O ACÓRDÃO “STRONG SEGURANÇA”: QUANDO PERGUNTAR OFENDE!

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Direito Administrativo da União Europeia O ACÓRDÃO “STRONG SEGURANÇA”: QUANDO PERGUNTAR OFENDE! Comentário de jurisprudência Ac. do Tribunal de Justiça, de 17 de março de 2011 (Processo C-95/10) Pedro Monteiro 1 Sumário: neste estudo analisa-se o Acórdão do Tribunal de Justiça proferido no processo C-95/10 que, em sede reenvio prejudicial do Supremo Tribunal de Administrativo português, se pronunciou sobre a inaplicabilidade do artigo 47.º n.º 2 da Diretiva 2004/18/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, aos contratos de serviços incluídos no Anexo II B daquela Diretiva. No confronto do Acórdão do Tribunal de Justiça com o Acórdão do tribunal de reenvio regista-se o desacerto da decisão deste ultimo no caso concreto, desacerto esse que se deve à não distinção entre a reserva de Direito da União e reserva de Direito do Estado-membro, precipitando uma decisão injusta à luz do Direito nacional, embora alinhada com o Direito Europeu dos Contratos Públicos. Palavras-chave: capacidade económica e financeira; contratos de serviços; Código dos Contratos Públicos (CCP); efeito direto; reenvio prejudicial; reserva de Direito do Estado-membro; reserva de Direito da União; Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE); Tratado da União Europeia (TUE); Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE); Tribunal de Justiça (TJ). Conteúdo: 1. Introdução e sequência; 2. O litígio; 3. Contratos de serviços à luz da diretiva 2004/18/CE; 3.1 Serviços a duas velocidades: fundamento; 3.2 Capacidade económica e financeira dos candidatos: recurso a terceiros; 4. Efeito direto; 4.1 Reserva de Direito da União vs. Reserva de Direito do Estado- membro: os contratos de serviços e o CCP; 4.2 Efeito direto e analogia: o interesse público como critério. 1 O presente trabalho tem como propósito servir de base ao juízo de avaliação a emitir na sequência da frequência da unidade curricular denominada “Direito Administrativo da União Europeia”, que integra o ciclo de estudos tendente à concessão de grau de mestre em Direito da União Europeia pela Escola de Direito da Universidade do Minho. * Aluno n.º 22474

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Direito Administrativo da

União Europeia

O ACÓRDÃO “STRONG SEGURANÇA”: QUANDO PERGUNTAR

OFENDE!

Comentário de jurisprudência

Ac. do Tribunal de Justiça, de 17 de março de 2011

(Processo C-95/10)

Pedro Monteiro1

Sumário: neste estudo analisa-se o Acórdão do Tribunal de Justiça proferido no processo C-95/10 que,

em sede reenvio prejudicial do Supremo Tribunal de Administrativo português, se pronunciou sobre a

inaplicabilidade do artigo 47.º n.º 2 da Diretiva 2004/18/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO

CONSELHO de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos

de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de

serviços, aos contratos de serviços incluídos no Anexo II B daquela Diretiva. No confronto do Acórdão

do Tribunal de Justiça com o Acórdão do tribunal de reenvio regista-se o desacerto da decisão deste

ultimo no caso concreto, desacerto esse que se deve à não distinção entre a reserva de Direito da União e

reserva de Direito do Estado-membro, precipitando uma decisão injusta à luz do Direito nacional, embora

alinhada com o Direito Europeu dos Contratos Públicos.

Palavras-chave: capacidade económica e financeira; contratos de serviços; Código dos Contratos

Públicos (CCP); efeito direto; reenvio prejudicial; reserva de Direito do Estado-membro; reserva de

Direito da União; Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE); Tratado da União Europeia

(TUE); Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE); Tribunal de Justiça (TJ).

Conteúdo: 1. Introdução e sequência; 2. O litígio; 3. Contratos de serviços à luz da diretiva 2004/18/CE;

3.1 Serviços a duas velocidades: fundamento; 3.2 Capacidade económica e financeira dos candidatos:

recurso a terceiros; 4. Efeito direto; 4.1 Reserva de Direito da União vs. Reserva de Direito do Estado-

membro: os contratos de serviços e o CCP; 4.2 Efeito direto e analogia: o interesse público como critério.

1 O presente trabalho tem como propósito servir de base ao juízo de avaliação a emitir na sequência da frequência da unidade

curricular denominada “Direito Administrativo da União Europeia”, que integra o ciclo de estudos tendente à concessão de grau

de mestre em Direito da União Europeia pela Escola de Direito da Universidade do Minho.

* Aluno n.º 22474

1. Introdução e sequência

A história da integração europeia é uma história de sentimentos entre aqueles que a

sonham como um modelo de cooperação intergovernamental e aqueles que defendem

um modelo federal. Unionistas e federalistas percorreram o seu caminho com destinos

certos distintos, embora assentes em bases comuns: o mercado comum europeu.2 Nessa

história de integração o mercado interno é o bem jurídico fundamental3 em torno do

qual gravitam Estados e órgãos da União Europeia, apoiados numa super-estrutura

jurídica assente em Tratados e um TJUE garante daquela integração. A função deste foi

e é de capital importância, tornando-se, tal como refere JUERGEN SCHWARZE,

“graças a uma interpretação integracionista sistemática dos textos jurídicos dos

Tratados, a “má consciência” infatigável de uma vontade política de integração (…).

Transformou as visões contidas no preâmbulo do Tratado e suas disposições

preliminares em fontes de direito (…)”.4 É neste contexto, isto é, pressupondo este

contexto, que o reenvio prejudicial (artigo 267.º do TFUE) ganha dimensão e a função

do TJUE deve ser qualificada como de integração.5 O reenvio prejudicial é a correia de

transmissão que liga os tribunais dos Estados-membros ao TJUE de forma a assegurar

que o processo de integração decorra de forma homogénea em toda a União.6 O reenvio

2 Sobre a história da integração europeia, veja-se SILVA, ANTÓNIO MARTINS DA, História

da Unificação Europeia – A Integração Comunitária (1945 – 2010), Imprensa

da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2010. 3 O Tratado de Lisboa substituiu a expressão “mercado comum” por “mercado interno”. Manuel Lopes

Porto refere-se ao “mercado comum” como aquele que se restringe à livre circulação dos fatores

produtivos e ao “mercado interno” ou único como aquele onde não há barreiras alfandegárias (Apud

GORJÃO-HENRIQUES, MIGUEL, Direito da União, Almedina, 2010, 6.ª edição, p.

526/527). Num modelo de integração por fases, tal como foi desenvolvido pelos economistas,

aquela designação de “mercado interno”, com a abolição de direitos aduaneiros (ou barreiras

alfandegárias), é designada como zona de comércio livre (Veja-se PAIS, SOFIA OLIVEIRA,

Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia, (coord. Sofia Oliveira

Pais) Uma abordagem Jurisprudencial, Almedina, 2012, 2.ª Edição, p. 276). 4 Apud VIANA, CLÁUDIA, Os princípios comunitários na contratação pública,

Coimbra Editora, 2007, p. 105. 5 O Tribunal de Justiça da União Europeia inclui o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral e Tribunais

especializados, nos termos do artigo 19.º do TUE. 6 E é por ser assim, que a adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos Homem é tão

difícil. Aderir àquela Convenção significa admitir a jurisdição de um outro Tribunal, o Tribunal Europeu

dos Direitos do Homem cujas decisões têm efeito no processo de integração. Sobre o problema, veja-se

QUADROS, FAUSTO DE, A difícil adesão da União Europeia à Convenção

Europeia dos Direitos do Homem, Estudos em Homenagem ao Professor

Doutor Jorge Miranda, Vol. V, Coimbra Editora, 2012, p. 87 e ss.

Direito Administrativo da

União Europeia

segmenta-se em reenvio de validade e em reenvio de interpretação: naquele aprecia-se a

conformidade das normas da União, qualquer que seja a sua forma, com os Tratados;

neste sugere-se o sentido das normas contidas nos Tratados ou nos atos jurídicos

derivados.7 8

O que vem de ser dito constitui a chave de leitura da jurisprudência do TJUE,

compreendendo-se a função jurisdicional como a concretização dos objetivos

expressamente previstos no artigo 3.º do TUE. É neste sentido que deve ser lido o

Acórdão do TJ, de 17 de março de 2011 (Processo C-95/10) e em relação ao qual se

pretende, sem pretensões de fazer doutrina, tecer um comentário. Não um comentário

isolado, não, mas sim um comentário integrado com a decisão do tribunal de reenvio,

neste caso concreto, o Supremo Tribunal Administrativo português que, no âmbito de

um litígio que lhe foi submetido, questionou o TJ sobre a interpretação a dar ao artigo

47.º n.º 2 da Diretiva 2004/18/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO

CONSELHO de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de

adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de

fornecimento e dos contratos públicos de serviços. Seguir-se-á a descrição do litígio e a

exposição das questões relevantes: a noção de contratos de serviços à luz da Diretiva

2004/18/CE; o âmbito de aplicação desta Diretiva aos contratos de serviços; o recurso a

terceiros para demonstração da capacidade económica e financeira dos operadores

económicos em concursos públicos e o princípio do efeito direto. A final

relacionaremos o Acórdão do TJ com a decisão do tribunal de reenvio no sentido de

apurar da existência de uma reserva de Direito da União e de uma reserva de Direito do

7 Veja-se, GORJÃO-HENRIQUES, MIGUEL, Direito da União…, p. 510. e ss.

8 O Tribunal de Justiça não é competente para apreciar a validade dos Tratados e declarou-se

incompetente para interpretar o direito nacional, os atos ainda não adotados pelas instituições e certos

acordos ou convenções (nestes precisos termos, veja-se RIBEIRO, MARIA EUGÉNIA MARTINS

DE NAZARÉ, Tratado de Lisboa, Anotado e Comentado (coord. Manuel Lopes

Porto/Gonçalo Anastácio), Almedina, 2012, p. 960).

Estado-membro em matéria de contratos públicos e concluir pela possibilidade de uma

solução diferente no litígio em questão.

2. O litígio

Por aviso publicado no Jornal Oficial da União Europeia em 15 de julho de 2008, o

Município de Sintra abriu um concurso público internacional para aquisição de serviços

de vigilância e segurança para instalações municipais para os anos de 2009 e 2010. A

Strong Segurança concorreu e apresentou para esse efeito os documentos necessários.

Juntou também uma carta de conforto da sociedade Trivalor (SGPS) SA (a seguir

«Trivalor»), em que esta declara: «Em virtude da relação de domínio total direto entre a

Trivalor e a Strong Segurança (…), a Trivalor é responsável pelas obrigações da

mesma, nos termos do Código das Sociedades Comerciais. Nesse sentido, declaramos

que nos comprometemos a:

– garantir que a Strong Segurança […] detém os meios técnicos e financeiros

indispensáveis para a boa execução das obrigações decorrentes dos concursos;

– indemnizar a Câmara Municipal de Sintra de todos e quaisquer prejuízos

sofridos por qualquer impedimento de boa execução contratual que, ocorrendo

adjudicação, venha a surgir.»

O júri do concurso pronunciou-se inicialmente a favor da adjudicação do contrato à

Strong Segurança, pelo facto de a sua proposta ter obtido a ponderação mais elevada.

Contudo, na sequência da reclamação de uma sociedade concorrente, o júri, alegando

que a Strong Segurança não podia demonstrar a capacidade económica e financeira de

uma sociedade terceira como a Trivalor, voltou atrás na sua decisão e propôs a

adjudicação do contrato à sociedade concorrente reclamante. O Tribunal Administrativo

e Fiscal de Sintra negou provimento ao recurso interposto pela Strong Segurança desta

decisão, por sentença confirmada por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul

de 10 de setembro de 2009. A Strong Segurança interpôs então recurso de revista para o

Supremo Tribunal Administrativo que decidiu suspender a instância e submeter ao TJ as

seguintes questões prejudiciais:

Direito Administrativo da

União Europeia

1) O artigo 47. ° da Diretiva 2004/18/CE, depois de 31 de janeiro de 2006, é

diretamente aplicável na ordem interna no sentido de que confere aos

particulares um direito que estes podem fazer valer contra os órgãos da

Administração portuguesa?

2) Em caso afirmativo, a despeito do disposto no artigo 21. ° da mesma diretiva, o

preceito é aplicável aos contratos que tenham por objeto os serviços referidos no

anexo II B (da Diretiva 2004/18)?

Na apreciação da questão, o TJ, por Acórdão de 17 de março de 2011,9

referiu que: “

(32) A distinção dos regimes aplicáveis aos contratos públicos de serviços em função da

classificação dos serviços, operada pelas regras pertinentes do direito da União, em duas

categorias separadas é corroborada pela jurisprudência do Tribunal de Justiça. (33)

Assim, o Tribunal de Justiça declarou que a classificação dos serviços nos anexos I A e

I B da Diretiva 92/50 (que correspondem, respetivamente, aos anexos II A e II B da

Diretiva 2004/18) é conforme com o sistema instituído por esta diretiva, que prevê uma

aplicação em dois níveis das suas disposições (v., neste sentido, acórdão de 14 de

novembro de 2002, Felix Swoboda, C-411/00, Colet., p. I-10567, n. ° 55). (34) Além

disso, o Tribunal de Justiça declarou, no contexto da Diretiva 92/50, que, quando os

contratos são relativos a serviços abrangidos pelo anexo I B, as entidades adjudicantes

apenas estão sujeitas às obrigações de definir as especificações técnicas com referência

a normas nacionais que transponham normas europeias que devem constar dos

documentos gerais ou contratuais próprios de cada contrato e de enviar ao OPOCE

(Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias) um anúncio a

comunicar os resultados do processo de adjudicação desses contratos (v. acórdão de 13

de novembro de 2007, Comissão/Irlanda, C-507/03, Colet., p. I-9777, n. ° 24). (35)

Com efeito, o Tribunal de Justiça indicou que o legislador da União partiu da presunção

de que os contratos relativos a serviços abrangidos pelo anexo I B da Diretiva 92/50 não

9 Disponível em http://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/ (consultado em 05.02.2013).

têm, a priori, tendo em conta a sua natureza específica, um interesse transfronteiriço

suscetível de justificar que a sua adjudicação se faça na sequência de um processo de

concurso que vise permitir a empresas de outros Estados-Membros tomarem

conhecimento do anúncio de concurso e apresentarem propostas (v., neste sentido,

acórdão Comissão/Irlanda, já referido, n. ° 25). Contudo, o Tribunal de Justiça

considerou que mesmo esses contratos, quando tenham um interesse transfronteiriço

certo, estão sujeitos aos princípios gerais da transparência e da igualdade de tratamento

decorrentes dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE (v. neste sentido, acórdão

Comissão/Irlanda, já referido, n. 26 e 29 a 31). (36) Tendo em conta as considerações

precedentes, há que concluir que o sistema instituído pela Diretiva 2004/18 não cria

diretamente para os Estados-Membros a obrigação de aplicar o artigo 47.°, n.º 2, desta

diretiva também aos contratos públicos de serviços abrangidos pelo seu anexo II B. (40)

Há que salientar, por outro lado, que o princípio da igualdade de tratamento não pode

conduzir à imposição de uma obrigação como a prevista no artigo 47.°, n.º 2, da

Diretiva 2004/18 também quando da adjudicação de contratos de serviços constantes do

anexo II B, apesar da distinção operada pela mesma diretiva. (41) Com efeito, a

inexistência dessa obrigação não acarreta nenhuma discriminação, direta ou indireta,

com base na nacionalidade ou no lugar de estabelecimento. (42) Importa salientar que

uma abordagem tão extensiva da aplicabilidade do princípio da igualdade de tratamento

poderia conduzir à aplicação, aos contratos de serviços abrangidos pelo anexo II B da

Diretiva 2004/18, de outras disposições essenciais da mesma, por exemplo, como

observa o tribunal de reenvio, as disposições que estabelecem os critérios de seleção

qualitativa dos candidatos (artigos 45.° a 52.°) e os critérios de adjudicação dos

contratos (artigos 53.° a 55.°). Com isso, correr-se-ia o risco de privar de efeito útil a

distinção entre os serviços do anexo II A e do anexo II B feita pela Diretiva 2004/18,

bem como a respetiva aplicação em dois níveis, nos termos utilizados pela

jurisprudência do Tribunal de Justiça.”

Na sua decisão, concluiu o TJ que “a Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e

do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de

adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de

fornecimento e dos contratos públicos de serviços, não obriga os Estados-Membros a

aplicar o seu artigo 47.°, n.° 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do

Direito Administrativo da

União Europeia

anexo II B desta última. Contudo, a mesma diretiva não impede os Estados-Membros e,

eventualmente, as entidades adjudicantes de preverem, respetivamente, na sua

legislação e na documentação relativa ao contrato, a sua aplicação.” Na sequência do

Acórdão do TJ, o Supremo Tribunal Administrativo português, por Acórdão de 7 de

junho de 2011, concluiu assim: “(…) esta pronuncia não deixa margem para dúvidas.

Se a diretiva não obriga a aplicar o seu artigo 47.º n.º 2, também aos contratos relativos

a serviços constantes do anexo II B, então, como bem decidiu o acórdão em revista, no

caso concreto, a entidade adjudicante não estava obrigada a considerar as contas

consolidadas da Trivalor para preenchimento do requisito da capacidade financeira da

recorrente (…). Deste modo, não se verifica o alegado erro de julgamento do tribunal

aquo e, por consequência, improcede a alegação da recorrente”.10

3. Contratos de serviços à luz da diretiva 2004/18/CE

Para aqueles que julgam ter a lei um parente romano ficarão desiludidos quando se

confrontam com o Direito Europeu dos Contratos Públicos. Não julguem, portanto, que

será por via interpretativa das declarações negociais que descobrirão a que “tipo”

pertence um contrato com um determinado conteúdo celebrado por uma entidade

adjudicante.11 E assim é, por força da natureza instrumental das regras da contratação

pública.12

Essa natureza “salta à vista” logo do segundo Considerando da Diretiva

2004/18/CE: “A concretização da livre circulação de mercadorias em matéria de

contratos públicos de fornecimento e a concretização da liberdade de estabelecimento e

10

Acórdão proferido no processo 01108/09, disponível em www.dgsi.pt/jsta (consultado em

05.02.2013). 11

Sobre a interpretação dos contratos em geral, veja-se TELES, INOCÊNCIO GALVÃO,

Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Atualizado, Coimbra Editora,

2002, p. 443 e ss. 12

Sobre esta natureza, veja-se VIANA, CLÁUDIA, Os Princípios Comunitários…, p. 117 e

140.

da livre prestação de serviços em matéria de contratos públicos de serviços e de

contratos de empreitada de obras públicas, no que se refere aos contratos celebrados nos

Estados-Membros por conta do Estado, das autarquias locais e regionais e de outros

organismos de direito público exigem, conjuntamente com a eliminação das restrições, a

aplicação de disposições em matéria de coordenação dos procedimentos nacionais para

a adjudicação dos contratos públicos que se baseiam nas regras que regem essas três

liberdades e nos princípios delas resultantes, tais como o princípio da igualdade de

tratamento, de que o princípio da não discriminação não é mais do que uma expressão

particular, e os princípios do reconhecimento mútuo, da proporcionalidade e da

transparência, bem como na concorrência efetiva para a adjudicação dos contratos

públicos.” As regras da contratação concretizam liberdades fundamentais do TFUE,

querendo com isto dizer-se que é esse o principal objetivo em matéria de harmonização

das legislações dos Estados-membros neste domínio. Dito de outra forma, é a existência

do mercado interno, baseado naquelas liberdades, que é preciso garantir. As liberdades

baseiam-se em princípios, sendo que a tutela destes gera uma proteção daquelas. O

princípio da transparência afirma que os elementos essenciais dos contratos devem ser

dados a conhecer a todos os interessados nas peças procedimentais correspondentes. É

este princípio que induz a operacionalidade de um outro – a concorrência – pelo qual na

formação dos contratos deve garantir-se o mais amplo acesso aos procedimentos dos

interessados em contratar, devendo a Administração em cada procedimento consultar o

maior número de interessados, no respeito pelo número mínimo que a lei imponha. A

concorrência garante-se na igualdade entre operadores económicos e implica a

estabilidade das peças procedimentais e das propostas, que devem manter-se imutáveis

até à extinção do procedimento, pois só desta forma se garante a escolha da melhor

proposta, fim último do procedimento e a sua razão de ser. De um ponto de vista

económico, é sempre certo que um maior número de interessados em fornecer bens e

serviços à Administração irá provocar que os benefícios que aqueles esperam obter com

a celebração do contrato se transmitam para esta através da redução de preços.13

13

Aqueles princípios e os resultados que com eles se pretendem atingir são potenciados, na fase

contratual (celebração e execução do contrato), pelo princípio da imparcialidade. Segundo este, o

contraente público deve ponderar algo que se imponha ponderar; não pode ponderar algo que no caso

não é ponderável, sob pena de fazer um juízo arbitrário ou aleatório. Significando-se com isto, que não

pode incluir no contrato prestações que não tenham sido objeto de um procedimento – artigo 99.º do

Direito Administrativo da

União Europeia

As consequências deste sistema são evidentes ao nível da qualificação dos contratos

e, em concreto, à qualificação de um contrato como de serviços. Da Diretiva

2004/18/CE, decorre que “Contratos públicos de serviços” são contratos públicos que

não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de

fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II (artigo 1.º n.º 2

al. d). Assim, a qualificação de um contrato como pertencente a esta categoria, só por

exclusão de partes é que pode ser realizada. Não podendo uma prestação ser qualificada

como de empreitada ou de fornecimento, cairá, inevitavelmente, na categoria de

contratos públicos de serviços, com as consequências que daí advêm. Percebe-se agora a

irrelevância da vontade negocial na recondução de um contrato à categoria de contrato

de serviços. Este tem natureza residual e, por força disso, o seu objeto assume naturezas

tão diversas que vão desde os serviços financeiros à aquisição ou à locação de bens

imóveis, estando uns sujeitos às regras europeias da contratação pública e outros não.14

E quando a celebração de um contrato de serviços envolva elementos constitutivos de

dois ou mais contratos, de serviços ou outros, a Diretiva 2004/18/CE fornece as

coordenadas para a sua correta qualificação.15 16

O caráter residual dos contratos de

CCP – nem modificar um contrato para além daquelas prestações – artigo 313.º n.º 1 do CCP. O que está

dito anteriormente significa tão simplesmente que o objecto material do procedimento administrativo

tem de coincidir com o objeto material do contrato. Devendo este ser cumprido ponto por ponto e em

conformidade com o que foi convencionado – artigo 288.º do CCP. 14

No âmbito dos serviços, os contratos relativos à aquisição ou à locação de bens imóveis ou de direitos

sobre esses bens apresentam características especiais que tornam inadequada a aplicação de regras de

adjudicação de contratos públicos (considerando 24 da Diretiva 2004/18/CE). Concretiza-se esta

intenção normativa no artigo 16.º al. a) daquela Diretiva, ao estatuir-se que estão especificamente

excluídas, a aquisição ou locação, sejam quais forem as respetivas modalidades financeiras, de terrenos,

edifícios existentes ou outros bens imóveis, ou a direitos sobre esses bens; no entanto, são abrangidos

pela presente diretiva os contratos de prestação de serviços financeiros celebrados simultânea, prévia

ou posteriormente ao contrato de aquisição ou de locação, seja qual for a sua forma. 15

Um contrato público que tenha por objeto, simultaneamente, produtos e serviços na aceção do anexo

II, é considerado um «contrato público de serviços» sempre que o valor dos serviços em questão exceda

o dos produtos abrangidos pelo contrato (artigo 1.º n.º 2, al. d), 2.º inciso); um contrato público que

tenha por objecto serviços, na aceção do anexo II, e que, só a título acessório em relação ao objeto

serviços explica-se pela natureza, também residual, da liberdade que está subjacente à

sua celebração. É a concretização do artigo 57.º do TFUE que está em causa: para

efeitos do disposto nos Tratados, consideram-se “serviços” as prestações realizadas

normalmente mediante remuneração, na medida em que não sejam reguladas pelas

disposições relativas à livre circulação de mercadorias, de capitais e de pessoas. A

noção de serviços relaciona-se com o objetivo de facilitar o exercício de quaisquer

atividades profissionais, independentemente da sua natureza, no território dos Estados-

membros da União.17

3.2 Serviços a duas velocidades: fundamento

A diretiva 2004/18/CE diferenciou os serviços, segmentando, na sequência, as

normas aplicáveis a cada um deles. Assim, “para efeitos de aplicação das regras

processuais previstas na presente diretiva e para fins de controlo, a melhor forma de

definir o setor dos serviços consiste em subdividi-los em categorias que correspondem a

posições específicas de uma nomenclatura comum e reuni-los em dois anexos, II A e II

B, consoante o regime a que estão sujeitos. No que se refere aos serviços do anexo II B,

as disposições aplicáveis da presente diretiva em nada afetam a aplicação das regras

comunitárias específicas aos serviços em causa.18

No que diz respeito aos contratos

públicos de serviços, a aplicação integral da presente diretiva deve limitar-se, por um

período transitório, aos contratos em relação aos quais as disposições da diretiva

permitam a plena concretização do potencial de crescimento do comércio

transfronteiras. Os contratos relativos a outros serviços devem ser sujeitos a um controlo

durante esse período transitório, até que seja tomada uma decisão quanto à aplicação principal do contrato, inclua atividades na aceção do anexo I, é considerado um «contrato público de

serviços» (artigo 1.º n.º 2, al. d), 3.º inciso). 16

Sobre a distinção entre contrato de prestação de serviços, contrato de empreitada e contrato de

compra e venda, no Direito Nacional, veja-se MARTINEZ, PEDRO ROMANO, Direito das

Obrigações (parte especial), Contratos – Compra e venda, locação e

empreitada, 2.ª edição, Almedina, p. 326 e ss. 17

Tal como nos revela Sónia Gemas Donário, “a definição de serviços engloba atividades económicas

variadas e que incluem, designadamente, atividades de caráter industrial e artesanal. A título de

exemplo, estão incluídas nas profissões liberais as atividades médicas, de advocacia, e os revisores

oficiais de contas, transportes, turismo, construção, audiovisual, mercados públicos ou atividades

bancárias e de seguros. O Tratado, na sua referência a “serviços”, acentua o exercício de uma atividade

ou prestação em detrimento do exercício de uma profissão” (veja-se DONÁRIO, SÓNIA GEMAS,

Tratado de Lisboa…, p. 340). 18

Considerando 18

Direito Administrativo da

União Europeia

integral da presente diretiva. Convém, a este respeito, definir o mecanismo de realização

desse controlo. Esse mecanismo deve, simultaneamente, permitir que os interessados

tenham acesso às informações pertinentes na matéria.”19

Esta segmentação que já

constava da diretiva 92/50/CE do Conselho, de 18 de junho de 1992, relativa à

coordenação dos processos de adjudicação de contratos públicos de serviços,

permaneceu na nova regulamentação comunitária. A aplicação da diretiva 2004/18/CE a

dois níveis justifica-se não só pela diversidade de serviços, como pela heterogeneidade

das regulamentações nacionais daqueles.20

Os serviços a que se refere o anexo II A

foram identificados como sendo de interesse prioritário do ponto de vista do

desenvolvimento das operações transfronteiriças.21 22

O mesmo não se passa com os

serviços a que se refere o anexo II B. Nestes, tal como referiu o TJ no seu Acórdão de

13.11.2007, “Comissão/Irlanda”, proc. 507/03 e para o qual o Acórdão objeto de análise

remete, “quanto aos serviços abrangidos pelo anexo I B da Diretiva 92/50 e sem

prejuízo de uma avaliação posterior a que se refere o artigo 43.° dessa diretiva, o

legislador comunitário parte da presunção de que os contratos relativos a tais serviços 19

Considerando 19 20

Veja-se, VIANA, CLÁUDIA, Os Princípios Comunitários…, p. 393/395. 21

Serviços de manutenção e de reparação; Serviços de transporte terrestre incluindo os serviços de

veículos blindados e os serviços de mensagens, com exceção do transporte do correio; Serviços de

transporte aéreo: transporte de passageiros e de mercadorias, com exceção do transporte de correio;

Transporte terrestre e aéreo de correio; Serviços de telecomunicações Serviços financeiros: a) serviços

de seguros; b) serviços bancários e de investimento; Serviços informáticos e afins; Serviços de

investigação e desenvolvimento; Serviços de contabilidade, auditoria e de escrituração; Serviços de

estudos de mercado e de sondagens; Serviços de consultadoria em gestão. 22

Esta distinção entre categorias de serviços, para efeitos de aplicação integral das regras de

coordenação de processos de adjudicação está em vias de extinção, tal como consta da proposta de

reforma das diretivas em matéria de Direito Europeu dos Contratos Públicos. Com efeito, “a tradicional

distinção entre os denominados serviços prioritários e não prioritários (serviços «A» e «B») será abolida.

Os resultados da avaliação demonstraram que já não se justifica restringir a plena aplicação da

legislação relativa aos contratos públicos a um grupo limitado de serviços. Contudo, também ficou claro

que o regime de contratação normal não está adaptado aos serviços sociais, que necessitam de um

conjunto específico de regras” (veja-se Proposal for a DIRECTIVE OF THE EUROPEAN

PARLIAMENT AND OF THE COUNCIL on public procurement, consultado em

10.02.2013, http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:52011PC0896:EN:NOT).

não apresentam, a priori, tendo em conta a sua natureza específica, um interesse

transfronteiriço suscetível de justificar que a sua atribuição se faça após um processo de

concurso que seja suposto permitir a empresas de outros Estados-Membros tomarem

conhecimento do anúncio de concurso e apresentarem propostas.”

3.3 Capacidade económica e financeira dos candidatos: recurso a terceiros

O objeto do litígio estava relacionado com a aplicação do 47.º n.º 2 da Diretiva

2004/18/CE, de forma a permitir o reconhecimento da capacidade económica e

financeira do candidato “Strong Segurança”. Este candidato invocou a capacidade da

sociedade-mãe, a sociedade Trivalor SGPS, S.A., para permitir a sua qualificação no

procedimento em questão. Se, num primeiro momento, a entidade adjudicante

reconheceu aquela capacidade, num segundo, por oposição de um outro candidato,

negou-a e exclui-o do concurso. Aquele artigo 47.º n.º 2 permite que um operador

económico pode, se necessário e para um contrato determinado, recorrer às capacidades

de outras entidades, independentemente da natureza jurídica do vínculo que tenha com

elas. Deverá nesse caso provar à entidade adjudicante que disporá efetivamente dos

recursos necessários, por exemplo, através da apresentação do compromisso de tais

entidades nesse sentido. A norma constante do artigo 47.º n.º 2 tem vários precedentes

nas decisões do TJ.23

A possibilidade de os operadores económicos se servirem da

capacidade financeira de terceiros nos concursos a que se apresentam tem,

fundamentalmente, duas justificações que decorrem de outras disposições da Diretiva

2004/18/CE. A primeira é a de que os candidatos ou proponentes que, por força da

legislação do Estado-Membro em que se encontram estabelecidos, estejam habilitados a

fornecer a prestação em questão não podem ser rejeitados pelo simples facto de, ao

abrigo da legislação do Estado-Membro em que se efetua a adjudicação, serem uma

pessoa singular ou uma pessoa coletiva (artigo 4.º n.º 1); a segunda relaciona-se com a

previsão do artigo 4.º n.º 3: os agrupamentos de operadores económicos podem

apresentar propostas ou constituir-se candidatos. Para efeitos de apresentação da

proposta ou do pedido de participação, as entidades adjudicantes não podem exigir que

23

Acórdão “Ballast Nedam”, de 14 de abril, proc. n.º C-389/92; Acórdão “Ballast Nedam”, de 18 de

dezembro de 1997, proc. N.º C-5/97; Acórdão “Holst Itália”, proc. n.º C-176/98, de 2 de dezembro de

1999; Acórdão “Siemens AG”, de 18 de março, proc. N.º C-314/01, citados por VIANA, CLÁUDIA,

Os Princípios Comunitários…, p. 504/505.

Direito Administrativo da

União Europeia

os agrupamentos de operadores económicos adotem uma forma jurídica determinada,

mas o agrupamento selecionado pode ser obrigado a adotar uma forma jurídica

determinada uma vez que lhe seja adjudicado o contrato, na medida em que tal seja

necessário para a boa execução do mesmo. A natureza jurídica dos candidatos ou

proponentes é irrelevante quando se trata de garantir o respeito pelas liberdades

fundamentais do TFUE e, na sequência, a plena realização do mercado interno. O que

interessa é que o candidato ou proponente prove que disporá dos meios necessários para

executar o contrato, o que só demonstra a natureza instrumental das regras do Direito

Europeu dos Contratos Públicos.

4. O efeito direto

Uma das questões submetidas pelo Supremo Tribunal Administrativo português ao

TJ é sobre a natureza da norma que se extrai do artigo 47.º n.º 2 da Diretiva

2004/18/CE, ou seja, trata-se de saber se a mesma tem efeito direto. O TJ, pela resposta

que deu à questão de saber se o artigo 47.º n.º 2 é aplicável aos contratos de serviços

abrangidos pelo anexo II B da Diretiva, considerou prejudicada a resposta àqueloutra

questão. A norma do artigo 47.º n.º 2 tem um efeito direto, ou seja, pode ser invocada

por particulares, por ser clara, precisa, incondicional e suficiente. Isso mesmo

reconheceu o próprio Supremo Tribunal Administrativo, submetendo, no entanto, a

questão da sua natureza ao TJ. O princípio do efeito direto foi reconhecido no Acórdão

Van Gend & Loos, de 5 de fevereiro de 1963,24

com fundamento no facto de que “o

objetivo do Tratado CEE (hoje TFUE), que consiste em instituir um mercado comum

cujo funcionamento diz diretamente respeito aos nacionais da Comunidade, implica que

este Tratado seja mais do que um acordo meramente gerador de obrigações recíprocas

entre os Estados contratantes.” A partir daí estendeu-se este princípio às Diretivas não

24

Proc. n.º 26/62.

transpostas nos prazos previstos (Ac. Van Duyn e Ac. Ratti 25

). Temos assim que as

normas claras e incondicionais dos Tratados – TUE e TFUE – gozam de efeito (direto)

vertical e horizontal, ou seja, podem ser invocadas por um particular contra um Estado-

membro e podem ser invocadas entre particulares, respetivamente. As normas

incondicionais e precisas das Diretivas gozam apenas de efeito vertical, podendo, em

caso de não transposição ou de incorreta transposição, ser invocadas pelos particulares

contra um Estado-membro, mas nunca entre particulares como se concluiu do Acórdão

do Marshall.26

A consequência da admissão do efeito direto das normas da União,

observadas determinadas condições, foi o princípio do primado.27

Com efeito,

reconhecer que uma norma tem efeito direto, implica afastar uma norma (de Direito

Nacional) com esta incompatível. Assim é, pois, “diversamente dos tratados

internacionais ordinários, o Tratado CEE (hoje TFUE) institui uma ordem jurídica

própria que é integrada no sistema jurídico dos Estados-membros a partir da entrada em

vigor do Tratado e que se impõe aos seus órgãos jurisdicionais nacionais. Efetivamente,

ao instituírem uma Comunidade de duração ilimitada, dotada de instituições próprias, de

personalidade, de capacidade jurídica, de capacidade de representação internacional e,

mais especialmente, de poderes reais resultantes de uma limitação de competências ou

de uma transferência de atribuições dos Estados para a Comunidade, estes limitaram,

ainda que em domínios restritos, os seus direitos soberanos e criaram, assim, um corpo

de normas aplicável aos seus nacionais e a si próprios. Esta integração, no direito de

cada Estado-membro, de disposições provenientes de fonte comunitária e, mais

geralmente, os termos e o espírito do Tratado têm por corolário a impossibilidade, para

os Estados, de fazerem prevalecer, sobre uma ordem jurídica por eles aceite numa base

de reciprocidade, uma medida unilateral posterior que não se lhe pode opor. Com efeito,

a eficácia do direito comunitário não pode variar de um Estado para outro em função de

legislação interna posterior, sem colocar em perigo a realização dos objetivos do

Tratado (…) e sem provocar uma discriminação proibida (…).”28

25

Proc. n.º 41/74 e proc. n.º 148/78, respetivamente. 26

Acórdão do TJ, de 26 de fevereiro de 1986, proc. n.º 152/84. 27

Veja-se PAIS, SOFIA OLIVEIRA, Princípios Fundamentais…p. 17. 28

Acórdão do TJ, Flamino Costa/Enel, de 15 de julho de 1964, proc. n.º 6/64.

Direito Administrativo da

União Europeia

Efeito direto e Primado são princípios instrumentais de uma ordem jurídica

autónoma instituída para a realização de determinados fins.29

Ao mesmo tempo que

emana dos Tratados, essa ordem jurídica é reconhecida nos Estados-membros como

parte integrante do seu sistema de normas. Isso mesmo resulta do artigo 8.º n.º 4 da

Constituição Portuguesa, quando aí se afirma, sem qualquer dúvida, que as disposições

dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições,

no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos

definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado

de direito democrático. Quer se “dilua” na ordem jurídica interna, quer seja apenas

“recebido” por esta, o Direito da União mantém-se sempre autónomo do Direito do

Estado-membro, considerando que as suas normas são funcionais, ou seja, a sua função

é dar expressão ao mercado interno e às liberdades que lhe são inerentes, daí que seja

apropriada a distinção entre uma reserva de Direito da União e uma reserva de Direito

do Estado-membro.

4.2 Reserva de Direito da União vs. Reserva de Direito do Estado-

membro: os contratos de serviços e o CCP

A conclusão do TJ no Acórdão objeto do presente estudo é expressão de uma

reserva de Direito da União em matéria de contratos públicos. A não aplicação do artigo

47.º n.º 2 da Diretiva 2004/18/CE aos serviços identificados no anexo II B fundamenta-

se no facto de estes não terem “um interesse transfronteiriço suscetível de justificar que

a sua adjudicação se faça na sequência de um processo de concurso que vise permitir a

empresas de outros Estados-Membros tomarem conhecimento do anúncio de concurso e

29

O efeito direto refere-se à forma de aplicação do Direito da União Europeia; o primado refere-se à

forma de resolver um conflito entre uma norma da União e uma norma do Estado-membro (Veja-se

OTERO, PAULO, Legalidade e Administração Pública – O sentido da

vinculação administrativa à juridicidade, Almedina, 2003, p. 674 e ss).

apresentarem propostas”. A linha de fronteira é assim o interesse transfronteiriço30

que

os contratos constantes do anexo II B (não) despertam e é essa linha que permite

assegurar a distinção entre uma reserva de Direito da União e uma reserva de Direito do

Estado-membro nesta matéria. Não uma reserva de garantia, no sentido mais clássico do

termo,31

mas uma reserva funcional, no sentido já apontado. Essa linha deve manter-se

quando se define o âmbito de aplicação do CCP32

.

O artigo 5.º n.º 4, al. f) do CCP limita a aplicação da parte II do Código33

aos

serviços do anexo II B da Diretiva 2004/18/CE, nos seguintes termos: Sem prejuízo do

disposto no n.º 2 do artigo 11.º, a parte II do presente Código não é igualmente

aplicável à formação dos seguintes contratos: (…) Contratos de aquisição de serviços

que tenham por objeto os serviços de saúde e de carácter social mencionados no anexo

II B da Diretiva n.º 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de

março, bem como os contratos de aquisição de serviços que tenham por objeto os

serviços de educação e formação profissional mencionados no referido anexo, que

confiram certificação escolar ou certificação profissional. A escolha do cocontrante nos

contratos de aquisição de serviços de saúde, de caráter social, de educação e de

formação profissional que confiram certificação escolar ou certificação profissional

30

Questão diferente é o “interesse transfronteiriço certo”. A este “interesse” também se refere o

Acórdão. Neste caso, tratando-se de serviços que não estão abrangidos pela Diretiva, seja por ficaram

aquém do limiar europeu (serviços do anexo II A), seja em função da sua natureza (serviços do anexo II

B), podem, apesar disso, suscitar um interesse transfronteiriço certo, o que justifica o cumprimento,

segundo o Acórdão, dos “princípios gerais da transparência e da igualdade de tratamento decorrentes

dos artigos 49.° TFUE e 56.° TFUE.”. É neste contexto que o artigo 47.º n.º 2 da Diretiva pode ter uma

aplicação geral ou generalizada a todos os serviços. Sobre os contratos públicos com interesse

transfronteiriço certo, veja-se RAIMUNDO, MIGUEL ASSIS, Escolha das entidades a

convidar para o procedimento de ajuste direto à luz do Código dos

Contratos Públicos – Estudos sobre Contratos Públicos, AAFDL, Lisboa,

2012, em especial p. 17 a 22. 31

O sentido clássico coincide com a “reserva de lei” que, historicamente, representou uma defesa do

Parlamento em relação ao Poder Executivo, no sentido de que certas matérias seriam sempre reguladas

por lei, desdobra-se hoje em várias reservas de conteúdo limitadoras da atuação dos órgãos do Estado:

reserva de Direito, reserva de Constituição; reserva de Parlamento e reserva da função legislativa (veja-

se VAZ, MANUEL AFONSO, Lei e Reserva da lei – A causa da lei na Constituição

Portuguesa de 1976, Universidade Católica, Porto, 1992). 32

Aprovado pelo Decreto-lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, sucessivamente alterado pela Lei n.º

59/2008, de 11/09; DL n.º 223/2009, de 11/09; DL n.º 278/2009, de 02/10; Lei n.º 3/2010, de 27/04; DL

n.º 131/2010, de 14/12; DL n.º 40/2011, de 22/03; Lei n.º 64-B/2011, de 30/12 e pelo DL n.º 149/2012,

de 12/07. 33

Que contém as regras procedimentais de escolha do adjudicatário.

Direito Administrativo da

União Europeia

deve obedecer aos artigos 49.º e 78.º, sem prejuízo da aplicação dos princípios que

regem a atividade administrativa (artigos 5.º n.º 5 e 6.º do CCP). O CCP optou, assim,

com a exceção já descrita, por equiparar os contratos de serviços mencionados no anexo

II A, sujeitos à aplicação integral da Diretiva 2004/18/CE, aos serviços mencionados no

anexo II B, sujeitos apenas à aplicação dos seus artigos 23.º e 35.º n.º 4.34

O tratamento

unitário-procedimental dos serviços identificados no anexo II A e II B é justificado por

razões de segurança jurídica.35

A questão que naturalmente se coloca é a de saber como

compatibilizar o tratamento jurídico-procedimental que o CCP dá àqueles serviços, com

a conclusão do Acórdão que agora se analisa. Este é muito claro: o artigo 47.º n.º 2 da

34

Noutros Estados-membros a separação entre serviços constantes do anexo II-A e II-B mantém-se tal

como sugerida na Diretiva 2004/18/CE. É assim em Espanha: Son contratos de servicios aquéllos cuyo

objeto son prestaciones de hacer consistentes en el desarrollo de una actividad o dirigidas a la obtención

de un resultado distinto de una obra o un suministro. A efectos de aplicación de esta Ley, los contratos

de servicios se dividen en las categorías enumeradas en el Anexo II (artigo 10.º do Real Decreto

Legislativo 3/2011, de 14 de noviembre, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley de Contratos

del Setor Público), disponível em http://www.boe.es/boe/dias/2011/11/16/pdfs/BOE-A-2011-

17887.pdf; é assim em Itália: 1. L’aggiudicazione degli appalti aventi per oggetto i servizi elencati

nell’allegato II B è disciplinata esclusivamente dall’articolo 68 (specifiche tecniche), dall’articolo 65

(avviso sui risultati della procedura di affidamento), dall’articolo 225 (avvisi relativi agli appalti

aggiudicati). 2. Gli appalti di servizi elencati nell’allegato II A sono soggetti alle disposizioni del presente

códice (artigo 20.º Codice dei contratti pubblici relativi a lavori, servizi e forniture in attuazione delle

direttive 2004/17/CE e 2004/18/CE Decreto legislativo 12 aprile 2006, n. 163), disponível em

http://www.autoritalavoripubblici.it/portal/public/classic/AttivitaAutorita/NormativeDiSettore/_somma

rioCodice 35

É o preâmbulo do DL n.º 18/2008, que assim o denuncia: “ (…) Na verdade, o CCP envolve não só a

transposição e concretização dessas regras, na medida em que o legislador comunitário reservou para o

legislador nacional, em vários domínios, uma margem de livre decisão (que importa exercer, nuns casos,

em sintonia com a melhor tradição portuguesa e, noutros casos, rompendo com práticas do passado

que se não justificavam ou careciam de ajustamentos), mas também a regulação de todos os

procedimentos que não se encontram abrangidos pelos âmbitos objetivo e subjetivo das diretivas, mas

que não deixam, por isso, de revestir a natureza de procedimentos pré -contratuais públicos — pelo que

devem beneficiar de um tratamento legislativo integrado. Em segundo lugar, o CCP desenha também

uma linha de continuidade relativamente aos principais regimes jurídicos atualmente em vigor (em

especial, os Decretos-Leis n. 59/99, de 2 de março, 197/99, de 8 de junho, e 223/2001, de 9 de agosto,

que têm constituído a matriz da contratação pública portuguesa nos últimos anos), de forma a garantir

segurança e estabilidade jurídica aos operadores económicos (…) ”.

Diretiva 2004/18/CE não se aplica aos serviços identificados no anexo II B, “contudo, a

mesma diretiva não impede os Estados Membros e, eventualmente, as entidades

adjudicantes de preverem, respetivamente, na sua legislação e na documentação relativa

ao contrato, a sua aplicação.” Ressalvando a possibilidade de a entidade adjudicante

fixar uma regra nos documentos do concurso (rectius: no programa do procedimento36

),

a invocação da capacidade económica e financeira de terceiros para efeitos de aferição

da capacidade negocial de gozo de um candidato ou sua aptidão, não está prevista no

CCP com um conteúdo idêntico ao do artigo 47.º n.º 2 da Diretiva, pelo que é

perfeitamente justificável o efeito direito vertical reconhecido (de forma implícita), no

presente Acórdão.37

Agora, o reconhecimento deste efeito limitado aos serviços

identificados no anexo II A, quando, nos termos do CCP, estes serviços, salvas as

exceções previstas, são equiparados aos do anexo II B, põe em causa o princípio da

igualdade. Não o princípio da “igualdade europeia”,38

porquanto os serviços do anexo II

B não têm interesse transfronteiriço, sendo este o critério que permite afirmar uma

reserva de Direito da União nesta matéria, mas o princípio da igualdade previsto no

artigo 5.º n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo. Ou seja, quando uma

entidade adjudicante decide instaurar um procedimento tendente à aquisição de serviços

e estes corresponderem aos indicados no anexo II A, os candidatos poderão prevalecer-

se do efeito direto do artigo 47.º n.º 2 da Diretiva; de contrário, quando uma entidade

adjudicante decida instaurar um procedimento tendente à aquisição de serviços

identificados no anexo II-B, os candidatos não poderão prevalecer-se daquele efeito,

quando, nos termos do mesmo Código, todos os serviços têm idêntica dignidade;

dignidade essa que resulta da harmonização do correspondente regime procedimental;

harmonização que se baseia em razões de segurança jurídica! Daí a analogia como

critério de “erosão” da desigualdade, embora esta conviva mal com princípio da

legalidade…

36

Nos termos do art.º 132.º n.º 4 do CCP, que constitui uma norma de discricionariedade procedimental

administrativa, isto é, uma válvula de escape, de forma a permitir a acomodação das necessidades da

entidade adjudicante à especificidade do mercado em que contrata. 37

É possível a invocação da capacidade de terceiros para demonstração da habilitação e da capacidade

técnica: artigos 81.º n.º 3 e 168.º n.º 4, ambos do CCP. 38

Veja-se VIANA, CLÁUDIA, Os Princípios Comunitários…, p. 114.

Direito Administrativo da

União Europeia

4.3 Efeito direto e analogia: o interesse público como critério

Por contraposição à reserva de Direito da União, a reserva de Direito do Estado-

membro situa-se nas áreas não cobertas por aquela reserva, como demonstra o presente

Acórdão. Neste, a reserva de Direito da União vai até onde começa o interesse

transfronteiriço e recua onde este já não existe. Reserva de Direito e âmbito de

competência das normas são, assim, sinónimos. Reconhecer a reserva de Direito da

União ou do Estado-membro nada mais é do que reconhecer o âmbito de competência

das suas normas. A unificação do regime procedimental feito pelo CCP em matéria de

contratos de serviços não unifica aquelas reservas, porquanto as mesmas realizam

funções diferentes em razão das distintas ordens jurídicas, embora cooperantes, de que

promanam, mas exige a unificação do efeito jurídico. A questão é melindrosa e toca o

nervo fundamental do sistema de contratação pública: o princípio da legalidade.

Sabendo que as regras da contratação pública, pelos interesses que tutelam, são regras

que, quando integradas na ordem jurídica nacional, deverão ser qualificadas como de

Direito Público, todos os atos praticados ao seu abrigo ou tendo aquelas regras como

fundamento, estão sujeito ao princípio de conformidade.39

40

Assim sendo, a lei

39

Com efeito, a “sujeição da Administração à lei não vale com igual intensidade em todas as zonas de

intervenção administrativa; basta recordar o que se disse a propósito do uso do direito privado pela

Administração: também aí as entidades públicas estão sujeitas à lei, mas num sentido negativo, de não

poderem infringir as leis existentes, não podendo por isso criar efeitos jurídicos que estejam em

contradição com as finalidades que lhe cumpre prosseguir. Ou seja, aí, as entidades movem-se num

quadro de liberdade e autonomia, tendo como limite apenas as leis que fixam as suas atribuições

(princípio da especialidade), bem assim como todas as que fixam regras imperativas, insuscetíveis de

serem infringidas; numa palavra, nesse âmbito, a atuação administrativa apenas tem de ser compatível

com a lei (princípio da primazia ou princípio da legalidade enquanto mera exigência, negativa, de

compatibilidade). O mesmo não ocorre quanto à constituição de efeitos jurídicos de direito

administrativo, quanto à criação de relações jurídicas administrativas, em domínios em que a

Administração atua enquanto tal. Nessa hipótese, a atuação administrativa, seja qual for a forma que

revista (contratual ou unilateral), fica sujeita ao princípio da precedência de lei, que pressupõe uma

exigência de conformidade dos efeitos jurídicos criados com um parâmetro superior que tenha previsto

a hipótese de criação desses efeitos e que os tenha modelado em termos mais ou menos densos –

princípio do caráter típico dos efeitos jurídicos administrativos” (veja-se GONÇALVES, PEDRO, O

constituirá o fundamento e o limite de toda a sua atuação, significando-se com isso que,

em regra, não poderão existir lacunas da (na) lei, isto é, o princípio da legalidade

encerra uma regra de exclusão: quando faz corresponder a cada facto jurídico um

procedimento e um ato com determinado conteúdo exclui da sua tutela todos os outros

factos para o qual não haja essa correspondência. É nestes termos que a possibilidade de

analogia em Direito Administrativo passa por indagar se verdadeiramente existe uma

lacuna.41

Tendo-se concluído que a unificação procedimental, operada pelo CCP, de

todas as categorias de serviços (II A e II B), se integra na reserva de Direito do Estado-

membro e que os operadores económicos interessados em oferecer serviços

identificados no anexo II A podem invocar o artigo 47.º n.º 2, porque isso impõe a

reserva de Direito da União, a situação daqueles que pretendam oferecer serviços

identificados no anexo II B só fica plenamente regulada quando o mesmo direito lhe for

reconhecido.42

Não podendo, nos termos do Acórdão do TJ, um particular invocar

diretamente o artigo 47.º n.º 2, deve podê-lo fazer analogicamente. Há, então, que

encontrar o correspondente fundamento.

Na relação entre legalidade, interesse público e Administração, COLAÇO

ANTUNES revela-nos, que “partindo do pressuposto de que na raiz do interesse público

está sempre uma necessidade relevante da sociedade, não parece fantasioso afirmar que

é obrigação da Administração realizar os interesses públicos. A Administração pública

é, assim o instrumento utilizado pela ordem jurídica para a satisfação de tais

interesses”43

. Continua, dizendo, “se, portanto, a Administração encontra, na realização

dos interesses públicos, o escopo da atividade administrativa (GIANNINI), parece

difícil considerar que seja função da Administração proceder à qualificação do interesse

público (primário). Se assim fosse, teríamos de admitir que é a própria Administração a

decidir o objeto da sua atividade, iludindo o seu carácter instrumental em relação à

Contrato Administrativo – Uma Instituição do Direito Administrativo do

Nosso Tempo, Almedina, 2003, p. 94 e 95). 40

Assim, VIANA, CLÁUDIA, Os Princípios Comunitários…, p. 153.

41 Veja-se CAETANO, MARCELO, Manual de Direito Administrativo, Vol. I,

Almedina, Coimbra, 1980, p. 134/137. 42

Veja-se MACHADO, JOÃO BATISTA, Introdução ao Direito e ao Discurso

Legitimador, Almedina, Coimbra, 1990, p. 201. 43

Veja-se ANTUNES, LUIS FILIPE COLAÇO, O Direito Administrativo e a sua

Justiça no início do Século XXI – O esquecimento do interesse público no

direito administrativo, Almedina, 2001, p. 42.

Direito Administrativo da

União Europeia

concreção de um objetivo prévio-constituído. Tal significaria uma relativização

inadmissível do princípio da legalidade, a caminho de uma escolha arbitrário-

discricionária do interesse público pela Administração”44

Com efeito, “se à

Administração compete a prossecução do interesse público normativamente

determinado, não resta outra possibilidade que não seja a de reconhecer que compete ao

legislador e, portanto, à lei, à luz dos critérios constitucionais, avaliar e quantificar, em

primeira mão, a relevância de uma necessidade coletiva intensa como suscetível de

integrar a noção jurídica de interesse público”45

Numa formulação sintética: o interesse

público é normativamente fixado nos pressupostos que habilitam a decisão de agir dos

órgãos da Administração.46

Ora, o procedimento de formação de um contrato público

começa, tal como decorre do art.º 36.º n.º 1 do CCP, com a decisão de contratar. A

decisão de contratar é a consequência da verificação, pela entidade adjudicante, de uma

necessidade pública a satisfazer, ou seja, do interesse público a concretizar, sendo que

tal interesse é comum tanto aos serviços do anexo II A e II B, pelo que deve ser

reconhecida a analogia de situações.

Quando o TJ concluiu que “a Diretiva 2004/18/CE do Parlamento Europeu e do

Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação

dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e

dos contratos públicos de serviços, não obriga os Estados-membros a aplicar o seu

artigo 47. ° n.º 2, também aos contratos relativos a serviços constantes do anexo II B

desta última,” apenas realizou a sua função (jurisdicional) de integração. O Supremo

Tribunal Administrativo português não compreendeu isso e concluiu que “esta

pronúncia não deixa margem para dúvidas”. Pois não, não deixa margem para dúvidas

de que a invocação do artigo 47.º n.º 2 da Diretiva 2004/18/CE integra a reserva de

44

Idem Ibidem. 45

Idem ibidem. 46

Veja-se SOARES, ROGÉRIO EHRHARDT, Direito Administrativo, Coimbra, 1978,

p. 272.

Direito da União, como também não há dúvidas de que a parificação dos serviços que

integram os anexos II A e II B daquela Diretiva, operada pela lex temporis,47

gera uma

lacuna suscetível de ser integrada mediante aplicação analógica daquela norma. A

integração desta lacuna é reserva de Direito do Estado-membro. Não o fazendo, o

Supremo Tribunal Administrativo português violou o princípio da igualdade. A

propósito do reenvio prejudicial: às vezes, perguntar ofende!

13.02.2013

Pedro Monteiro

*Escrito de acordo com a nova ortografia

47

A situação a que se refere o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo é regulada pelo DL n.º

197/99, de 8 de junho, que no seu artigo 191.º n.º 1, 2 e 3, submete ao mesmo regime jurídico todos os

serviços correspondentes àqueles que estão listados nos anexos II A e II B da Diretiva 2004/18/CE e que

constavam dos anexos I A e I B da Diretiva 92/50/CEE da qual fez a transposição.

Direito Administrativo da

União Europeia

Referências bibliográficas

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