o ndongo no século xvi: presença portuguesa e agência - XIX ...

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O NDONGO NO SÉCULO XVI: PRESENÇA PORTUGUESA E AGÊNCIA MBUNDU Luciana Lucia da Silva 1 O Ndongo se situava na região que ficou conhecida como Angola a partir do início da presença portuguesa e era habitado por um subgrupo entre os mbundu, os falantes do kimbundu 2 , que ocupava uma larga faixa na savana da África Central Ocidental, ao longo do baixo Kuanza e do médio Kuango. Sua estrutura social era baseada em formas linhageiras de organização e em um sistema de parentesco matrilinear, sendo a aldeia a base da organização política. O ngola era o chefe com o título mais importante, mas cada parte do território era governada por chefes que tinham poder a nível local, os sobas, chefes das linhagens e que exerciam o poder em contato direto com a população. O século XVI marca o período de consolidação política do Ndongo, de maneira que no período aqui considerado, o Ndongo era um Estado com uma relativamente bem sucedida centralização e controle sobre as suas linhagens. Mas também de sua inserção no tráfico atlântico de escravizados, que permitiu que portugueses e povos mbundu estabelecessem uma série de relações que levou à presença estrangeira na região. 3 As fontes trazem indícios de que o envolvimento do Ndongo com o comércio através do Atlântico era intenso já em meados do século XVI e remontava a pelo menos o início deste século, sendo possível perceber um crescimento comercial ao longo desse período. Apesar da busca do Congo por conservar seu monopólio e se manter como intermediário na negociação de escravos provenientes das áreas mbundu, a venda de escravos a partir do Ndongo diretamente aos negociantes portugueses de São Tomé acontecia de forma cada vez mais frequente. Esta teria se iniciado ainda na época de D. João II (1481-1495): O comércio de Angola se descobriu desde o tempo de el-rei D. João II, pôsto que com pouca frequência [...] e à ida primeiro os navios tomavam a ilha de S. Tomé e dali passavam ao resgate de Angola (CORDEIRO, 1935: 300-301). Marina de 1 Mestre em História Social pelo PPGHIS/UFRJ ([email protected]). 2 O kimbundu é uma língua do tronco linguístico Bantu. De acordo com Selma Pantoja, grupos Bantu migraram para a África Central e introduziram a agricultura e a metalurgia na região ocupada pelo Ndongo, assim como difundiram suas técnicas e língua (PANTOJA, 2000, p. 35-44). 3 Sobre as características políticas e sociais do Ndongo no século XVI ver: BIRMINGHAM, s/d; PANTOJA, 2000; HEINTZE, 2007; MILLER, 1995.

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O NDONGO NO SÉCULO XVI: PRESENÇA PORTUGUESA E AGÊNCIA

MBUNDU

Luciana Lucia da Silva1

O Ndongo se situava na região que ficou conhecida como Angola a partir do início

da presença portuguesa e era habitado por um subgrupo entre os mbundu, os falantes do

kimbundu2, que ocupava uma larga faixa na savana da África Central Ocidental, ao longo

do baixo Kuanza e do médio Kuango. Sua estrutura social era baseada em formas

linhageiras de organização e em um sistema de parentesco matrilinear, sendo a aldeia a

base da organização política. O ngola era o chefe com o título mais importante, mas cada

parte do território era governada por chefes que tinham poder a nível local, os sobas,

chefes das linhagens e que exerciam o poder em contato direto com a população. O século

XVI marca o período de consolidação política do Ndongo, de maneira que no período

aqui considerado, o Ndongo era um Estado com uma relativamente bem sucedida

centralização e controle sobre as suas linhagens. Mas também de sua inserção no tráfico

atlântico de escravizados, que permitiu que portugueses e povos mbundu estabelecessem

uma série de relações que levou à presença estrangeira na região.3

As fontes trazem indícios de que o envolvimento do Ndongo com o comércio

através do Atlântico era intenso já em meados do século XVI e remontava a pelo menos

o início deste século, sendo possível perceber um crescimento comercial ao longo desse

período. Apesar da busca do Congo por conservar seu monopólio e se manter como

intermediário na negociação de escravos provenientes das áreas mbundu, a venda de

escravos a partir do Ndongo diretamente aos negociantes portugueses de São Tomé

acontecia de forma cada vez mais frequente. Esta teria se iniciado ainda na época de D.

João II (1481-1495): “O comércio de Angola se descobriu desde o tempo de el-rei D. João

II, pôsto que com pouca frequência [...] e à ida primeiro os navios tomavam a ilha de S.

Tomé e dali passavam ao resgate de Angola” (CORDEIRO, 1935: 300-301). Marina de

1 Mestre em História Social pelo PPGHIS/UFRJ ([email protected]). 2 O kimbundu é uma língua do tronco linguístico Bantu. De acordo com Selma Pantoja, grupos Bantu

migraram para a África Central e introduziram a agricultura e a metalurgia na região ocupada pelo Ndongo,

assim como difundiram suas técnicas e língua (PANTOJA, 2000, p. 35-44). 3 Sobre as características políticas e sociais do Ndongo no século XVI ver: BIRMINGHAM, s/d;

PANTOJA, 2000; HEINTZE, 2007; MILLER, 1995.

Mello e Souza pontua que no princípio, as trocas comerciais entre os mbundu e os

comerciantes de São Tomé “era independente tanto de normas traçadas pela Coroa

portuguesa como daquelas estabelecidas pelo mani Congo” e que os chefes mbundu, por

sua vez, “agiam de forma independente do mani Congo” (MELLO E SOUZA, 2018: 89).

Beatriz Heintze pondera que apesar do esforço do Congo em reiterar seu monopólio, o

“rei” do Ndongo – apesar de o Ndongo se situar bastante para o interior – já era então

suficientemente poderoso e influente para atrair os comerciantes portugueses de São

Tomé (HEINTZE, 2007: 229-230). De maneira que defendemos que foi justamente este

crescente envolvimento com o tráfico atlântico que levou ao estabelecimento de relações

diretas entre os soberanos do Ndongo e a coroa portuguesa.

Logo nos primeiros anos de contato com comerciantes portugueses, o ngola

manifestou o desejo de manter relações com o rei de Portugal e de se converter, tendo

também sido convencido “por seus representantes na corte do Congo de que o comércio

com os portugueses era fator de incremento do poder”, à medida que trazia “novos ritos,

novos objetos, novas tecnologias e conhecimentos” (MELLO E SOUZA, 2002: 99-100).

Assim, no ano de 1549, uma embaixada com diplomatas mbundu foi enviada diretamente

a Portugal com o objetivo de solicitar a ida de missionários portugueses ao Ndongo e,

após ficar retida em São Tomé por vários anos, teria de fato conseguido chegar à Lisboa

(PINTO, 2015: 213).4

Em 1557 o rei de Portugal teria pedido ao capitão de São Tomé que se informasse

para saber se o novo rei de Angola, sucessor do rei que havia lhe enviado embaixadores

comunicando seu desejo de ser cristão, também desejava ser batizado e aceitar a ida de

religiosos:

Escreueo elRey ao capitão de São Tomé que antes de responder aos

Embaixadores delRey de Angola, soubera de sua morte; mandalhe que

se informe, se está o Rey que lhe suçedeo no preposito de ser christão,

e aceitar religiosos que lhe preguem a fee, para com o que achar

4 Alberto Oliveira Pinto cita outros momentos em que houve a busca de contatos diplomáticos e oficiais,

por parte das próprias chefias mbundu, com a Coroa portuguesa, já nos primeiros anos do século XVI.

Como o envio de braceletes de prata e a solicitação da presença de missionários em 1504 e a tentativa

frustrada de expedir embaixadores a Lisboa em 1514 (PINTO, 2015: 191-192).

despedir os Embaixadores e mandar com eles os Padres, e Embaixador

particular; por portaria feita em Lisboa a 22 de Novembro de 1557

(BRÁSIO, 1953, v. II: 466).

Portugal responde a solicitação do ngola, feita através dos embaixadores que

foram a Portugal, enviando ao Ndongo uma embaixada, liderada por Paulo Dias de

Novais. De acordo com uma carta do padre geral da Companhia de Jesus datada de 1560,

o envio dessa embaixada ao “reino de Angola” teria se dado em resposta a ida da

embaixada mbundu a Portugal (BRÁSIO, 1953, v. II: 449-459). A historiografia é

unânime em informar que nesse momento, meados do século XVI, as atenções

portuguesas se voltam para a região do Ndongo. Acreditamos que este é o resultado

conjunto do crescente interesse português, decorrente do desenvolvimento comercial

dessa região, e das iniciativas dos chefes mbundu, vinculadas à busca por contatos

diplomáticos e à solicitação da presença de missionários, efetivadas ao longo da primeira

metade do XVI.

A respeito da embaixada portuguesa, temos maiores detalhes por meio de cartas

escritas pelos padres Antonio Mendes e Francisco de Gouveia, que estavam entre os seus

integrantes. Em carta datada de 29 de outubro de 1562, Antonio Mendes afirma que após

chegar à barra do Kuanza, esperaram por recado do “rei de Angola”, acerca de seu

interesse em receber a cristandade, por seis meses. Paulo Dias de Novais teria enviado no

domingo seguinte a sua chegada um “batell” pelo rio Kuanza acima com dois mensageiros

encarregados de negociar a sua entrada. Os mensageiros eram Luis Dias e Dom Antonio,

este último “natural da terra, que foy hum dos dous Embaixadores, que uierão a Portugal”

(BRÁSIO, 1953, v. II: 466). Antonio Mendes afirma que, após os seis meses que estavam

à espera na costa, “mandou elRey de Angola recado que fossemos que queria ser christão,

e veyo hũ fidalgo para nos levar cõ muita gente e archos e frechas [...]” (BRÁSIO, 1953,

v. II: 488).

Antonio Mendes relata que ao apresentar o batismo como motivo da presença da

embaixada portuguesa, o ngola respondeu afirmativamente, oferecendo seus filhos e os

de outros principais de sua casa para que pudessem ser ensinados na doutrina cristã, mas

não passou muito tempo para que o ngola se voltasse contra eles, roubando tudo aquilo

que possuíam e chamando-os de traidores, pois “le íamos a ispiar su tierra” (BRÁSIO,

1953, v. II: 502).

De acordo com a historiografia, a explicação para a mudança de atitude do ngola

está nas transformações no contexto interno. Marina de Mello e Souza comenta a

probabilidade de ter havido interferência por parte do soberano do Congo, mas afirma

que “certamente existiram razões internas ao Ndongo, vinculadas às linhas políticas do

novo ngola, que levaram à mudança de atitude com relação aos portugueses” (MELLO E

SOUZA, 2002: 102). De todo modo, a partir daí o ngola retém Paulo Dias de Novais,

Francisco de Gouveia e Antonio Mendes em suas terras como cativos (BRÁSIO, 1953,

v. II: 489).

Francisco de Gouveia dá notícias sobre o cativeiro através de cartas escritas a seu

Superior, datadas de novembro de 1564. Em uma delas afirma que passaram “muitos

trabalhos, porque alem de nos não darẽ muitas vezes nada, nos espancão muitas vezes”

(BRÁSIO, 1953, v. II: 527). Francisco de Gouveia alega também que eram tratados como

escravos do “rei”, sendo obrigados a coser capas e vestidos e ajudar a cuidar das

“almadias em que el Rei de lava” (BRÁSIO, 1953, v. II: 528). Afirmação que evidencia

que, enquanto prisioneiros nas terras mbundu, os estrangeiros estiveram na condição de

escravos do ngola. O que não só demonstra a capacidade de agência mbundu durante todo

o processo de contato com os estrangeiros, quanto denuncia a fragilidade e a

vulnerabilidade da presença portuguesa no Ndongo nesse período inicial de contato. Os

relatos informam, ainda, que a eles foi relegado um amo, chamado Gongacinza, que lhes

ajudava a compreender aspectos de sua prisão empreendida pelo ngola (BRÁSIO, 1953,

v. II: 527).

Paulo Dias de Novais foi libertado apenas em meados de 1565, conseguindo

retornar a Portugal em 1567, passando a travar “uma luta árdua com os centros de decisão

política e com os serviços burocráticos de Lisboa para que lhe fosse atribuída uma nova

missão em terras angolanas” (PINTO, 2015: 221; 239). O que acontece já em 1571

quando é encarregado de uma segunda embaixada, dessa vez como portador de uma

“carta de doação” que o nomeia capitão donatário e governador dos Reinos de Sebaste,

tendo a missão de “sogeitar e conquistar o Reynno dAngola”,5 onde chega em 1575

(BRÁSIO, 1953, v. III: 36).

Defendemos que nesse retorno, o agente português incumbido do cargo de

governador, se baseia em conhecimentos a respeito dos mbundu e de sua realidade

política para conduzir seu projeto de conquista da região; conhecimentos esses que teria

adquirido em decorrência dos anos em que viveu como cativo na corte do ngola. A

postura mbundu diante das investidas portuguesas, que levou ao insucesso de sua primeira

ida à região na década de 1560 e, especialmente, a recusa do ngola em aceitar o

cristianismo também devem ser tidas como fundamentais para a compreensão da ação

portuguesa nesse período. Estes são fatores que demonstram que os mbundu foram

capazes de conduzir e manipular a relação estabelecida com os estrangeiros.

Assim, pudemos constatar que muitas práticas características da atuação de Paulo

Dias de Novais, geralmente interpretadas como provenientes do universo cultural

português, têm grande associação com costumes mbundu por ele observados. Nesse

sentido, é possível observar uma mudança de estratégia, pois, nesse momento, Paulo Dias

de Novais busca o estabelecimento de acordos com o ngola, com base na oferta de ajuda

militar contra seus inimigos – estratégia que posteriormente será adotada em relação a

outras chefias – e não mais na aceitação do batismo e da pregação da fé católica em seus

territórios. É preciso salientar que o oferecimento de auxílio militar é fundamental para a

compreensão das dinâmicas desse período, à medida que o estabelecimento de aliança

com diferentes chefes locais foi o que viabilizou a presença portuguesa no Ndongo,

podendo ser considerada a principal característica da atuação de Paulo Dias de Novais.

Essa estratégia parece ter sido inspirada na percepção de que os chefes do Ndongo

estavam em constantes disputas com grupos vizinhos como forma de efetivar seu domínio

e garantir o acesso a recursos naturais.

5 Para Beatrix Heintze, o empenho português na conquista e colonização de Angola nesse momento, está

conectado a uma série de fatores interligados entre si que inclui fatores globais e locais; ponderando que a

necessidade portuguesa de obter escravos não pode ser colocada como explicação única, entre outros fatores

porque a obtenção de escravos “não exigia por si só nem a conquista territorial, nem a colonização”

(HEINTZE, 2007, p. 243-244). Perspectiva que pode ser questionada, mas com a qual somos conduzidos a

concordar.

Por isso, deve-se ter em contar que a guerra, geralmente associada à presença

portuguesa no Ndongo, está vinculada não só a um ideal de conquista português, mas,

principalmente, ao fato de a guerra já ser uma característica da sociedade mbundu. Assim,

na medida em que a guerra era algo recorrente entre os mbundu, devido a competição por

recursos, os portugueses teriam se utilizado da realidade local como forma de obter

benefícios, não introduzido uma lógica de guerra externa. Antonio Mendes afirma, em

carta de 1563, que na maior parte do tempo o “rei” faz guerras contra muitos outros “reis”

da região, situados no entorno de seus domínios, com os quais competia. Além disso,

segundo ele, nessas guerras, o ngola era auxiliado pelos chefes a ele submetidos,

enfatizando a grande quantidade de pessoas que lutavam ao lado do ngola, já que os

chefes “vassalos” disponibilizavam toda a sua gente para participar desses combates

(BRÁSIO, 1953, v. II: 509). Prática que os portugueses buscaram reproduzir, como se

pode observar no exemplo a seguir:

Enquanto viveu Paulo Dias, sempre foi crescendo pelas grandes

batalhas que teve com os negros, e vitórias que deles alcançou, uma das

quais foi de um milhão de homens, não sendo os nossos mais que

trezentos portugueses e dois ou três cavalos, com algum socorro dos

negros sujeitos, que seriam como trinta mil (BRÁSIO, 1955, v. V: 50,

grifo nosso).

Este trecho deixa evidente que as tropas que lutavam ao lado dos portugueses eram

formadas majoritariamente por africanos6; um dos elementos a nos trazer indícios de que

a presença portuguesa no Ndongo só foi possível a partir do estabelecimento de alianças

com chefes locais. Apesar do uso da expressão “negros sujeitos” ou, em outros casosd, o

termo “vassalagem”, devemos ressaltar que as informações contidas nas fontes

apresentam a relação estabelecida a partir das alianças efetivadas muito mais como

parceria do que como subjugação, especialmente ao nos deixar saber a facilidade com

que os chefes mbundu abandonavam tais alianças ou se eximiam de cumprir os acordos

quando estes deixavam de representar vantagem.

6 De acordo com Mariana Bracks da Fonseca “pode-se afirmar que as guerras angolanas foram lutadas por

africanos contra outros africanos”, já que as tropas portuguesas nomeadas como “guerra preta” eram

compostas por homens dados pelos sobas vassalos, sendo completamente dependentes da força africana

(FONSECA, 2015: 78-79).

Assim, da mesma forma que ao se associarem aos ngola, os chefes locais

mantinham total controle sobre suas linhagens e autonomia no interior de suas aldeias;

além disso, em ambos os casos, a oferta de tributos e a obrigação de proteção e auxílio

militar davam corpo ao acordo estabelecido. De maneira que é perceptível, em diversos

aspectos, que o “governador” português buscava reproduzir a relação que os ngola

vinham estabelecendo com os chefes territoriais que habitavam as regiões nas quais estes

estavam a reivindicar domínio.

Por isso, acreditamos que um elemento indispensável para se compreender o

estabelecimento de alianças entre os sobas e os estrangeiros, era o próprio processo de

desenvolvimento do poder político por parte dos ngola nesse período, já que em defesa

da manutenção de sua independência, muitos sobas se negavam a aceitar a subordinação

aos intentos centralizadores do ngola. De maneira que a manutenção de alianças com

estrangeiros, fornecedores de bens de prestígio material e simbólico, se colocava como

atrativo.

O estabelecimento de uma suposta vassalagem teria permitido que Paulo Dias de

Novais acreditasse poder doar as terras destes sobas, como se observa no exemplo a

seguir:

ei por bem [...] de lhe dar e doar [...] todas as terras de Quesu

baqueamafo Aquinjonge, fidalgo ambundo, sittas na prouinçia de

Moçeque [...] as quoais terras lhe dou assi e da maneira que o ditto

Subaqueamafo Aquinjonge, senhores e pessuidores dellas as pessuẽ e

huzão, com todo o mais que a elles pertençerẽ [...] (BRÁSIO, 1954, v.

IV: 461).

Nesse trecho Paulo Dias de Novais acredita estar doando terras situadas no

Musseque pertencentes a um fidalgo mbundu, com tudo o mais que a ele pertence,

enfatizando que a doação se faria com base na maneira com que este fidalgo e os demais

senhores possuem e utilizam suas terras. Demonstrando, mais uma vez, a busca de Paulo

Dias de Novais de reproduzir práticas locais em suas ações. Segundo Heintze, a doação

das terras processava-se com a entrega formal do soba ao “novo proprietário [que] era

designado por amo dos seus sobas”, de maneira que “esta modalidade especial de doação

de pessoas” ficou conhecida como “instituição de amos” (HEINTZE, 2007: 255).

Um documento escrito entre 1602 e 1603, afirma que os sobas eram dados

seguindo uma prática comum entre os habitantes do Ndongo e de que disto dependia a

manutenção da conquista:

Conforme ao costume daquela gente, toda a segurança da conquista do

reino de Angola estava em se conservar o que eles usam, que era em se

sujeitando um soba, a primeira coisa que fazia pedia logo amo a quem

tivesse no côrte do Governador, por conservador e como protector, para

em tudo lhe obedecer e recorrer a êle, porque assim o fazem também

com o Rei de Angola, em cuja côrte todos os sobas do reino teem seus

amos que lhes são como conservadores e protectores (BRÁSIO, 1955,

v. V: 51).

A “instituição de amos” é, pois, outro ato característico da ação de Paulo Dias de

Novais que parece ter sido inspirado em práticas locais. Nesse sentido, Alberto da Costa

e Silva afirma que Paulo Dias de Novais, ao atribuir amos aos chefes que a ele se aliavam

ou submetiam, estava utilizando o mesmo sistema de tutela aplicado a ele quando foi

prisioneiro do ngola, e que os mbundu o aceitavam por ser do costume (SILVA, 2011:

417) 7.

Verificamos, assim, que aquilo que, muitas vezes, foi pensado como uma prática

característica da atuação portuguesa, se baseou na utilização por parte dos portugueses de

costumes locais, na busca, na maior parte das vezes frustrada, de atingir seus objetivos na

região. Questão que somada ao histórico do desenvolvimento das relações entre os

portugueses e os chefes mbundu, nos indica a fragilidade da presença portuguesa nesta

localidade da África durante todo o século XVI, bem como a capacidade de agência das

lideranças do Ndongo, que condicionou todos os aspectos dessa presença estrangeira em

seu território.

7 Beatrix Heintze pondera que mesmo que o surgimento da “instituição de amos” esteja ligado à existência

de uma organização africana correspondente, se espelhando nos intermediários tradicionais mbundu, esta

não se conservou com essas características por muito tempo (HEINTZE, 2007, p. 262).

BIBLIOGRAFIA:

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Luanda: ENDIPU/UEE, s/d.

BRÁSIO, António (Ed.). Monumenta Missionária Africana, África Ocidental. Lisboa:

Agência Geral do Ultramar, 1953a, 1953b, 1954, 1955 (1ª série).

CORDEIRO, Luciano. Questões histórico-coloniais, Vol. I. Lisboa: Agência Geral das

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Século XVII. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2015.

HEINTZE, Beatrix. Angola nos séculos XVI e XVII. Luanda: Kilombelombe, 2007.

MELLO E SOUZA, Marina de. Além do Visível: Poder, Catolicismo e Comércio no

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Paulo, Fapesp, 2018.

MELLO E SOUZA, Marina de. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de

coroação de Rei Congo. Vol. 71. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

MILLER, Joseph C. Poder Político e Parentesco. Os Antigos Estados Mbundu em

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PANTOJA, Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão. Brasília: Thesaurus,

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PINTO, Alberto Oliveira; M'BOKOLO, Elikia. História de Angola: da pré-história ao

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SILVA, Alberto da Costa. A manilha e o Libambo: a África e a escravidão, de 1500 a

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