O Mistério do Concurso para Programador dos Teatros Rivoli e Campo Alegre

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Page1 O Mistério do Concurso para Programador dos Teatros Rivoli e Campo Alegre Carta Aberta aos Drs Rui Moreira e Manuel Pizarro, Presidente e Vereador da Câmara Municipal do Porto de Carlos Fragateiro Junho 2014

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O Mistério do Concurso para Programador dos Teatros Rivoli e Campo Alegre

Carta Aberta aos Drs Rui Moreira e Manuel Pizarro, Presidente e Vereador da Câmara Municipal do Porto

de Carlos Fragateiro Junho 2014

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O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética. O que me preocupa é o silêncio dos homens bons. Martin Luther King

Já há umas semanas que estou a escrever esta carta relacionada com a abertura do concurso para programador dos teatros Rivoli e Campo Alegre, um concurso que só formalmente se pode chamar assim, pois, como então foi dito e os factos conhecidos acabaram por comprovar, tudo indicia que é um concurso com fotografia, como hoje é comum chamar aos concursos lançados para uma pessoa específica. Eu próprio que, quando antes da abertura do concurso me falaram do nome da pessoa para quem o concurso ia ser aberto, me tinha recusado a acreditar, pois esse procedimento era totalmente contrário aos pressupostos da candidatura O meu partido é o Porto, tive

que me render às evidências quando finalmente constatei que o que se dizia era verdade. Um concurso onde o que mais me chocou foi perceber que dois dos programadores de referência do Porto, o Mário Moutinho do FITEI e o Mário Dorminski do Fantasporto, com uma experiência internacional extremamente significativa, seriam logo eliminados na primeira fase do concurso. O que está a acontecer com este concurso, e com tantos outros que se vão fazendo pelo país e que podem ser tudo menos concursos, tem a ver com aquilo a que Diogo Vasconcelos, um homem do Porto e um dos pensadores mais inovadores em Portugal e que infelizmente faleceu muito novo, chama a cultura de condicionamento ao sentido de risco e de aventura que é dominante em Portugal. Por isso antes de avançarmos na análise do concurso em causa nesta carta, olhemos um pouco o pensamento de Diogo Vasconcelos, arriscar a inovação e o risco, através de uma montagem de afirmações suas. Arriscar a Inovação e o Risco1 “Portugal é uma sociedade assente na proteção do que existe. Das ideias que existem, das pessoas que existem, das empresas que existem. A cultura política dominante em Portugal é uma cultura de condicionamento ao sentido de risco e de aventura, que foi agravada pela lógica dos últimos anos. Há uma ilusão perigosa de um futuro garantido pelo Estado. Essa ilusão não é comum a toda a gente. A prova disso são as centenas de milhares de pessoas que estão a abandonar Portugal e que não se identificam com essa visão. O grande perigo de Portugal é ficar como a Itália, em que há uma emigração maciça, pois muitos italianos saíram porque a Itália virou uma gerontocracia: as pessoas estão limitadas por quem conhecem e não pela competência do que fazem. “Não podemos por isso tolerar a falta de ambição e de um sentido de futuro, temos de ter uma cultura empreendedora para Portugal. Num país com uma população

socialmente ativa avessa ao risco, à aposta na inovação e à partilha de uma cultura de dinâmica positiva, há que saber fomentar a produção de novas ideias, de novas soluções, projetando na sociedade o exercício da responsabilidade individual de forma aberta e participada. “As pessoas têm a consciência de que, num mundo em que somos o que partilhamos, o futuro não se resolve, nem se cria, nem se delega na mão dos experts. No limite significa que se legitima, do lado do Estado, o desempowerment das pessoas (alguém decide sempre em meu nome); e do lado do mercado legitima-se um certo

crescimento das desigualdades, que se deve combater. Essa síntese passa por uma sociedade muito mais autónoma em que as pessoas tomem o destino nas suas

1 - Como já referimos todo o texto Arriscar a Inovação e o Risco é construído a partir das reflexões de

Diogo vasconcelos.

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próprias mãos, e em que a democracia seja vivida no sentido de permitir a experimentação de novas formas de participação. “Dar às pessoas poder para que construam o seu próprio destino, atinjam o seu potencial, criem um mundo diferente, pois quanto mais o poder for distribuído, mais possibilidades há de inovação. As sociedades, as cidades, as empresas mais vibrantes, são aquelas em que as pessoas não são todas iguais. A inovação acontece pela colisão de diferentes conhecimentos e experiências, para se ter acesso a novas perspectivas, a novas ideias, tem que se trabalhar nas fronteiras. Só aprendemos com pessoas que sejam diferentes. “Porque sabemos que ninguém inova sozinho, que é preciso inovar com outros, incorporar muitas coisas que não fazem parte das suas competências na sua própria cadeia de valor, temos consciência que todo um projeto de inovação e de risco tem necessidade de ser apoiado por um grupo, que funcione como uma espécie de sensor, que seja responsável por estar uns anos à frente dos outros, um sensor que permite identificar quais são as tendências”. Um Porto da Inovação e do Risco ou um Porto dos Interesses Instalados? Para mim o Porto sempre rimou com Liberdade, mas temo que esteja a deixar-se contaminar pelas mesmas práticas que acontecem em partes significativas do país, onde o serviço público está refém de interesses instalados que não dão contas a ninguém, tornando aquilo que devia servir o público, os cidadãos, em estruturas que servem projetos privados e pessoais e destruindo, a seu bel prazer, tudo o que tenta estruturar as práticas e as iniciativas numa dinâmica de inovação e de serviço público. Na verdade estes grupos que se têm vindo a apropriar das estruturas públicas da cultura têm funcionado como predadores das dinâmicas culturais e artísticas autónomas, pois têm clara consciência de que são essas dinâmicas autónomas que põem em causa as corporações que ao longo dos anos só têm sobrevivido porque vivem à custa dos dinheiros públicos, sem nada fazerem pelo serviço público. Por muito que nos custe admitir estamos perante corporações de interesses de quem, se estivéssemos em Nápoles, diríamos que eram da máfia, a quem, se tudo se passasse no interior dum bairro social, chamaríamos gangs, ou, se se tratasse de um partido, diríamos que são os homens do aparelho, os medíocres, mas como é gente da cultura e do conhecimento, intelectuais, temos pudor e custa-nos a aceitar que esta gente tem os mesmos comportamentos que os medíocres, os gangs, a máfia.

Tempos de Mudança e Revolta A realidade dos concursos públicos manipulados, que se tornou um hábito em muitas instituições públicas, já é aceite como uma fatalidade contra a qual não vale a pena lutar pois por muito que o façamos nada vai mudar. Esta sensação de impotência está a provocar um movimento de rejeição em relação aos políticos e à gestão das coisas públicas, com as pessoas a agarrarem-se aos movimentos anti-regime para lutarem contra a prepotência e a impunidade que já não suportam e não conseguem combater, como se viu pelos resultados das últimas eleições em toda a Europa. Uma tendência que é necessário combater com todas as nossas forças, o que só se consegue se formos capazes de contrapor uma política clara e transparente, onde se defenda que quando necessitamos de quadros para a gestão pública vamos contratar os melhores, venham eles donde vierem, professem as ideias que professem, tenham os amigos e as relações que tenham. E convenhamos que o Porto, que está a dar uma imagem de independência de novas formas de gerir e pensar a causa pública, não pode correr o risco de dar cobertura a uma manobra desta natureza, a uma manipulação dum concurso público que neste momento nos vamos abster de qualificar.

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O Meu Porto em Três Andamentos

Demorei mais tempo do que o previsto a terminar esta carta pois senti necessidade

de, nestas últimas semanas, andar pela cidade e tentar perceber como é que se conseguiu, com ou apesar da gestão do Dr. Rui Rio que se dizia ter provocado o

deserto cultural na cidade, criar uma dinâmica única, não dependente dos apoios públicos, dinâmica cultural que hoje é um dos factores mais determinantes no crescimento da capacidade de atração que o Porto tem. Nesta minha preocupação em perceber a dinâmica da cidade há toda uma história que tenho com e do Porto que é, possivelmente, a razão mais profunda desta minha intervenção, pois cada vez tenho mais consciência que não há futuro sem memória, e a minha memória do Porto é a de uma cidade de gentes rebeldes, éticas e com uma grande honestidade, de gentes distantes e com uma grande independência em relação aos poderes centralistas de Lisboa. 1º Andamento O Porto da Resistência As minhas primeiras memórias vão para figuras como a Engª Virgínia Moura, minha explicadora de matemática, o Dr. José Luís Nunes que, nos inícios de 1973, entrevistei para uma reportagem sobre o 31 de Janeiro para o jornal República, ou o meu tio Armando Ginestal Machado, o engenheiro dos comboios, com quem recordei muitas vezes as imagens fantásticas e comovedoras da chegada do comboio da liberdade que trouxe o General Humberto Delgado ao Porto e com quem aprendi a conhecer e a respeitar o Prof. Óscar Lopes e o escritor Jorge de Sena. Penso também nos 3 encenadores argentinos que vieram para o TUP, Teatro Universitário do Porto de que fui Presidente em 1972, e que ainda hoje são figuras de referência na Argentina e no teatro internacional, Carlos Augusto Fernandes, que dirigiu um grande espetáculo de resistência que foi o Azul Negro, Óscar Cruz, considerado hoje um dos maiores atores do teatro argentino, e David Amitin. Penso ainda no Angel Facio que, no Teatro Experimental do Porto, dirigiu um dos maiores espetáculos que se produziram no teatro português, A Casa de Bernarda Alba, protagonizada pelo grande ator que é Júlio Cardoso, e que tinha no seu elenco a Maria Emília Correia, a Márcia Breia e a Manuela Melo, mais tarde vereadora da cultura da Câmara do Porto, e que na altura era atriz e que grande atriz. Penso nas muitas reuniões com o escultor José Rodrigues para a discussão do cenário do espetáculo que o TUP estava a montar no Palácio de Cristal, A Serpente, uma mega produção que acabou por não ser concretizada, mas

que teria sido uma rotura no panorama teatral português, penso nas performances que fazíamos na Árvore e onde havia uma forte interação/provocação com o público, ou nas improvisações radicais que tivemos que fazer para preparar a montagem da Prisão, um texto do Living Theater sobre uma prisão de marines americanos no

Vietnam. Penso ainda nas manifestações contra a queima das fitas e o encontro de coros no Porto, nos dois anos em que fui dirigente da associação de estudantes da Faculdade de Ciências, uma em aliança com estudantes afetos ao PC e, outra, a primeira eleita na Universidade do Porto sob o slogan uma Universidade ao serviço do Povo. Penso ainda na página de arte do Comércio do Porto onde conheci o Mário Cláudio, dos Quatro Vintes, quatro estudantes de Belas Artes, Ângelo de Sousa,

Armando Alves, Jorge Pinheiro e José Rodrigues, que em 1968 acabaram o curso com vinte valores e formaram o grupo Os Quatro Vintes.

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2º Andamento O Porto da Identidade e do Conhecimento Em Lisboa, já depois de terminada a Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional, onde em 1973 cheguei integrado num significativo grupo do Porto que era um pouco asneirento, frontal e militante, acompanhei à distância a afirmação do espírito do Porto na luta contra a venda do Coliseu à IURD, no aparecimento da dupla Rui Veloso/Carlos Tê e no personagem único que é o Chico Fininho ou no musical Mingos & os Samurais, no humor requintado dos livros do Manuel António Pina, na carreira internacional dos arquitetos Siza Vieira e Souto Moura, na obra de Manuel de Oliveira, nos espetáculos Um Cálice do Porto, do Seiva Trupe, ou Vai no Batalha, do

Teatro de Marionetas do Porto, onde a alma do Porto profundo estava bem presente, ou no ciclo de teatro e conhecimento que o Seiva Trupe apresentou ao longo dos anos, e de que Oxigénio e a vinda ao Porto de Carl Djerassi, autor do texto e um dos

cientistas de referência do século XX, são a prova de que é possível que a criação artística e os centros de ciência de excelência trabalhem em conjunto e contribuam para uma efetiva evolução do conhecimento. Vi também esse espírito na organização do FITEI, Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, um festival que se iniciou em 1978 e tornou o Porto numa plataforma de encontro e troca entre os mundos que falam português e castelhano, o que foi algo natural dada a ligação profunda do Porto com a Galiza, no lançamento do Fantasporto, em 1980, e do Festival Internacional de Marionetas do Porto, em 1989, dois festivais que acabariam por conseguir uma afirmação única no panorama internacional. Foi neste quadro de abertura e autonomia que, em 1989, regressei ao Porto para organizar o 4º Encontro Internacional de Teatro e Educação, em colaboração com o Instituto Politécnico, onde se começaram a estruturar as linhas de força do que poderia ter sido um Centro Internacional de Teatro e Educação que ficaria sediado numa das instituições da cidade, e para a realização, em 1992, no Teatro Rivoli, na altura já na posse da Câmara, do 1º Congresso Mundial de Teatro e Educação, onde estiveram representantes de 47 países e foi fundada a IDEA, International Drama, Theater and Education Association. Este ato fundador da IDEA, associação de referência no movimento internacional das artes na educação e parceira da UNESCO, que acontece no Porto e no Teatro Rivoli, ainda hoje é considerado um marco na história da associação, como pudemos mais uma vez perceber num debate no Festival de Avignon de 2012 sobre a fundação da Idea e no 8º congresso que teve lugar em

Paris em 2013. 3º Andamento O Porto como Laboratório de Criação A minha ida para a direção do INATEL em 1996, entidade com a maior capacidade para organizar uma rede de estruturas para apoio dum programa de circulação nacional de produtos artísticos, ajudou-me a trabalhar na perspetiva do país, e a tomar consciência de que era fundamental ter um pólo de produção e criação artística no Porto que ajudasse a romper com o centralismo de Lisboa. Por isso pensou-se de imediato na recuperação do antigo cinema Águia d´Ouro, que estava no mesmo edifício da delegação do INATEL, e, num segundo momento, na aquisição do Sá da Bandeira. E o facto é que estreámos no Porto duas produções do Teatro da Trindade, a Comédia de Enganos, em 1998, no Carlos Alberto, e O Último Tango de Fernat, em

2003, no Helena Sá e Costa, integrado na programação do Seminário Internacional Interdisciplinaridade e Universidade, organizado pela cátedra Latina da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, para além da maior parte das produções se terem apresentado nos teatros do Porto: Cyrano no Sá da Bandeira, Romeu e Julieta, Picasso e Einstein e Fungágá no Rivoli, Navio dos Rebeldes no Coliseu, com quem o Teatro da Trindade co-produziu duas óperas, Verdes Anos, um espetáculo de

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homenagem a Carlos Paredes no auditório da AEP, a ópera O Homem que Confundiu a sua Mulher com um Chapéu no Carlos Alberto, a Filha Rebelde, esta já produção do

Teatro Nacional D. Maria II, no São João, integrando a programação do FITEI com quem sempre colaborámos. O nosso interesse por investir no Porto não esmoreceu ao longo dos anos. Toda esta consciência da importância estratégica do Porto, levou a que o Teatro da Trindade/INATEL tenha apresentado uma proposta que apareceu em alternativa à apresentada pela produtora do Filipe La Féria.. Esta aposta foi completada com a ida a Lisboa das produções das estruturas do Porto, processo que teve um momento grande com a apresentação,. em 2005 no Teatro da Trindade, de Quem Tem Medo de Vírginia Woolf do Teatro do Bolhão, que teve um grande impacto pela qualidade do espetáculo e pelas grandes interpretações do António Capelo e da Glória Férias, apresentação que teve continuidade no ano seguinte com a participação do Don Juan na Mostra Internacional de Teatro, MITE, organizada pelo Teatro Nacional D. Maria II. É ainda com o Teatro do Bolhão que o Teatro Nacional D. Maria II co-produz um dos monólogos mais fabulosos feitos em Portugal, Começar a Acabar de Becket, uma criação do ator João Lagarto, que encena e representa, numa colaboração que traduzia uma maior cumplicidade com uma estrutura teatral portuguesa que cada vez revela maior qualidade e coerência nas suas produções, conforme na altura escrevi no programa. Nesse ano ainda estiveram em

Lisboa o Teatro de Marionetas do Porto e o Teatro de Formas Animadas que participaram num ciclo dedicado a António José da Silva da programação do D. Maria. Para além da apresentação dos espetáculos, parece-me importante referir que um número significativo dos jovens atores que passaram tanto pelo Trindade, como pelo D. Maria II, tinham sido formados na Academia Contemporânea do Espetáculo, a Escola Profissional ligada ao Teatro do Bolhão. A Pronúncia do Norte Olho hoje para o Porto com uma identidade e uma pronúncia muito própria, como cidade de resistência, um Porto que foi capaz de se afirmar como espaço de criação e do conhecimento. E o interessante é que o fascínio por este Porto tão especial não é só meu, como o mostram as palavras de um dos criadores com quem falei durante este tempo em que andei a tentar perceber o sentido mais profundo do Porto de hoje:

O que mais me fascina nesta cidade é a sua capacidade de incentivar e promover situações culturais muito interessantes, sem o recurso de grandes meios ou de apoios financeiros significativos. Aliás o Porto sempre foi....independente. Sempre fez o que quis. Mais de metade das sugestões que enumerei são fruto de vontades pessoais, ou seja, de um esforço "privado" sem uma ligação institucional com a cidade. Essa força é, no meu entender, fantástica.

É exatamente a ideia de um Porto que quer marcar e ser um projeto de referência capaz de contaminar o país cultural, que percebemos nos documentos da candidatura de o meu partido é o Porto:

Há cultura no Porto. Há uma cultura do Porto para a cidade, para a região, para o país, para a Europa e para o Mundo. Este movimento livre, independente e sem partidos dará prioridade à cultura e à identidade e afirmação cultural das gentes do Porto. Não há Porto sem cultura. Cuidaremos de que não haja cultura sem o Porto.

Por isso vimos como lógico e coerente o sentir do Dr. Rui Moreira quando defendeu uma Feira do Livro do Porto organizada exclusivamente pela autarquia, com uma qualidade capaz de tornar o modelo exportável para outras cidades, pois, como afirmou, se calhar, no futuro, o senhor presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, até nos pergunta como fizemos e podemos exportar o nosso modelo para lá.

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Hoje estamos a assistir a uma movida no Porto que nos lembra cidades vibrantes e dinâmicas como Madrid ou Barcelona, uma dinâmica autónoma, criada e desenvolvida pelo talento e a vontade dos criadores e das estruturas de criação, uma dinâmica que tem condições e nos dá garantias de estar preparada para sobreviver aos humores dos pequenos poderes de ocasião. O Porto no Contexto Internacional De que forma a cidade do Porto se quer situar no contexto internacional, qual a sua ambição estratégica, quer ser mais uma cidade europeia que se vai aos poucos e poucos afirmando no contexto europeu, ou é mais ambiciosa e quer assumir-se como uma região plataforma cuja missão, como diria Agostinho da Silva quando falava de Portugal e da Europa, é mostrar à Europa que há outros mundos e que esses outros mundos podem-nos mostrar outras formas mais criativas, solidárias e humanas, para sair da crise. Esta é uma questão a que é importante responder, pois dela dependerá muito do que se poderá ou deverá fazer. É importante não esquecer que do Porto nasceu o nome de Portugal e uma língua que é falada por cerca de 250 milhões de falantes e que tem todos os olhares e culturas do mundo. É também uma cidade do Atlântico, este mar que nos liga a África e ao continente americano, a todo o mundo, um oceano onde se podem construir milhares de pontes. Para além de ser um porto de mar, e hoje sabermos como as cidades com portos, com uma longa história onde se conta muita da história do mundo, assumem, em termos internacionais, uma importância estratégica cada vez maior pois, a partir delas, se podem lançar milhares de pontes com as outras culturas e países.. E a cultura que é pela sua essência o espaço onde podemos pensar o mundo na sua globalidade e complexidade, é também a dimensão social capaz de ajudar a lançar e a alimentar essas pontes. Cultura que hoje tem, como afirmou o Nobel da literatura de 2000, o chinês Gao Xingjin, num entrevista publicada no El País do passado dia 8 de Abril de 2014, neste tempo de crise não só económica e financeira, mas também social e do pensamento, o enorme desafio de começar a construir um novo pensamento, um novo renascimento. Penso que era neste quadro de desafios que a candidatura o meu partido é o Porto estava a pensar quando escreve que

a cultura é o oxigénio que transforma as cidades e esta cidade do Porto num ser vivo! A cultura que tem de ser vista no cruzamento entre o conhecimento, a arte, a ciência e a animação.

Efetivamente hoje a cultura e as artes têm uma dimensão estratégica enquanto espaço da globalidade, do pensamento, num tempo em que o grande défice social é o da inteligência e da sensibilidade. O Porto das Pontes e dos Futuros Possíveis O que mais me fascinou nestes últimos anos em que tenho vindo a reencontrar a cidade, foi o facto de ter tido quatro alunos do Porto na Universidade de Aveiro, dois pianistas atualmente a circularem pelo mundo, um compositor a trabalhar na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto nas área das tecnologias e da criação artística, e um outro das artes plásticas, e ir percebendo a sua enorme capacidade de ler o mundo a partir de diferentes olhares, com uma perspetiva que atravessava as várias áreas do conhecimento, e a consciência de que a função da arte é estar no cruzamento dos mundos, nos espaços de fronteira, e criar pontes. Por um acaso acabei por conhecer também o responsável pela dimensão tecnológica do espetáculo Peregrinação que vi há um mês no convento de São Bento da Vitória, e fiquei admirado pelo potencial humano ao nível tecnológico e criativo, e também ligado

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à FEUP. Esta dimensão artística e tecnológica de ponta, aliada à dimensão internacional, alertou-me para o potencial imenso que há no Porto e fez-me recordar que foi a Miragem, uma produtora da cidade, que produziu a série Major Alvega, uma série que no seu tempo, e possivelmente ainda hoje, se afirmou como um desafio e um risco ao nível das tecnologias utilizadas. E se formos à memória da cidade percebemos que esta dimensão inovadora e a capacidade de arriscar está no ADN das suas gentes, e levou-nos a recordar personalidades como o Eng. Edgar Cardoso, o engenheiro das pontes como lhe chamavam, o Diogo Vasconcelos que já referimos, personalidades que se encaixam e completam o perfil do Professor Óscar Lopes que o jornalista Valdemar Cruz publicou na edição do Expresso diário do passado dia 15 de maio:

homem de muitos saberes, situados muito para lá da relevância dos seus estudos nas áreas da linguística e da literatura. Para as suas grelhas de análise não dispensava o recurso a disciplinas como a lógica, a filosofia ou até a antropologia, do mesmo modo que não escondia o fascínio pela astronomia, a matemática, a físico-química, a música ou a geopolítica internacional.

Com referências destas o Porto tem mesmo que ser uma cidade e uma região de muitos saberes, capaz de fazer pontes e de apostar na inovação e no risco. Um sensor do futuro que tem que potenciar os múltiplos projetos que fazem com que a cidade seja hoje um efetivo laboratório da criatividade humana , projetos como a(o): - Sonoscopia, uma associação/plataforma de criação, de projectos artísticos e educativos centrados essencialmente na área da música e da exploração/ Investigação sonora e do seu cruzamento interdisciplinar com a literatura, a dança, o teatro e as artes visuais, ou o Portosonoro que trabalha em torno do património sonoro do centro histórico do Porto. - Dos músicos do centro comercial Stop e o Poststop que é um site dedicado a esse movimento. - Fábrica da Esmae, pólo ligado às artes performativas, uma espécie de incubadora de Empresas de cultura, que nasceu no edifício de uma antiga fábrica de têxteis, na rua da Alegria, onde, entre outros, está sediado o projeto de teatro comunitário a PELE. - Cace Cultural, um centro de apoio à criação de empresas, onde também têm lugar eventos culturais e estão, entre outros, o Circolando e a Panmixia. - Canal 180, um canal de televisão “Open Source” e o primeiro canal português inteiramente dedicado à cultura, artes e criatividade que apresenta os conteúdos mais inovadores produzidos por uma rede internacional de criadores e que ambiciona emitir para todo o Mundo através de diferentes operadores por Cabo. - Dama Aflita - galeria de ilustração e desenho dedicada à ilustração e ao desenho, com o principal objectivo de promover o desenvolvimento da ilustração, do desenho e dos seus autores. - Praça F.C., associação com sede na rua das Belas Artes, gerida por artistas plásticos. Já organizaram 2 ou 3 festivais. O último intitulava-se "Festival Comum" e contava com a co-organização de duas associações semelhantes (cujas sedes ficam em clubes desportivos). - Mira Fórum e o Espaço Mira, um espaço multiusos e uma galeria dedicada à fotografia , mas que ainda há umas semanas albergou um dos melhores festivais de

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música improvisada - NO MIRA IMPROV FESTIVAL. Este projeto que recuperou dois

dos onze antigos armazéns na estreita Rua de Miraflor, uns armazéns, cheios de história mas aparentemente vazios de futuro, é uma lança na paisagem de abandono de Campanhã, e um dos primeiros sinais de uma reabilitação urbana que tarda a chegar a esta parte da cidade, como se escreveu no jornal Público. - Centro de produção de ópera na ESMAE, os concertos Promenade do Coliseu, o grupo de teatro Palmilha Dentada e os serviços educativos do teatro do Campo Alegre. - Concerts4good, festival que alimenta o projecto Música para todos, o Concurso

Internacional de St Cecília, o Curso de Musica de Silva Monteiro de onde, pelo que conheço, têm saído pianistas com uma carreira internacional de referência, e a Orquestra Juvenil da Bonjóia onde a música, para além de elemento integrador, é assumida como uma forma de expressão que desenvolve humana e culturalmente o indivíduo.

- Edifício Axa, um espaço de criação e intervenção urbana, que, com o quarteirão Miguel Bombarda, as galerias de arte, as lojas de moda, design, decoração e música, e os restaurantes, dão uma alma contemporânea ao coração da cidade. - World of Discoveries, um Museu Interativo e Parque Temático que se propõe reconstruir a fantástica odisseia dos navegadores portugueses, cruzando oceanos à descoberta de um mundo desconhecido. Um projeto da Douro que realiza cruzeiros no Douro património da humanidade.

- E ainda, já numa perspetiva de região, a escola de música de Vilar do Paraíso e o seu curso de teatro musical que lança gente para o circuito internacional, e o projeto do Teatro Experimental do Porto, agora sediado em Gaia, que atualmente é dirigido por um dos encenadores mais promissores do país, o Gonçalo Amorim que o TEP conseguiu fazer voltar ao Porto. No domínio do teatro musical é ainda de referir a Elenco Produções, uma produtora vocacionada para a produção de teatro musical em português, e que tem a sua origem em elementos saídos da escola de Vilar do Paraíso. Os Teatros e a Movida do Porto Uma das características importantes da movida atualmente existente no Porto é que ela está no coração da cidade, contribuindo para contrariar a tendência para a desertificação que tem sido dominante nos centros históricos, com todos os problemas daí decorrentes tanto ao nível da degradação física, como do crescimento da ideia de que são espaços perigosos. E a verdade é que temos no coração da cidade um conjunto extremamente interessante de salas de espetáculos que podem ser potenciadas para dar vida e movimento à cidade e ser um fator de atração: o Coliseu, o Rivoli, o Batalha, o Sá da Bandeira, o São João, o Carlos Alberto, o Helena Sá e Costa, o Sá da Bandeira, o Passos Manuel, o Auditório da Academia Contemporânea do Espetáculo e o futuro Teatro do Bolhão, São Bento da Vitória, e, mesmo, o Trindade onde há muito pouco tempo se realizou uma mostra de cinema alternativo. E aqui poderemos ter como referência a forma como os teatros da Broadway são um pólo de atração em Nova Iorque, mostrando-nos, ainda que com outras características, como estes teatros/salas, mantendo a sua especificidade e marca, poderiam trabalhar em conjunto

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no sentido de tornar o Porto uma cidade cada vez mais atrativa e onde dê um prazer imenso viver e/ou visitar em estadias cada vez mais longas. O milagre da sobrevivência do Sá da Bandeira, uma sala com cerca de mil lugares e que, mesmo degradada, continua a ser o espaço no Porto para os espetáculos de grande público, as capacidades únicas do Mosteiro de São Bento da Vitória como a sala para projetos que necessitam de espaços amplos onde se possam criar múltiplas relações com o público, e de que os Fura del Baus são um exemplo, o Helena Sá e Costa que deveria cada vez mais ser o espaço dos projetos dos artistas a sair das escolas, de mostra dos trabalhos de quem inicia o seu percurso de vida no mundo do trabalho, o Carlos Alberto o teatro das dramaturgias contemporâneas, uma programação que existe em todas as grandes cidades do mundo e que traz para a programação artística do Porto uma dimensão praticamente ausente em Portugal, a possibilidade de podermos ver em Portugal os grandes textos que estão em cena nas outras capitais, textos ou espetáculos que muitas vezes são também grandes êxitos de público, o São João deveria ser naturalmente o teatro da grande dramaturgia de referência, tanto portuguesa, como internacional. Por isso uma movida que se queira espaço de afirmação da diferença de uma cidade ou região, tem que ter uma oferta diversificada que seja capaz de, simultaneamente, responder às expectativas: - dos clientes dos muitos hotéis da baixa que querem simplesmente sentir a vivência e a energia do Porto, tal como acontece quando se sai numa cidade com uma dinâmica única como é Buenos Aires. E na verdade há um conjunto de novos hotéis que são também elementos de renovação e vivificação do coração do Porto, como o Intercontinental no Palácio das Cardosas, o B&B no antigo edíficio do Águia d´Ouro, o Teatro Hotel mesmo ao lado da Sá da Bandeira e que nasce no mesmo lugar onde, em 1859, se inaugurava o Teatro Baquet, e que pretende recriar esse ambiente ímpar, requintado e boémio do Teatro, e o futuro hotel que, em 2015, nascerá nesse espaço tão mítico da história do Porto como foi e é a Brasileira. - daqueles que depois de terem assistido a um concerto ou uma ópera no Coliseu, a um espetáculo de dança ou um musical no Rivoli, a uma comédia no Sá da Bandeira, a um grande clássico no Teatro do São João, a um festival ou mostra de cinema no Batalha ou no Trindade, a um espetáculo mais contemporâneo e experimental produzido pelos jovens criadores no Helena Sá e Costa, uma história da dramaturgia contemporânea no Carlos Alberto, a um espetáculo total tipo Fura del Baus ou Théâtre du Soleil no Convento de São Bento da Vitória, queira ir para um espaço de tertúlia, como, nos finais dos anos sessenta, nos juntávamos para conviver e comer um pratinho de dobrada no Leal, ali perto do Sá da Bandeira

Falamos desta malha de teatros e hotéis porque, vistos duma forma integrada, podem, ao lado da dinâmica do quarteirão Miguel Bombarda, com as galerias de arte, as lojas de moda, design, decoração e música, os restaurantes, e da atividade experimental do edifício Axa, contribuir decisivamente para dar uma outra vida e movimento à cidade e serem um fator de atração. De facto, partindo do passeio dos Clérigos, podem definir-se estratégias de forma a que este projeto de animação urbana atravesse a Avenida dos Aliados à Praça da Liberdade, e se estenda a Santa Catarina e à Praça da Batalha. E aqui o Rivoli pode e deve ter, na perspetiva da autarquia, um papel de âncora para se pensar e atuar duma forma integrada a animação/dinamização da Baixa. Um trabalho que tem de ser feito com o apoio duma equipa multidisciplinar que integre arquitetos, urbanistas, sociólogos, especialistas da animação urbana, etc., e que se pode articular ou ser parte da operação Porto Património Coletivo, um projeto da Porto Lazer, que se prevê, segundo uma notícia

que a Lusa divulgou, que nos próximos dois anos seja desenvolvido no centro histórico do Porto Património Mundial, considerado território privilegiado na convergência de

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oportunidades de criação de interfaces entre o meio criativo, o meio empresarial e a

população em geral.

Que Fazer com Estes Teatros ? É no interior de um projeto global de afirmação da cidade e da região, e não como estruturas isoladas programadas segundo interesses particulares, que temos de entender o papel dos teatros Rivoli e Campo Alegre, com a consciência de que cada espaço deverá ter uma marca e uma identidade própria, numa dimensão que seja, simultaneamente, municipal, regional e internacional. É aqui, na definição da marca e da identidade/missão de cada teatro, que tudo se ganha ou se perde, principalmente num país onde muita da programação dos teatros públicos tem praticamente a mesma matriz, mais preocupada em servir os programadores e os artistas que em cumprir a sua missão de teatro público. E penso que todos nós temos consciência que é a identidade e a especificidade de um projeto que lhe dá a capacidade de fazer a diferença. Para encontrar os eixos estruturantes do que deve ser a matriz e a missão de cada teatro, escolhi cinco referências internacionais, um festival e quatro criadores, cujas ideias e práticas nos ajudam a perceber o potencial que hoje pode ter um espaço público como um teatro. Naturalmente que a escolha destas referências não é inocente, elas ajudaram-me a alicerçar a ideia dum teatro como Palco do Mundo, o

lugar da invenção do humano como diz Harold Bloom, um teatro onde cada um tem possibilidade de se afirmar duma forma global e as culturas, os olhares e as ideias se cruzam, conflituam e se contaminam, criando aquilo a que Peter Brook chama a terceira cultura, a cultura do futuro. Uma prática teatral que, para além de ser um espaço privilegiado para a mestiçagem das ideias e da criação de outros/novos pontos de vista e de sínteses, seja também um instrumento por excelência para a comunicação das novas ideias e dos desafios com que hoje esta Terra Pátria se confronta. O Teatro no Cruzamento dos Mundos O Festival Internacional de Teatro de Avignon que, ao longo destes últimos anos se tem vindo a transformar numa plataforma de reflexão sobre a Europa e a cultura, assumiu-se desde 2004 como um pólo de referência na definição e concretização de uma política cultural europeia, como um espaço de criação de produtos artísticos que contribuam para a construção de uma Europa cultural. Escolhendo em cada ano programadores de diferentes proveniências, com a missão de programar o Festival a partir do seu olhar sobre a Europa, tornou-se um espaço de debate, confronto, revelação das diferentes ideias e projetos, num espaço privilegiado de construção de pontes e de lançamento de projetos conjuntos entre criadores de diferentes países e com diferentes formas de pensar e ver a Europa. Simon McBurney, diretor da companhia Complicite e artista associado do Festival de Avignon em 2012, escolheu o teatro porque é o melhor meio que encontrou para se questionar acerca do que não compreende – seja na vida, nos comportamentos humanos, no funcionamento do cérebro, mas também na sociedade, na política, na história e mesmo na pré-história. Para ele o teatro deve ser o ponto de encontro entre um artesão tradicional da cena e as novas técnicas mais sofisticadas, para que aconteça uma polifonia combinando as palavras, as imagens, a música, as ideias e as histórias, ao mesmo tempo que oferece aos atores um verdadeiro espaço de liberdade. Uma polifonia ao serviço do texto e da narrativa convergindo para um objetivo, um ponto : a criação duma emoção que só o teatro pode fazer nascer. Como ele diz, o que é formidável com o teatro é que tudo aí é permitido, é uma arte ladrões, mendigos e bandidos pois podemos roubar tudo o que quisermos: as mais belas coisas do mundo, as ideias mais complexas, nada está fora do nosso alcance. Simon

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McBurney compreendeu-o e é por isso que a Complicite, a sua companhia de teatro,

ignora as fronteiras e atravessa-as sem papéis oficiais, única forma de ter uma visão do mundo, uma visão que reúne arte e política, mas que tenta também revelar as múltiplas camadas de significação que coexistem em tudo o que em cada instante nos rodeia. Peter Brook criou um centro internacional com gente vinda de muitos países e culturas, com diferentes olhares sobre o mundo, o que lhe permitiu dar às suas produções uma dimensão múltipla, onde se cruzam diferentes perspetivas e visões sobre as problemáticas que aborda. Um trabalho que aliou a perspetiva multi local à perspetiva multidisciplinar que, para todos nós, é hoje uma evidência, tornando efetivamento o lugar do teatro num espaço de cruzamento de mundos, de mestiçagem e emergência de novas ideias, em suma, de invenção de futuros. Robert Lepage e Robert Wilson construiram os seus espaços como lugares de cruzamento e encontro, tanto no domínio artístico, como ao nível do pensamento, troca e confronto de ideias. Para Bob Wilson o centro que fundou em Long Island, Nova Iorque, é um lugar de encontro onde criadores de todas as disciplinas (teatro, dança, música, escultura, pintura, filme, vídeo, etc...) trabalham em conjunto sobre projectos artísticos com gente vinda doutras disciplinas como a antropologia, a matemática ou outras. Para Lepage a concepção do seu centro é muito parecida, ele quer que esse centro permita a pessoas de diferentes disciplinas trabalharem em conjunto, referindo que é um pouco o espírito da Renascença que tenta instalar com o seu espaço, um espaço que, apesar de poder ser um lugar extraordinário de produção, deve ter como vocação primeira a pesquisa, e onde as produções serão sempre o resultado dessa pesquisa. É significativo que no espaço de La Caserne, um antigo quartel dos bombeiros, Lepage tenha transformado a torre do edifício, que servia para os bombeiros vigiarem e observarem os incêndios, numa espécie de centro do conhecimento onde, para além da existência de uma biblioteca, se encontram e cruzam especialistas das diferentes áreas disciplinares. O Rivoli e o Campo Alegre como Plataformas de Criação e Invenção de Futuros Neste quadro que, penso, mostra a riqueza e todo o potencial que hoje tem a cidade do Porto, onde a dimensão cultural tem uma importância estratégica, os teatros Rivoli e Campo Alegre têm que ser pensados como estruturas âncoras da estratégia e do projeto de desenvolvimento e afirmação da cidade. Naturalmente, como já o dissemos, cada um dos teatros deve ter uma missão e uma identidade própria, que devem decorrer da sua situaçao geográfica, do contexto em que se encontram e da sua história. O Campo Alegre, porque muito ligado a um campus universitário e já com produções significativas no cruzamento do teatro com a ciência, deve ter uma dimensão mais experimental e de laboratório, muito inspirada num modelo que cruze o projeto do espaço La Caserne de Robert Lepage, com a perspetiva do Festival de

Avignon. O Rivoli, pela sua história e por estar situado no coração da movida da cidade, tem que necessariamente estar vocacionado para o grande público, com uma programação capaz de ser ao mesmo tempo experimental e popular. De forma a que haja uma articulação e complementaridade efetiva entre os dois teatros, deveria ser constituída uma equipa consultiva com especialistas das diferentes áreas/disciplinas do conhecimento, a dimensão multidisciplinar, e com ligações permanentes com criadores ou estruturas existentes nas várias partes do mundo em que se fala e pensa em português, a dimensão multi-local, de forma a perceber quais as temáticas em que é importante apostar e experimentar, garantindo que as programações de cada um dos espaços fossem instrumentos de leitura dos mundos e de construção de pontes entre as fronteiras e os muros com que hoje nos tentam dividir e separar, e, ao mesmo tempo, ser sensor, aquela figura de que falava Diogo Vasconcelos, capaz de antecipar as grandes tendências que, neste momento de grande crise e transformação, atravessam o mundo e antecipam as grandes

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mudanças que aí vêm. De forma a contribuir para romper com a lógica duma programação pensada para um pequeno período de tempo, o que leva a que os espetáculos passem fugazmente pelos teatros, não chegando a perceber-se qual o seu potencial ao nível da atração dos públicos, um espetáculo com grande exito no Rivoli poderia, para não interromper bruscamente a sua carreira, nem impedir a concretização da restante programação, passar para o Campo Alegre, o que permitiria potenciar o excelente palco deste teatro também para produções de grande público. Para mim o Rivoli deve ser o teatro das grandes narrativas, da história do Porto e dos desafios internacionais com que a cidade hoje se confronta. Uma dimensão que deveria ser operacionalizada com a realização de projetos ponte em co-produção com parceiros internacionais, nomeadamente ao nível do universo de língua portuguesa ou ibero-americano, de que me parecem ser exemplos paradigmáticos projetos já concretizados como: - Tanto amor desperdiçado de Shakespeare, uma co-produção entre o Teatro Nacional

D. Maria II e a Comédie de Reims, falada em português e francês e dirigido pelo encenador Emmanuel Demarcy-Mota, um luso-descendente que é hoje diretor do Théâtre de la Ville em Paris. Este espetáculo circulou pela Europa e esteve ligado ao arranque do Festival Internacional de Teatro de Nápoles e ao projeto duma Companhia Europeia de Teatro, tendo sido claramente um espetáculo âncora dum projeto de reflexão e questionamento da Europa a partir das artes e da cultura; - A minha mulher, a primeira peça vencedora do prémio de dramaturgia António José

da Silva, um prémio luso brasileiro que tinha como parceiro a DGARTES, o TNDMII, o Instituto Camões e a FUNARTE do Brasil, e permitiu organizar uma equipa com criativos dos dois países e circular tanto em Portugal como no Brasil, criando as condições para futuras colaborações e cumplicidades; - A filha rebelde, a história da Annie Silva Pais, a filha do diretor da Pide, que vai para Cuba com o marido que é diplomata e abandona-o para ficar a trabalhar com o regime

cubano. Uma história que pela sua riqueza encantaria os grandes teatros do mundo e que foi dirigida por uma equipa de criativos espanhóis, coordenados pela encenadora Helena Pimenta, filha de um português, atualmente diretora do Teatro Clássico de Madrid. Esta produção poderia ter sido um factor de ligação com a realidade e os criadores cubanos; E um projeto que esteve em preparação, a Nação Crioula, a partir do romence do José

Eduardo Agualusa, e que juntaria criadores de Portugal, Angola e Baía no Brasil. Estes são alguns, entre muitos, dos projetos que poderiam ajudar a pensar um Rivoli enquanto espaço plataforma de criadores e projetos internacionais, a que poderámos acrescentar temáticas como as do General Humberto Delgado e da chegada do comboio da liberdade à estação de São Bento e dos momentos eufóricos e de massas que lhe seguiram, a peça o Motim da autoria de Miguel Franco, sobre a revolta dos produtores de vinho do Porto, que foi proibida pela censura depois da sua estreia pela companhia Robles Monteiro/ Amélia Rey Colaço, ou um projeto atualmente em preparação no Porto sobre o ano de 1415, comemorando os 600 anos do início dos descobrimentos, uma ideia de um dos encenadores mais imaginativos do teatro português como é o José Carretas e da Panmixia, um projeto que aliado com o World of Discoveries, o museu interativo e parque temático do Porto que se propõe reconstruir a fantástica odisseia dos navegadores portugueses, pode tornar a cidade a líder da reflexão sobre estas temáticas que foram fundadoras ou as percursoras da globalização, como o afirmam os livros Portugal a primeira aldeia global de Martin Page, e Portugal pioneiro da globalização de Jorge Nascimentos Rodrigues e Tessaleno Devezas. Projetos que se deveriam articular com produções capazes de potenciar os talentos saídos do curso de teatro musical da escola de música de Vilar do Paraíso, porque não levar à cena Mingos e Samurais, do Rui Veloso e do Carlos

Tê, ou uma trama à volta do personagem do Chico Fininho, o que seria uma forma de reparar o erro que foi cometido quando se concessionou o Rivoli às produções La

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Féria, ignorando completamente esse potencial único. que é a formação em teatro musical de Vilar do Paraíso e o facto de no Porto viver um dos maiores letristas de musicais e de canções que é o Carlos Tê e do Rui Velosos ser e gostar muito do Porto.. Em termos de grande espetáculo o Rivoli deveria ter nas suas produções uma componente tecnológica inovadora que deveria servir e intervir nos diferentes espetáculos, o que facilmente se pode conseguir com a mobilização do conhecimento e da experiência existente. Para além destas dimensões, que mais não pretendem ser do que meros exemplos para ajudar a visualizar melhor o que proponho, é importante referir que muita gente me falou da programação de dança que fez circular pelo Rivoli grandes criadores internacionais e que teve um grande impacto. No domínio do conhecimento, e sem querer minimamente ultrapassar as ideias ou propostas que poderiam sair da contribuição de cientistas tão brilhantes do Porto como, entre muitos, os Professores Sobrinho Simões ou Alexandre Quintanilha, o Campo Alegre deveria ser claramente o espaço do conhecimento, com uma programação onde pudéssemos ver mais espetáculos do Carl Djerassi, o cientista autor do Oxigénio levado à cena pelo Seiva Trupe e do Este espermetozóide é meu, sobre a fecundação in vitro, produzido no Teatro da Trindade, ou mais espetáculos sobre as questões do cérebro como foram a ópera de Nyman, O homem que confundiu a mulher com um chapéu, a partir de uma texto de Oliver Sacks que Brook

também adaptou para o teatro, ou a Dança do universo, do brasileiro Oswaldo Mendes, sobre as descobertas que fizeram avançar o mundo, ou o encontro de artistas, cientistas ou filósofos, como aconteceu com Picasso e Einstein, uma peça de Steve Martin.sobre um encontro imaginário entre Picasso e Einstein que o Trindade levou à cena e fez circular por todo o país, ou os musicais Broadway de câmara, O último tango de Fermat e os Sonhos de Einstein, de Joshua Rosemblun. Na verdade

há hoje todo um conjunto de testos e de temas que podem mobilizar todo um conjunto de pessoas, e o universo de potenciais espectadores que se interessam por estas temáticas é já significativo, e é um domínio que começa a interessar criadores de referência da cena artística internacional. Para além da programação regular, o Campo Alegre deveria ter uma dimensão experimental, de laboratório, onde se pensassem e desenvolvessem as temáticas e se testasse o como e se seria possível construir uma história capaz de ter impacto público, onde se experimentassem as opções para sua concretização no palco, em suma, construindo maquetes ou protótipos que nos permitissem perceber como os potenciais espectadores reagiriam a essas propostas. E aqui a preocupação da rentabilidade existe, não na medida de conquistar grandes públicos, mas sim na dimensão da descoberta de novas ideias e temáticas, e/ou na experimentação das novas tecnologias do espetáculo, onde a multimédia tem hoje um papel importantíssimo, e a sua aplicação nos espetáculos, tornando o Porto num dos espaços de referência das tecnologias multimédia, como já aconteceu com o desafio que já referimos da produtora Mirage e do projeto Major Alvega.

Em Jeito de Conclusão Não sei se consegui demonstrar como, nas condições em que foi lançado, o concurso para programador do Rivoli deve ser anulado de imediato. Espero que sim, pois não é só o Porto e a capacidade de afirmação dos seus criadores que está em causa, mas toda uma dimensão ética sobre o serviço público que é necessário voltar a instituir. E esses foram desafios a que o Porto sempre soube dar resposta. 16 de Junho de 2014 Carlos Manuel Branco Nogueira Fragateiro