MUSEU E CIDADE: o não-lugar do Negro no museu Histórico de Belo Horizonte. Monografia

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Estudos Africanos e Afro-brasileiros MUSEU E CIDADE: o não-lugar do negro como sujeito no Museu Histórico de Belo Horizonte Nila Rodrigues Barbosa Belo Horizonte 2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-graduação em Estudos Africanos e Afro-brasileiros

MUSEU E CIDADE:

o não-lugar do negro como sujeito no Museu Histórico de Belo Horizonte

Nila Rodrigues Barbosa

Belo Horizonte

2007

Nila Rodrigues Barbosa

MUSEU E CIDADE:

o não-lugar no negro como sujeito no Museu Histórico de Belo Horizonte

Monografia apresentada ao Curso de Especialização em

Estudos Africanos e Afro-brasileiros da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais como requisito

parcial para obtenção do título de Especialista em Estudos

Africanos e Afro-brasileiros

Orientador: Prof. Dr. Erisvaldo Pereira dos Santos

Belo Horizonte

2007

RESUMO

O Museu Histórico de Belo Horizonte, inaugurado em 1943, traz na sua origem elementos

que evocam a origem da cidade, na forma como era concebida pelo governo e elites econômicas e

políticas do estado de Minas Gerais. Alguns desses elementos influenciaram tanto a concepção e

a prática inicial do museu que ele tornou-se não-lugar para o elemento negro da população belo-

horizontina.

PALAVRAS-CHAVES

Afro-brasileiros, Negros, Cultura Material, Cidade, História, Museu, Patrimônio.

ABSTRACT

The historical museum of Belo Horizonte, founded in 1943, has on its origin some

elements that evokes the origin of this city, since when and how it was created by the

government and the economics and politics high society of Minas Gerais. Some one of these

elements have forced the concept and the beginning practice of the museum abilities.

Therefore, this practice becomes a no-place for the black people of the Belo Horizonte

population.

PALAVERS-CHAVES Afro-brasiliam, Negros, Material Culture, City, History, Museum, Patrimony.

AGRADECIMENTOS

Correndo o risco de não mencionar pessoas importantes no processo de elaboração do presente

texto que é o resultado do Curso de Especialização em Estudos Africanos e Afro-brasileiros da

PUC/Minas, gostaria de agradecer a muitos que contribuíram para a realização deste trabalho.

Desnecessário dizer que não deve ser creditada aos aqui citados a imperfeição da presente monografia.

Aqueles que comigo contribuíram deram o melhor de si para que eu obtivesse o melhor resultado possível.

Agradeço inicialmente a minha família. Meus pais e minha irmã, sempre apostaram em todas as

minhas aventuras, mas essa exigiu muito mais empenho deles e eles compareceram como sempre com

muita generosidade. Ao meu companheiro Alessandro e aos meus filhos, Sandro e Luiza agradeço a

compreensão, a cumplicidade e a espera e confiança no meu sucesso. Se esse sucesso vier dedico-o a eles,

com muito amor. Minha sogra e meus cunhados muito contribuíram “cuidando das crianças” quando eu

estava envolvida nos trabalhos escolares e aulas do curso. A eles sou muito agradecida, sempre.

A visão crítica sobre a atuação do Museu Histórico de Belo Horizonte, foi compartilhada

inicialmente com Marina Amorim, ela também possuía questionamentos quanto a prática de museu

e muito discutimos enquanto fomos colegas de trabalho. Sua vivacidade me contaminou e eu a

agradeço por sua valiosa contribuição. Célia Regina que é uma grande amiga e minha chefa

imediata, sempre me apoiou na inquietude intelectual e atraiu o meu olhar para a documentação

administrativa do museu histórico. Reconheço a importância desse apoio que provocou o início do

processo que ora findo. Meire Bernardes e Carla Renata Luz, realizaram “a toque de caixa” as

revisões ortográfica e bibliográfica respectivamente, contrariando o rigor com que trabalham

mostrando-se solidárias com a minha ansiedade. Carlos Perini contribuiu na redação do abstract do

presente texto. Agradeço muito aos três.

Ainda no contexto do Museu é importante que eu registre e agradeça de forma muito especial a

José Bittencourt, principalmente por sua generosidade intelectual manifestada de variadas formas,

inclusive instigando seus colegas e subordinados para avançarem no aprimoramento, rigor científico e

posicionamento critico como técnicos de museu.

Agradeço a professora Íris Amâncio coordenadora do Curso de Especialização em Estudos

Africanos e Afro-brasileiros, pelo comprometimento com o curso, com os alunos e com o resultado de

nossos estudos e pesquisas. Agradeço também a ela a oportunidade de aprimoramento no Curso

Desigualdade, Raça e Violência onde trabalhei como professora tutora sob sua coordenação na

PUC/Minas Virtual.

A todos os professores do curso agradeço o conhecimento compartilhado, e o faço nas pessoas da

professora de Metodologia, Antônia Montenegro e no professor de Economia do Racismo, Jorge Posada.

Com todos os professores aprendi e refleti enquanto sujeito Negro sobre nossa história. Com Antônia

avancei muito teórica e criticamente no desenvolvimento do projeto. Com Jorge aprendi a importância de

se considerar a experiência de ser Negro nos estudos africanos e afro-brasileiros e o valor científico dessa

experiência..

Ao meu orientador professor Erisvaldo Pereira dos Santos, agradeço o aceite da orientação, a

paciência com minhas demoras e as minhas dificuldades em criticar as escolhas de abordagem do tema da

pesquisa. Ele me ensinou muito sobre o comportamento que o pesquisador deve ter em relação ao seu

objeto de pesquisa e a importância de não se ter certezas prévias, mas, perguntas bem elaboradas.

Voltando ao começo, de tudo isso é preciso reconhecer que um dos pontos importantes de minha

vida pessoal foi me reconhecer negra e ver o mundo e as coisas nessa perspectiva. Agradeço,

publicamente a Cidinha da Silva por ter me dito, no início do período de graduação em história, que eu era

negra. Eu não me via como tal. A partir da constatação obvia para Cidinha, mas não para mim,

inconscientemente, comecei a questionar a aplicação prática da teoria da mestiçagem.

Aos colegas do curso de Estudos Africanos e Afro-brasileiros agradeço penhoradamente a

convivência que muito me enriqueceu. A Ana Rosa, Nilda, Marcelo, Wilma, Alair, Junia Costa,

Fátima e Fabiana eu agradeço a aproximação e a amizade que nasceu naquela convivência.

Rosilney e Anete nunca permitiram que eu desanimasse diante das minhas “empreitadas” e

continuam me incentivando a ir mais longe, a elas, igualmente: muito obrigado.

Marcelina, amiga desde os tempos de graduação, continua me incentivando e acreditando nas

minhas incursões teóricas. Dividimos atualmente o prazer de dar aulas em curso de pós-graduação sobre

cultura africana e afro-brasileira. Agradeço a ela essa oportunidade e a amizade.

Uma das partes mais importantes de estudos africanos e afro-brasileiros é considerá-lo do ponto

de vista educacional. Aos meus alunos do Curso Pré-vestibular Comunitário EDUCAFRO do bairro São

José em Belo Horizonte eu agradeço a convivência de mais de um ano discutindo um assunto tão

importante para nossa formação como cidadão.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 08 2 O MUSEU DA CIDADE MODERNA ................................................................... 16

3 MESTIÇAGEM NO PATRIMÔNIO A NEGAÇÃO DO SUJEITO HISTÓRICO NEGRO ................................................................................................................... 30

4 CIDADE IMAGINADA NA NARRATIVA MUSEOLÓGICA ............................. 45 5 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 52

REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 57

ANEXO ...................................................................................................................60

1 INTRODUÇÃO

“O Brasil sempre teve museus, [...] Após um início tímido, em condições coloniais, expandiu-se até chegar, no final do século XIX, ao museu-monumento, engajado na consolidação do projeto de articulação do Estado nacional. Esses museus-monumentos tinham uma proposta clara, conheciam o espaço que deviam ocupar e souberam criar condições para a própria reprodução. Mas, paradoxalmente, cumpriram tão bem o papel que lhes tinha sido destinado, que acabaram aprisionados pela própria contradição.” (José Bittencourt)

O presente texto trata do Museu Histórico de Belo Horizonte, criado em 1943. Tratamos

do assunto desde a idéia que o principiou até sua instalação oficial, que compreende o período

entre décadas de 1930 e 1940. A escolha do tema, entretanto, deve-se a uma pergunta do tempo

presente, com base na discussão nacional que acontece mais amplamente na área de educação,

que tem como uma das suas referências a Lei Federal 10639/03. O tema vem sendo mais

recentemente trabalhado, também, em outras áreas como a da cultura1. Da mesma forma

influenciou a escolha do tema o fato de a autora da presente monografia, ser negra, belo-

horizontina, possuir formação em história, prática em patrimônio cultural e também por ser

técnica desse museu trabalhando com seus acervos textual e iconográfico. Este último fato

propiciou-nos duas importantes vertentes de objetivação do problema que nos levou à pesquisa:

entrar em contato direto com a documentação oficial de criação do museu na década de 1940 e

questionando a ausência de referência aos negros em seu acervo original; Atender a demandas de

consulentes externos interessados em pesquisar a presença do negro na história da cidade

instituída no Museu. A pesquisa na documentação oficial retro-mencionada possibilitou-nos

entrever ligações entre essa e o texto histórico-narrativo, que o criador do museu havia escrito em

década anterior à criação do mesmo.

Origens são, portanto, o pano de fundo de nossa monografia: a história escrita por Abílio

Barreto e a concepção do museu como equipamento de patrimônio cultural e de história da cidade

relacionados à institucionalização da proteção ao patrimônio cultural no país, no período

ditatorial do Estado Novo.

1 Essa Lei Federal é bastante enxuta. O importante, é que ela pode alterar o olhar sobre a presença e a influência dos negros na formação do Brasil, quando torna obrigatório o ensino de cultura africana e afro-brasileira nas escolas do país. Por isso instiga o estudo das referidas culturas em outras áreas de conhecimento, posto que educação não processo que acontece apenas na escola e mesmo sendo apenas esse o local de estudar a fundo o assunto é preciso ter em mente que a escola sempre esteve ligada a outras áreas de conhecimento e com elas intercambia.

O Museu Histórico de Belo Horizonte foi inaugurado em 18 de fevereiro de 1943 quando

a cidade de Belo Horizonte possuía 46 anos, contando da data oficial de sua inauguração que se

deu em 1897. Para efetivar esse equipamento cultural foi necessário pensá-lo, escolher o local

onde seria instalado, conceber qual seria seu acervo, e o nível técnico e intelectual daqueles que

trabalhariam nesse museu, etc.

Essas escolhas não foram isentas, deram-se em um contexto alheio à implantação de um

museu e exigiram uma construção social da proposta. No senso comum da época (como ainda

hoje em vários momentos) concebia-se o museu como um local de guardar coisas velhas. Não

quinquilharias, mas, coisas que remetessem à realidade do passado do lugar ou pessoa a quem se

referissem os museus. Em nível nacional, já existiam museus importantes na então capital federal

(Rio de Janeiro) e em alguns outros estados. Para se construir o Museu Histórico de Belo

Horizonte foi necessário visitar alguns com o fito de identificar um modelo que melhor servisse à

proposta que se pretendia levar a cabo. O modelo escolhido foi o do Museu Histórico Nacional,

criado em 1922.

Nossa pesquisa e uma ampla bibliografia a respeito, localiza museus históricos do Brasil

que ambicionavam representar a identidade nacional, entendida de forma unívoca. Nascem,

portanto, públicos e dentro do aparato do Estado. Geralmente isso ocorre dentro de uma mudança

social econômica ou política, mas mantém-se o sistema antigo de dominação. Para tornar viável

essa mudança sem mudar a estrutura do sistema lança-se mão de teorias de interpretação da

identidade do Brasil baseadas no triângulo das três raças, em que raça branca contribui com o

quesito civilização. Com isso, o branqueamento tornado inevitável e salvador da “qualidade” da

população brasileira, obliteram a participação do negro, enquanto agente, parando na visão que o

branco tinha do escravo: mercadoria, ausente de razão, civilização e de capacidade de

interpretação de si mesmo e do país. Sujeito, enfim.

Quando se estuda a categoria museu no sentido maior de patrimônio é preciso considerar

a cultura material. Ou seja:

aquele seguimento do universo físico, que é socialmente apropriado pelo homem e que engloba tanto objetos, utensílios, estruturas como a Natureza, transformada em paisagem e todos os seguimentos bióticos e abióticos que integram um assentamento humano. (MENEZES, 1987, p.186)

Esses objetos possuem significações que são sempre atribuídas pelos grupos sociais que

os criam e ou modificam. Por isso, em um museu objetos podem traduzir concepções de

identidade nacional e narrativas sociais que essas instituições empreendem e sujeitos históricos

que privilegiam. Segundo Ulpiano Bezerra de Menezes, esses objetos, também chamados

artefatos, “teriam de ser compreendidos, em última instância, como produtos de relações sociais,

de um lado e como vetores dessas mesmas relações sociais de outro”. (MENEZES, 1987, p.186)

Nisso podemos dizer que aquilo que dá o caráter histórico de um museu são os problemas

históricos, não os objetos históricos.

Assim, em última instância, seriam históricos os objetos, de qualquer natureza ou categoria capazes de permitir a formulação e o encaminhamento de problemas históricos [...] aquelas propostas de articulação de fenômenos que permitem conhecer a estruturação, funcionamento e, sobretudo, a mudança de uma sociedade. (MENEZES, 1992, p 4-5.)

Para tratar do modo como foi concebido o Museu Histórico de Belo Horizonte, é essencial

considerar sua concepção numa referência ao planejamento da cidade construída no período de

1894-1897. Criada para ser um expoente da modernidade arquitetônica, exemplo da técnica,

higiene e beleza, Belo Horizonte possui entre outros, traço de eugenia, cuja importância impõe

que seja mencionada, conforme afirma Cardoso: “[...] esta modernidade tão decantada na sua,

ainda fugaz história, teve uma característica fortemente excludente e de segregação da população

negra, desde a planta da sua construção”. (CARDOSO, 2001, p.131)

A afirmação de Cardoso refere-se ao plano original da cidade desenhado por Aarão Reis.

Naquele plano a cidade é esquadrinhada, com ruas e praças que recebem nomes de políticos

ilustres e tribos indígenas, mas, não há nenhuma nomeação que identifique negros, (mesmo que

sejam pardos ou mulatos) da área literária, política ou artística, de Minas Gerais ou do Brasil,

conforme ocorre com os brancos e índios. As marcas de modernidade da cidade, nascida após a

abolição dos escravos não compreende referência aos negros em seu traçado. Quando se pensa

em um museu para a cidade de apenas 46 anos é sintomático que se recupere a sua gênese, que se

ergam discursos sobre sua juventude e que seja vislumbrada a utilidade de um museu, quando

ainda não há passado.2 Porém, é possível que tudo isso possua um sentido de farsa. Ou seja,

encobrir o discurso ideológico e a ação política do Estado, de modo a dissimular a construção de

referências culturais na cidade. Dessa forma, excluindo outros sujeitos históricos e políticos para

além da classe economicamente e politicamente dominante. Trata-se de nova ocorrência do

2 Mas, [...] com toda gente com quem conversava a respeito, surgia logo a objeção: - “Já teria Belo Horizonte, Capital de ontem, material em qualidade e em quantidade suficientes para um instituto dessa natureza?” Entrevista de Abílio Barreto criador, organizador e primeiro diretor do Museu Histórico de Belo Horizonte, à Revista Mensagem, em 15 de junho de 1943.

mesmo fato em um outro momento, o de modernização da cidade, excluindo da sua identidade o

elemento populacional negro. Na década de 1940, o Museu Histórico de Belo Horizonte, repete a

ausência da referência aos afro-descendentes, como sujeitos, em seu acervo, como acontece no

planejamento, construção e inauguração da cidade.

O momento atual é oportuno para cotejar a constituição do Museu Histórico de Belo

Horizonte também em outras direções: a consideração do patrimônio material do afro-

descendentes da cidade e a ausência eloqüente desse sujeito histórico e político no seu acervo.

O presente texto trata, por conseguinte, da invisibilidade do negro, enquanto sujeito

histórico e ator político no acervo original do museu histórico da cidade de Belo Horizonte.

Nossa análise está inserida em dois momentos distintos na linha do tempo, mas idênticos em

termos de conteúdo ideológico: A sistematização da história da cidade feita por Abílio Barreto

em sua obra clássica: “Bello Horizonte, memória histórica e descriptiva”, história antiga e

história média” e o momento do Estado Novo no Brasil (o qual acreditamos, seja o bojo político e

ideológico onde nasceu a idéia de museu histórico para Belo Horizonte).

O fato de que o universo do museu é o da cultura material, expressa em suas coleções de

documentos textuais, objetos, fotografias, etc. leva-nos a pensar práticas coletivas sociais negras,

como produtoras de cultura material e passíveis de compor coleções museológicas. Assim

poderemos reconhecer território negro e território branco na história da cidade e no seu museu.

A sociologia e a antropologia apontam, bem antes da historiografia, para a concretude do

sujeito social negro. As políticas públicas, recentemente, no Brasil e na cidade de Belo Horizonte,

inclusive a de patrimônio (imaterial ou intangível), demarcam essa mesma concretude.

Cabe, então, pensar o negro como sujeito histórico em Belo Horizonte, numa perspectiva

de Patrimônio Histórico e Cultural, portanto passível de ser referenciado como agente no museu

da cidade que preserva e reverencia sua história. A influência de negros é perceptível

culturalmente, nas festas, (ritos e espaços religiosos como congado candomblé e umbanda), artes

plásticas, música, dança, literatura, teatro, em datas comemorativas da cidade, etc., e o negro,

como sujeito não é reconhecido nos museus históricos.

Em face de demanda atual de recuperação da participação do negro na história do Brasil e

de Belo Horizonte em particular, principalmente no que diz respeito ao patrimônio histórico, na

especificidade do universo da cultura material, cabe o tema proposto nessa monografia, posto que

esse patrimônio é referência de nação para aqueles que nela viverão na posteridade e para os

outros compreendidos no contexto internacional ao país, além de ser referência para a própria

nação. Assim sendo, o patrimônio histórico material da cidade também precisa ser pensado para

considerar a contribuição do negro.

O objetivo principal que nos levou à pesquisa foi o de compreender o projeto de

concepção e implantação do Museu Histórico de Belo Horizonte, em 1943, pelo viés da ausência

da representação do elemento negro da população brasileira, em seu acervo, mostrando analogias

com o projeto de cidade. Para isso pretendemos identificar ideologias e pressupostos que

ensejavam a criação do Museu Histórico de Belo Horizonte para verificar o contexto social que

permitiu a sua institucionalização e a sua prática: ao mesmo tempo queremos verificar as bases

conceituais de museu e o conteúdo de história que estão embutidos na incorporação ao acervo do

Museu Histórico de Belo Horizonte, de objetos, textos e outros que não remetem ao negro como

sujeito histórico na cidade. Pensamos que é possível verificar a utilização de conteúdo de

segregação racial como base para implantação do Museu Histórico de Belo Horizonte, visando

recolher acervo de uma determinada camada da população perpetuando uma situação de política

de exclusão pela eugenia e pelo racismo nessa ação específica de patrimônio.

Conforme foi dito acima, o fato de interrogar sobre a idéia de criação e o processo de

implantação do Museu Histórico de Belo Horizonte sem referência ao negro como sujeito, foi

realizado com o olhar técnico, que vê também o momento atual (tanto na academia, como nas

políticas de governo e também nos próprios movimentos e grupos culturais), de recuperação da

influência dessa cultura, negra, na história e nas identidades nacionais do Brasil. Os documentos

por nós analisados não possuem acesso restrito a funcionários do museu, pelo contrário, são

utilizados em monografias, dissertações e teses. Acreditamos que é a visão e a formação do

historiador aliado à sua experiência de vida que cria interesse ou não pela temática negra. Ao

pesquisador que chega à sala de consultas do Museu é facilitado o acesso tanto a fontes primárias

quanto ao que se produz sobre Belo Horizonte nas academias e fora dela, seja em dissertações,

em monografias ou em publicações.

A história nunca é feita de forma imparcial. O historiador escolhe sempre um tema que

lhe diga respeito, mesmo que isso apareça subliminarmente em seu texto e no objeto que escolhe

como ponto de partida de sua pesquisa. Também nos museus históricos existe uma lógica. José

Bittencourt diz muito bem que os objetos históricos que se recolhem aos museus (aqui

entendemos como objetos - em condições museológicas – também o documento escrito,

publicado ou não, documentos iconográficos etc.) possuem um valor que não é o valor que

tinham em seu uso cotidiano.

O objeto despido de seu valor de uso (ninguém vai tomar sopa num prato-objeto museológico) vale enquanto um signo de si mesmo. Mas o acesso a tal evocação só é possível caso as informações contidas nos objetos sejam disponíveis e acessíveis. Um objeto museológico é o testemunho restante de um processo. (BITTENCOURT, 2003, P.152)

Quanto à metodologia de nosso trabalho, optamos pela utilização das fontes primárias,

importantes para o entendimento de trajetórias e políticas de acervos em instituições de

patrimônio, bem como para pesquisas de caráter histórico, como a presente análise se propõe.

Assim sendo, a documentação administrativa do Museu Histórico e de Belo Horizonte foi

estudada. Essa documentação ofereceu um manancial importante de opiniões e elementos

ideológicos de concepção desse importante equipamento cultural da cidade de Belo Horizonte em

seu início. As correspondências, relatórios e recortes de jornais apresentam-nos o contexto

oficial de fundação do museu. A obra de Abílio Barreto, é aqui utilizada como elemento teórico

sobre história de Belo Horizonte e fonte primária por seu caráter de “testemunho às avessas” da

presença e atuação do negro na cidade.

Nossa intenção foi a de reler o processo oficial de criação do Museu Histórico de Belo

Horizonte, procurando ali a razão para a efetivação do não-lugar do negro na história da cidade e

de seu museu. Sendo assim, conceitos de história de negros e afro-descendentes na cidade de

Belo Horizonte, de patrimônio e de cultura material datados na trajetória histórica da cidade e de

seu museu histórico estão subjacentes na substância do tratamento que pretendemos dar ao nosso

objeto de estudo, de formas e ênfases determinadas.

O presente texto está sedimentado na leitura de uma nova teoria que aborda o negro como

sujeito histórico e ator político. Essa teoria, analisa o fato social a partir do dominado e vencido

mas não apagado da história. Os autores pesquisam nas “minorias nacionais” as razões de sua

persistência no contextos social e histórico. Entre “minorias” estão os afro-descendentes

brasileiros. Quando tratamos do nosso referencial teórico, onde a teoria em que nos apoiamos é

explicitada, trabalhamos também com categorias de análise que são necessárias, por serem

complementares ao tratamento critico da questão ideológica à qual nos propomos. Por isso, é que

no tratamento crítico que fazemos das fontes primárias a leitura do processo se faz em possível

perspectiva do negro em Belo Horizonte. Essa opção não é totalizante e lançamos mão também

de textos que não trabalham naquele viés, mas que fornecem informações importantes sobre o

contexto sócio-histórico do tema que tratamos. Enfim, procuramos um encontro de fonte

primária e teoria para abordarmos nosso objeto de pesquisa, contudo, é com os olhos de hoje que

vamos pesquisar aquele momento histórico em uma perspectiva processual. É o hoje, com uma

discussão colocada na sociedade como um todo sobre o negro no Brasil, que subsidia nossa

abordagem da concepção do Museu Histórico de Belo Horizonte, sobre quais sujeitos estavam

colocados socialmente, qual contemplou, que história da cidade se propôs a narrar, qual acervo e

qual entendimento sobre patrimônio e sobre história. Atentamo-nos para o fato de observar os

sujeitos em suas ações e dizeres na época. Também propõe-se um outro entendimento do negro

como sujeito histórico e político na cidade, motivo que leva nosso trabalho a não julgar a época,

mas, localizar contradições e procurar observar conflitos, motores da história e configuradores a

dinâmica dos processos sociais. Entende-se que a história oficial e a política governamental

passaram ao largo da trajetória do negro na cidade de Belo Horizonte.

O trabalho está dividido em três capítulos, além dessa introdução e das conclusões. No

primeiro capítulo analisamos a idéia de um museu em uma cidade de menos de 50 anos e sem

passado. Para isso analisamos a obra de Abílio Barreto como uma escrita da história da cidade,

sempre retomada em momentos especiais de mudança como subsídio de um passado para Belo

Horizonte bem como da criação do museu histórico. Em ambas, verifica-se ausência de referência

aos negros como sujeitos. Ainda nesse capítulo contextualizamos nosso tema nos anos 1930-1940

e observamos a criação de um museu em Belo Horizonte como decorrência de uma ação do

Estado autoritário: Estado Novo e sua ação cultural. Observamos como o serviço do patrimônio

nacional, embora nascido nesse berço possui especificidade e subjetividade. Porém acontece

diferente com o Museu Histórico Nacional, também nascido em um momento de mudança

(1922), mas, anterior à criação do Serviço do Patrimônio Artístico e Cultural, SPHAN. É possível

ver nesse contexto elementos ideológicos que influenciaram a concepção do Museu Histórico de

Belo Horizonte.

No capítulo dois tratamos do nosso referencial teórico; O patrimônio como narrativas de

nação. Também nesse mesmo capítulo abordaremos o patrimônio como território de preservação

e transmissão de herança cultural (africana) e prática cultural coletiva dos negros brasileiros

,especificamente conforme texto de Sodré (2002) . As narrativas históricas de comunidades

imaginadas como analisou Hall (2002) e os conceitos de identidades várias, mediante à

identidade única, serão contrapostas a comunidade imaginada por Abílio Barreto, que fala de

Belo Horizonte e da comunidade a ser representada no Museu Histórico de Belo Horizonte. Com

base em Munanga (2004) vamos abordar a identidade nacional brasileira nos anos 1930-1940 no

sentido da objeção: identidade negra x identidade nacional brasileira. A partir daí estudaremos a

cultura como elemento de identidade. Baseados em Ortiz (2006), pretendemos estudar a diferença

entre identidade coletiva e identidade nacional, tomando como referência o conceito de cultura

entendido como esteio para consolidação dessa última. Oportunamente, vamos abordar a questão

do folclore como o lugar reservado pela cultura nacional às manifestações “menores” em

contraponto ao não lugar (para o negro) na cultura erudita. Acreditamos que não se tratam os

elementos culturais da população negra de Belo Horizonte nem como folclore, porque o fato de

configurarem como cultura popular faz sobressair mais o aspecto imaterial daquelas

manifestações. Atentemo-nos ao fato de que por um determinado prisma, pode acontecer nessa

valorização do imaterial para o popular uma noção de hierarquia entre material e imaterial o que

não é verdade, no aspecto teórico e no aspecto legal de valorização do patrimônio imaterial em

níveis nacional e internacional.

No capítulo três pretendemos abordar o resultado de nossas leituras de documentos e

teoria. A ausência de representações dos negros nos museu brasileiros. A “identidade única” de

Belo Horizonte e a descoberta de um não-lugar para o negro em uma determinada narrativa da

história da cidade em concomitância à concepção e instalação do museu histórico da cidade na

década de 1940. Trataremos também da comunidade imaginada nos museus, evolução de

identidade única para múltiplas identidades (HALL, 2002) e escolhas de acervos para exposições.

(BITTENCOURT, 1993) O museu Histórico da cidade como marco conceitual histórico, oficial e

sócio-cultural da cidade: racialismo nas ações de governo que criava instituições, onde o negro

não tinha lugar. Veremos como o conceito de comunidade imaginada de identidade única, pode

ser suplantado pelo de identidades múltiplas e híbridas.

Finalizando, apresentaremos nossas conclusões. A cidade planejada e nascida no início do

século XX repete-se nas “relíquias” de seu museu histórico, nos anos 1940. Ajuda também a

oficializar e a tornar aceitável socialmente a idéia de supremacia e pujança civilizatória do

Branco, em comparação ao Negro. Essa condição permite as idéias de história e de museu elitista

e negam que os negros tenham contribuído para que a história de Belo Horizonte fosse essa que

hoje podemos contar.

2 O MUSEU DA CIDADE MODERNA

“O nosso Estado foi organizado não como um simples Estado, mas antes como uma grande nação” (Silviano Brandão, na Mensagem Presidencial de 1899.)

Em curta visita a Belo Horizonte, opinando sobre a idéia de criação de um museu para a

cidade, Mário de Andrade, teria dito: “Belo Horizonte possui as antiguidades mais novas do

mundo” (ANDRADE apud OLIVEIRA, 1952, p.8-9). No contexto da visita não se sabe se a

ironia foi mais tarde retomada como algo a ser respondido pelo governo ou o responsável pela

implantação do Museu Histórico de Belo Horizonte.

Na década de 1940, período em que o Museu Histórico de Belo Horizonte foi implantado,

o ambiente da cidade era de mudanças no seu planejamento inicial que viria incidir de forma

decisiva e irrefutável na consolidação da expansão para o oeste e para norte, com a criação do

complexo da Pampulha, com a modernização e com o asfaltamento das avenidas, além do

crescimento da população, o aumento no número de arranha-céus e da demolição freqüente de

prédios antigos.

Nesse contexto, em uma cidade vista a partir de seu centro urbano e de sua administração

municipal e ainda sem autonomia política3 , a ironia analisada hoje surte um efeito interrogativo

que tende a concordar com o escritor Mário de Andrade: Qual o sentido de se fazer um museu em

uma cidade de menos de 50 anos?4 Que tipo de acervo histórico o constituiria? Qual passado

possui uma cidade tão jovem? Qual narrativa dessa cidade contaria e quais sujeitos sociais a

comporiam no Museu Histórico de Belo Horizonte?

Os jornais da cidade, à época da inauguração, fornecem notícias do processo de

implantação do museu, desde o lançamento da idéia, e já trabalham com respostas às questões

acima colocadas. O museu aparece como local privilegiado para preservar o passado da cidade,

que passa por mudanças drásticas tendentes a mudar totalmente seus rumos de crescimento.

(FOLHA DE MINAS ... 1941). Um dos textos jornalísticos diz, explicitamente, que a menção à

ausência de passado não desmerece a implantação do museu porque “[...] se torna mais fácil ir

organizando o museu desde já do que deixá-lo para épocas em que se tornem mais difíceis os 3 A cidade alcançou sua autonomia política quando pode eleger seu prefeito e representantes legislativos, em 1947. O primeiro prefeito eleito de Belo Horizonte foi Octacílio Negrão de Lima que já havia sido prefeito indicado pelo interventor estadual, em 1935. 4 Belo Horizonte foi uma cidade planejada e construída nos primeiros anos do regime republicano. Sua construção iniciou-se em 1894 e sua inauguração deu-se em 1897.

elementos indispensáveis a sua realização” ESTADO de Minas ...(1941). Alude-se assim ao fato

de que a modernização crescente e inevitável da cidade pode ocasionar perdas irreparáveis na

ausência de uma instituição que zele por sua história e que localize no seu cotidiano, elementos

documentais dignos de figurar, no futuro em uma instituição como essa, na forma de relíquia.

As noticias sobre a inauguração do Museu Histórico de Belo Horizonte, foram

anunciadas pela imprensa da cidade como grande empreendimento cultural:

A lacuna na capital de um estado nacionalista como o nosso que possui um farto repositório de coisas relacionadas com os períodos mais sugestivos da história do Brasil era mesmo de certa gravidade. [...] Não é apenas no aspecto cultural e histórico que se distingue essa brilhante iniciativa [...] atrás daqueles aspectos se esconde a grande significação moral e social do empreendimento destinado a guardar as lembranças de um passado em que se formaram as nossas tradições e sentimentos como coletividade [...] (ESTADO de Minas, ...1943) (grifo meu).

Logo, segundo o que a imprensa daquela época noticiou, Belo Horizonte é também

herdeira do passado político do estado de Minas Gerais, embora nova e moderna. Por outro lado,

a inexistência de um passado, que poderia ter se apresentado como empecilho à realização do

projeto, reafirmou, na verdade, a característica inovadora de Belo Horizonte, ao criar um museu

para preservar elementos de um passado que ainda não aconteceu.

Esse aparente paradoxo, que seria lançar as bases de um passado que ainda está por vir,

não aparece, nesse momento, como primeira vez. A elaboração e edição da obra de Abílio

Barreto em dois livros: Belo Horizonte. Memória Histórica e Descritiva - História Antiga e Belo

Horizonte. Memória Histórica e Descritiva - História Média, pode também ser pensada dessa

forma. Quando Abílio Barreto quis escrever sua obra o fez considerando sua estada na cidade

desde 1895 (acompanhando o processo de construção da mesma), sua preocupação em deixar

escrito esse processo (de construção da cidade em 1894-97) e a aquiescência de autoridades

estaduais que acreditaram na idéia. Portanto moveu o autor uma preocupação com a história,

com o registro e com a preservação do passado em parte vivido por ele.

Para uma cidade que se considerava tão nova parece um desvario escrever sua história

antiga e média. Verifica-se que um movimento contraditório levou o autor a escrevê-la: registrar

o passado da cidade que não se reconhecia portadora de passado algum. Embora a idade da

capital seja contada (como é até os dias de hoje), a partir da data de sua inauguração (1897),

aquilo que existia antes, o Arraial do Curral Del Rei (depois Arraial do Belo Horizonte) e toda a

sua dinâmica social, que aparecem na obra de Abílio Barreto, bem como o período de sua

edificação, quando aquela dinâmica foi acrescentada de mais sujeitos sociais, fazem parte da

história da cidade ao mesmo tempo em que não fazem, tendem a ser matéria morta ausente do

processo de seu surgimento a partir de sua construção que se deu no período de 1894-97.

Aparentemente, Belo Horizonte nasce em um escritório de engenharia, no papel onde foi

desenhado seu plano espacial. Nisso, o paradoxo.

Como se vê, em determinados momentos a cidade precisa de um passado e o reescreve,

porém, realiza essa operação de forma a reinventar algo que está fora de si, de seu processo

histórico. Na implantação do seu museu, a contradição é verificável e demonstra a armadilha do

processo nessa construção artificial. Também para instituir um museu é preciso ter um passado.

Pinça-se, então, aquele já escrito por Abílio Barreto. Um passado que não interfere na cidade,

mas existe, inclusive fora dela. No acervo do museu, esse passado será uma peça avulsa,

mumificada, que possui ligação com a gênese e o presente de Belo Horizonte, mas de forma

idealizada não transmite idéia de movimento e não influencia no presente ou no futuro da cidade

na sua forma real, e sim no discurso que se faz sobre esse real. Nesse sentido, a ironia de Mário

de Andrade possui significado duplo: A cidade nega suas raízes como elas realmente são

apresentadas inclusive com contradições ao mesmo tempo em que precisa delas para ter um lastro

cultural na modernidade, no presente.

Entretanto, como a construção é quase artificial, porque seleciona e desliga fatos

históricos, fossilizando-os, não corresponde ao movimento social em suas realidades e

possibilidades procura servir a um determinado interesse do poder que utiliza ações do Estado

para manter e construir ícones urbanos que se perpetuam nas mentalidades do cidadão e no

discurso da cidade sobre si mesma.

Abílio Barreto possuía uma trajetória profissional condizente com suas atividades

culturais na cidade. Quando chegou a Belo Horizonte trabalhou como vendedor de jornais, ainda

muito jovem e em alguns deles contribuiu também como articulista. Mais tarde, foi funcionário

do Arquivo Público Mineiro (arquivo estadual) onde permaneceu até aposentar-se. A partir de

então foi funcionário da Prefeitura de Belo Horizonte no Arquivo administrativo Municipal, a

partir de 1935, de onde saiu para instaurar o Museu Histórico da Cidade. Mas, quando escreveu e

editou sua história de Belo Horizonte, Abílio Barreto não era ainda o criador do museu5. Porém

trabalhava com a história da cidade, por lidar com documentos do estado do período colonial e

5 O primeiro volume da obra que trata da história antiga de Belo Horizonte teve sua primeira edição em 1928. O segundo volume, que trata da história média foi editado em 1936.

imperial, e do período republicano no qual foi engendrada a idéia e a mudança efetiva da capital

de Ouro Preto para Belo Horizonte. Foi trabalhando no Arquivo Municipal que Abílio Barreto

percebeu algumas peças que “estavam naturalmente indicadas para figurar em um museu”

(BARRETO, 1950, p.311). Pode-se considerar então a criação do museu como uma decorrência

do interesse e o trabalho do autor com a história de Minas Gerais e de Belo Horizonte. Lotado no

aparato do Estado, lidando com documentos administrativos, que dão pistas do processo oficial

de criação da cidade, acrescenta a essa prática a vivência como habitante da mesma. Em 1941 foi

criada uma sessão de história na Prefeitura de Belo Horizonte para ser o núcleo do futuro museu

da cidade a qual Abílio Barreto foi encarregado de organizar.6 Esse contexto colocado até agora

permite compreender a criação do Museu Histórico de Belo Horizonte, na década de 1940,

subsidiado pela elaboração de uma história para a cidade (obra de Abílio Barreto). Concomitante,

possibilita também antever uma construção ideológica subsidiando o projeto e a implantação do

Museu Histórico de Belo Horizonte.

No nível nacional, a criação desse museu pode ser situada dentro do contexto político e

cultural das décadas de 1930 e 1940. Cenário de um grande debate acerca do que seria a

identidade nacional e a nação brasileira o Estado totalitário busca, mas, também constrói uma

identidade brasileira única, dele dependente e nele identificada. Tem ainda, como uma de suas

bases de ação e de discurso sobre o povo brasileiro, a cultura genuinamente nacional. Na segunda

metade da década de 1930 e na década de 1940 são definidos conceito e prática de ação cultural.

Para a construção ideológica de ambas – conceito e prática – concorre a participação de

intelectuais modernistas (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA., 2000) no aparato de Estado,

principalmente no gabinete do então Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema.

Segundo Schwartzman, Bomeny e Costa (2000), a política do governo, apesar de sua

aparente ação modernizadora carrega uma forte dose de dominação e as ações implementadas

pelo Estado encontrariam possibilidades de composição e conciliação como também de

enfrentamentos sociais. É particularmente contraditória, senão ambígua, a participação dos

modernistas, posto que:

não há nada que revele, nos documentos e escritos do ministro (Gustavo Capanema), que ele se identificasse com os objetivos mais profundos do movimento modernista, que, na perspectiva de Mário de Andrade, buscava uma retomada das raízes da nacionalidade brasileira, que permitisse uma superação dos artificialismos e formalismo

6 Conforme decreto 91 de 26 de maio de 1941 é criada a seção de história que funcionaria na Fazenda do Cercado.

da cultura erudita superficial e empostada”. (SCHWARTMAN; BOMENY; COSTA, 2000, p.97)

Focalizando ainda a contribuição de Mário de Andrade especificamente para o Governo

Getúlio Vargas, assinale-se que, a pedido do Ministro Capanema, Mário de Andrade redigiu (em

1934) o projeto de proteção as artes no Brasil, embrião do Serviço de Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional – SPHAN, aprovado por decreto-lei em 1937, esse redigido por Rodrigo Mello

Franco de Andrade com base naquele documento de Mário.

É possível afirmar que em termos de proteção ao patrimônio cultural os modernistas

tiveram ascendência no SPHAN, bem como uma certa independência e mobilidade de ação

dentro do aparato do Estado autoritário. É por sua ação que se delineia a proteção ao patrimônio

nacional, com valorização da produção histórica brasileira. Os modernistas acreditavam que era

preciso identificar e preservar o que era nacional, de produção genuinamente brasileira, em

termos de patrimônio para preservá-los como elementos de identidade do Brasil. Atualmente

pesquisadores de história e de patrimônio são unânimes em afirmar que não houve manipulação

pelo Estado no que diz respeito ao SPHAN e a seu diretor, por muitos anos, Rodrigo M. F.

Andrade. Por conseguinte a idéia de patrimônio implementada pelo SPHAN difere-se da prática e

do pensamento do Estado Novo e imprime-se no país de forma hegemônica pelo menos até a

década de 1970 (SANTOS, 1996)

Pelo que já foi dito anteriormente vê-se que é possível pensar o SPHAN quase que agindo

de forma independente cabendo ao Ministro Capanema a intermediação entre a política de

patrimônio e a política do Estado Novo. Mas, como a pasta do Ministro faz parte de um todo

político-ideológico é necessário verificar uma possível ressonância do discurso de patrimônio no

contexto nacional como parte integrante (algumas vezes na contramão) do projeto das elites para

o Brasil nesse período histórico.

Em primeiro lugar é preciso especificar dois termos referentes à questão do pensamento

das elites sobre a parte negra da população brasileira: preconceito, eugenia e racismo.

Considerando o período que estudamos o preconceito pode ser definido como “idéia, opinião ou

sentimento desfavorável formado a priori, sem maior conhecimento, ponderação ou razão”

(HOUAISS, 2005). Por seu lado, a eugenia pode ser entendida como “a teoria que busca produzir

uma seleção nas coletividades humanas, baseada em leis genéticas” (HOUAISS, 2005).

Consideramos racismo como “conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia

entre as raças, entre as etnias” e “doutrina ou sistema político fundado sobre o direito de uma raça

(considerada pura e superior) de dominar outras” e ainda “preconceito extremado contra

indivíduos pertencentes a uma raça ou etnia diferente”. (HOUAISS, 2005), veremos que esses

comportamentos estavam presentes na relação que o Estado Novo estabelece com a população

em geral e com a população negra brasileira.

Lenharo (1986) localiza os três termos nas ações do Estado com a contribuição marcante

dos intelectuais. A leitura de “Sacralização da Política” nos permite vislumbrar que o Estado

lançou mão daqueles três procedimentos para construir ideologicamente a aceitação à sua

proposta de transformação do corpo social para a identificação imediata do povo para com o

ditador e este Estado Autoritário.

No item imigração, por exemplo, é gerada toda uma linha de discussão em torno do que

seriam os imigrantes desejáveis ao mesmo tempo em que se identifica aqueles que seriam os

indesejáveis com vistas a garantir uma população, com características européias consideradas

imprescindíveis ao processo civilizatório do país ligado ao aspecto desenvolvimentista. É esse

aspecto que garante a figura do trabalhador como chave para o projeto de dominação. Talhada em

matizes diferentes a figura desse trabalhador é vista e tratada em todos os momentos de seu

cotidiano a quem é atribuído o epíteto de construtor da nação e a quem é pedido que mantenha

seu corpo saudável evitando promiscuidades e mantendo uma postura firme no lar. O papel da

mulher é também redefinido, não trabalhando fora do lar, sendo procriadora e dedicada aos

cuidados com os filhos que se tornarão trabalhadores. Com esse trabalhador funcionava todo um

trabalho mental exercido pelos órgãos de imprensa e pelas Forças Armadas no sentido de

preparar seu corpo físico para produzir uma descendência com aparência européia expressa nas

[...] discussões e o cuidado com a produção social de corpos que trabalham, a reposição de uma dada moralidade para a mulher e para a criança, a educação física do corpo, o tratamento eugênico do corpo e da mente, os cuidados com o lazer e com o morar e com a segurança moral da família [...].(LENHARO, 1986, p. 107)

Esse investimento ideológico passava sem dúvida pela domesticação do trabalhador, mas

essa ação estava em rede com uma construção mais geral, que era aquela do branqueamento da

população pelo empreendimento da imigração. “Por detrás da discussão sobre o habitante

indesejável reacendem-se as paixões racistas, eivadas de violência e intolerância [...]. Num

contexto de insegurança e indecisão discute-se o positivo pelo negativo. As próprias leis de

imigração se pautavam pela negação.” (LENHARO, 1986, p.113). Lenharo, diz que

A maior parte dos comentários de juristas, publicistas, políticos, autoridades, convergem para o português como o imigrante portador da melhores qualidades

requeridas. [...] Afinal, o português que aqui aportava era de origem agrária, dócil e vinha reforçar a matriz básica de criação do tipo racial do brasileiro. (LENHARO, 1986, p.113)

Os elogios ao vigor da raça alemã arrefeceram somente no período da guerra. Outras

nacionalidades européias brancas também eram desejáveis na intenção de branqueamento e de

orientação da matriz cultural do Brasil em uma perspectiva da Europa. Ainda segundo o autor, o

preconceito a eugenia e o racismo são direcionados a sujeitos sociais específicos. “Judeus,

negros, japoneses, tocam especialmente na ferida da sociedade brasileira.” (LENHARO, 1986,

p.114) Contra os judeus o preconceito ancorava-se no fato de que não eram agricultores,

característica desejável em termos de mão-de-obra imigrante. Quanto ao racismo, segundo o

autor seria “à brasileira”que explorava o “triângulo mítico das três raças”, que se refere:

[...] ao modo como setores da classe dominante projetaram solucionar o problema da mão de obra [...], não apenas buscando um novo tipo de trabalhador – ordeiro, disciplinado e produtivo – mas porque sendo branco, vinha ao encontro das aspirações dos teóricos de reencontrarem as raízes européias da civilização nacional e de a revitalizarem. (LENHARO, 1986, p.120-121)

Os estudos sobre a mestiçagem influenciaram autores e pesquisas sobre a realidade

brasileira na direção de pensar tal sociedade de forma homogênea, diz Lenharo (1986) citando

Matta e Skidimore. Assim, o brasileiro é recriado como pertencente a uma unidade com

tendência a ser branca no correr do tempo. Isso em decorrência da superioridade natural do

branco (que teria o gene mais forte) e a inferioridade do negro (devido a uma suposta baixa

natalidade e fraqueza corporal). Nenhum dos teóricos da miscigenação como característica da

brasileiridade, fugia da superioridade do branco na mistura das raças:

Mesmo Gilberto Freire de “Casa Grande e Senzala”, para quem o mestiço constituiu o acabamento do brasileiro idealizado, não escapa da proeminência do branco na mistura étnico-racial. Se brancos, negros e índios legam o melhor de si para o resultado feliz, é bom lembrar que, para o autor, o desencadeamento da mestiçagem principia na predisposição que o português já trazia da metrópole através de sua anterior experiência de cruzamento com mouros e negro. (LENHARO, 1986, p.123)

Perseguia-se teórica e politicamente a idéia do europeu como condição de civilização e,

portanto de progresso e procurava-se escapar à degenerescência da mestiçagem prognosticada

anteriormente por intelectuais estrangeiros que visitaram o país e apontaram a mestiçagem e a cor

mulata da população como prejudiciais ao desenvolvimento do país. O conde Gobineau disse

após visitar o país em missão oficial que a população brasileira quanto à questão racial, poderia

ser descrita como “[...] totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente

feia” (GOBINEAU apud SCHWARCZ). Isso ocorreu no século XIX e outros estudiosos também

estudavam a questão e viam a mistura de raças de forma negativa ao processo “civilizatório” do

país. Todavia o que importa para nosso estudo é que os estudos que geram essas teorias não se

restringem ao século XIX, mas permanecem enquanto questão a ser resolvida pelo Estado

autoritário também nos anos 1930 e 1940 do século XX. Nesse caso aqueles estudos vão embasar

atitudes específicas nas políticas sociais do Estado como é o caso da imigração.

A questão da imigração não é a base de nossa abordagem. Porém foi colocada aqui para

fornecer, no entendimento geral dos anos 1930 e 1940, em uma análise política a permanência de

uma problemática recorrente em nossa história. A admissão de que identidade negra é uma das

identidades do Brasil. Nesse período as discussões continuam em torno da mestiçagem, embora

acrescida de outros sujeitos sociais e mesmo de forma transversal no problema da imigração.

Alcir Lenharo analisa alguns discursos que localizam nos mestiços o perigo de degenerância da

raça brasileira por causa da mistura de sangue pela mestiçagem. Portanto, a ameaça da

mestiçagem continua evidente e sem controle pelas autoridades e ciência, sem que uma solução

segura se apresente. Assim o mestiço traz o estigma de problemas mentais que vai acompanhá-lo

como uma sina ou maldição. O imigrante japonês é uma vítima preferencial e mais evidenciada

do racismo dos governantes. Nesse contexto, de forma subliminar o negro é apontado como uma

referência do mal que a mestiçagem pode causar ao desenvolvimento do país. Citando Francisco

Campos, Lenharo diz que diz que para aquele político “repugnaria ao povo brasileiro sujeitar-se

de novo a uma experiência forçada de mestiçagem, como acontecera com o negro.”

(LENHARO, 1986, p. 134) Ao que parece, o negro, embora exista, faz parte da crença de que

estará fadado ao desaparecimento dada a situação possível, e necessária da imigração.

Em termos de patrimônio cultural nacional o pensamento do SPHAN, órgão criado no

período do Estado Novo, era de que o passado é substância viva para construção do presente,

conseqüentemente, o barroco é valorizado como a arquitetura genuinamente brasileira. Lúcio

Costa um dos expoentes bastante influente no grupo do SPHAN, era considerado um grande

estudioso do barroco mineiro, então identificado como marca do passado da nação brasileira por

sua originalidade. A idéia de passado para o SPHAN não era a de congelamento, mas de

referência para o futuro, daí a importância da missão de salvamento do passado por mais

problemas políticos que isso pudesse causar principalmente aos prefeitos e às elites locais.

Cabe aqui ressaltar que o Barroco Mineiro entendido enquanto arte por excelência

inscreve-se na música e na arquitetura e decoração das igrejas do século XVIII de Minas Gerais

com forte conotação de ter artistas negros como maioria de seus artífices. De determinado ponto

de vista o legado do barroco pode ter como significado também o legado dos negros (sejam

pardos ou mulatos), para Minas Gerais e o Brasil. Quando o SPHAN recupera essa arquitetura

reconhece nela uma arte genuinamente brasileira em um momento de forte dominação pela

metrópole portuguesa. No lote desse reconhecimento, a obra do mestre Aleijadinho é um objeto

de vários estudos sobre patrimônio. Conforme diz Bazin (1980) mais tarde, o barroco mineiro

desenvolveu-se a partir do século XVIII de forma bastante original, distanciando-se da tradição

européia referente ao mesmo estilo que teve seu início no século XVI:

No século XVIII, porém, o grau de civilização da colônia permiti-lhe criar escolas artísticas originais capazes de inventarem formas particulares, sobretudo na região favorecida pela descoberta do ouro, onde se funda a cidade de Ouro Preto. Aí, no final do Século XVIII, o filho de um arquiteto português e de uma escrava negra, ANTÔNIO FRANCISCO LISBOA, dito ALEIJADINHO (1730-1814), concebe uma das expressões mais notáveis da estilística barroca. Deveremos atribuir à presença da mão- de- obra negra no meio artístico brasileiro uma aptidão para a forma esculpida que não encontramos na metrópole? Esta tendência concretiza-se na obra genial do Aleijadinho, que anima com um grande sopro lírico e vitaliza com uma energia primitiva a plástica barroca, então esgotada na Europa pelo formalismo e virtuosismo. (BAZIN, 1980, p.284)

Essa definição do barroco mineiro, elaborada por um entendido da área traduz o

pensamento vigente na década de 1940, no discurso do SPHAN, para o Brasil. Chama atenção a

referência à paternidade do mestre Antônio Francisco Lisboa que nos faz aludir àquilo que falou

Lenharo sobre a concepção do triângulo mítico das três raças. A raça branca (creditada

inicialmente ao elemento português identificado com a metrópole) permanece como elemento

civilizatório e não se dilui na miscigenação, tampouco como referência de patrimônio. No texto

de Bazin, percebe-se que é atribuída ao gene branco de Antônio Francisco Lisboa a sua

capacidade artística, com mistura de toques artísticos primitivos, possivelmente oriundos de seu

gene negro responsável pela originalidade do barroco mineiro. Atentemo-nos à contradição não

aparente: o fato de que o povo português é também miscigenado conforme foi ressaltado por

Gilberto Freire.

Para o SPHAN e acreditamos que também para o Museu Histórico de Belo Horizonte a

mestiçagem é ponto resolvido de forma “positiva”, como ligada à democracia racial, na

contribuição das três raças (branca, índia e negra), para a formação da identidade brasileira,

conforme dissemos anteriormente. Aqui é preciso que atentemos ao foto de como se trabalha com

essa teoria. Se bem observarmos também para o SPHAN e o Museu Histórico de Belo Horizonte

o negro existe como escravo, (que acabou com a abolição). Já o mulato que é uma figura de

transição para o branqueamento da população, faz parte do passado como substancia viva, porém

sem movimento como um contributo não mais vivo em nossa história, a ser recuperado como

peça, inerte, representativo de algo que passou, ou que vai passar.

Para efetivar sua tarefa o SPHAN agia de forma bastante coesa. As opiniões do grupo que

o compunha e seus colaboradores mesmo que fossem divergentes eram resolvidas no ambiente

interno do órgão. A ação era única como o discurso para o Brasil, tanto institucional como dos

membros que o compunham.

O discurso do SPHAN de uma cultura pensada nacional com características de brasilidade

“[...] entendida pela primeira vez, como manifestação estática e histórica da coletividade

brasileira [...]”(SANTOS, 1996, p.85), do qual o barroco (mineiro) foi pensado como origem, era

hegemônico, mas não era o único vigente sobre patrimônio. Também os museus possuíam um

discurso sobre patrimônio que é necessário explicitar para efeito do nosso trabalho, dada a

importância atribuída por Abílio Barreto a esse discurso. Consideramos o Museu Histórico

Nacional um emissor de um discurso sobre patrimônio, igualmente válido naquilo que cabe aos

museus de história: preservação, recolhimento e identificação dos elementos materiais da cultura

nacional.

Para implantar o Museu Histórico de Belo Horizonte, Abílio Barreto precisou ir ao Rio de

Janeiro,7 na época capital federal e ali conhecer instituições culturais que poderiam servir de

modelo ao museu de Belo Horizonte. Além disso foi também contatar o SPHAN órgão

responsável pelo patrimônio que deveria supervisionar oficialmente todo o processo. Esse

discurso é visível no relatório de Abílio Barreto sobre uma viagem feita ao Rio de Janeiro.

Dentre as instituições visitadas por Abílio Barreto no Rio de Janeiro, em sua primeira ida

à antiga capital federal, a que mais chamou atenção foi o Museu Histórico Nacional, conforme

fala em sua correspondência ao Prefeito onde apresenta relato daquela viagem:

[...]despertou-me atenção o Museu Histórico Nacional por ser aquele que melhor se enquadra nos moldes do nosso museu de Belo Horizonte , em organização. […] colhi aí boa cópia de conhecimentos, que serão proveitosos para a organização do Museu de Belo Horizonte, conhecimentos esses reforçados nas visitas aos demais estabelecimentos congêneres daquela cidade. (BELO HORIZONTE. Museu Histórico Abílio Barreto. Relatório apresentado por Abílio Barreto ao Exmo. Sr. Prefeito de Belo

7 A primeira viagem foi realizada no período de 4 a 14 de agosto de 1941 e Abílio Barreto visitou museus oficiais, escolares, e dois museus particulares, além do Museu Histórico Nacional.

Horizonte relativamente à viagem que empreendeu ao Rio de Janeiro em visita aos museus daquela cidade cumprindo ordem de S. Exa, 20 de agosto de 1941)

Após a visita Abílio Barreto apresenta em sua correspondência as conclusões de sua

viagem:

a) Que os museus são sempre instalados em grandes edifícios históricos e tradicionais, situados em centros de parques ou jardins pitorescos […]: b) que o mobiliário e utensílios dos museus devem ser antigos, recordando o tanto quanto possível o arranjo e o gosto de habitações épocas passadas: c) que as louças porcelanas e outras peças de cerâmica próprias para refeições devem ser dispostas em armários envidraçados[…]; d) que a seção de numismática e de outros pequenos objetos de valor deve ser instalada em mostruários envidraçados, […] fechados a chave; e) que os vestuários, fardões e outras peças de indumentária devem ser expostos em armários envidraçados perfeitamente fechados de forma a se conservar inalteráveis; f) que a galeria de pinturas devam estar em amplo salão com perfeita distribuição de luz []... BELO HORIZONTE. Museu Histórico Abílio Barreto. Relatório apresentado por Abílio Barreto ao Exmo. Sr. Prefeito de Belo Horizonte relativamente à viagem que empreendeu ao Rio de Janeiro em visita aos museus daquela cidade cumprindo ordem de S. Exa, 20 de agosto de 1941)

Abílio Barreto continua descrevendo o modo de exposição e guarda do acervo a ser

adquirido mencionando que veio munido de modelos de etiquetas e de instrumentos e também de

literatura para subsidiar o trabalho técnico no museu.

Quanto ao pessoal que trabalharia no museu o organizador propôs que fossem “admitidas

pessoas especializadas em trabalhos de museus ou que, pelo menos tivessem cultura histórica e

artística e muito gosto por esse ramo de atividade. Somente os cargos subalternos deveriam ser

exercidos por pessoas de cultura rudimentar.” (BELO HORIZONTE. Museu Histórico Abílio

Barreto. Relatório apresentado por Abílio Barreto ao Exmo. Sr. Prefeito de Belo Horizonte

relativamente à viagem que empreendeu ao Rio de Janeiro em visita aos museus daquela cidade

cumprindo ordem de S. Exa, 20 de agosto de 1941).

Por todos esses cuidados de Abílio Barreto é possível confirmar a área de museus como

uma área para especialistas e conhecedores de história, arte, etc., enfim eruditos. Desse lugar que

é especial chegando a ser portentoso fala-se com competência e tradição erudita para um todo e

sobre esse todo. Desse lugar se elege aquilo que vai estará nele referenciado como memória e

história da coletividade à qual se refere.

É interessante essa constatação posto que o Museu Histórico Nacional colocado como

modelo ao Museu Histórico de Belo Horizonte, foi implantado (em 1922) em um contexto aberto

para o modernismo e na perspectiva que pode ser entendida como aristocrática.

Regina Abreu analisa esse equipamento cultural na perspectiva antropológica e disseca

seu processo de fundação como vinculada desde a origem “ao poder público dominante cujo

principal projeto consistia em construir a nação brasileira nos moldes das nações consideradas

modernas e civilizadas.” (ABREU, 1990, p.14) Nasce, portanto esse Museu dentro de uma

ambiência social moderna e dentro de um Estado nacional que chama para si a prerrogativa de

moderno e de modernizante. Também nesse período existe a contingência de se construir

identidade nacional abarcando, do ponto de vista da intelectualidade e da cultura, uma identidade

nacional brasileira atendendo à prerrogativa de civilização necessária à entrada no concerto das

civilizações. Esse era também um período de predomínio da técnica e da industrialização com

referência ao progresso, onde: “Congregar-se no concerto das nações civilizadas significava

sincronizar-se com as referidas nações sob o compasso do maquinismo.” (ABREU, 1990, p.15)

Entretanto, para muitos, não haveria contradição entre assimilar inovações e manter-se a ordem

social anterior:

As elites associadas ao poder público dominante, como o próprio Gustavo Barroso, primeiro diretor do Museu Histórico Nacional, argumentavam em favor da edificação dos “lugares da memória” da moderna nação brasileira, onde seriam armazenados documentos comprobatórios de uma marcha em direção ao progresso e à civilização. A criação do Museu Histórico Nacional [...] correspondia a estes anseios. (ABREU, 1990, p.15)

Em termos de modernidade é fato importante a ação do governo federal republicano, de

Epitácio Pessoa que, cedendo a pressões, em 1922, revoga o banimento da família real imperial.

Esse ato gerou uma perspectiva de manutenção da tradição anterior ao sistema republicano e

baseava-se na idéia de que a modernidade foi introduzida no Brasil pelo Imperador D. Pedro II.

Segundo Regina Abreu o Museu histórico Nacional possui em sua gênese os signos de

modernidade e tradição:

Signo de modernidade como corolário de um projeto capitaneado pelo Estado de incluir o Brasil no rol das nações movidas pelos ideais de Progresso e Civilização. Signo da tradição como extensão de um movimento do poder público interessado em retomar o passado, integrando o império e a República num movimento mais amplo de construção da nação nos moldes modernos e civilizados. (ABREU, 1990, p.17)

Enquanto instituição de memória o Museu Histórico Nacional foi então criado e

idealizado por Gustavo Barroso que em sua ação na instituição procurou trabalhar com as

categorias tradição e modernidade de forma complementar não contraditória:

E terminava por associar à categoria “tradição”, obras características dos ideais de modernidade do começo do século (XX) como construção das linhas telegráficas

empreendidas por seu avô materno, protótipo de homem moderno do período – engenheiro de obras públicas.. (ABREU, 1990, p.19)

Sendo assim a tradição não se opunha à modernidade para Gustavo Barroso pelo contrário

conferia ao grupo social (elites econômicas e políticas) sua legitimidade e permanência no poder

por “direito natural”: desse modo, sob a égide da “tradição”, a “nação”era concebida como uma

construção cujas bases teriam sido edificadas num passado remoto, e que a República apenas

dava continuidade.” (ABREU, 1990, p.20)

O Museu Histórico Nacional de Gustavo Barroso vai cultuar o passado por uma visão

nostálgica do período imperial e a existência de uma nobreza brasileira. Nessa direção caminhou

a formação da equipe de conservadores da instituição, discípulos de uma idéia propalada

nomeadamente pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB de que o historiador seria

um esclarecido capaz de influir com seus conhecimentos no futuro do país. Nesse período

vigorava também (emanado do IHGB) uma visão moderna de história tratada:

[...] na linha do tempo articulando passado, presente e futuro num processo linear marcado pela noção de progresso” Nisso: “a nação brasileira seria definida enquanto “representante das idéias de civilização no Novo Mundo”. O conceito de nação operado resultaria fortemente excludente ficando restrito aos brancos. Os índios e os negros estariam excluídos por não serem portadores de civilização. (ABREU, 1990, p.20)

Culto aos heróis nacionais (brancos), ao passado e às elites aristocráticas era o que

privilegiava o Museu Histórico Nacional em sua prática e em seu acervo. Segundo Gustavo

Barroso o papel da instituição era o de “ensinar o povo a amar o passado” na perspectiva de

valorização do respeito ao conteúdo civilizatório das elites brasileiras que se diferenciavam do

resto do povo, também por sua cultura erudita, esclarecida e refinada.

Assim as pessoas que visitavam o museu percebiam, naquele espaço público, as regras

gerais e posições sócias que seriam imutáveis na sociedade em que viviam. Educava-se para a

continuidade da divisão de classes e existência de desigualdades sociais como elementos naturais

e normais do processo histórico da nação.

Quanto ao acervo esse museu teria uma política de aquisição que privilegiava o grau de

nobreza de seu doador. “Os objetos expostos traziam a “aura” de seus possuidores” (ABREU,

1990, p.21) Portanto, as elites foram as maiores doadoras de acervo para o Museu Histórico

Nacional. Com a doação da Coleção Miguel Calmon feita por sua viúva, Abreu diz que se tratou

de uma troca de presentes: à viúva foi oferecida a oportunidade de incrustar a memória de

Calmon à memória nacional extensivos aos seus parentes mais próximos, cabendo a mesma

desfazer-se de jóias valiosas, objetos da esfera pública de atuação política do titular (tapeçaria,

relógios, quadros, coroas, adagas, fotografias pratarias etc.). A viúva separou para doação um

acervo que apresentava Miguel Calmon como: “um homem rico de distinção e bom gosto”

(ABREU, 1990, p.25) Isso demonstra como se entendia no Museu Histórico Nacional o papel das

elites. Elas

figuraram como condutoras do processo civilizatório: vigorava a idéia de que o esclarecimento das elites desembocaria no desenvolvimento da nação como um todo, assim, como de seus habitantes. [...] associando memórias individuais a uma representação do Brasil, as elites apropriavam-se da memória nacional, estabelecendo-se como sujeitos da história, da memória, da estética, da civilização. (ABREU, 1990, p.25-26)

Também o Museu inscreve-se na construção de memória nacional na perspectiva de

identidade nacional faz parte de uma cultura não popular por ser erudita e sabedora de seu papel

civilizatório e dominante.

Os museus históricos na sua implantação traduzem, na montagem de seu acervo, uma

história das classes dominantes e do poder instituído na sociedade que representam. Essa

concepção de museu exclui, desde o início, representações daquilo que se convencionou chamar

classes populares, cidadãos comuns etc. Na consolidação de suas práticas em políticas, os museus

históricos portam-se de modo a ignorar o processo histórico do país, optando por uma construção

idealizada e materializada no seu acervo que elege o lugar para os feitos e ação política das elites

e do Estado passando ao largo do movimento da história que inclui conflitos, contradições,

movimentos etc.. A cidade de Belo Horizonte é um caso ainda mais instigante pelo fato de ser a

cidade construída para ser a capital de Minas Gerais republicana, porém composta pela mesma

estrutura de poder que mantinha-se desde os tempos da colônia, só que com uma elite política e

economicamente formada e nascida no estado. Nessa cidade, em 1943 inaugura-se um museu

destinado a ser lugar da memória da cidade que seleciona aquilo que possa ser referência de uma

história do conteúdo civilizatório de Minas Gerais (que passou por um século de escravidão)

ignorando negros como agentes históricos no estado e na cidade. Ou seja, o acervo selecionado

para o museu para ser referência para o presente, em objetos, documentos escritos e

iconográficos, não reconhece o negro como sujeito e não prevê ali elementos materiais de sua

atuação na história e na política do estado. A cidade que também foi construída no mesmo

discurso é novamente construída, enquanto narrativa que o museu faz sobre sua história. Este

museu foi concebido com o objetivo de identificar, preservar e divulgar a história da cidade e é

moldado nos mesmos princípios da sua fundação: segregação social e também racial.

Os museus que Abílio Barreto visitou em 1941 transmitiram a ele a aura civilizatória que

ele precisava como referência para o Museu Histórico de Belo Horizonte. Torna-se necessário a

partir de agora entender esse processo por aquilo que é propugnado por essas instituições como

cultura, identidade e memória nacionais. Quais os pressupostos teóricos que os teria engendrado

numa concepção exclusiva que aborda uma sociedade idealizada e também sujeitos especiais e

esclarecidos.

3 MESTIÇAGEM NO PATRIMÔNIO A NEGAÇÃO DO SUJEITO HISTÓRICO NEGRO.

“A densidade da história não determina nenhum dos meus atos Sou meu próprio fundamento. É sobrepujando o dado histórico, instrumental, que introduzo o ciclo de minha liberdade”.

(Frantz Fanon)

Por mais que pareça uma ambição conceitual, não é possível hoje como não era possível

quando se engendrou a idéia de patrimônio cultural no Brasil, pensar em um patrimônio nacional

unívoco. Por isso, a noção de herança que a idéia de patrimônio possui pode ter contribuído para

aquele pensamento por ter sido ligado à construção de identidade nacional também com a

característica de unicidade. Conseqüentemente, na área de preservação do patrimônio cultural o

passado é visto como substância do presente. Entretanto a operação de re-significar o passado

para matéria do presente envolve escolhas por parte de sujeitos específicos, sujeitos esses

“encarregados” dessa operação por vezes melindrosa, por outras, autoritária, mas sempre

ideológica e com as melhores das intenções. Realizada no tempo presente, aquela re-significação,

identifica no passado o que é absolutamente essencial para a nutrição do tempo presente e do

futuro inclusive com contradições. Esse processo de identificação compõe-se de aspectos

escolhidos de uma mesma finalidade cuja importância reside na composição da identidade

nacional brasileira. Além disso, envolve também, idéias de valor, de civilização e de negação das

diferenças. Assim, delineiam a questão do patrimônio no Brasil em sua implantação e

substanciam a origem do Museu Histórico de Belo Horizonte.

Maria Cecília Londres Fonseca, em seu livro sobre patrimônio no Brasil, fala que Mário

de Andrade, um dos ideólogos do Patrimônio, acreditava que “[...] é pelo valor histórico de bens,

por seu valor enquanto testemunho da existência dos antepassados, que se atrairão as massas para

os monumentos.” (FONSECA, 1997, p.109) Esse também pode ser considerado o pensamento

daqueles que atuavam no SPHAN em seu início. Pode-se considerar que para a ação cultural

empreendida pelo Estado Novo eram levados em conta muitos pontos do pensamento do

modernista Mário de Andrade.

Quanto aos museus municipais, Mário de Andrade preconizava que deveriam possuir

acervos heterogêneos e ecléticos representativos da identidade local, com “critérios de seleção

das peças ditados pelo valor que apresentam para a comunidade local que participaria ativamente

da coleta de bens” (FONSECA, 1997, p.110). O pressuposto era portanto, o diálogo entre

técnicos e população imbuídos no sentido das referências a serem adotadas pelo museu.

Como foi visto no primeiro capítulo, esse não seria o modelo a ser adotado pelo Museu

Histórico de Belo Horizonte cuja variedade estaria mais ligada à história imaginada e selecionada

da cidade por sua elite intelectual, política e econômica, em consonância com o governo.

Perseguiria uma intenção de se apresentar como bandeira da capacidade de modernização,

regeneração e adaptação aos novos tempos, que aquela elite teria e que demonstrara anos antes

com a construção de uma cidade planejada em pleno início do período republicano. A melhor

forma tomada por essa afirmativa é a obra de Abílio Barreto Memória Histórica e Descritiva,

História Antiga e História Média. Ela é uma referência, uma fonte e uma versão de história da

cidade de Belo Horizonte. Nessa obra a paixão do escritor pela cidade e seu interesse em escrever

sua história é confirmada por abundantes fontes históricas e imagens escolhidas de sua memória.

O autor executa essa tarefa elaborando um texto narrativo exato, que não deixa margens a

dúvidas. Por isso opta por uma escrita na perspectiva oficial.

Afirmando-se como homem de seu tempo, Abílio Barreto considerava a história como processo linear, em que o tom normativo é a idéia de progresso e o fio condutor para se reconstituir o passado, as fontes documentais e, de preferência as oficiais. Assim, bem à moda positivista, levou às últimas conseqüências o principio de que “sem documentos não há história.” (FARIA, 1995, p.29)

Entretanto é necessário que se reconheça o mérito dessa iniciativa que propicia nos dias

atuais, uma leitura da história da cidade que embora escrita de acordo com o poder que dirigiu

sua construção, apresenta também, mesmo que de forma escamoteada, outros sujeitos e outras

propostas de cidade vencidos no decorrer do processo haja visto que o lançamento do primeiro

volume da obra em 1936 insere-se em um momento histórico importante para Minas Gerais e o

Brasil, além de coincidir com o Congresso Eucarístico Nacional realizado em Belo Horizonte o

qual foi bastante prestigiado pelo governo estadual e municipal estando no bojo do apoio dado

por Minas Gerais a Getúlio Vargas, fortalecendo-o politicamente para efetivar o golpe do Estado

Novo.

Como disse Michel Le Vem, a obra oferece também uma perspectiva do “momento

fundante” da cidade de Belo Horizonte, mesmo que não propicie a visão plural, em termos sociais

daquele momento. Nesse sentido, “reler Abílio Barreto pode nos ajudar a redefinir a identidade

de Belo Horizonte-Metrópole(...)”.(LE VEM, 1995, p.34)

O valor da obra de Abílio Barreto concentra-se na perspectiva do olhar do pesquisador de

hoje como uma essencial descrição de aspectos sociais da cidade. Mesmo os atos oficiais

referiam-se ao universo amplo da construção urbana e a sujeitos que hoje são importantes para

uma nova historiografia e que podem ser recuperados por meio da narrativa do autor.

Assim, para o historiador que lê hoje Belo Horizonte – Memória Histórica e Descritiva, trata-se de ir além das aparências da história narrativa, reter informações que ela fornece cruzando-as com outras a fim de construir relações que não as dependentes do registro do fato “puro”. [...] trata-se hoje de “desconstruir” as condições em que o documento foi produzido, reconstituindo as redes culturais do seu contexto e ultrapassando os limites de sua formulação. (SALGUEIRO, 1995, p.37)

No primeiro volume da obra, Abílio Barreto realiza um histórico do Arraial do Curral Del

Rei como fundado em decorrência do desbravar das Minas Gerais, com os bandeirantes paulistas

brasileiros até o processo de mudança da capital, “[...] a partir de quando a idéia de realização

desse monumental cometimento despontou no cérebro da gente montanhesa, até o seu

solucionamento a 12 de dezembro de 1893”. (BARRETO, 1995, p.17)

Nesse volume, o autor, em várias passagens, permite entrever o sujeito negro como

escravo ou liberto e após a abolição, em meio às narrativas sobre a evolução do arraial onde foi

construída a cidade de Belo Horizonte. Citando um dos moradores do Arraial do Curral Del Rei

Major Cândido Brochado que era um conservador convicto e orgulhoso de ter nascido e vivido

naquele arraial “foi assassinado por um negro escravo, nas proximidades do Freitas, quando se

dirigia para Sabará.” (BARRETO, 1995, p.212) Mais à frente, nesse mesmo capítulo, comenta

que aquele Major anos antes, por ocasião da guerra de secessão nos Estados Unidos recebeu um

fazendeiro daquele país de nome Melon, que estabeleceu-se na fazenda da Gameleira, trazendo

para o local um dos primeiros arados a entrar no Brasil. O autor termina o capítulo dizendo que

para o Arraial como para o resto do Brasil a Lei do Ventre Livre e a Lei Áurea possibilitaram que

todos os senhores de escravos respirassem “um pouco menos torturados” pelo mal da escravidão.

Assim, foi possível que dramas cruéis não se repetissem como

aquele caso que se encontra em uma escritura de cessão de herança, no Livro 3º de notas do Curral Del Rei p. 41.[...]. Dessa escritura consta, conforme declaração feita em presença do vigário Bernardino José de Aquino e de Isidoro José Pereira de Seixas, que um velho curralense8, pai de sua escrava Roberta Parda, com ela tivera três filhos de nome Antônio, Aarão e Joana, os quais conservou, até a sua morte, humilhados na condição de escravos, deixando-os,

8 Na obra de Abílio Barreto “curralense” se refere ao habitante do Arraial do Curral Del Rei e “horizontino” ao habitando do Arraial do Bello Horisonte. Esse último é o nome que a localidade recebeu em 1890, quando as elites do arraial se mobilizaram para mudança do nome do lugar.

depois, por herança, aos filhos legítimos, que os libertaram, por sabe-los seus irmãos!... (BARRETO, 1995, p.213)

Para efeito da presente monografia é importante também citar na construção narrativa que

Abílio Barreto faz do Arraial do Curral del Rei no volume História Antiga uma menção às

devoções do Arraial. Assim sendo, localiza a matriz do século XVIII, existente no local9, cuja

demolição se deu somente em 1932, sobrevivendo à construção da cidade e à sua inauguração e

mais duas igrejas: a de Santana e a do Rosário.

A igreja de Santana, segundo Abílio Barreto era rústica e foi construída por um caboclo

pobre. À sua padroeira eram reconhecidos e descritos milagres. Sua história foi descrita no

Álbum Católico e o templo correspondia à alma de seu edificador:

Foi seu construtor um velho caboclo de nome João Evangelista, sendo que os recursos para sua feitura eram fornecidos pelos próprios milagres da padroeira [...]. O dia do traspasse [do caboclo], que coincidiu com o da festa da Senhora Santana, ficou assinalado por um acontecimento estrondoso. Tinha ele por costume ir pôr, todos os domingos, uma vela acesa aos pés da santa. Doente, porém já moribundo, não pudera então ir cumprir o dever piedoso, a que já se habituara. Pois, apesar disso, no dia de sua morte, lá estava, como de costume, a vela a arder aos pés da santa imagem [...].(BARRETO, 1995, p.260)

Todos ficaram maravilhados inclusive o padre que foi chamado para testemunhar o fato e

viu: “[...], a consumir-se a alma pura do caboclo curraleiro que subia serena, aos céus.”. (BARRETO, 1995, p.257)

A capela do Rosário foi descrita “sem beleza, sem arte” [...] No seu adro também fazia-se sepultamentos. Esse pequeno templo completamente desprovido de ornatos e alfaias quase nada tinha de interessante. (BARRETO, 1995).

Nela se realizavam em outubro,

o Reinado ou Reisado, a festa favorita dos pretos, os quais atroavam o arraial com os seus adufes, tambores, sambucas, puitas, e reco-recos, dançando em louvor de Nossa Senhora do Rosário. Nesse dia, pela manhã havia missa cantada e à tarde efetuava-se a cerimônia de deposição dos reis velhos e eleição dos novos para o ano seguinte. (BARRETO, 1995, p.264)

No segundo volume de sua obra Abílio Barreto trata de todos os meandros da construção

da cidade desde o momento em que a Comissão Construtora da Nova Capital instalou-se no

Arraial do Belo Horizonte (nova denominação dada ao Arraial do Curral Del Rei em 1890) até a

inauguração da cidade que aconteceu em 1897. O volume denominado História Média é aquele

onde Abílio Barreto pôde colocar mais informações advindas de sua memória. Ele acompanhou

9 Esse templo foi objeto de dissertação de mestrado realizado por Marcelina Almeida. Nele é possível perceber a sobrevivência da matriz ao processo de construção e implantação da capital de Minas Gerias.

in loco o movimento da construção a partir de setembro de 1895 aos 12 anos de idade, quando

chegou ao local vindo de Diamantina. Enquanto ali trabalhou colheu também informações sobre

sua construção com os técnicos e os engenheiros que com ele conviveram.

Em vários momentos o autor relembra conversas em que falavam sobre as expectativas da

cidade em processo de construção e das mudanças que ela representava. Um desses lugares era a

Farmácia do Abreu, um local onde se reuniam, ao por-do-sol, por volta das 18 horas, todos os

dias um “grupo seleto, que era composto de engenheiros, médicos, altos funcionários,

empreiteiros, comerciantes e industriais” (BARRETO, 1995, p.376) que comentavam notícias de

jornais contrários à mudança da capital10 e sobre assuntos nacionais e locais. Em uma dessas

conversas registradas por Abílio Barreto nota-se por meio de sua narrativa como uma

determinada história da cidade ia se fazendo naquele cotidiano como iam aparecendo coisas que

eram próprias da cidade, daqueles que a habitavam no momento e de como eram importantes,

para Barreto alguns breves instantes desse cotidiano para a história da cidade. Em uma daquelas

reuniões o autor narra o momento em que apareceria o primeiro trocadilho praticado no local.

Essa passagem é interessante porque mostra uma contradição àquilo que falado na História

Antiga sobre a vergonha que a escravidão causava aos habitantes do Arraial11. Tantos anos depois

o negro que participava da construção da cidade é discriminado por sua cor tanto quanto por ser

descendente de escravos.

Perguntado pelo senhor Abreu de como iam os trabalhos em sua seção o senhor Edgard

Nascentes Coelho, desenhista da Comissão Construtora autor do desenho de vários dos prédios

públicos da cidade, disse que em seu trabalho aquilo que o teria

[...] desgostado ultimamente é a malandragem do pretinho, [...] contínuo da minha seção, que deu agora para chegar tarde, deixando as mesas sem espanar, tudo sujo, atrapalhado, um inferno! Hoje reclamei, como em outros dias, e ele desculpou-se dizendo que atrasara um pouco porque estivera cantando no coro da Boa Viagem. -Ora essa! – volveu o Abreu. Então o pretinho agora deu pra cantar? -Ora se deu... Canta e... entoa – explicou o Senhor Edgard. Mas veja você mestre Abreu, como está este mundo de pernas pro ar: antigamente o couro é que cantava no negro, ao passo que hoje em dia, o negro é que canta no coro... Uma gostosa gargalhada dos componentes da “roda” festejou aquele trocadilho, talvez o primeiro perpetrado em Belo Horizonte. (BARRETO, 1995, p.376) (grifos meus)

As passagens sobre os negros em Belo Horizonte antes de depois de ser capital,

extraídas da obra de Abílio Barreto e acima citadas, apontam para a negação da identidade negra

10 O autor cita especificamente O Pharol de Juiz de Fora, dentre outros. 11 Ver nota n. 4.

da cidade, mesmo que se reconheça a presença e atuação de negros nessa história. Isso é

demonstrado pela discriminação racial, mantida na cidade por seus técnicos engenheiros e

prováveis membros de sua elite (inclusive intelectual). Aliado ao fato de que a narrativa do autor

apresenta uma questão pouco tratada até hoje, que é a participação do negro na construção da

cidade, como membro das levas de operários que chegaram para os trabalhos, em suma, o tom

discriminatório apresenta-se igualmente como indício da invisibilidade do negro na escrita da

história da cidade e do seu museu. A menção ao negrinho na omissão de seu nome e a falta de

importância de sua atividade cultural, conjuntamente à criação do “fato histórico”: perpetração do

primeiro trocadilho na cidade mostram e torna corriqueiro não reconhecer negros como sujeitos,

sociais, históricos e políticos. Isso iria perdurar por longo tempo na elaboração da história da

cidade mesmo naqueles estudos que se propunham a localizar fatos cotidianos e pitorescos da

cidade. Sempre a cidade vai aparecer como se nela não houvesse negros. A questão da diferença

entre negros e brancos embora apareça na obra de Abílio Barreto é entendida na forma de

negação dessa identidade na cidade, simultaneamente a valorização da identidade branca que é a

do progresso, da técnica e do processo civilizatório, características da cidade de Belo Horizonte

em sua construção e instalação como capital de Minas Gerais em 1897. Uma identidade unívoca,

portanto.

Porém se agregarmos à definição de patrimônio a de território: “demarcação de um espaço

na diferença com os outros” conforme o faz Sodré (2002, p.23) quando estuda a especificidade

social negro-brasileira, veremos que o território é local de vivência de uma identidade específica.

Sodré especifica a questão dos terreiros de candomblé como espaço de exercício de construção

de identidade coletiva assinalando que os negros estabeleceram no Brasil, desde o período

colonial um território seu onde escravos e libertos (negros) constituíram-se enquanto grupo. O

terreiro é por excelência o território da identidade afro-brasileira e de preservação da matriz

africana mesmo que acrescida ou diferenciada, devido às descontinuidades comunais africanas,

no Brasil. O autor afirma que nem a desagregação familiar e comunitária advinda da

característica do tráfico e do comércio dos escravos na colônia desfiguraria essa identidade. Para

Minas Gerais e Belo Horizonte, também pode ser aplicada a noção de território. Os negros que

exercitam sua identidade grupal na Festa do Rosário ou o negrinho que canta na igreja, da forma

como aparecem na narrativa de Abílio Barreto, parecem apontar para territórios específicos de

negros e de brancos no período anterior e durante a construção da cidade de Belo Horizonte.

“O patrimônio, qualquer patrimônio, pode mesmo ser concebido como um território

(...)”(SODRÉ, 2002, p.52) que se define pela existência da ação do sujeito e por sua

especificidade social. Nesse caso a definição aplica-se ao aspecto de patrimônio que estudamos

nesse texto. Os negros estabeleceram em Belo Horizonte um território onde atuavam

culturalmente, religiosamente em grupo. Continuando na definição de Sodré, se território implica

em opor-se a um outro que ocupa também o mesmo espaço onde vários territórios podem co-

existir, pode-se tomar a história de Belo Horizonte desde o Arraial do Curral Del Rei como o

espaço de atuação dos territórios dos negros e dos brancos. Muitas vezes essa atuação possui

caráter de resistência por parte dos negros e em outras é possível entendê-lo enquanto território

de apropriação. Cantar no coro da igreja e participar da Festa do Rosário aparentemente pode

parecer atuar em um espaço religioso que é do branco, mas que foi re-territorizado pelo negro.

Portanto a Igreja do Rosário é um território dos negros no Arraial. Infelizmente, esse templo não

sobreviveu com a Comissão Construtora da Nova Capital.

Abílio Barreto dedica uma parte de sua narrativa para falar das devoções e dos templos do

Arraial. Difere a Matriz da Igreja do Rosário e da Igreja de Santana. Mas sua descrição possui

também um tom de preconceito se comparada à descrição mais detalhada da Igreja de Santana, ao

falar da ausência de beleza e arte nos detalhes da igreja e também ao falar da igreja citando até

milagres operados pela Santa por pura fé do caboclo (SODRÉ, 2002). Na igreja de Santana,

embora pobre e simples, o fato de ter sido construída e preservada por um mestiço (de índio e

branco) garante na narrativa de história da cidade de Belo Horizonte uma fala especial uma

pesquisa quase minuciosa dos milagres guardados na memória dos descendentes dos antigos

habitantes do arraial. Atente-se ao fato de que o caboclo que construiu a Igreja de Santana não

possuía família nem descendência.

No território que estabelecem como forma de resistência e de identidade os negros

desenvolveram formas específicas de associativismo, cultura e resistência ao sistema escravista,

que escapa a uma visão imediatista, superficial e uniformizante em termos de análise do social.

Por isso, a prática social negro-brasileira, conforme fala Sodré é entendida por aqueles que a

analisam nos moldes ocidentais como uma cultura ingênua, primitiva, arcaica, fetichista, etc.

Enfim, menor. Isso aparece na forma narrativa de Abílio Barreto. Estabelece-se, do ponto de vista

econômico uma dicotomia entre as elites e o povo. Porém essa dicotomia apresenta-se também

nos campos político e cultural:

No “circuito”, da situação de marginalidade social, vivida pelo negro também depois da

abolição, a festa, o Reisado, o viver cultural são vistos como incoerentes pelas elites, e passível

de “correção educacional” (SODRÉ, 2002, p.83) Belo Horizonte, pode ser também entendida na

perspectiva “educadora” das elites mineiras que tomam para si mesmas a responsabilidade de

gerir o processo civilizatório no início do período republicano no Brasil. Para o povo o território é

visto como espaço de autonomia, de uma vivência social própria e autêntica.

Nesse sentido é possível entender a narrativa histórica de Abílio Barreto como

antecedente da narrativa que o museu histórico constrói para a cidade por meio de identificação,

recolhimento e exposição de objetos. Uma é sucedânea da outra e em ambas o negro não tem

lugar.

Os museus permitiram-se em vários momentos de sua existência narrar uma sociedade na

perspectiva de um território branco e civilizado, o que não foi diferente com o museu de Abílio

Barreto. A proposta de mostrar a identidade e a história da cidade almejava corresponder ao

período de modernização empreendido pelo governo municipal em consonância com o Estado

Autoritário em níveis federal e estadual. Mas como se negaria em um projeto de museu essa

identidade naquele momento específico? A ideologia da mestiçagem talvez seja a operação mais

bem sucedida no empreendimento dessa negação.

No livro Cultura Brasileira e Identidade Nacional, Ortiz (2006) aborda os dois temas no

processo histórico do Brasil. E embora se concentre no período de ditadura militar da história

brasileira, sua análise focaliza o Estado autoritário em outros períodos inclusive o Estado Novo

das décadas de 1930 e 1940. Sua análise nos ajuda a compreender a importância da ideologia da

mestiçagem nos projetos de construção de identidade nacional e cultura nacional. Uma das

primeiras advertências do autor é de que pretende com seu estudo: “[...] mostrar que a identidade

nacional está profundamente ligada a uma reinterpretação do popular pelos grupos sociais e à

própria construção do Estado Brasileiro. (2006, p.8) A partir de determinados textos, “Casa

Grande e Senzala” é um deles, é possível perceber a questão da mestiçagem colocada de modo

positivo e aproveitada pelo Estado que identifica o mestiço com o trabalhador. Aquele que vai

construir (como operário) um Brasil moderno. A mestiçagem livre da reclusão das teorias racistas

“torna-se senso comum” e passa a ser desejável como identidade da nação. Socialmente,

indivíduos das três raças refazem uma nova interpretação de suas experiências com o racismo, na

nova ordem, o que impede o reconhecimento das fronteiras de cor. Nesse ponto o papel da

cultura enquanto ação do Estado é definidor. Temas como o samba perdem sua especificidade de

origem negra (na “malandragem”), e são diluídos em um arcabouço ideológico de um nacional

mestiço. (grifo meu).

No Estado Novo as ações de cultura ganham expansão em termos de equipamentos e

órgãos especializados de teatro, musica (rádio nacional), patrimônio etc.

Segundo Ortiz que diferencia a memória coletiva e memória nacional “a memória coletiva

é da ordem da vivência, a memória nacional se refere a uma história que transcende os sujeitos e

não se concretiza imediatamente no seu cotidiano.” (2006, p.135) A memória nacional é uma

construção ideológica visa a unicidade social e se “impõe” à sociedade como um todo e por não

ser vivenciada e construída – territorializada - é repassada na vivência cotidiana de grupos

específicos: é pois virtual. Por isso desconsidera diferenças e subjetividades. Igual a idéia de

identidade nacional trata-se de algo idealizado, alheio aos valores populares vividos e

reinventados na tradição. “Memória nacional e identidade nacional são construções de segunda

ordem que dissolvem a heterogeneidade da cultura popular na univocidade do discurso

ideológico.” (ORTIZ, 2006, p.138) No Estado autoritário brasileiro os órgãos culturais possuem

capacidade de alterar simbolicamente a realidade social. Essa ação considera valores populares

concretos, mas, decantados, como valores nacionais a serem referenciados. Esse procedimento

ideológico exige um ator que funcione como mediador que pesquise o popular e oriente o Estado

no sentido de agir de forma totalizante.

Aqui o papel dos intelectuais é de grande importância. Eles são produtores de idéias e de

interpretações do nacional. Estão em postos-chaves do serviço público e tomam decisões

importantes em termos culturais. Já especificamos no primeiro capítulo o surgimento da questão

do patrimônio no período do Estado Novo e o papel importante dos seus ideólogos. Ele é sempre

estudado, porém, para a questão dos museus é preciso fazer uma importante diferenciação que

existe na realidade daquele momento político-social e que de certa forma apresenta-se como

contraponto ao pensamento modernista que aqui não pode ser detalhado, mas que pode ser

cotejado pela atuação dos modernistas no Ministério da Educação e Saúde de Capanema.

O período de Capanema à frente do Ministério de Educação e Saúde foi o mais longo da

história do Brasil (1934-1945) e lançou bases importantes para efeito de ação cultural do Estado

também anos depois. O Estado Autoritário foi um ator de modernização. O gabinete de

Capanema era por assim dizer repleto de intelectuais mineiros que conviveram com o ministro

em sua juventude na Rua da Bahia em Belo Horizonte e que mesmo que não comungassem

totalmente com suas posições políticas mantinham com ele uma relação de solidariedade e

confiança. Para o Ministro:

era sem dúvida no envolvimento dos modernistas com o folclore, as artes, e particularmente com a poesia e as artes plásticas, que residia o ponto de contato entre eles e o ministério. Para o ministro, importavam os valores estéticos e a proximidade com a cultura: para os intelectuais, o Ministério da Educação abria a possibilidade de um espaço para o desenvolvimento de seu trabalho, a partir do qual supunham que poderia ser contrabandeado, por assim dizer, o conteúdo revolucionário mais amplo que acreditavam que suas obras poderiam trazer (SCHWARTZMAN: BOMENY; COSTA, 2000, p.99)

Percebe-se portanto que do ponto de vista ideológico o papel dos intelectuais foi o de

implantação e de apoio às ações de governo, em uma relação de troca tácita pressupondo que

alguns de seus projetos fossem viáveis para o Brasil. Porém uma aproximação do Estado da

cultura do povo com vias a manipulação também era instituída. Esse papel foi cumprido pelo

departamento de propaganda, de forma magistral. (SCHWARTZMAN; BOMENY; COSTA,

2000, p.104-105) Do ponto de vista do patrimônio, no SPHAN, a viabilização de uma imagem

unitária do Brasil do lado do ideário modernista foi também um ganho. A recuperação de Ouro

Preto como monumento à identidade nacional, por ser o passado genuinamente brasileiro é um

claro exemplo disso aí trabalhou-se com a idéia de passado para a nação não relacionado com

Portugal. Vale ressaltar que esse barroco recuperado teve camuflado, em sua originalidade, o ator

social negro, artístico e minerador do século XVIII de Minas Gerais.

Abílio Barreto, em sua história antiga de Belo Horizonte, também trabalhou com uma

origem genuinamente brasileira. O Arraial do Curral del Rei foi fundado por um bandeirante

branco paulista, A capital de Minas Gerais tem portanto sua origem brasileira. Outra analogia

aos procedimentos dos intelectuais de patrimônio do período do Estado Novo é possível aos

procedimentos do intelectual mineiro Abílio Barreto, quando foi proposto a ele erigir um

monumento à história de Belo Horizonte, ou seja, um museu. Essa analogia, entretanto não pode

ser direta nem completa, pois apesar de o museu venerar e ser repositório da história da cidade

contada por Abílio Barreto em sua obra, esse não possuía interesses que poderiam entrar em rota

de colisão com a ideologia do Estado Autoritário. Tal rota era no sentido de complementação e

adaptação. Tanto o espírito modernizante do governo Juscelino Kubtscheck, na cidade precisava

de uma aura cultural como Abílio Barreto pretendia continuar seu trabalho como historiador da

cidade. Conforme veremos no próximo capítulo é com o SPHAN que a possibilidade (não

consumada) de conflito pode ocorrer, particularmente no que diz respeito à identidade local a ser

representada pelo Museu Histórico de Belo Horizonte. Novamente os conflitos entre passado e

modernidade, os quais, para efeito de nosso referencial teórico entendemos: no contexto de

criação de seu museu, a cidade de Belo Horizonte pode ser tomada como lugar e o museu como

não-lugar para o negro principalmente que não teve reconhecida sua contribuição na história da

cidade, seu território.

Segundo Marc Augé a antropologia diz de processos vivenciados e analisados no

momento presente dessas vivências: o aqui e o agora. De acordo com sua análise no presente

texto abordamos aquilo que o autor apontou, quando diferenciou o fazer dos antropólogos e dos

historiadores. Esses últimos trabalham com o documento e com o tempo passado. Mesmo que sua

pesquisa tenha também interesse antropológico, ao contrário do antropólogo o historiador

trabalha com o agora não com o aqui. Dentro das considerações importantes apontadas por Augé

(1994), logo no começo de sua obra, queremos considerar o duplo lugar e não-lugar para o tema

que estudamos.

Augé define lugar antropológico como identitário, histórico e relacional, ou seja,

possuidor de “conjunto de possibilidades, prescrições e proibições cujo conteúdo é, ao mesmo

tempo, espacial e social” (AUGÉ, 1994, p.52), portanto, constitutivo da identidade individual. O

lugar é espaço de coexistência de “elementos distintos e singulares, mas, sobre os quais não se

proíbe pensar nem as relações nem a identidade partilhada que lhes confere a ocupação do lugar

comum” (AUGÉ, 1994, p.53). Por último, porque conjuga identidade e relação o lugar pode ser

também definido como histórico uma vez que é vivido por seus habitantes que podem aí,

“reconhecer marcos que não têm que ser objetos de conhecimento” (AUGÉ, 1994, p.53),

podendo não ser percebidos e objetivados pela história enquanto ciência.

O não-lugar aparece na obra de Augé, primeiro em contraponto ao lugar. São “[...]

polaridades fugidias: o primeiro nunca é complemente apagado e o segundo nunca se realiza

totalmente” (AUGÉ, 1994, p.74).. Porém Augé chama atenção para o fato de o não-lugar não

contrapor-se ao lugar de forma negativa. Se pensarmos na situação do viajante que traça seu

itinerário de viagem, veremos que nesse traçado ele coloca nome de lugares que para ele não

dizem muito sobre os espaços a serem visitados. Os nomes “criam um não-lugar nos lugares; eles

os transforma em passagens” (CERTEAU apud, AUGÉ 1994, p.156). Dessa forma, o não-lugar

poderia configurar-se em local onde o visitante pode praticar o exercício da viagem a começar

pelo nome daquele local e pelo itinerário que ele propõe.

E se chamarmos de “espaço” a prática dos lugares que define especificamente a viagem, ainda é preciso acrescentar que existem espaços onde o indivíduo se experimenta como espectador, sem que a natureza do espetáculo lhe importe realmente. Como se a posição do espectador constituísse o essencial do espetáculo, como se, em definitivo, o espectador, em posição de espectador, fosse para sí mesmo o seu próprio espetáculo. (AUGÉ, 1994, p.80-81).

Na obra de Augé os não-lugares são constituídos em uma correspondência aos fins de

transporte, trânsito, lazer etc. Os “não-lugares medeiam todo um conjunto de relações consigo e

com os outros que só dizem respeito indiretamente a seus fins. Assim como os lugares

antropológicos criam um social orgânico, os não-lugares criam tensão solitária”. (AUGÉ, 1994,

p.87).

Os não-lugares inscrevem-se no social por textos informativos, instrucionais e proibitivos

que elaboram: “modo de usar”, “instruções”, “sentido obrigatório”, etc. É também uma

característica da supermodernidade que, por sua vez diferencia-se da modernidade onde o

passado e o presente habitam o mesmo espaço social. Na supermodernidade a história é tornada

espetáculo específico contida como “citações” em textos. “Nos não-lugares da

supermodernidade, sempre há um lugar específico (na vitrine, no cartaz, à direita do aparelho, à

esquerda da auto-estrada) para “curiosidades” apresentadas como tais [...]” (AUGÉ, 1994,

p.101). (grifos meus).

Consequentemente, no contexto que estudamos, a cidade é o espaço das vivências de

diferentes sujeitos que a constróem material e textualmente, como Abílio Barreto. Porém o que é

eleito como digno de figurar na história da mesma é aquilo que as elites escolhem para tal. Não é

o espaço do negro que canta no coro da igreja nem daqueles que faziam o Reisado de Nossa

Senhora, como não o é dos operários que constroem a cidade. Esse espaço pertence aos técnicos e

elites intelectuais, políticas e financeiras que se estão formando ou reformulando-se. Fato

comprovado pela composição do gabinete de Capanema. O mesmo ocorre com a escolha de

Abílio Barreto para efetivar um equipamento de preservação do patrimônio em Belo Horizonte.

Por isso o museu pode ser considerado um não lugar para o negro da cidade de Belo

Horizonte, onde o negro não é identificado e para onde não é atraído. A história contada é outra.

A história referenciada no museu da história de Belo Horizonte é a da comunidade imaginada por

Abílio Barreto em sua obra e em sua concepção do museu. Existe, portanto a intenção de uma

identidade local que se expressa pela unicidade da elite e não pela presença de territórios

diferentes e algumas vezes contrapostos.

Os museus possuem como característica a narrativa que acontece prioritariamente

nas exposições de seu acervo as quais possuem como pano de fundo a imaginação de uma

identidade local.

Se aplicarmos para a esfera municipal o conteúdo ideológico do termo identidade nacional

veremos que várias de suas características se repetem, o que em Belo Horizonte, na época de

implantação de seu museu histórico também é verificável. Por meio da cultura a cidade é

imaginada para efetivação do museu histórico. A minimização de fatos culturais relacionados aos

negros (cantar no coro da igreja e fazer a Festa do Rosário, por exemplo) e o enobrecimento de

outros relacionados aos brancos (técnica, profissão, cultura), conforme descrito anteriormente,

demonstram a capacidade de reinventar uma cidade excluindo dela sujeitos específicos. Assim

sendo o Museu vai recuperar em seu acervo aquilo que diz respeito apenas ao fazer das elites. O

negro é representado de forma resignificada como escravo com a exposição dos instrumentos de

suplicio, não por sua contribuição cultural e histórica. Não se recupera aí nem mesmo o escravo

como sujeito histórico. Portanto, o negro é dado como acabado com a escravidão. Seria como se a

cidade não possuísse, em sua população, sujeitos negros, ou se os possuísse seriam tipos

pitorescos, ingênuos etc., que carecem civilização, incapazes de influenciar a história, não

marcando e não comparecendo na narrativa de sua história na cidade.

Hall tratando das comunidades imaginadas em sua obra chama atenção para o fato de que

identidade e cultura nacionais não são homogêneas nem unificadas representam pois, esse papel e

a cultura nacional é como veículo dessa representação.“As culturas nacionais são compostas não

apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações”. (HALL, 2002, P.51)

Hall estuda cinco elementos importantes que interferem na forma como a cultura nacional

é narrada: a cultura nacional é “contada e recostada nas histórias e nas literaturas nacionais”

(HALL, 2002, P.52) contribuindo para ligar nossas vidas a essa comunidade imaginada, fazendo

parte dela como se ela nos antecedesse e continuasse após nossa morte. Além disso a cultura

nacional possui “ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade” HALL,

2002, P.53), seus elementos são imutáveis apesar da história, sempre existiram, nunca acabarão e

suas tradições são inventadas, embora travestidas de antigüidade em ligação com o passado

histórico. Por fim segundo o mesmo autor, possui um mito de fundação que “localiza a origem da

nação, do povo e do seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem [...] no

tempo mítico. [...] é também, muitas vezes baseada na idéia de um povo ou folk puro, original”

HALL, 2002, P.55)

Assim sendo, em termos de identidade é preciso que se tenha em conta a questão do

folclore como elemento de identidade. Coube inicialmente aos modernistas trabalhar com o

conceito de cultura popular diferenciado de uma cultura erudita. O conceito de folclore no Brasil

possui uma ligação direta com o termo cultura popular que vai aparecer também na

especificidade dos museus como elemento de patrimônio. Nessa especificidade o termo folclore12

é substituído pelo de ergologia. Esses dois conceitos demonstram essa sutil contradição pela

forma de como é trabalhada a cultura negra no Brasil, enquanto elemento de identidade e de não-

identidade nacional. Temos aqui novamente representadas as memórias e ações culturais dos

negros como não passíveis de compor uma identidade nacional a não ser de forma diferenciada

no sentido de hierarquia. A cultura popular nesse contexto é inferior à cultura erudita.

Entretanto é fato que a cultura popular seja para os modernistas o componente da

identidade nacional. Para Mário de Andrade, enquanto ideólogo do patrimônio e enquanto literato

a preocupação com o popular marca sua atuação e sua obra: “o popular como objeto e o povo

enquanto alvo”.(FONSECA 1997, p.110) Quando redigiu o ante-projeto do SPHAN, em 1936,

Mário de Andrade referiu-se detalhadamente às obras de cunho popular em detrimento das obras

de cunho “erudito”, procurando dar conta de sua especificidade “provavelmente porque não

ocorreria, na época, considerá-las com a mesma naturalidade como bens patrimoniais”

(ANDRADE apud FONSECA 1997, p.110).

Também o SPHAN reconhece como miscigenado e não negro o patrimônio cultural de

cunho popular, particularmente o de Minas Gerais:

Foi desse lastro humano, cujo cruzamento inter-racial se intensificou, na medida da carência extrema de mulheres brancas e de soltura de costumes, que emergiram os artistas e artífices aos quais devemos as obras mais expressivas da cultura mineira, dentre eles se distinguindo, na Segunda metade do século XVIII, os mulatos, especialmente no domínio das artes plásticas e da musica. (FONSECA 1997, p.110)

Igualmente, no caso do patrimônio (leia-se SPHAN), a herança patrimonial civilizatória

era branca. Dada à descendência branca e civilizada é que os mulatos puderam se destacar na arte

religiosa e construir patrimônio artístico e arquitetônico. A assimilação cultural aqui funciona às 12 Aqui o folclore é entendido no contexto dos anos 1930 e 1940 quando surge como conceito afeito mais aos intelectuais ligados à literatura. O folclore entendido como campo de pesquisa e de estudos ligados a antropologia e sociologia foi exaustivamente estudado por Luis Rodolfo Vilhena.

avessas:o assimilado é o mulato que embora seja o responsável pela originalidade do barroco

brasileiro, mineiro por excelência, diferente do barroco europeu, tem sua arte tornada branca por

sua descendência genética. Podemos ver que a ideologia da mestiçagem poderia ser explicitada

para o caso de haver controvérsias quanto ao Museu Histórico de Belo Horizonte.

A mestiçagem é uma teoria trabalhada por muitos estudiosos no Brasil e não nos é

possível, agora, contrapô-los e verificar suas coincidências e avanços em relação uns aos outros

em vários períodos históricos. Porém, tomamos para o nosso texto o que fala Munanga (2004)

apontando para a influência que a ideologia da mestiçagem pode ter no negro e no mulato e como

pode contribuir para que o negro não se reconheça como igual ao branco e o mulato não se

reconheça igual ao negro porque almeja a posição social proporcionada pela brancura.

Formulamos a hipótese e logo a tese de que o processo de formação da identidade nacional no Brasil recorreu a métodos eugenistas, visando o embranquecimento da sociedade. [...] Apesar de o processo de branqueamento físico da sociedade ter fracassado, seu ideal inculcado através de mecanismos psicológicos ficou intacto no inconsciente coletivo brasileiro rondando sempre nas cabeças dos negros e mestiços. (MUNANGA, 2004, p.15-16)

Portanto a mestiçagem é pano de fundo de várias ações do Estado autoritário, dos

intelectuais que estão no poder e das ações de patrimônio cultural no Brasil. “A mestiçagem tanto

biológica quanto cultural teria, entre outras conseqüências, a destruição da identidade racial e

étnica dos grupos dominados, ou seja o etnocídio” (MUNANGA, 2004, p.121).

Considerando a descrição feita por Abílio Barreto sobre a igreja de Santana no período de

construção da cidade é possível verificar que a mestiçagem é uma das bases ideológicas de seu

trabalho. Existe um elogio ao caboclo, firme na sua fé até a morte. Há também um elogio à Santa

que pela fé do caboclo salva pessoas importantes do arraial. Finalmente observam-se a morte

física do caboclo e a morte simbólica de sua atuação no social daquele arraial com a destruição

do templo, que são colocadas de forma muito natural, dada a ingenuidade e à pureza da fé, da

perseverança e da aceitação atribuídas ao caboclo, senhor João Evangelista.

A descrição daqueles templos de pedra e cal e das características daqueles que os

freqüentavam e lhe davam vida evoca, uma característica importante da gênese e identidade que

se quer para a cidade, dada a forma como aparecem na narrativa. Belo Horizonte não tem raízes

(negras, ou indígenas), não possui passado (colonial – leia-se Arraial do Curral Del Rei). Porém,

mencionar um passado é necessário para que se faça a negação do mesmo pois não se nega algo

que não tenha uma existência prévia, por mais efêmera que seja essa existência. Nesse sentido o

apelo à mestiçagem na pessoa do senhor João Evangelista em sutil contraposição ao fato de os

negros preferirem Festa aos milagres, apontam para o desmerecimento dos dois como sujeitos.

Um é ingênuo e puro o outro é indolente, exemplificados no “negrinho” que fica de

“malandragem” cantando no coro da igreja (em ruínas) em detrimento do trabalho na construção

da cidade. Método eugenista aplicados com maestria no texto de cunho histórico.

Considerando a história da cidade escrita por Abílio Barreto como base do conceito e

contexto de atuação do Museu Histórico de Belo Horizonte devemos considerar o discurso da

mestiçagem como ideologia adotada pelo museu em sua prática de escolha e recolhimento do

acervo que o comporia. Também em Belo Horizonte a história que se conta antevê o caminho

civilizatório branco. Pode-se dizer que o museu histórico da cidade é concebido como lugar da

elite dominante cuja linha de trabalho convive com identidade nacional entendida como unívoca.

O Museu Histórico de Belo Horizonte não abarca diferenças que sejam componentes da

identidade brasileira e da cidade, o que leva sua prática a assentar-se em uma noção de

civilização branca onde a contribuição cultural do negro não entra na composição do mosaico das

identidades brasileiras, mineiras e belo-horizontinas.

4 CIDADE IMAGINADA NA NARRATIVA MUSEOLÓGICA

“ As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas de lealdades e diferenças sobrepostas.”

(Stuart Hall)

O Museu Histórico de Belo Horizonte foi instalado, em uma construção remanescente do

Arraial do Curral D’el Rei: a Fazenda do Leitão, a qual perdurou na cidade sendo adaptada para

algumas repartições públicas até tornar-se propriedade da Prefeitura de Belo Horizonte e enfim,

designado para sede do museu. Dadas às suas condições um pouco precárias a fazenda foi

restaurada pelo SPHAN especificamente para aquela referida sede.

A consulta aos documentos administrativos do Museu Histórico de Belo Horizonte

permite entrever uma pequena polêmica quanto à sua instalação no prédio da então chamada

“Fazenda Velha” . Tanto o SPHAN quanto Abílio Barreto tinham concepções diferentes sobre a

representação histórica da cidade que daria substância a ação do museu. Para o órgão federal

tratava-se de um empreendimento que visava contar a história do Arraial do Curral D’el Rei. Para

Barreto caberia naquele prédio apenas parte da história da cidade ou seja: objetos referência do

Arraial do Curral D’el Rei e construção da capital por meio de objetos que referenciavam a

cidade também depois da construção. Para isso seria necessário construir novos prédios próximos

à “Fazenda Velha” em estilo moderno com o fim de abrigar objetos que relatassem a cidade do

tempo presente e futuro.

Além da importante discussão sobre patrimônio como congelamento do passado, em

condições de relicário, numa referência sem vida para o presente que pode estar contida na

concepção que o SPHAN tinha daquela “Fazenda Velha”, bem como a referência à mesma como

lugar do século XVIII, desligado da cidade moderna, que pode conter o discurso de Barreto,

interessa-nos a consolidação de uma narrativa de cidade que o museu inicia no prédio da

“Fazenda Velha” em uma perspectiva de continuidade, para a futura ação do museu como

acompanhante do desenvolvimento e do progresso da cidade que nasceu moderna. Subentende-se

que o museu propõe-se autor da narrativa histórica da cidade (reverberando a história escrita por

Abílio Barreto anteriormente), compreendida no sentido linear de passado, presente e futuro. O

Museu Histórico de Belo Horizonte conseguiu implantar no seu espaço sua personalidade cultural

e mereceu o reconhecimento de seu papel como lugar de preservação e de “contação” da história

da cidade. O livro de visitas, onde os que quisessem poderiam colocar suas impressões demonstra

esse fato. Esse livro revela o sentimento que as curiosidades e/ou relíquias que os objetos

retirados do seu local de produção e uso postos em um museu apresentavam para um visitante.

Não podemos aqui nos prender a uma análise estatística das visitas. Também não existem

elementos de investigação sobre o porquê da visita por parte do público. Entretanto a análise das

suas colocações não deixa de tornar viável na discussão que nos propusemos fazer nessa nossa

monografia. Observemos então, no quadro abaixo, algumas das primeiras impressões de

visitantes do Museu Histórico de Belo Horizonte nos momentos imediatamente posteriores à sua

implantação.3

“Magnífica a impressão recebida pela visita ao embrião do Museu de Belo Horizonte. Feliz a escolha para seu organizador o senhor Abílio Barreto, pois conheço de perto o amor e carinho com que trata as cousas do passado” (04/03/1943)

“Como mineiros sentimo-nos profundamente satisfeitos com a visita que hoje fizemos ao Museu de Belo Horizonte, que será dentro em breve, uma preciosa relíquia do passado da nossa encantadora capital, que, apesar de “moça” tem a sua história digna de apreço e da admiração da posteridade. Deixamos aqui registrada a nossa magnífica impressão e os nossos louvores aos que, com trabalho e dedicação estão à frente desse empreendimento”. (03/04/1946)

“É uma admirável realização. Aqui se sente todo o esplendor do trabalho e da energia do homem mineiro que em quarenta e poucos anos, construiu essa maravilha de pedra e cal. E, para abençoar o passado esse museu que a gente visita com emoção e ternura”. (28/03/1946)

“A escultura, a pintura e a arquitetura, às vezes são mais eloqüentes para nos narrar uma história do que as páginas de um livro: foi o que constatei ao visitar esta venerável casa”. 31/03/1943

“Não sabia ter na Fazenda Velha tantas coisas que tocam a alma” (18/04/1943

“Um museu é sempre um espelho fiel do passado. A jovem Belo Horizonte, que já nasceu rainha, é justo que ostente o seu precioso relicário para contemplação e admiração dos pósteros. Hosanas, pois, àqueles que, em boa hora criaram o Museu Histórico de Belo Horizonte, [...]”. 14/04/1943

“Com minha classe do 2º ano do Grupo Escolar Cesário Alvim venho realizar uma visita a todas as dependências do Museu que é real orgulho para Belo Horizonte e valiosa obra do seu organizador que encanta o visitante com a narração colorida de observações interessantes e ricas de conhecimento do assunto”. (04/05/1943)

Acompanhadas de seus alunos, as professoras do 2º ano do Grupo “Pedro II” realizaram hoje uma demorada visita ao Museu Histórico de Belo Horizonte. Deixam aqui as suas entusiásticas impressões por tudo o que viram. É já uma realização vitoriosa que vem facilitar muito o estudo da história da Capital de Minas” (20/05/1943)

Com bastante entusiasmo apreciei o Museu m companhia de minha classe de 3º ano do Grupo Flávio dos Santos. É de entusiasmar, sim, porque só fala com vivacidade de nossa cidade. Também as crianças demonstraram que se sentiram orgulhosas por esse melhoramento”. (1º/06/1943)

Fonte: Acervo textual do Museu Histórico Abílio Barreto. (grifos meus)

Os pontos que selecionamos para constar nesse quadro parecem-nos importantes para a

percepção de sentimentos e sensações que podem expressar o sucesso do discurso do museu

enquanto instituição cultural destinada a unificar pela cultura a comunidade belo-horizontina,

conforme veremos a seguir.

As três primeiras falas selecionadas tratam da experiência sensível no museu, mais

especificamente do impacto da narrativa contida em sua exposição. No bloco seguinte, observa-

se a idéia de continuidade que possivelmente os funcionários do museu poderiam estar

informando aos visitantes gerando expectativa de nova visita, mas também construindo o papel

de autor impresso na divulgação do museu. O terceiro conjunto aponta para o caráter do museu

enquanto instituição estatal: ele persegue a cientificidade; possui capacidade de tocar fundo no

sujeito porque acrescenta sentimento de pertencimento à narrativa da trajetória da cidade e

porque representa o Estado enquanto organizador político da construção da cultura local. Tudo

isso em referência ao papel legítimo e decisivo de elites intelectuais econômicas e políticas na

construção material e intelectual da capital. No último bloco é possível perceber com clareza o

efeito da ação educativa do museu. É com essa dessa ação que o museu legitima-se como ator

(porque autor e narrador) e como lugar de elaboração da história de Belo Horizonte. Para isso a

instituição conta com o apoio decisivo da escola que legitima o discurso da história da cidade que

o museu conta e lhe permite igualmente a perspectiva de ação no futuro. Para que o discurso de

um museu tenha eficácia é necessário que fale para um público e que seu discurso seja

reverberado por este público em outros ambientes confirmando assim, socialmente aquela

instituição. Isso pode ser realizado seja por ações sensíveis, seja por uma visita guiada ou, pela

forma como os objetos são expostos etc. O quadro abaixo colocado dá sinais dessa continuidade

do discurso do museu no social.

As referências de Hall (2002), em obra que aborda a identidade cultural na pós-

modernidade, localizam-nos bem o papel exercido pelo Museu Histórico de Belo Horizonte como

narrativa, como repositório da tradição, e como mito de origem, conforme exemplificado no

quadro acima: Segundo o autor as culturas nacionais compõem-se de instituições culturais,

símbolos e representações, configuram um discurso, “um modo de construir sentidos que

influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (HALL,

2002, p.50) enquanto indivíduo. Ao nos identificarmos com o sentido único de nação apontado

pela cultura nacional identificamo-nos enquanto membros de uma única identidade nacional.

Temos aí então elementos para pensar a cidade de Belo Horizonte como comunidade

imaginada pelo museu enquanto braço administrativo do Estado encarregado de unificar a cidade

em suas várias possíveis identidades em apenas uma, pela cultura.

Porém, “o discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser. Ele

constrói identidades que são colocadas de modo ambíguo entre o passado e o futuro.” (HALL,

2002, p.56) As culturas nacionais podem ceder ao impulso de voltar ao passado remoto para

recuperar identidades passadas. No caso de Belo Horizonte essas identidades são re-significadas,

tanto na obra de Abílio Barreto como na narrativa do museu sobre a cidade. Um exemplo de

doação de acervo pode ilustrar nossa proposição: em junho de 1944, o Arcebispo de Belo

Horizonte, D. Cabral oferece em doação “duas correntes, duas grilhetas, e um tronco de ferro

que, antigamente eram usados como prisões de escravos obrigados a serviços forçados [...].13”

Esses objetos foram encontrados em uma fazenda na localidade de Santa Quitéria que teria sido

arrabalde de Belo Horizonte e foram utilizados na exposição como uma referência ao Arraial do

Curral D’el Rei. Não se menciona a data precisa de fabricação do objetos mas, a forma quase

lacunar com a qual se refere aos objetos de tortura de escravos instiga a pensar no Arraial do

Curral D’el Rei como aparece na obra História Antiga de Abílio Barreto. Local onde se faziam

atrocidades contra os escravos, onde escravos assassinavam senhores, mas, precisamente uma

época acabada, uma identidade morta.

Todavia, outra aquisição do museu chama atenção. Trata-se de um lote de objetos,

adquiridos ao espólio do arquiteto Luiz Olivieri que trabalhou na Comissão Construtora da Nova

Capital e que continuou na cidade após o termino das atividades da mesma. O total de objetos

soma mais de 25 itens dentre os quais elegemos para análise apenas algumas das estatuetas na

forma como são mencionadas na guia nº 367 de recolhimento de acervo. As fotos desses objetos

podem ser observadas no anexo 1 ao final do texto.

Estatueta em terra cota, representando o artista pintor, já falecido, José Jacinto das Neves, que residiu na Capital desde os primeiros dias desta e era também funcionário da Secretaria do Interior; - 2) Estatueta em terra cota, representando “Manuel das Moças”, tipo popular, que existiu em Belo Horizonte e já faleceu; - 3) Estatueta em terra cota, representando “Jaburu” tipo popular, que existiu em Belo Horizonte e já faleceu; 4) Estatueta em terra cota, representando “Muquirana” tipo popular, de Belo Horizonte já falecido; 5) Estatueta em terra cota, representando “Manoel Creolo” vendedor de jornais na Capital, já falecido e que quando anunciava as suas revistas,

13 Prefeitura da Capital. Documentação Museográfica do acervo inicial do Museu Histórico, guia n. 356. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto.

gritava: - “Quem não sabe ler olha as figuras”; Estatueta em terra cota, representando “Mingote” pessoa muito popular em Belo Horizonte, ainda vivo; 7)Estatueta em terra cota representando o senhor Sevanir, um dos mais antigos guardas civis da Capital, ainda vivo; 8)Estatueta em terra cota representando um tipo fazendeiro; [...]; Estatueta em terra cota representando Napoleão Bonaparte;[...].” (BELO HORIZONTE, [194-], guia 356)

Os museus sempre tiveram uma política de aquisição de acervos (embora não tivesse esse

nome) que era coerente com os seus objetivos e seu perfil cultural. Na observância das diretrizes

dessas instituições é possível ver um museu cuja atuação era mais que “gabinete de curiosidades

ou “bazar das maravilhas” conforme fala José Bittencourt (2003, p.152) é preciso atentar para a

“admirável consistência” das coleções nos museus. Segundo o autor os museus possuem também

uma atribuição técnica muito específica de pesquisa “tendo os objetos como base e

documentação”. (2003, p.152) Por isso essa atribuição sempre foi dada a pessoas especialmente

formadas no assunto ou aqueles que no assunto fossem autodidatas mas competentes.

O próprio Abílio Barreto não tinha formação nem experiência anterior em museus.

Sua competência como historiador foi acrescida pelo auto-didatismo também como técnico de

museu reconhecido.

Enfim, “registrar com extrema minúcia era exatamente o que faziam os conservadores,

levantando detalhes que podemos, quando desavisados, chegar a tomar como tolices”. (2003,

p.154) Essa capacidade técnica de definir o objeto e realçar suas características históricas poderia

ser transmitida ou não ao visitante por etiquetas colocadas junto aos objetos.

A pesquisa servia também para subsidiar o discurso dos técnicos para o público. Abílio

Barreto e alguns outros técnicos do Museu Histórico de Belo Horizonte eram sempre elogiados

pelos visitantes por causa de tudo o que diziam sobre a cidade e sua história durante a visita.

Contribui para esse sucesso o lugar dos objetos. No caso a “Fazenda Velha” por ser velha e por

conter objetos históricos também propiciava uma compreensão do discurso que se fazia sobre a

cidade, enquanto instituição cultural.

Se verificarmos as fotografias (anexo 1) podemos atentar para o modo como esse discurso

poderia instalar-se a partir da escolha dos objetos a comporem o acervo, passando pela exposição

do mesmo e por aquilo que era falado verbalmente dos objetos durante as visitas. Essa última

parte não temos como mensurar.

Guardando a devida reserva sobre o porquê de produção das estatuetas, cabe no nosso

caso estudar porque foram adicionadas ao acervo do museu histórico e como o foram.

A descrição mencionada acima, sobre aquisição das estatuetas, foi feita no ato de compra

do acervo. Porém alertamos para o modo como são referidos os tipos humanos negros e os tipos

humanos brancos. Todos são a rigor estatuetas caricaturais mas, os primeiros, ao olhar do público

leigo parecem realmente caricaturais, “populares”, não transmitem a idéia de habitantes do

mesmo espaço social em que se encontra o museu. Não parecem ser cidadãos, mas apenas tipos

urbanos.

Mingote é descrito como pessoa e os outros como tipos. Manoel Creolo é descrito como

vendedor mas a forma como é colocada a frase por ele utilizada para vender os jornais permite

subentender que ele mesmo não sabia ler, tom pejorativo portanto.

Não é nossa intenção desmerecer o inegável caráter artístico das obras. Repetimos,

tecnicamente todas as estatuetas são esculturas caricaturais mas, Napoleão, Guarda Civil,

Fazendeiro e Mingote não parecem caricaturas seus traços parecem mais humanizados e

reconhecíveis enquanto pessoas. De alguns deles sabe-se mais além do nome, sabe-se que são

trabalhadores. Porém tomado o conjunto de estátuas na coleção percebe-se a alusão aos negros

como, novamente, uma identidade acabada. Não constante como contribuição significativa para a

transformação e os movimentos da cidade em sua trajetória histórica. Quanto aos tipos mulatos,

Jaburu e José Jacinto das Neves é verificável que os dois apresentam uma hierarquia condizente

com seu tipo físico e sua atuação social. Jaburu não tem nome. O artista e funcionário público

José Jacinto das Neves tem.

Atentamos para assimilação desses objetos no acervo do museu e o porquê de sua

aquisição. Embora tenham existido na cidade, e, embora alguns ainda estivessem vivos no

momento da aquisição é importante localizá-los como tipos. Outro fato importante é que são em

si tipos, acabados. A identidade de cada um está fora da identidade unificada da cidade ou porque

sobressaíram dela ou porque a ela não convém ou ainda por ambos os motivos.

Quem vê em uma exposição esses tipos “populares” tende naturalmente, dependendo da

forma narrativa como são expostos a não perceber negros no espaço urbano da cidade como não

se perceberia Napoleão, um fazendeiro ou um tipo medieval. Existe o perigo de se regular o olhar

para não ver, ou para ver de forma subordinada à cultura única do povo belo-horizontino, as

diferenças, as particularidades, e as identidades várias.

Como se pode perceber, no museu, como na história escrita da cidade na qual ele se

molda para elaborar sua narrativa é possível perceber a presença de outros sujeitos esgueirando-

se até serem mencionados, mesmo que de passagem em ambas as narrativas. Os tipos negros das

estatuetas são tão específicos que parecem resumir neles todos os negros da cidade, e tornados

peça do museu também transformam-se em identidade morta. “Não importa quão diferentes seus

membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unifica-los

numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma família

nacional”(HALL, 2002, p.59).

Voltamos à proposição de Augé (AUGÉ, 1994, p.156). quando fala de lugares são

espaços onde o indivíduo embora se considere como espectador não se interessa pela natureza do

espetáculo e não se afasta de sua posição mesmo que continue a viagem até o fim. Acreditamos

que por sua prática um museu pode ser lugar da cientificidade e da exclusão. Alguns lugares,

dentre os que visitamos podem nos marcar sensivelmente e outros nem nos mover de nossa

posição de espectador. É natural que esses lugares não sejam os da nossa história mesmo que

nomeados como tal.

5 CONCLUSÃO

Talvez esteja nesse ponto a inteligência, bem como a eficácia, ou melhor, a originalidade do sistema racial brasileiro, que é capaz de manter uma estrutura racista sem hostilidades fortemente abertas como se observa em outros países.

(Kabengele Munanga)

Comparando a criação do SPHAN e a criação do Museu Histórico de Belo Horizonte, no

contexto político no período do Estado Novo torna-se necessário contrapô-los em alguns

aspectos. O primeiro deles é o motivo de criação de ambos que vai influir enfim na sua ação

inicial. O SPHAN como o museu de Belo Horizonte possui um discurso que é para uma

coletividade e organiza (um pelo tombamento e outro pelo recolhimento) um acervo de referência

daquela coletividade. Ambos elegem como ícones o que é genuinamente brasileiro. Outro aspecto

importante é o fato de as duas instituições gozaram de uma autonomia relativa que lhes garantiu

mobilidade de ação que não “incomodava” e até contribuía com as ações do Estado em seu

projeto ideológico autoritário.

No caso do Museu Histórico de Belo Horizonte, a questão da mestiçagem que apontamos

como subsídio à sua configuração ideológica portando-se enquanto instituição como um não-

lugar para o negro como sujeito histórico em Belo Horizonte, é o ponto de chegada e de partida

na nossa abordagem do tema. Na verdade a mestiçagem não foi propriamente explicitada no

discurso do museu ou em sua narrativa contida na exposição de peças de seu acervo, está

implícita. Conforme demonstramos no capitulo três, a aquisição de acervos e o tratamento

informacional dado a eles traduzem-se em prática cotidiana do museu após sua inauguração, a

sua política e a sua identidade institucional. Para finalizar nosso exercício de olhar a cidade

imaginada pelo Museu Histórico de Belo Horizonte, consultando sua documentação

administrativa e a historia oficial da cidade escrita por Abílio Barreto é necessário que

consigamos perceber como as narrativas do museu e da história oficial são construídas na

perspectiva, na ascendência e na unilateralidade de um sujeito histórico específico. Esse sujeito

não é o Negro, nem o mestiço, é o Branco por causa do conteúdo civilizatório que contém, mas, o

processo histórico entendido de forma linear baseia-se no mestiço e na mestiçagem para construir

o ideal Branco. Todavia, no caso do Museu Histórico o não reconhecimento do escravo e do

Negro como sujeitos no processo histórico da cidade de Belo Horizonte, em um determinado

ponto de vista consegue “queimar etapas”, porque tem a história oficial escrita por Abílio Barreto

como início e desfecho de vários conflitos e confrontos possíveis no espaço urbano da cidade.

A proposta de implantação de um museu histórico em Belo Horizonte pode ser entendida

também para além da preservação do passado e ser apreendida na perspectiva de reafirmação de

uma identidade una da cidade. Em termos gerais trata-se mesmo de re-afirmação. Porque,

quando a cidade foi construída, o discurso desse empreendimento político era de capacidade de

unificação que trazia para as elites dominantes do Estado e de sua população por decorrência.

Portanto, a proposta do museu histórico deveria oferecer elementos políticos e ideológicos

consoantes com aqueles da construção da cidade. Mas, o contexto sócio-político do país era outro

e o museu precisou assimilar um discurso de herança, transmissão, valorização do passado,

preservação etc., característicos do arcabouço do patrimônio cultural no país que no Brasil estava

se consolidando.

Aquilo que foi dito acima aponta para o elemento histórico-político que está implícito na

prática inaugurada em 1943, no Museu Histórico de Belo Horizonte. O não recolhimento, de

documentos e objetos que sejam identificadores ou referências ao negro como agente na história

da cidade de Belo Horizonte influenciou aquela prática. Contudo, para negar identidades ou para

unificá-las é preciso reconhecer sua existência e colocá-las de forma subjacente à identidade

única.

“A história tanto pode ser determinada por uma lógica intrínseca à narrativa e subordinar

os objetos em sua apresentação como pode construir um sentimento comum partilhado, a partir

dos objetos trabalhados”. (SANTOS, 2003, p.112) Assim sendo a opção por um acervo que não

incluísse uma percepção da história como conflito de interesses, de atores determinados, e não

concordantes, tornou-se prática cotidiana no museu no modo de referenciar a história de uma

determinada classe dominante branca com poder político e econômico.

O sentido de narrativa nacional, adaptado para a comunidade belo-horizontina, está

presente na concepção do museu histórico de Belo Horizonte que faz referência à cidade

planejada, no início do período republicano no Brasil. Na leitura sobre o processo de mudança da

capital, pode-se inferir que essa foi efetivada para que a nova cidade fosse um elemento que

mostrasse ao país o espírito empreendedor dos mineiros e sua afinidade com o novo e o moderno

que então se inaugurava. O livro de Abílio Barreto (BARRETO, 1995) inferia o sentido de

narrativa nacional em seu texto. Concordava com os discurso político e ideológico sobre a

criação e construção da cidade e, de certa forma legitimava aqueles discursos. Quando esse livro

fala da mudança da capital em 1897, reforça a idéia de que os mineiros teriam marchado “unidos”

nesse ideal a despeito de todas as divergências em Ouro Preto, antiga capital, à época. O

empreendimento de construção da capital moderna mostrava a atualidade do estado em

consonância com a modernidade e com a república. Eram discursos unificadores que diluíam

possíveis conflitos.

Após 46 anos da inauguração da nova Capital de Minas Gerais, o Brasil encontra-se em

um novo momento de construção de espírito de nação, iniciado com a revolução de trinta, quando

novas elites estão no poder. O entendimento de nação nesse momento, comporta a importância do

passado e da contribuição das raças que formam a população brasileira (no passado e no

presente). A nação teria em sua constituição elementos de tradição e de civilização. Os elementos

tradicionais seriam aqueles que aparecem nas festas, feiras, comidas típicas etc., enfim, no

popular, no folclore de índios e negros. O elemento civilizatório apareceria na cultura “não

popular” porque erudita, aristocrática, na arte, nas instituições culturais etc. A nação emerge

desse redemoinho da década de 1940, sendo historiada no patrimônio cultural (primeiro “pedra e

cal”) e no folclore. Daí a importância do “resgate” (entre aspas porque seleciona) do passado

colonial do século XVIII e da tradição expressa também na então chamada cultura popular. Trata-

se de um outro contexto social a ser construído, ideológica e politicamente pela ação do Estado.

Portanto atores intelectuais capazes de articular um discurso “unificador” nacional, com

autoridade (inclusive técnica e científica) são incluídos nesse discurso, que toma como base o

caráter miscigenado da população, como transição para uma população branca. Nisso, a

identidade do negro como formador da nacionalidade brasileira é reconhecida, mas como uma

não contribuição porque morta, tendo em vista o final da escravidão, à urbanização e à criação de

novas instituições culturais. A mestiçagem como um caminho intermediário para o futuro branco

não fornece identidade verificável nem contribuição cultural a ser deixada por herança:

Essa ideologia não só procurou inseminar fatores culturais capazes de dominar as heranças culturais dos grupos étnicos que ela englobou, como conseguiu suscitar em toda a população, por mais heterogênea que seja, o sentimento de um destino comum, com maior poder de mobilização que o de origem étnica particular. (MUNANGA, 2004, p.135)

Quando o Estado opta por uma ação que é também cultural, não o faz de maneira

uniforme. Verificando as instituições que estão surgindo nas décadas de 1920 e de 1940 notamos

em suas especificidades visões de nação com bases diferenciadas. O Museu Histórico Nacional,

por exemplo, entende uma nação como continuidade do poder e da civilidade da aristocracia

brasileira formada no período imperial de nossa história Ressalta-se nesse contexto a criação do

Departamento de Patrimônio Nacional que viria a ser o interlocutor da Prefeitura de Belo

Horizonte e do organizador do seu museu histórico para os procedimentos oficiais de criação do

mesmo. Essas duas instituições nacionais pensam de forma diferente o patrimônio, mas são

concordantes em suas práticas.

Na década de 1940, Belo Horizonte adquire também nova configuração. O ambiente de

construção de uma prática de Patrimônio Nacional atua duplamente na capital: Apropria-se do

passado “inventado” e “inventa-se” uma cidade perfeita como espaço de poder. Sua identidade

moderna é mantida e com isso obtém-se um lastro científico e político como espaço republicano,

de cultura e de política.

O museu histórico torna-se uma ação que abarca todas essas colocações discursivas e

políticas, se for entendido como seqüência da elaboração da história da cidade efetuada pelo

contador da história, Abílio Barreto em sua obra Belo Horizonte: memória histórica e descritiva –

história antiga e história média.

A mestiçagem acaba reforçando, a compreensão da cidade em sua trajetória histórica pela

narrativa de Barreto, porque está embutida naquela narrativa e na prática do museu da cidade.

Uma simples visita ao museu propicia uma carga de conhecimento que traz surpresa, sentimento

de pertencimento, etc., mas pode também provocar algo comum ao campo de estudo dos

antropólogos, o estranhamento (ABREU, 1990, P.13). Atentemo-nos para os sinais, algo comum

no campo historiográfico atual, que são a ocultação de uma identidade viva e negra em nossa

cidade e as evidências materiais dessa história.

Em nossas conclusões após a pesquisa não podemos deixar de novamente apresentar o

nosso objeto à luz daquele museu nos dias de hoje. O cenário contém mudanças. Continua um

museu histórico, em uma cidade de pouco mais de 100 anos (contados a partir da sua

inauguração), em um contexto nacional de mudança social e política, com valorização do

patrimônio imaterial identificado também em práticas culturais dos afro-descendentes. Alguns

intelectuais estão interessados no sujeito político, social e histórico negro. O papel do museu da

cidade é revistado e questionado.

A documentação administrativa referente ao Museu Histórico de Belo Horizonte dá conta

de que após a morte de seu fundador, em uma justa homenagem, teve seu nome modificado para

Museu Histórico Abílio Barreto. O museu, continuou seus trabalhos de recolhimento de acervo,

mas viu cair lentamente a partir da década de 7014 seu reconhecimento como instituição cultural

importante para a história da cidade. Porém a partir de 1993, dentro de um contexto de mudança

política na cidade o museu começa um processo importante de mudança iniciado pelo seu corpo

técnico. Embora o processo não fosse institucionalizado realizam-se mudanças estruturais

visando à revitalização do museu.

Nesse sentido após os 60 anos do mesmo, inaugura-se uma nova fase que vai perdurar por

10 anos com bons resultados expressos na construção do anexo para abrigar reservas técnicas e

pessoal técnico e administrativo, investimento em parcerias com a iniciativa privada para

realização de eventos que apresentassem o museu como lugar de cultura da cidade. Nisso

mudaram-se os conceitos de exposições. A “Fazenda Velha”15 passou a ser tratada como Casarão,

artefato número 1 do acervo do museu. A documentação administrativa e histórica passou por

uma organização dentro de princípios da museologia, historiografia e da arquivologia e o setor

de pesquisa foi criado além da elaboração de exposições que dialogavam de forma atual com a

história da cidade, etc. na busca de localizar sujeitos antes inexistentes na prática cotidiana do

museu.

Ao longo do processo de revitalização, o Museu conseguiu não só conhecer o seu acervo e reorganiza-lo, mas também promover leituras críticas a seu respeito[...].Agora é hora de elaborar uma política de acervo que não apenas crie parâmetros para avaliar propostas de doação, [...] , mas, que também promova um processo de aquisição ativa, ou seja, defina o que o Museu quer ter no seu acervo e que ações desenvolver para adquirir esses documentos.” (ALVES et. al., apud PIMENTEL,2004, p.)

É também nessa perspectiva que colocamos nossa presente monografia como proposta de

que o museu histórico da cidade trabalhe em seu acervo também o sujeito social negro. Questão

do presente colocada para esse presente e futuro.

Finalmente, mencionar que no prefácio à obra de Raul Lody, Heloisa Buarque de Holanda

reconhece que os museus foram menosprezados por intelectuais modernistas e vanguardistas no

início do século XX, “não apenas porque eram reativos, mas, sobretudo conservadores”

(HOLANDA apud LODY, 2005, p.9). Porém, aproveitando o momento atual, em que se discute

em variadas áreas do conhecimento o negro como sujeito Lody que é antropólogo faz uma

incursão em museus afro-brasileiros, em coleções, que revelam objetos de arte e culto que dão

14 Uma reportagem de 1972, propicia um panorama do abandono que começa a assombrar os museus: “Museu da cidade quase todo comido pelos cupins”. Diário da Tarde. 14/11/1972. 15 Alguns estudos sobre este casarão tornado objeto da coleção arquitetônica foram realizados recentemente.

uma idéia do cotidiano de africanos e afro-brasileiros no Brasil desde a entrada dos primeiros na

colônia. Esse livro é um ótimo exemplo de como atender a demandas de pesquisa para estudos da

cultura material do negro africano e do afro-brasileiro na sua trajetória histórica na cidade de

Belo Horizonte principalmente porque analisa como elementos religiosos foram parar em

coleções particulares e de museus. Muitos deles foram arrancados de terreiros de candomblé e

outros locais de religiosidade africana e afro-brasileira, pela polícia na época em que cultos de

matriz africana eram ilegais no país.

Considerando que a ideologia da mestiçagem pode continuar cerceando passos no sentido

de identificar e recolher objetos de cultura material de afro-descendentes em Belo Horizonte

acreditamos que o fato de reconhecer a identidade plural (que inclui a identidade negra também),

da cidade, do ponto de vista dos museus de Belo Horizonte, pode ajudá-la a se descobrir mais rica

culturalmente, mais bonita e muito mais interessante.

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ANEXO 1

Manoel Creolo

José Jacinto das Neves

Manoel das Moças

Jaburu

Muquirana

Tipo Fazendeiro

Senhor Sevanir

Napoleão