Obras Com Orelhas de Burro
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OBRAS COM ORELHAS DE BURRO: TENTATIVA DE UMA ANÁLISECONTRASTIVA DO CONTO O PRÍNCIPE COM AS ORELHAS DE BURRO DATRADIÇÃO ORAL PORTUGUESA E O ROMANCE HOMÓNIMO DE JOSÉ RÉGIO
Anamarija Marinović (FLUL,CLEPUL)
Introdução:
Ao longo deste pequeno trabalho salientaremos
algumas marcas da intertextualidade existentes nas obras
homónimas que pretendemos analisar, apontando tanto para a
riqueza das suas fontes, como para os numerosos níveis de
leitura, compreensão e interpretação destas criações
literárias. Dentro do âmbito que tencionamos investigar,
contrastaremos a estrutura, a linguagem e alguns núcleos
temáticos importantes de forma a vermos como estes aspectos
são abordados na tradição oral e na literatura erudita do
período do segundo Modernismo português. Para esses efeitos
será necessário dar um pequeno enquadramento teórico sobre
a literatura popular e algumas características dos contos
no geral, para nos concentrarmos mais especificamente no
Príncipe com as Orelhas de Burro. No caso da obra de José Régio,
será útil situarmo-lo num contexto histórico para podermos
explicar e entender melhor algumas das suas técnicas
narrativas, temas, motivos e estratégias usadas na
linguagem. Esta metodologia ajudar-nos-á melhor
acompletarmos a imagem dos assuntos que havemos de abordar
nesta pequena análise comparativa.
Características básicas da literatura tradicional e um
olhar sobre O Príncipe com as Orelhas de Burro
Embora a designação desta literatura como oral,
popular ou tradicional ainda provoque opiniões polémicas e
por vezes contrárias, neste capítulo não nos deteremos
muito nas explicaçõws formais, tentando passar directamente
ao tema que nos parece importante. A literatura oral surgiu
nas épocas em que a alfabetização não era acessível para a
maioria da população, nos espaços públicos, transmitida de
boca em boca, rápido e facilmente e servia tanto como um
meio de informação, educação e diversão das pessoas. A
maioria dos investigadores de hoje concorda que estas obras
tinham um proto-autor, que por várias razões ficou em
anonimato. Através dela deixava-se uma série de ideias,
valores, crenças e imagens às gerações que a ouviam. Muitos
dos especialistas nesta matéria salientam a naturalidade e
espontaneidade como algumas das características
fundamentais da literatura tradicional, no entanto podemos
dizer que esta espontaneidade é apenasaparente. Como sugere
Viana (1985:5):
“Decerto, haviam nascido elas (as criações populares)
de bocas eruditas, de penas inspiradas em velhas
literaturas universais: aqueles romances de Cavalaria, onde
2
palpita sempre um cavo rumor de batalha ou de torneio, e
onde uma dama aguarda, em seu solar, o regresso vitorioso
do esposo, tal como a fiel Penélope ao bravo e astucioso
Ulisses.”
Como vemos nesta citação, nem sequer a literatura
popular é isenta de influências antigas, de experiências e
mundividências acumuladas e transmitidas durante séculos. A
sua inspiração nos mitos e literaturas de carácter mais
abrangente e universal pode tentar explicar a existência de
um mesmo conto, lenda ou poema popular em vários povos,
apenas com pormenores de carácter local que o diferenciam
dos outros. Tal é o caso de O imperador Trojan tem orelhas de cabra1na tradição oral sérvia, muito parecido com o Príncipe com as
orelhas de burro português.
Aproximando-nos mais do verdadeiro tema da nossa
investigação, focalizaremos alguns aspectos importantes das
narrativas curtas tradicionais: Carlos Reis e Ana Cristina
Lopes (1987) caracetizam o conto popular como uma narrativa
breve, com um reduzido número de personagens escassamente
caracterizados. Vladimir Propp (1983) acrescenta que
existem dois modelos dominantes de contos tradicionais: de
acordo com o primeiro no conto é apresentado um combate
entre o protagonista do conto e um malfeitor que acaba com
a vitória do herói, e o segundo traz perante o público a1 O conto tradicional sérvio na língua original chama-se U cara Trojanakozije uši e segundo alguns investigadores refere-se ao imperador romanoTraiano, nascido no território da actual Sérvia. No contexto culturalbalcânico muitas vezes sujeito a invasões estrangeiras este contoadquire uma outra dimensão: o imperador ocupador deve ter algumdefeito grave, que faz dele o símbolo da creuldade e do abuso dopoder, uma vez que mata sem piedade todos os barbeiros que lhe dizemque tem orelhas de cabra.
3
existência de uma tarefa difícil que a personagem principal
tem de cumprir passando por uma série de provas e com ajuda
de seres humanos ou objectos mágicos.
Como um dos elementos notáveis da estrutura dos contos
tradicionais é importante mencionar que a sua parte
introdutória serve apenas para apresentar de forma breve o
protagonista, o seu meio familiar e a situação em que se
encontra, para através do seu afastamento de casa a acção
se dinamizar e para se verem as verdadeiras qualidades e
capacidades da personagem central. O modelo da estrutura
de O Príncipe com as orelhas de burro tradicional parece ser um
pouco atípico, uma vez que não vemos a habitual dicotomia
entre o malfeitor e o vencedor, nem perante ele está uma
prova difícil. O conto popular português dá-nos a conhecer
um príncipe de carácter quase invisível sobre o qual se
impõe uma forte figura do rei seu pai, que manda fazer o
barrete para o filho e ameaça de morte o barbeiro se se
atrever a revelar o segredo. Nunca vemos o que pensa, sente
ou expressa o próprio protagonista em relação ao seu
defeito físico. Neste conto, o facto de lhe terem crescido
umas orelhas de burro, nem sequer se pode observar como
efeito de uma malfeitoria propositada por parte das fadas,
mas sim como um eventual sinal de castigo ao rei e à rainha
por não se terem conformado com a sua esterilidade. A
literatura tradicional considera mais natural atribuir o
facto de ser estéril à mulher, uma vez que num meio
cultural patriarcal o prestígio de um soberano seria muito
menor sendo ele incapaz de procriar um filho e dar um
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herdeiro ao seu trono. A tarefa difícil que é referida por
Propp na sua Morfologia do Conto no caso do príncipe que tem
orelhas de burro, poderia eventualmente ser a luta contra o
defeito físico, o que neste caso concreto também não
acontece, porque não vemos nenhuma posição que o próprio
filho do rei toma, não sabemos como reage quando as gaitas
dos pastores revelam o segredo. Outra vez entra em cena o
rei que manda chamar as fadas e pede-as para tirarem as
orelhas do animal ao seu filho, por um acto de magia. Após
o facto, (Viana, 1985:376) vê-se o seguinte: “mas, qual não
foi o contentamento do rei e da rainha e do príncipe ao ver
que já lá não estavam as tais orelhas de burro!” Isto é, o
príncipe aparece apenas como o terceiro elemento que
participa numa alegria geral. Desta citação podemos
indirectamente chegar à conclusão de que ele se sentia
descontente por ter as orelhas diferentes dos outros,
embora não nos tenha sido dito nada mais concreto com
respeito ao assunto. Por último, nesta narrativa não há
afastamento do herói da casa paterna, porque não há
nevessidade para isso, nem sequer para lhe ser feita a
barba, porque disso se encarrega o barbeiro da corte.
Invertendo um pouco a estrutura clássica dos contos
tradicionais, é precisamente o barbeiro que se afasta do
palácio, primeiro para pedir um conselho do senhor padre, e
depois para revelar o segredo que o torturava ao buraco na
terra. Neste conto tradicional, embora o centro das
atenções seja o príncipe, podemos pensar que os verdadeiros
protagonistas sejam o rei, por cuja causa o seu filho foi
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fadado, e o barbeiro que, revelando a alguém, provoca
alguma acção no conto: o espalhamento da notícia, a
preocupação do rei e o acto mágico pelo qual as orelhas
feias são removidas da cabeça do príncipe até que no fim a
voz das gaitas fica calada. Depois da leitura desta
narrativa tradicional e de uma comparação com os motivos e
estrutura do semelhante conto popular sérvio, chegámos à
conclusão que nestas situações o foco do narrador está em
esconder um segredo desgradável do qual nem seguer um
representante da coroa é isento e da impossibilidade de não
o tornar público. O final das duas narrativas é pacífico,
porque no caso português o instrumento deixa de tocar a
melodia não desejada e na narrativa sérvia o imperador
Trojan perdoa a vida ao barbeiro e desde aquele dia permite
que qualquer um pode vir à corte e fazer-lhe a barba, mas
fica com as suas orelhas de cabra.
Em relação às personagens, como corresponde ao modelo
tradicional, o seu número é reduzido: o rei, a rainha, o
príncipe, as três fadas, o barbeiro, o padre confessor e os
pastores, cujo número não foi especificado. O rei é uma
figura dominante, faz-se sempre o que ele manda, a sua
autoridade é tanta que o barbeiro fica seriamente assustado
pela sua vida caso revele o segredo. Esta figura tem muitas
características comuns à grande maioria dos reis nas
narrativas populares: impõe a sua vontade supondo-se que
ele é justo e que sempre tem razão, deseja o bem ao seu
filho (ou menos vergonha para o seu reino) e por isso manda
fazer um barrete que lhe esconda as orelhas, mas, sendo
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também bom e piadoso chama as fadas para livrarem o seu
filho da imperfeição e fica contente ao ver que as orelhas
de burro desapareceram. A personagem da rainha é apenas
mencionada no contexto da esterilidade e da alegria que
sente depois de ver o seu filho novamente belo e perfeito,
o seu espaço está bastante reduzido e não se podem
distinguir claramente características da sua própria
personalidade, a não ser que podemos intuir que é uma
esposa obediente e uma mãe que se alegra do bem do filho.
Estas caracterizações não são exclusivas das rainhas, uma
vez que em muitos contos tradicionais em que a rainha não
pode chegar a ser mãe, notamos pelo menos a sua angústia,
tal como pode acontecer com uma mulher pobre que
posteriormente conceberá um filho encantado. Obedientes e
felizes pelo bem dos outros podem também ser princesas e
oputras personagens caracterizadas como positivas na
literatura tradicional, enquanto que as rainhas, sobretudo
no papel de sogras ou madrastas podem ser apresentadas no
imaginário popular como invejosas, vaidosas ou genuinamente
más. No que diz respeito ao príncipe, já mencionámos que
ele é uma personagem muito passiva, o que em parte se deve
à sua pouca idade, porquue no conto ele apenas começou a
fazer a barba. Por outro lado, podemo-lo caracterizar como
positivo apenas pelas profecias que as fadas pronunciaram
após o seu nascimento: (Viana, 1985: 374) ele é “o
príncipe mais formoso no mundo” e “muito virtuoso e
entendido”, o que corresponde ao estereótipo ideal das
personagens masculinas representantes da realeza ou
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nobreza. As três fadas, como personagens do domínio do
sobrenatural, mesmo pelo facto de serem chamadas “fadas” e
não “velhas”, “feiticeiras” ou “bruxas” podem também ser
imaginadas como positivas: elas fazem o milagre à rainha,
fadam o menino para ter qualidades e retiram-lhe um
defeito. O facto de ter as orelhas de burro deve-se à ordem
pela qual as fadas se pronunciaram sobre o destino do jovem
príncipe: na estrutura em que o número de personagens do
conto é ímpar (geralmente três), a primeira é na maioria
dos casos a pior, a segunda repete os erros da primeira ou
fica “no meio” entre as características boas e más, e a
última (muito frequentemente a mais nova) é a encarnação
das virtudes e qualidades extraordinárias. Neste caso
concreto, a situação é um pouco invertida, sendo a primeira
fada a que lhe dá a beleza física, a segunda opta pelo
entendimento e virtudes, características do mundo
intelectual, emocioinal ou psicológico, e enquanto que o
leitor ou ouvinte ficam à espera que as qualidades
aumentem gradualmente, depara-se com um defeito físico,
para o qual não se dá nenhuma razão e que é apenas sugerido
pelo título. Depois as fadas vão-se embora e reaparecem
apenas para terminar de cumprir o seu trabalho, porque a
feitceria é a única coisa que elas sabem fazer e não
esperam nenhum agradecimento ou recompensa por parte da
família real após terem retirado as orelhas de burro ao
príncipe. Neste sentido, nos contos de fada vê-se um
substrato pagão em que o destino e a predeterminação são
factores muito importantes e fortemente presentes na
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mentalidade das pessoas e desta forma também a presença de
um defeito ou anormalidade nas pessoas é interpretada como
resultado de uma força maior, que pode ser eliminada apenas
por intervenção mágica. O barbeiro é apresentado como
servidor leal do seu rei, mas também como um ser
profundamente humano, com a sua consciência, medos, dúvidas
e, como era normal na época medieval em que os contos
populares surgiram, pede a resolução do seu problema do
senhor padre no sacramento de confissão. Embora aparece
apenas neste acto, a figura do sacerdote confessor é
símbolo de sabedoria, que dá uma proposta sensata para a
dúvida que atormenta a pessoa que tem na sua frente. Os
pastores aparecem como dinamizadores da acção e reveladores
involuntários de um segredo que nem sequer descobririam sem
a ajuda das gaitas: eles não têm culpa, e se existem no
conto é apenas para confirmarem que não há nada secreto que
não chegaria a pertencer ao domínio público. O tom deste
conto é moralizador, pretendendo ensinar justamente o que
acabámos de mencionar, deixando desta forma clara a
mensagem que as pessoas não se deveriam interessar com os
pormenores da vida privada dos outros, e que por outro lado
um segredo, que no início pode parecer grave e
desagradável, num conjunto de circunstâncias favoráveis
pode não causar estranheza a ninguém.
Neste momento prestaremos mais atenção a alguns níveis
de leitura e interpretação da homónima obra culta inspirada
na fonte tradicional.
9
Algumas características do Segundo Modernismo
Português. José Régio e O Príncipe com as Orelhas de Burro
Quando se pensa no termo Segundo Modernismo Português,
a primeira associação que nos surge é a geração de
escritores reunidos à volta da revista Presença, publicada
entre 1927 e 1940 e cujos representantes mais
significativos são João Gaspar Simões e José Maria dos Reis
Pereira, mais conhecido sob o pseudónimo de José Régio. De
acordo com David Mourão Ferreira2 as características
fundamentais desta corrente literária são o primado
absoluto da liberdade de criação, o predomínio do
individual sobre o colectivo e, por consiguiente, do
psicológico sobre o social, uma luta contra a literatura
“livresca”, isto é contra o estilo rebiuscado e demasiado
academismo, independência da arte e da crítica de qualquer
tipo do poder político, tendência à originalidade e à uma
maior valorização do intuitivo sobre o racional. Gaspar
Simões na Presença menciona o conceito da “literatura que
se basta e que nos basta”, em outras palavras uma
literatura bela, não preocupada apenas com a sua beleza,
mês também com a beleza que vai provocar no leitor. Não se
trata da arte pela arte, mas sim a “arte pela vida”, como
continua este autor. Mostra-se uma grande preocupação com a
verdade e sinceridade, que deveriam ser condições da
originalidade de uma obra. Neste contexto de ideias
enquadra-se bem a obra de Régio, um “ser conflituoso” como
2 Esta paráfrase é do texto “Esta nova presença da Presença” incorporado no primeiro tomo da edição facsimilada compactada da Revista Presença, (1993) contexto editora, Lisboa, pp.5-7
10
o qualifica Luiz Piva (1975) estes conflictos no autor e na
sua obra são resultado de vários factores. Como refere
Eugénio Lisboa (1976) a sua vida oscilava entre longas e
necessárias horas de solidão e um grande desejo de conviver
com as pessoas. Ao nível interior e mais íntimo descobrimos
uma outra dualidade em Régio, que diz respeito à sua
religiosidade, como se verá na Confissão de um Homem religioso.
De acordo com Lisboa (2001) José Régio está dividido entre
uma fervorosa necesidade de crer e a sua incapacidade
intelectual de aceitar os mitos religiosos. As fontes que
o influenciaram como escritor são obras de António Nobre,
João de deus, Antero de Quental e Cesário Verde, embora na
infância tenha mostrado também um grande interesse e
entusiasmo pelos romances de cordel. As fontes populares e
cristãs também se entrelaçam com outras leituras que José
Régio faz, direcionando a sua criação num determinado
caminho e dando-lhe uma nova originalidade e criatividade.
Na sua procura da verdade e de uma realidade literária não
livresca, (embora apoiada nas fontes dos livros) com muito
sucesso aborda os temas da imperfeição, aperfeiçoamento,
autoconhecimento, descoberta de si próprio, pecado e
redenção. Dentro deste quadro temático cabem a solidão e o
sofrimento, mas sempre inseparáveis de um sentido superior
e uma criatividade que surge da dor. Uma das maiores
provas da sua genialidade ao nosso ver é a recriação de O
Príncipe com as Orelhas de Burro, inspirado nas fontes da tradição
oral portuguesa, mas aprofundado e enriquecido de inúmeros
níveis de leitura e interpretação, símbolos, metáforas,
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alegorias e significados. Uma destas vertentes de
interpretação é sem dúvida o tom subjectivo e confessional
de toda a obra regiana, que neste romance se vê nos
capítulos finais em que o príncipe Leonel, vestido de negro
e de roupa simples junta as pessoas da corte e confessa que
não é um santo e revela o seu segredo. Entre tanto, Eugénio
Lisboa (1976) carecteriza esta obra como “um romance
poético-simbólico com muitas chaves e confissões
mascaradas”. Neste momento chama-nos a atenção o sintagma
“confissões mascaradas” que sugere logo uma duplicidade e
um constante jogo entre a verdade e a mentira, o real e o
ficcional. Logo no título e subtítulo do romance que
analisamos veremos uma tendência de o autor implicar com o
leitor: associando o título com uma obra que o leitor já
conhece, leva-o mais longe dedicando o livro a “crianças
grandes”. Neste termo vemos uma multiplicidade de entender
a palavra “criança”: fazendo lembrar a infância pode apelar
para o que de inocente e puro, de “infantil” (no sentido
positivo da palavra) ficou em cada leitor adulto, ou pode
remeter para o estado de ignorância e tolice que é evidente
nas pessoas que não vêem nem querem ver os seus defeitos, e
que não querem progredir, ultrapassar o que é negativo
dentro delas, que não querem partir de (Lisboa, in.Regio,
2001) “viagem em sentido da perfeição”. Utilizando
fórmulas da literatura tradicional e não só Régio cria um
romance filosófico, cheio de alusões, do dito e do não
dito, de marcas de intertextualidade, para levar o leitor à
procura das verdades íntimas, escondidas no profundo
12
interior de cada ser. O romance começa situando a acção num
tempo indeterminado “era uma vez”, no espaço imaginário de
um reino chamado Traslândia. Aqui já somos capazes de
intuir alguns níveis de significado e interpretação. Não se
trata apenas de um reino, nem de “longes terras” como é o
caso dos contos maravilhosos tradicionais. Este reino tem
um nome, também traiçoeiro. Pelo sufixo “-lândia”, que
existe nas línguas germânicas e indica terra, pode remeter
para possíveis espaços reais (Islândia, Finlândia), para
países inventados de nomes compridos que aparecem nos
romances cavalerescos, ou pode evidenciar um significado de
ir “para além”, “para dentro” ou “para tras” da superfície
e das aparências. Como sugere Maria Aliete Galhoz (1996:34)
, a “Traslândia não existe, tudo se passa connosco, por
nós e para nós”. Seguindo as aventuras do príncipe somos
envolvidos num processo do encontro connosco mesmos, do
afrontamento do nosso lado escuro, de um caminho de
individuação suposto de nos purificar. Este romance
repreenta um experimento, tanto a nível ficcional, em que
se entrelaçam o natural e o sobrenatural, o sublime e o
banal, o novo e o antigo, como ao nível temático e
estrutural. Neste romance veremos muitos elementos
fantãsticos, qua nas palavras de Tzvetan Todorov (1970) o
fantásticoi é uma “experiência dos limites”. Nesta obra
fala-se de vários tipos de limites, mas também de
cruzamentos, pontes e encontros, o que veremos mais
adiante.Os títulos dos capítulos fazem lembrar os dos
romances cavalerescos e do Dom Quixote, em que mediante
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curtas frases que servem para ilustrar o conteúdo, desejam
captar a atenção do leitor, e o papel do narrador imita os
supostos cronistas antigos que encontraram a obra e são
meros transmissores da informação. Pela primeira pessoa do
singular que o narrador usa, vemos que o seu papel não é
nem pretende ser neutro e opbjectivo, uma vez que ele
convida o leitor a deixar o destino da princesa Leonilde e
a voltar aos acontecimentos relacionados com o príncipe
Leonel, toma uma posição subjectiva, trata o protagonista
como “príncipe encantador” ou “príncipe perfeito com as
orelhas de burro.” Imitando o modelo tradicional, Régio
acrescenta-lhe pormenores da vida quotidiana e das
literaturas. Nomeadamente a falta de um filho causa “grande
mágoa num casal que se entende bem” (Régio, 2001:19)
demistificando desta forma as figuras dos reis e pondo no
segundo plano a importância do nascimento do herdeiro do
trono e apresentando-os como apenas figuras humanas
próximas da realidade do leitor, que têm crises no seu
casamento e em determinados momentos não se toleram. Quando
o escritor descreve pormenores da vida íntima dos reis, dá
um aspecto de trivialidade à sua obra, o que nos contos
tradicionais não pode acontecer. Os factores sobrenaturais
que precederam o nascimento de Leonel vão ao encontro dos
contos maravilhosos, adquirindo uma dimensão mais profunda:
a rainha, além de estéril tinha ataques de histéria e ira e
como se pressentisse a sua morte, consulta o génio da
floresta, as bruxas feias, que na realidade são belas fadas
disfarçadas, que rogam três pragas ao jovem herdeiro. Aqui
14
também notamos o jogo da duplicidade: belo disfarçado de
feio, o bom disfarçado de mau, a veracidade vs, falsidade,
a imperfeição contra a imagem ideal. A praga rogada pela
bruxa mais nova (ao contrário da maior parte dos contos
populares e que de certa forma concorda com a ordem das
coisas na narrativa popular o Príncipe com as Orelhas de Burro) é a
decisiva. O defeito monstuoso e nojento foi-lhe atribuído
propositadamente, para demasiadas qualidades e virtudes não
estragarem o seu carácter, para saber que o preço da
grandeza é muito elevado, que o caminho da individuação é
inseparável do sofrimento, que o sofrimento como tal é um
elemento necessário na vida, só é preciso “saber sofrer”,
aproveitar bem as limitações humanas. Quando as outras
bruxas (fadas) são chamadas de “parvas”, “tolas” ou
“fúteis” dá-se uma brusca interrupção entre o tom sublime
da obra caracterizado por uma linguagem muito bem elaborada
e escolhida e as marcas da linguagem oral do dia-a-dia, e
neste contexto acontece um choque entre o ideal e o banal,
de igual modo os acontecimentos na taverna da Zizi Gorda,
nos quais notamos elementos do picaresco representam um
outro choque entre os mundos opoistos, o perfeito e o
imperfeito. A própria Zizi, uma mulher imoral, que tem
amante, que é bastante ordinária e que se enquadra bem no
mundo dos miseráveis, abandonados e banidos “da gente de
bem” corresponde em muito à imagem da estalajadeira dos
contos populares, uma vez que as estalajadeiras podem ser
qualificadas como pessoas de moral duvidosa, uma vez que
recebem na sua casa todo tipo de pessoas e dão-lhes dormida
15
e abrem-lhes a porta da estalagem durante a noite. Como
refere Ernesto Veiga de Oliveira (in: Coelho, 1985:19): “As
palavras são símbolos que se identificam com o objecto, que
é o seu conteúdo”. Por tanto na literatura tradicional a
linguagem parece ser bastante clara e linear, para atribuir
a cada acontecimento ou personagem um lugar que lhe
corresponde. No caso do romance O Príncipe com as Orelhas de Burro
nem sempre acontece assim, porque está presente a fusão dos
géneros literários (prosa, poesia, confissão, romance
cavaleresco, fontes tradicionais, a Bíblia, elementos dos
livros de hisória), de linguagens, de recursos estilísticos
como jogos de palavras, ironia e alusões. Para ilustrarmos
um pouco esta situação, mencionaremos as “virgens loucas”
que se entregam aos seus namorados em momentos de liberdade
e longe do conttrolo dos pais e parentes, que é uma clara
alusão a uma história bíblica sobre as cinco virgens loucas
e cinco virgens sábias. Por outro lado, fundem-se a
sabedoria popular e uma certa cultura nos poemas compostos
por Rolão Rebolão, o nome de Sancho Legista não é escolhido
por acaso, uma vez que se pode estabelecer uma vaga ralação
entre ele e Sancho Pança. O rei Rodrigo é frequentemente
chamado de El-Rei, que é uma marca tipicamente portuguesa,
que se junta a alguns nomes dos reis históricos
portugueses.
A ironia é também um dos recursos frequentemente
usados ao longo do romance, através das poesias do bobo
deforme, e também quando se descreve a moda de os cidadãos
do reino imitarem o costume do príncipe de usar o turbante
16
“como se todos tivessem orelhas de burro para esconder”,
com o qual se sugere indirectamente que todos têm os seus
defeitos, mas usam várais manhas para dissimulá-los.
Estrutura, personagens e algumas vertentes de leitura
de O Príncipe com as Orelhas de Burro
Como já foi anteriormente mencionado, José Régio optou
por adaptar um conto tradicional português, mudando-lhe a
forma e alguns aspectos do cionteúdo. Uma vez que por
definição o romance representa uma narrativa mais longa,
com um número de personagens maior do que no conto,
pensamos que este género era mais apropriado para
aprofundar os perfis psicológicos dos protagonistas, para
mostrar o rumo das suas vidas com um determinado propósito:
o de convidar o público para olhar de forma diferente para
si e para os outros.
Diferentemente do conto tradicional, cujo tamanho
resumido não permite algum tipo de divisão formal, o
romance regiano está dividido em desasseis capítulos, em
que cada um tem o seu título e representa uma continuação
lógica do anterior. O espaço em que a intriga da acção está
situada, é um reino inventado, em que o palácio, as ruas,
as praças, a taverna e muitos sub-espaços estão descritos
com um certo número de pormenores que dá ao leitor a ideia
de uma determinada veracidade. Os temas que o autor aborda
mediante a presença de um narrador e as personagens são
aprofundados e tratados de forma que nos pareça que existe
um fio condutpor na história e uma relação de causa e
efeito. Os reis estão angustiados por não terem um filho, o
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filho nasce para ser a realização e fruto de um amor, tem o
defeito que lhe causa horror e nojo para descobrir a sua
diferença em relação aos outros e para, como afirma Maria
Aliete Galhoz (1996) aceitar “as qualidades e riscos da
diferença”. O génio da floresta aparece para ser um
correlato do velho sábio dos contos tradicionais. O Rolão
Rebolão na sua monstruosidade é por sua vez complementar e
também oposto ao príncipe etc. Do ponto de vista temporal,
embora haja um “era uma vez”, o leitor não se sente muito
distanciado da época em que acontece a intriga, uma vez que
se mencionarão as tentativas da revolução contra o rei, que
pode ser um eco da realidade histórica portuguesa do início
do século XX. No que se refere ao tempo, também há uma
relação de anterioridade e posterioridade que se segue numa
ordem lógica das coisas e o tempo passa num ritmo mais
lento do que nos contos tradicionais. Nomeadamente o
príncipe das orelhas de burro nasce, para pouco depois ser
mencionada a sua idade de fazer a barba, enquanto que no
romance se descrevem as tentativas de o casal real ter um
filho, o seu nascimento, a morte da rainha, a escolha de um
aio para o jovem príncipe, a maioria da idade de Leonel, a
descoberta da sua anomalia, a saída de casa, as idas pelo
reino fora, a volta para o pelácio real, para acabar com a
sua morte e a gravidez da nova rainha Letícia. Analisando o
conto popular português sobre o príncipe que tem as orelhas
de burro, notámos que não se realiza o seu afastamento da
casa paterna do qual falava Propp (1986) e por isso ele até
ao fim do conto fica no seu estado infantil. No entento,
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seguindo a lógica dos contos tradicionais e ao mesmo tempo
os romances de Cavalaria, o herói tem de se afastar
temporariamente do lar paterno, para através de uma série
de aventuras e provas voltar diferente, mais forte e mais
enriquecido por uma experiência e fechar um ciclo. Desta
forma concluimos que a estrutura narrativa neste romance
tem elementos lineares e circulares. Contrariamente das
narrativas populares em que o protagonista se vai embora da
casa no início da narração, o príncipe Leonel não é nem
expulso pela madrasta (que de facto não tem), nem vai pelo
mundo fora à nprocura de uma esposa ideal (porque primeiro
pensamos que a sua escolhida será a princesa Leonilde),
nem vai aprender algum ofício, nem salvar a irmã, como é
habitual com os príncipes “habituais” dos contos
maravilhosos. Sai de casa pela porta pequena e às
escondidas, horrorizado pela imagem que o espelho lhe
mostra, afasta-se com a plena consciência da sua
monstruosidade e do falso e vazio que era o mundo que o
rodeava. Neste momento surgiu-nos a ideia de fazermos um
pequeno paralelismo coom O Príncipe e o Pobre de Mark Twain, em
que o protagonista, saciado da vida em luxo e desejoso de
conhecer uma vida diferente, abandona o palácio e vai
conhecendo o seu reino e a si próprio. Embora os motivos da
saida sejam diferentes, os dois príncipes abandonam a vida
anterior e voltam tendo aprendido uma grande lição sobre a
vida e a maturidade. Fugir de si para ir ao encontro de si
próprio e de uma paz interior é típico também dos heróis
românticos, incompreendidos pelo mundo e profundamente
19
afectados pela “dor mundial”. No caso de Leonel, não
podemos felar tanto numa dor universal, como melhor dito
numa dor iindividual que de certa forma diz respeito a cada
pessoa. No sentido cristão que emana da obra, sublinha-se
um aspecto muito marcante: que a soberba é o pecado
principal, que através da humildade e modéstia, e não
apenas mediante o reconhecimento dos erros, mas também
mediante a tend~encia de os corrigirmos e transformarmo-nos
por dentro, o ser humano vive uma catarse, um processo de
crescimento interior que lhe dá uma dimensão completamente
nova.
Indo pelo reino fora, conhecendo os sítios obscuros e
a mesquinhice que existe no mundo Leonel aprendeu que a
morte, quer no sentido figurado, quer no sentido físico não
é o fim, mas começo de uma vida melhor. Daqui ecoa o antigo
mito de Fénix, mas também um profundo cristianismo embora
não directamente assumido por Régio.
Os motivos do caminho e do espelho, frequentes neste
autor reconhecemos o encontro com o íntimo, com a verdade,
com o defeito, com a imperfeição que não servem para
desmoptivar e desmoralizar o protagonista, mas sim para o
fazer ver e ser visto de outra forma. Na duplicidade dos
pares, nos (Piva, 1975: 19) “pavores, medos, vultos e
sombras” que rodeiam o príncipe começamos a perceber melhor
um tom moralizador e educativo desta narrativa, o de
ensinar os verdadeiros valores: da coragem, honra,
autoaceitação, auto-estima, fé, amor e heroísmo tão
pregoados também na literatura tradicional, embora de outra
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forma. Na estrutura narrativa Régio inverte algumas “leis”
tradicionais, introduzindo a princesa Leonilde, irmã mais
velha, como a encarnação da beleza e de todas as virtudes,
pela quel primeiro se apaixona o jovem príncipe, enquanto
que a mais nova é apresentada como feia e invisível sob a
sombra imponente da irmã. Aqui destrói-se aparentemente a
ideia clássica de irmã mais velha ser feia e má enquanto
que a mais nova é a sua completa oposição. Porém, mesmo que
até os seus corpos pareçam metades de um único corpo
perfeito, os seus nomes indiquem uma predeterminação3, a
princesa mais nova, que pelos vistos não se sabe comportar
em público, não tem encanto nenhum e parece triste, tem um
olhar profundo e sereno e o seu nome Letícia, que significa
alegria, merecerá ser a esposa ideal do pri´ncipe. Neste
caso Régio respeita o modelo tradicional do conto.
No que diz respeito às personagens, referiremos apenas
o do rei D. Rodrigo, a rainha, do Aio, de Rolão Rebolão e
das princesas Leonilde e Letícia, porque os considerámos os
mais interessantes. Na literatura tradicional, quando uma
personagem tem um nome próprio, este nome não é escolhido
por acaso. Pode ser derivado de uma característica física
ou psicológica, da sua origem, profissão ou estatuto
social, mas tem um simbolismo, isto é designa exactamente
aquilo que o narrador popular deseja salientar. Desta
forma, o Mama-na-Burra foi amamentado por uma burra, a
3 Esta predeterminação condicionada pelos nomes aparece no cancioneiro popular, em que pode acontecer que um José Maria se apaixone por uma Maria José, ou quando uma rapariga confessa que ama um Emanuel, por ter um dos nomes com os quais foi qualificado Jesus Cristo etc.
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Menina Fina é o oposto das suas más irmãs Preguiçosa e
Faladeira. Seguindo esta lógica Régio dá a algumas
personagens os nomes muito ilustrativos: Rolão Rebolão,
(que pela sonoridade e as últimas sílabas faz lembrar o
João Ratão tradicional) indica um monstro sem pernas que
rebola pelo chão, a Zizi Gorda, o Sorte Negra e o Pata
Rachada são suficientemente simbólicos por eles próprios,
uma vez que a gordura e os defeitos físicos ou morais têm
de ser visívelmente marcados na literatura popular, na qual
se apoia Régio também. No caso dos reis, ele é designado
como Rodrigo, que é o nome que corresponde a algumas
figuras históricas e lendárias da Península Ibérica, e a
rainha-mãe é identificada por um nome convencional da
literatura cavaleresca, Elsa, que de certa forma se adequa
com a sua finura, discreção, e outras virtudes. O príncipe
é Leonel, para à primeira vista ser um par perfeito da
princesa Leonilde, e a princesa Letícia, triste e apagada,
enciontra a sua alegria no amor profundo e na vida familiar
retirada e cheia de dignidade com o seu “príncipe perfeito
com as orelhas de burro”.
Uma das personagens importantes é sem dúvida o
“monstro sem pernas” Rolão Rebolão, obo-poeta da corte, que
por vezes aproveita a posição que lhe dá a sua deformidade
física e o carácter pouco sério da sua profissão, para,
através da poesia e alegorias que usa, dizer muitas
verdades. Desta forma, não lhe escapa que a princesa
leonilde é uma “boneca articulada”, que a princesa Letícia
é “uma pétala no lixo” etc. Fiel ao príncipe, mas por outro
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lado não vê a hora de saber o seu defeito e de satisfazer o
seu espírito e descorir a imperfeiçaõ de Leonel. Sugere-lhe
para não se confessar em público, “porque os outros naõ
merecem”, regozijando-se muito de saber que ele não é o
único defeitoso e monstruoso. Embora Régio na maioria das
situações tente apresentar o Rolão Reolão como uma
personagem positiva que sofre muito, deixa-o monstruoso até
ao fim do romance, não lhe crescem as pernas como seria o
caso nos contos populares. Julgamos que esta estratégia do
autor é propositada: na primeira leitura do livro pareceu-
nos latente uma certa mesquinhice na alma do bobo-poeta,
uma certa alegria escondida de saber que na corte há
problemas e que o príncipe não é o que se apresenta. Ele
pode representar a sombra de Leonel, no sentido junguiano
da palavra: ambos têm defeitos, só que o bobo ao nosso ver
sofre e não assume os seus tão claramente, ao contrário do
príncipe que reconhecendo-se como horrível vive uma
purificação.
Por último, a personagem do Aio, inseparável do
príncipe Leonel, que na opinião de Eugénio Lisboa pode
representar o seu alter ego, por isso ninguém nota a ausência
do jovem herdeiro da corte da Traslândia. É misterioso,
ninguém sabe nada sobre ele, mas tem tanta influência na
corte que é invejado pelos cortesãos intriguistas, imorais,
avarentos e é temido até pelo próprio rei. Parece ser
também uma possível transposição do velho sábio dos contos
tradicionais ou, ao nosso ver, pode ser uma variante do
barbeiro do Príncipe com as Orelhas de Burro surgido na literatura
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popular O Aio sabe o segredo do príncipe, tal como o
barbeiro, no entanto os seus papéis são um pouco
invertidos. O barbeiro teme pela sua vida, o Aio mete medo
aos que o rodeiam. Tanto um como outro desejam revelar o
que sabem, só que o barbeiro é torturado pelo peso
desagradável e tem de o dizer na confissão, e o Aio espera
o momento apropriado, guarda silêncio e parece ter mais
sangue frio em relação ao que sabe. Ele não tem nome, como
as personagens que pertencem às categorias-tipo na
literatura tradicional ( o rei, o pescador, o padre, o
criado, o lavrador). Porém o estatuto de aio é uma espécie
de seu nome próprio, porque além de estar escrito com
maiúscula, designa profundamente o seu carácter: é
discreto, próximo do príncipe, ensina-o, tem grande cultura
e sabedoria, cabe dentro da categoria do aio ideal, e a
forma de o se marcar com maiúscula a sua profissão-nome,
aproxima-se outra vez dos nomes das personagens da
literatura oral (Arasa-Montanhas tem justamente este nome
porque a sua força física lhe permite arasar montanhas,
Come-Bois tem tanto apetite para poder comer um boi à
sobremesa, a Menina Fina distingue-se pela sua finura) e o
Aio é Aio, “personagem que se torna pessoa”, como Maria
Aliete Galhoz (1996) qualifica as personagens deste romance
de José Régio. As personagens de O Príncipe com as Orelhas de
Burro regiano têm “três dimensões”, nem absolutamente
positivas, nem negativas, até os seres do mundo
sobrenatural aproximam-se dos humanos, fazem lembrar os
modelos literários, mas não são nada “livrescas” e
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rebuscadas. Com a sua vivacidade, variedade de caracteres e
linguagens fazem com que o leitor fique com uma impressão
especial. Esta obra pode ser lida como alegoria, como
romance de carácter moralizador ou como “história para
crianças grandes”, com elementos de humor, ironia, alusões
às fontes populares, com uma série de níveis e camadas que
não podem ser descobertas apenas após duas leituras.
Ilustrações como elemento de intertextualidade no
Príncipe com as Orelhas de Burro
Tendo em conta que o gráfico muitas vezes serve como
um complemento para o literário, diremos algumas palavras
sore este aspecto. Quando lemos o Príncipe com as Orelhas de Burro
tradicional, utilizámos duas edições: a de Adolfo Coelho
(1985) em que as ilustrações figuram apenas na capa,
enquanto que não existem ligadas ao texto dos contos e a de
Viana (1985), em que as ilustrações bonitas e a cores
acompanham o texto quer do cancioneiro, quer do teatro
popular, como também o dos contos maravilhosos. No caso do
Príncipe, vemos um berço, com um príncipe-bebé a sorrir no
momento em que três belas fadas o vêm visitar. Num livro
destinado ao público infantil as ilustrações fazem todo o
sentido, desenvolvem a imaginação e completam o conteúdo da
história. Sendo o Príncipe com as Orelhas de Burro regiano
destinado “às crianças grandes” é mais lógico que as
ilustrações sejam a preto e branco, com linhas simples,
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mais parecidas com caricaturas, podendo-se o romance
interpretar como uma espécie de cariicatura da literatura
popular. Sabendo também que nas vanguardas e no Modernismo
o gráfico é inseparável do literário, podemos considerar as
ilustrações inseridas no corpus do livro podem ser uma
espécie de elemento de intertextualidade, uma outra
linguagem que transmite partes da mensagem do romance, que
não é uma estratégia nova e original, uma vez quie isso
acontece também com as ilustrações de Gustavo Doré que
acompanham algumas edições de Dom Quixote.
Conclusões: Depois da leitura do conto tradicional português O
Príncipe com as Orelhas de Burro, a sua variante surgida na
tradição popular sérvia O Imperador Trojan Tem Orelhas de Cabra e
o romance de josé Régio que se apoia na fonte popular,
deparámo-nos com uma série de semelhanças, diferenças,
duplicidades e multiplicidades que por um lado eram
esperadas, mas por outro foram causadoras de uma grande
surpresa por nossa parte, mais no sentido de descoberta,
criação e recriação. Notámos algumas formas de o autor
(des)respeitar as fontes tradicionais e “livrescas”,
apoiando-se nelas e ao mesmo tempo caminhando em direcção
dea originalidade. A variedade de planos e níveis de
leitura tanto dos contos como do romance sugere ao leitor,
criança, adulto ou criança grande que não é possível ficar-
se indiferente perante uma literatura viva, que continua a
falar, transmitir mensagens e de certa forma implicar com o
público do qual se aproxima, fazendo-o reflectir sobre
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assuntos que numa primeira leitura tal vez não fosse capaz
de reconhecer completamente.
Bibliografia:
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