Obras Com Orelhas de Burro

27
OBRAS COM ORELHAS DE BURRO: TENTATIVA DE UMA ANÁLISE CONTRASTIVA DO CONTO O PRÍNCIPE COM AS ORELHAS DE BURRO DA TRADIÇÃO ORAL PORTUGUESA E O ROMANCE HOMÓNIMO DE JOSÉ RÉGIO Anamarija Marinović (FLUL, CLEPUL) Introdução: Ao longo deste pequeno trabalho salientaremos algumas marcas da intertextualidade existentes nas obras homónimas que pretendemos analisar, apontando tanto para a riqueza das suas fontes, como para os numerosos níveis de leitura, compreensão e interpretação destas criações literárias. Dentro do âmbito que tencionamos investigar, contrastaremos a estrutura, a linguagem e alguns núcleos temáticos importantes de forma a vermos como estes aspectos são abordados na tradição oral e na literatura erudita do período do segundo Modernismo português. Para esses efeitos será necessário dar um pequeno enquadramento teórico sobre a literatura popular e algumas características dos contos no geral, para nos concentrarmos mais especificamente no Príncipe com as Orelhas de Burro. No caso da obra de José Régio, será útil situarmo-lo num contexto histórico para podermos explicar e entender melhor algumas das suas técnicas

Transcript of Obras Com Orelhas de Burro

OBRAS COM ORELHAS DE BURRO: TENTATIVA DE UMA ANÁLISECONTRASTIVA DO CONTO O PRÍNCIPE COM AS ORELHAS DE BURRO DATRADIÇÃO ORAL PORTUGUESA E O ROMANCE HOMÓNIMO DE JOSÉ RÉGIO

Anamarija Marinović (FLUL,CLEPUL)

Introdução:

Ao longo deste pequeno trabalho salientaremos

algumas marcas da intertextualidade existentes nas obras

homónimas que pretendemos analisar, apontando tanto para a

riqueza das suas fontes, como para os numerosos níveis de

leitura, compreensão e interpretação destas criações

literárias. Dentro do âmbito que tencionamos investigar,

contrastaremos a estrutura, a linguagem e alguns núcleos

temáticos importantes de forma a vermos como estes aspectos

são abordados na tradição oral e na literatura erudita do

período do segundo Modernismo português. Para esses efeitos

será necessário dar um pequeno enquadramento teórico sobre

a literatura popular e algumas características dos contos

no geral, para nos concentrarmos mais especificamente no

Príncipe com as Orelhas de Burro. No caso da obra de José Régio,

será útil situarmo-lo num contexto histórico para podermos

explicar e entender melhor algumas das suas técnicas

narrativas, temas, motivos e estratégias usadas na

linguagem. Esta metodologia ajudar-nos-á melhor

acompletarmos a imagem dos assuntos que havemos de abordar

nesta pequena análise comparativa.

Características básicas da literatura tradicional e um

olhar sobre O Príncipe com as Orelhas de Burro

Embora a designação desta literatura como oral,

popular ou tradicional ainda provoque opiniões polémicas e

por vezes contrárias, neste capítulo não nos deteremos

muito nas explicaçõws formais, tentando passar directamente

ao tema que nos parece importante. A literatura oral surgiu

nas épocas em que a alfabetização não era acessível para a

maioria da população, nos espaços públicos, transmitida de

boca em boca, rápido e facilmente e servia tanto como um

meio de informação, educação e diversão das pessoas. A

maioria dos investigadores de hoje concorda que estas obras

tinham um proto-autor, que por várias razões ficou em

anonimato. Através dela deixava-se uma série de ideias,

valores, crenças e imagens às gerações que a ouviam. Muitos

dos especialistas nesta matéria salientam a naturalidade e

espontaneidade como algumas das características

fundamentais da literatura tradicional, no entanto podemos

dizer que esta espontaneidade é apenasaparente. Como sugere

Viana (1985:5):

“Decerto, haviam nascido elas (as criações populares)

de bocas eruditas, de penas inspiradas em velhas

literaturas universais: aqueles romances de Cavalaria, onde

2

palpita sempre um cavo rumor de batalha ou de torneio, e

onde uma dama aguarda, em seu solar, o regresso vitorioso

do esposo, tal como a fiel Penélope ao bravo e astucioso

Ulisses.”

Como vemos nesta citação, nem sequer a literatura

popular é isenta de influências antigas, de experiências e

mundividências acumuladas e transmitidas durante séculos. A

sua inspiração nos mitos e literaturas de carácter mais

abrangente e universal pode tentar explicar a existência de

um mesmo conto, lenda ou poema popular em vários povos,

apenas com pormenores de carácter local que o diferenciam

dos outros. Tal é o caso de O imperador Trojan tem orelhas de cabra1na tradição oral sérvia, muito parecido com o Príncipe com as

orelhas de burro português.

Aproximando-nos mais do verdadeiro tema da nossa

investigação, focalizaremos alguns aspectos importantes das

narrativas curtas tradicionais: Carlos Reis e Ana Cristina

Lopes (1987) caracetizam o conto popular como uma narrativa

breve, com um reduzido número de personagens escassamente

caracterizados. Vladimir Propp (1983) acrescenta que

existem dois modelos dominantes de contos tradicionais: de

acordo com o primeiro no conto é apresentado um combate

entre o protagonista do conto e um malfeitor que acaba com

a vitória do herói, e o segundo traz perante o público a1 O conto tradicional sérvio na língua original chama-se U cara Trojanakozije uši e segundo alguns investigadores refere-se ao imperador romanoTraiano, nascido no território da actual Sérvia. No contexto culturalbalcânico muitas vezes sujeito a invasões estrangeiras este contoadquire uma outra dimensão: o imperador ocupador deve ter algumdefeito grave, que faz dele o símbolo da creuldade e do abuso dopoder, uma vez que mata sem piedade todos os barbeiros que lhe dizemque tem orelhas de cabra.

3

existência de uma tarefa difícil que a personagem principal

tem de cumprir passando por uma série de provas e com ajuda

de seres humanos ou objectos mágicos.

Como um dos elementos notáveis da estrutura dos contos

tradicionais é importante mencionar que a sua parte

introdutória serve apenas para apresentar de forma breve o

protagonista, o seu meio familiar e a situação em que se

encontra, para através do seu afastamento de casa a acção

se dinamizar e para se verem as verdadeiras qualidades e

capacidades da personagem central. O modelo da estrutura

de O Príncipe com as orelhas de burro tradicional parece ser um

pouco atípico, uma vez que não vemos a habitual dicotomia

entre o malfeitor e o vencedor, nem perante ele está uma

prova difícil. O conto popular português dá-nos a conhecer

um príncipe de carácter quase invisível sobre o qual se

impõe uma forte figura do rei seu pai, que manda fazer o

barrete para o filho e ameaça de morte o barbeiro se se

atrever a revelar o segredo. Nunca vemos o que pensa, sente

ou expressa o próprio protagonista em relação ao seu

defeito físico. Neste conto, o facto de lhe terem crescido

umas orelhas de burro, nem sequer se pode observar como

efeito de uma malfeitoria propositada por parte das fadas,

mas sim como um eventual sinal de castigo ao rei e à rainha

por não se terem conformado com a sua esterilidade. A

literatura tradicional considera mais natural atribuir o

facto de ser estéril à mulher, uma vez que num meio

cultural patriarcal o prestígio de um soberano seria muito

menor sendo ele incapaz de procriar um filho e dar um

4

herdeiro ao seu trono. A tarefa difícil que é referida por

Propp na sua Morfologia do Conto no caso do príncipe que tem

orelhas de burro, poderia eventualmente ser a luta contra o

defeito físico, o que neste caso concreto também não

acontece, porque não vemos nenhuma posição que o próprio

filho do rei toma, não sabemos como reage quando as gaitas

dos pastores revelam o segredo. Outra vez entra em cena o

rei que manda chamar as fadas e pede-as para tirarem as

orelhas do animal ao seu filho, por um acto de magia. Após

o facto, (Viana, 1985:376) vê-se o seguinte: “mas, qual não

foi o contentamento do rei e da rainha e do príncipe ao ver

que já lá não estavam as tais orelhas de burro!” Isto é, o

príncipe aparece apenas como o terceiro elemento que

participa numa alegria geral. Desta citação podemos

indirectamente chegar à conclusão de que ele se sentia

descontente por ter as orelhas diferentes dos outros,

embora não nos tenha sido dito nada mais concreto com

respeito ao assunto. Por último, nesta narrativa não há

afastamento do herói da casa paterna, porque não há

nevessidade para isso, nem sequer para lhe ser feita a

barba, porque disso se encarrega o barbeiro da corte.

Invertendo um pouco a estrutura clássica dos contos

tradicionais, é precisamente o barbeiro que se afasta do

palácio, primeiro para pedir um conselho do senhor padre, e

depois para revelar o segredo que o torturava ao buraco na

terra. Neste conto tradicional, embora o centro das

atenções seja o príncipe, podemos pensar que os verdadeiros

protagonistas sejam o rei, por cuja causa o seu filho foi

5

fadado, e o barbeiro que, revelando a alguém, provoca

alguma acção no conto: o espalhamento da notícia, a

preocupação do rei e o acto mágico pelo qual as orelhas

feias são removidas da cabeça do príncipe até que no fim a

voz das gaitas fica calada. Depois da leitura desta

narrativa tradicional e de uma comparação com os motivos e

estrutura do semelhante conto popular sérvio, chegámos à

conclusão que nestas situações o foco do narrador está em

esconder um segredo desgradável do qual nem seguer um

representante da coroa é isento e da impossibilidade de não

o tornar público. O final das duas narrativas é pacífico,

porque no caso português o instrumento deixa de tocar a

melodia não desejada e na narrativa sérvia o imperador

Trojan perdoa a vida ao barbeiro e desde aquele dia permite

que qualquer um pode vir à corte e fazer-lhe a barba, mas

fica com as suas orelhas de cabra.

Em relação às personagens, como corresponde ao modelo

tradicional, o seu número é reduzido: o rei, a rainha, o

príncipe, as três fadas, o barbeiro, o padre confessor e os

pastores, cujo número não foi especificado. O rei é uma

figura dominante, faz-se sempre o que ele manda, a sua

autoridade é tanta que o barbeiro fica seriamente assustado

pela sua vida caso revele o segredo. Esta figura tem muitas

características comuns à grande maioria dos reis nas

narrativas populares: impõe a sua vontade supondo-se que

ele é justo e que sempre tem razão, deseja o bem ao seu

filho (ou menos vergonha para o seu reino) e por isso manda

fazer um barrete que lhe esconda as orelhas, mas, sendo

6

também bom e piadoso chama as fadas para livrarem o seu

filho da imperfeição e fica contente ao ver que as orelhas

de burro desapareceram. A personagem da rainha é apenas

mencionada no contexto da esterilidade e da alegria que

sente depois de ver o seu filho novamente belo e perfeito,

o seu espaço está bastante reduzido e não se podem

distinguir claramente características da sua própria

personalidade, a não ser que podemos intuir que é uma

esposa obediente e uma mãe que se alegra do bem do filho.

Estas caracterizações não são exclusivas das rainhas, uma

vez que em muitos contos tradicionais em que a rainha não

pode chegar a ser mãe, notamos pelo menos a sua angústia,

tal como pode acontecer com uma mulher pobre que

posteriormente conceberá um filho encantado. Obedientes e

felizes pelo bem dos outros podem também ser princesas e

oputras personagens caracterizadas como positivas na

literatura tradicional, enquanto que as rainhas, sobretudo

no papel de sogras ou madrastas podem ser apresentadas no

imaginário popular como invejosas, vaidosas ou genuinamente

más. No que diz respeito ao príncipe, já mencionámos que

ele é uma personagem muito passiva, o que em parte se deve

à sua pouca idade, porquue no conto ele apenas começou a

fazer a barba. Por outro lado, podemo-lo caracterizar como

positivo apenas pelas profecias que as fadas pronunciaram

após o seu nascimento: (Viana, 1985: 374) ele é “o

príncipe mais formoso no mundo” e “muito virtuoso e

entendido”, o que corresponde ao estereótipo ideal das

personagens masculinas representantes da realeza ou

7

nobreza. As três fadas, como personagens do domínio do

sobrenatural, mesmo pelo facto de serem chamadas “fadas” e

não “velhas”, “feiticeiras” ou “bruxas” podem também ser

imaginadas como positivas: elas fazem o milagre à rainha,

fadam o menino para ter qualidades e retiram-lhe um

defeito. O facto de ter as orelhas de burro deve-se à ordem

pela qual as fadas se pronunciaram sobre o destino do jovem

príncipe: na estrutura em que o número de personagens do

conto é ímpar (geralmente três), a primeira é na maioria

dos casos a pior, a segunda repete os erros da primeira ou

fica “no meio” entre as características boas e más, e a

última (muito frequentemente a mais nova) é a encarnação

das virtudes e qualidades extraordinárias. Neste caso

concreto, a situação é um pouco invertida, sendo a primeira

fada a que lhe dá a beleza física, a segunda opta pelo

entendimento e virtudes, características do mundo

intelectual, emocioinal ou psicológico, e enquanto que o

leitor ou ouvinte ficam à espera que as qualidades

aumentem gradualmente, depara-se com um defeito físico,

para o qual não se dá nenhuma razão e que é apenas sugerido

pelo título. Depois as fadas vão-se embora e reaparecem

apenas para terminar de cumprir o seu trabalho, porque a

feitceria é a única coisa que elas sabem fazer e não

esperam nenhum agradecimento ou recompensa por parte da

família real após terem retirado as orelhas de burro ao

príncipe. Neste sentido, nos contos de fada vê-se um

substrato pagão em que o destino e a predeterminação são

factores muito importantes e fortemente presentes na

8

mentalidade das pessoas e desta forma também a presença de

um defeito ou anormalidade nas pessoas é interpretada como

resultado de uma força maior, que pode ser eliminada apenas

por intervenção mágica. O barbeiro é apresentado como

servidor leal do seu rei, mas também como um ser

profundamente humano, com a sua consciência, medos, dúvidas

e, como era normal na época medieval em que os contos

populares surgiram, pede a resolução do seu problema do

senhor padre no sacramento de confissão. Embora aparece

apenas neste acto, a figura do sacerdote confessor é

símbolo de sabedoria, que dá uma proposta sensata para a

dúvida que atormenta a pessoa que tem na sua frente. Os

pastores aparecem como dinamizadores da acção e reveladores

involuntários de um segredo que nem sequer descobririam sem

a ajuda das gaitas: eles não têm culpa, e se existem no

conto é apenas para confirmarem que não há nada secreto que

não chegaria a pertencer ao domínio público. O tom deste

conto é moralizador, pretendendo ensinar justamente o que

acabámos de mencionar, deixando desta forma clara a

mensagem que as pessoas não se deveriam interessar com os

pormenores da vida privada dos outros, e que por outro lado

um segredo, que no início pode parecer grave e

desagradável, num conjunto de circunstâncias favoráveis

pode não causar estranheza a ninguém.

Neste momento prestaremos mais atenção a alguns níveis

de leitura e interpretação da homónima obra culta inspirada

na fonte tradicional.

9

Algumas características do Segundo Modernismo

Português. José Régio e O Príncipe com as Orelhas de Burro

Quando se pensa no termo Segundo Modernismo Português,

a primeira associação que nos surge é a geração de

escritores reunidos à volta da revista Presença, publicada

entre 1927 e 1940 e cujos representantes mais

significativos são João Gaspar Simões e José Maria dos Reis

Pereira, mais conhecido sob o pseudónimo de José Régio. De

acordo com David Mourão Ferreira2 as características

fundamentais desta corrente literária são o primado

absoluto da liberdade de criação, o predomínio do

individual sobre o colectivo e, por consiguiente, do

psicológico sobre o social, uma luta contra a literatura

“livresca”, isto é contra o estilo rebiuscado e demasiado

academismo, independência da arte e da crítica de qualquer

tipo do poder político, tendência à originalidade e à uma

maior valorização do intuitivo sobre o racional. Gaspar

Simões na Presença menciona o conceito da “literatura que

se basta e que nos basta”, em outras palavras uma

literatura bela, não preocupada apenas com a sua beleza,

mês também com a beleza que vai provocar no leitor. Não se

trata da arte pela arte, mas sim a “arte pela vida”, como

continua este autor. Mostra-se uma grande preocupação com a

verdade e sinceridade, que deveriam ser condições da

originalidade de uma obra. Neste contexto de ideias

enquadra-se bem a obra de Régio, um “ser conflituoso” como

2 Esta paráfrase é do texto “Esta nova presença da Presença” incorporado no primeiro tomo da edição facsimilada compactada da Revista Presença, (1993) contexto editora, Lisboa, pp.5-7

10

o qualifica Luiz Piva (1975) estes conflictos no autor e na

sua obra são resultado de vários factores. Como refere

Eugénio Lisboa (1976) a sua vida oscilava entre longas e

necessárias horas de solidão e um grande desejo de conviver

com as pessoas. Ao nível interior e mais íntimo descobrimos

uma outra dualidade em Régio, que diz respeito à sua

religiosidade, como se verá na Confissão de um Homem religioso.

De acordo com Lisboa (2001) José Régio está dividido entre

uma fervorosa necesidade de crer e a sua incapacidade

intelectual de aceitar os mitos religiosos. As fontes que

o influenciaram como escritor são obras de António Nobre,

João de deus, Antero de Quental e Cesário Verde, embora na

infância tenha mostrado também um grande interesse e

entusiasmo pelos romances de cordel. As fontes populares e

cristãs também se entrelaçam com outras leituras que José

Régio faz, direcionando a sua criação num determinado

caminho e dando-lhe uma nova originalidade e criatividade.

Na sua procura da verdade e de uma realidade literária não

livresca, (embora apoiada nas fontes dos livros) com muito

sucesso aborda os temas da imperfeição, aperfeiçoamento,

autoconhecimento, descoberta de si próprio, pecado e

redenção. Dentro deste quadro temático cabem a solidão e o

sofrimento, mas sempre inseparáveis de um sentido superior

e uma criatividade que surge da dor. Uma das maiores

provas da sua genialidade ao nosso ver é a recriação de O

Príncipe com as Orelhas de Burro, inspirado nas fontes da tradição

oral portuguesa, mas aprofundado e enriquecido de inúmeros

níveis de leitura e interpretação, símbolos, metáforas,

11

alegorias e significados. Uma destas vertentes de

interpretação é sem dúvida o tom subjectivo e confessional

de toda a obra regiana, que neste romance se vê nos

capítulos finais em que o príncipe Leonel, vestido de negro

e de roupa simples junta as pessoas da corte e confessa que

não é um santo e revela o seu segredo. Entre tanto, Eugénio

Lisboa (1976) carecteriza esta obra como “um romance

poético-simbólico com muitas chaves e confissões

mascaradas”. Neste momento chama-nos a atenção o sintagma

“confissões mascaradas” que sugere logo uma duplicidade e

um constante jogo entre a verdade e a mentira, o real e o

ficcional. Logo no título e subtítulo do romance que

analisamos veremos uma tendência de o autor implicar com o

leitor: associando o título com uma obra que o leitor já

conhece, leva-o mais longe dedicando o livro a “crianças

grandes”. Neste termo vemos uma multiplicidade de entender

a palavra “criança”: fazendo lembrar a infância pode apelar

para o que de inocente e puro, de “infantil” (no sentido

positivo da palavra) ficou em cada leitor adulto, ou pode

remeter para o estado de ignorância e tolice que é evidente

nas pessoas que não vêem nem querem ver os seus defeitos, e

que não querem progredir, ultrapassar o que é negativo

dentro delas, que não querem partir de (Lisboa, in.Regio,

2001) “viagem em sentido da perfeição”. Utilizando

fórmulas da literatura tradicional e não só Régio cria um

romance filosófico, cheio de alusões, do dito e do não

dito, de marcas de intertextualidade, para levar o leitor à

procura das verdades íntimas, escondidas no profundo

12

interior de cada ser. O romance começa situando a acção num

tempo indeterminado “era uma vez”, no espaço imaginário de

um reino chamado Traslândia. Aqui já somos capazes de

intuir alguns níveis de significado e interpretação. Não se

trata apenas de um reino, nem de “longes terras” como é o

caso dos contos maravilhosos tradicionais. Este reino tem

um nome, também traiçoeiro. Pelo sufixo “-lândia”, que

existe nas línguas germânicas e indica terra, pode remeter

para possíveis espaços reais (Islândia, Finlândia), para

países inventados de nomes compridos que aparecem nos

romances cavalerescos, ou pode evidenciar um significado de

ir “para além”, “para dentro” ou “para tras” da superfície

e das aparências. Como sugere Maria Aliete Galhoz (1996:34)

, a “Traslândia não existe, tudo se passa connosco, por

nós e para nós”. Seguindo as aventuras do príncipe somos

envolvidos num processo do encontro connosco mesmos, do

afrontamento do nosso lado escuro, de um caminho de

individuação suposto de nos purificar. Este romance

repreenta um experimento, tanto a nível ficcional, em que

se entrelaçam o natural e o sobrenatural, o sublime e o

banal, o novo e o antigo, como ao nível temático e

estrutural. Neste romance veremos muitos elementos

fantãsticos, qua nas palavras de Tzvetan Todorov (1970) o

fantásticoi é uma “experiência dos limites”. Nesta obra

fala-se de vários tipos de limites, mas também de

cruzamentos, pontes e encontros, o que veremos mais

adiante.Os títulos dos capítulos fazem lembrar os dos

romances cavalerescos e do Dom Quixote, em que mediante

13

curtas frases que servem para ilustrar o conteúdo, desejam

captar a atenção do leitor, e o papel do narrador imita os

supostos cronistas antigos que encontraram a obra e são

meros transmissores da informação. Pela primeira pessoa do

singular que o narrador usa, vemos que o seu papel não é

nem pretende ser neutro e opbjectivo, uma vez que ele

convida o leitor a deixar o destino da princesa Leonilde e

a voltar aos acontecimentos relacionados com o príncipe

Leonel, toma uma posição subjectiva, trata o protagonista

como “príncipe encantador” ou “príncipe perfeito com as

orelhas de burro.” Imitando o modelo tradicional, Régio

acrescenta-lhe pormenores da vida quotidiana e das

literaturas. Nomeadamente a falta de um filho causa “grande

mágoa num casal que se entende bem” (Régio, 2001:19)

demistificando desta forma as figuras dos reis e pondo no

segundo plano a importância do nascimento do herdeiro do

trono e apresentando-os como apenas figuras humanas

próximas da realidade do leitor, que têm crises no seu

casamento e em determinados momentos não se toleram. Quando

o escritor descreve pormenores da vida íntima dos reis, dá

um aspecto de trivialidade à sua obra, o que nos contos

tradicionais não pode acontecer. Os factores sobrenaturais

que precederam o nascimento de Leonel vão ao encontro dos

contos maravilhosos, adquirindo uma dimensão mais profunda:

a rainha, além de estéril tinha ataques de histéria e ira e

como se pressentisse a sua morte, consulta o génio da

floresta, as bruxas feias, que na realidade são belas fadas

disfarçadas, que rogam três pragas ao jovem herdeiro. Aqui

14

também notamos o jogo da duplicidade: belo disfarçado de

feio, o bom disfarçado de mau, a veracidade vs, falsidade,

a imperfeição contra a imagem ideal. A praga rogada pela

bruxa mais nova (ao contrário da maior parte dos contos

populares e que de certa forma concorda com a ordem das

coisas na narrativa popular o Príncipe com as Orelhas de Burro) é a

decisiva. O defeito monstuoso e nojento foi-lhe atribuído

propositadamente, para demasiadas qualidades e virtudes não

estragarem o seu carácter, para saber que o preço da

grandeza é muito elevado, que o caminho da individuação é

inseparável do sofrimento, que o sofrimento como tal é um

elemento necessário na vida, só é preciso “saber sofrer”,

aproveitar bem as limitações humanas. Quando as outras

bruxas (fadas) são chamadas de “parvas”, “tolas” ou

“fúteis” dá-se uma brusca interrupção entre o tom sublime

da obra caracterizado por uma linguagem muito bem elaborada

e escolhida e as marcas da linguagem oral do dia-a-dia, e

neste contexto acontece um choque entre o ideal e o banal,

de igual modo os acontecimentos na taverna da Zizi Gorda,

nos quais notamos elementos do picaresco representam um

outro choque entre os mundos opoistos, o perfeito e o

imperfeito. A própria Zizi, uma mulher imoral, que tem

amante, que é bastante ordinária e que se enquadra bem no

mundo dos miseráveis, abandonados e banidos “da gente de

bem” corresponde em muito à imagem da estalajadeira dos

contos populares, uma vez que as estalajadeiras podem ser

qualificadas como pessoas de moral duvidosa, uma vez que

recebem na sua casa todo tipo de pessoas e dão-lhes dormida

15

e abrem-lhes a porta da estalagem durante a noite. Como

refere Ernesto Veiga de Oliveira (in: Coelho, 1985:19): “As

palavras são símbolos que se identificam com o objecto, que

é o seu conteúdo”. Por tanto na literatura tradicional a

linguagem parece ser bastante clara e linear, para atribuir

a cada acontecimento ou personagem um lugar que lhe

corresponde. No caso do romance O Príncipe com as Orelhas de Burro

nem sempre acontece assim, porque está presente a fusão dos

géneros literários (prosa, poesia, confissão, romance

cavaleresco, fontes tradicionais, a Bíblia, elementos dos

livros de hisória), de linguagens, de recursos estilísticos

como jogos de palavras, ironia e alusões. Para ilustrarmos

um pouco esta situação, mencionaremos as “virgens loucas”

que se entregam aos seus namorados em momentos de liberdade

e longe do conttrolo dos pais e parentes, que é uma clara

alusão a uma história bíblica sobre as cinco virgens loucas

e cinco virgens sábias. Por outro lado, fundem-se a

sabedoria popular e uma certa cultura nos poemas compostos

por Rolão Rebolão, o nome de Sancho Legista não é escolhido

por acaso, uma vez que se pode estabelecer uma vaga ralação

entre ele e Sancho Pança. O rei Rodrigo é frequentemente

chamado de El-Rei, que é uma marca tipicamente portuguesa,

que se junta a alguns nomes dos reis históricos

portugueses.

A ironia é também um dos recursos frequentemente

usados ao longo do romance, através das poesias do bobo

deforme, e também quando se descreve a moda de os cidadãos

do reino imitarem o costume do príncipe de usar o turbante

16

“como se todos tivessem orelhas de burro para esconder”,

com o qual se sugere indirectamente que todos têm os seus

defeitos, mas usam várais manhas para dissimulá-los.

Estrutura, personagens e algumas vertentes de leitura

de O Príncipe com as Orelhas de Burro

Como já foi anteriormente mencionado, José Régio optou

por adaptar um conto tradicional português, mudando-lhe a

forma e alguns aspectos do cionteúdo. Uma vez que por

definição o romance representa uma narrativa mais longa,

com um número de personagens maior do que no conto,

pensamos que este género era mais apropriado para

aprofundar os perfis psicológicos dos protagonistas, para

mostrar o rumo das suas vidas com um determinado propósito:

o de convidar o público para olhar de forma diferente para

si e para os outros.

Diferentemente do conto tradicional, cujo tamanho

resumido não permite algum tipo de divisão formal, o

romance regiano está dividido em desasseis capítulos, em

que cada um tem o seu título e representa uma continuação

lógica do anterior. O espaço em que a intriga da acção está

situada, é um reino inventado, em que o palácio, as ruas,

as praças, a taverna e muitos sub-espaços estão descritos

com um certo número de pormenores que dá ao leitor a ideia

de uma determinada veracidade. Os temas que o autor aborda

mediante a presença de um narrador e as personagens são

aprofundados e tratados de forma que nos pareça que existe

um fio condutpor na história e uma relação de causa e

efeito. Os reis estão angustiados por não terem um filho, o

17

filho nasce para ser a realização e fruto de um amor, tem o

defeito que lhe causa horror e nojo para descobrir a sua

diferença em relação aos outros e para, como afirma Maria

Aliete Galhoz (1996) aceitar “as qualidades e riscos da

diferença”. O génio da floresta aparece para ser um

correlato do velho sábio dos contos tradicionais. O Rolão

Rebolão na sua monstruosidade é por sua vez complementar e

também oposto ao príncipe etc. Do ponto de vista temporal,

embora haja um “era uma vez”, o leitor não se sente muito

distanciado da época em que acontece a intriga, uma vez que

se mencionarão as tentativas da revolução contra o rei, que

pode ser um eco da realidade histórica portuguesa do início

do século XX. No que se refere ao tempo, também há uma

relação de anterioridade e posterioridade que se segue numa

ordem lógica das coisas e o tempo passa num ritmo mais

lento do que nos contos tradicionais. Nomeadamente o

príncipe das orelhas de burro nasce, para pouco depois ser

mencionada a sua idade de fazer a barba, enquanto que no

romance se descrevem as tentativas de o casal real ter um

filho, o seu nascimento, a morte da rainha, a escolha de um

aio para o jovem príncipe, a maioria da idade de Leonel, a

descoberta da sua anomalia, a saída de casa, as idas pelo

reino fora, a volta para o pelácio real, para acabar com a

sua morte e a gravidez da nova rainha Letícia. Analisando o

conto popular português sobre o príncipe que tem as orelhas

de burro, notámos que não se realiza o seu afastamento da

casa paterna do qual falava Propp (1986) e por isso ele até

ao fim do conto fica no seu estado infantil. No entento,

18

seguindo a lógica dos contos tradicionais e ao mesmo tempo

os romances de Cavalaria, o herói tem de se afastar

temporariamente do lar paterno, para através de uma série

de aventuras e provas voltar diferente, mais forte e mais

enriquecido por uma experiência e fechar um ciclo. Desta

forma concluimos que a estrutura narrativa neste romance

tem elementos lineares e circulares. Contrariamente das

narrativas populares em que o protagonista se vai embora da

casa no início da narração, o príncipe Leonel não é nem

expulso pela madrasta (que de facto não tem), nem vai pelo

mundo fora à nprocura de uma esposa ideal (porque primeiro

pensamos que a sua escolhida será a princesa Leonilde),

nem vai aprender algum ofício, nem salvar a irmã, como é

habitual com os príncipes “habituais” dos contos

maravilhosos. Sai de casa pela porta pequena e às

escondidas, horrorizado pela imagem que o espelho lhe

mostra, afasta-se com a plena consciência da sua

monstruosidade e do falso e vazio que era o mundo que o

rodeava. Neste momento surgiu-nos a ideia de fazermos um

pequeno paralelismo coom O Príncipe e o Pobre de Mark Twain, em

que o protagonista, saciado da vida em luxo e desejoso de

conhecer uma vida diferente, abandona o palácio e vai

conhecendo o seu reino e a si próprio. Embora os motivos da

saida sejam diferentes, os dois príncipes abandonam a vida

anterior e voltam tendo aprendido uma grande lição sobre a

vida e a maturidade. Fugir de si para ir ao encontro de si

próprio e de uma paz interior é típico também dos heróis

românticos, incompreendidos pelo mundo e profundamente

19

afectados pela “dor mundial”. No caso de Leonel, não

podemos felar tanto numa dor universal, como melhor dito

numa dor iindividual que de certa forma diz respeito a cada

pessoa. No sentido cristão que emana da obra, sublinha-se

um aspecto muito marcante: que a soberba é o pecado

principal, que através da humildade e modéstia, e não

apenas mediante o reconhecimento dos erros, mas também

mediante a tend~encia de os corrigirmos e transformarmo-nos

por dentro, o ser humano vive uma catarse, um processo de

crescimento interior que lhe dá uma dimensão completamente

nova.

Indo pelo reino fora, conhecendo os sítios obscuros e

a mesquinhice que existe no mundo Leonel aprendeu que a

morte, quer no sentido figurado, quer no sentido físico não

é o fim, mas começo de uma vida melhor. Daqui ecoa o antigo

mito de Fénix, mas também um profundo cristianismo embora

não directamente assumido por Régio.

Os motivos do caminho e do espelho, frequentes neste

autor reconhecemos o encontro com o íntimo, com a verdade,

com o defeito, com a imperfeição que não servem para

desmoptivar e desmoralizar o protagonista, mas sim para o

fazer ver e ser visto de outra forma. Na duplicidade dos

pares, nos (Piva, 1975: 19) “pavores, medos, vultos e

sombras” que rodeiam o príncipe começamos a perceber melhor

um tom moralizador e educativo desta narrativa, o de

ensinar os verdadeiros valores: da coragem, honra,

autoaceitação, auto-estima, fé, amor e heroísmo tão

pregoados também na literatura tradicional, embora de outra

20

forma. Na estrutura narrativa Régio inverte algumas “leis”

tradicionais, introduzindo a princesa Leonilde, irmã mais

velha, como a encarnação da beleza e de todas as virtudes,

pela quel primeiro se apaixona o jovem príncipe, enquanto

que a mais nova é apresentada como feia e invisível sob a

sombra imponente da irmã. Aqui destrói-se aparentemente a

ideia clássica de irmã mais velha ser feia e má enquanto

que a mais nova é a sua completa oposição. Porém, mesmo que

até os seus corpos pareçam metades de um único corpo

perfeito, os seus nomes indiquem uma predeterminação3, a

princesa mais nova, que pelos vistos não se sabe comportar

em público, não tem encanto nenhum e parece triste, tem um

olhar profundo e sereno e o seu nome Letícia, que significa

alegria, merecerá ser a esposa ideal do pri´ncipe. Neste

caso Régio respeita o modelo tradicional do conto.

No que diz respeito às personagens, referiremos apenas

o do rei D. Rodrigo, a rainha, do Aio, de Rolão Rebolão e

das princesas Leonilde e Letícia, porque os considerámos os

mais interessantes. Na literatura tradicional, quando uma

personagem tem um nome próprio, este nome não é escolhido

por acaso. Pode ser derivado de uma característica física

ou psicológica, da sua origem, profissão ou estatuto

social, mas tem um simbolismo, isto é designa exactamente

aquilo que o narrador popular deseja salientar. Desta

forma, o Mama-na-Burra foi amamentado por uma burra, a

3 Esta predeterminação condicionada pelos nomes aparece no cancioneiro popular, em que pode acontecer que um José Maria se apaixone por uma Maria José, ou quando uma rapariga confessa que ama um Emanuel, por ter um dos nomes com os quais foi qualificado Jesus Cristo etc.

21

Menina Fina é o oposto das suas más irmãs Preguiçosa e

Faladeira. Seguindo esta lógica Régio dá a algumas

personagens os nomes muito ilustrativos: Rolão Rebolão,

(que pela sonoridade e as últimas sílabas faz lembrar o

João Ratão tradicional) indica um monstro sem pernas que

rebola pelo chão, a Zizi Gorda, o Sorte Negra e o Pata

Rachada são suficientemente simbólicos por eles próprios,

uma vez que a gordura e os defeitos físicos ou morais têm

de ser visívelmente marcados na literatura popular, na qual

se apoia Régio também. No caso dos reis, ele é designado

como Rodrigo, que é o nome que corresponde a algumas

figuras históricas e lendárias da Península Ibérica, e a

rainha-mãe é identificada por um nome convencional da

literatura cavaleresca, Elsa, que de certa forma se adequa

com a sua finura, discreção, e outras virtudes. O príncipe

é Leonel, para à primeira vista ser um par perfeito da

princesa Leonilde, e a princesa Letícia, triste e apagada,

enciontra a sua alegria no amor profundo e na vida familiar

retirada e cheia de dignidade com o seu “príncipe perfeito

com as orelhas de burro”.

Uma das personagens importantes é sem dúvida o

“monstro sem pernas” Rolão Rebolão, obo-poeta da corte, que

por vezes aproveita a posição que lhe dá a sua deformidade

física e o carácter pouco sério da sua profissão, para,

através da poesia e alegorias que usa, dizer muitas

verdades. Desta forma, não lhe escapa que a princesa

leonilde é uma “boneca articulada”, que a princesa Letícia

é “uma pétala no lixo” etc. Fiel ao príncipe, mas por outro

22

lado não vê a hora de saber o seu defeito e de satisfazer o

seu espírito e descorir a imperfeiçaõ de Leonel. Sugere-lhe

para não se confessar em público, “porque os outros naõ

merecem”, regozijando-se muito de saber que ele não é o

único defeitoso e monstruoso. Embora Régio na maioria das

situações tente apresentar o Rolão Reolão como uma

personagem positiva que sofre muito, deixa-o monstruoso até

ao fim do romance, não lhe crescem as pernas como seria o

caso nos contos populares. Julgamos que esta estratégia do

autor é propositada: na primeira leitura do livro pareceu-

nos latente uma certa mesquinhice na alma do bobo-poeta,

uma certa alegria escondida de saber que na corte há

problemas e que o príncipe não é o que se apresenta. Ele

pode representar a sombra de Leonel, no sentido junguiano

da palavra: ambos têm defeitos, só que o bobo ao nosso ver

sofre e não assume os seus tão claramente, ao contrário do

príncipe que reconhecendo-se como horrível vive uma

purificação.

Por último, a personagem do Aio, inseparável do

príncipe Leonel, que na opinião de Eugénio Lisboa pode

representar o seu alter ego, por isso ninguém nota a ausência

do jovem herdeiro da corte da Traslândia. É misterioso,

ninguém sabe nada sobre ele, mas tem tanta influência na

corte que é invejado pelos cortesãos intriguistas, imorais,

avarentos e é temido até pelo próprio rei. Parece ser

também uma possível transposição do velho sábio dos contos

tradicionais ou, ao nosso ver, pode ser uma variante do

barbeiro do Príncipe com as Orelhas de Burro surgido na literatura

23

popular O Aio sabe o segredo do príncipe, tal como o

barbeiro, no entanto os seus papéis são um pouco

invertidos. O barbeiro teme pela sua vida, o Aio mete medo

aos que o rodeiam. Tanto um como outro desejam revelar o

que sabem, só que o barbeiro é torturado pelo peso

desagradável e tem de o dizer na confissão, e o Aio espera

o momento apropriado, guarda silêncio e parece ter mais

sangue frio em relação ao que sabe. Ele não tem nome, como

as personagens que pertencem às categorias-tipo na

literatura tradicional ( o rei, o pescador, o padre, o

criado, o lavrador). Porém o estatuto de aio é uma espécie

de seu nome próprio, porque além de estar escrito com

maiúscula, designa profundamente o seu carácter: é

discreto, próximo do príncipe, ensina-o, tem grande cultura

e sabedoria, cabe dentro da categoria do aio ideal, e a

forma de o se marcar com maiúscula a sua profissão-nome,

aproxima-se outra vez dos nomes das personagens da

literatura oral (Arasa-Montanhas tem justamente este nome

porque a sua força física lhe permite arasar montanhas,

Come-Bois tem tanto apetite para poder comer um boi à

sobremesa, a Menina Fina distingue-se pela sua finura) e o

Aio é Aio, “personagem que se torna pessoa”, como Maria

Aliete Galhoz (1996) qualifica as personagens deste romance

de José Régio. As personagens de O Príncipe com as Orelhas de

Burro regiano têm “três dimensões”, nem absolutamente

positivas, nem negativas, até os seres do mundo

sobrenatural aproximam-se dos humanos, fazem lembrar os

modelos literários, mas não são nada “livrescas” e

24

rebuscadas. Com a sua vivacidade, variedade de caracteres e

linguagens fazem com que o leitor fique com uma impressão

especial. Esta obra pode ser lida como alegoria, como

romance de carácter moralizador ou como “história para

crianças grandes”, com elementos de humor, ironia, alusões

às fontes populares, com uma série de níveis e camadas que

não podem ser descobertas apenas após duas leituras.

Ilustrações como elemento de intertextualidade no

Príncipe com as Orelhas de Burro

Tendo em conta que o gráfico muitas vezes serve como

um complemento para o literário, diremos algumas palavras

sore este aspecto. Quando lemos o Príncipe com as Orelhas de Burro

tradicional, utilizámos duas edições: a de Adolfo Coelho

(1985) em que as ilustrações figuram apenas na capa,

enquanto que não existem ligadas ao texto dos contos e a de

Viana (1985), em que as ilustrações bonitas e a cores

acompanham o texto quer do cancioneiro, quer do teatro

popular, como também o dos contos maravilhosos. No caso do

Príncipe, vemos um berço, com um príncipe-bebé a sorrir no

momento em que três belas fadas o vêm visitar. Num livro

destinado ao público infantil as ilustrações fazem todo o

sentido, desenvolvem a imaginação e completam o conteúdo da

história. Sendo o Príncipe com as Orelhas de Burro regiano

destinado “às crianças grandes” é mais lógico que as

ilustrações sejam a preto e branco, com linhas simples,

25

mais parecidas com caricaturas, podendo-se o romance

interpretar como uma espécie de cariicatura da literatura

popular. Sabendo também que nas vanguardas e no Modernismo

o gráfico é inseparável do literário, podemos considerar as

ilustrações inseridas no corpus do livro podem ser uma

espécie de elemento de intertextualidade, uma outra

linguagem que transmite partes da mensagem do romance, que

não é uma estratégia nova e original, uma vez quie isso

acontece também com as ilustrações de Gustavo Doré que

acompanham algumas edições de Dom Quixote.

Conclusões: Depois da leitura do conto tradicional português O

Príncipe com as Orelhas de Burro, a sua variante surgida na

tradição popular sérvia O Imperador Trojan Tem Orelhas de Cabra e

o romance de josé Régio que se apoia na fonte popular,

deparámo-nos com uma série de semelhanças, diferenças,

duplicidades e multiplicidades que por um lado eram

esperadas, mas por outro foram causadoras de uma grande

surpresa por nossa parte, mais no sentido de descoberta,

criação e recriação. Notámos algumas formas de o autor

(des)respeitar as fontes tradicionais e “livrescas”,

apoiando-se nelas e ao mesmo tempo caminhando em direcção

dea originalidade. A variedade de planos e níveis de

leitura tanto dos contos como do romance sugere ao leitor,

criança, adulto ou criança grande que não é possível ficar-

se indiferente perante uma literatura viva, que continua a

falar, transmitir mensagens e de certa forma implicar com o

público do qual se aproxima, fazendo-o reflectir sobre

26

assuntos que numa primeira leitura tal vez não fosse capaz

de reconhecer completamente.

Bibliografia:

COELHO, Adolfo (1985) contos Populares Portugueses,Prefácio deErnesto Veiga de Oliveira, Publicações Dom Quixote, LisboaGALHOZ, Maria Aliete (1996) Catorze Ensaios sobre José RégioSeguidos de uma Biobibliografia Essencial, Edições Cosmos, Lisboa,pp.31-36LISBOA, Eugénio (2001) O Essencial sobre José Régio, ImprensaNacional- Casa da Moeda, Lisboa_______________(1978) José Régio. Uma Literatura Viva, Institutode Cultura Portuguesa, Lisboa _______________(1976) José Régio, A Obra e o Homem, EditoraArcádia, Lisboa MOURÃO-FERREIRA, David “Eta nova presença da Presença”in: Presença, (1993) contexto editora, Lisboa, pp.5-7PROPP, Vladimir (1986) Morfologia do Conto, Veiga, LisboaRÉGIO, José (2001) O Príncipe com as Orelhas de Burro, ImprensaNacional-Casa da Moeda, LisboaREIS, Carlos, LOPES, Ana Cristina M. (1987) Dicionário deNarratologia, Livraria Almedina, Coimbra, pp.75-79TODOROV, Tzvetan (1970) Introdução à Literatura Fantástica, MoraisEditores, LisboaVIANA, António Manuel Couto (1985) Tesouros da Literatura PopularPortuguesa, Editorial Verbo, Lisboa, pp.374-376

27