Calíope: Presença Clássica | 2019.2 . Ano XXXVI . Número 38 ...

31
A ficcionalização da autoridade na Ciropédia de Xenofonte | Emerson Cerdas 2019.2 . Ano XXXVI . Número 38 CALÍOPE Presença Clássica separata 6

Transcript of Calíope: Presença Clássica | 2019.2 . Ano XXXVI . Número 38 ...

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

1

20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38

CALIacuteOPEPresenccedila Claacutessica

separata 6

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38

CALIacuteOPEPresenccedila Claacutessica

ISSN 2447-875X

separata 6

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras ClaacutessicasDepartamento de Letras Claacutessicas da UFRJ

2

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

Universidade Federal do Rio de JaneiroREITOR Denise Pires de Carvalho

Centro de Letras e ArtesDECANA Cristina Grafanassi Tranjan

Faculdade de LetrasDIRETORA Sonia Cristina Reis

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras ClaacutessicasCOORDENADOR Ricardo de Souza NogueiraVICE-COORDENADORA Arlete Joseacute Mota

Departamento de Letras ClaacutessicasCHEFE Faacutebio Frohwein de Salles MonizSUBCHEFE Eduardo Murtinho Braga Boechat

OrganizadoresFaacutebio Frohwein de Salles MonizRainer Guggenberger

Conselho EditorialAlice da Silva CunhaAna Thereza Basilio VieiraAnderson de Araujo Martins EstevesArlete Joseacute Mota Auto Lyra TeixeiraRicardo de Souza Nogueira Tania Martins Santos

Conselho ConsultivoAlfred Dunshirn (Universitaumlt Wien)David Konstan (New York University)Edith Hall (Kingrsquos College London)Frederico Lourenccedilo (Universidade de Coimbra)Gabriele Cornelli (UnB)Gian Biagio Conte (Scuola Normale Superiore di Pisa)Isabella Tardin (Unicamp)Jacyntho Lins Brandatildeo (UFMG)Jean-Michel Carrieacute (EHESS)Maria de Faacutetima Sousa e Silva (Universidade de Coimbra)Martin Dinter (Kingrsquos College London)Victor Hugo Meacutendez Aguirre (Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico)Violaine Sebillote-Cuchet (Universiteacute Paris 1)Zeacutelia de Almeida Cardoso (USP)

CapaFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

EditoraccedilatildeoFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

Revisatildeo de textoBruna Esther da Silva Andrade | Faacutebio Frohwein de Salles Moniz

Revisatildeo teacutecnicaFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas | Faculdade de Letras ndash UFRJAv Horaacutecio Macedo 2151 ndash sala F-327 ndash Ilha do Fundatildeo 21941-917 ndash Rio de Janeiro ndash RJwwwletrasufrjbrpgclassicas ndash pgclassicasletrasufrjbr

3

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade naCiropeacutedia de XenofonteEmerson Cerdas

RESUMO

O objetivo deste artigo eacute a anaacutelise do proecircmio da Ciropeacutedia de Xenofontevisando demonstrar a absorccedilatildeo de elementos do discurso historiograacutefico porparte do narrador a fim de garantir a veracidade da narrativa da vida de CiroCom isso tais elementos parecem estabelecer um pacto de leitura em que onarrador nega a ficcionalidade do texto Os proecircmios dos historiadores eramtextos em que estes afirmavam as suas temaacuteticas mas tambeacutem buscavamjustificar as suas escolhas e sobretudo estabelecer os criteacuterios de pesquisa eanaacutelise para fortalecer a impressatildeo de idoneidade e autoridade quanto aos fatosnarrados Uma vez que a vida de Ciro era um tema conhecido dos leitores deXenofonte no seacutec IV aC parece-nos que essa eacute uma estrateacutegia que natildeo tem afunccedilatildeo de enganar o leitor quanto agrave veracidade dos fatos narrados ndash jaacute que elesreconheceriam facilmente a ficcionalidade ndash e sim granjear a autoridade quantoagraves reflexotildees morais e eacuteticas de Xenofonte cuja vida de Ciro exemplifica Issoficaraacute mais evidente na anaacutelise do proecircmio onde o narrador sob a aparecircncia dehistoriador deixa vestiacutegios quanto agrave quebra de convenccedilotildees da historiografiaindicando o caraacuteter ficcional da narrativa Trata-se portanto de um complexoproecircmio que inaugura uma nova modalidade nos textos em prosa daAntiguidade uma narrativa ficcional que finge ser verdadeira

PALAVRAS-CHAVE

Ficccedilatildeo historiografia romance Xenofonte Ciropeacutedia

SUBMISSAtildeO 29112019 | APROVACcedilAtildeO 23022020 | PUBLICACcedilAtildeO 26032020

DOI httpsdoiorg1017074cpcv2i3830806

4

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

1 POR QUE A CIROPEacuteDIAorigem do romance na Greacutecia antiga eacute assuntorepleto de dificuldades tanto pela carecircncia detextos representativos do gecircnero quanto pelosparcos comentaacuterios a seu respeito nos tratados deliteratura antiga No seu alvorecer entre os seacutec II eI aC1 o romance tinha atraacutes de si toda umatradiccedilatildeo literaacuteria estabelecida que desde Homero eHesiacuteodo fortaleceu-se cada vez mais como umaimportante manifestaccedilatildeo caracterizadora da culturahelecircnica Poesia eacutepica liacuterica teatro filosofiaoratoacuteria e historiografia eram formas discursivasinquestionaacuteveis como parte da alta cultura cujo

conhecimento fazia parte da formaccedilatildeo dos homens doutos Nesseuniverso cultural o romance era apenas mais um gecircnero literaacuteriotratado como forma artiacutestica inferior agravequelas e por isso agrave medidaque dava seus primeiros passos com essa tradiccedilatildeo o romance serivalizava para ganhar seu espaccedilo buscando a sua afirmaccedilatildeo

Entende-se todavia que nenhum gecircnero literaacuterio surge donada e sim em decorrecircncia de processos dialoacutegicos dinacircmicos emque as manifestaccedilotildees discursivas populares e os gecircneros literaacuteriosjaacute existentes passam a conviver se mesclar se destruir e serejuvenescer Nesse sentido a ficccedilatildeo em prosa ao surgir comotexto artiacutestico dialoga necessariamente com a alta cultura grega eseus gecircneros jaacute estabelecidos e natildeo podemos sobretudo esquecerque uma das caracteriacutesticas essenciais da prosa ficcional dequalquer eacutepoca eacute a sua capacidade de se apropriar e absorver osdiscursos dos outros gecircneros que circundam na vida social seja nafala cotidiana seja na praacutetica literaacuteria pois como define Bakhtin2

ldquoo estilo do romance eacute uma combinaccedilatildeo de estilosrdquo Portantoparece-nos essencial para compreender o nascimento da ficccedilatildeo emprosa na Antiguidade entender a apropriaccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo dosoutros discursos efetuadas pelo gecircnero do romance que ao fazecirc-los sua mateacuteria os romanciza tendo em vista a criaccedilatildeo de umuniverso ficcional proacuteprio e reconheciacutevel aos seus leitores pois na

5

A

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

realidade satildeo esses de fato os determinantes da ficcionalidade ounatildeo do universo criado3

Pensar a questatildeo geneacuterica do ponto de vista da recepccedilatildeoespecialmente ao se tratar de obras hiacutebridas ou fronteiriccedilas queestatildeo nas primeiras manifestaccedilotildees de qualquer gecircnero implica oentendimento do texto em seu contato vivo com os leitores nojogo que se instaura entre autor-obra-leitor pois eacute nesse domiacutenioque os agentes-leitores participam na construccedilatildeo de sentidotextual O leitor pela sua experiecircncia cultural dentro de seuhorizonte de expectativas reconhece se determinada narrativapertence ou natildeo a um gecircnero na medida em que a filiaccedilatildeo geneacutericade um texto implica a presenccedila de conjuntos de regras e deestruturas que o identifiquem e orientem a leitura Se natildeo satildeoreconheciacuteveis esses dispositivos linguiacutesticos corre-se o risco de oleitor tomar por exemplo como factual aquilo que eacute ficcional ouvice-versa Modernamente a presenccedila de elementos paratextuaiscomo capa orelha do livro folha de rosto a proacutepria tipografia dotexto etc ajudam o leitor a reconhecer facilmente a que gecircnerodeterminado livro pertence ndash para natildeo falarmos das proacutepriasestantes das livrarias que separam os livros de acordo com umadeterminada categorizaccedilatildeo natildeo levando em conta muitas vezeslivros que trafegam nos limites dos gecircneros Na literatura gregaem que tais elementos paratextuais natildeo existiam ou pelo menosnatildeo nos satildeo conhecidos dependemos exclusivamente do jogoliteraacuterio textual pois eacute nele que estatildeo os coacutedigos estruturais que oautor explicita sub ou superficialmente nas camadas de seu textoas delimitaccedilotildees do gecircnero

Das formas literaacuterias gregas nenhuma manteve maiorcontato com o romance do que a historiografia ConformeBrandatildeo justifica-se essa aproximaccedilatildeo pelo fato de que

[] a postura do narrador do romance natildeo deixa de ter seuparalelo mais pronunciado na postura do historiador aindaquando experimente soluccedilotildees novas contaminando seuestatuto com caracteriacutesticas de outros narradores Ainda maisos elementos de autoridade presentes nos proecircmios e nasassinaturas satildeo claramente imitados dos historiadores bem

6

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

como o uso de entrechos histoacutericos aponta para um diaacutelogoespecial com a historiografia4(grifo nosso)

A apropriaccedilatildeo do discurso historiograacutefico eacute utilizada a fimde garantir a impressatildeo de verdade no discurso ficcional Eacuteprovaacutevel que nos primeiros movimentos do gecircnero novohouvesse uma certa necessidade dos romancistas em darcredibilidade agraves suas narrativas ficcionais e a historiografia por seruma forma mais autorizada de narrativa mista em prosa davaelementos que poderiam criar tal ilusatildeo pela mescla de ficccedilatildeo ehistoacuteria Tal movimento entre os gecircneros natildeo se restringiu aoromance antigo jaacute que processo semelhante ocorreu quando nosseacutec XVII e XVIII houve a ascensatildeo do romance na Inglaterra e naFranccedila Segundo Vasconcelos

[] os leitores do final do seacutec XVII e iniacutecio do seacutec XVIII natildeopoderiam assumir de modo rotineiro que as obras que liameram fictiacutecias Essa incerteza quanto ao caraacuteter factual ouficcional da narrativa fez entatildeo com que uma das maiorespreocupaccedilotildees dos primeiros romancistas fosse desenvolveruma teoria do romance que lidasse de forma adequada comessa questatildeo epistemoloacutegica Nos seus estaacutegios iniciais oromance se apresentava como forma ambiacutegua ficccedilatildeo factualque negava sua ficcionalidade e produzia em seus leitores umsentimento de ambivalecircncia quanto a seu possiacutevel conteuacutedode verdade [] Cada um a seu modo esses romancistasdescobriram uma maneira de explorar os limites noveliacutesticosdessa relaccedilatildeo entre fato e ficccedilatildeo e encontraram formas deescrever sobre o mundo que satildeo simultaneamenteimaginativas e referenciais5

Eacute bem conhecida dos leitores de romance a estrateacutegianarrativa do narrador em tentar atribuir a veracidade ao narradodeslocando assim o terreno ficcional para o factual negando emconsequecircncia a proacutepria ficcionalidade do texto Se essa relaccedilatildeoentre ficcionalidade e factualidade eacute um elemento importante dagecircnese e afirmaccedilatildeo do romance na Antiguidade grega isso eacute aindamais sensiacutevel uma vez que a historiografia natildeo era uma ciecircnciacomo entendemos modernamente mas um dos gecircneros

7

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

narrativos e as aproximaccedilotildees e distanciamentos natildeo se datildeo apenasno uso de universos histoacutericos para dar verossimilhanccedila aoficcional mas tambeacutem na apropriaccedilatildeo de dispositivos linguiacutesticos eestruturais da historiografia que satildeo romancizados pela ficccedilatildeo

A partir dessa primeira reflexatildeo o objetivo deste artigo eacuteanalisar o processo de assimilaccedilatildeo do discurso historiograacutefico noproecircmio da Ciropeacutedia de Xenofonte no que tange agrave ficcionalizaccedilatildeoda autoridade do historiador como estrateacutegia para mascarar aficccedilatildeo Por que a Ciropeacutedia Porque ela eacute a primeira manifestaccedilatildeoficcional em prosa da Antiguidade claacutessica6 e por isso nelapodemos contemplar momentos de incertezas e indefiniccedilotildees quesoacute as obras hiacutebridas nos permitem visualizar porque pelo seucaraacuteter hiacutebrido ela tem desafiado os criacuteticos quanto a suaclassificaccedilatildeo geneacuterica7 porque sobretudo essa obra teve forteinfluecircncia nos primeiros romancistas gregos do seacutec II aCindicando que esses seus leitores tardios encontraram nelaelementos que correspondiam agravequilo que praticavam enquantoromancistas

2 FICCcedilAtildeO VERDADE E AUTORIDADE

Definir o que seja a ficccedilatildeo haacute muito se apresenta comotarefa espinhosa especialmente porque quando analisado doponto de vista estrutural natildeo haacute de fato nada que separe umtexto ficcional de um texto factual Essa ausecircncia de elementostextuais fez com que os estudiosos e criacuteticos entatildeo voltassem seusolhos para as camadas semacircnticas do texto tentando definir ocaraacuteter ontoloacutegico do mundo ficcional Assim segundo Schaeffer8

do ponto de vista semacircntico a narrativa factual eacute referencialenquanto o mundo ontoloacutegico da ficccedilatildeo natildeo Tal definiccedilatildeosemacircntica no entanto esbarra numa seacuterie de limitaccedilotildeesjustamente porque implica que a ficccedilatildeo trata de ldquocoisas que natildeoexistemrdquo9 em oposiccedilatildeo aos textos factuais como biografiareportagens historiografia textos cientiacuteficos Poreacutem basta umaraacutepida olhada em qualquer romance para nos depararmos comambientaccedilotildees personagens momentos histoacutericos precisos

8

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38

CALIacuteOPEPresenccedila Claacutessica

ISSN 2447-875X

separata 6

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras ClaacutessicasDepartamento de Letras Claacutessicas da UFRJ

2

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

Universidade Federal do Rio de JaneiroREITOR Denise Pires de Carvalho

Centro de Letras e ArtesDECANA Cristina Grafanassi Tranjan

Faculdade de LetrasDIRETORA Sonia Cristina Reis

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras ClaacutessicasCOORDENADOR Ricardo de Souza NogueiraVICE-COORDENADORA Arlete Joseacute Mota

Departamento de Letras ClaacutessicasCHEFE Faacutebio Frohwein de Salles MonizSUBCHEFE Eduardo Murtinho Braga Boechat

OrganizadoresFaacutebio Frohwein de Salles MonizRainer Guggenberger

Conselho EditorialAlice da Silva CunhaAna Thereza Basilio VieiraAnderson de Araujo Martins EstevesArlete Joseacute Mota Auto Lyra TeixeiraRicardo de Souza Nogueira Tania Martins Santos

Conselho ConsultivoAlfred Dunshirn (Universitaumlt Wien)David Konstan (New York University)Edith Hall (Kingrsquos College London)Frederico Lourenccedilo (Universidade de Coimbra)Gabriele Cornelli (UnB)Gian Biagio Conte (Scuola Normale Superiore di Pisa)Isabella Tardin (Unicamp)Jacyntho Lins Brandatildeo (UFMG)Jean-Michel Carrieacute (EHESS)Maria de Faacutetima Sousa e Silva (Universidade de Coimbra)Martin Dinter (Kingrsquos College London)Victor Hugo Meacutendez Aguirre (Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico)Violaine Sebillote-Cuchet (Universiteacute Paris 1)Zeacutelia de Almeida Cardoso (USP)

CapaFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

EditoraccedilatildeoFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

Revisatildeo de textoBruna Esther da Silva Andrade | Faacutebio Frohwein de Salles Moniz

Revisatildeo teacutecnicaFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas | Faculdade de Letras ndash UFRJAv Horaacutecio Macedo 2151 ndash sala F-327 ndash Ilha do Fundatildeo 21941-917 ndash Rio de Janeiro ndash RJwwwletrasufrjbrpgclassicas ndash pgclassicasletrasufrjbr

3

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade naCiropeacutedia de XenofonteEmerson Cerdas

RESUMO

O objetivo deste artigo eacute a anaacutelise do proecircmio da Ciropeacutedia de Xenofontevisando demonstrar a absorccedilatildeo de elementos do discurso historiograacutefico porparte do narrador a fim de garantir a veracidade da narrativa da vida de CiroCom isso tais elementos parecem estabelecer um pacto de leitura em que onarrador nega a ficcionalidade do texto Os proecircmios dos historiadores eramtextos em que estes afirmavam as suas temaacuteticas mas tambeacutem buscavamjustificar as suas escolhas e sobretudo estabelecer os criteacuterios de pesquisa eanaacutelise para fortalecer a impressatildeo de idoneidade e autoridade quanto aos fatosnarrados Uma vez que a vida de Ciro era um tema conhecido dos leitores deXenofonte no seacutec IV aC parece-nos que essa eacute uma estrateacutegia que natildeo tem afunccedilatildeo de enganar o leitor quanto agrave veracidade dos fatos narrados ndash jaacute que elesreconheceriam facilmente a ficcionalidade ndash e sim granjear a autoridade quantoagraves reflexotildees morais e eacuteticas de Xenofonte cuja vida de Ciro exemplifica Issoficaraacute mais evidente na anaacutelise do proecircmio onde o narrador sob a aparecircncia dehistoriador deixa vestiacutegios quanto agrave quebra de convenccedilotildees da historiografiaindicando o caraacuteter ficcional da narrativa Trata-se portanto de um complexoproecircmio que inaugura uma nova modalidade nos textos em prosa daAntiguidade uma narrativa ficcional que finge ser verdadeira

PALAVRAS-CHAVE

Ficccedilatildeo historiografia romance Xenofonte Ciropeacutedia

SUBMISSAtildeO 29112019 | APROVACcedilAtildeO 23022020 | PUBLICACcedilAtildeO 26032020

DOI httpsdoiorg1017074cpcv2i3830806

4

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

1 POR QUE A CIROPEacuteDIAorigem do romance na Greacutecia antiga eacute assuntorepleto de dificuldades tanto pela carecircncia detextos representativos do gecircnero quanto pelosparcos comentaacuterios a seu respeito nos tratados deliteratura antiga No seu alvorecer entre os seacutec II eI aC1 o romance tinha atraacutes de si toda umatradiccedilatildeo literaacuteria estabelecida que desde Homero eHesiacuteodo fortaleceu-se cada vez mais como umaimportante manifestaccedilatildeo caracterizadora da culturahelecircnica Poesia eacutepica liacuterica teatro filosofiaoratoacuteria e historiografia eram formas discursivasinquestionaacuteveis como parte da alta cultura cujo

conhecimento fazia parte da formaccedilatildeo dos homens doutos Nesseuniverso cultural o romance era apenas mais um gecircnero literaacuteriotratado como forma artiacutestica inferior agravequelas e por isso agrave medidaque dava seus primeiros passos com essa tradiccedilatildeo o romance serivalizava para ganhar seu espaccedilo buscando a sua afirmaccedilatildeo

Entende-se todavia que nenhum gecircnero literaacuterio surge donada e sim em decorrecircncia de processos dialoacutegicos dinacircmicos emque as manifestaccedilotildees discursivas populares e os gecircneros literaacuteriosjaacute existentes passam a conviver se mesclar se destruir e serejuvenescer Nesse sentido a ficccedilatildeo em prosa ao surgir comotexto artiacutestico dialoga necessariamente com a alta cultura grega eseus gecircneros jaacute estabelecidos e natildeo podemos sobretudo esquecerque uma das caracteriacutesticas essenciais da prosa ficcional dequalquer eacutepoca eacute a sua capacidade de se apropriar e absorver osdiscursos dos outros gecircneros que circundam na vida social seja nafala cotidiana seja na praacutetica literaacuteria pois como define Bakhtin2

ldquoo estilo do romance eacute uma combinaccedilatildeo de estilosrdquo Portantoparece-nos essencial para compreender o nascimento da ficccedilatildeo emprosa na Antiguidade entender a apropriaccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo dosoutros discursos efetuadas pelo gecircnero do romance que ao fazecirc-los sua mateacuteria os romanciza tendo em vista a criaccedilatildeo de umuniverso ficcional proacuteprio e reconheciacutevel aos seus leitores pois na

5

A

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

realidade satildeo esses de fato os determinantes da ficcionalidade ounatildeo do universo criado3

Pensar a questatildeo geneacuterica do ponto de vista da recepccedilatildeoespecialmente ao se tratar de obras hiacutebridas ou fronteiriccedilas queestatildeo nas primeiras manifestaccedilotildees de qualquer gecircnero implica oentendimento do texto em seu contato vivo com os leitores nojogo que se instaura entre autor-obra-leitor pois eacute nesse domiacutenioque os agentes-leitores participam na construccedilatildeo de sentidotextual O leitor pela sua experiecircncia cultural dentro de seuhorizonte de expectativas reconhece se determinada narrativapertence ou natildeo a um gecircnero na medida em que a filiaccedilatildeo geneacutericade um texto implica a presenccedila de conjuntos de regras e deestruturas que o identifiquem e orientem a leitura Se natildeo satildeoreconheciacuteveis esses dispositivos linguiacutesticos corre-se o risco de oleitor tomar por exemplo como factual aquilo que eacute ficcional ouvice-versa Modernamente a presenccedila de elementos paratextuaiscomo capa orelha do livro folha de rosto a proacutepria tipografia dotexto etc ajudam o leitor a reconhecer facilmente a que gecircnerodeterminado livro pertence ndash para natildeo falarmos das proacutepriasestantes das livrarias que separam os livros de acordo com umadeterminada categorizaccedilatildeo natildeo levando em conta muitas vezeslivros que trafegam nos limites dos gecircneros Na literatura gregaem que tais elementos paratextuais natildeo existiam ou pelo menosnatildeo nos satildeo conhecidos dependemos exclusivamente do jogoliteraacuterio textual pois eacute nele que estatildeo os coacutedigos estruturais que oautor explicita sub ou superficialmente nas camadas de seu textoas delimitaccedilotildees do gecircnero

Das formas literaacuterias gregas nenhuma manteve maiorcontato com o romance do que a historiografia ConformeBrandatildeo justifica-se essa aproximaccedilatildeo pelo fato de que

[] a postura do narrador do romance natildeo deixa de ter seuparalelo mais pronunciado na postura do historiador aindaquando experimente soluccedilotildees novas contaminando seuestatuto com caracteriacutesticas de outros narradores Ainda maisos elementos de autoridade presentes nos proecircmios e nasassinaturas satildeo claramente imitados dos historiadores bem

6

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

como o uso de entrechos histoacutericos aponta para um diaacutelogoespecial com a historiografia4(grifo nosso)

A apropriaccedilatildeo do discurso historiograacutefico eacute utilizada a fimde garantir a impressatildeo de verdade no discurso ficcional Eacuteprovaacutevel que nos primeiros movimentos do gecircnero novohouvesse uma certa necessidade dos romancistas em darcredibilidade agraves suas narrativas ficcionais e a historiografia por seruma forma mais autorizada de narrativa mista em prosa davaelementos que poderiam criar tal ilusatildeo pela mescla de ficccedilatildeo ehistoacuteria Tal movimento entre os gecircneros natildeo se restringiu aoromance antigo jaacute que processo semelhante ocorreu quando nosseacutec XVII e XVIII houve a ascensatildeo do romance na Inglaterra e naFranccedila Segundo Vasconcelos

[] os leitores do final do seacutec XVII e iniacutecio do seacutec XVIII natildeopoderiam assumir de modo rotineiro que as obras que liameram fictiacutecias Essa incerteza quanto ao caraacuteter factual ouficcional da narrativa fez entatildeo com que uma das maiorespreocupaccedilotildees dos primeiros romancistas fosse desenvolveruma teoria do romance que lidasse de forma adequada comessa questatildeo epistemoloacutegica Nos seus estaacutegios iniciais oromance se apresentava como forma ambiacutegua ficccedilatildeo factualque negava sua ficcionalidade e produzia em seus leitores umsentimento de ambivalecircncia quanto a seu possiacutevel conteuacutedode verdade [] Cada um a seu modo esses romancistasdescobriram uma maneira de explorar os limites noveliacutesticosdessa relaccedilatildeo entre fato e ficccedilatildeo e encontraram formas deescrever sobre o mundo que satildeo simultaneamenteimaginativas e referenciais5

Eacute bem conhecida dos leitores de romance a estrateacutegianarrativa do narrador em tentar atribuir a veracidade ao narradodeslocando assim o terreno ficcional para o factual negando emconsequecircncia a proacutepria ficcionalidade do texto Se essa relaccedilatildeoentre ficcionalidade e factualidade eacute um elemento importante dagecircnese e afirmaccedilatildeo do romance na Antiguidade grega isso eacute aindamais sensiacutevel uma vez que a historiografia natildeo era uma ciecircnciacomo entendemos modernamente mas um dos gecircneros

7

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

narrativos e as aproximaccedilotildees e distanciamentos natildeo se datildeo apenasno uso de universos histoacutericos para dar verossimilhanccedila aoficcional mas tambeacutem na apropriaccedilatildeo de dispositivos linguiacutesticos eestruturais da historiografia que satildeo romancizados pela ficccedilatildeo

A partir dessa primeira reflexatildeo o objetivo deste artigo eacuteanalisar o processo de assimilaccedilatildeo do discurso historiograacutefico noproecircmio da Ciropeacutedia de Xenofonte no que tange agrave ficcionalizaccedilatildeoda autoridade do historiador como estrateacutegia para mascarar aficccedilatildeo Por que a Ciropeacutedia Porque ela eacute a primeira manifestaccedilatildeoficcional em prosa da Antiguidade claacutessica6 e por isso nelapodemos contemplar momentos de incertezas e indefiniccedilotildees quesoacute as obras hiacutebridas nos permitem visualizar porque pelo seucaraacuteter hiacutebrido ela tem desafiado os criacuteticos quanto a suaclassificaccedilatildeo geneacuterica7 porque sobretudo essa obra teve forteinfluecircncia nos primeiros romancistas gregos do seacutec II aCindicando que esses seus leitores tardios encontraram nelaelementos que correspondiam agravequilo que praticavam enquantoromancistas

2 FICCcedilAtildeO VERDADE E AUTORIDADE

Definir o que seja a ficccedilatildeo haacute muito se apresenta comotarefa espinhosa especialmente porque quando analisado doponto de vista estrutural natildeo haacute de fato nada que separe umtexto ficcional de um texto factual Essa ausecircncia de elementostextuais fez com que os estudiosos e criacuteticos entatildeo voltassem seusolhos para as camadas semacircnticas do texto tentando definir ocaraacuteter ontoloacutegico do mundo ficcional Assim segundo Schaeffer8

do ponto de vista semacircntico a narrativa factual eacute referencialenquanto o mundo ontoloacutegico da ficccedilatildeo natildeo Tal definiccedilatildeosemacircntica no entanto esbarra numa seacuterie de limitaccedilotildeesjustamente porque implica que a ficccedilatildeo trata de ldquocoisas que natildeoexistemrdquo9 em oposiccedilatildeo aos textos factuais como biografiareportagens historiografia textos cientiacuteficos Poreacutem basta umaraacutepida olhada em qualquer romance para nos depararmos comambientaccedilotildees personagens momentos histoacutericos precisos

8

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

Universidade Federal do Rio de JaneiroREITOR Denise Pires de Carvalho

Centro de Letras e ArtesDECANA Cristina Grafanassi Tranjan

Faculdade de LetrasDIRETORA Sonia Cristina Reis

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras ClaacutessicasCOORDENADOR Ricardo de Souza NogueiraVICE-COORDENADORA Arlete Joseacute Mota

Departamento de Letras ClaacutessicasCHEFE Faacutebio Frohwein de Salles MonizSUBCHEFE Eduardo Murtinho Braga Boechat

OrganizadoresFaacutebio Frohwein de Salles MonizRainer Guggenberger

Conselho EditorialAlice da Silva CunhaAna Thereza Basilio VieiraAnderson de Araujo Martins EstevesArlete Joseacute Mota Auto Lyra TeixeiraRicardo de Souza Nogueira Tania Martins Santos

Conselho ConsultivoAlfred Dunshirn (Universitaumlt Wien)David Konstan (New York University)Edith Hall (Kingrsquos College London)Frederico Lourenccedilo (Universidade de Coimbra)Gabriele Cornelli (UnB)Gian Biagio Conte (Scuola Normale Superiore di Pisa)Isabella Tardin (Unicamp)Jacyntho Lins Brandatildeo (UFMG)Jean-Michel Carrieacute (EHESS)Maria de Faacutetima Sousa e Silva (Universidade de Coimbra)Martin Dinter (Kingrsquos College London)Victor Hugo Meacutendez Aguirre (Universidad Nacional Autoacutenoma de Meacutexico)Violaine Sebillote-Cuchet (Universiteacute Paris 1)Zeacutelia de Almeida Cardoso (USP)

CapaFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

EditoraccedilatildeoFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

Revisatildeo de textoBruna Esther da Silva Andrade | Faacutebio Frohwein de Salles Moniz

Revisatildeo teacutecnicaFaacutebio Frohwein de Salles Moniz

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Letras Claacutessicas | Faculdade de Letras ndash UFRJAv Horaacutecio Macedo 2151 ndash sala F-327 ndash Ilha do Fundatildeo 21941-917 ndash Rio de Janeiro ndash RJwwwletrasufrjbrpgclassicas ndash pgclassicasletrasufrjbr

3

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade naCiropeacutedia de XenofonteEmerson Cerdas

RESUMO

O objetivo deste artigo eacute a anaacutelise do proecircmio da Ciropeacutedia de Xenofontevisando demonstrar a absorccedilatildeo de elementos do discurso historiograacutefico porparte do narrador a fim de garantir a veracidade da narrativa da vida de CiroCom isso tais elementos parecem estabelecer um pacto de leitura em que onarrador nega a ficcionalidade do texto Os proecircmios dos historiadores eramtextos em que estes afirmavam as suas temaacuteticas mas tambeacutem buscavamjustificar as suas escolhas e sobretudo estabelecer os criteacuterios de pesquisa eanaacutelise para fortalecer a impressatildeo de idoneidade e autoridade quanto aos fatosnarrados Uma vez que a vida de Ciro era um tema conhecido dos leitores deXenofonte no seacutec IV aC parece-nos que essa eacute uma estrateacutegia que natildeo tem afunccedilatildeo de enganar o leitor quanto agrave veracidade dos fatos narrados ndash jaacute que elesreconheceriam facilmente a ficcionalidade ndash e sim granjear a autoridade quantoagraves reflexotildees morais e eacuteticas de Xenofonte cuja vida de Ciro exemplifica Issoficaraacute mais evidente na anaacutelise do proecircmio onde o narrador sob a aparecircncia dehistoriador deixa vestiacutegios quanto agrave quebra de convenccedilotildees da historiografiaindicando o caraacuteter ficcional da narrativa Trata-se portanto de um complexoproecircmio que inaugura uma nova modalidade nos textos em prosa daAntiguidade uma narrativa ficcional que finge ser verdadeira

PALAVRAS-CHAVE

Ficccedilatildeo historiografia romance Xenofonte Ciropeacutedia

SUBMISSAtildeO 29112019 | APROVACcedilAtildeO 23022020 | PUBLICACcedilAtildeO 26032020

DOI httpsdoiorg1017074cpcv2i3830806

4

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

1 POR QUE A CIROPEacuteDIAorigem do romance na Greacutecia antiga eacute assuntorepleto de dificuldades tanto pela carecircncia detextos representativos do gecircnero quanto pelosparcos comentaacuterios a seu respeito nos tratados deliteratura antiga No seu alvorecer entre os seacutec II eI aC1 o romance tinha atraacutes de si toda umatradiccedilatildeo literaacuteria estabelecida que desde Homero eHesiacuteodo fortaleceu-se cada vez mais como umaimportante manifestaccedilatildeo caracterizadora da culturahelecircnica Poesia eacutepica liacuterica teatro filosofiaoratoacuteria e historiografia eram formas discursivasinquestionaacuteveis como parte da alta cultura cujo

conhecimento fazia parte da formaccedilatildeo dos homens doutos Nesseuniverso cultural o romance era apenas mais um gecircnero literaacuteriotratado como forma artiacutestica inferior agravequelas e por isso agrave medidaque dava seus primeiros passos com essa tradiccedilatildeo o romance serivalizava para ganhar seu espaccedilo buscando a sua afirmaccedilatildeo

Entende-se todavia que nenhum gecircnero literaacuterio surge donada e sim em decorrecircncia de processos dialoacutegicos dinacircmicos emque as manifestaccedilotildees discursivas populares e os gecircneros literaacuteriosjaacute existentes passam a conviver se mesclar se destruir e serejuvenescer Nesse sentido a ficccedilatildeo em prosa ao surgir comotexto artiacutestico dialoga necessariamente com a alta cultura grega eseus gecircneros jaacute estabelecidos e natildeo podemos sobretudo esquecerque uma das caracteriacutesticas essenciais da prosa ficcional dequalquer eacutepoca eacute a sua capacidade de se apropriar e absorver osdiscursos dos outros gecircneros que circundam na vida social seja nafala cotidiana seja na praacutetica literaacuteria pois como define Bakhtin2

ldquoo estilo do romance eacute uma combinaccedilatildeo de estilosrdquo Portantoparece-nos essencial para compreender o nascimento da ficccedilatildeo emprosa na Antiguidade entender a apropriaccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo dosoutros discursos efetuadas pelo gecircnero do romance que ao fazecirc-los sua mateacuteria os romanciza tendo em vista a criaccedilatildeo de umuniverso ficcional proacuteprio e reconheciacutevel aos seus leitores pois na

5

A

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

realidade satildeo esses de fato os determinantes da ficcionalidade ounatildeo do universo criado3

Pensar a questatildeo geneacuterica do ponto de vista da recepccedilatildeoespecialmente ao se tratar de obras hiacutebridas ou fronteiriccedilas queestatildeo nas primeiras manifestaccedilotildees de qualquer gecircnero implica oentendimento do texto em seu contato vivo com os leitores nojogo que se instaura entre autor-obra-leitor pois eacute nesse domiacutenioque os agentes-leitores participam na construccedilatildeo de sentidotextual O leitor pela sua experiecircncia cultural dentro de seuhorizonte de expectativas reconhece se determinada narrativapertence ou natildeo a um gecircnero na medida em que a filiaccedilatildeo geneacutericade um texto implica a presenccedila de conjuntos de regras e deestruturas que o identifiquem e orientem a leitura Se natildeo satildeoreconheciacuteveis esses dispositivos linguiacutesticos corre-se o risco de oleitor tomar por exemplo como factual aquilo que eacute ficcional ouvice-versa Modernamente a presenccedila de elementos paratextuaiscomo capa orelha do livro folha de rosto a proacutepria tipografia dotexto etc ajudam o leitor a reconhecer facilmente a que gecircnerodeterminado livro pertence ndash para natildeo falarmos das proacutepriasestantes das livrarias que separam os livros de acordo com umadeterminada categorizaccedilatildeo natildeo levando em conta muitas vezeslivros que trafegam nos limites dos gecircneros Na literatura gregaem que tais elementos paratextuais natildeo existiam ou pelo menosnatildeo nos satildeo conhecidos dependemos exclusivamente do jogoliteraacuterio textual pois eacute nele que estatildeo os coacutedigos estruturais que oautor explicita sub ou superficialmente nas camadas de seu textoas delimitaccedilotildees do gecircnero

Das formas literaacuterias gregas nenhuma manteve maiorcontato com o romance do que a historiografia ConformeBrandatildeo justifica-se essa aproximaccedilatildeo pelo fato de que

[] a postura do narrador do romance natildeo deixa de ter seuparalelo mais pronunciado na postura do historiador aindaquando experimente soluccedilotildees novas contaminando seuestatuto com caracteriacutesticas de outros narradores Ainda maisos elementos de autoridade presentes nos proecircmios e nasassinaturas satildeo claramente imitados dos historiadores bem

6

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

como o uso de entrechos histoacutericos aponta para um diaacutelogoespecial com a historiografia4(grifo nosso)

A apropriaccedilatildeo do discurso historiograacutefico eacute utilizada a fimde garantir a impressatildeo de verdade no discurso ficcional Eacuteprovaacutevel que nos primeiros movimentos do gecircnero novohouvesse uma certa necessidade dos romancistas em darcredibilidade agraves suas narrativas ficcionais e a historiografia por seruma forma mais autorizada de narrativa mista em prosa davaelementos que poderiam criar tal ilusatildeo pela mescla de ficccedilatildeo ehistoacuteria Tal movimento entre os gecircneros natildeo se restringiu aoromance antigo jaacute que processo semelhante ocorreu quando nosseacutec XVII e XVIII houve a ascensatildeo do romance na Inglaterra e naFranccedila Segundo Vasconcelos

[] os leitores do final do seacutec XVII e iniacutecio do seacutec XVIII natildeopoderiam assumir de modo rotineiro que as obras que liameram fictiacutecias Essa incerteza quanto ao caraacuteter factual ouficcional da narrativa fez entatildeo com que uma das maiorespreocupaccedilotildees dos primeiros romancistas fosse desenvolveruma teoria do romance que lidasse de forma adequada comessa questatildeo epistemoloacutegica Nos seus estaacutegios iniciais oromance se apresentava como forma ambiacutegua ficccedilatildeo factualque negava sua ficcionalidade e produzia em seus leitores umsentimento de ambivalecircncia quanto a seu possiacutevel conteuacutedode verdade [] Cada um a seu modo esses romancistasdescobriram uma maneira de explorar os limites noveliacutesticosdessa relaccedilatildeo entre fato e ficccedilatildeo e encontraram formas deescrever sobre o mundo que satildeo simultaneamenteimaginativas e referenciais5

Eacute bem conhecida dos leitores de romance a estrateacutegianarrativa do narrador em tentar atribuir a veracidade ao narradodeslocando assim o terreno ficcional para o factual negando emconsequecircncia a proacutepria ficcionalidade do texto Se essa relaccedilatildeoentre ficcionalidade e factualidade eacute um elemento importante dagecircnese e afirmaccedilatildeo do romance na Antiguidade grega isso eacute aindamais sensiacutevel uma vez que a historiografia natildeo era uma ciecircnciacomo entendemos modernamente mas um dos gecircneros

7

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

narrativos e as aproximaccedilotildees e distanciamentos natildeo se datildeo apenasno uso de universos histoacutericos para dar verossimilhanccedila aoficcional mas tambeacutem na apropriaccedilatildeo de dispositivos linguiacutesticos eestruturais da historiografia que satildeo romancizados pela ficccedilatildeo

A partir dessa primeira reflexatildeo o objetivo deste artigo eacuteanalisar o processo de assimilaccedilatildeo do discurso historiograacutefico noproecircmio da Ciropeacutedia de Xenofonte no que tange agrave ficcionalizaccedilatildeoda autoridade do historiador como estrateacutegia para mascarar aficccedilatildeo Por que a Ciropeacutedia Porque ela eacute a primeira manifestaccedilatildeoficcional em prosa da Antiguidade claacutessica6 e por isso nelapodemos contemplar momentos de incertezas e indefiniccedilotildees quesoacute as obras hiacutebridas nos permitem visualizar porque pelo seucaraacuteter hiacutebrido ela tem desafiado os criacuteticos quanto a suaclassificaccedilatildeo geneacuterica7 porque sobretudo essa obra teve forteinfluecircncia nos primeiros romancistas gregos do seacutec II aCindicando que esses seus leitores tardios encontraram nelaelementos que correspondiam agravequilo que praticavam enquantoromancistas

2 FICCcedilAtildeO VERDADE E AUTORIDADE

Definir o que seja a ficccedilatildeo haacute muito se apresenta comotarefa espinhosa especialmente porque quando analisado doponto de vista estrutural natildeo haacute de fato nada que separe umtexto ficcional de um texto factual Essa ausecircncia de elementostextuais fez com que os estudiosos e criacuteticos entatildeo voltassem seusolhos para as camadas semacircnticas do texto tentando definir ocaraacuteter ontoloacutegico do mundo ficcional Assim segundo Schaeffer8

do ponto de vista semacircntico a narrativa factual eacute referencialenquanto o mundo ontoloacutegico da ficccedilatildeo natildeo Tal definiccedilatildeosemacircntica no entanto esbarra numa seacuterie de limitaccedilotildeesjustamente porque implica que a ficccedilatildeo trata de ldquocoisas que natildeoexistemrdquo9 em oposiccedilatildeo aos textos factuais como biografiareportagens historiografia textos cientiacuteficos Poreacutem basta umaraacutepida olhada em qualquer romance para nos depararmos comambientaccedilotildees personagens momentos histoacutericos precisos

8

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade naCiropeacutedia de XenofonteEmerson Cerdas

RESUMO

O objetivo deste artigo eacute a anaacutelise do proecircmio da Ciropeacutedia de Xenofontevisando demonstrar a absorccedilatildeo de elementos do discurso historiograacutefico porparte do narrador a fim de garantir a veracidade da narrativa da vida de CiroCom isso tais elementos parecem estabelecer um pacto de leitura em que onarrador nega a ficcionalidade do texto Os proecircmios dos historiadores eramtextos em que estes afirmavam as suas temaacuteticas mas tambeacutem buscavamjustificar as suas escolhas e sobretudo estabelecer os criteacuterios de pesquisa eanaacutelise para fortalecer a impressatildeo de idoneidade e autoridade quanto aos fatosnarrados Uma vez que a vida de Ciro era um tema conhecido dos leitores deXenofonte no seacutec IV aC parece-nos que essa eacute uma estrateacutegia que natildeo tem afunccedilatildeo de enganar o leitor quanto agrave veracidade dos fatos narrados ndash jaacute que elesreconheceriam facilmente a ficcionalidade ndash e sim granjear a autoridade quantoagraves reflexotildees morais e eacuteticas de Xenofonte cuja vida de Ciro exemplifica Issoficaraacute mais evidente na anaacutelise do proecircmio onde o narrador sob a aparecircncia dehistoriador deixa vestiacutegios quanto agrave quebra de convenccedilotildees da historiografiaindicando o caraacuteter ficcional da narrativa Trata-se portanto de um complexoproecircmio que inaugura uma nova modalidade nos textos em prosa daAntiguidade uma narrativa ficcional que finge ser verdadeira

PALAVRAS-CHAVE

Ficccedilatildeo historiografia romance Xenofonte Ciropeacutedia

SUBMISSAtildeO 29112019 | APROVACcedilAtildeO 23022020 | PUBLICACcedilAtildeO 26032020

DOI httpsdoiorg1017074cpcv2i3830806

4

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

1 POR QUE A CIROPEacuteDIAorigem do romance na Greacutecia antiga eacute assuntorepleto de dificuldades tanto pela carecircncia detextos representativos do gecircnero quanto pelosparcos comentaacuterios a seu respeito nos tratados deliteratura antiga No seu alvorecer entre os seacutec II eI aC1 o romance tinha atraacutes de si toda umatradiccedilatildeo literaacuteria estabelecida que desde Homero eHesiacuteodo fortaleceu-se cada vez mais como umaimportante manifestaccedilatildeo caracterizadora da culturahelecircnica Poesia eacutepica liacuterica teatro filosofiaoratoacuteria e historiografia eram formas discursivasinquestionaacuteveis como parte da alta cultura cujo

conhecimento fazia parte da formaccedilatildeo dos homens doutos Nesseuniverso cultural o romance era apenas mais um gecircnero literaacuteriotratado como forma artiacutestica inferior agravequelas e por isso agrave medidaque dava seus primeiros passos com essa tradiccedilatildeo o romance serivalizava para ganhar seu espaccedilo buscando a sua afirmaccedilatildeo

Entende-se todavia que nenhum gecircnero literaacuterio surge donada e sim em decorrecircncia de processos dialoacutegicos dinacircmicos emque as manifestaccedilotildees discursivas populares e os gecircneros literaacuteriosjaacute existentes passam a conviver se mesclar se destruir e serejuvenescer Nesse sentido a ficccedilatildeo em prosa ao surgir comotexto artiacutestico dialoga necessariamente com a alta cultura grega eseus gecircneros jaacute estabelecidos e natildeo podemos sobretudo esquecerque uma das caracteriacutesticas essenciais da prosa ficcional dequalquer eacutepoca eacute a sua capacidade de se apropriar e absorver osdiscursos dos outros gecircneros que circundam na vida social seja nafala cotidiana seja na praacutetica literaacuteria pois como define Bakhtin2

ldquoo estilo do romance eacute uma combinaccedilatildeo de estilosrdquo Portantoparece-nos essencial para compreender o nascimento da ficccedilatildeo emprosa na Antiguidade entender a apropriaccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo dosoutros discursos efetuadas pelo gecircnero do romance que ao fazecirc-los sua mateacuteria os romanciza tendo em vista a criaccedilatildeo de umuniverso ficcional proacuteprio e reconheciacutevel aos seus leitores pois na

5

A

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

realidade satildeo esses de fato os determinantes da ficcionalidade ounatildeo do universo criado3

Pensar a questatildeo geneacuterica do ponto de vista da recepccedilatildeoespecialmente ao se tratar de obras hiacutebridas ou fronteiriccedilas queestatildeo nas primeiras manifestaccedilotildees de qualquer gecircnero implica oentendimento do texto em seu contato vivo com os leitores nojogo que se instaura entre autor-obra-leitor pois eacute nesse domiacutenioque os agentes-leitores participam na construccedilatildeo de sentidotextual O leitor pela sua experiecircncia cultural dentro de seuhorizonte de expectativas reconhece se determinada narrativapertence ou natildeo a um gecircnero na medida em que a filiaccedilatildeo geneacutericade um texto implica a presenccedila de conjuntos de regras e deestruturas que o identifiquem e orientem a leitura Se natildeo satildeoreconheciacuteveis esses dispositivos linguiacutesticos corre-se o risco de oleitor tomar por exemplo como factual aquilo que eacute ficcional ouvice-versa Modernamente a presenccedila de elementos paratextuaiscomo capa orelha do livro folha de rosto a proacutepria tipografia dotexto etc ajudam o leitor a reconhecer facilmente a que gecircnerodeterminado livro pertence ndash para natildeo falarmos das proacutepriasestantes das livrarias que separam os livros de acordo com umadeterminada categorizaccedilatildeo natildeo levando em conta muitas vezeslivros que trafegam nos limites dos gecircneros Na literatura gregaem que tais elementos paratextuais natildeo existiam ou pelo menosnatildeo nos satildeo conhecidos dependemos exclusivamente do jogoliteraacuterio textual pois eacute nele que estatildeo os coacutedigos estruturais que oautor explicita sub ou superficialmente nas camadas de seu textoas delimitaccedilotildees do gecircnero

Das formas literaacuterias gregas nenhuma manteve maiorcontato com o romance do que a historiografia ConformeBrandatildeo justifica-se essa aproximaccedilatildeo pelo fato de que

[] a postura do narrador do romance natildeo deixa de ter seuparalelo mais pronunciado na postura do historiador aindaquando experimente soluccedilotildees novas contaminando seuestatuto com caracteriacutesticas de outros narradores Ainda maisos elementos de autoridade presentes nos proecircmios e nasassinaturas satildeo claramente imitados dos historiadores bem

6

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

como o uso de entrechos histoacutericos aponta para um diaacutelogoespecial com a historiografia4(grifo nosso)

A apropriaccedilatildeo do discurso historiograacutefico eacute utilizada a fimde garantir a impressatildeo de verdade no discurso ficcional Eacuteprovaacutevel que nos primeiros movimentos do gecircnero novohouvesse uma certa necessidade dos romancistas em darcredibilidade agraves suas narrativas ficcionais e a historiografia por seruma forma mais autorizada de narrativa mista em prosa davaelementos que poderiam criar tal ilusatildeo pela mescla de ficccedilatildeo ehistoacuteria Tal movimento entre os gecircneros natildeo se restringiu aoromance antigo jaacute que processo semelhante ocorreu quando nosseacutec XVII e XVIII houve a ascensatildeo do romance na Inglaterra e naFranccedila Segundo Vasconcelos

[] os leitores do final do seacutec XVII e iniacutecio do seacutec XVIII natildeopoderiam assumir de modo rotineiro que as obras que liameram fictiacutecias Essa incerteza quanto ao caraacuteter factual ouficcional da narrativa fez entatildeo com que uma das maiorespreocupaccedilotildees dos primeiros romancistas fosse desenvolveruma teoria do romance que lidasse de forma adequada comessa questatildeo epistemoloacutegica Nos seus estaacutegios iniciais oromance se apresentava como forma ambiacutegua ficccedilatildeo factualque negava sua ficcionalidade e produzia em seus leitores umsentimento de ambivalecircncia quanto a seu possiacutevel conteuacutedode verdade [] Cada um a seu modo esses romancistasdescobriram uma maneira de explorar os limites noveliacutesticosdessa relaccedilatildeo entre fato e ficccedilatildeo e encontraram formas deescrever sobre o mundo que satildeo simultaneamenteimaginativas e referenciais5

Eacute bem conhecida dos leitores de romance a estrateacutegianarrativa do narrador em tentar atribuir a veracidade ao narradodeslocando assim o terreno ficcional para o factual negando emconsequecircncia a proacutepria ficcionalidade do texto Se essa relaccedilatildeoentre ficcionalidade e factualidade eacute um elemento importante dagecircnese e afirmaccedilatildeo do romance na Antiguidade grega isso eacute aindamais sensiacutevel uma vez que a historiografia natildeo era uma ciecircnciacomo entendemos modernamente mas um dos gecircneros

7

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

narrativos e as aproximaccedilotildees e distanciamentos natildeo se datildeo apenasno uso de universos histoacutericos para dar verossimilhanccedila aoficcional mas tambeacutem na apropriaccedilatildeo de dispositivos linguiacutesticos eestruturais da historiografia que satildeo romancizados pela ficccedilatildeo

A partir dessa primeira reflexatildeo o objetivo deste artigo eacuteanalisar o processo de assimilaccedilatildeo do discurso historiograacutefico noproecircmio da Ciropeacutedia de Xenofonte no que tange agrave ficcionalizaccedilatildeoda autoridade do historiador como estrateacutegia para mascarar aficccedilatildeo Por que a Ciropeacutedia Porque ela eacute a primeira manifestaccedilatildeoficcional em prosa da Antiguidade claacutessica6 e por isso nelapodemos contemplar momentos de incertezas e indefiniccedilotildees quesoacute as obras hiacutebridas nos permitem visualizar porque pelo seucaraacuteter hiacutebrido ela tem desafiado os criacuteticos quanto a suaclassificaccedilatildeo geneacuterica7 porque sobretudo essa obra teve forteinfluecircncia nos primeiros romancistas gregos do seacutec II aCindicando que esses seus leitores tardios encontraram nelaelementos que correspondiam agravequilo que praticavam enquantoromancistas

2 FICCcedilAtildeO VERDADE E AUTORIDADE

Definir o que seja a ficccedilatildeo haacute muito se apresenta comotarefa espinhosa especialmente porque quando analisado doponto de vista estrutural natildeo haacute de fato nada que separe umtexto ficcional de um texto factual Essa ausecircncia de elementostextuais fez com que os estudiosos e criacuteticos entatildeo voltassem seusolhos para as camadas semacircnticas do texto tentando definir ocaraacuteter ontoloacutegico do mundo ficcional Assim segundo Schaeffer8

do ponto de vista semacircntico a narrativa factual eacute referencialenquanto o mundo ontoloacutegico da ficccedilatildeo natildeo Tal definiccedilatildeosemacircntica no entanto esbarra numa seacuterie de limitaccedilotildeesjustamente porque implica que a ficccedilatildeo trata de ldquocoisas que natildeoexistemrdquo9 em oposiccedilatildeo aos textos factuais como biografiareportagens historiografia textos cientiacuteficos Poreacutem basta umaraacutepida olhada em qualquer romance para nos depararmos comambientaccedilotildees personagens momentos histoacutericos precisos

8

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

1 POR QUE A CIROPEacuteDIAorigem do romance na Greacutecia antiga eacute assuntorepleto de dificuldades tanto pela carecircncia detextos representativos do gecircnero quanto pelosparcos comentaacuterios a seu respeito nos tratados deliteratura antiga No seu alvorecer entre os seacutec II eI aC1 o romance tinha atraacutes de si toda umatradiccedilatildeo literaacuteria estabelecida que desde Homero eHesiacuteodo fortaleceu-se cada vez mais como umaimportante manifestaccedilatildeo caracterizadora da culturahelecircnica Poesia eacutepica liacuterica teatro filosofiaoratoacuteria e historiografia eram formas discursivasinquestionaacuteveis como parte da alta cultura cujo

conhecimento fazia parte da formaccedilatildeo dos homens doutos Nesseuniverso cultural o romance era apenas mais um gecircnero literaacuteriotratado como forma artiacutestica inferior agravequelas e por isso agrave medidaque dava seus primeiros passos com essa tradiccedilatildeo o romance serivalizava para ganhar seu espaccedilo buscando a sua afirmaccedilatildeo

Entende-se todavia que nenhum gecircnero literaacuterio surge donada e sim em decorrecircncia de processos dialoacutegicos dinacircmicos emque as manifestaccedilotildees discursivas populares e os gecircneros literaacuteriosjaacute existentes passam a conviver se mesclar se destruir e serejuvenescer Nesse sentido a ficccedilatildeo em prosa ao surgir comotexto artiacutestico dialoga necessariamente com a alta cultura grega eseus gecircneros jaacute estabelecidos e natildeo podemos sobretudo esquecerque uma das caracteriacutesticas essenciais da prosa ficcional dequalquer eacutepoca eacute a sua capacidade de se apropriar e absorver osdiscursos dos outros gecircneros que circundam na vida social seja nafala cotidiana seja na praacutetica literaacuteria pois como define Bakhtin2

ldquoo estilo do romance eacute uma combinaccedilatildeo de estilosrdquo Portantoparece-nos essencial para compreender o nascimento da ficccedilatildeo emprosa na Antiguidade entender a apropriaccedilatildeo e a assimilaccedilatildeo dosoutros discursos efetuadas pelo gecircnero do romance que ao fazecirc-los sua mateacuteria os romanciza tendo em vista a criaccedilatildeo de umuniverso ficcional proacuteprio e reconheciacutevel aos seus leitores pois na

5

A

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

realidade satildeo esses de fato os determinantes da ficcionalidade ounatildeo do universo criado3

Pensar a questatildeo geneacuterica do ponto de vista da recepccedilatildeoespecialmente ao se tratar de obras hiacutebridas ou fronteiriccedilas queestatildeo nas primeiras manifestaccedilotildees de qualquer gecircnero implica oentendimento do texto em seu contato vivo com os leitores nojogo que se instaura entre autor-obra-leitor pois eacute nesse domiacutenioque os agentes-leitores participam na construccedilatildeo de sentidotextual O leitor pela sua experiecircncia cultural dentro de seuhorizonte de expectativas reconhece se determinada narrativapertence ou natildeo a um gecircnero na medida em que a filiaccedilatildeo geneacutericade um texto implica a presenccedila de conjuntos de regras e deestruturas que o identifiquem e orientem a leitura Se natildeo satildeoreconheciacuteveis esses dispositivos linguiacutesticos corre-se o risco de oleitor tomar por exemplo como factual aquilo que eacute ficcional ouvice-versa Modernamente a presenccedila de elementos paratextuaiscomo capa orelha do livro folha de rosto a proacutepria tipografia dotexto etc ajudam o leitor a reconhecer facilmente a que gecircnerodeterminado livro pertence ndash para natildeo falarmos das proacutepriasestantes das livrarias que separam os livros de acordo com umadeterminada categorizaccedilatildeo natildeo levando em conta muitas vezeslivros que trafegam nos limites dos gecircneros Na literatura gregaem que tais elementos paratextuais natildeo existiam ou pelo menosnatildeo nos satildeo conhecidos dependemos exclusivamente do jogoliteraacuterio textual pois eacute nele que estatildeo os coacutedigos estruturais que oautor explicita sub ou superficialmente nas camadas de seu textoas delimitaccedilotildees do gecircnero

Das formas literaacuterias gregas nenhuma manteve maiorcontato com o romance do que a historiografia ConformeBrandatildeo justifica-se essa aproximaccedilatildeo pelo fato de que

[] a postura do narrador do romance natildeo deixa de ter seuparalelo mais pronunciado na postura do historiador aindaquando experimente soluccedilotildees novas contaminando seuestatuto com caracteriacutesticas de outros narradores Ainda maisos elementos de autoridade presentes nos proecircmios e nasassinaturas satildeo claramente imitados dos historiadores bem

6

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

como o uso de entrechos histoacutericos aponta para um diaacutelogoespecial com a historiografia4(grifo nosso)

A apropriaccedilatildeo do discurso historiograacutefico eacute utilizada a fimde garantir a impressatildeo de verdade no discurso ficcional Eacuteprovaacutevel que nos primeiros movimentos do gecircnero novohouvesse uma certa necessidade dos romancistas em darcredibilidade agraves suas narrativas ficcionais e a historiografia por seruma forma mais autorizada de narrativa mista em prosa davaelementos que poderiam criar tal ilusatildeo pela mescla de ficccedilatildeo ehistoacuteria Tal movimento entre os gecircneros natildeo se restringiu aoromance antigo jaacute que processo semelhante ocorreu quando nosseacutec XVII e XVIII houve a ascensatildeo do romance na Inglaterra e naFranccedila Segundo Vasconcelos

[] os leitores do final do seacutec XVII e iniacutecio do seacutec XVIII natildeopoderiam assumir de modo rotineiro que as obras que liameram fictiacutecias Essa incerteza quanto ao caraacuteter factual ouficcional da narrativa fez entatildeo com que uma das maiorespreocupaccedilotildees dos primeiros romancistas fosse desenvolveruma teoria do romance que lidasse de forma adequada comessa questatildeo epistemoloacutegica Nos seus estaacutegios iniciais oromance se apresentava como forma ambiacutegua ficccedilatildeo factualque negava sua ficcionalidade e produzia em seus leitores umsentimento de ambivalecircncia quanto a seu possiacutevel conteuacutedode verdade [] Cada um a seu modo esses romancistasdescobriram uma maneira de explorar os limites noveliacutesticosdessa relaccedilatildeo entre fato e ficccedilatildeo e encontraram formas deescrever sobre o mundo que satildeo simultaneamenteimaginativas e referenciais5

Eacute bem conhecida dos leitores de romance a estrateacutegianarrativa do narrador em tentar atribuir a veracidade ao narradodeslocando assim o terreno ficcional para o factual negando emconsequecircncia a proacutepria ficcionalidade do texto Se essa relaccedilatildeoentre ficcionalidade e factualidade eacute um elemento importante dagecircnese e afirmaccedilatildeo do romance na Antiguidade grega isso eacute aindamais sensiacutevel uma vez que a historiografia natildeo era uma ciecircnciacomo entendemos modernamente mas um dos gecircneros

7

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

narrativos e as aproximaccedilotildees e distanciamentos natildeo se datildeo apenasno uso de universos histoacutericos para dar verossimilhanccedila aoficcional mas tambeacutem na apropriaccedilatildeo de dispositivos linguiacutesticos eestruturais da historiografia que satildeo romancizados pela ficccedilatildeo

A partir dessa primeira reflexatildeo o objetivo deste artigo eacuteanalisar o processo de assimilaccedilatildeo do discurso historiograacutefico noproecircmio da Ciropeacutedia de Xenofonte no que tange agrave ficcionalizaccedilatildeoda autoridade do historiador como estrateacutegia para mascarar aficccedilatildeo Por que a Ciropeacutedia Porque ela eacute a primeira manifestaccedilatildeoficcional em prosa da Antiguidade claacutessica6 e por isso nelapodemos contemplar momentos de incertezas e indefiniccedilotildees quesoacute as obras hiacutebridas nos permitem visualizar porque pelo seucaraacuteter hiacutebrido ela tem desafiado os criacuteticos quanto a suaclassificaccedilatildeo geneacuterica7 porque sobretudo essa obra teve forteinfluecircncia nos primeiros romancistas gregos do seacutec II aCindicando que esses seus leitores tardios encontraram nelaelementos que correspondiam agravequilo que praticavam enquantoromancistas

2 FICCcedilAtildeO VERDADE E AUTORIDADE

Definir o que seja a ficccedilatildeo haacute muito se apresenta comotarefa espinhosa especialmente porque quando analisado doponto de vista estrutural natildeo haacute de fato nada que separe umtexto ficcional de um texto factual Essa ausecircncia de elementostextuais fez com que os estudiosos e criacuteticos entatildeo voltassem seusolhos para as camadas semacircnticas do texto tentando definir ocaraacuteter ontoloacutegico do mundo ficcional Assim segundo Schaeffer8

do ponto de vista semacircntico a narrativa factual eacute referencialenquanto o mundo ontoloacutegico da ficccedilatildeo natildeo Tal definiccedilatildeosemacircntica no entanto esbarra numa seacuterie de limitaccedilotildeesjustamente porque implica que a ficccedilatildeo trata de ldquocoisas que natildeoexistemrdquo9 em oposiccedilatildeo aos textos factuais como biografiareportagens historiografia textos cientiacuteficos Poreacutem basta umaraacutepida olhada em qualquer romance para nos depararmos comambientaccedilotildees personagens momentos histoacutericos precisos

8

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

realidade satildeo esses de fato os determinantes da ficcionalidade ounatildeo do universo criado3

Pensar a questatildeo geneacuterica do ponto de vista da recepccedilatildeoespecialmente ao se tratar de obras hiacutebridas ou fronteiriccedilas queestatildeo nas primeiras manifestaccedilotildees de qualquer gecircnero implica oentendimento do texto em seu contato vivo com os leitores nojogo que se instaura entre autor-obra-leitor pois eacute nesse domiacutenioque os agentes-leitores participam na construccedilatildeo de sentidotextual O leitor pela sua experiecircncia cultural dentro de seuhorizonte de expectativas reconhece se determinada narrativapertence ou natildeo a um gecircnero na medida em que a filiaccedilatildeo geneacutericade um texto implica a presenccedila de conjuntos de regras e deestruturas que o identifiquem e orientem a leitura Se natildeo satildeoreconheciacuteveis esses dispositivos linguiacutesticos corre-se o risco de oleitor tomar por exemplo como factual aquilo que eacute ficcional ouvice-versa Modernamente a presenccedila de elementos paratextuaiscomo capa orelha do livro folha de rosto a proacutepria tipografia dotexto etc ajudam o leitor a reconhecer facilmente a que gecircnerodeterminado livro pertence ndash para natildeo falarmos das proacutepriasestantes das livrarias que separam os livros de acordo com umadeterminada categorizaccedilatildeo natildeo levando em conta muitas vezeslivros que trafegam nos limites dos gecircneros Na literatura gregaem que tais elementos paratextuais natildeo existiam ou pelo menosnatildeo nos satildeo conhecidos dependemos exclusivamente do jogoliteraacuterio textual pois eacute nele que estatildeo os coacutedigos estruturais que oautor explicita sub ou superficialmente nas camadas de seu textoas delimitaccedilotildees do gecircnero

Das formas literaacuterias gregas nenhuma manteve maiorcontato com o romance do que a historiografia ConformeBrandatildeo justifica-se essa aproximaccedilatildeo pelo fato de que

[] a postura do narrador do romance natildeo deixa de ter seuparalelo mais pronunciado na postura do historiador aindaquando experimente soluccedilotildees novas contaminando seuestatuto com caracteriacutesticas de outros narradores Ainda maisos elementos de autoridade presentes nos proecircmios e nasassinaturas satildeo claramente imitados dos historiadores bem

6

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

como o uso de entrechos histoacutericos aponta para um diaacutelogoespecial com a historiografia4(grifo nosso)

A apropriaccedilatildeo do discurso historiograacutefico eacute utilizada a fimde garantir a impressatildeo de verdade no discurso ficcional Eacuteprovaacutevel que nos primeiros movimentos do gecircnero novohouvesse uma certa necessidade dos romancistas em darcredibilidade agraves suas narrativas ficcionais e a historiografia por seruma forma mais autorizada de narrativa mista em prosa davaelementos que poderiam criar tal ilusatildeo pela mescla de ficccedilatildeo ehistoacuteria Tal movimento entre os gecircneros natildeo se restringiu aoromance antigo jaacute que processo semelhante ocorreu quando nosseacutec XVII e XVIII houve a ascensatildeo do romance na Inglaterra e naFranccedila Segundo Vasconcelos

[] os leitores do final do seacutec XVII e iniacutecio do seacutec XVIII natildeopoderiam assumir de modo rotineiro que as obras que liameram fictiacutecias Essa incerteza quanto ao caraacuteter factual ouficcional da narrativa fez entatildeo com que uma das maiorespreocupaccedilotildees dos primeiros romancistas fosse desenvolveruma teoria do romance que lidasse de forma adequada comessa questatildeo epistemoloacutegica Nos seus estaacutegios iniciais oromance se apresentava como forma ambiacutegua ficccedilatildeo factualque negava sua ficcionalidade e produzia em seus leitores umsentimento de ambivalecircncia quanto a seu possiacutevel conteuacutedode verdade [] Cada um a seu modo esses romancistasdescobriram uma maneira de explorar os limites noveliacutesticosdessa relaccedilatildeo entre fato e ficccedilatildeo e encontraram formas deescrever sobre o mundo que satildeo simultaneamenteimaginativas e referenciais5

Eacute bem conhecida dos leitores de romance a estrateacutegianarrativa do narrador em tentar atribuir a veracidade ao narradodeslocando assim o terreno ficcional para o factual negando emconsequecircncia a proacutepria ficcionalidade do texto Se essa relaccedilatildeoentre ficcionalidade e factualidade eacute um elemento importante dagecircnese e afirmaccedilatildeo do romance na Antiguidade grega isso eacute aindamais sensiacutevel uma vez que a historiografia natildeo era uma ciecircnciacomo entendemos modernamente mas um dos gecircneros

7

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

narrativos e as aproximaccedilotildees e distanciamentos natildeo se datildeo apenasno uso de universos histoacutericos para dar verossimilhanccedila aoficcional mas tambeacutem na apropriaccedilatildeo de dispositivos linguiacutesticos eestruturais da historiografia que satildeo romancizados pela ficccedilatildeo

A partir dessa primeira reflexatildeo o objetivo deste artigo eacuteanalisar o processo de assimilaccedilatildeo do discurso historiograacutefico noproecircmio da Ciropeacutedia de Xenofonte no que tange agrave ficcionalizaccedilatildeoda autoridade do historiador como estrateacutegia para mascarar aficccedilatildeo Por que a Ciropeacutedia Porque ela eacute a primeira manifestaccedilatildeoficcional em prosa da Antiguidade claacutessica6 e por isso nelapodemos contemplar momentos de incertezas e indefiniccedilotildees quesoacute as obras hiacutebridas nos permitem visualizar porque pelo seucaraacuteter hiacutebrido ela tem desafiado os criacuteticos quanto a suaclassificaccedilatildeo geneacuterica7 porque sobretudo essa obra teve forteinfluecircncia nos primeiros romancistas gregos do seacutec II aCindicando que esses seus leitores tardios encontraram nelaelementos que correspondiam agravequilo que praticavam enquantoromancistas

2 FICCcedilAtildeO VERDADE E AUTORIDADE

Definir o que seja a ficccedilatildeo haacute muito se apresenta comotarefa espinhosa especialmente porque quando analisado doponto de vista estrutural natildeo haacute de fato nada que separe umtexto ficcional de um texto factual Essa ausecircncia de elementostextuais fez com que os estudiosos e criacuteticos entatildeo voltassem seusolhos para as camadas semacircnticas do texto tentando definir ocaraacuteter ontoloacutegico do mundo ficcional Assim segundo Schaeffer8

do ponto de vista semacircntico a narrativa factual eacute referencialenquanto o mundo ontoloacutegico da ficccedilatildeo natildeo Tal definiccedilatildeosemacircntica no entanto esbarra numa seacuterie de limitaccedilotildeesjustamente porque implica que a ficccedilatildeo trata de ldquocoisas que natildeoexistemrdquo9 em oposiccedilatildeo aos textos factuais como biografiareportagens historiografia textos cientiacuteficos Poreacutem basta umaraacutepida olhada em qualquer romance para nos depararmos comambientaccedilotildees personagens momentos histoacutericos precisos

8

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

como o uso de entrechos histoacutericos aponta para um diaacutelogoespecial com a historiografia4(grifo nosso)

A apropriaccedilatildeo do discurso historiograacutefico eacute utilizada a fimde garantir a impressatildeo de verdade no discurso ficcional Eacuteprovaacutevel que nos primeiros movimentos do gecircnero novohouvesse uma certa necessidade dos romancistas em darcredibilidade agraves suas narrativas ficcionais e a historiografia por seruma forma mais autorizada de narrativa mista em prosa davaelementos que poderiam criar tal ilusatildeo pela mescla de ficccedilatildeo ehistoacuteria Tal movimento entre os gecircneros natildeo se restringiu aoromance antigo jaacute que processo semelhante ocorreu quando nosseacutec XVII e XVIII houve a ascensatildeo do romance na Inglaterra e naFranccedila Segundo Vasconcelos

[] os leitores do final do seacutec XVII e iniacutecio do seacutec XVIII natildeopoderiam assumir de modo rotineiro que as obras que liameram fictiacutecias Essa incerteza quanto ao caraacuteter factual ouficcional da narrativa fez entatildeo com que uma das maiorespreocupaccedilotildees dos primeiros romancistas fosse desenvolveruma teoria do romance que lidasse de forma adequada comessa questatildeo epistemoloacutegica Nos seus estaacutegios iniciais oromance se apresentava como forma ambiacutegua ficccedilatildeo factualque negava sua ficcionalidade e produzia em seus leitores umsentimento de ambivalecircncia quanto a seu possiacutevel conteuacutedode verdade [] Cada um a seu modo esses romancistasdescobriram uma maneira de explorar os limites noveliacutesticosdessa relaccedilatildeo entre fato e ficccedilatildeo e encontraram formas deescrever sobre o mundo que satildeo simultaneamenteimaginativas e referenciais5

Eacute bem conhecida dos leitores de romance a estrateacutegianarrativa do narrador em tentar atribuir a veracidade ao narradodeslocando assim o terreno ficcional para o factual negando emconsequecircncia a proacutepria ficcionalidade do texto Se essa relaccedilatildeoentre ficcionalidade e factualidade eacute um elemento importante dagecircnese e afirmaccedilatildeo do romance na Antiguidade grega isso eacute aindamais sensiacutevel uma vez que a historiografia natildeo era uma ciecircnciacomo entendemos modernamente mas um dos gecircneros

7

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

narrativos e as aproximaccedilotildees e distanciamentos natildeo se datildeo apenasno uso de universos histoacutericos para dar verossimilhanccedila aoficcional mas tambeacutem na apropriaccedilatildeo de dispositivos linguiacutesticos eestruturais da historiografia que satildeo romancizados pela ficccedilatildeo

A partir dessa primeira reflexatildeo o objetivo deste artigo eacuteanalisar o processo de assimilaccedilatildeo do discurso historiograacutefico noproecircmio da Ciropeacutedia de Xenofonte no que tange agrave ficcionalizaccedilatildeoda autoridade do historiador como estrateacutegia para mascarar aficccedilatildeo Por que a Ciropeacutedia Porque ela eacute a primeira manifestaccedilatildeoficcional em prosa da Antiguidade claacutessica6 e por isso nelapodemos contemplar momentos de incertezas e indefiniccedilotildees quesoacute as obras hiacutebridas nos permitem visualizar porque pelo seucaraacuteter hiacutebrido ela tem desafiado os criacuteticos quanto a suaclassificaccedilatildeo geneacuterica7 porque sobretudo essa obra teve forteinfluecircncia nos primeiros romancistas gregos do seacutec II aCindicando que esses seus leitores tardios encontraram nelaelementos que correspondiam agravequilo que praticavam enquantoromancistas

2 FICCcedilAtildeO VERDADE E AUTORIDADE

Definir o que seja a ficccedilatildeo haacute muito se apresenta comotarefa espinhosa especialmente porque quando analisado doponto de vista estrutural natildeo haacute de fato nada que separe umtexto ficcional de um texto factual Essa ausecircncia de elementostextuais fez com que os estudiosos e criacuteticos entatildeo voltassem seusolhos para as camadas semacircnticas do texto tentando definir ocaraacuteter ontoloacutegico do mundo ficcional Assim segundo Schaeffer8

do ponto de vista semacircntico a narrativa factual eacute referencialenquanto o mundo ontoloacutegico da ficccedilatildeo natildeo Tal definiccedilatildeosemacircntica no entanto esbarra numa seacuterie de limitaccedilotildeesjustamente porque implica que a ficccedilatildeo trata de ldquocoisas que natildeoexistemrdquo9 em oposiccedilatildeo aos textos factuais como biografiareportagens historiografia textos cientiacuteficos Poreacutem basta umaraacutepida olhada em qualquer romance para nos depararmos comambientaccedilotildees personagens momentos histoacutericos precisos

8

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

narrativos e as aproximaccedilotildees e distanciamentos natildeo se datildeo apenasno uso de universos histoacutericos para dar verossimilhanccedila aoficcional mas tambeacutem na apropriaccedilatildeo de dispositivos linguiacutesticos eestruturais da historiografia que satildeo romancizados pela ficccedilatildeo

A partir dessa primeira reflexatildeo o objetivo deste artigo eacuteanalisar o processo de assimilaccedilatildeo do discurso historiograacutefico noproecircmio da Ciropeacutedia de Xenofonte no que tange agrave ficcionalizaccedilatildeoda autoridade do historiador como estrateacutegia para mascarar aficccedilatildeo Por que a Ciropeacutedia Porque ela eacute a primeira manifestaccedilatildeoficcional em prosa da Antiguidade claacutessica6 e por isso nelapodemos contemplar momentos de incertezas e indefiniccedilotildees quesoacute as obras hiacutebridas nos permitem visualizar porque pelo seucaraacuteter hiacutebrido ela tem desafiado os criacuteticos quanto a suaclassificaccedilatildeo geneacuterica7 porque sobretudo essa obra teve forteinfluecircncia nos primeiros romancistas gregos do seacutec II aCindicando que esses seus leitores tardios encontraram nelaelementos que correspondiam agravequilo que praticavam enquantoromancistas

2 FICCcedilAtildeO VERDADE E AUTORIDADE

Definir o que seja a ficccedilatildeo haacute muito se apresenta comotarefa espinhosa especialmente porque quando analisado doponto de vista estrutural natildeo haacute de fato nada que separe umtexto ficcional de um texto factual Essa ausecircncia de elementostextuais fez com que os estudiosos e criacuteticos entatildeo voltassem seusolhos para as camadas semacircnticas do texto tentando definir ocaraacuteter ontoloacutegico do mundo ficcional Assim segundo Schaeffer8

do ponto de vista semacircntico a narrativa factual eacute referencialenquanto o mundo ontoloacutegico da ficccedilatildeo natildeo Tal definiccedilatildeosemacircntica no entanto esbarra numa seacuterie de limitaccedilotildeesjustamente porque implica que a ficccedilatildeo trata de ldquocoisas que natildeoexistemrdquo9 em oposiccedilatildeo aos textos factuais como biografiareportagens historiografia textos cientiacuteficos Poreacutem basta umaraacutepida olhada em qualquer romance para nos depararmos comambientaccedilotildees personagens momentos histoacutericos precisos

8

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

referecircncias agraves coisas do mundo etc em que personagens reais ouinventados atuam para perceber que mesmo nesse mundo agrave parteelementos factuais estatildeo presentes e nele se mesclam

John Searle em seu artigo ldquoO estatuto loacutegico do discursoficcionalrdquo10 apresenta uma reflexatildeo que nos parece bastanteprodutiva e acertada Segundo o linguista norte-americano os atosde fala ficcionais satildeo idecircnticos agravequeles da comunicaccedilatildeo comum soacuteque natildeo obedecem agraves mesmas necessidades e funccedilotildees dalinguagem utilizadas no dia a dia porque no texto ficcional onarrador e os personagens fingem realizar os atos de fala Eacute entatildeo aapropriaccedilatildeo do gecircnero ficcional dos atos de fala que modifica essesatos natildeo os atos que modificam o gecircnero Tomando entatildeo essaperspectiva nota-se que a despeito do mundo ao qual se refereexiste a percepccedilatildeo do leitor quanto ao caraacuteter fingido do texto poiseacute ele que reconhece esse fingir dos atos de fala porque justamentereconhece a ficcionalidade do texto

Desse modo para se compreender o significado do queseja a ficccedilatildeo devem-se antes de tudo compreender as convenccedilotildeesde produccedilatildeo e recepccedilatildeo das obras em seu tempo pois eacute nos sinaisparatextuais e textuais que a ficccedilatildeo se desnuda ao leitor e este apartir dos coacutedigos e paracircmetros reconhecidos pela experiecircncialiteraacuteria aceita ou natildeo aquele texto como ficcional ou factual

Quanto agrave ficccedilatildeo grega antiga o problema se agrava aindamais agrave medida que a tradiccedilatildeo da prosa proveniente dos seacutec V e IV

aC atenienses era utilizada majoritariamente para textos factuaiscomo a filosofia a historiografia e os discursos retoacutericosenquanto agrave poesia relegava-se a ficccedilatildeo11 Nesse caso a proacutepriaaproximaccedilatildeo da prosa ao ficcional por si soacute jaacute eacute uma novidaderenovadora que modifica uma estrutura bem estabelecidaculturalmente A nossa carecircncia de textos e a ausecircncia decomentaacuterios dos estudiosos antigos a respeito do romancedificulta ainda mais compreender como se dava a percepccedilatildeo dessanova forma literaacuteria Poreacutem se satildeo poucos os comentaacuterios arespeito do romance nem por isso deixam de ser relevantesespecialmente porque neles se revela uma preocupaccedilatildeo constanteno que tange agrave interaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e verdade entre narrativa

9

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

inventada e narrativa historiograacutefica uma vez que ambas satildeooperaccedilotildees mentais diegeacuteticas

Macroacutebio por exemplo no cap 2 do livro 1 de seucomentaacuterio para a obra de Ciacutecero Somnium Scipionis diz que asnarrativas de Petrocircnio e Apuleio como as comeacutedias de Menandrosatildeo ldquoargumentos recheados de falsos casos de amantesrdquo12

(ldquoargumenta fictios casibus amatorum refertardquo) cuja uacutenica utilidade eacuteproporcionar prazeres aos ouvidos (ldquosolas aurium delicias profiteturrdquo)Em oposiccedilatildeo a esse tipo de ficccedilatildeo haacute narrativas que ldquoincitam ointelecto do leitor a alguma espeacutecie de virtuderdquo (ldquouirtutum speciemintellectum legentis hortanturrdquo) entre as quais ele inclui as faacutebulas deEsopo onde o argumento eacute expresso pela ficccedilatildeo e ldquoas obras quetecircm uma base na verdaderdquo (ldquoargumentum quidem fundatur uerisoliditaterdquo) como os poemas de Hesiacuteodo Orfeu e os pensamentosde Pitaacutegoras Influenciado pelos preceitos platocircnicos Macroacutebiosugere que a ficccedilatildeo do primeiro tipo representado pelas obras dePetrocircnio e Apuleio deve ser excluiacutedo enquanto do segundogrupo devem ser aceitas apenas as obras que apresentem valoreseacuteticos e morais que aperfeiccediloem o ser humano que as lecirc e essas satildeoficccedilotildees que a filosofia aceita

Nota-se entatildeo que a formulaccedilatildeo de Macroacutebio parte dadistinccedilatildeo entre a ficccedilatildeo pela ficccedilatildeo ou seja aquela cuja finalidade eacuteo prazer e o divertimento e a ficccedilatildeo ldquouacutetilrdquo cuja finalidade eacutetransmitir algum tipo de sabedoria no caso filosoacutefica SegundoHolzberg13 embora se focando na relaccedilatildeo entre ficccedilatildeo e filosofiaos comentaacuterios de Macroacutebio se alinham agrave teoria literaacuteria do final daAntiguidade que distingue trecircs tipos de narrativas (διήγησις)distinccedilatildeo esta que se ampara na relaccedilatildeo entre a mentira e ficccedilatildeo e averdade do argumento

a) narrativas que se desviam da verdade (μῦθος μυθικόνfaacutebula) ou que satildeo inteiramente falsas (ψεῦδος)

b) narrativas que trabalham com a verdade (ἀληθής ἱστορίαἱστορικόν)

10

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

c) narrativas que satildeo inventadas mas que parecem serverdadeiras (ὥς ἀληθῆς πλασματικόν δραματικόν argumentum)

No primeiro caso temos uma ficccedilatildeo que se assumementirosa (como a narrativa de Luciano Das narrativas verdadeiras)ou seja natildeo tenta se passar como algo que realmente aconteceuno segundo as narrativas historiograacuteficas tratam de assuntos epersonagens reais enquanto o terceiro grupo se compotildee dosromances antigos em que as narrativas inventadas datildeo a impressatildeode ser verdadeiras A diferenccedila portanto entre o primeiro e oterceiro grupo se daacute justamente que nesse a narrativa finge serverdadeira narrando mentiras que se assemelham agrave verdade ou sejapode-se dizer que haacute uma aparecircncia ldquoverossiacutemilrdquo ou realismo nanarrativa enquanto a outra eacute abertamente fantasiosa e natildeo tem apretensatildeo de verossimilhanccedila Jaacute as narrativas enquadradas nosegundo grupo as historiograacuteficas natildeo apenas trabalham com averdade mas se assumem verdadeiras o que torna portantopassiacuteveis de criacuteticas se natildeo seguirem tal pacto factual

Chamamos a atenccedilatildeo para esses comentaacuterios pois deveficar claro que a ilusatildeo artiacutestica e a ilusatildeo do real satildeo convenccedilotildeessociais e literaacuterias cuja praacutetica e organizaccedilatildeo definem aquilo que eacuteaceito como literatura ficcional e literatura factual14 Uma narrativaque sendo falsa se assemelha ao real o eacute porque se estabelecedentro de certas condiccedilotildees sociais e esteacuteticas que buscam criar talilusatildeo de realidade Ao analisar a passagem em que Odisseuchegando em Iacutetaca conta uma histoacuteria fantasiosa ao porqueiroEumeu para que possa manter a sua identidade em segredoChristian Werner15 percebe que a narrativa inventada por Odisseuse ampara na realidade utilizando elementos reconheciacuteveis do seuouvinte como locais histoacutericos conhecidos como Egito e Feniacuteciaem contraposiccedilatildeo agraves narrativas que o proacuteprio Odisseu conta aosFeaacutecios em que o maravilhoso assume o papel principal (CiclopeSereias etc ) Odisseu ao que parece reconhece ainverossimilhanccedila de suas proacuteprias aventuras e ao inventar umahistoacuteria o faz com elementos do real para que a sua ficccedilatildeo sejaverossiacutemil e criacutevel

11

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

Por conta dessa relaccedilatildeo entre verdade e ficccedilatildeo nenhumgecircnero teve e manteve maior relaccedilatildeo de aproximaccedilatildeo edistanciamento com a prosa de ficccedilatildeo do que a historiografiaAfinal em que tipo de narrativa ficcional teriacuteamos maiorimpressatildeo de verdade do que em uma cujo tema eacute histoacuterico e fazuso de personagens histoacutericos Mais do que isso qual a melhorforma de fingir que eacute verdade uma narrativa ficcional do que se utilizarde estrateacutegias discursivas justamente daqueles que em suasnarrativas se assumem como narradores de fatos reais Epopeiahistoriografia e romance satildeo trecircs gecircneros de narrativa mistas ndash naterminologia platocircnica ndash em que tanto atua o narrador que conta ahistoacuteria quanto os personagens que satildeo mimetizados por essenarrador Diferem da eacutepica pois essa trafega pelos mitos e lendastradicionais enquanto a historiografia e o romance cada um aoseu modo narram experiecircncias do homem em um mundohistoacuterico Por fim diferem entre si romance e historiografia poisenquanto a historiografia projeta e assume construir uma narrativaverdadeira ndash embora muitas vezes faccedila uso de expedientesromanescos ndash o romance cria um universo fictiacutecio ainda quetenha uma aparecircncia de verdade

3 PROacuteLOGOS E PROEcircMIOS DA HISTOacuteRIA AO ROMANCE

Antes de tudo o objetivo do historiador eacute fazer o seu leitoracreditar na verdade do que estaacute sendo narrado16 Diferentementedos poetas eacutepicos que ancoram seus poemas na autoridadegranjeada pelas musas jaacute que satildeo as deusas que trazem ao poeta asnarrativas de antanho ao historiador cabe todo o processo depesquisa investigaccedilatildeo e escrita dos eventos ocorridos no passadoSe a tradiccedilatildeo eacute aceita como verdade justamente por ser tradiccedilatildeo17

o historiador tem que contar com a sua proacutepria capacidade deescritor e analista para conseguir a crenccedila de seus leitores e soacutedentro da camada textual eacute que ele pode requisitar a verdade donarrado Assim segundo Marincola18 para acreditar em um relatohistoacuterico era necessaacuterio primeiro que se acreditasse no proacutepriohistoriador que ele fosse digno de confianccedila Esse viacutenculo estaacute

12

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

presente na etimologia da palavra ἱστορία19 derivada do verboἱστορεῖν cujo sentido primeiro se vincula agrave praacutetica de investigaccedilatildeoindagaccedilatildeo do procurar saber Traz em seu radical o eacutetimo ἵστωρaacuterbitro ou juiz mas tambeacutem testemunha cujo radical remeteetimologicamente aos verbos ἰδεῖν ver e οἶδα saber aquele quesabe porque viu Assim implica-se que o ato de ldquohistoriarrdquo eacuteparticular individual Na medida em que historiar para os gregosdo seacutec V se restringia a ser testemunha ocular dos eventos ou seridocircneo para selecionar das fontes inquiridas as narrativas maisverossiacutemeis o historiador se esforccedila em criar dispositivos quegarantam a ldquoautoridaderdquo de sua investigaccedilatildeo e por conseguinte daverdade do narrado Nesse sentido os proecircmios de suas obras satildeofundamentais pois neles os historiadores estabelecem eapresentam os paracircmetros de suas investigaccedilotildees e finalidades daobra Para os objetivos deste artigo interessam-nos principalmenteos dispositivos de construccedilatildeo de autoridade empregados porHeroacutedoto e Tuciacutedides em seus proecircmios a fim de compararmoscom o proecircmio da Ciropeacutedia

Assim Heroacutedoto inicia as suas Histoacuterias da seguintemaneira

Esta eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo de Heroacutedoto deHalicarnasso para que os feitos dos homens natildeo se apaguemcom o tempo nem fiquem sem fama as grandes eextraordinaacuterias obras realizadas seja por gregos seja porbaacuterbaros e por que razatildeo guerrearam uns contra os outros20

O proecircmio de Heroacutedoto uma abertura concisa bemdistante das complexas reflexotildees de Tuciacutedides inicia-se com aatribuiccedilatildeo de que sua obra eacute a exposiccedilatildeo da investigaccedilatildeo natildeo dequalquer outra pessoa mas da sua proacutepria investigaccedilatildeo e isso eacuteainda mais forte ao pensarmos que o primeiro sintagma de suamonumental obra eacute seu proacuteprio nome seguido do adjetivo paacutetrioNo caso o nome aparece no genitivo pois ele eacute o ponto departida a origem da investigaccedilatildeo da qual sairaacute o restante danarrativa diferente do narrador homeacuterico que representado nodativo se assume como instrumento das musas na transmissatildeo do

13

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

canto poeacutetico Nesse sentido Heroacutedoto utiliza da sua autoridadecomo ldquohistoriadorinvestigadorrdquo a fim de obter a credibilidadequanto ao estatuto do que seraacute narrado Ele eacute ponto de partida e eacutetambeacutem o ponto de chegada na medida em que a partir de seuscriteacuterios de verdade e verossimilhanccedila os fatos seratildeo preservadospelo tempo Ele natildeo eacute apenas o transmissor da histoacuteria mas seucriador

Tuciacutedides daacute um passo aleacutem e decisivo na formulaccedilatildeo dogecircnero historiograacutefico Seu proecircmio natildeo soacute eacute mais longo mastambeacutem mais criacutetico e descritivo do processo que empregou nacriaccedilatildeo de sua obra Conforme Grethlein21 em um gecircnero queestava nascendo Tuciacutedides sentiu a necessidade de revisar as obrasde seus antecessores e assim questionar os valores atribuiacutedos pelasociedade ao que era a praacutetica de um historiador-investigador dopassado Nesse caso diferentemente de Heroacutedoto que recolhe ostestemunhos do passado para impedir que eles sejam esquecidosTuciacutedides coloca a impossibilidade de se conhecer o passado maisantigo com ἀκρίβεια rigor e precisatildeo e por isso prefere dedicar-seao momento que ele mesmo presenciou pois a partir de seutestemunho pode julgar com maior equidade as suas fontes Comessa afirmaccedilatildeo entretanto estabelece natildeo apenas um meacutetodo detrabalho mas acima de tudo a autoridade para o narradoImplicitamente demonstra que a obra de Heroacutedoto natildeo possui aἀκρίβεια pela proacutepria impossibilidade que seu vasto tema impotildee

O proacuteprio Heroacutedoto daacute margem a essa criacutetica pois emdecorrecircncia dessa impossibilidade muitas vezes ele eacute levado a fazercomentaacuterios em primeira pessoa para justificar a sua escolhainclusive apresentando duas versotildees sobre o mesmo fato ouquando diz abertamente que natildeo acredita naquilo que estaacutenarrando mas o faz apenas por ser a tradiccedilatildeo transmitidaTuciacutedides depois de seu proecircmio natildeo faz mais nenhumcomentaacuterio em primeira pessoa no decorrer de sua obra a respeitodos processos de sua investigaccedilatildeo Pelo contraacuterio sua narrativacria a ilusatildeo de se eximir de um narrador jaacute que os eventosparecem concatenados com clareza e transparecircncia como se elestivessem ocorridos daquele uacutenico modo o modo com que ele

14

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

narra e nos apresenta A verossimilhanccedila e efeito de real se datildeonessa perspectiva justamente pela aparente ausecircncia de umnarrador estrateacutegia comum agrave efetuada pelo maior romancista doRealismo francecircs Gustave Flaubert

Do ponto de vista linguiacutestico tambeacutem repercute noproecircmio de Tuciacutedides que ele tal qual Heroacutedoto comeccedila o textocom seu nome assinalando-se autor do material que estaacute prestes aapresentar No entanto inova ao apresentar-se no nominativo e aodeixar claro que seu texto eacute uma narrativa escrita (ξυνεγράψε)composta para ser lida e sem a necessidade de agradar os ouvidosdos homens de sua eacutepoca pois eacute uma obra perene no tempo quenatildeo se restringe ao momento de sua enunciaccedilatildeo

Embora assinem suas obras tanto Heroacutedoto quantoTuciacutedides se registram em terceira pessoa Isso fortalece ainda maisa busca pela objetividade Esses dispositivos empregadospreferencialmente nos proecircmios mas que se transportam tambeacutempara o resto da narrativa satildeo dispositivos para garantir aautoridade e idoneidade do historiador e com isso a veracidade donarrado Natildeo surpreende nesse sentido que os primeirosromancistas tenham justamente imitado tais procedimentosrepetindo esses dispositivos ao mesmo tempo em que ancoravamsuas narrativas em um passado histoacuterico Conforme Brandatildeo22

Assim como na poesia arcaica versos introdutoacuterios tecircm umafunccedilatildeo de enquadramento esclarecendo a situaccedilatildeo do textodo narrador do poeta e do ouvinte (no contexto de oralidadeque cerca pelo menos hipoteticamente a performance doaedo) no romance e em outros gecircneros escritos sobretudoem prosa tiacutetulos e epiacutelogos [] bem como de modo maiselaborado os proecircmios tecircm funccedilatildeo de fundamentalimportacircncia para a recepccedilatildeo da obra

Nos dois exemplares mais antigos de romanceconservados haacute a apropriaccedilatildeo do esquema de assinatura doshistoriadores Caacuteriton de Afrodiacutesias inicia seu romance Queacutereas eCaliacuterroe com seu nome no primeiro sintagma e diz que narraraacute(διηγήσομαι) a paixatildeo amorosa (πάθος εροτικὸν) ocorrida emSiracusa no caso das Efesiacuteacas de Xenofonte de Eacutefeso a assinatura

15

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

aparece na uacuteltima frase do texto ldquoFim das histoacuterias de Antiacutea eHabroacutecomes de Xenofonterdquo

No romance de Caacuteriton haacute ainda o ancoramento da ficccedilatildeoem eventos histoacutericos Caliacuterroe eacute filha de Hermoacutegenes general deSiracusa que derrotou os atenienses quando esses fizeram aexpediccedilatildeo agrave Siciacutelia em 413 aC Tuciacutedides o menciona em suanarrativa ainda que natildeo faccedila dele o principal heroacutei contra ainvasatildeo ateniense Da mesma forma Queacutereas eacute apresentado comofilho de Aacuteriston que embora o narrador do romance natildeo decircmuitas especificaccedilotildees eacute o nome de um dos almirantes que teveimportante participaccedilatildeo nas batalhas sicilianas23 Haacute de fato vaacuteriosoutros elementos de apropriaccedilatildeo da histoacuteria pelo romancista quenas palavras de Reardon24 implicam numa apropriaccedilatildeo superficialda histoacuteria Entretanto interessa-nos que a ficccedilatildeo em Caacuteriton seinsinua nas brechas deixadas pelos eventos histoacutericos afinal elenatildeo eacute um historiador a escrever sobre um fato passado emSiracusa mas um romancista que faz uso dos eventos importantesde sua terra como forma de ancorar a narrativa principal e dar-lheuma aparecircncia de verdade e verossimilhanccedila O mesmoancoramento se vecirc em outras narrativas que conhecemos apenasfragmentariamente como os romances Nino Sesoncocircsis e Metiacuteoco eParteacutenope25 que segundo Stephens e Winkler26 satildeo textos daprimeira fase do gecircnero na Antiguidade quando as narrativasficcionais ainda se emolduram em mundos histoacutericos

Jaacute em relaccedilatildeo aos outros trecircs romances gregos preservadosde uma eacutepoca posterior aos acima citados algumas observaccedilotildeessatildeo importantes as Etioacutepicas de Heliodoro tambeacutem apresentam umepiacutelogo que se inicia com uma formulaccedilatildeo semelhante agrave deXenofonte de Eacutefeso ldquoAssim termina a histoacuteria etioacutepica deTeaacutegenes e Caricleia o homem que a compocircs (συνέταξεν) eacute ofeniacutecio de Eacutemesa da raccedila do Sol filho de Teodoacutesio Heliodorordquo27

Entretanto diferentemente do que ocorre nas outras narrativasHeliodoro assume-se o criador da sua histoacuteria por meio do verboσυνέταξεν sem tentar mascaraacute-la como factual pelo uso deelementos da assinatura historiograacutefica embora como os autoresanteriores a narrativa se passe em uma eacutepoca distante Parece que

16

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

nesse momento o dispositivo jaacute se tornou parte do gecircneroromanesco e natildeo eacute mais uma estrateacutegica de ancoramento dofictiacutecio no factual Isso parece comprovar-se na medida em que osdois uacuteltimos exemplares conservados do romance grego em ummomento que o gecircnero jaacute tem a sua localizaccedilatildeo definida dentro doespaccedilo literaacuterio Leucipe e Clitofonte de Aquiles Taacutecio e Daacutefnes e Cloeacutede Longo rompem completamente com essa filiaccedilatildeohistoriograacutefica Logo justamente nos exemplos mais antigos doromance a relaccedilatildeo com a historiografia se daacute tanto peloenquadramento da ficccedilatildeo dentro de um periacuteodo histoacutericorazoavelmente conhecido quanto pelo uso aberto dos dispositivosde autoridade do narrador historiograacutefico como se na tentativa delegitimar o fictiacutecio fosse ainda necessaacuterio mascaraacute-lo com ofactual

O processo eacute semelhante ao que ocorre na Ciropeacutedia deXenofonte de Atenas poreacutem em um periacuteodo em que natildeo haacute aindaa ficccedilatildeo em prosa A anaacutelise do proecircmio dessa obra permite-nosno entanto observar como o discurso de Xenofonte eacute complexona medida em que mescla elementos ora tentando mascarar aficccedilatildeo como narrativa historiograacutefica ora deixando vestiacutegios aosseus leitores do caraacuteter ficcional da vida de Ciro

4 O PROEcircMIO DA CIROPEacuteDIA Xenofonte de Atenas na Antiguidade era conhecido tanto

como historiador quanto como filoacutesofo pois em sua vasta obra depoliacutegrafo apresentou textos de variados gecircneros que tinham emcomum o uso de eventos histoacutericos com mais ou menos rigorcriacutetico de acordo com o gecircnero e uma constante preocupaccedilatildeomoral especialmente quanto agrave formaccedilatildeo de um liacuteder ideal para asociedade grega Representante de uma geraccedilatildeo que assistira agravesconstantes στάσις no mundo grego apoacutes o fim da Guerra doPeloponeso onde a confusatildeo poliacutetica se tornou o habitual foinatural que a preocupaccedilatildeo quanto agrave lideranccedila dos povos estivessena pauta dos intelectuais da eacutepoca Natildeo apenas Xenofonte mastambeacutem Platatildeo Isoacutecrates e Aristoacuteteles discutiram essa questatildeo

17

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poliacutetica buscando compreender os mecanismos do funcionamentodas comunidades para encontrar a melhor e mais justa constituiccedilatildeopoliacutetica e os meios de se alcanccedilaacute-la Poreacutem diferentemente dessesoutros autores Xenofonte faz da proacutepria histoacuteria mateacuteria para asua reflexatildeo cujos resultados natildeo se apresentam por teorizaccedilotildeesfilosoacuteficas e sim nas accedilotildees das personagens A temaacutetica histoacutericaportanto se oferece como ponto de partida e de chegada para arepresentaccedilatildeo de suas ideias quanto agraves questotildees de lideranccedila eestabilidade poliacutetica

Das trecircs longas narrativas de temaacutetica histoacuterica deXenofonte as Helecircnicas a Anaacutebase e a Ciropeacutedia essa eacute a uacutenica emque haacute a presenccedila de um proecircmio na apresentaccedilatildeo da narrativaIsso significa que justamente na obra cujo universo criado eacutehiacutebrido entre o ficcional e o factual o autor apresentaconsideraccedilotildees que justifiquem o narrado como se diante docaraacuteter encomiaacutestico e ficcional da narrativa o autor sentisse anecessidade de se explicar ao leitor Tal processo em algunspontos se assemelha ao que tambeacutem ocorrera nas Helecircnicas Nessaobra a que melhor se enquadra no gecircnero historiograacutefico anarrativa se inicia no ponto exato em que Tuciacutedides deixou suaGuerra do Peloponeso inacabada e com rariacutessimas exceccedilotildees anarrativa das Helecircnicas segue o padratildeo objetivo tucidideano comquase nenhuma intromissatildeo do narrador Quando ocorre algumaintromissatildeo eacute justamente para o narrador xenofonteano justificarsua postura de narrar um fato que segundo os criteacuterios dahistoriografia de Tuciacutedides natildeo seria um evento digno de menccedilatildeo(ἀξιόλογος) mas que ele Xenofonte julga digno de ser narradopelo valor moral que se pode apreender dele

A tiacutetulo de exemplo observemos a passagem do livro V

13-4 das Helecircnicas A passagem estaacute dentro do contexto dasoperaccedilotildees mariacutetimas em Egina e na Aacutesia Menor em que oestratego espartano Eteocircnico governante em Egina se aproveitouda luta dos atenienses e espartanos no mar para enviar piratas agraveAacutetica para saqueaacute-la Sitiados os atenienses enviaram hoplitas agraveEgina e sitiaram a cidade tanto por terra quanto por mar O irmatildeodo rei espartano Agesilau Teleutias por acaso chegou agrave ilha nesse

18

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

momento e com seu exeacutercito ajudou os eginetas a expulsar todosos atenienses28

[3] Pois quando ancorado [Teleutias] desceu ao mar emdireccedilatildeo agrave casa natildeo houve entre os soldados quem natildeo ocumprimentasse enquanto um o coroava outro o cingia comfaixas outros todavia tendo chegado atrasado quando jaacutenavegava jogavam coroas ao mar e desejavam a ele muitascoisas boas [4] Reconheccedilo sem duacutevida que nesses eventosnatildeo descrevo nem despesas nem perigos nem algumaestrateacutegia digna de menccedilatildeo mas por Zeus parece-me queisto eacute digno de considerar a respeito do homem e o queoutrora Teleutias arranjou para conquistar os comandantesPois evidentemente essa accedilatildeo eacute mais digna de mencionar doque riquezas e perigos29 (grifo nosso)

Interessa-nos aqui a necessidade de justificativa donarrador aos seus leitores especialmente porque indica aconsciecircncia do leitor quanto ao que esse esperava de uma narrativahistoriograacutefica e que essa passagem infringe tal expectativaEntendemos que eacute com essa chave de leitura que devemos ler eanalisar o proecircmio da Ciropeacutedia como um discurso que sinaliza aquebra de expectativa do leitor indicando os coacutedigos com que anarrativa deve ser de fato lida

Todavia embora o processo seja semelhante o resultado eacuteoposto Nas interrupccedilotildees ocorridas nas Helecircnicas a justificativaaltera o conceito de aksioacutelogos apresentando uma nova propostapara interpretar o que deveria ser mateacuteria historiograacutefica sem noentanto mudar o estatuto do narrado do factual para o fictiacuteciouma vez que os eventos diante dos quais o narrador se encontraconstrangido a justificar a presenccedila satildeo eventos histoacutericos de umuniverso factual Satildeo eventos ao menos assegurados pelonarrador com tal estatuto ndash eacute o conceito do gecircnero que eacute discutidoporeacutem sem mudar o seu estatuto ontoloacutegico

O processo na Ciropeacutedia eacute oposto na medida em que onarrador toma ares de historiador-filoacutesofo para justificar eapresentar uma narrativa hiacutebrida em que o factual e o ficcional semesclam e tornam transparentes as suas fronteiras Faz issoporeacutem sem maacute intenccedilatildeo pois deixa vestiacutegios no texto para que

19

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

seus leitores compreendam o objetivo da narrativa e tomem porfactual o que eacute fictiacutecio A vida de Ciro o velho natildeo era nesseperiacuteodo completamente desconhecida na Greacutecia Aleacutem danarrativa que Heroacutedoto dedica a ele no livro I eacute provaacutevel que elatambeacutem tenha sido tratada nas obras perdidas dos logoacutegrafosCaratildeo de Lacircmpsaco Dioniso de Mileto e Helacircnico aleacutem danarrativa de Cteacutesias de Cnido e do diaacutelogo filosoacutefico de Antiacutesteneschamado Ciro30 ou seja havia uma seacuterie de versotildees divulgadas nacultura grega sobre a personagem histoacuterica o que favorece a nossahipoacutetese de que os leitores de Xenofonte tivessem informaccedilotildeessuficientes para perceber os desvios e exageros da narrativa emcomparaccedilatildeo com aquelas outras versotildees

Assim primeiramente analisemos as estrateacutegias utilizadaspelo narrador em busca de granjear a autoridade ao narrado

A) O narrador da Ciropeacutedia faz uma seacuterie de interrupccedilotildeesdurante a narrativa interrupccedilotildees essas que satildeo em geral de caraacuteterdidaacutetico poreacutem ele jamais se nomeia No proecircmio propriamentedito ele natildeo abre com a sua assinatura como os outroshistoriadores que escreveram proecircmios

Ocorreu a noacutes certa vez a reflexatildeo de quantas democraciasforam dissolvidas por aqueles que desejavam viver comocidadatildeos de qualquer outro regime do que no democraacutetico epor sua vez de quantas monarquias quantas oligarquiasforam aniquiladas pelos povos Dos que empreenderam atirania enquanto alguns deles foram derrubados raacutepido etotalmente outros tanto quanto fosse o tempo quegovernaram satildeo admirados por terem se tornado homenssaacutebios e afortunados Pareciacuteamos ter observado aleacutem dissoque muitos em suas proacuteprias casas tanto quem temnumerosos servos como quem tem muito poucos nemmesmo os senhores de pouquiacutessimos conseguiam que aobediecircncia dos servos fosse observada31 (grifos nossos)

Nota-se que o narrador refere a si mesmo na primeirapessoa do plural e isso se manteraacute por toda a narrativa SegundoBrown e Levinson32 a indeterminaccedilatildeo criada pela primeira pessoado plural nas liacutenguas em geral ajuda o falante a proteger a suaimagem de possiacuteveis danos diante de seu ouvinte Eacute uma

20

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

individualizaccedilatildeo generalizante em que o ldquoeurdquo se apaga em meio aoldquonoacutesrdquo Adrados33acrescenta que na liacutengua grega o uso de ldquonoacutesrdquopor ldquoeurdquo pode tanto ser usado como plural majestaacutetico demodeacutestia ou de autoridade Para o linguista espanhol esse caso daCiropeacutedia enquadra-se no uso do plural de modeacutestia pois no finalda obra (livro VIII8) o narrador termina a narrativa se utilizandoda primeira pessoa do singular No entanto no proacuteprio proecircmioem nenhum momento aparece a primeira pessoa do singular Pelocontexto da enunciaccedilatildeo entendemos de forma diferente deAdrados o uso da primeira pessoa do plural natildeo como forma demodeacutestia e sim de assegurar a autoridade um artifiacutecio paramimetizar um discurso objetivo

Para assim compreendermos devemos levar em conta quea base da mateacuteria narrada na Ciropeacutedia a vida de Ciro o velhoproveacutem de um periacuteodo distante temporal e espacialmente agravequeleem que Xenofonte estaacute escrevendo e esse dado era sabido ereconhecido de todos os seus leitores Nesse caso todas as suasfontes possiacuteveis de informaccedilatildeo a respeito do personagem histoacutericosatildeo orais e ainda que ele tivesse feito como Heroacutedoto umaverdadeira inquiriccedilatildeo dessas fontes a narrativa haveria de estarenvolta no lendaacuterio ndash como eacute a versatildeo narrada para o nascimento emorte de Ciro no livro I das Histoacuterias de Heroacutedoto Assim eacute umahistoacuteria que aparenta transcender o proacuteprio ldquoeurdquo pois eacute dadacomo uma narrativa coletiva popular e tradicional que o eu-narrador apenas apresenta ao leitor Em nenhum momentocontudo esse narrador contesta qualquer parte da narrativaconduzindo entatildeo ainda que implicitamente o leitor a acreditarnatildeo soacute na veracidade dos fatos mas tambeacutem na akriacutebeia do proacuteprionarrador-historiador Dessa forma o narrador se apaga em umldquonoacutes coletivordquo que autoriza o narrado indeterminando o sujeitoque diz ter feito a reflexatildeo e a investigaccedilatildeo

B) Aliado agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito tambeacutem chama aatenccedilatildeo para a anaacutelise da ficcionalizaccedilatildeo da autoridade o empregovocabular no proecircmio Nota-se que o conteuacutedo semacircntico dosverbos empregados trafega no domiacutenio do discurso cientiacutefico eracional Se dividirmos o proecircmio em duas partes uma preacute e outra

21

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

poacutes o nome de Ciro ser referido pela primeira vez perceberemosque na primeira o narrador se utiliza de um vocabulaacuteriofilosoacutefico-reflexivo que conduz o seu leitor a encarar o texto comoresultado dessas inquiriccedilotildees Ἔννοιά ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι(11) ἐνενοοῦμεν νομίζοιντο ᾐσθήμεθα ἐδοκοῦμεν ὁρᾶν (12)ἐνεθυμούμεθα ἐγιγνώσκομεν (13) Esse vocabulaacuterio induz-nos arefletir sobre a universalidade das informaccedilotildees passadas poisaliadas agrave indeterminaccedilatildeo do sujeito implicam argumentaccedilatildeo queparece natildeo permitir oposiccedilatildeo Nesse mesmo sentido degeneralizaccedilatildeo para justificar as afirmaccedilotildees o narrador se utiliza deexemplos geneacutericos que vatildeo desde a observaccedilatildeo histoacuterica (asdiversas στaacuteσις e μεταβολή das cidades e constituiccedilotildees em 11) ateacute acotidiana (a organizaccedilatildeo da casa e a relaccedilatildeo entre os animais e seuspastores em 11 e 12) Essas suas observaccedilotildees o conduzem a teruma conclusatildeo a respeito da natureza humana que o narradorsintetiza na maacutexima ldquo[C]oncluiacutemos que eacute da natureza humana queseja mais faacutecil governar todos os outros animais do que oshomensrdquo (ὡς ἀνθρώπῳ πεφυκότι πάντων τῶν ἄλλων ῥᾷον εἴη ζῴωνἢ ἀνθρώπων ἄρχειν 13)

Entretanto logo em seguida o narrador apresenta oslimites dessa maacutexima demostrando que a reflexatildeo quando natildeoalcanccedilada pela anaacutelise de todas as circunstacircncias pode conduzir aoerro de avaliaccedilatildeo O conhecimento que passa a ter da vida de Ciroleva o narrador a mudar de opiniatildeo (ἠναγκαζόμεθα μετανοεῖν) ouseja os dados empiacutericos trazidos pelo novo conhecimentohistoacuterico demonstraram a inviabilidade da reflexatildeo teoacuterica Porisso eacute preciso refletir novamente e reformular o conhecimentoque o narrador apresenta tambeacutem por meio de uma maacutexima ldquo[A]partir de entatildeo fomos obrigados a mudar a opiniatildeo de quegovernar os homens natildeo eacute uma tarefa nem impossiacutevel nem aacuterduadesde que algueacutem pratique isso com habilidaderdquo (μὴ οὔτε τῶνἀδυνάτων οὔτε τῶν χαλεπῶν ἔργων ᾖ τὸ ἀνθρώπων ἄρχειν ἤν τιςἐπισταμένως τοῦτο πράττῃ 13)

Entre as duas maacuteximas haacute Ciro que delimita tambeacutem umamudanccedila de postura do narrador que passa do filosoacutefico-reflexivopara o historiograacutefico Se na primeira parte a sua reflexatildeo se baseia

22

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

em eventos generalizantes ele passa agora a listar resumidamenteos grandes feitos passados por Ciro dessa vez particularizandoportanto seu conteuacutedo

14 Ciro tendo encontrado os povos da Aacutesia do mesmomodo independentes lanccedilou-se com um pequeno exeacutercito depersas e governou os medos com o bom grado destes e oshircanos tambeacutem com o bom grado destes poreacutem subjugouos siacuterios assiacuterios aacuterabes capadoacutecios as duas friacutegias os liacutediosos caacuterios feniacutecios e babilocircnios dominou a Bactriacircnia a Iacutendiae a Ciliacutecia como tambeacutem os sacas os paflagocircnios e osmagaacutedidas e outros numerosos povos cujos nomes natildeosaberia dizer Sujeitou tambeacutem os gregos da Aacutesia e descendopor mar os cipriotas e os egiacutepcios34

Essa mudanccedila se revela tambeacutem no uso de um vocabulaacuteriomais proacuteximo do historiograacutefico especialmente no que tange aosproecircmios historiograacuteficos ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν διηγήσασθαι (16) Se ἄξιος remete tanto aoproecircmio de Tuciacutedides quanto ao proacuteprio Xenofonte nas Helecircnicasnas suas interrupccedilotildees apologeacuteticas o verbo θαυμάζω de imediatorecorda-nos o proacutelogo de Heroacutedoto em que o historiador diz quenarraraacute aleacutem dos feitos as grandes e maravilhosas empresas(θωμαστά) dos gregos e baacuterbaros Do mesmo modo os verbosἐπυθόμεθα καὶ ᾐσθῆσθαι remetem a accedilotildees tiacutepicas do investigadordo passado que primeiro busca se informar sobre os eventos edepois tenta compreendecirc-los para enfim os narrar (διηγήσασθαι)O processo entatildeo sublinhado pelo proacutelogo eacute o da reflexatildeofilosoacutefica para o da pesquisa historiograacutefica e enfim a da escritado passado Nesse sentido o proecircmio todo se constroacutei como umdiscurso que visa garantir a credibilidade do narrador e porconseguinte a autoridade do narrado

C) Ateacute este ponto demonstramos como o narrador daCiropeacutedia se esforccedila em tornar-se uma figura confiaacutevel aos seusleitores a fim de garantir a autoridade Poreacutem Xenofonte natildeo estaacutenarrando uma obra historiograacutefica no sentido pleno e nesse casoele mesmo assume aos seus leitores ainda que implicitamente ocaraacuteter ficcional da sua narrativa Isso se daacute justamente no uacuteltimo

23

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

periacuteodo do proecircmio onde como observamos acima o vocabulaacuterioeacute repleto de referecircncias historiograacuteficas (16)

Em vista desse homem (ἄνδρα) ser digno de nossa admiraccedilatildeorefletimos qual era a sua origem (γενεὰν) qual a natureza(φύσιν) e em qual educaccedilatildeo foi instruiacutedo (παιδευθεὶς παιδείᾳ)que a tal ponto o conduziram a governar os homensPortanto quanto averiguamos e quanto julgamos terc o m p r e e n d i d o s o b r e C i r o t e n t a r e m o s n a r r a rdetalhadamente35

Geneaacute phuacutesis e paideiacutea satildeo toacutepicas natildeo da historiografia esim do gecircnero epidiacutetico Nesse caso o narrador aponta para seuinterlocutor uma mistura de gecircneros que confunde e alerta poisembora o vocabulaacuterio seja historiograacutefico o objeto assumido dapesquisa natildeo o eacute O discurso epidiacutetico era um dos trecircs tiposconsagrados pela retoacuterica ao lado do discurso judiciaacuterio e odeliberativo Diferentemente dos outros dois o epidiacutetico temcomo funccedilatildeo o elogio ou o vitupeacuterio de alguma personalidadehistoacuterica ou ilustre e esse gecircnero com o tempo desenvolveu-se agraveforma da biografia antiga Tanto no epidiacutetico quanto na biografiahaacute na escolha do personagem tratado no discurso mais do queinteresse no seu passado um interesse no aspecto moral que sepode tirar de sua vida seja para o bem seja para o mal Apreocupaccedilatildeo moral portanto tem maior relevo do que com averdade histoacuterica transmitida pelo discurso epidiacutetico e segundoMomigliano36 os leitores antigos tinham consciecircncia de que dessetipo de discurso natildeo deveriam esperar informaccedilotildees precisas nemverdades factuais O testemunho de Poliacutebio em 1021 de suaHistoacuteria programaacutetica37 ajuda-nos consideravelmente a entender adistinccedilatildeo dos gecircneros Segundo o historiador quando vai tratar dogeneral grego Filopoimen ele jaacute havia escrito sobre o mesmopersonagem uma narrativa em trecircs livros que tratava da origemnatureza e educaccedilatildeo desse homem aleacutem de seus feitos mais dignosde menccedilatildeo Poreacutem como essa era uma obra historiograacutefica natildeoficava bem a narraccedilatildeo sumaacuteria (κεφαλαιώδη) e exagerada dos fatos(μετ αὐξήσεως τῶν πράξεων) como ocorre na outra que era

24

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

biograacutefica epidiacutetica Na histoacuteria as censuras e os elogios satildeodistribuiacutedos imparcialmente visando agrave verdade (ζητεῖ τὸν ἀληθῆ ))

Aleacutem disso a historiografia deveria tratar de eventospoliacuteticos e militares que envolviam toda a comunidade (ainda querepresentada por figuras particulares os liacutederes) jaacute o gecircneroepidiacutetico e a biografia focavam-se no homem na sua origemnatureza e educaccedilatildeo pois esses trecircs pilares eacute que justificariam asaccedilotildees vitoriosas (ou natildeo) do futuro Assim Xenofonte e seunarrador deixaram claro ao leitor o que esse deve esperar danarrativa uma histoacuteria epidiacutetica de Ciro que visa menos agravefactualidade do que a moral que se pode retirar do conjunto davida do personagem histoacuterico Faz isso deixando pequenosvestiacutegios de como usaraacute a ficcionalidade por meio de um discursoaparentemente historiograacutefico

Esses elementos ajudam-nos a perceber a complexidadedesse proecircmio xenofonteano e multiplicidades de sentidosimbuiacutedos em cada uma de suas partes Como conclusatildeo podemosassinalar que Xenofonte mesclando histoacuteria e ficccedilatildeo na narrativasentiu a necessidade de criar um proecircmio em que tambeacutem nele semisturassem dispositivos e estrateacutegias discursivas que assegurassema veracidade do narrador mas que ao mesmo tempo revelassem otraccedilo de ficcionalidade do universo criado Xenofonte a fim deescrever sobre o tema da lideranccedila preferiu fazer isso por meio deuma narrativa ao inveacutes do discurso filosoacutefico como fizera PlatatildeoComo testemunha da fragilidade das constituiccedilotildees poliacuteticas afinalele viveu no confuso seacutec IV grego Xenofonte encontrou respostaagraves suas reflexotildees apenas em um universo idealizado e ficcional Agrande inovaccedilatildeo estaacute em ele ter conseguido aliar uma temaacuteticaepidiacutetica a uma narrativa historiograacutefica tirando o temacaracteriacutestico do gecircnero e ampliando a sua perspectiva narrativadando a ele uma feiccedilatildeo de verdade que vai aleacutem do mero elogioprogramaacutetico O elogio por si soacute natildeo seria capaz de convencersobre a validade das ideias do autor e por isso Xenofonte mascaraa ficccedilatildeo natildeo soacute dentro de um universo histoacuterico mas comdispositivos linguiacutesticos caracteriacutesticos do gecircnero historiograacutefico

25

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

ABSTRACT

This article aims to analyze Xenophonrsquos proem to Cyropaedia andto demonstrate its narrator absorbing elements of thehistoriographic discourse since he had the intention of telling thelife of Cyrus with verisimilitude A number of elements seems todefine a reading pattern in which the narrator denies thefictionality of the text Broadly speaking when historians wroteproems they claimed these texts to be thematic but they alsosought to justify their choices and above all to establish researchand analysis criteria so as to strengthen the suitability and authorityover the narrated facts Since Cyrusrsquo life was a well-known topicfor Xenophonrsquos readers during the 4th century BC it seems to usthat this strategy does not intend to mislead the reader to the truthof the narrated facts for they would easily recognize theirfictionality but to gain authority over Xenophonrsquos moral andethical reflections that are exemplified in Cyrusrsquo life It will becomeeven more evident in the analysis of the preface in which thenarrator under the guise of the historian leaves traces that pointout to ruptures in the historiographical conventions indicatingthen the fictional character of the narrative It is therefore acomplex proem that inaugurates a new modality among prose textsof Antiquity ndash a fictional narrative that pretends to be true

KEYWORDS

Fiction Historiography Novel Xenophon Cyropaedia

26

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

REFEREcircNCIAS

ADRADOS FR Nueva sintaxis del griego antiguo Madrid Gredos 1992

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Introduccedilatildeo comentaacuterio e traduccedilatildeo de Eudoro de SouzaPorto Alegre Globo 1966

BAKHTIN M Questotildees de literatura e esteacutetica a teoria do romance Trad deAurora Bernardini et lsquoal Satildeo Paulo Hucitec 2002

BIZOS M Notice In XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par MarcelBizos Paris Les Belles Lettres tome I 1972

BRANDAtildeO JL A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UNB 2005

BROWN P LEVINSON SC Politeness some universals in language usageCambridge Cambridge University Press 1987

CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeo introduccedilatildeo e notas de Maria de FaacutetimaSousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 1996

CERDAS E A histoacuteria segundo Xenofonte historiografia e usos do passadoSatildeo Paulo Cultura Acadecircmica 2017

DAVIS LJ Factual Fictions the Origins of the English Novel New YorkColumbia University Press 1983

GALLE HPE Pequena introduccedilatildeo agrave teoria da ficcionalidade seguida por umabibliografia In GALLE H P E PEREZ J P PEREIRA V S (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p17-45

GRETHLEIN J The Greeks and their Past Poetry Oratory and History in theFifth Century BCE Cambridge Cambridge University Press 2010

GUAL CG Las oriacutegenes de la novela Madrid Ediciones Istmo 1988

HAumlGG T The Novel in Antiquity Berkeley and Los Angeles University ofCalifornia Press 1991

HARTOG F (Org) A histoacuteria de Homero a Santo Agostinho Trad JacynthoLins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 2001

HEROacuteDOTO Histoacuterias Introduccedilatildeo geral de Maria Helena da Rocha PereiraIntroduccedilatildeo do Livro I traduccedilatildeo e notas de Joseacute Ribeiro Ferreira e Maria deFaacutetima Silva Lisboa Ediccedilotildees 70 2002 Vol I

HOLZBERG N The Genre Novels proper and the fringe In SCHMELING G(Ed) The Novel in the Ancient World Boston Brill Academic Publishers2003 p 11-28

27

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

Caliacuteope Presenccedila Claacutessica | 20192 Ano XXXVI Nuacutemero 38 (separata 6)

HELIODORO Les eacutethiopiques Theacuteagegravene et Charicleacutee Texte eacutetabli par R MRattenbury et traduit par J Maillon Paris Les Belles Lettres 1960 3 vol

MACROBE Commentaire au songe de Scipion Trad Mireille Armisen-Marchetti Livre I Paris Belles Lettres 2003 Tome I

MARINCOLA J Authority and Tradition in Ancient Historiography NewYork Cambridge University Press 1999

MOMIGLIANO A The Development of Greek Biography London Expanded1993

POLIBIO Histoacuteria programaacutetica Livros I a V Traduccedilatildeo Introduccedilatildeo e Notasde Breno Battitin Sebastiani Satildeo Paulo Perspectiva Fapesp 2016

RAHN P J Xenophonrsquos developing historiography Transactions andProceedings of the American Philological Association 1971 vol 102 p497-508

REARDON B The Form of Greek Romances Princeton Princeton UniversityPress 1991

REARDON B Chariton In SCHMELING G (Ed) The Novel in the AncientWorld Boston Brill Academic Publishers 2003 pp309-335

SANSALVADOR AV In JENOFONTE Ciropedia Introduccioacuten traduccioacuten ynotas de Ana V Sansalvador Madrid Gredos 1987

SCHAEFFER JM Fictional vs factual narration In HUumlHN P et al (Org)Handbook of Narratology Berlin Muumlnchen Boston De Gruyter 2014 p179-196

SEARLE JR O estatuto loacutegico do discurso ficcional In ______ Expressatildeo esignificado Satildeo Paulo Martins Fontes 1995 p 95-119

SILVA M de F Sousa e In CAacuteRITON Queacutereas e Caliacuterroe Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Maria de Faacutetima Sousa e Silva Lisboa Ediccedilotildees Cosmos1996

SLATER NW Spectator Politics Metatheatre and Performance inAristophanes Philadelphia University of Pennsylvania Press 2002

STEPHENS S A WINKLER JJ Ancient Greek Novels The FragmentsPrinceton Princeton University Press 1995

TUCIacuteDIDES Histoacuteria da Guerra do Peloponeso Trad De Raul M RosadoFernandes e M M Gabriela P Granwehr Lisboa Fundaccedilatildeo CalousteGulbenkian 2010

28

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

A ficcionalizaccedilatildeo da autoridade na Ciropeacutedia de Xenofonte | Emerson Cerdas

VASCONCELOS SGT ldquoTrue Liesrdquo In GALLE HPE PEREZ JP PEREIRA VS(Org) Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo PauloFFLCHUSP Fapesp 2018 p 111-124

VEYNE P Os gregos acreditavam em seus mitos Traduccedilatildeo de MarianaEchalar Satildeo Paulo Editora Unesp 2014

WERNER C Carpintaria de narrativas na Odisseia de Homero Eumeu e omendigo cretense In GALLE HPE PEREZ J P PEREIRA VS (Org)Ficcionalidade uma praacutetica cultural e seus contextos Satildeo Paulo FFLCHUSPFapesp 2018 p 63-82

XENOFONTE DE EacuteFESO As Efesiacuteacas Acircntia e Habroacutecomes Traduccedilatildeointroduccedilatildeo e notas de Vitor Ruas Lisboa Ediccedilotildees Cosmos 2000

XEacuteNOPHON Cyropeacutedie Texte Eacutetabli et Traduit par Marcel Bizos Paris LesBelles Lettres tome I 1972

______ Helleacuteniques Tome I (livres IV-VII) Texte eacutetabli et traduit par JHatzfeld Paris Les Belles Lettres 1965

29

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

1 Por causa de fragmentos descobertos recentemente haacute criacuteticos que alargamesse periacuteodo para o seacutec III aC Cf Stephen e Winker (1995) Na visatildeo de Haumlag(1991) as mudanccedilas sociais poliacuteticas econocircmicas e culturais decorrentes dasconquistas do macedocircnio Alexandre que alargou o mundo grego ao transportara sua cultura a outros povos geraram um novo tipo de homem que natildeo sereconhecia mais na grande literatura do passado e enquanto esta ficava cada vezmais enclausurada nas bibliotecas dos eruditos ldquoO romance eacute portanto aepopeia da eacutepoca heleniacutestica cumprindo as funccedilotildees de eacutepica da nova era eassumindo algumas de suas teacutecnicasrdquo (HAumlAG 1991 p 111)2 BAKHTIN 2002 p 743 DAVIS 19834 BRANDAtildeO 2005 p 163-1645 VASCONCELOS 2018 p 1156 A obra tem recebido as mais diversas classificaccedilotildees como biografia histoacuteriaromanceada biografia romanceada romance filosoacutefico romance didaacuteticotratado de educaccedilatildeo obra socraacutetica Cf Bizos (1972)7 Embora hoje haja uma maior aceitaccedilatildeo da parte da criacutetica quanto ao estatutoromanesco da Ciropedia durante muito tempo a narrativa recebeu as maisdiversas classificaccedilotildees e ainda hoje haacute autores (pe BRANDRAtildeO 2005 GUAL1988) que embora reconheccedilam elementos romanescos na obra natildeo a aceitamcomo um romance propriamente dito8 SCHAEFFER 2014 p 1799 GALLE 2018 p 19-2010SEARLE 199511 Na Poeacutetica (1147b) diz Aristoacuteteles que ainda natildeo havia uma palavra quedesignava o que hoje entendemos por literatura e que abrangesse tanto ospoetas quanto ldquo[] os mimos de Soacutefron e de Xenarco e os diaacutelogos socraacuteticos equaisquer outras composiccedilotildees imitativas executadas mediante triacutemetrosjacircmbicos ou versos elegiacuteacos ou outros versos que taisrdquo12 Os trechos traduzidos de Macroacutebrio satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Mireille Armisen-Marchetti (MACROBE 2003)13 HOLZBERG 2003 p 1514 SLATER 2002 p 315 WERNER 201816 HARTOG 2001 p 23517 VEYNE 201418 MARINCOLA 1999 p 619 A palavra eacute empregada por autores como Demoacutecrito de Abdera eHipoacutecrates em seu sentido primeiro Segundo Hartog (2001 p 50) nesseprimeiro momento a palavra nesse periacuteodo designa mais um estado de espiacuteritoe apenas a partir de Heroacutedoto o primeiro a vincular a historiacutea aos fatos passadosque o termo passou a designar o gecircnero20 HEROacuteTODO 2002 21 GRETHLEIN 2010 p 20522 BRANDAtildeO 2005 p 11123 SILVA 1996 p XXV24 REARDON 2003 p 325-326 25 Haacute uma anaacutelise mais detalhada do ancoramento histoacuterico dessas narrativas emCerdas (2017)26 STEPHENS WINKLER 1995 p 8027 Traduccedilatildeo nossa a partir do texto estabelecido por R M Rattenbury(HELIODORO 1960 livro 1041) No original ἔσχε τὸ σύνταγμα τῶν περὶ Θεαγένηνκαὶ Χαρίκλειαν Αἰθιοπικῶν ὃ συνέταξεν ἀνὴρ Φοῖνιξ Ἐμισηνός τῶν ἀφ Ἡλίου γένοςΘεοδοσίου παῖς Ἡλιόδωρος28 Para uma anaacutelise mais detalhada a respeito dessa passagem cf Cerdas (2017)e Rahn (1971)29 Traduccedilatildeo de nossa autoria a partir do texto de J Hatzfeld (XEacuteNOPHON 1965)No original κἀκεῖνος μὲν παραλαμβάνει τὸ ναυτικόν ὁ δὲ Τελευτίας μακαριώτατα δὴἀπέπλευσεν οἴκαδε ἡνίκα γὰρ ἐπὶ θάλατταν κατέβαινεν ἐπ οἴκου ὁρμώμενος οὐδεὶςἐκεῖνον τῶν στρατιωτῶν ὃς οὐκ ἐδεξιώσατο καὶ ὁ μὲν ἐστεφάνωσεν ὁ δὲ ἐταινίωσεν οἱδ ὑστερήσαντες ὅμως καὶ ἀναγομένου ἔρριπτον εἰς τὴν θάλατταν στεφάνους καὶηὔχοντο αὐτῷ [4] πολλὰ καὶ ἀγαθά γιγνώσκω μὲν οὖν ὅτι ἐν τούτοις οὔτε δαπάνημαοὔτε κίνδυνον οὔτε μηχάνημα ἀξιόλογον οὐδὲν διηγοῦμαι ἀλλὰ ναὶ μὰ Δία τόδε ἄξιόνμοι δοκεῖ εἶναι ἀνδρὶ ἐννοεῖν τί ποτε ποιῶν ὁ Τελευτίας οὕτω διέθηκε τοὺς ἀρχομένουςτοῦτο γὰρ ἤδη πολλῶν καὶ χρημάτων καὶ κινδύνων ἀξιολογώτατον ἀνδρὸς ἔργον ἐστίν30 Cf SANSALVADOR 1987 p 22

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016

31 Todas as traduccedilotildees da Ciropedia satildeo de nossa autoria a partir do textoestabelecido por Marcel Bizos (XEacuteNOPHON 1972) No original Ἔννοιά ποθ ἡμῖνἐγένετο ὅσαι δημοκρατίαι κατελύθησαν ὑπὸ τῶν ἄλλως πως βουλομένων πολιτεύεσθαιμᾶλλον ἢ ἐν δημοκρατίᾳ ὅσαι τ αὖ μοναρχίαι ὅσαι τε ὀλιγαρχίαι ἀνῄρηνται ἤδη ὑπὸδήμων καὶ ὅσοι τυραννεῖν ἐπιχειρήσαντες οἱ μὲν αὐτῶν καὶ ταχὺ πάμπαν κατελύθησανοἱ δὲ κἂν ὁποσονοῦν χρόνον ἄρχοντες διαγένωνται θαυμάζονται ὡς σοφοί τε καὶεὐτυχεῖς ἄνδρες γεγενημένοι πολλοὺς δ ἐδοκοῦμεν καταμεμαθηκέναι καὶ ἐν ἰδίοιςοἴκοις τοὺς μὲν ἔχοντας καὶ πλείονας οἰκέτας τοὺς δὲ καὶ πάνυ ὀλίγους καὶ ὅμως οὐδὲτοῖς ὀλίγοις τούτοις πάνυ τι δυναμένους χρῆσθαι πειθομένοις τοὺς δεσπότας32 BROWN LEVINSON 1987 p 6133 ADRADOS 1992 p 27834 No original Κῦρος δὲ παραλαβὼν ὡσαύτως οὕτω καὶ τὰ ἐν τῇ Ἀσίᾳ ἔθνη αὐτόνομαὄντα ὁρμηθεὶς σὺν ὀλίγῃ Περσῶν στρατιᾷ ἑκόντων μὲν ἡγήσατο Μήδων ἑκόντων δὲὙρκανίων κατεστρέψατο δὲ Σύρους Ἀσσυρίους Ἀραβίους Καππαδόκας Φρύγαςἀμφοτέρους Λυδούς Κᾶρας Φοίνικας Βαβυλωνίους ἦρξε δὲ Βακτρίων καὶ Ἰνδῶν καὶΚιλίκων ὡσαύτως δὲ Σακῶν καὶ Παφλαγόνων καὶ Μαγαδιδῶν καὶ ἄλλων δὲπαμπόλλων ἐθνῶν ὧν οὐδ ἂν τὰ ὀνόματα ἔχοι τις εἰπεῖν ἐπῆρξε δὲ καὶ Ἑλλήνων τῶνἐν τῇ Ἀσίᾳ καταβὰς δ ἐπὶ θάλατταν καὶ Κυπρίων καὶ Αἰγυπτίων35 No original ἡμεῖς μὲν δὴ ὡς ἄξιον ὄντα θαυμάζεσθαι τοῦτον τὸν ἄνδραἐσκεψάμεθα τίς ποτ ὢν γενεὰν καὶ ποίαν τινὰ φύσιν ἔχων καὶ ποίᾳ τινὶ παιδευθεὶςπαιδείᾳ τοσοῦτον διήνεγκεν εἰς τὸ ἄρχειν ἀνθρώπων ὅσα οὖν καὶ ἐπυθόμεθα καὶᾐσθῆσθαι δοκοῦμεν περὶ αὐτοῦ ταῦτα πειρασόμεθα διηγήσασθαι36 MOMIGLIANO 1993 p 5537 POLIBIO 2016