irrealidades? Duas fugas? Duas possibilidades de

sobrevivência, de busca de alguma alegria, alguma beleza. Da

sobrevivência ao encantamento. O ciclo se fecha em aberto. O

impasse persiste, mas houve um caminho, encontros e

desencontros, uma experiência foi constituída. Não mais só

“confundir experiência e devastação” (p. 12), mas relatar

nossa experiência da guerra cotidiana, ultrapassar um

silêncio que insiste em nos desqualificar, nos isolar (ver

BENJAMIN, W.: 1985). Não mais só imagens alucinadas,

extasiantes ou entediantes. Algo mais. Nada além. Desejo de

desaparecer no anonimato. Desejo de ser invisível na

189

multidão das diferenças, como o de Dulce Veiga de

desaparecer, numa fala inesperada, na sua última entrevista

(p. 56). Aprender a só ser. “Fechei a gaveta, eu não podia

lembrar. Era preciso encontrar Dulce Veiga, manter aquele

emprego, continuar a viver. Mesmo sem encontrá-la, mesmo que

Pedro jamais voltasse” (...) Ninguém virá em meu socorro.

Faz tanto tempo que invento meus próprios dias. Preciso

começar por algum ponto” (p. 120).

E este ponto vai se dar pela viagem, fora de São Paulo.

A procura por Dulce Veiga incorpora um clichê de romance

policial, o desejo de desvendar um segredo, revelar o

desconhecido, que se transforma em viagem de busca

existencial, de aprendizado: “Qual o caminho para a morada

da luz, e em que lugar encontram-se as trevas?” (Jó: 38,

19). Do estrangeiro de molde existencialista, se comparando

ao inseto de Kafka (p. 53), o protagonista assume a condição

real de estrangeiro, seja na margem contracultural, seja

pela errância entediada, mudando por vários lugares. Uma

vida em flashes de lugares e atividades. “À medida que o

tempo passava, eu fugia, jamais um ano na mesma cidade, eu

190

viajava para não manter laços — afetivos, gordurosos —, para

não voltar nunca, e sempre acabava voltando para cidades que

já não eram as mesmas, para pessoas de vida lineares,

ordenadas, em cujo traçado definido não haveria mais lugar

para mim” (p. 56).

Ao chegar ao fim de sua procura, no centro do Brasil, é

novamente a música que o conduz a Dulce Veiga. Súbito ouve

uma voz de mulher. Acompanhando sem cantar, “comecei a

caminhar mais depressa para encontrar aquela voz, e por

falar em você, em razão de viver, você bem que podia me

aparecer, e eu sempre tivera certeza que, desde o início,

embora tudo pudesse continuar a ser somente loucura, vontade

de voar, eu nada tinha a perder perseguindo uma canção,

razão de viver” (p. 198). A música muda a própria recepção

do mundo, nem inferno, nem paraíso. Aceitar a vida na sua

contingência. Dulce se confunde com o próprio protagonista.

Ao falar de uma das últimas aparições de Dulce, antes da

viagem, é de si que parece falar. “Ela não sente, não vê nem

ouve nada além da própria canção que canta, endereçada a

algo que já não existe nem está mais ali. Como um réquiem”

191

(p. 179). A busca da canção se traduz na busca de uma

estória. É o que Dulce diz ao protagonista: “São tudo

histórias, menino. A história que está sendo contada, cada

um a transforma em outra, na história que quiser. Escolha,

entre todas elas, aquela que seu coração mais gostar, e

persiga-o até o fim do mundo. Mesmo que ninguém compreenda,

como se fosse um combate” (pags. 203/4). “Ao recusar dizer

que o outro deve fazer, ao silenciar sobre isto, sua fala

inquieta o outro” (NAZAR, S.: 2000). Sem ser exemplar, Dulce

é mestre para o protagonista, no seu desejo de integridade:

“chegar ao centro, sem partir-se em mil fragmentos pelo

caminho. Completo, total. Sem deixar pedaço algum para trás”

(p. 180).

No último capítulo, domingo, dia de aniversário e

renascimento do protagonista, ele encontra Dulce, mas só

após passar pelo enfrentamento do temor da homoafetividade,

ao beijar o ex-amante de Dulce, Saul, transformado em

grotesco travesti da cantora (p. 154), como numa referência

ao antológico fim de “Beijo no Asfalto” de Nelson Rodrigues,

encenado anteriormente no próprio livro. “É preciso beijar

192

meu próprio medo, pensei, para que ele se torne meu amigo”,

“é preciso ser capaz de amar meu nojo mais profundo para que

ele mostre o caminho onde eu serei inteiramente eu” (p.190).

E é Saul que revela o paradeiro de Dulce.

Dulce “não era mais bela, tornara-se outra coisa, mais

que isso — talvez real” (p. 199). No entanto, há ainda uma

luz que a rodeia na sua última aparição, em carne e osso, em

Estrela do Norte (p. 213). É ela que grita alto o nome do

protagonista. “Parecia meu nome. Bonito, era meu nome. E eu

comecei a cantar” (idem). Ele se transformara nela. Agora,

ele era uma estrela. Me ajoelho.

Não há mais boa ou má literatura, bons ou maus filmes.

Ou se há, não me importa mais. Há experiência e uma beleza

impura. Há o protagonista. Há eu e você que me lê, que me

ouve. Isto não basta, mas é um começo. Como a frase num

calendário Seicho-No-Ie, os limites entre o sublime e o

banal são frágeis: “Agora é o momento decisivo para

renascer” (p. 17). Não há mais nomes. Nomes sempre lembram

outros nomes, não traduzem identidades, são máscaras na

internet, aparências no mercado, ficções na noite e no dia,

193

heterônimos frenéticos, sem história e densidade. O

protagonista canta seu nome no final, mas não o diz. O

escritor não o diz. Dulce e Márcia e Pedro, tantos outros

personagens saem de cena. Agora é a sua vez ou qual é a sua

voz?

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