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BETO VOLPE MORTE VIDA POSIT A BETO VOLPE BETO VOLPE MORTE E VIDA POSIT POSIT A “A infecção pelo HIV me proporcionou a oportunidade de reescrever minha história, de mudar meus caminhos, de ser melhor. Se hoje consigo dormir tranquilo é porque o faço com orgulho do dia que tive e das atitudes que tomei. Pode parecer estranho, mas se houver um porteiro no céu e ele perguntar qual a melhor coisa que me aconteceu em vida, não hesitarei em responder que foi ter me infectado com o HIV. Apesar de todas as dificuldades e de todas as perdas, foi o vírus que me tirou da mediocridade em que vivia e deu sentido à minha vida.” “Beto Volpe, criatura admirável! Esta palavra o resumiria. Mas permitam que eu lhes apresen- te o Beto como eu o conheci: o “Surviver” ou, para facilitar, o “Sur”. Em uma época em que para nós que vivemos com HIV só restava curtir os dias que nos sobravam, pois sequer tínhamos medicamentos, eu entrei numa sala virtual, chamada ‘Salinha HIV’, para conhecer o mundo da Aids e o que eu iria viver! Para surpresa minha, encontrei VIDA, risadas, alegria e, principalmen- te, esperança! Tudo isso orques- trado pelo “Sur”, um cara que já tinha vivido muito mais do que eu, apesar de ser bem mais moço. Ele me ensinou que, mes- mo com HIV, podemos “viver e não ter a vergonha de ser feliz”! Isso ele transmitiu para muita gente. Com muita satisfação, convido você a ler este livro des- pido de preconceitos, vivendo com o Beto um pouquinho de uma realidade positiva, em to- dos os sentidos que esta palavra possa ter. Aprenda a se perce- ber feliz como você é, com o que você tem! Leia com carinho. Te- nho certeza absoluta que você vai amar sua vida mais ainda. E essas são palavras de uma velhi- nha de quase 70 anos, que vive com HIV desde 1992. Sou uma HIVó feliz, apesar de tudo! Obri- gada, “Sur”, por toda força que sempre nos deu. Que seu livro faça sucesso igual ao sucesso da transformação na sua vida, de tragédia em vitória!” Beatriz Pacheco

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BETO VOLPE

MORTEVIDA

POSIT A

BETO VOLPE

BETO VOLPE

MORTE E VIDA POSIT �

POSIT A

“A infecção pelo HIV me proporcionou a oportunidade de

reescrever minha história, de mudar meus caminhos, de ser

melhor. Se hoje consigo dormir tranquilo é porque o faço

com orgulho do dia que tive e das atitudes que tomei. Pode

parecer estranho, mas se houver um porteiro no céu e ele

perguntar qual a melhor coisa que me aconteceu em vida,

não hesitarei em responder que foi ter me infectado com o

HIV. Apesar de todas as difi culdades e de todas as perdas, foi o vírus que me tirou da mediocridade em que vivia e deu

sentido à minha vida.”

“Beto Volpe, criatura admirável!

Esta palavra o resumiria. Mas

permitam que eu lhes apresen-

te o Beto como eu o conheci: o

“Surviver” ou, para facilitar, o

“Sur”. Em uma época em que

para nós que vivemos com HIV

só restava curtir os dias que nos

sobravam, pois sequer tínhamos

medicamentos, eu entrei numa

sala virtual, chamada ‘Salinha

HIV’, para conhecer o mundo da

Aids e o que eu iria viver! Para

surpresa minha, encontrei VIDA,

risadas, alegria e, principalmen-

te, esperança! Tudo isso orques-

trado pelo “Sur”, um cara que

já tinha vivido muito mais do

que eu, apesar de ser bem mais

moço. Ele me ensinou que, mes-

mo com HIV, podemos “viver e

não ter a vergonha de ser feliz”!

Isso ele transmitiu para muita

gente. Com muita satisfação,

convido você a ler este livro des-

pido de preconceitos, vivendo

com o Beto um pouquinho de

uma realidade positiva, em to-

dos os sentidos que esta palavra

possa ter. Aprenda a se perce-

ber feliz como você é, com o que

você tem! Leia com carinho. Te-

nho certeza absoluta que você

vai amar sua vida mais ainda. E

essas são palavras de uma velhi-

nha de quase 70 anos, que vive

com HIV desde 1992. Sou uma

HIVó feliz, apesar de tudo! Obri-

gada, “Sur”, por toda força que

sempre nos deu. Que seu livro

faça sucesso igual ao sucesso da

transformação na sua vida, de

tragédia em vitória!”

Beatriz Pacheco

BETO VOLPE

MORTE E VIDA POSITHIVAUma autobiografia não autorizada

Santos, 2016

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Volpe, Beto

Morte e vida posithiva : uma autobiografia não

autorizada /Beto Volpe. -- 1. ed. -- Santos,

SP : Realejo Edições, 2016.

1. AIDS (Doença) - Pacientes - Autobiografia

2. Histórias de vida 3. Infecções pelo HIV

4. Memórias autobiográficas 5. Volpe, Beto, 1961-

I. Título.

16-02114 CDD-926.16972

Índices para catálogo sistemático:

1. Portadores de HIV/AIDS : Memórias autobiográficas

926.16972

Ficha técnica

Foto da Capa: ©Murillo Constantino

Capa e Designer Gráfico: Antonio Carlos Soares de Almeida

Revisão: Marcos Augusto Ferreira

Editora: Realejo Livros

PREFÁCIO

Foi com grande alegria que aceitei o convite para prefaciar o livro do meu amigo Beto Volpe. De uma for-ma geral, quando começamos a ler um livro, estamos ansiosos pelo seu conteúdo e toda a parte introdutória passa a ser relativamente enfadonha e, geralmente, des-necessária. No entanto, gostaria que o leitor perdesse aqui alguns segundos, antes de iniciar a leitura do livro propriamente dito.

Ao me formar médico e, posteriormente, infecto-logista, há cerca de 30 anos, escolhi a profissão em de-corrência da ilusão de que, com o advento das novas terapias antimicrobianas, poderia certamente curar os meus pacientes. Deparei-me, desde os primeiros dias da minha residência médica, no Hospital Emí-lio Ribas, com uma das doenças mais impressionan-tes da nosologia, em todos os tempos: o HIV/Aids. Perguntava – e me pergunto até hoje – como uma doen-ça que provavelmente cruzou a barreira animal-homem, aproximadamente no início do século passado, cuja transmissão em um evento sexual isolado é baixo, pode ter infectado cerca de 70 milhões de pessoas, sendo que 40 milhões morreram e devemos ter cerca de 30 milhões vivendo com o HIV/Aids. São números assus-tadores, mas não mostram como, do ponto de vista in-dividual, essa doença traz profundas consequências ao infectado, aos seus familiares, amigos e relacionamen-tos. Entre elas, a sensação de fatalidade, inexorabilidade e fragilidade.

Nesse contexto, conheci o BETO, ativista inigua-lável e polêmico das causas das minorias e, principal-

mente, da maioria. Intransigente, sarcástico, obstinado e, sobretudo, alegre. Creio que hoje é impossível falar de HIV/Aids, no que se refere a todas as conquistas, como assistência, prevenção, tratamento, movimentos sociais, entre tantos outros, sem falar no BETO. Ele esteve – e está – à frente em todas estas conquistas. Porém, se por um lado esse gigante das causas coletivas foi e é imba-tível, eu sempre me perguntei, como pôde enfrentar to-das as suas próprias causas, como o preconceito, doen-ças oportunistas, degenerativas, cânceres, e superar a si mesmo? Como um cara que passou por todas as ad-versidades e talvez provações que um ser humano pode passar mantém-se sempre alegre, otimista, irradiando alegria a todos os que o rodeiam? 

Certamente, este livro nos trará algumas explica-ções sobre como este ´Highlander – O Guerreiro Imor-tal` busca forças para derrubar os nossos inimigos co-muns, como a tristeza, o ódio e a desesperança. Este livro é um manual a todos que por ventura sintam-se deprimidos ou cansados de lutar ou que, em algum mo-mento, pensem que a vida não vale a pena. Verão que a vida sempre vale a pena. A vida, simplesmente, sem mistificações.

Marcos Caseiro

MORTE E VIDA POSITHIVAUma autobiografia não autorizada

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CAUSA E EFEITO

Ao contrário da criança responsável que eu parecia ser, sempre tive um grande prazer em me colocar em si-tuações de risco. Aos quatro anos, convenci a moça que trabalhava em casa a me trancar em uma mala. Em outra ocasião, coloquei fogo na cozinha, durante experiência que envolvia uma mosca varejeira morta, pedaço de pa-pel, fósforo e um litro de álcool. Aos cinco, ficava em cima de um banquinho, me pendurando no varal que havia na varanda de casa, debruçando-me e enlouque-cendo a vizinha de baixo, que implorava:

– Olha, a mamãe chegou!E eu, novamente pendurando o corpo quase todo

para fora da varanda, ria:– Não chegou, não!Aos seis, minha sexualidade começou a aflorar.

Lembro-me da casa da minha tia Áurea, com um quintal bem amplo e uma garagem adaptada para sala de aula, onde titia lecionava para postulantes ao ginásio, como se dizia na época, que dava vistas para um bananal nos fundos da casa. Eu costumava ir de sunguinha para o tal bananal e saltava de bananeira em bananeira, na ânsia de ser notado pelos alunos mais velhos. Mais que isso, eu fazia aberturas na sunga, de modo que pudessem ver meu ‘piupiu’ e meu bumbum entre uma bananeira e ou-tra. Claro, minha virgindade não iria durar muito tempo e aos oito tive a minha primeira experiência sexual. Fui presente de aniversário de um garoto de quinze anos e, pela primeira vez, julguei ter encontrado o sentido da vida. A partir de então, parei de brincar de forte apache e comecei a brincar de junta médica. Já empreendedor,

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passei a fundar clubinhos de meninos em diversos lu-gares, sempre com libidinosas taxas de inscrição e de manutenção semanal. Por mais que eu tenha aprontado quando jovem e adulto, a infância e a adolescência foram épocas em que tive uma plenitude sexual, pois não havia consequências entre meninos, então era uma festa.

Muito além de uma festa, os clubinhos eram um re-fúgio que eu tinha para ser o que eu era. Desde pequeno eu sei que sou gay, ia ao clube com meu pai e, no ves-tiário, só tinha olhos para os corpos masculinos e seus membros enormes, se comparados ao de uma criança. O problema é que eu fiquei sabendo, no catecismo, que meu prazer era pecado e que eu iria para o inferno. Tam-bém soube que o inferno poderia ser aqui mesmo, pois todas as referências que eu via ou ouvia sobre homens que sentem atração por outros homens eram patéticas e discriminatórias. Então, vivi por um bom tempo essa fantasia de que os clubinhos durariam para sempre.

Mas o passar do tempo me ensinou que tudo tem consequências, eu nunca fui dos mais prevenidos con-tra as então chamadas doenças venéreas. O resultado é que eu tive um prontuário médico respeitável du-rante minha juventude, composto por vários tipos de infecção e ataques de parasitas bastante ‘chatos’, mas prazerosos, afinal, trair e coçar é só começar. Aos 16 anos, em plena ditadura militar, passei a frequentar os primeiros redutos gays de São Vicente, como os bares Bate Papo e Namoranguinho e a boate 103, lugares onde se reunia a nata da sociedade alternativa: gays, lésbicas, travestis e malucos em geral. Era uma época em que apenas o fato de ser gay e visível socialmente era uma senhora transgressão.

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Foi ali que eu me travesti pela primeira vez, usei uma blusa de seda e uma calça leg, ambas pretas, e um salto doze que me deixou uma gracinha! Também me montei outra vez, já mais velho, e frequentemente ia assistir às ‘corridas de submarinos’ na linha da maré da praia do Itararé, quando ainda havia condições de segu-rança para isso. Até que conheci Sampa e também José Roberto, um charmoso quarentão, com o qual manti-ve uma semana de namoro e o resto da vida para uma intensa e sincera amizade. Tanto que emitimos minha certidão de nascimento para a boemia paulistana: Rose Bety e Rose Bety Borboleta, mãe e filha. Seu aparta-mento era no edifício Copan, bem no coração cultural e sexual da metrópole, onde também conheci Arahi, um cara bem agitado e muito legal, que hoje mora em Itanhaém. Desde 1977, eu ia todos os domingos à tar-de para as matinês nas boates paulistanas, chegava em casa de madrugada e com a maior cara de pau. E pensa-va: um dia vou mudar para lá.

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ALGUMA COISA ACONTECE NO MEU CORAÇÃO

Foi quando, no final de 1983, apareceu a oportuni-dade de permutar de local de trabalho com uma cole-ga bancária da Avenida Paulista e, em janeiro de 84, eu estava mudando para um apartamento minúsculo, bem pertinho da rua Augusta, juntamente com um querido amigo da faculdade e das baladas, o Marcelinho. Ele ha-via conseguido emprego em uma universidade, para tra-balhar com a recente tecnologia do vídeo texto, precur-sora da internet, e tivemos um ano bastante intenso com a convivência com colegas cosmopolitas, com os quais aprendemos muito sobre como sobreviver em Sampa. Fomos a muitos teatros, às manifestações pelas Diretas Já!, boates e shows, incluindo o do Barão Vermelho, no Radar Tantã, onde disputamos até o ultimo momento um jornalista da platinada que lá estava e que acabou dormindo comigo. Até que, em janeiro de 85, Marceli-nho precisou voltar para Santos e fui morar com outro amigo, Élcio, um cara introvertido, mas muito divertido, com o qual aluguei um senhor apartamento, no décimo sexto andar de um edifício do Niemeyer, de frente para a Paulista e a quatro quadras do meu trabalho.

Foi nessa época também que me deixei contaminar por um vírus terrível, que pode acabar com sua quali-dade de vida e levar à morte, o vírus do amor. Conheci Luiggi, um cabeleireiro leonino, lindo e loiro que, em menos de um mês, estava morando comigo e com Élcio que, com uma intuição bem mais apurada que a minha, não havia se dado bem com ele e em pouco tempo se mudou. Enfim, fomos muito felizes por um ano, até que o flagrei com um cara em nossa cama. A partir daí, o

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respeito mútuo foi para o espaço e eu, equivocadamen-te, achei por bem que ele mereceria um troco à altura. Além da violência física, que havia passado a fazer parte de nossas discussões, seu sono pesado me garantia total liberdade para sair de fininho e dar plantões noturnos nos mais diversos parques públicos de Sampa, ou mes-mo nas imediações do Mercado Municipal com seus tra-balhadores da noite, sentindo-me a própria encarnação de algum personagem de Plínio Marcos.

Mas Sampa tinha algo mais a me oferecer, uma pes-soa que teve um papel fundamental, quando da virada de minha vida: Alfredo, meu colega de sala no banco, membro de movimentos populares com uma capacida-de de argumentação que me maravilhava, além de tam-bém ser gay. Claro que nos tornamos unha e cutícula, até que um dia aquele bochechudo e alegre amigo me chamou para tomar algo em uma cafeteria do Conjunto Nacional, dizendo que precisava falar comigo.

Lá, serenamente, ele me contou que estava infec-tado pelo vírus HIV. Após limpar o café que derramei sobre a mesa, perguntei como ele estava em relação a isso, sobre seu companheiro, enfim, as perguntas bási-cas de quem recebe a notícia. Ele me tranquilizou sobre suas condições, abraçamo-nos, selando a cumplicidade, e nada mudou em nosso relacionamento, além de uma preocupação maior com a saúde do amigo. Amigo do qual me separei em 1987, quando tentei remediar minha desastrosa situação conjugal, voltando para São Vicen-te, o que apenas piorou o quadro e me fez nunca mais acreditar em mudanças vindas de fora – toda mudan-ça vem de dentro. Enfim, larguei Sampa, amigos e lou-curas e fui transferido de volta para o litoral, motivado

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por uma união afetiva que não tinha mais afeto e que não duraria muito mais tempo. Não sem antes termos tido várias brigas em público, sendo que em uma delas acabei passando a noite na delegacia de polícia. No final de 1988, conseguimos nos separar e voltei para casa de meus pais, com a perspectiva de voltar a morar sozinho em breve. Vã ilusão...

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O AMOR É UM GRANDE LAÇO

Em maio de 1989, eu contava 28 anos, sendo vin-te deles voltados, dentre outras coisas, à arte de fazer amor. Foi quando criei coragem e fiz o meu primeiro exame de HIV: Elisa. Nossa, tenho várias amigas com esse nome, mas é um exame de sangue e, diga-se de pas-sagem, um exame bastante sofrido e angustiante. Era abril e, na base da ‘porralouquice’, fui até o Centro de Referência em AIDS de Santos (Craids) que, nos anos 80, era o último lugar do mundo onde qualquer pessoa gostaria de estar. A cidade havia recebido o título de ‘Ca-pital Mundial da AIDS’, graças à desproporcional notifi-cação de casos em relação a outros municípios. Isso tudo devido às características portuárias e turísticas, além de uma região metropolitana extremamente problemática em seus indicadores sociais.

Bem, o fato é que fui e fiz a tal coleta. Aí, começou uma espera interminável e dolorosa por um resultado que eu já dava como certo, o tal reagente. E põe doloro-sa nisso! Assim que a enfermeira tirou a agulha de meu braço, o filme pornô da minha vida começou a passar em minha mente, onde cada uma das transas foi re-lembrada com temor, dando-me a certeza do resultado positivo. Mas, para minha surpresa e alívio, o resultado chegou e dizia que eu estava ‘limpo’, como a Lady Di do Carandiru. Deus existe, pensei, e a experiência de ter estado tão próximo de ter contraído o mal do sécu-lo me fez mudar de comportamento: passei a incluir a camisinha na cesta básica do amor.

No final de junho daquele mesmo ano, fui visitar meus familiares em Rio Preto, interior de SP, hoje uma

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metrópole moderna e atrasada, progressista e retrógra-da, maluca e careta, sempre simpática e acolhedora ao meu apetite sexual. Bem próximo à casa da minha avó, ficava um reduto gay da cidade, a sugestiva boate Dama de Paus, onde conheci um gatinho mineiro, cujo beijo me fez querer mais na mesma hora. Bem, para falar a verdade, eu queria mais desde que o havia visto.

E assim surgiu um romance separado por quase 600 quilômetros, distância entre São Vicente e Frutal, no Triângulo Mineiro, uma das maiores produtoras de abacaxis do Brasil. Ô, trem bão, sô! Durante um mês e meio, revezávamo-nos em viagens semanais que sempre eram permeadas por saudade e ansiedade pelo reencon-tro. Em algum momento, entre uma e outra gota de suor, um de nós pediu para tirar a camisinha, só um pouqui-nho, afinal, viveríamos felizes para sempre, como sem-pre acontece nos contos de fadas até que, sem que per-cebêssemos, abolimos o uso dos preservativos. Viajando na batatinha do amor eterno, pensei em lhe fazer uma visita surpresa e peguei o dito cujo com um conhecido meu, que ele havia encontrado em uma de suas vindas ao litoral. Chifres, melhor não tê-los, diria o poeta...

Com esse episódio ordinário, terminou uma breve e linda história de amor, recheada de luxúria e traição na capital do abacaxi, onde eu, ainda sem saber, havia acabado de colher o meu. Enfim, chegou o final de no-vembro de 1989.

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SONHOS

Que estranha e eficiente forma de ser avisado de que algo está prestes a acontecer com seu corpo, com sua vida. Durante uma semana, eu tive o mesmo sonho todas as noites, tão terrível e angustiante como a espe-ra daquele resultado do Elisa. Era um sonho sempre igual, no qual eu me via chegando a uma assembleia dos empregados do banco onde trabalhava, amparado por dois amigos e sob o olhar estupefato dos presentes: os senhores sisudos com óculos tartaruga, as impávidas ni-po-brasileiras, os bichos-grilos, todos assombrados com a visão do amigo que ostentava sombras emoldurando cada osso da face, a cabeleira rala e total dependência dos outros para se locomover. O pior é que eu era o mais assustado de todos e, como num sonho erótico às aves-sas, acordava invariavelmente ensopado, trêmulo e me perguntando se havia ou não acontecido de verdade.

Não houve dúvida, outra visita à minha amiga Eli-sa seria de bom tom. Só que desta vez, ocorreu tudo de maneira diferente da anterior. A espera não trou-xe aquele pavor de poder dar reagente. De alguma maneira, eu havia sido preparado para o que viria a seguir, com a mudança de rumo que minha vida iria tomar naquele final de 89.

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REAGENTE

Pois é, fui ao Craids novamente e, após a espera que me pareceu mais rápida que a anterior, fui pegar o resul-tado, sendo que, desta vez, fui encaminhado à assistente social que queria conversar comigo.

– Senhor Luiz, infelizmente seu teste deu reagente.A calma com que eu recebi a notícia a impressio-

nou e também a preocupou. Acho que ela pensou que eu fosse daqueles silenciosos que, sem alarde, fazem alguma bobagem.

– O senhor está bem?– Sim, pode ficar tranquila, de alguma forma eu já

esperava por isso.Saí de lá calmamente e peguei o ônibus para mi-

nha casa. Parecia que só eu existia naquele veículo, na cidade, no mundo. Reagente... Reagir... Reagir como? Naquela época, tudo conspirava contra quem contraía o vírus, pouco ou quase nada se sabia. AIDS mata! Em quanto tempo? Quanto mais eu iria viver? Um ano? Um mês? Cacete! Eu tinha certeza que eu estava livre, de-pois do primeiro Elisa eu me preveni, a não ser... o aba-caxi. Djavan tinha toda razão quando disse que o amor é um grande laço, um passo para uma armadilha. Assim fui ‘djavaneando’ no caminho sobre o que iria fazer da minha vida ou do que restava dela. Súbito, a lembrança: e o trabalho? Fiz sinal para que o ônibus parasse per-to do consultório do Márcio, um dentista grande amigo meu, onde, após uma sessão de lágrimas mútuas e de ter recebido toda solidariedade e carinho da parte dele, pe-guei um atestado de uma semana para ter como planejar o que fazer. Como reagir.

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É engraçado como um resultado de exame deveria ser um comando: REAJA! E como é difícil você obedecer à ordem de um comandante que não lhe oferece armas nem estratégias. Era uma luta covarde que se travava na-quela época, o inimigo tinha tudo, o elemento surpre-sa, um ataque avassalador e um total desconhecimento por parte de nosso exército sobre como se comportar, como se defender. Havia a fé e a vontade de viver, mas ao mesmo tempo tinha a vontade de morrer, ali mesmo, para poupar tempo e sofrimento aos meus pais e irmão. Meu Deus, minha família! Já estava chegando em casa, quando esse novo fantasma apareceu, incrivelmente enorme e invencível. O que fazer com eles? Contar ou não contar? Nossa estrutura familiar tratou de resolver esse meu dilema rapidamente, sempre fui muito ape-gado a eles e jamais consegui esconder quando algo es-tava errado. Imagine quando tudo estava errado! Bem, chegando em casa, aleguei uma dor de cabeça e fui dormir cedo. Assim como Scarllet O’Hara, amanhã eu pensaria no assunto.

Após uma noite repleta de pesadelos, do tipo que se sonha acordado, finalmente amanheceu e agradeci por não ter morrido na mesma noite. Mas a noite também me trouxe uma luz: já que eu estava sozinho na emprei-tada, eu precisaria de um aliado. Quem? Claro, ninguém mais a não ser ele, meu eterno cúmplice nas pequenas travessuras, tanto dele quanto minhas: meu irmão Paulo, a quem chamamos de Kiko desde os tempos em que ele tomava papinha. Menti a meus pais que estava indo tra-balhar, chamei-o de canto e o convidei para ir comigo à praia do Itararé, em São Vicente, dizendo que precisava ter um papo sério com ele. Itararé é um ponto bem ba-

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dalado do litoral paulista, mas naquela manhã ensolara-da estava mais sombria do que em uma noite sem luar. E ele ficou bastante preocupado, tanto que, ao chegarmos à praia, sentamo-nos na areia e ele logo disparou:

– Fala logo, o que tá pegando?Meu Deus, como eu tinha o direito e a covardia de

dar uma notícia dessas a uma pessoa de apenas 17 anos, que me amava o mesmo tanto que eu a ele? Mas não ha-via alternativa e ricocheteei o disparo:

– Tô com AIDS. Ele caiu na gargalhada, acreditando ser mais uma

das brincadeiras de humor obscuro, tão habituais entre nós. Olhei para ele e, pela primeira vez desde que sou-be do resultado, comecei a chorar. Ele, finalmente acre-ditando no que eu falara, fez o mesmo. Assim ficamos, não me lembro por quanto tempo, sentados nas areias do Itararé, chorando por saber que minhas chances não eram das melhores e por termos agora uma nuvem car-regada sobre nossas vidas, como no cupê mal-assom-brado da Corrida Maluca. Enfim, concordamos que não teria como esconder uma situação dessas e que ele me ajudaria à noite, quando eu contaria a meus pais.

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UMA FURTIVA LÁGRIMA

Fingindo voltar do trabalho, cheguei em casa e logo depois chegou a noite, que deveria transcorrer em nor-malidade. Mas foi completamente diferente, foi uma das mais angustiantes de toda a minha vida. Eu e meu irmão nos entreolhávamos como quem procura coragem para dizer alguma coisa, até que consegui proferir:

– Tenho uma coisa séria pra falar a vocês...Pelo seu olhar, tive a nítida impressão de que mi-

nha mãe sabia do que se tratava. Mães... Elas são bruxas, adivinham nossas intenções, pressentem nossas difi-culdades e são capazes de mover o mundo por nós. Por 11 anos, fui o filho único de dona Aída, nome dado por meu avô em homenagem a sua obra favorita de Verdi. Mãe torcedora do Santos Futebol Clube, filho santista. Mãe adorava uma peruca argentina, o filho também. Ou seja, eu sempre fui o filhinho da mamãe e ela o meu por-to seguro, a boia que é lançada quando o fôlego está aca-bando. Nós ainda não tínhamos noção do quanto essa “coisa séria” nos aproximaria e nos uniria como nunca.

Uma vez mais, em um único dia, eu me senti um co-varde em levar essa tristeza às pessoas que mais amava, mas tinha que ser feito, esse segredo nunca se manteria por muito tempo. E, naquele momento em que estava prestes a dar a notícia, foi a primeira vez que eu senti a presença dela, a tal da morte, com sua capa e alfanje, es-palhando-se por todos os cantos do aposento. É terrível ver que a morte criou vida e está em seu encalço, sob a forma de um ar irrespirável, denso... Foi como dar uma notícia de falecimento de alguém muito querido e, de certa forma, era mais ou menos isso. Minha mãe, olhan-

20 MORTE E VIDA POSITHIVA

do com um pedido de “não conte”, perguntou o que es-tava acontecendo e eu respondi:

– Estou com AIDS.Meu Deus, como pode uma simples gota arrasar

tanto a alma de uma pessoa? Aquele ar irrespirável pas-sou a ser sufocante e aquele olhar triste da minha mãe deixou escapar uma lágrima. Uma única e furtiva lágri-ma que escorreu lentamente pelo seu lindo rosto, fazen-do com que eu me sentisse o pior dos mortais, o lixo do lixo, desejando um raio fulminante em minha cabeça. Meu pai Geraldo, figura proeminente do cenário políti-co de São Vicente, cortou o clima perguntando como eu havia contraído, ao que respondi que havia sido através de sexo sem camisinha, que não curtia drogas injetáveis. Quem diria que meu pai, com o qual sempre tive sérias diferenças políticas e íntimas, seria o primeiro estímulo para continuar em frente? Prático, ele determinou:

– Agora é ver o que se pode fazer e olhar para frente.Mas minha atenção ainda estava naquela pequena

grande guerreira, que sabia que teria um verdadeiro de-safio pela frente. Já não havia sido fácil aceitar a homos-sexualidade do filho, agora o HIV. Meu irmão, a todo instante, intervinha como meu fiel parceiro, tentando amenizar a situação, enquanto aquela lágrima ainda ro-lava dentro de mim, corroendo todos os meus órgãos, ossos, veias, com um poder de destruição maior do que o do HIV. Eu sabia que a brincadeira estava apenas co-meçando, muita coisa ainda iria acontecer no pega-pega entre a Morte e a Vida.

21BETO VOLPE

PRIMEIROS ERROS

Lágrimas, abraços e um compromisso de que tudo

daria certo, a ciência estava avançando muito e que al-

guém poderia ajudar. Quem? Claro, eu conhecia alguém

que tinha o mesmo problema, Tio Alfred! A lembrança

de Alfredo me soou como um farol, um ponto de partida

sobre o que fazer do que restava da minha vida. Liguei

para ele e fiquei feliz quando atendeu ao telefone com

uma voz animada. Chutei de primeira:

– Tio, entrei para o clube. O que eu faço?

E ele, também de pronto:

– Venha para São Paulo.

Ele me passou os contatos do infectologista com o

qual se tratava e que, a partir de então, passaria a ser o

meu também. Era dezembro de 1989 e o presente de Na-

tal que eu e minha família havíamos encontrado debaixo

da árvore nos prenunciava muito trabalho e dificuldades

pela frente. Mas era engraçado, eu tinha dentro de mim

o contraponto, algo me dava certeza de que não seria

disso que eu morreria. Não seria um bichinho covarde

que poria fim à minha vida. Esse sentimento permane-

ceu sempre comigo, ainda que lá no fundinho, quando

tudo parecia perdido.

Assim, começou uma relação que durou vários

anos, entre mim e doutor Paulo, com seu belo consultó-

rio na Vila Clementino. Minha mãe sempre ia comigo,

mas preferia ficar na recepção, fingindo que estava len-

do alguma coisa. Engraçado, quase todos os pacientes

iam com suas mães, na hora do vamos ver, elas são as

grandes aliadas, as companheiras, as soldados-rasos, ca-

22 MORTE E VIDA POSITHIVA

pitãs e generais da guerra. Elas são, realmente, bruxas

maravilhosas, têm o dom da onipresença.

Era muito estranho viver com HIV no início dos

anos 1990. Não que hoje em dia não o seja, mas naquela

época não havia nada além da esperança e da fé em um

futuro melhor. Até os maiores especialistas do mundo

se confessavam impotentes perante uma ameaça até en-

tão inusitada, algo tão mutante, que sempre escapava às

armadilhas da ciência para desvendá-lo. Um X-Virus.

O pior é que, a despeito de não saberem praticamen-

te nada, alguns arriscavam palpites que, tenho certeza,

custaram a vida de muitas pessoas, incluindo a minha.

Vinham com estimativas baseadas em suas planilhas e,

principalmente, no reconhecimento da própria ignorân-

cia: “Qualquer alternativa de tratamento somente após

o ano 2000” ou “Medicamentos eficazes contra a AIDS

somente no terceiro milênio”.

Imagine a situação: não se precisava o tempo de vida

ou, como preferem os técnicos, a sobrevida do paciente.

Não havia tratamento, somente ignorância generalizada

sobre o inimigo e você indo a enterros de amigos, um após

o outro, incluindo os do tio Alfred e seu companheiro,

perdas muito sentidas por mim. Eles também foram para

aquela praia linda do final de ‘Meu querido companheiro’,

o primeiro filme sobre o tema ao qual assisti, claro, entre

lágrimas. O filme representa bem a realidade da época, o

meio gay apavorado com “a peste” que se propagava em

saunas e entre pessoas “promíscuas”.

Foi quando, em julho de 1990, morreu Cazuza.

Nossa, o poeta tinha poder, grana, possibilidade de tra-

tamentos no exterior e disseram que ele tinha tomado

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até sangue de cavalo! Mas ele se foi e, com ele, grande

parte de mim e de todo mundo que estava no mesmo

barco. Aquela certeza de que não seria disso que eu iria

morrer havia balançado pela primeira vez e foi nesse

momento que cometi meu grande erro na vida: perder o

pouco de fé que me restava. A certeza de que eu entraria

na Barca dos Infernos me fez desejar que tudo acabasse

logo e passei a detonar meu corpo com crescentes do-

ses de cocaína e uísque, procurando dar uma forcinha

ao vírus em seu trabalho de me eliminar. Os únicos que

continuavam a acreditar que seria possível sair daquela

situação eram minha mãe e meu médico, ou seja, as duas

opiniões mais suspeitas do mundo.

24 MORTE E VIDA POSITHIVA

CULPA, MEDO E PENA

Da mesma forma que havia sido criada a rotina de consultas e exames de sangue, também veio outra roti-na, mais desgastante, humilhante e dolorosa: a das perí-cias médicas para prorrogação do auxílio-doença, junto ao INSS. Se, ainda hoje, quem vive com HIV frequente-mente se depara com situações em que você é jogado em uma espécie de purgatório de vivos, naquela época, o médico perito te olhava com medo e condenação:

“Você, Luiz Alberto Simões Volpe, é considerado cul-

pado de ser promíscuo e ‘aidético’, de causar extremo so-

frimento a seus entes queridos, de virar sua vida de cabeça

para baixo e, principalmente, de ameaçar a humanidade

com sua simples presença. Sua pena será morrer em vida,

não ter direito a ser feliz, a sonhar. Não terá direito a viver

e a amar. Cumpra-se o veredito.”

Culpa e medo, uma relação perigosa. E, se alguém sentir pena, então, aí ferrou de vez. E isso tudo pode se manifestar através de um olhar assustado e condenató-rio ou por reações que você não espera de um médico, um profissional que estudou anos e anos para lidar com o sofrimento alheio e tornar mais forte e digna aquela vida fragilizada. Subi a serra para minha primeira perí-cia em São Paulo, em uma gigantesca agência da Previ-dência, até que ouvi a voz do médico me chamar. Entrei em seu consultório confiante, ele era do time de branco que iria me dar todo o suporte que eu necessitasse. Fui logo estendendo a mão em cumprimento quando, para minha surpresa, ele exclamou e apontou: “Não, não! Atrás da linha amarela!”

Sim, nas salas de perícia do posto do INSS do Gli-cério existia uma linha amarela pintada no chão, deter-minando a distância de dois metros entre a pessoa com

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HIV e o doutor. Parecia coisa de violência doméstica, onde o agressor não pode se aproximar da vítima e – que doideira! – eu era o agressor e o doutor, a vítima. Paradoxal, essa merda toda.

Também em Sampa, encontrei um apoio diferen-te, um grupo de ajuda mútua coordenado por Márcia e Cidoca, duas técnicas de RH do banco do qual eu me encontrava licenciado, e que uma vez ao mês se reunia na sede da Paulista. O apoio das duas era inegável, elas eram e ainda são dois doces, sempre dispostas a facili-tar ao máximo nossas vidas em diversos aspectos. Mas o grupo, em si, era um desastre. Primeiro, porque qua-se todo mundo entrava cabisbaixo e assim permanecia, mesmo quando expondo sua vida, tentando desnudar-se e entender o que estava acontecendo. Infelizmente, com o andar da carruagem, as reuniões não mais tratavam de resgate de autoestima, de desconstrução da culpa... Mas, sim, de silenciosamente lamentar a perda de mais um integrante do grupo. E assim o grupo foi se esvaziando, seja pela desistência de alguns, seja pela maneira mais óbvia na época. E o medo crescia.

Era, realmente, muito estranho viver com HIV no início dos anos 1990. Durante o dia, até que era mais fá-cil gerenciar a situação, afinal, viver em cidade de praia ajuda bastante e eu havia acabado de conhecer Cris e Rose, donas de um carrinho de pastel que, com o tempo, viria a se tornar o quiosque de maior movimento da ilha. Eu tinha um círculo de amigos bem razoável e uma roda de baladas bem maior, então não era difícil ter alguém para conversar, falar merda, fumar unzinho à beira-mar, o que fosse.

Foi nessa época que aconteceu o milagre da mul-tiplicação de sabedores de minha condição. Assim que soube do diagnóstico, eu contei a umas cinco pessoas,

26 MORTE E VIDA POSITHIVA

se muito, sobre o que estava acontecendo. E, qual Jesus nas bodas de Canaã, em menos de uma semana, toda a cidade sabia que o Betinho do Itararé, ou o filho do Geraldo e Aída era um ‘aidético’. Credo! Que palavra ridícula! Como é agressiva e como diminui a pessoa, valorizando o mal que ela carrega. Mas, ao mesmo tempo, virei uma espécie de ícone fashion no meu pedaço. Eu era exibido às escondidas como em um zoológico humano de Star Treck:

– Eu tenho um amigo ‘aidético’, você quer conhe-cer? Ele é tão legal... Coitado!

Minha Vida de leviandade e prazeres continuava rolando solta e eu era cercado de pessoas, mas na hora de bater um vôlei de praia sempre tinha aquele que, ale-gando cansaço, pedia para sair do time. Tudo bem, es-sas coisas realmente não me incomodavam, ao menos de dia. Além da galera da praia, eu tinha minha turma de amigos do banco sempre ao meu lado em boliches, viagens e que também fazia o jogo da Pollyanna Posi-thiva. Celso, Cláudia, Vera, Mylene, Helena, Ary e Ivan formavam o núcleo rochoso desse grupo e sempre tra-ziam muito carinho e acolhimento, mas também com informações, incluindo a de que eu poderia resgatar o FGTS e o PIS. Na Caixa Econômica Federal, não tive pro-blemas, mas no Banco do Brasil, a atendente gritou para um colega:

– Fulano, resgate do PIS por AIDS é que núme-ro, mesmo?

Desnecessário dizer que rasguei o verbo com ela, que se desculpou sob os olhares assustados de todos que ali estavam. Mas o importante é que agora eu tinha ao menos como tocar a vida mais tranquilamente, ao me-nos do ponto de vista material.

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SEXO, DROGAS E FORRÓ

Pois é, o que fazer com dinheiro e tempo sobran-do? Claro, Ceará! Eu já conhecia o estado desde 1984 e iniciei uma série de viagens para aquele paraíso de águas verdes, areias fofas e homens idem. Foram várias viagens para Cumbuco, Jericoacoara, Camocim, Tatajuba e, claro, a ferveção de Fortaleza, que transpirava sexo a qualquer hora do dia ou da noite. Eu fazia o hoje conhecido e com-batido turismo sexual, sabia que teria diversão garantida, dentro e fora da cama. Sexo, drogas e forró!

Devo ter ido umas oito vezes ao Ceará, entre 1990 e 1996, algumas vezes, cheguei a ficar meses, sempre levando quilos de camisinhas na bagagem. Jericoacoara era meu destino preferido, uma pequena e paradisíaca vila de pescadores encravada entre um deserto de du-nas e o mar mais verde que existe. Lá, conviviam famí-lias de pescadores, gringos que casavam com nativas e instalavam pousadas e malucos de todo tipo, onde eu era conhecido como o ‘bonequeiro’, termo regional que significa que você tem um comportamento um pouco diferente dos demais, que chama a atenção por suas ati-tudes. Botar boneco. E eu botava.

Com a assiduidade e consequente intimidade com o povo local, eu me sentia à vontade para extravagâncias de todo tipo, como andar de canga sem nada por baixo, ao sabor do vento constante. Acordava às três da manhã para pegar ondas gigantescas na praia Malhada e por vezes ia com os canoeiros pescar em alto mar. Ou seja, fazia o que me dava na telha. Mas era, mesmo, estra-nho viver com HIV nos ´90’. A inconsequência com que eu levava minha vida fez com que eu chegasse a limites

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que hoje, ao recordar, me assombro com o que na época parecia uma coisa normal. Como, por exemplo, escalar verdadeiros penhascos sobre o mar com um conhecido mau elemento ali das redondezas, para chegar a caver-nas onde a cheirada e a transa dariam maior prazer.

Certa vez, eu e um gato que eu havia conhecido em Fortaleza fomos a Camocim, última parada do lito-ral cearense, antes do Piauí. Uma cidade portuária de importância comercial na região, onde nos instalamos em uma pousada de uma família que estava curiosíssi-ma por um casal que não dava muita importância aos valores sociais, trocando carícias em público e não es-condendo a íntima relação. Uma tarde, depois da praia, chegamos ao limite de improvisar um chicote feito de galho de arbusto, um pedaço de linha de pesca e algu-mas conchinhas amarradas na ponta. No salão principal da pousada, quase cheia por conta de um feriado local, ouvia-se o barulho de algo batendo e alguém gemendo como louco. Após o prazer, fomos comer alguma coisa e deparamos com um pessoal perplexo ao ver minhas costas lanhadas pelo chicote. Até que o dono da pousada veio à mesa e me disse bem baixinho:

– Você me deixa fazer isso com você, um dia?– Claro, se eu estiver vivo... Se eu estiver vivo... É, era estranho viver com HIV

nos ´90’. Alguns medicamentos haviam sido descober-tos, como o AZT, o D4T e o 3TC, mas eles não impediam que a contagem de minhas células de defesa caísse bas-tante a cada exame, o que aumentava minha ansiedade por fazer de tudo. A inconsequência dos atos e a ideia de mortalidade e imortalidade simultâneas eram muito esquisitas. Ao mesmo tempo em que você tem a mor-

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te estampada à sua frente, mostrando-se impassível e levando seus amigos, também existia uma sensação de que nada lhe aconteceria. Ou nada pior do que a AIDS, talvez. Mas a vida seguia seu curso e eu extravasava em viagens e loucuras, até que durante um lindo pôr do sol na praia de Iracema, apareceu um belo príncipe com um sapatinho na mão que era o meu número. E eu embarquei em um sonho de princesa que acabou se tornando um pesadelo.

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BOA NOITE, CINDERELA...

Em uma de minhas idas ao Nordeste, eu me progra-mei para passar três semanas no Rio Grande do Norte e uma no Ceará. Chegando a Natal, hospedei-me na Pou-sada Las Palmas, um pé na areia muito legal, no finzinho de Ponta Negra, onde era sair na sacada, dar um passo e já estava na praia. Aliás, essa sacada foi o destaque du-rante minha estadia, onde eu me oferecia com minha minúscula sunga, toca fitas com fone de ouvido e muito rebolado para celebrar a vida com a brisa do mar em minha pele.

Vários parceiros sexuais foram conquistados com essa estratégia de impacto, dentre eles, um oficial da Aeronáutica, tem muitos deles por lá. Um mini Tom Sel-leck, cuja pegada era tão boa que combinamos de alu-gar um carro e ir à praia de Pipa, no dia seguinte, onde nadamos com golfinhos, tomamos um porre, transamos em um canavial e perdemos as chaves do carro na areia do mar, com a maré subindo. Foi um sufoco, mas con-seguimos achá-la, voltamos a Natal e nos separamos, em um romance com princípio, meio e fim, em dois dias. Eu queria mais era rosetar. E rosetei, eu saía no meu estilo: ‘uma canga na cintura e mil ideias na cabeça’, a própria Tieta de Ponta Negra. E, com esse espírito saliente, fui passar uma semana no Ceará.

Em Fortaleza eu matei saudades de algumas pessoas da barraca do Joca, fritei um pouco na praia do Futuro e curti bons finais de tarde na praia de Iracema. Duran-te um deles, eu tomava uma água de coco com uísque, quando fui abordado por um belo jovem:

– Você não é o Beto, de São Paulo?

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Tremi na base. Sabia que tinha aprontado um mon-te de coisas, mas não que minha fama tivesse corrido o Ceará. Ante minha resposta afirmativa, ele continuou:

– Eu sou o Daniel, dali do Aquidaban, não lembra?Aí, eu me lembrei. Em 1985, eu havia estado em

Fortaleza, onde eu havia conhecido um garoto lindo que havia me jurado ter 18 anos, com o qual eu tive transas maravilhosas. E ele estava ali, dez anos depois, oferecen-do-se para o abate, ao que me levantei da cadeira e nos abraçamos, já com o pecado no corpo. Contei a ele que estava hospedado no hotel Aquidaban novamente e be-bemos cerveja, felizes pelo reencontro, até que chegou um amigo dele, igualmente gato, para disparar tudo que é hormônio em meu organismo. Conversamos e rimos muito, saímos dali e fomos até o Pirata, uma balada bem legal, onde dançamos, bebemos e nos beijamos, até que...

Acordei atravessado na cama de um quarto em completa desordem. Aos poucos, percebi que estava em meu quarto no hotel, com uma forte dor de cabeça e no corpo todo, e vi o estrago feito em minhas coisas. Nada, do pouco que havia restado, estava em seu lugar. Havia várias camisinhas usadas e espalhadas pelo chão. Bem, ao menos uma das dores já tinha explicação.

Eu havia tomado um ‘Boa Noite, Cinderela’, famoso golpe onde o criminoso coloca uma droga em sua bebida, provocando a perda de consciência por parte da vítima. E a vítima tinha sido eu, meu corpo doía, o estômago revirava todinho, a cabeça rodava e, o pior de tudo, o amargo sen-timento de ter sido um idiota. Aquele garoto lindinho que havia conhecido em 85 havia virado um bandidinho, que aplicava esse tipo de golpe e, claro, isso ele não havia me contado. A lei da causa e efeito, ou do carma, é implacável!

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Após vomitar algumas vezes, comecei a contabili-zar o prejuízo: algumas roupas, relógio, som com fone de ouvido, correntes, óculos de sol, carteira com docu-mentos e grana... Mas o que é aquilo? Ufa, caído ao lado de um móvel estava meu cartão de crédito, o que me deu condições de quitar meus débitos no hotel e comer, an-tes de voltar para Natal, onde eu havia deixado a maior parte da grana e das minhas coisas. Parti para registrar o ocorrido no distrito policial e, após fazer um resumo do fato ao guarda do balcão e aguardar um pouco, ele me encaminhou para a sala do delegado, que estava com os pés em cima da mesa e fumando charuto. Junto a ele, o escrivão, outros policiais, o ajudante da limpeza, o vizi-nho da delegacia... E o delegado se pronunciou:

– Quer dizer que o senhor estava no quarto com outro cabra, é?

Nem vou descrever a humilhação que sofri a partir daquele momento. Todas as perguntas vieram rechea-das de preconceitos e acusações, até que saí de lá com o BO e fui direto para o hospital. A discriminação me fez mais mal do que a overdose da droga. Chegando lá, fui encaminhado para o médico que me prescreveu soro, alguns medicamentos e repouso. Fiquei mais uns dois dias em Fortaleza, até me sentir mais forte para voltar a Natal e riscar aquela passagem pelo Ceará da minha memória. Mas, o primeiro ‘Boa Noite, Cinderela’ a gente nunca esquece...

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GODIVA DO IRAJÁ

No retorno de uma dessas viagens ao Nordeste, tive uma surpresa: meu pai havia comprado um fusca para mim. E não era um fusquinha, era um baita fusca, in-crementado, branco e com um adesivo enorme no vidro traseiro escrito ROLAND, a marca do teclado de meu irmão, que dava um charme especial ao carro e também o carimbava – todos sabiam de quem se tratava, de lon-ge. Se meu pai soubesse a arma que ele havia colocado em minhas mãos... Uma arma que disparava lascívia e adições para todos os lados, qual uma metralhadora de prazeres e delírios. Como já disse, eu vivia cercado de pessoas e, naquela época, por volta de 1994, eu já estava cheirando cocaína um pouco além do que se pode dizer “uso seguro”. Ou seja, estava na fase do dia sim, dia não. Um dia enlouquecido, o outro prostrado, de “bode”. Pa-recia que eu queria encontrar o equilíbrio suicida: a cada nova descoberta científica, eu aumentava a dosagem do antídoto, a quantidade de gramas cheiradas. Creio que eu consumia em torno de 10 a 15 gramas por semana, sempre fornecidos por meu “patrão” favorito.

Ele era um cara magro, alto e gostosão que não ti-nha nada contra uma sessão de prazer a cada entrega da droga, era uma loucura. Não sei se transamos sem cami-sinha alguma vez, mas tenho quase certeza que sim, era muita poeira, muito uísque, muita doideira. Duas ou três vezes por semana, eu ia ao seu mocó ou ele vinha à mi-nha casa e, entre um ‘tiro’ e outro, uma bela transa. Esse papo de que “se droga fosse bom não teria esse nome” é papo furado, drogas são gostosas e por isso atraem e conquistam as pessoas, o problema é o preço que se paga por isso. Preço na saúde, preço no convívio social e nos

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riscos que se corre quando se está drogado. Se Newton não disse, com certeza pensou nessa lei natural: quanto maior o prazer, maior o risco envolvido. Se você namora uma figura super gata, suas chances de ser corno serão muito maiores, por exemplo.

Tem uma música que parece ter sido feita especial-mente para mim, Kátia Flávia. “Ficou famosa por andar num cavalo branco pelas ruas suburbanas, toda nua!” Pois é, era mais ou menos o que eu fazia com meu Ro-land, quando chegava a madrugada pesada. Eu me des-pia por completo e saía pela periferia de São Vicente em meu fusca, com o porta-luvas cheio de cocaína, atrás dos mais delirantes prazeres. Hoje, penso que se uma sim-ples viatura me parasse para uma averiguação de rotina, daria página policial no dia seguinte, com certeza: “Ho-mossexual preso dirigindo com drogas e nu”. Ou nos jornais mais populares: “Bicha louca e drogada fica pe-lada para conseguir homem”. Fora a festa que fariam os detentos, claro. E permeando tudo isso, aquela sensação de que nada aconteceria de mais grave além da AIDS, a impunidade divina que me protegia.

Em pouco tempo eu não estava apenas à mercê da morte, também estava escravizado pela cocaína. O ‘dia sim, dia não’ fazia parte do passado, agora era ‘dia sim, dia também’. Eu estava completamente subjugado, sen-tia sua falta em todos os momentos e não havia monta-nha que se interpusesse entre nós, eu fazia o impossível para conseguir uma boa porção, a qualquer hora do dia ou da noite. Nessa toada, eu corria atrás de poeira como quem corre atrás de uma cura, já não tinha uma convi-vência muito legal com as pessoas e vivia com o nariz escorrendo, enquanto minha vida esvaía um pouco mais a cada dia.

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BLADE RUNNER

Durante esse período, eu tive alguns namorados, to-dos bem legais e a quem quero bem até hoje. Pedro, que morava em São Paulo, era um deles, um cara de família refinada, super bonito e carinhoso. Armando também, conhecemo-nos na praia do Itararé, em uma das mais ri-dículas cantadas que dei até hoje. Ele estava sentado em sua cadeira, a uns trinta metros de mim, e os dois estavam a fim, mas ninguém chegava em ninguém. Foi quando eu, da forma mais descarada possível, esvaziei minha caixa de fósforos na areia, levantei-me e fui até ele:

– Você tem fogo?Depois, Pedro e Armando se conheceram e ficaram

juntos por alguns anos. Mas é de Júnior que guardo vá-rias lembranças, boas e ruins. Um homem lindo, de mais de um metro e oitenta e extremamente sensível, que à noite se transformava em Grace Welch, uma linda mu-lher que se parecia muito com a bela androide Rachael, de Blade Runner. Vivemos alguns meses de bastante amor e loucuras, regado à pinga coquinho, no falecido Lido Hotel, com viagens memoráveis à praia de Boiçu-canga. Em suas apresentações na boate Lido, sempre sobrava uma piscada de olhos para mim, no compasso da canção. Após um desses shows, fui visitá-la nos ca-marins e lá trocamos um longo beijo, presenciado pelo ex-namorado dela que, assim que eu saí da boate, com Pedro e Armando, veio por trás e meteu uma tesoura em meu olho esquerdo. Como eu estava meio que anestesia-do pela bebida e a ‘poeira’, fomos para a casa de Pedro para ver o estrago no dia seguinte. Ao acordarmos, a ter-rível visão de um olho enorme, roxo e expelindo muita

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secreção. De lá, fomos direto para o hospital municipal, onde o médico foi taxativo:

– Por muita sorte, só pegou de raspão, mas será ne-cessário operar sua vista o mais rápido possível.

Voltei para casa com os pedidos para exames pré-operatórios, contando a meus pais que eu havia me en-volvido em uma briga de bar. Eu e Júnior somos amigos até hoje e, quanto à Grace, ela reapareceu recentemente na festa de um amigo em comum, linda como sempre, mas nosso carnaval já passou...

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ERA MUITO ESTRANHO

Era estranho viver com HIV no século passado. E o pior acontecia na hora de dormir, onde todos os fan-tasmas e demônios acordavam dispostos a assombrar minha vida. Esses fantasmas de travesseiro vinham sob as formas mais diversas, tipo: Será que vou conseguir dar mais uma trepadinha, antes de partir? Terei outra temporada no Nordeste? Qual será o próximo amigo a bater as botas? Ou serei eu? Como será que minha mãe vai reagir ao me encontrar sem pulso? Ou, pior ainda, como ela iria lidar com a morte lenta e sofrida de seu primogênito? É, era ela, a tal da morte que se fazia pre-sente todas as vezes que eu deitava a cabeça e permitia que ela se deitasse a meu lado.

Acho que todo mundo já se imaginou morto alguma vez na vida. Como será que vai acontecer: susto, bala, ví-cio ou docemente no mar, como na Bahia? Enfim, ver-se morto, sentir-se morto. Pairar acima das pessoas em seu próprio velório, verificando minuciosamente se a ma-quiagem foi bem feita no necrotério, checando o livro de assinaturas para conferir quem foi e quem não foi dar seu último adeus, quem estava triste e quem estava feliz. Quem estaria comentando “ele só poderia acabar desse jeito mesmo, aquele doidinho...” ou “até que demorou...” E amargar essa espiral de delírio até que o sono vences-se a morte e outro dia tivesse início.

Assim, estranhamente, o tempo passava e eu ainda estava na área quando, finalmente, percebi que eu não va-lia mais nada, era uma pessoa completamente à mercê das drogas, da morte, das circunstâncias. Mas isso também teria seus dias contados, era chegada a hora da verdade, o momento em que a brincadeira esquentaria de vez.

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SENHOR LUIZ, É SUA VEZ!

Aí aconteceu algo muito mais estranho do que vi-ver com HIV nos anos 90: parei com a cocaína. Sem qualquer tratamento, sem nenhum grupo de apoio ou internação, eu tive a intuição de que, se eu tinha alguma chance, aquela seria a última. O consumo de drogas teria que parar, caso eu quisesse continuar a desfrutar das de-lícias do nosso planeta. Como essa ficha pôde demorar tanto a cair? Seria tarde demais? Ou seria outra vez o plano astral intervindo nessa jornada que já durava qua-se sete anos?

Talvez, mas o fato é que eu parei de uma hora para outra, sem síndrome de abstinência e sem sair como doi-do na noite, atrás daquele papelote que me fazia sentir mais poderoso frente a isso tudo. Eu estava combalido e isso me tornava um alvo bastante fácil para qualquer resfriadinho, afinal, o meu exército de defesa estava em frangalhos. Para se ter uma ideia, o número normal de células de defesa no sangue é acima de 700 unidades por milímetro cúbico, tornando-se arriscado, quando abaixo de 200. Ao receber os resultados dos exames de maio de 1996, vi que minha contagem estava em seis.

– Escute, doutor, por acaso não houve erro de digi-tação ou coisa parecida? Não está faltando ao menos um zero aqui?

Não faltava nada, meu organismo não aguentou tan-tos abusos, teve sua imunidade dizimada e sucumbiu à primeira infecção oportunista. Oportunista? Deveria ser chamada de inoportuna, mas nomes convenientes não são o forte da medicina. Um resfriado difícil de tratar revelou-se, na verdade, uma pneumonia que me levou ao Hospital São José, em São Vicente. O lugar não era exatamente uma boa referência em atendimento, o que

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valeu o apelido de Vietnã para o setor de emergências, e contava com um estigma de que a pessoa que entrava com um problema saía com dois. Quando saía.

Dei entrada em maio, com um quadro meio com-plicado, o que fez com que eu tomasse a minha primeira transfusão de sangue. O primeiro sangue a gente nun-ca esquece, como diria o jovem Drácula. E após quase um mês internado, para meu espanto e de toda a equipe médica, eu estava recebendo alta, plenamente recupe-rado. Muitos tubos, muitas agulhas... Eu nem imaginava o quanto eu conviveria com elas a partir de então. Logo eu, que odeio qualquer coisa que pinique, tinha vindo com o carma de virar peneira.

Nada seria o mesmo dali para frente. Aquele vul-to que se fazia presente desde 1989, agora tinha rosto, corpo e atitude. A tal da morte havia chegado e nunca mais sairia do meu lado, enquanto os únicos que ainda acreditavam em uma saída, meu médico e minha mãe, continuavam nessa crença que parecia mais um funda-mentalismo, uma fé que se processa por si só.

Quem sabe não teriam razão? Não seria essa a saída para tudo que assombrava minha vida, a fé? Fé lembra vinho! Por que não aproveitar o restinho de tudo em uma viagem bem legal e diferente das turnês sexuais ao Nor-deste? E fomos, eu e duas grandes amigas, Diadenir e He-lena, para uma deliciosa e excitante viagem ao Uruguai. Partimos de Sampa para Montevidéu, onde curtimos um bocado, vimos leões marinhos aos montes, tomamos vi-nho a rodo e procuramos esquecer o que estava aconte-cendo. E, ainda estranhamente, foi um dos únicos perío-dos, desde 89, em que a Tal não deu as caras. Será que ela foi barrada na Polícia Federal por falta de carimbo no passaporte? Talvez ela tenha decidido deixar que eu ti-vesse minha despedida, meu canto do cisne.

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Ao retornar ao Brasil, de alguma maneira, eu esta-va mais preparado para a outra viagem, aquela em que o bilhete é só de ida, cujo embarque estava próximo. Era julho, o ameno frio do litoral de São Paulo apelava para noites preguiçosas e de retiro doméstico, ainda mais num domingo. Minha mãe jogava videogame em meu quarto, meu pai mandava ver em uma partida de tranca com tio Raymond na cozinha, enquanto eu, deitado no sofá da sala, assistia a um programa humorístico dominical. No início do intervalo, eu quis ir até a cozinha e pegar um copo com água, mas fiquei na intenção. Ao tentar levan-tar do sofá, minha perna direita não teve força suficiente para suportar meu peso, o que me levou ao chão, trazen-do instantaneamente à mente a Tal do alfanje.

Ali no chão, sem ter ideia do que estava acontecen-do, trêmulo de medo, murmurei por ajuda. Meus pais e tio acorreram imediatamente e fomos ao pronto socorro mais próximo da minha casa, onde o médico, ao saber que eu vivia com HIV e estava sob acompanhamento, recomendou que eu procurasse meu médico no dia se-guinte, logo cedo, pois a coisa parecia neurológica e sé-ria. Voltamos para casa e ligamos para doutor Paulo.

– Amanhã, bem cedinho, quero vocês aqui no hos-pital Santa Cruz.

Era sério, mesmo. No carro, subindo a serra, está-vamos eu, meus pais e ela, a Tal, sentadinha a meu lado, flertando descaradamente meus medos e sussurrando palavras de amor ao meu ouvido.

– Quero você todinho pra mim, ainda hoje.Chegamos ao Santa Cruz, que passaria a ser meu

segundo lar, dali em diante, um lar com jeitão de separa-ção, com cheiro de medicamentos e aquele infecto odor dos produtos de limpeza que só os hospitais têm. Assep-sia com cheiro de morte.

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SÃO PAULO, TERRA BOA...

O Hospital Santa Cruz é, na realidade, a Sociedade Nipo-Brasileira de Beneficência, ou seja, orientais por todos os lados, o que significa que eu poderia contar com pontualidade e eficiência nos serviços. Essa eficiência fez com que, ainda na parte da manhã, eu fosse subme-tido à minha primeira tomografia computadorizada do cérebro e dali para o quarto, à espera do resultado. Não deu outra, o exame confirmou uma neurotoxoplasmo-se, uma das oportunistas que até hoje mais acometem as pessoas que vivem com HIV. É causada por uma por-caria de um protozoário que quase todos nós temos, o toxoplasma gondii, tão ridículo que em um organismo sadio fica na dele, quietinho. E, como todos os ridículos e quietinhos, aparece quando vê uma oportunidade, de maneira devastadora.

Ele havia se alojado na parte de trás do meu cére-bro e me fez passar vinte e poucos dias sofrendo todo o tipo de ataques por parte delas, as agulhas. E tubos e mais tubos de soro e medicamentos, sentindo minha perna se fortalecer novamente. Enquanto isso, todas as manhãs eu ouvia Beethoven, a quem amo de paixão, em uma versão homicida no caminhão de entrega de gás. Ele conseguia me incomodar mais que as agulhas, dava nos nervos.

Por outro lado, fiz amizade com todo o corpo de enfermeiras e até mesmo com o corpo do acompanhan-te de uma senhora que também estava internada. Meu Senhor, na antecâmara do inferno e eu flertando? Eu e o cara nos conhecemos na sacada de nosso andar, eu comendo uma maçã e ele cheio de amor para dar, com

42 MORTE E VIDA POSITHIVA

a mulher internada. Até que uma noite, comigo já qua-se recuperado e com alta prevista para breve, convenci meus pais a me deixarem sozinho por uma noite. A in-tenção era refletir sobre tudo o que estava rolando, juro! Mas não deu outra, tão logo a enfermeira saiu do meu quarto após a medicação noturna, lá veio o safado e ti-vemos momentos de muito prazer. Que barato, era meu lado imortal gritando:

– Estou vivo, vou gozar e continuar vivo! Bem, adorei o novo fetiche hospitalar, afinal, as

portas não têm tranca e o risco de aparecer alguém da enfermagem sempre existe. É sempre bom descobrir um novo filão e eu o incorporaria mais algumas vezes, dali para frente. Recuperado da neurotoxoplasmose, tive alta e deixei o hospital em meados de agosto, já sob a energia do sol regendo leão e mantendo minha cha-ma e esperança acesas. Não sem antes ter uma festa de aniversário com as enfermeiras e vários amigos meus, promovida por meus pais, que trouxeram aperitivos e refrigerantes. De volta à minha casa, senti uma tênue diferença no comportamento de minha perna, parecia que tinha sempre algo pinicando internamente e com a sensação de que meu cérebro estava meio desconectado do crânio, que balançava lá dentro. A percepção das coi-sas estava meio embaralhada, mas isso iria passar, como passou agosto e viria a primavera e também uma das noites mais terríveis da minha vida. Uma noite em que eu tive a pior visão de todas, pior até mesmo que a Tal me observando dos pés da cama.

Minha casa é simples, um bangalô com meu quarto na frente, sala, cozinha e o quarto dos meus pais nos fundos. Fomos todos deitar, após ter jantado e visto um

43BETO VOLPE

pouco de televisão, quando minha mão direita começou a formigar e a se retorcer todinha, como se Seu Tranca Rua tivesse tomado conta do meu corpo. Dentro de mi-nha cabeça começou a soar um apito estridente e meu corpo começou a se debater, parecido ao de Linda Blair, em O Exorcista. Não tive forças para nada, além de dei-xar escapar de meus lábios, como um último apelo:

– Mãe! E não é que, quase instantaneamente, ela apareceu

em meu quarto atendendo ao meu pedido de socorro? Meu Deus, elas são mesmo bruxas! Como pode um mur-múrio atravessar toda uma residência e acordar uma pessoa adormecida? Yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay! E minha bruxa favorita estava lá para me socorrer. Só que, entre uma convulsão e outra, eu tive a pior visão que uma pessoa doente pode ter: o olhar de minha mãe não conseguia disfarçar o pavor de es-tar me perdendo. Não há sensação pior do que perder a boia que nos mantém na superfície e naquela longa noite, em que eu me debati mais algumas vezes, deixei de existir um pouco mais, até que, pela manhã, fôssemos novamente ao Santa Cruz para mais uma estadia, não tão agradável como da primeira vez.

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PRIMAVERA DE PRAGAS

A primavera é a estação das flores e teve gente que pensou em mandar algumas em forma de coroa. Não era para menos, aquele mesmo bichinho, o tal protozoário ridículo, havia resolvido mudar de endereço, saiu da par-te de trás e se alojou na lateral da minha cabeça, o que o tornou um pouco mais poderoso, fez com que seus efeitos fossem mais fortes que da primeira crise e dei-xou a todos um tanto mais preocupados. O lado direito do meu corpo já não correspondia aos meus comandos a contento e a confusão em minha mente era maior, tanto que muito do que estou aqui a escrever é baseado em depoimentos de parentes e amigos. Amigos, onde eles estão, sumiram quase todos? Mas eram tantos... Pois é, havia ocorrido o segundo milagre. Assim como o mila-gre da multiplicação de “amigos” no princípio, houve o da redução de amigos, agora. Alguns deles foram me vi-sitar, outros chegaram a ir algumas vezes... Mas um, em especial, não saiu do meu lado na maior parte dos dias. Já o fizera quando da primeira internação em Sampa e se mantinha fiel escudeiro: Zé Roberto, meu querido ami-go que me acolheu em seu apartamento, no tradicional edifício Copan, nos anos 70.

Apesar da família e alguns amigos sempre presen-tes, eu sentia que eu tinha cada vez menos contato com esse mundo, que tudo estava se desligando dentro de mim, pouco a pouco. Dei entrada no ‘hotel’ Santa Cruz, onde procurei não deixar a peteca cair a maior parte do tempo. E teve até outra festa, a do aniversário do meu irmão. Já íntimo do corpo de enfermagem, contava mil piadas e meus pais sempre traziam os petiscos que eu adorava... Tudo o que um condenado à morte poderia

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pedir como sua última refeição. Mas sempre, lá no fun-do, com a certeza de que haveria a próxima, a próxima e a próxima. Desafiando aquele espectro que estava pre-parando seu bote final, do qual a presa não teria como escapar. A ordem estava dada, que se inicie a fase final do processo de seleção: a morte do mais fraco. E a alta do hospital veio com a amarga sensação de que não tar-daria a retornar.

Em uma bela tarde de outubro, recebo a visita da minha dermatologista Rosemary, a quem recorro até hoje, nos raros casos em que necessito. Após o cafezi-nho da chegada, atualização de papos e, claro, as piadas mais recentes, ela começou a me examinar. Até que che-gou na boca.

– Abre bem, põe a língua pra fora! Huuummm... – Que huuummm é esse, doutora? – Você tá com candidíase na boca. Vou prescrever

um remédio que você vai pingar. Cuidado pra isso aí não descer!

Pois o sapinho desceu e não caiu bem, meu apetite desapareceu de uma hora para outra e tudo o que eu ingeria era expelido quase que imediatamente. Eu me vi reduzido a um resto de Beto, os meus sessenta e poucos quilos foram se consumindo a olhos vistos e em pouco tempo estava com cerca de quarenta. Nossa, é mais ou menos o peso de meus ossos e órgãos! E, pela quarta vez em seis meses, eu estava entrando em um hospital, só que, dessa vez, quem empurrava a maca não eram os enfermeiros, era ela, a Tal. Ela estava sorridente e feliz, divertindo-se desde o hall de entrada, subindo no eleva-dor, até que se instalou, soberana, na cabeceira de meu leito, com sua lâmina afiada sobre minha cabeça. Tudo do que eu recordo desse dia é muito confuso, as pessoas

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num corre-corre, eu com uma febre de quase 42°, que não cedia de jeito nenhum, e necessitando de transfusão de sangue com urgência. A última coisa que lembro é de estar cercado de enfermeiras, todo coberto, até aparecer o enfermeiro chefe gritando da porta:

– Tirem esse cobertor de cima dele, tragam gelo e toalhas, essa febre tem que ceder para esse menino to-mar sangue já!

Depois de um tempo, senti um frio terrível e tudo se apagou. Depois de não sei quanto tempo de escuri-dão, acendeu o brilho de uma luz branca muito forte, quase cegando meus olhos. E, saindo dela, o vulto de uma senhora que me pareceu familiar, muito bonita, sorridente e toda vestida de branco, vindo mansamente em minha direção.

– É, deve ser o receptivo do paraíso – pensei.Comecei a sentir um grande conforto em ser rece-

bido tão docemente no além. Aquela linda mulher ace-nava para mim e chamava meu nome:

– Seu Luiz, seu Luiz! Ai, que bom, o senhor acor-dou, mamãe vai ficar muito contente!

Não, não era nenhuma experiência fora do corpo e nem segui o fio dourado. Era a enfermeira que havia acendido a luz do quarto e viu que eu começava a reagir. Acordei, se é que se pode chamar aquilo de acordar, com minha mãe debruçada pesadamente sobre minhas cane-las. Lembro da sua expressão de alegria quando me viu abrindo os olhos e logo chegaram as outras enfermei-ras, fazendo festa. É, eu ainda estava no jogo. Parece que ainda não tinha sido desta vez, a Morte não estava mais ali e tudo era festa. Fiquei sabendo que eu estivera de-sacordado por quase dois dias e que havia tomado qua-tro bolsas de sangue. Como quase não havia mais veias

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em condições no meu corpo, a transfusão teve que ser feita por uma das veias do pé, a única apta para o pro-cedimento. Foi aí que percebi que havia todo um equi-pamento instalado ao pé da cama e que a quarta bolsa estava quase no final. E soube também que minha mãe não havia desgrudado de minhas pernas um só instante durante todo esse tempo, para que eu não perdesse a veia da vida em um eventual movimento. Mães, deusas, onipresentes, onipotentes e oniscientes.

Eu havia estado por um fio, mesmo, chegando a ser considerado paciente terminal. Se a transfusão tivesse demorado um pouco mais a ser feita, eu teria batido com as dez. E veio mais uma rotina de internação, só que agora eu estava realmente fraco e as sequelas mínimas na perna direita ficaram bem mais fortes. Eu não tinha controle dos movimentos e não conseguia andar sem um amparo. Foi por essa época que comecei a tomar a grande novidade daquela primavera, o coquetel. Eu havia lido sobre ele e havia começado a tomá-lo pouco antes da minha experiência de quase morte. Parecia pro-missor, ao menos meu ‘infecto’ estava bastante otimista, mais que de costume. Mas meu estado ainda era muito debilitado e, apesar de estar bem diferente de quando ali chegara, continuava enjoado e por vezes ainda vomi-tava depois de me alimentar. Após uma conversa com o doutor Paulo, ele chamou minha mãe e, na minha frente, lhe disse:

– Dona Aída, nós vamos dar alta para o Beto. A me-dicina está fazendo tudo que pode por ele, só que, por favor, pare de implicar com o cigarro de maconha que ele fuma, é a única coisa que faz com que ele se alimente direito e, principalmente, faz com que a comida pare no estômago dele.

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Viva, legalize it! Assim, devido à baixíssima imuni-dade e alto risco de infecção hospitalar, tive mais uma alta, porém, dessa vez, tinha um gosto delicioso de vi-tória sobre a Tal, ela não havia conseguido! E fui para casa ver se restava alguma florzinha no jardim, naquela primavera tão sombria.

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É CAMPEÃO! É CAMPEÃO!

Foi um Natal feliz em nossa casa. Eu tinha engordado

bastante com o coquetel de medicamentos contra o HIV

e também com o do apetite, que tinha cannabis sativa e

megestat, um medicamento originalmente destinado ao

tratamento de câncer de mama e que tinha como efeito

colateral abrir o apetite. A perna estava dando sinais de

fortalecimento e controle, embora ainda precários, e aos

poucos minha imunidade apresentava uma recuperação,

pela primeira vez desde o começo da história. É, foi uma

noite feliz, afinal, quem em sã consciência acreditaria

que eu estaria ali, abrindo presentes e recebendo cari-

nhos de minha família e dos amigos remanescentes? E

um novo ano iniciou, entrávamos em 1997 e, a despeito

de todas as previsões, nada havia terminado. Como as-

sim? Eu não havia sido dado como paciente terminal?

Nada terminou, nem estava programado para tal. Essa

expressão é o fim do mundo, tão nefasta quanto ‘aidéti-

co’ e ‘sobrevida’. Terminal é a pqp!

Em um final de manhã de janeiro daquele ano, dois

meses após o horror que havia sido minha última passa-

gem pelo hospital, eu estava me sentindo bem melhor,

o coquetel realmente funcionava e meu outro coquetel,

o do apetite, havia me engordado bastante, quase meu

peso original. Como parte integrante desse regime de

engorda, havia a elaboração dos pratos preferidos da

casa, dentre eles o tabule. Eu estava à mesa da cozinha

picando os ingredientes: salsinha, cebola, um pouqui-

nho de tomate e um formigamento na mão. Foi o tempo

de proferir:

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– Ah, não! Minha mãe deixou cair a faca na pia e minha mão

começou a se retorcer toda, na inconfundível manifes-tação de outro episódio de neurotoxoplasmose. E essa veio para derrubar, a metade direita do meu corpo fi-cou totalmente sem movimentos. Eu chorava por aquilo tudo não ter fim e minha mãe rezava para que aquilo tudo não fosse o fim, enquanto ligava para o doutor. Na-quela tarde, subimos a serra em direção ao ‘hotel’ Santa Cruz, onde foi confirmada a hemiplegia do lado direito, eu não conseguia mover meu braço, perna e rosto, em uma gravidade tal que seria difícil não sair sem sequelas.

Mas, assim como das outras vezes, as coisas foram se ‘normalizando’ com o decorrer de administração de medicamentos, fisioterapia e o carinho que eu recebia das pessoas que iam me visitar. Hoje eu entendo por-que eram tão poucas, as pessoas muitas vezes somem não por leviandade, mas pelo medo de ver a morte do amigo ou, talvez, medo da própria morte. A fisioterapia, lentamente, ia devolvendo os movimentos de meu rosto e braço, restando apenas a perna direita e dois dedos da mão, polegar e indicador, com sérias restrições. A con-fusão mental também havia diminuído, conversava nor-malmente e assistia à TV, de onde veio um pouco mais de alegria para viver. Esporte é vida! Meu time do cora-ção, o Santos Futebol Clube, se consagraria campeão do Torneio Rio-São Paulo de 97.

– É campeão! – gritava eu, agitando freneticamen-te meu braço esquerdo e falando torto. E a enfermeira também começou a comemorar, mesmo não ligando para futebol. Mas é que alguma coisa mágica aconteceu ali, foi como um exorcismo final para aquele espectro,

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um basta. Eu tinha vencido o Torneio Morte x Vida, derrotando o maior adversário de todo ser humano e, com uma mistura de alegria e ansiedade, tive alta mais uma vez. Ao sair do hospital, lá estava a Tal, fitando-me no saguão de entrada como quem diz, com cara de poucos amigos:

– Tudo bem, desta vez você venceu. Mas não vai ser fácil viver, eu voltarei!

Eu estava feliz, mas essas proféticas palavras res-soavam em minha cabeça: não seria fácil viver.

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TONS DE CINZA

Pois é, nascer de novo. Eu me sentia um dos ceno-bitas do filme Hellraiser, afinal, havia renascido daquele inferno que foi 1996 e o início do ano seguinte. Minha saúde havia melhorado como um todo, mas a perna e os dedos da mão continuavam bastante comprometidos. Para falar a verdade, não eram eles e, sim, meu sistema nervoso central que havia sido afetado de maneira bem séria e que comprometera severamente minha locomo-ção. Com isso, outra rotina se firmaria de uma vez por todas em meu dia a dia: a da reabilitação física.

Em minha primeira consulta com a fisiatra, médica especialista no assunto, ela se virou e disse, como uma esfinge que profere seu enigma:

– Parabéns, senhor Luiz Alberto, o senhor acaba de perder seu calcanhar de Aquiles.

Era só o que me faltava – pensei – uma médica doi-dona. Parece que ela leu meus pensamentos e emendou:

– O senhor acaba de ganhar uma perna de Aquiles. Tem como recuperá-la, porém, daqui para frente, ela será a primeira parte de seu corpo a responder negati-vamente a qualquer problema mais sério, seja ele físico ou emocional.

Ainda bem que ela estava sempre presente, o con-traponto da morte: minha mãe, sendo paciente com meu eventual mau humor, atenciosa com minhas limi-tações e ilimitada em seu amor. Levando e trazendo-me de laboratórios, clínicas, consultórios e confortan-do minha vida. E meu quarto cheirava a medicamentos e a fezes. Fezes?

– Ih, mãe, caguei na cama!

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Exames de fezes e pronto, mais um recadinho da minha amante do alfanje: dois bichinhos haviam criado forças e atacavam meu intestino. Eles tinham o nome ideal para um casal de gêmeos: Isóspora, a ‘menina’, e Criptosporídeo, o ‘menino’. Imagine uma diarreia da-quelas, sem tréguas e eu com limitações para andar, que dirá correr para o banheiro. Durante um dos raros pe-ríodos de calmaria, eu fui ingênuo o suficiente para ir de bermuda ao supermercado com minha mãe, quando, em plena fila do caixa, senti um arrepio percorrer minha espinha e, praticamente ao mesmo tempo, o calor e umi-dade descendo por minhas pernas. Eu queria morrer no-vamente, saí chorando pelo meio dos clientes e esperei minha mãe no estacionamento e de lá para casa. Com o tempo, os medicamentos surtiram efeito e os gêmeos se foram, bem como boa parte dos ‘HIVezinhos’ em meu corpo, ao passo que minha imunidade só subia, até que doutor Paulo me disse, durante uma consulta:

– É, Beto, dessa você passou. Suas defesas estão melhorando bastante e parece que não vai ser disso que você irá morrer.

Eu deveria estar feliz, mas uma tristeza se instalou em meu coração, eu parecia estar condenado a viver da-quele jeito, cercado de merdas e medicamentos, além da dureza de me adaptar a uma mobilidade reduzida e com poucos amigos por perto. Por quanto tempo eu ficaria assim, para sempre? Não, para o mundo que eu quero descer! E foi a primeira vez em minha vida que eu deixei que outro fantasma se apoderasse de mim, a depressão. Eu estava, na verdade, cansado de tanto lutar, cansado de ver a tristeza das pessoas ao meu redor e também cansado do cheiro dos remédios e da merda. Da merda

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da vida. Foi por essa época que comecei a fazer terapia com meu inestimável amigo Valfran, um psicólogo de ébano que é uma das pessoas mais doces e queridas para mim, prática que adoto até hoje.

Mas minha vida ia se encolhendo literalmente, por vezes fui tirado da posição fetal em um canto qualquer da casa, fosse na cama, no sofá ou no chão. Para falar a verdade, a diarreia havia cedido, minha perna tinha se fortalecido, com o auxílio de uma órtese e muita fi-sioterapia. Mas o cheiro de medicamentos e de merda continuava em minhas narinas, assim como não havia saído o tal cheiro de produtos de limpeza hospitalar. O ano de 1997, apesar dos excelentes prognósticos, me pa-recia triste.

Até que um dia, meu irmão, não poderia ser outra pessoa, chegou com um computador pessoal equipado com o que de melhor podia, incluindo aí a maravilha moderna, o sonho divino de união entre os homens: a Internet. “Você tá precisando disso aqui”, sentenciou, ao instalar o equipamento em meu quarto. Eu olhava para aquele aparelho com profunda desconfiança, afinal, nunca tive maiores intimidades com o mundo virtual. Lembro-me de um curso que fiz em 1978 sobre o CO-BOL, o latim da informática, no qual eu não me dei nada bem, aquilo não entrava na cabeça de jeito algum. Mas, segundo meu irmão, tudo seria mais fácil, as ferramen-tas das quais eu disporia eram simples e “até você vai conseguir...” Sempre irônico e presente.

Meu irmão não sabia, mas estava salvando minha vida uma vez mais. A amplitude daquele gesto iria se revelar mais tarde e, como ele mesmo havia previsto, até eu consegui dominar aquela janelinha para o mun-

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do. Para um mundo diferente daquele em que eu vivia, com os tais cheiros de remédio e merda. Tinha cheiro de esperança, de algo novo, havia salas de bate papo entre pessoas da mesma cidade, de sacanagens... Sacanagens? To dentro! Ali nasceu o Bronze 36, um predador de úl-tima hora, uma nova versão da Godiva do Irajá, em for-mato digital, onde eu podia cavalgar meu cavalo branco pelas ‘inforruas’ suburbanas, todo nu. As salas de sexo ganharam um novo e assíduo frequentador, novamen-te com sede de amor e de vida. Aos poucos, esse novo passatempo foi dando um colorido ao meu dia a dia, eu tinha sempre um metro e oitenta, bronzeado, olhos ver-des e um pinto de não menos que 20 centímetros. Claro, com esse perfil, não há autoestima que não se recupere.

E lá ia o gostosão fazendo estrago nos corações alheios, pois vivia apenas virtualmente, no máximo, um contato por telefone e olhe lá. Pessoalmente, ja-mais. Sempre tinha algum compromisso ou viagem que impedia um encontro pessoal com meus amantes de plantão. E nesse vai e vem da navegação, um belo dia, eu vi que havia uma categoria de salas de bate papo que não era voltada para o sexo. Era um ícone onde se lia: ‘Variados’. O que teria nesses variados, afinal? Quan-do cliquei, qual não foi minha surpresa, quando per-cebi que nem a Internet havia passado incólume pela epidemia e existia uma sala ‘HIV’. Sim, a Internet era reagente! E no dia primeiro de maio de 98 entrei pela primeira vez em um mundo que iria alterar completa-mente o rumo da minha vida.

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‘SURVIVER’ ENTRA NA SALA

Entrei timidamente naquela salinha, havia apenas uma pessoa de plantão, tal de Mickey que, solitário, esta-va à espera de alguém “para um papo ou algo mais”, frase mais escrita nesse mundo esquisito, onde a maioria das pessoas só está a fim mesmo do algo mais. Enfim, come-çamos a conversar e ele me disse que estava só, porque o pessoal da sala havia ido ao aeroporto para buscar uma amiga de Brasília, que viria para um encontro da salinha no dia seguinte. Nossa, então as pessoas se encontram pessoalmente? Que bárbaro! Fiquei excitado com a ideia e me comprometi a voltar no dia seguinte. Voltei, não mais como Bronze 36, mas como ‘Surviver’, o predador da morte. Eu poderia jurar que essa palavra existia, mas a verdade me seria revelada alguns meses mais tarde, o correto seria Survivor, detalhe que escapou ao meu inglês macarrônico. Assim que soube, claro, mudei para Sur, com o pretexto de que era mais íntimo.

De qualquer maneira, passei a frequentar a sala HIV e através dela fui conhecendo, virtualmente, seus habitantes. Peace, a mais solícita, Eusp, um advogado que vive rindo e fazendo rir, e Matheus/SP, industrial de alimentos. O próprio Mickey, um ratinho delicioso que, infelizmente, era casado, e também os saudosos Gremis-ta e Hércules, sendo este o fundador da sala. E foi na casa do Gremista, em Mogi das Cruzes, que aconteceu uma churrascada em um domingo frio de junho, onde o pessoal que já se conhecia iria receber novos integran-tes da sala, inclusive um carinha do litoral que tinha uma história incrível de sobrevivência e luta. Quem? Eu? Ainda estava fragilizado demais para me ver dessa maneira, enfim... Chegando ao endereço que haviam me indicado, toquei a campainha e o próprio Gremista veio

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atender, um cara com pinta de doidão e gente fina. Para variar um pouco, fui o pãozinho com patê, ou seja, o primeiro a chegar à festa, mas foi bom, porque eu esta-va meio sem graça, devido ao tanto de tempo sem um encontro com pessoas desconhecidas. E, um a um, os convidados foram chegando.

Peace, Eusp e Matheus, a nervosa Fer@ e suas ami-gas e alguns doidos que não lembro o nome. Que ale-gria, eu estava rodeado de pessoas, algumas das quais carregando a mesma cruz que eu! Isso era fantástico e a alegria coloriu aquela tarde cinzenta. Até que resolvi acender um baseadinho, junto com Gremista e Peace. Pronto, fechou o tempo. A Fer@, que tinha sei lá que cargo na Justiça Federal, imediatamente empossou a si mesma como chefe do Denarc e botou banca pra cima de todo mundo, com seu delicado jeitinho:

– Porra, por que não avisaram? Eu não teria vindo com minhas amigas, que vergonha, blá, blá, blá...

E se mandou, puta da vida, enquanto ríamos muito da situação. É uma grande pena que um dos protago-nistas daquele dia não mais está aqui, Gremista mor-reu vítima de atropelamento. Como pode, Senhor? O cara tinha um histórico de adição a drogas pesadas, era coinfectado com HIV e Hepatite C, tinha arrumado um emprego legal como jornalista e morre atropelado? Na época pensei: céus, como o Senhor às vezes parece estar brincando com as vidas humanas.

A despeito disso, a salinha continuava sua dinâmi-ca, era uma turma com um papo bem gostoso, ideias em discussão e esperanças sendo renovadas. Um dia, come-cei a teclar com um cara chamado Crix, em uma clara referência ao medicamento Crixivan. Papo vai, papo vem, combinamos uma viagem a Parati, sem que hou-véssemos nos encontrado, ainda. Ele é um paulistano

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quarentão de tirar o chapéu, pegou-me em São Vicente e partimos pela Rio-Santos até Parati, onde nos hospeda-mos em uma pousada que pertencia à Maria Della Costa, ‘chique no úrtimo’. Tivemos uma quase noite de amor, mas sentimos que se continuássemos não seria legal, en-tão vestimos nossas roupas e viramos amigos. Fomos a vários bares, a um impressionante teatro de bonecos e rimos muito de nossas vidas. Assim foi meu primeiro idílio amoroso via Internet, absolutamente platônico.

Bem, mais cedo ou mais tarde haveria de pintar um gatinho em minha vida, como pintou. Um menino lindo de Belém, filho de uma tradicional família do pedaço e que tinha vindo fazer sua faculdade em São Paulo. Ele começou a se engraçar para o meu lado na salinha, o que eu não perdoei e me convidei para ir à casa dele. Quando abriu a porta, eu tremi todo. Era um Gato com G maiúsculo, 19 deliciosos aninhos, com a cara do Celso Portiolli. Ele me convidou a entrar e aí conversamos, ou-vimos muita música ‘tecno’ e eu sentindo que a coisa iria virar outra amizade. Veio a fome, fomos a um restauran-te para almoçar e, ao voltar e nos sentarmos no chão da sala, nossos olhares se cruzaram pela primeira vez com segundas intenções. Dali para um beijo de sanguessuga foi um passo e para a cama, então, não precisou dar pas-so nenhum... Rolou a maior festa!

Ao acordarmos, claro, um abraço aqui, uma passa-da de mão ali e, outra vez, estávamos fazendo amor, até que aconteceu a tragédia. Ao final da transa, vimos que a camisinha havia estourado e ficamos alguns momentos em silêncio, a Morte tinha vindo empatar minha foda, literalmente. Ele voltou do banheiro, ainda em silêncio e me encontrou na cama, angustiado, culpado e com pena do garoto. Medo, culpa e pena, novamente atormentan-

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do minha vida. Cazzo! Isso não terá fim nunca? Assim que veio a coragem de falar alguma coisa, falei besteira:

– A gente deveria ter usado duas camisinhas. Se eu soubesse a asneira que havia acabado de di-

zer, camisinhas são como balões de festa, se esfregar uma na outra, arrebentam. Diante dessa situação, peguei a praticidade de papai e propus:

– Vou descer agora mesmo e ligar para meu ‘doc’. Ele dirá o que fazer.

Assim, deixando um garoto apavorado dentro de seu apartamento, desci a serra, igualmente tomado de pavor. Assim que cheguei em casa, liguei para o dou-tor Paulo, que me tranquilizou, dizendo que, como minha carga viral estava bem baixa, a transmissão não era tão fácil assim. E orientou que o garoto fizesse um exame imediatamente, para livrar a minha cara no caso dele já ter o HIV. Depois, outro dali a três meses. Liguei para Sebastian e lhe transmiti as orientações. Até hoje não sei se ele as seguiu. Após esse episódio, saímos ainda uma vez, fomos à exposição de Dali, no MASP, e fim de romance.

Enfim, em agosto de 98, conheci o primeiro amor da minha renascença, o George, cujo apelido era Some-body. Que papo legal tem esse cara, eu tenho que co-nhecê-lo, porque, além de tudo, tem 20 aninhos! Porém, minha memória recente me alertou, a exemplo de Se-bastian, ele não tinha HIV em seu sangue e eu teria que ter mais cuidados desta vez. Só sei que nossos papos combinaram e aí veio o velho xaveco cultural:

– Que tal a gente se conhecer pessoalmente? Ta tendo a exposição do Caravaggio, no MASP.

Ele topou no ato e lá fui eu ao vão do MASP, onde vi aquele cara alto e forte, com uma cara linda, aproximan-do-se de mim e sorrindo timidamente. Abraçamo-nos,

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vimos a exposição e, entre um quadro e outro, eu olhava aquele par de coxas grossas e aquela bunda que, dada a perfeição da natureza, jamais teria sido feita apenas para sentar. Comecei a falar bobagens de amor, dando con-tinuidade às cantadas virtuais e, assim, numa curva da escadaria vazia do metrô, demos um rápido e profundo beijo. Eu sentia que ele, dentro de sua timidez, estava fazendo algo que ele nunca tivera coragem, mas sem-pre desejara em seus secretos sonhos eróticos. Acho que todo mundo tem vontade de fazer sexo sob risco de ser descoberto, e assim foi o beijo do meu primeiro amor, que durou longos e deliciosos três meses.

Além de amores e transas, conheci umas pessoas muito legais que atuavam no que chamavam de ativismo na luta contra a AIDS, dentre elas, a que viria a ser uma grande, senão a maior referência em tudo o que hoje norteia minha vida de ativista: Beatriz Pacheco, a Vovó Bia. Ela se transformaria em uma espécie de mãe, pois trouxe à luz o meu ‘eu’ consciente, combativo e reagen-te. Essa excepcional avó, advogada e que vive com HIV, com certeza teria seu DNA impresso nesse novo Beto que estava surgindo. Eu já havia conhecido o Grupo Pela Vidda, de São Paulo, através de Con, outra amiga que sumiu. Ela havia me falado de um encontro que era rea-lizado anualmente no Rio de Janeiro, chamado carinho-samente de Vivendo, organizado por duas Ongs de lá, os grupos Pela Vidda do Rio e de Niterói, e que aconteceria em novembro de 1998, no Hotel Glória. Serei eterna-mente grato à Con por esse convite.

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CHUPADINHO

Nesse meio tempo, os avanços com a fisioterapia me tornaram apto a frequentar uma academia e estava indo bem, para quem nunca foi muito chegado a mode-lar bíceps, tríceps e ‘quadrúpedes’ (quadríceps), até que o espelho me jogou uma nova realidade, muito estranha. Meu rosto, que havia voltado a ser bochechudo com a re-cuperação do peso, começava a encovar em velocidade absurda. Em menos de um mês, eu já tinha dificuldades em fazer a barba a contento, pois meu rosto aparentava um estranho emagrecimento. Como, se meus exames se apresentavam satisfatórios, meu peso estava legal, me ali-mentava direito e fazia exercícios? Fumava mais baseados, comia muito mais, malhava em excesso e não adiantava. Eu percebia também que, apesar do ganho muscular, as veias dos braços e pernas estavam ficando muito aparen-tes, como se quisessem escapar de meu corpo.

Uma bela tarde, eu estava com minha mãe e uma se-nhora que era manicure da família, na cozinha de casa, as duas tomando café e eu remexendo a dispensa atrás de algo para comer. Aquela gentil senhora começou a falar sobre mim, como se eu não estivesse presente, que é uma das coisas que mais odeio, até que ela soltou o comentário fatal:

– É, Aída, que beleza, não? O Beto engordou, está mais forte... Pena que está um pouco chupadinho, mas...

Pronto. Mais uma alma penada deu início a seus as-sombros, o fantasma Chupadinho. Chupar é gostoso, ser chupado também, mas ser chupadinho é jogo duro. A partir dali, todos os espelhos para os quais eu ousasse olhar trariam consigo um espectro, em forma de mani-cure e que surgia por trás de mim, sussurrando:

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– Chupadinho! Chupadinho! Chupadinho...Que pesadelo! O que estava acontecendo comigo?

Meu rosto, meus braços e pernas, tudo ficando chupa-dinho. Isso me deu uma motivação a mais para ir ao tal Vivendo, eu deveria ter respostas para um bocado de perguntas que bailavam em minha cabeça. E para lá fui, hospedando-me no Flamengo, em casa de Fernandinho, uma grande pessoa, de pequeno porte, que eu conhecia da salinha. Fomos a uma série de palestras, caçamos um bocadinho e, em uma aula dada pela infectologista ca-rioca Dra. Loreta Burlamaqui, fui formalmente apresen-tado a ela, a lipodistrofia.

– A pele afina, as veias engrossam, o rosto, as per-nas e os braços perdem massa muscular e gordura. Ao mesmo tempo, a gordura se acumula no tórax, mamas e abdome.

Foi quando uma travesti gritou lá do fundo: – Então, nós estamos virando múmias?Muitos risos nervosos de toda parte e eu com vonta-

de de chorar, principalmente quando a doutora disse ser um processo irreversível e pouco conhecido. Ai, céus! Outra maldição, realmente a história não tinha fim. Era uma cacetada após a outra e agora eu estava virando mú-mia, a múmia chupadinha do delta de São Vicente. Mas nem tudo foi assombro. Nesse mesmo evento, conhe-ci pessoalmente minha musa, a Vovó Bia, mais linda do que eu imaginava. Não sei como ela me reconheceu, não havíamos trocado fotos, mas do lado de lá do auditório, aquela pequena grande senhora brandia os braços, jun-to do seu querido e saudoso companheiro Carlos, a me chamar a atenção. A partir de então, seria cultivada uma grande admiração e também uma sincera amizade por

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uma fortaleza em forma de avó. Redundância minha, se avós são mães duas vezes, duas vezes fortalecidas.

Encontrei pessoalmente outros ativistas da salinha, como a Tigresa e o Pinto, que na verdade são Dária e Rubens, pessoas do maior respeito e combatividade. Saí do Vivendo com uma nova noção do que eu estava fa-zendo nessa vida, que não existia apenas um umbigo a centralizar todas as atenções. Conheci muitas pessoas maravilhosas, tendo contato com muitas delas até hoje, e voltei para minha cidade novamente com o tal do sen-timento paradoxal: feliz por ter visto que existe vida após as oportunistas, mas triste por estar fadado a ser um chupadinho. A ter vergonha de mostrar o rosto e ver o olhar assustado e penalizado estampado nas pessoas, tanto que, por muito tempo, existiu um lema: “A AIDS não tem cara, mas a lipodistrofia é a cara da AIDS”.

E era a mais pura verdade, eu estava com a mes-ma cara que eu tinha naqueles sonhos em novembro de 1989. Sombras maquiavelicamente dançando em minha face, sempre a me lembrar das proféticas palavras da Tal, a morte, quando a havia visto pela última vez:

– Não vai ser fácil viver...Pensei no absurdo: parar com a medicação. Se

eram os remédios que estavam causando isso, por que continuar e ficar com aparência doentia? Mas, desistir daquilo com o que eu sonhara por anos não seria uma forma de parar com a vida? Lembrava-me, então, de previsões e estudos feitos no início dos anos 90. “Um medicamento eficaz somente será possível em, no mí-nimo, 10 anos” ou “Qualquer alternativa de tratamento somente estará disponível no próximo século”. Lem-brava também de quantas pessoas haviam se deixado

64 MORTE E VIDA POSITHIVA

levar por lhes parecer tão impossível viver até o próxi-mo século, inclusive eu.

Previsões são traiçoeiras, podem precipitar desa-lento ou atitudes de desespero. Elas são tão covardes quanto as ditas ‘sobrevidas’ impostas pela medicina: “A sobrevida de uma pessoa com HIV é de X anos” – di-zia-se. Esse ‘X’ não leva em consideração quem jogou a toalha logo de cara, quem não tomou os medicamentos, quem se atirou nas drogas... E ignora completamente as pessoas que se adaptaram, adotaram hábitos saudáveis e que estão vivas até hoje! Não, parar o tratamento está fora de cogitação, continuaria a fazê-lo, ainda que chu-padinho. E a recompensa veio em forma de mensagem reservada na salinha da Internet.

65BETO VOLPE

MENINO DO RIO

Era dezembro de 98 e eu estava a me lamentar por estar bem de saúde, mas vivendo em outro corpo, prin-cipalmente com a cara chupadinha. Chorava as pitangas para meus amigos da salinha por ter algo irreversível e sem solução, quando Mário/RJ me mandou uma mensa-gem dizendo-me, laconicamente:

– Tem solução, sim. Foi como se tivessem anunciado a cura da AIDS e

passei a conversar com Mário, hoje um grande amigo que tem um espaço muito bonito e de frente para o mar em meu coração. Ele me passou todas as coordenadas de um cirurgião plástico do Rio que estava fazendo um novo procedimento, um implante facial de metacrilato. Não houve dúvidas, no dia seguinte pela manhã eu es-tava ligando e marcando consulta para dali a um mês, em janeiro de 99. Prometia ser um excelente reveillon aquele. Eu havia acabado de conhecer um carinha gatís-simo, também chamado Mário e que morava no elegante bairro de Higienópolis, em Sampa, e o ano novo vinha chegando, fazendo mais próximo o tal de novo milênio e, claro, meu rosto rejuvenescido.

– Como? Se eu conheço alguém que tenha feito esse implante? Não, não conheço. Ah, já testo tanto me-dicamento, por que não testar mais isso?

Assim, formou-se uma fila de pessoas vivendo com HIV e acometidas pela lipodistrofia, ávidas pelo resul-tado do tal implante e eu, cobaia mais uma vez. No dia marcado, eu e Mário entrávamos no elegante consultó-rio de Dr. André, cirurgião plástico que havia se espe-cializado no tal procedimento que devolvia a alegria de

66 MORTE E VIDA POSITHIVA

viver aos chupadinhos. André é uma pessoa muito legal, atencioso em suas consultas, extremamente cuidadoso em seus atendimentos e sabe fazer uma pessoa chorar. Após uma hora de consulta e de minha concordância com o procedimento, ele me aplicou uma pomada anes-tésica e me levou à sala, onde me deitei em uma cadeira especial, muito parecida com a de um dentista. Ele me deu um espelho de mão. Perguntei a ele:

– Pra que diabos é isso, você quer que eu fique ven-do você espetar meu rosto?

– Não. Quando eu terminar a aplicação em um lado você olhe de imediato, porque em poucos segundos co-meçará a inchar. Ali você verá o resultado esperado.

Foi, realmente, como estar curado. Após uns quin-ze minutos de espetadas e infiltrações no lado direito de meu rosto, ele deu o sinal de que eu poderia olhar no espelho. As lágrimas começaram a correr sobre um rosto saudável, bochechudo e que julguei jamais ver no-vamente. Chorei de alegria e me deu vontade de pergun-tar: Espelho, espelho meu, existe rostinho mais lindo, bochechudo e saudável do que o meu?

Não, não existia. André terminou o procedimento e saímos do consultório diretamente para a casa de Má-rio, escondendo-me do forte sol daquele verão carioca e depois praticamente imergindo meu rosto em bolsas de gelo, para que desinchasse o mais rapidamente pos-sível. Voltei do Rio outra pessoa, uma overdose de tudo o que é hormônio de felicidade me invadia. Estava cheio de confiança, de autoestima, de vida. Eu me sentia mais vivo que nunca!

67BETO VOLPE

FIU, FIU!

Iniciar o ano renascendo foi muito bom. E esse re-nascer estava apenas começando. O ano de 1999 talvez tenha sido o mais marcante em minha vida, mais até do que 89, quando tudo havia virado de cabeça para baixo, e 96, quando tudo me pareceu perdido. Eu realmente es-tava muito feliz com tudo o que estava acontecendo, na-morei o tal gatíssimo até junho, fizemos até um cruzei-ro juntos! Coisas boas estavam acontecendo e eu tinha um círculo de amizades bem razoável, de pessoas que também estavam no mesmo processo de celebração. A sala HIV da Internet havia me tirado da depressão e me apresentado uma nova vida. Meu irmão estava redon-damente certo ao instalar aquela parafernália eletrônica em meu quarto e lá eu pesquisava sobre AIDS, efeitos colaterais, sadomasoquismo, fetiches e tudo o mais que a rede mundial podia me oferecer. Meus exames de CD4 e carga viral se recuperavam bem, até que...

– Isso aqui deve estar errado, doutor, tem algum zero a mais. Dois mil setecentos e sessenta? Jesus, o nor-mal é até 200!

Eram os resultados de meus exames de triglicéri-des trazendo o lado interno da lipodistrofia, a explosão de gorduras no sangue e que para devolvê-los às taxas normais eu teria que tomar medicamentos, moderar na alimentação e iniciar alguma atividade física aeróbica. Estava eu na salinha HIV batendo papo com o pessoal, quando fui abordado por Doc, um bioquímico do Rio que estava fazendo estudos sobre a lipodistrofia e me convidou para participar de um protocolo junto à uni-versidade na qual lecionava, na Urca. Consistia em se-

68 MORTE E VIDA POSITHIVA

guir uma dieta bem específica indicada por ele e um

programa de exercícios que seriam orientados por Ro-

ger, um personal trainner da Barra da Tijuca. Cruzes,

todas as minhas amigas me invejariam! Um cirurgião

plástico à sombra do Cristo Redentor, um bioquímico a

me orientar nutricionalmente aos pés do Pão de Açúcar,

e meu personal na Barra. Até eu estava me achando um

nojo! E lá ia eu ao Rio, a cada dois meses, para uma ava-

liação do protocolo.

Como resultado, ganhei um corpinho de babar, os

exercícios seguiam todo um roteiro de malhação profis-

sional, com o objetivo de hipertrofiar a musculatura, além

de muita esteira e bicicleta ergométrica. Ao invés de bra-

ços, eu havia ganhado bíceps e tríceps. No lugar do peito,

veio um senhor peitoral. E, ao invés dos quadríceps, qua-

drúpedes! Até minha bunda, ou melhor, meus glúteos es-

tavam de volta. A galera da maromba me cumprimentava,

espantada com a definição de minha musculatura:

– Olha o cara, zero de gordura! Como você conseguiu?

Dava vontade de ir ao banheiro e mostrar pra eles

como eu tinha conseguido tamanha definição, mas

achava melhor dizer que era a genética. Rapidamente,

também, caíam os tais níveis de gorduras no sangue, até

que um dia, Roger me perguntou, durante o trajeto Bar-

ra-Botafogo, se eu sabia qual era o objetivo pessoal dele

naquele protocolo, o que me esclareceu a seguir:

– Eu quero que você volte a correr. Pois o dia em

que você estiver correndo, mesmo que meio desajeita-

do, sua marcha estará boa novamente. Deixar de mancar. Correr. Não podia ser verdade.

Primeiro meu rosto, depois o corpão e agora meu cami-

69BETO VOLPE

nhar voltaria ao normal? Só falta a cura! Bem, essa deixa pra depois, no momento estava ocupado em apenas vi-ver feliz novamente. Eu ainda carregava uma sequela na perna direita, vivia dando mancadas, no sentido literal da palavra, mas isso teria fim e eu voltaria a caminhar ereto. Até a lei de Murphy tem seu contraponto: as coi-sas sempre podem melhorar!

Paralelamente a tudo isso, um fato curioso se repetiu várias vezes durante aquele ano e, com o tempo, passou a ser muito engraçado: a expressão de surpresa e, para al-guns, de horror, ao me encontrarem na praia, na rua, nos bares, como se estivessem vendo algum fantasma.

– Beto? É você mesmo?– Não, eu morri e voltei só pra te cobrar o que você

me fez! – respondia eu, em tom de brincadeira.Muitos choravam de emoção, nunca mais haviam

ouvido falar de mim e me julgavam apodrecido em al-guma sepultura. No entanto, eu estava vivo, saudável, feliz e com corpão. Os remédios com os quais eu tanto sonhara existiam, funcionavam e eu viveria para sem-pre! A imortalidade me preenchia e eu sentia que algo de maravilhoso, a grande transformação em minha vida, estava preste a acontecer.

70 MORTE E VIDA POSITHIVA

HIPUPIARA

Havia um bom tempo que eu me questionava so-bre o fato de ter ficado neste plano. Por que tantos ami-gos se foram e eu, que havia cometido tudo que é abuso e que havia ficado no bico do urubu, ainda estava por aqui, vivendo de forma tão plena? Eu sempre acreditei em Deus, apesar de nunca ter me dedicado a missas, cultos ou rituais de maneira assídua. Sempre procurei conversar em uma espécie de linha direta, normalmente na hora de dormir, mas atualmente prefiro rezar através de minhas atitudes e de minha gratidão. Assim passei a ficar atento ao meu redor, quem sabe uma explicação ou novo curso surgiria?

Foi aí que, ao assistir a um programa local de entre-vistas, ouvi um médico do Guarujá que falava sobre um projeto desenvolvido pela secretaria de saúde daquele município, no qual pessoas que haviam superado difi-culdades em relação ao HIV davam apoio aos que esta-vam com problemas para tomar os medicamentos e en-frentar desafios de maneira geral. Isso me fez pensar se em São Vicente existiria algo parecido, quem sabe não seria uma maneira de me relacionar com o mundo no-vamente? Eu preenchia os requisitos, realmente havia superado dificuldades, era comunicativo e estava sem-pre atualizado com o que estava rolando de novidades. E lá fui eu ao SAE (Serviço de Assistência Especializa-da), onde era feito o tratamento das pessoas com HIV, em São Vicente.

Através de um agendamento, conheci Alípio, um psicólogo que me contou sobre o grupo de adesão ao tratamento, que se reunia às quartas-feiras, às oito da

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manhã. Uma ideia genial, pois esse era o dia em que as pessoas tinham que ir ao ambulatório, a cada três meses, para colher sangue para os exames de rotina, às nove horas era servido um café da manhã que segurava o pes-soal na unidade. Nesse meio tempo, Alípio e a estagiária em psicologia Simone conduziam o tal grupo, que tira-va dúvidas e medos com relação a um tratamento que é, literalmente, duro de engolir. Mas ele me advertiu que as pessoas normalmente ficavam passivas, apenas aguardando o café e fazendo poucas intervenções. Citou o caso de dona Aparecida, uma opulenta senhora negra com os cabelos já branquinhos, que não aderia ao trata-mento de forma alguma e me fez um desafio:

– Não tem jeito de fazê-la mudar de atitude.Nessa toada, as semanas foram passando e as pessoas

começaram a ir às reuniões mesmo quando não tinham exames a fazer, apenas para conversar e se relacionar uns com os outros. Alípio e Simone, a estagiária de psicolo-gia que viria a ser uma grande amiga, estavam espantados com a mudança de atitude dos integrantes do grupo e fi-caram com a pulga atrás da orelha, quando me viram de papo com ninguém mais, ninguém menos que dona Apa-recida. Nas conversas durante o café, eu fui conhecendo um bocado de gente e, claro, transando com alguns, pois tinha um hotelzinho vagabundo bem pertinho do antigo prédio do SAE que era uma mão na roda.

Em uma tarde de setembro de 99, distraído no tra-jeto do ônibus para meu curso de inglês, um clarão in-vadiu minha mente e a grande ficha da minha vida caiu:

– E se a gente montasse uma ONG?Sim, por que não? Não tinha nenhuma instituição

no município e havia um grupo de pessoas que já esta-

72 MORTE E VIDA POSITHIVA

va informalmente organizado nas reuniões do Café Vida. Muita coisa tinha para ser feita, muitos olhares queren-do brilhar novamente e pessoas dispostas a arregaçar as mangas e fazer valer a pena ter passado por tantas difi-culdades. Assim, em seis de outubro de 1999, pessoas vi-vendo com HIV e técnicos do Programa de AIDS de São Vicente se reuniram nas dependências do SAE para dar início a uma organização que lutasse pelos direitos e pela dignidade das pessoas que vivem com HIV no município.

– Como vai se chamar? –Ah, sei lá... Associação Luz da Esperança. – Nãããooo! parece nome espírita. Tinha que ser um nome diferente, que não fosse

confundido com nada nesse mundo. Um nome forte e que não saísse da cabeça das pessoas.

– Hipupiara. Hipupiara significa monstro marinho, em tupi-gua-

rani, e é a única lenda brasileira que tem registro his-tórico, através de uma carta da Inquisição Portuguesa datada de 1575, relatando fato ocorrido na Vila de São Vicente, em 1564. Ela conta a história de Irecê, uma ín-dia muito prendada e bonitinha, que era escrava do Ca-pitão Baltazar, mas seu coração e corpinho pertenciam a Andirá, um índio que possuía o maior tacape de todas as nações indígenas da região. À noite, os dois se en-contravam ao lado de onde hoje é a Ponte Pênsil, até que Irecê, em uma noite de lua, encontrou uma bruxa que lhe avisou que os seres do mar iriam castigar aquele comportamento. Enfeitiçada pelo tacape de Andirá, Ire-cê continuou indo aos encontros, até que uma noite ela chega ao local e vê somente a canoa e o remo do amante. Subitamente, ela ouve um urro pavoroso e, ao se virar,

73BETO VOLPE

dá de frente com o Hipupiara, um ameaçador monstro com cabeça de leão e corpo de serpente. Apavorada, Ire-cê correu para a vila e chamou o Capitão Baltazar que, com sua espada, matou o monstro. E nunca mais se ou-viu falar de Andirá.

Fazia sentido, havia outro monstro a ser combati-do, só que dessa vez era um monstrinho microscópico e não seria apenas um capitão que conseguiria derrotá-lo, mas, sim, a força comunitária. Assim foi batizada a ONG: Grupo Hipupiara Integração e Vida – Grupo HIV. Hi-pupiara, um nome que poucos conseguem pronunciar e menos ainda conseguem escrevê-lo corretamente, mas que não era confundido com nenhum outro.

É, teríamos muito trabalho pela frente, um grupo que não tinha experiência alguma nessa área e que con-tava apenas com um grande trunfo: sabíamos de nossas necessidades, as sentíamos na pele, na corrente sanguí-nea e isso já era uma credencial e tanto para a emprei-tada que estava se iniciando. Contamos com apoio de alguns ativistas da região, como Toninho, que hoje mora em Fortaleza, e Luiz Eduardo, do Instituto Joana d’Arc do Guarujá. Já que a Tal disse que não seria fácil viver, por que não dificultarmos a ‘vida’ da Morte também?

74 MORTE E VIDA POSITHIVA

LOVE IS IN THE AIR

Outubro continuou e só aí me dei conta que está-

vamos na primavera e que esta era muito diferente da-

quela tão cruel que eu havia enfrentado em 96. Era um

verdadeiro florescer, eu estava jorrando vida por todos

os poros, havia encontrado uma razão para viver, de fato

e de direito, confiante em mim mesmo e na proposta

que estava iniciando. Recebi do Rio Grande do Sul uma

cópia de estatutos que serviriam de base para o do Hi-

pupiara e já estava trabalhando nisso quando, em uma

reunião do Café Vida, veio outra reviravolta em minha

vida: Fagundes apareceu no SAE, pedindo licença para

se juntar ao grupo, olhou para mim e sorriu. Um belo

garoto de 23 aninhos que tirou completamente minha

concentração e, o melhor, intervinha nas discussões de

uma forma bastante eloquente, não tirando os olhos de

mim. Ao final da reunião, foi servido o café e eu tratei de

me aproximar dele, cheio de originalidade:

– Oi, tudo bem com você? Vem sempre aqui?

Que idiotice, tanta coisa para falar e somente con-

segui proferir o óbvio das cantadas. Ele sorriu e respon-

deu que fazia tratamento ali há algum tempo e, quando

inquirido sobre onde morava, me respondeu:

– Itararé.

Entrei em êxtase. Era a praia que eu frequentava,

onde eu havia contado para meu irmão sobre minha so-

rologia, onde eu havia passado momentos tão gostosos

da minha vida. Claro, exultei:

– Que bárbaro! Em frente à praia?

E aí, o choque:

75BETO VOLPE

– Não, não é a praia. Moro na cidade de Itararé, di-

visa entre São Paulo e Paraná e estou voltando para lá

hoje à tarde.

Ai, não, outro relacionamento à distância meu co-

ração não aguenta. Mas aquele cara havia mexido real-

mente comigo, então coloquei em ação o plano B, que

era transar logo e ver se vale a pena investir. Nunca

acreditei em sexo somente após o casamento, se a gen-

te faz ‘test drive’ de carro, por que não fazê-lo para um

bem que é até que a morte nos separe? Convidei-o para

tomar algo quando saíssemos do SAE e, logo depois, es-

távamos entrando no tal hotelzinho vagabundo, onde a

gente combinou direitinho, vamos dizer assim.

Também conversamos bastante, ele me disse que

era vocalista de uma banda da sua região e, a despeito da

despedida por volta do meio dia, ele continuou comigo

em meus pensamentos. Que merda, mora tão longe, mas

talvez seja melhor assim, vamos ver no que dá. Em um

tempo onde os e-mails já imperavam, nós trocávamos

cartas com perfume e tudo o mais. Em uma delas, a letra

de uma música que ele havia escrito e que falava de seu

carinho por mim. Eu havia virado a musa do verão, a

própria Garota de Itararé!

Ao mesmo tempo em que tudo isso rolava, o Hipu,

apelido carinhoso da ONG, começava a dar seus primei-

ros passos, quando ocupamos um antigo depósito de

materiais para construção da minha família que estava

fechado. Coisas do destino, o mesmo depósito onde co-

mecei a trabalhar aos 15 anos de idade e que também

acolhia as várias sedes dos clubinhos de meninos em

minha infância. Após um verdadeiro serviço de desma-

76 MORTE E VIDA POSITHIVA

tamento, extermínio de diversas espécies animais hor-

ripilantes, desinfecção e organização, abrimos um bazar

de artigos seminovos.

Também confeccionamos 42 cestas básicas de Na-

tal, com doação de alimentos da Cruz Vermelha, e as

distribuímos a uma lista elaborada pelo pessoal do SAE.

Para a entrega, organizamos, também com o SAE, uma

festa de Natal para a molecadinha. Já tínhamos uma

equipe bem legal, com João, que se tornaria meu braço

direito durante toda a existência da ONG, Maximiana,

Simone, Cacá, Gerson, Francisco e outros, todos empol-

gados com o início das atividades. Foi também nessa fes-

ta que conheci Vera, quase tão doida quanto eu, mas tão

responsável como deve ser uma mãe de quatro filhos.

Ela se tornaria tesoureira da ONG em algumas gestões,

mas nossa relação começou no boteco em frente ao clu-

be onde se realizava a festinha, com duas doses de uís-

que cowboy. Viva a vida!

Ainda em 99, o Hipupiara envolveu-se em sua pri-

meira manifestação pública, onde eu e os sempre pre-

sentes Gerson e João contamos com o luxuoso apoio do

religioso que pregava na praça central da cidade e que

nos emprestou seu megafone. O motivo era o desabas-

tecimento de medicamentos que estava acontecendo na

época, mas incluímos outra pauta: disponibilizar o im-

plante de metacrilato para pessoas com HIV, no SUS.

Ali teve início uma das áreas de atuação em que mais

nos especializamos com o tempo, os efeitos colaterais

de medicamentos em HIV/AIDS, que já mostravam suas

garras com a lipodistrofia.

77BETO VOLPE

Aquele Natal foi diferente dos últimos que havia

passado. O peru não tinha gosto de morte, as rabanadas

pareciam vivas na bandeja, enquanto eu e minha família

agradecíamos por emplacar dez anos vivendo com HIV,

desafiando a morte e teimando em viver. Dez anos de

luta e sempre com a crença de que ao menos mais dez

viriam pela frente. E tinha tudo para isso, meus exames

demonstravam uma clara recuperação de meu sistema

imunológico, estava com um corpão que até eu me tra-

çaria, tinha um projeto de realização como cidadão e um

projeto pessoal de cumplicidade e amor. Se o mundo

sobrevivesse às previsões de Nostradamus para o ano

2000, o futuro seria promissor. Feliz novo milênio!

78 MORTE E VIDA POSITHIVA

OSTEO O QUÊ?

“Osteonecrose é relatada em pessoas com HIV”, esse era o título de uma matéria no site da Agência de Notícias da AIDS.

– Osteo o quê? Mãe, vem ver uma coisa!E começamos a ler a matéria que descrevia um

novo efeito colateral que estava sendo relatado entre pessoas que viviam com HIV nos EUA, a osteonecrose, que significa morte óssea, em grego. Olha ela aí de novo, a Tal, em forma de notícia vinda dos EUA, ameaçando meus pobres ossinhos. Comentamos, ao terminar de ler a notícia:

– Credo, se osteoporose já é jogo duro, imagine os-teonecrose. Só falta isso.

E rimos da notícia, como quem quer disfarçar o te-mor de quem já passou por muitas batalhas e sabe que tem que existir respeito pelo inimigo, senão ele vence. Enfim, deixamos para lá e fingimos que não havíamos lido nada, não seria isso que destruiria a felicidade que eu tinha, finalmente, alcançado.

A rotina da academia estava cada vez mais intensa, eu havia voltado a correr e estava com uma marcha bem próxima da que eu tinha antes de 96. Até que um dia, senti uma pontada de dor no músculo adutor, na parte interna da coxa. Pontada estranha, não se parecia com nenhuma dor que eu havia sentido, até então, era uma dor que vinha das profundezas de meu corpo, como se viesse do... Ah, não, melhor nem pensar. Tomei vários medicamentos para inflamação e analgésicos em geral, sem sucesso. A dor agora era contínua, prejudicando meu rendimento nos exercícios, o que me levou a uma

79BETO VOLPE

consulta com um ortopedista da região, que pediu exa-me de cintilografia óssea.

Paralelamente a isso, o Hipupiara já tinha nome, so-brenome e certidão de nascimento, também conhecido por CNPJ, obtido após realizarmos uma assembleia de fundação e eleição de diretoria, da qual eu saí como pre-sidente do grupo. Além das cestas básicas, abrimos tam-bém um serviço de assistência jurídica gratuita a pes-soas com HIV e seus familiares. Também foi no início de 2000 que Fagundes resolveu mudar para São Vicente, de mala e cuia. Para isso, contou com o apoio de dois amigos, Raquel e Matheus, que o acolheram em sua casa, até que as circunstâncias permitissem que, talvez, mo-rássemos juntos. E a perna doía um pouco mais a cada semana que passava.

Até que, depois de um bom tempo de espera, o re-sultado da cintilografia ficou pronto e em um final de tarde fui buscá-lo para levar imediatamente a uma con-sulta com o ortopedista. Como sempre, não tive paciên-cia para esperar o médico abrir o envelope e o fiz, ali no ônibus mesmo. E lá estava a conclusão do exame: ne-crose asséptica da cabeça do fêmur. Minha vista chegou a turvar e fiquei um pouco tonto, como quem sabe que um novo desafio estava começando. A Morte, dessa vez, esgueirava-se sorrateira, querendo minar minhas resis-tências através de problemas que não eram relacionados a infecções oportunistas e à baixa imunidade. Desci do ônibus e, no consultório, o doutor olhou bem para mim e falou:

– A doença é séria, progressiva e não há nada a fa-zer, a não ser começar a usar bengala e aguardar pelo inevitável momento em que vamos ter que amputar a parte afetada e instalar uma prótese.

80 MORTE E VIDA POSITHIVA

– Como assim, doutor? Não há mesmo nada a fazer? Não, não havia, segundo ele. Eu me senti de volta

aos velhos tempos em que não havia medicamentos para combater o HIV. De volta aos tempos em que somente a esperança e a fé tinham forças contra uma doença para a qual nem eu nem os médicos estávamos preparados para enfrentar. Uma doença que começava a afetar mi-nha mobilidade e meu bom humor, uma vez que a dor só fazia crescer.

Morte óssea. Eu conseguia ouvir a risada da Tal, agora instalada em minha perna e fazendo meu pobre osso apodrecer, morrer em vida, como tantas vezes eu me senti nas perícias médicas de anos atrás. Mas, quan-do o assunto é sério, segundas opiniões são sempre bem vindas e, após pesquisar, cheguei ao Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da USP, o IOT-USP, que passaria a ser meu novo endereço de veraneio, assim como o ‘hotel’ Santa Cruz o fora tão recentemente. Uma vez marcada a consulta, lá fui eu, munido de exames, esperança e alguns artigos sobre a relação entre HIV e necrose óssea, que eu havia pinçado na internet. Ao entrar no consultório, eu conheci meu novo doc, o doutor Itiro, um descendente de japoneses enorme e impassível. Ao ver meus exames, logo foi rela-cionando as possíveis causas do meu mal:

– O senhor bebe?– Quase nada. – Toma anabolizantes? – Também não.E, com a maior ingenuidade, interrompi o questio-

nário e cometi o maior pecado que existe ao conversar com um médico:

81BETO VOLPE

– Doutor, eu sei o porquê dessa necrose.Ele me olhou, achando muito estranho e petulante

da minha parte chegar sabendo algo que caberia a ele descobrir. Continuei:

– Eu vivo com HIV há quase onze anos, faço o tra-tamento com antirretrovirais e esse é um efeito colateral relacionado a tudo isso.

Ele me olhou, achando tudo mais esquisito ainda e, como quem desdenha, disse entre risos:

– Eu nunca li nada relacionando as duas coisas.Foi quando eu abri minha pasta, tirei artigos da

John´s Hopkins University, Massachussets Institute of Tecnology e outros, fazendo com que ele acirrasse ainda mais os tênues olhos para os papéis, até que pediu:

– Posso ficar com isso?Ao que respondi vitorioso:– Claro, já trouxe para o doutor, mesmo. Diz a piada que a principal diferença entre Deus

e o médico é que Deus não pensa que é médico. Sema-nas depois, em um retorno, ele me confirmou que desde minha primeira consulta ele havia atendido mais dois casos com as mesmas características e eu disparei, com meu sorriso mais cínico, uma frase com a qual eu teria que me habituar dali para frente:

– Eu não lhe disse, doutor? Prepare-se, daqui a pou-co vai estar cheio de pessoas com HIV aqui.

Ele, então, me falou sobre um tratamento que po-deria ou não dar certo, seria uma cirurgia não tão inva-siva, apenas um corte de uns cinco centímetros em cada lado do quadril, por onde entraria uma câmera que guia-ria uma espécie de minibritadeira que destruiria a parte necrosada e uma colher a removeria. Isso supostamente

82 MORTE E VIDA POSITHIVA

faria com que a circulação voltasse ao normal e a necro-se poderia estancar. Ótimo, era uma alternativa muito melhor do que usar bengala e aguardar pelo apodreci-mento total. Marcamos a cirurgia para o final de junho.

Estava preocupado com a cirurgia, apesar daquela história de não invasiva, eu teria que ficar cerca de duas semanas sem colocar os pés no chão, da cama para a cadeira de rodas, da cadeira de rodas para a cama. Ao mesmo tempo, estávamos passando por um drama fami-liar muito sério, meu irmão havia acabado de ser diag-nosticado com transtorno bipolar e, além disso, tinha o Hipupiara, cuja dinâmica já absorvia grande parte de meu tempo.

83BETO VOLPE

UM INVERNO RIGOROSO

O último inverno do milênio começou de maneira até que leve, a cirurgia realmente não era um bicho de sete cabeças. Não seria a primeira em que eu tomaria uma anestesia geral, ou seja, eu já conhecia o intermi-nável corredor com as luzes do teto passando pela sua vista, a sala de preparação e uma sala de cirurgia. Doutor Itiro já estava paramentado, juntamente com sua equi-pe, até que o anestesista pergunta sobre a necrose:

– Foi bebida?Quase respondi que sim, que era um cachaceiro,

mas preferi acenar vagamente com a cabeça que não, para encerrar o assunto. E apaguei. Acordei na sala de recuperação com um curativo enorme em cada lado do quadril e dois drenos. De volta ao quarto, encontrei mi-nha mãe e Fagundes à minha espera.

Desde o começo, minha mãe teve certo receio de meu namoro com ele, pois além de todo o lance da ho-mossexualidade havia a lembrança de Luiggi, dos con-turbados anos 80. Por isso, foi confortante vê-los ali, juntos e compartilhando um mesmo sentimento. Os dois já haviam combinado, ela iria para casa e ele fica-ria como meu acompanhante durante a internação, que seria de apenas cinco dias. E nos vimos a sós no quarto do hospital, curtindo nossa primeira experiência sexual hospitalar, relembrando os ‘bons tempos’ do Santa Cruz. O grande barato de fazer amor em um hospital é o fato das portas não terem trancas, a qualquer momento pode entrar alguém e aí... Com tanto carinho, tive alta no pra-zo previsto e fui para casa, onde fiquei sob os cuidados dos meus pais e da Carminha, uma baiana arretada que

84 MORTE E VIDA POSITHIVA

está conosco há quase 40 anos e que praticamente é par-te da família, tendo participado dos melhores e piores momentos pelos quais passamos. Na verdade, o senti-mento é o de que tenho uma irmã mais velha, sempre a cuidar de mim e de minha família.

Fiquei as duas semanas sem apoiar os pés no chão, até que doutor Itiro me deu alta da cadeira e me auto-rizou a andar de muletas, apoiando a perna esquerda, onde a cirurgia havia sido menos invasiva. Bem, com tantas ameaças da Tal e sabendo daquela parceria entre Murphy e a Bruxa Má, fiquei mais duas semanas sem sair de casa, a não ser que fosse de cadeira de rodas, era melhor evitar que algo de mais grave acontecesse. E com isso eu entrava novamente naquela fase que antecede os aniversários, o inferno astral, que seria infernal.

Era nove de agosto, apenas quatro dias para que eu completasse 39 anos. Acho bem legal ser de 13 de agos-to, um dia cheio de superstições e simbologias, além do fato de eu ter nascido na mesma hora, dia, mês e ano que o muro de Berlim. Entusiasmado com tudo isso, tomei coragem e me atrevi a sair de muletas na rua e a família foi almoçar em um restaurante por quilo no centro de São Vicente. Ao terminarmos, meu pai tomou o rumo do trabalho, enquanto eu, minha mãe e Kiko seguimos para o estacionamento, onde estava guardado o carro. São Vi-cente é uma cidade com muita gente para pouco espaço, são cerca de 380 mil pessoas para uma área de 143 qui-lômetros quadrados, a maior parte deles de preservação ambiental. Ou seja, o centro comercial é intransitável, tanto nas ruas como nas calçadas, e eu ali, de muletas, tentando obter o mínimo de respeito por parte dos de-mais transeuntes, doce ilusão! Mesmo assim, consegui

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chegar até a esquina, onde, após atravessar a rua, alcan-çaríamos o estacionamento e minha aventura ao ar livre teria final feliz. Sem problemas para descer ao asfalto, iniciei minha travessia, ainda tendo que me esquivar de pessoas apressadas e sem nenhuma consideração com os outros, até chegar à parte radical da aventura, subir o meio-fio da calçada oposta. Na subida, uma das muletas encaixou em um pequeno buraco e me tirou o equilí-brio, ao que comecei a me inclinar sobre ela. Foi quando apareceu uma gentil alma que, ao invés de me amparar, segurou a parte de cima da muleta, formando uma trave fixa com a outra extremidade no buraco. Caí sobre ela e, imediatamente, ouvi um CRAC que vinha de dentro do meu corpo e que me explodiu os tímpanos, apesar de ser audível apenas por mim. Um som que me doeu mais do que a dor que eu sentia na perna, agora retorcida e de-nunciando uma fratura de fêmur, em meio a um tumulto de pessoas em horário de almoço que se aglomeraram à minha volta, enquanto eu olhava para minha mãe, com um olhar tão apavorado quanto o dela:

– Acho que quebrei a perna.Eu chorava e não eram lágrimas somente de dor,

eram lágrimas que corriam pela lembrança imediata das palavras da Tal, de que seria difícil viver. Meu irmão chamou uma ambulância de imediato, enquanto um mé-dico conhecido fez uma tentativa de esticar minha per-na ou, como eles dizem, fazer uma tração manual. Inútil, qualquer toque ou o mais ligeiro movimento fazia com que aquela antiga sequela neurológica, que até então estava controlada, voltasse com tudo, com fortes con-trações musculares; fazia com que os dois pedaços de meu osso entrassem em atrito, mastigando tudo o que é

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tecido que estivesse entre eles. Era uma dor insuportá-vel e eu perdi um pouco a noção das coisas que estavam acontecendo ao meu redor, até que a ambulância chegou e tiveram que me remover para dentro dela. Deus, que suplício. Deram-me algo para morder e eu devo ter di-lacerado aquilo com tanta força que eu aplicava ali, na ânsia de aliviar a dor. Essa dor ficaria comigo por mais de uma semana, em um dos períodos mais difíceis de todos os que já me aconteceram. Minha mãe embarcou na ambulância comigo e eu tive um lapso de consciência de gritar para meu irmão:

– Avisa o Fagundes!Fui levado para o hospital São José, o mesmo que eu

encarara na internação da pneumonia de 96, e instala-do em uma sala fria, onde seria feita avaliação, antes do raio-X. A dor era desesperadora, os espasmos aconte-ciam seguidamente e com a visão turvada pelas lágrimas eu conseguia ver minha família e Fagundes, quase tão angustiados quanto eu, que chorava muito pela certeza de que realmente não seria nada fácil viver. De que eu jamais teria sossego, era praga de Morte vencida, que vive sempre de tocaia esperando a menor oportunida-de para sua revanche. Uma Morte oportunista. Até que, depois de muito tempo, fui levado ao raio-X, onde não deu outra: fratura na parte onde o fêmur faz a curva para encaixar no quadril. Teria que fazer tração.

Lá fui eu para a sala onde são feitos os primeiros procedimentos ortopédicos e, quando chegou minha vez, um enfermeiro segurou meus ombros, outros dois seguraram minhas pernas e um quarto me deu um rolo de gaze para morder, enquanto puxavam minha perna,

na tentativa de realinhar os dois pedaços do meu fêmur,

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o que me fez ver todas as estrelas do universo visível.

Eles, então, instalaram um mecanismo de roldanas e pe-

sos para manter os ossos daquele jeito e me transferiram

para um quarto. A dor deixou de ser contínua, mas um

pequeno resvalo no lençol que me cobria e lá vinha o

torturante espasmo de moer carne. Primeira providên-

cia: avisar o doutor Itiro e tratar da transferência para o

IOT, o que ficou acertado para o dia seguinte pela ma-

nhã, quando outra ambulância me levaria a São Paulo.

Eu sei que a palavra tortura já está se tornando re-

petitiva, mas não sei qual outra poderia traduzir o tra-

jeto entre meu leito no São José e a emergência do IOT.

Ruas esburacadas, freadas e arrancadas, curvas acentua-

das, provocando um espasmo após o outro. Ao chegar-

mos à emergência, a Peace, da sala HIV, já estava lá, em

seu horário de almoço, igualmente aflita. Fui levado de

imediato à triagem e lá ouvi uma frase vinda diretamen-

te das trevas:

– Vamos ter que fazer uma tração esquelética.

Como que por encanto, aquele esqueleto encapuza-

do e com o alfanje, a Tal, estava novamente ao meu lado,

rindo sarcasticamente, como a dizer:

– Eu avisei que não iria ser fácil e estou apenas co-

meçando...

Tive forças para perguntar ao enfermeiro o que sig-

nificaria aquilo, ao que ele respondeu:

– Nós vamos furar seu joelho de um lado ao ou-

tro com uma broca, passar um cabo de aço por ele. Esse

cabo será conectado a uma aparelhagem e a um peso de

cinco quilos que fará a tração dos dois pedaços, colocan-

do-os precisamente na posição que a cirurgia requer.

88 MORTE E VIDA POSITHIVA

Fui levado a uma grande sala que era o cenário de

Alien, o 8º Passageiro: pé direito altíssimo, das paredes

saltavam grossos encanamentos que cruzavam o teto e

aparelhagens antigas. Seminu, deitado em uma maca em

uma gélida tarde de inverno, eu me sentia só, abandona-

do e traído por tudo, por todos, por Deus. As dores pio-

ravam, efeito do frio do inverno e do ar condicionado

que provocavam sucessivos espasmos, quando, enfim,

dois residentes chegaram e, sem cerimônias, um falou

para o outro:

– Você pega a furadeira?

Era demais. Ao invés de “olá, a gente sabe que

você está fodido, mas procure relaxar, não vai demorar

muito”, você escuta “você pega a furadeira”. Onde esse

pessoal enfiou a sensibilidade? Onde, por Deus, eles es-

tavam na aula sobre ética profissional, sobre a relação

médico e paciente? Mas a apreensão pelo procedimento

esquelético também deu uma pausa e passei a me con-

centrar no outro residente que chegava com a furadeira

e um rolo de gaze para que eu mordesse. A broca come-

çou a furar meu joelho e até que o procedimento não

doía tanto quanto o nome sugeria, mas a sensação era

horrível. Finalmente, a broca transpassou meu joelho e

ali ficou, com cerca de dois centímetros sobrando em

cada lado.

É, velho Murphy, as coisas, definitivamente, sem-

pre podem piorar. Pela porta da sala aparecem dois ou-

tros residentes, um rapaz e uma moça, que perguntam:

– Vocês dois vão ou não almoçar com a gente?E, sem mais, os dois que me atendiam saíram, dei-

xando-me novamente sozinho em uma gélida sala de

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hospital, com uma broca enfiada no joelho e traído por tudo, por todos, até por Deus. “Pai, por que me abando-naste?”, eu me perguntava, sentindo-me expulso do pa-raíso e, agora, também traído pelos médicos residentes. Bastante tempo se passou até que apareceu um senhor com jaleco branco, esse sim um médico, que ficou mui-to puto ao saber que eu estava ali há quase uma hora com uma broca enfiada no joelho. Outros dois residen-tes chegaram e, agora supervisionados pelo médico, ti-raram a broca, passaram o cabo de aço, instalaram umas roldanas em meu pé e penduraram o lastro com cinco quilos para forçar meu osso a voltar para o lugar. Fui mandado para o quarto, com menos espasmos e menos dores. Mas nem assim com menos tristeza e desencanto.

90 MORTE E VIDA POSITHIVA

PARABÉNS A VOCÊ!

A três dias do meu aniversário, eu estava deitado

outra vez em um leito no bom e velho IOT. Eu estava tão

triste e desencantado que nem conseguia mais chorar,

não entendia o que estava acontecendo comigo. Minha

cama ficava bem ao lado de uma enorme janela e eu ti-

nha como vista apenas o céu azul de inverno, cenário

ideal para perguntar a Ele:

– Por que está acontecendo isso comigo? Eu estou

fazendo tudo direitinho, criei juízo, parei com os abusos

contra meu próprio corpo, estou iniciando um trabalho

social que me parece ser importante e é essa a recom-

pensa? É isso que eu ganho por estar dando rumo à mi-

nha vida?

As lágrimas agora caíam lentamente em uma tris-

teza infinita e com uma grande sensação de desamparo,

apesar da presença de pessoas queridas comigo. Eu ha-

via sido abandonado por Ele.

Aí, chegaram as enfermeiras da internação ante-

rior, que estavam espantadas e também tristes:

– Nossa, mas você acabou de sair daqui!

Acostumadas com situações dramáticas, elas trata-

ram logo de atenuar aquele clima de velório, onde eu

chorava a morte do meu osso, da minha perna, da mi-

nha fé. Festinha vai, festinha vem e meu velho e teimoso

senso de humor foi sendo resgatado aos poucos, até que

consegui sorrir, para alegria geral. Estávamos ali, tentan-

do relaxar, quando doutor Itiro entra no quarto:

– Mas o senhor já está aqui novamente, seu Luiz?

E foi direto ao assunto:

91BETO VOLPE

– O senhor fraturou o fêmur em um lugar muito

difícil de quebrar e mais difícil ainda de consertar.

Eu, para variar só um pouco, tinha que ter algo es-

pecial, não era uma fratura qualquer. Tinha que ser em

um local de difícil conserto. E doutor Itiro continuou:

– Você fica com essa tração até segunda-feira, quan-

do você vai ser operado.

A partir de então, as coisas foram ficando um pou-

co mais leves, minha família e Fagundes se revezavam

como acompanhantes, várias pessoas queridas me visi-

tavam e isso me levantava bastante o astral. Até que um

dia, Fagundes foi ao cinema e fiquei sozinho com Pea-

ce. Para dar uma relaxada, achamos por bem acender a

ponta de um baseado, sem nem nos importarmos com o

cheiro. Ficamos curtindo e rindo até que, logo após ter

dado cabo da pontinha, apareceram a enfermeira chefe

Gueiza e uma auxiliar de enfermagem.

– Que cheiro é esse?

E nós, em uníssono:

– É incenso!

E ela:

– Onde está?

E nós... sem resposta.

Diante do óbvio, abri o jogo, culpando as dores e a

tristeza, ao que ela reagiu de forma bem legal e deu ape-

nas um sermão, pedindo que o fizéssemos quando eu

tivesse alta e fora dali. E nos contou que a delatora fora

a mãe de um rapaz que estava internado e que “conhe-

cia bem aquele cheiro”. Assim que as duas saíram, eu e

Peace rimos muito do ridículo da situação. Era sábado,

véspera do meu aniversário e Peace havia me dado mui-

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tas risadas de presente, mas quem ficou muito puto foi

Fagundes, dentro de sua capricorniana seriedade, quan-

do eu lhe contei sobre o ocorrido.

Enfim, chegou 13 de agosto, meu aniversário de 39

anos. Aos poucos, foram chegando pessoas, pessoas e

mais pessoas, já que eu havia conseguido uma liberação

de visitas por conta da data. Minha família, claro, veio

com bolo e quitutes para a festa, que chegou a ter 16

‘convidados’ espremidos em um apartamento de hospi-

tal. Todos confiantes nas mãos que iriam me operar na

manhã do dia seguinte. Claro, os espasmos continuavam

permeando essa alegria toda, salpicando um pouco de

dor naquela festa que, confesso, jamais tive igual. Na-

quela noite, eu consegui dormir, satisfeito por ter com-

pletado mais um ano de teimosia e ter tantos amigos e

um companheiro ao meu lado. Especialmente, por ter

uma família maravilhosa que sempre esteve presente,

fazendo de tudo para me ver vivo e feliz. Apesar de es-

tar sendo difícil viver, eu estava vivo e ainda queria ser

feliz. Parabéns para mim.

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OSSO DURO DE ROER

Amanheci mais cedo que de costume, com as en-fermeiras a me preparar para a cirurgia. Fui transferido para a maca que me levaria por aquele velho conhecido túnel de luminárias de teto, até o centro cirúrgico. E o anestesista, que era o mesmo que havia me perguntado se eu era chegado na cachaça, pergunta:

– Nossa! Você de novo? O que foi que aconteceu?Saco... E novamente apaguei. Acordei todo tontão

na sala de recuperação e imaginei ainda estar sob efeito da anestesia, não tinha espasmos nem aquela dor agu-da que jamais me abandonara durante aqueles dias. Foi quando uma enfermeira me disse que a equipe havia instalado uma placa em minha perna, que o efeito da anestesia havia acabado há algum tempo e que em casos assim, a unificação do osso tira quase toda a dor. O am-biente havia ficado cor de rosa, afinal, existia um mundo sem dores, como desejou Lennon. Voltei para o quarto flutuando, curtindo cada movimento que a maca fazia sem provocar um espasmo e, após mais alguns dias no hospital, eu estaria de volta para casa.

E a casa estava um rebuliço. O transtorno bipolar do meu irmão se manifestava cada vez mais agressivo, trazendo muita preocupação para todos, além disso, a Carminha tinha sofrido uma queda do telhado da casa dela. Nesse cenário, cheguei eu, assim como naquele iní-cio de 97, completamente imobilizado e tendo que ficar assim por, ao menos, um mês e meio. Não é nada fácil você, de uma hora para outra, ficar à mercê do destino, enquanto o inchaço da perna estava desaparecendo e revelando uma nova tristeza. Eu havia perdido, de uma

94 MORTE E VIDA POSITHIVA

hora para outra, quase toda a massa muscular que hou-vera conquistado através de tanta atividade física. Mi-nhas pernocas haviam sido reduzidas a dois gravetos, principalmente a fraturada, que era praticamente pele, osso e a placa que tinha uns quinze centímetros e se es-tendia ao longo de meu fêmur direito. Era fixada no osso e tinha um parafuso, em especial, que era saliente e vi-via fisgando meu músculo.

Tive, então, outro encontro com um deus, ou me-lhor, uma deusa: a chefe de reabilitação do IOT. Em um retorno ao doutor Itiro, fui encaminhado à fisiatra Júlia que, ao ler meu histórico, não pestanejou:

– É, senhor Luiz Alberto, eu serei sincera com o senhor, como sou com todos os meus pacientes, será muito difícil reabilitar sua perna.

Foi o suficiente para que eu tremesse nas frá-geis bases e perguntasse a ela o que significaria aqui-lo. Ela continuou:

– São muitas patologias associadas, o máximo que nós fizermos será pouco.

Ela ainda não sabia, mas eu a faria engolir palavra por palavra o que havia acabado de me dizer. Saí de lá estranhamente fortalecido e desafiado por aquela médica que, talvez inconscientemente, havia me passado a men-sagem de que o melhor seria voltar para casa, deitar em frente à TV e assistir ao Curtindo a Vida Adoidado, pelo resto dos meus dias. Como pode uma pessoa, por mais estudos que tenha, querer tomar o lugar de Deus? Como pôde ela decretar daquela maneira tão vil que eu não vol-taria a andar? E, de fato, três meses depois eu retornaria ao seu consultório no IOT com minha bengalinha, ao in-vés da cadeira que havia ficado dentro do carro, no esta-

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cionamento do hospital. De maneira nada sutil, lembrei a ela cada palavra que havia dito e o efeito que elas pode-riam ter produzido em mim. Enfim, encaminhado para fisioterapia, reencontrei minhas amigas das quais havia me despedido há tão pouco tempo e que se tornariam as profissionais com as quais eu mais iria conviver dali em diante, em uma autêntica festa do estica e puxa. Eu ainda não sabia, mas minha jornada ortopédica ainda teria mais alguns capítulos. Um osso duro de roer.

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PEGA, LADRÃO!

Assim o tempo passava e agora eu estava retoman-do uma série de coisas sobre duas rodas. Em novembro, eu e Fagundes fomos ao Rio de Janeiro, sob os protes-tos do doutor Itiro, para apresentar o primeiro trabalho do Hipupiara em um Congresso: ‘Assistência Jurídica em ONGs’, no I Fórum Latino Americano e Caribenho em HIV/AIDS. Fomos hospedados em um apartamen-to adaptado em um hotel de Copacabana, onde tive a oportunidade de ver meu perfil de corpo inteiro em um grande espelho que havia no banheiro. Que cena depri-mente, no lugar das belas coxas, eu tinha duas varetas e, ao invés de uma bunda, eu tinha uma ínfima massa mus-cular caída e quase imperceptível. Eu não tinha pernas, eu não tinha bunda.

– Roubaram minha bunda!!! Com ou sem bunda, fomos a várias exposições de

trabalhos, fiz a apresentação do nosso, revi algumas pessoas muito queridas, como Beatriz e Carlos e conhe-ci Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, com a qual acertei uma noite de autógrafos do seu novo livro, que estava em fase final de edição. Também tive direito a ficar na fila do gargarejo durante o show de Ney Matogrosso, no centro de eventos, quando consegui dele uma piscada e uma lambida de lábios pra lá de lasciva. Foi muito bom ter ido àquele congresso, me fez sentir vivo novamente e, quando voltamos, eu me sentia mais fortalecido, en-quanto a situação em minha casa estava voltando a uma passageira normalidade.

Passou o Natal, Ano Novo e a cara de 2001 era pro-missora, uma vez mais. Eu aprimorava minha relação

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com a bengala, já percebendo que seria uma relação es-tável e duradoura, pois o doutor tinha razão, a fratura ocorrera em um lugar de difícil conserto. Haja fisiote-rapia, haja saco, haja mãe, que amorosamente me levava de carro à clínica, três vezes por semana, cadeira de ro-das no porta-malas e vamos em frente. Eu estava voltan-do a andar, coisa que pareceu impossível para uma chefe de reabilitação de um dos hospitais mais conceituados do Brasil.

98 MORTE E VIDA POSITHIVA

UM 2001 SEM ODISSEIAS... OU QUASE

Não foi igual ao 2001 de Kubrick, por sinal, foi um

ano sem maiores atropelos, dando fôlego para que eu

conseguisse recuperar boa parte da minha mobilidade,

força, agilidade e esperança de que a vida fosse mais fácil

dali em diante. Eu continuava com a cansativa rotina na

clínica de fisioterapia, agora já sem a cadeira de rodas. É

interessante como a relatividade está em tudo, voltar a

fazer um pequeno movimento com o dedo mindinho já

é motivo para festa em famílias afetadas pela deficiên-

cia. Se Neil Armstrong sofresse um acidente, ele faria

uma releitura de sua célebre frase ao pisar na Lua: “Um

pequeno passo para a humanidade pode ser um grande

salto para um homem”.

A bengalinha era uma extensão do meu corpo, dan-

do mais equilíbrio e segurança para meu caminhar. As

dores praticamente desapareceram, exceção feita aos

momentos em que eu me levantava e tinha que fazer o

encaixe do músculo atrás do parafuso em meu quadril.

– Isso, agora segure a perna levantada...

– Agora tente caminhar sobre a linha amarela, sem

sair dela, Beto.

Veio a lembrança dos velhos tempos de perícias

médicas em São Paulo, quando eu tinha que permane-

cer atrás da linha amarela e agora eu teria que andar em

cima dela, um grande progresso! Estava fortalecendo o

máximo possível minha musculatura para aguentar mais

uma cirurgia, a de retirada da placa do fêmur, que acon-

teceria no meio do ano e traria muito alívio para aque-

le desconforto do parafuso que eu tinha a mais. Aquela

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hospedagem no ‘hotel’ IOT foi bem mais tranquila, eu

já estava me habituando à rotina de luzes e anestesistas.

O que também só fazia prosperar era o Hipupia-

ra, pois, como havíamos previsto, quando da fundação,

a cidade realmente estava precisando de uma iniciativa

naquele sentido. Os apoios se sucediam e tínhamos cada

vez mais clareza sobre nossa missão, tudo aprendido na

prática. E a gente estava colecionando algumas vitórias

bem significativas. Uma das maiores foi ter conseguido

trazer Lucinha Araújo a São Vicente, aquele contato fei-

to no Fórum 2000 havia frutificado e minha cidade foi

contemplada como uma das primeiras a ter noite de au-

tógrafos do novo livro dela, Cazuza: preciso dizer que

te amo. Foi genial, muita gente queria conhecer aquela

mulher forte e singela que despertou a atenção de toda

a imprensa local e deu um impulso violento ao nosso

trabalho. Também me proporcionou um prazer especial

ao ouvi-la dizer para a sua secretária, assim que adentra-

mos à baía de São Vicente:

– Nossa, Christina, veja que paisagem deslumbran-

te! Não lhe parece a Riviera?

Era tudo o que eu queria ouvir um dia, uma mulher

viajada por todo o mundo, com tamanha bagagem cul-

tural e experiências de toda a sorte, declarar que minha

amada cidade parecia com a Riviera. Isso tudo e mais

o poder de alguns flashes estourando fizeram com que

boa parte da minha autoestima se recuperasse e me dei-

xasse prontinho para os meus 40 anos. Quarentão, quem

diria? A morte anunciada aos 28 fazia-se postergar.

Até que chegou setembro, mais precisamente 11 de

setembro de 2001. Eu estava em Cuiabá, para partici-

100 MORTE E VIDA POSITHIVA

par de um congresso nacional sobre AIDS, e havia me

hospedado na casa de Deuseni Felix, uma artista plástica

local que me acolheu com muito carinho. Após uma bela

noite de sono, na manhã do primeiro dia do congresso

eu acordei e, ao chegar à sala para o café da manhã, ela

veio esbaforida em sua cadeira de rodas a me chamar:

– Venha ao meu quarto ver o que está acontecendo.

Chegando lá, vi a imagem na televisão, dividida em

duas: a metade esquerda apresentava cenas do Pentágo-

no em chamas, enquanto a metade direita mostrava um

avião se chocando contra o World Trade Center, que

também estava em chamas. Sem saber do que se tratava,

perguntei a ela:

– Que filme é esse?

– Não é filme, está acontecendo agora.

Que loucura, o fim do mundo vai acontecer justa-

mente no ano que deveria ser o da odisseia no espaço.

Engoli o café da manhã e peguei um táxi para o centro de

convenções, onde todos os participantes estavam imóveis

perante os monitores de TV, no salão principal. Quando

lá cheguei, já havia boatos de que mais cinco aviões esta-

riam sobrevoando as principais cidades, prontinhos para

serem lançados contra alvos americanos.

– Melhor a gente cancelar as passagens de volta, até

que os ataques nucleares cessem – alguém disse.

Que situação engraçada... O que eu sentia desde

1989 agora era um sentimento coletivo, o da Morte pró-

xima, do final inevitável. As cerca de 500 pessoas ali reu-

nidas estavam perplexas com o que viam nas telinhas do

Centro de Convenções de Cuiabá e curtiam a sensação

de estar na fase terminal. O mundo havia entrado na UTI

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com parada respiratória e tudo levava a crer que em breve

seria declarada a hora do óbito. Ela, a Tal, agora apare-

cia em rede mundial, através de todas as mídias, todos os

comentários, todos os medos, pois seu alfanje tinha pro-

porções globais e era mais ameaçador que nunca. Eu não

conseguia parar de pensar em como toda a minha luta

pessoal poderia ter sido em vão. Talvez o melhor a fazer

fosse ficar por ali, no centro do Brasil, longe de New York,

London, São Paulo e São Vicente. Lembro de ter ouvido

de várias pessoas o mesmo comentário:

– Tanto trabalho para fazer o povo usar camisinha,

para nada...

Aqueles dias em Cuiabá foram uma antessala do

além. Obviamente que as atividades voltaram a aconte-

cer e foi lá que fiquei sabendo que três projetos que ha-

viam sido enviados pelo Hipupiara foram selecionados

para financiamento público, outra grande vitória para

a ONG. Assistência jurídica em ONG, Cooperativas de

confecção, construção civil e panificação, além da pri-

meira academia de condicionamento físico para reduzir

o impacto dos efeitos colaterais, em ONG do Brasil.

Mas o medo permeava os debates, as conversas, os

olhares e não havia nada que se pudesse fazer a não ser

acreditar que tudo acabaria bem, afinal, já havia ouvido

essa conversa antes.

102 MORTE E VIDA POSITHIVA

É, FAZ SENTIDO

Entre meu aniversário e o ataque da Al-Qaeda, re-

cebi um e-mail anunciando um concurso literário de-

senvolvido pela Coordenação Estadual de DST/AIDS

de São Paulo: Vivendo com HIV. Cada participante teria

que relatar, em até 15 páginas, sua história de superação

do HIV e suas mazelas, sendo que 15 dessas histórias

comporiam um livro. E eu tinha uma bem assim, afinal,

não é sempre que uma pessoa olha bem no fundo dos

olhos da Tal e consegue escrever sobre isso de próprio

punho. Abri meu Word e me pus a relatar o que havia

vivido desde aquele final de 1989, tão distante e de lem-

brança tão próxima. Redigi minhas memórias, as enviei

e, no final de outubro daquele ano de 2001, recebi a lis-

ta dos selecionados: para minha surpresa, lá estava meu

nome e o de meu trabalho. Tivemos uma reunião entre

os organizadores do projeto e os autores, sendo que dois

deles me eram bem familiares, Nalva e Cláudio. Nalva é

do Guarujá, havíamos participado de algumas atividades

juntos, enquanto Cláudio eu conhecia da sala HIV e até

hoje mantemos contato, pois ele mantém um excelente

blog sobre AIDS, o soropositivo.org. Logo, eu estaria re-

cebendo alguns exemplares de Histórias de Coragem e,

ao folhear o livro, deparei com minha foto e o título da

minha narrativa: Eu vou parar de fumar. Como assim?

Esse não é o título! O nome é Terminal é a...!. Liguei

para a editora e eles alegaram que tiveram que editar

algumas coisas e que o nome estava um pouco pesado.

Pelas publicações anteriores da editora, quase todas vol-

tadas à maçonaria, dava para entender o motivo. Deixei

103BETO VOLPE

pra lá, afinal, o que importava era que a história estava

publicada e poderia ser útil a alguém.

Há muitos anos, quando eu ainda era ‘dimenor’,

tive um namorico com um abastado pai de santo de Gua-

rulhos. Naturalmente, ele era bem mais velho que eu e

morava com a mãe que, ao me conhecer, ofereceu-se

para ler minha mão e disse, entre outras coisas:

– Seu futuro está na palavra escrita.

E não é que ela tinha acertado que um dia algo meu

seria publicado? Foi um período muito legal, durante o

qual eu estava a milhão, sustentado pela minha vitória

contra a Tal, pela minha inseparável bengalinha e agora

pelas luzes da ribalta, fazendo-me crer, uma vez mais,

que eu seria feliz para sempre. De uma hora para outra

eu me vi em vários programas de entrevistas e noticiá-

rios locais e também em alguns de alcance nacional. Re-

cebi muitos e-mails de pessoas elogiando o texto e tam-

bém de pais emocionados por terem visto uma reação

positiva de seus filhos e saírem da depressão em que se

encontravam. Essa foi a melhor parte de tudo, ter servi-

do a alguém que estava passando por dificuldades que

eu já havia enfrentado. Dar uma força para quem estava

preste a perder sua batalha íntima contra a Tal.

É impressionante a força que as coisas tomam quan-

do elas têm que acontecer. Essa frase de Caetano come-

çava a servir para mim, finalmente começava a fazer

sentido a Tal estar sempre de prontidão, me impulsio-

nando para a vida e ao mesmo tempo aguardando o me-

nor vacilo para desferir seu golpe final. Muitos amigos e

desconhecidos foram, em meados de dezembro, à tarde

de autógrafos em uma livraria de Santos, com muitos pa-

104 MORTE E VIDA POSITHIVA

paricos, beijinhos e tudo o mais que um leonino precisa

como presente de Natal antecipado. Foi aí que um casal

de senhores apareceu e ela, com os olhos cheios d’água,

me estendeu o livro, desculpando-se:

– Esse livro não foi comprado aqui, eu o adquiri em

São Paulo há duas semanas. Meu filho o leu em menos

de um dia e já não está mais de cama, criou uma força

que não sei de onde veio, voltou a querer viver e está

se recuperando. Muito obrigada e que Deus os abençoe.

Um presente e tanto, esse que Papai Noel me ante-

cipava. E aquele se confirmaria como um dos melhores

natais que já passei em minha vida. Uma vez mais, es-

távamos reunidos em casa, celebrando um ano em que

nem a ameaça de uma guerra nuclear tirava o brilho de

nossos olhos, ao brindarmos e agradecermos por tudo

que estava acontecendo. Por manter vivo aquele sonho

de Cinderela de ser feliz para sempre.

É, minha odisseia começava a fazer sentido.

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VOLPERINE

No início do ano, a cabeça do fêmur esquerdo, o que não havia quebrado, começou a dar sinais de des-gaste. A coisa funciona mais ou menos assim: uma das causas da osteonecrose é o excesso de gordura no san-gue e eu, apesar de estar longe do recorde atingido anos atrás, ainda apresentava níveis de triglicerídeos bem al-tos. Com tamanho acúmulo de gordura, o sangue não consegue levar oxigênio e nutrientes às extremidades ósseas na quantidade necessária, causando a morte da-quela articulação de dentro para fora, causando defor-mação, atrito e muita dor.

Ainda assim, foi um início de ano com muitas ativi-dades. Eu e a assistente social da ONG fomos apresentar formalmente a instituição à primeira dama do municí-pio. Fomos bem recebidos e ela imediatamente se tornou parceira, nos oferecendo equipamentos para oficinas de confecção e de panificação, o que daria mais robustez ao projeto financiado pelo governo do Estado que estava em desenvolvimento. Ao sairmos da reunião, ligamos imediatamente para o Sebrae de Santos, de onde futura-mente sairíamos com um convênio com o Senai do Bom Retiro, para treinamento de ponta em confecção. Com tudo isso, o projeto começou a decolar, chegando a ter 42 pessoas envolvidas e, graças a ele, o Hipupiara rece-beria um prêmio da USP, no ano seguinte, em cerimônia no Teatro Municipal de São Paulo. Um luxo só e todos os integrantes do projeto lá estavam, orgulhosos de seu trabalho, da sua cidadania.

Mas as dores estavam aumentando e, numa noite, ao sair com algumas compras do supermercado, uma

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dor fina e profunda fez com que minha perna dobrasse e eu fosse ao chão, demonstrando claramente que estava chegando a hora da instalação da minha primeira pró-tese. Doutor Itiro confirmou a necessidade e agendou a cirurgia, onde eu teria instalada uma prótese com a cabeça de cerâmica e uma haste de titânio que seguiria por dentro do fêmur até sua metade, dando estabilidade para a nova articulação. Uau, eu iria virar um X-Man! Eu, que já era fã de carteirinha de Wolverine e seu es-queleto de adamantium, agora teria o meu substituído por titanium, tornando-me o Volperine, aquele que tem o poder da imortalidade! Ao ser internado para a cirur-gia, falei seriamente para o doutor Itiro:

– Doutor, eu quero minha cabeça de fêmur pra le-var pra casa.

Foi um páreo duro convencê-lo, mas ele acabou consentindo. Não sei se já mencionei, mas doutor Itiro é um tanto carrancudo, sendo que o próprio pessoal do hospital fez um mural com fotos de várias situações em que ele sequer esboça um sorriso. Eu o apelidei de dou-tor Docinho, aquela das Meninas Super Poderosas que está sempre de mau humor. O apelido pegou, claro que pelas costas dele. Ao entrar no centro cirúrgico, repeti que queria meu osso e, no início da anestesia, soltei meu último desejo:

– Eu quero meeeeuuuu ooossss...Acordei sem uma parte de mim, a parte que me

imobilizava e me torturava. Sentia-me um Ciborg, o ho-mem de seis milhões de vírus, usando da última palavra da tecnologia para poder continuar minha jornada. Um mutante com o dom da resiliência e da transmutação da dor em superação, da tristeza em piada, da morte em

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vida. No entanto, aquela cirurgia marcou o nascimen-to de Ossinho, minha cabeça de fêmur conservada em um vidro com álcool, e que daria muita visibilidade aos efeitos colaterais do tratamento, em congressos, even-tos e palestras. Anos mais tarde, meu querido Eduardo, o então diretor adjunto do Departamento de AIDS do Ministério da Saúde, me ligou do aeroporto, aos berros:

– Beto, acabo de chegar de Moçambique, ainda estou no aeroporto. Estou te ligando pra te dizer que seu osso tá famoso até na África! Em uma reunião com ativistas, um deles falou sobre efeitos colaterais e também sobre o brasileiro que carrega o osso de um lado para o outro!

– É, Edu, esse osso é duro de roer...

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CALIENTE

Passado mais um Natal e Ano Novo, em uma en-solarada tarde do verão de 2003, um calafrio começou a subir por minhas pernas até a cabeça e de lá desceu ao chão novamente, como uma descarga elétrica. Estra-nho, apesar de estar calor, eu sentia frio e a seguir veio outro, outro e outro tremelique. Fui ao pronto socorro, onde foi constatada a febre, e recebi soro, tendo alta em seguida. Enfim, alguma coisa eu deveria ter comido que não havia caído bem. A febre voltou no dia seguinte e no outro também. Assim fui vendo meu corpo lentamente perder peso sem explicações, afinal, minha imunidade estava em níveis bastante satisfatórios e minha carga vi-ral bem reduzida. O que poderia estar acontecendo? Eu mal havia acabado de fazer um retoque nas bochechas com doutor André, no Rio de Janeiro, e meu rosto esta-va novamente envelhecido, com aparência doentia. Lá fui eu em consulta com o doutor Caseiro, médico que ocupou o lugar de doutor Paulo. Casado com outra in-fectologista, doutora Paula, ele é uma das pessoas que mais admiro no mundo, pois é do tipo que sorri, abra-ça, acolhe e acerta no alvo em seus tratamentos. É meu amigo e médico até hoje e também achou estranhíssimo aquele quadro clínico com a boa situação imunológica em que eu me encontrava:

– Betão, você tem todos os sintomas de linfoma, mas isso está descartado pelo fato do seu sistema imune estar em boas condições.

A partir daí, foi uma série infindável de coletas de sangue, escarro e outros fluidos... Os episódios de febre aconteciam sempre no final da tarde, o que reforçava a

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suspeita de tuberculose. E dá-lhe dipirona e mais exa-mes, todos sem nenhuma conclusão. Por via das dúvi-das, Caseiro prescreveu uma série de medicamentos contra fungos, bactérias e outros bichos, fazendo com que eu voltasse a ingerir algumas dezenas de pequenas cápsulas e grandes comprimidos ao dia.

Esse desgaste acontecia ao mesmo tempo em que minha vida estava, para variar um pouco, uma turbulên-cia total. Estava prestes a embarcar para o II Foro Lati-no-americano y Caribe en VIH/SIDA, que aconteceria em Cuba, terra de Fidel, outro leonino nascido em 13 de agosto. Alguns milhares de ativistas de movimentos relacionados à AIDS e Direitos Humanos estariam reu-nidos em Havana para trocar experiências na terra da revolução. Simultaneamente, chegou a comunicação de que o Hipupiara receberia o prêmio de Organização do Ano da seção de São Vicente do Soroptmist Internatio-nal, instituição formada por mulheres do mundo todo com o objetivo de impulsionar os trabalhos voltados à valorização da condição feminina na sociedade.

Foi interessante como fizemos jus a essa premia-ção. Em uma tarde quase tão quente quanto meu corpo febril, recebemos um telefonema da presidente dessa instituição, nos solicitando um horário para que as mu-lheres pudessem visitar o Hipupiara e se certificar das boas coisas que haviam ouvido e visto em noticiários sobre nossa organização. Marcada a data, lá foi a dire-toria das ‘soroptimistas’ e dona Hilda, aquela figura que paira sobre as outras com sua sabedoria, para conhecer melhor nosso trabalho. Naquele dia, o pessoal da ONG parecia ligado nos 220 volts, havíamos tido uma reunião de cobrança de atitudes, vulgarmente conhecida como

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comida de rabo, e conforme eu ia apresentando as de-pendências nós cruzávamos com pessoas voluntariosas, sorridentes e cheias de energia. Até que, em determina-do momento, dona Hilda ‘pediu água’:

– Filho, poderia parar um pouco para que eu possa recompor meu fôlego?

Fiquei preocupado: será que ela vai ter um treco bem aqui no Hipupiara? Sacanagem! E perguntei a ela:

– Dona Hilda, a senhora não está se sentindo bem? Precisa de algo?

E ela, como que envergonhada:– Beto, eu passei as últimas semanas me preparan-

do psicologicamente para visitar sua instituição. Achava que iria encontrar um ambiente de pessoas depressivas, sem perspectivas e sem vida. E o que vi foi exatamente o contrário, pessoas cheias de vida e procurando cons-truir seu futuro. Vocês estão fazendo com que eu tenha que rever meus conceitos sobre as pessoas com HIV.

E, sem conseguir esconder certo ar de vitória sobre o maldito preconceito da sociedade, disparei:

– Pois então, agora, a senhora sabe que o nosso maior inimigo é o preconceito e não o próprio vírus. Essa visão que a senhora tinha é o que está matando as pessoas que vivem com HIV hoje em dia.

Assim, o Hipupiara conquistou o prêmio Avançan-do o Status da Mulher, que nos seria entregue na Câmara Municipal de São Vicente, após a viagem a Cuba.

O projeto ainda receberia mais duas honrarias, uma delas, a visita da primeira dama do estado de São Pau-lo, Maria Lúcia Alckmin (Lu Alckmin), acompanhada da primeira dama do município, Lúcia França. A Daslu vicentina arrasava, com o trânsito da rua fechado e uma

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multidão de repórteres a registrar um acontecimento que deu grande pilha em todos da ONG. Outra visita, esta feita por dois técnicos da ONU, reconheceu em nos-sa proposta uma tecnologia aplicável em qualquer lugar do mundo e que, por isso, seria incluída em uma publica-ção chamada ‘Toolkit’ (caixa de ferramentas), que ser-via de orientação para recuperação em países ou regiões afetadas por conflitos e empobrecimento. Viva, mais um ponto para as pessoas com HIV em São Vicente!

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MAMÃE, EU QUERO IR A CUBA

Havia chegado a hora de, com febre e tudo, ir a Cuba para ver a vida lá. Tirar passaporte, arrumar as ma-las e preparar a apresentação que faria sobre o projeto de corte e costura. No aeroporto de Cumbica (Guaru-lhos/SP), onde encontrei amigos e conhecidos do movi-mento, fui à Polícia Federal para declarar os objetos de valor que estava levando. Lá foi constatada minha vida franciscana, absolutamente nenhum dos meus perten-ces era digno de declaração, menos um osso dentro de um vidrinho. Com certeza, eu levaria o Ossinho velho de guerra para o congresso, tinha a intuição de que ele seria importante em algum momento. Ao sacar do vidro e apresentá-lo ao policial de plantão, este arregalou os olhos e, quase petrificado, indagou:

– Meu Deus, o que é isso?E eu, como se estivesse falando de um estojo

de maquiagem:– É minha cabeça de fêmur, que será apresentada

em uma oficina no congresso para o qual estou indo.E ele, num misto de nojo e horror:– Por favor, não é necessário declarar, apenas guar-

de isso.E lá foi o osso para Cuba, onde, após várias horas

de viagem em um avião russo, chegamos ao aeroporto de Havana. Tivemos que passar por uma revista um tan-to severa que até hoje não sei como não conseguiu de-tectar um pacotinho que eu carregava no meio de meus sapatos e que me traria sérios problemas, caso fosse des-coberto. Após esse momento de tensão, fui juntamente com outros ativistas para a Marina Hemingway, em um

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belo hotel situado à beira do mar caribenho. Fiquei sozi-nho em um apartamento confortável e com uma varan-da que me apresentava uma visão do paraíso tropical, na qual eu poderia fazer uso do tal pacotinho que me faria curtir a terra da revolução de forma um pouco mais des-contraída e esquecer um pouco a febre que insistia em me atormentar.

O dia seguinte à nossa chegada seria livre para pas-seio e uma verdadeira caravana partiu do hotel em dire-ção ao estonteante centro de Havana. Com o embargo americano e a falta de dólares no mercado, a construção civil em Cuba não é das mais desenvolvidas, o que teve um efeito colateral muito interessante, que é a preser-vação de deslumbrantes casarios. Por todas as partes onde andávamos, as magníficas construções de séculos passados davam um tom de magia ao nosso passeio. Os cubanos são como os brasileiros, um povo alegre, co-municativo e contagiante, mesmo porque eles têm um drink que é uma maravilha, o mojito, feito com rum, hortelã, açúcar e um pouco de soda. Mandei ver, sempre que possível, ignorando os medicamentos que eu estava tomando e, o pior, a sabedoria de vovó que dizia que hortelã é boa para matar as ‘bichas’. Eu, hein, vovó!

Durante esse dia livre, ao admirar a arquitetura de uma igreja em Havana Vieja, notei um belo rapaz para-do a alguns metros de mim, a me olhar e sorrir com sua boca carnuda, seu anguloso rosto de macho caribenho e um corpo de babar. Eu andava tão febril que estoura-ram umas feridas entre o nariz e o lábio, impedindo que eu fizesse barba. Também estava mais magro, tanto que pensei: deve ser garoto de programa. E desviei o olhar, não ia me meter em encrencas logo no primeiro dia, mas

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não consegui resistir e me virei para ele novamente. O fofo continuava a me olhar e a sorrir. Não deu outra, soltei um tímido cumprimento:

– Hola.Ao que, mais sorridente do que nunca, ele correspondeu:– Hola!Pronto, uma vez estabelecido o contato, toda a ti-

midez foi embora e me aproximei dele, apresentando-me e praticando o meu mais fluente portunhol em uma cantada barata:

– Donde nosotros pondríamos provar um mojito?– Yo puedo presentarte la ciudad y después vamos

a provar cuántos mojitos quieras.E saímos pelas ruas de Havana, eu admirando as

construções seculares, aquele monumento ao meu lado e ele sempre a sorrir de forma cativante, falando sobre a vida em Cuba. Foi quando lembrei que aquele seria o único dia livre durante todo o congresso, eu teria que ser rápido e perguntei se ele não gostaria de ir a meu quarto de hotel, ao que ele respondeu que os cubanos são proibidos de entrar lá, mas que havia algumas ‘habi-taciones’ no centro, por quinze dólares. Disposto a es-clarecer bem as coisas antes de tomar qualquer decisão, perguntei a ele:

– E você, qual é o seu preço?Foi aí que uma coisa maravilhosa aconteceu. À

sombra daquele casario colonial, os ventos caribenhos soprando meus cabelos e ouvindo os ecos de Hemin-gway, vi aquele monumento parar e pela primeira vez olhar para mim seriamente e proferir:

– Yo no soy puto. Yo soy gay.

Céus, o mundo poderia acabar ali e eu morreria

feliz, aquela delícia de cara estava interessado em mim

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e não nos presumíveis dólares em meu bolso. Abri um

sorriso maior que o dele, desculpei-me e continuamos

a caminhar, conversando, agora de forma mais direta.

Fomos à tal habitación e ali se concretizou meu romance

caribenho. Repetimos a dose duas vezes mais nas noites

seguintes e, hoje, guardo apenas a lembrança de um tór-

rido affair cubano.

Mas, como havia ido lá a trabalho, o dia seguinte

começou com a mesa de abertura do evento, com a pre-

sença de ‘El comandante’ que, após ser chamado à fala

pelos presentes, aos gritos de “Fidel, Fidel, Fidel”, pegou

o microfone, dizendo:

– Yo lês voy a decir solamente algunas palabritas...

Ao que todos caíram em gargalhada aliviada, afinal,

ninguém queria passar o dia inteiro ouvindo um de seus

intermináveis, mas cativantes discursos. Os trabalhos ti-

veram início, ao todo, foram seis dias de conferências,

mesas redondas, debates e outras atividades sobre HIV,

AIDS, Hepatites e Direitos Humanos. Um dia, para mim,

seria especial, haveria uma mesa que iria discutir quali-

dade de vida e adesão ao tratamento, onde sete técnicos

de diversos países e um ativista do Rio de Janeiro com-

poriam a tal mesa, com o auditório lotado. Um a um os

participantes falaram muito sobre adesão, adesão, ade-

são e muito pouco sobre qualidade de vida, sendo que ao

término das explanações foi aberto o debate e, imedia-

tamente, minha mão estava levantada. Só sei que minha

pergunta se transformou em uma fala de doze minutos

sobre lipodistrofia, necrose óssea e desordens hormo-

nais, com direito a uma performance com Ossinho, até

que encerrei perguntando:

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– Problemas de lipídios, danos ósseos, impotência

são todos de terceira idade. O que o HIV e/ou o coque-

tel têm a ver com isso? Estariam acelerando nossos re-

lógios biológicos, causando envelhecimento precoce às

pessoas que vivem com HIV?

Um silêncio sepulcral dominou o ambiente por

quase um minuto, onde os palestrantes confabularam

entre si para ver quem tentaria responder à pergunta.

Não que eu seja um especialista, mas sabia que ninguém

ali teria como responder àquilo, tanto que começaram a

dar respostas evasivas e que nada esclareciam. Ao que

uma senhora colombiana, lá do mezanino, protestou em

espanhol:

– Mas não foi isso que o brasileiro perguntou!

Seria muito engraçado se não fosse trágico, nenhum

dos debatedores conseguia dar respostas a uma plateia

que os cobrava insistentemente. Até que pela porta do

auditório irrompeu um senhor trajando terno que se

instalou no centro da mesa, identificando-se como in-

fectologista chefe de não lembro onde. E, assim como os

outros, não nos proveu de sua sabedoria, pelo contrário,

provou uma vez mais que os técnicos não tinham as de-

vidas respostas. Depois de algum tempo, o coordenador

deu por encerrada a mesa, pelo motivo de haver outra

a seguir, no mesmo local. Ao que minha nova amiga co-

lombiana disparou:

– Aeee, brasileño. No te lograram a responder nada!

Por que no insististe?

E eu, sentindo-me um impotente soberano:– Não insisti porque eles não sabem nada. Se não

sabem nada é porque não têm dados. Se não têm dados é

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porque não há pesquisas. E se não há pesquisas é porque não existe o menor interesse na qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV.

Aí foi o máximo, assim que a mesa foi encerrada, fui literalmente cercado por pessoas de todas as partes que me entregavam cartões de visita e me parabeniza-vam pela participação. Mas também tem o outro lado, aquele que supera o brilho leonino: foi comprovada uma vez mais a relevância do tema, o quão importante ele era dentro da estratégia para enfrentar a epidemia de AIDS e o pouco caso que a área governamental fazia.

O congresso transcorreu com mais algumas discus-sões bem calientes, inclusive no sentido literal da pala-vra, pois a febre não me dava sossego. Era dipirona de tarde e à noite, invariavelmente, e, por vezes, tinha uma dose no café da manhã. Era um profundo incômodo, suava muito e me sentia muito cansado, apesar da exci-tação de estar naquele evento. Tão excitado que quase fui preso com Regina Pedrosa, outra ativista brigona, a quem respeito uma barbaridade, por causa de uma briga que travamos com um motorista de táxi pilantra, na por-ta do centro de convenções. Foi preciso que viesse um representante do congresso para mediar a situação e nos livrar dos policiais, que estavam prontos para nos levar em cana. Por fim, fiz a apresentação do nosso trabalho, o que me rendeu um convite para apresentá-lo em Sal-vador e, por fim, saímos de Cuba, extasiados pela expe-riência maravilhosa de ter conhecido a Ilha, sua história e seus alegres, receptivos, e sensuais moradores.

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NÓDULOS E ACARAJÉS

Voltei para a minha querida Ilha de São Vicente ar-dendo em febre, que agora era quase contínua e sem-pre acima dos 38°, por vezes beirando os 40°. E dá-lhe exame disso, exame daquilo e nada de um diagnóstico preciso, enquanto eu emagrecia a olhos vistos e minha cor já não era das mais saudáveis. Diante desse quadro, aos 14 de junho de 2003, recebemos a premiação das So-roptimistas, na Câmara Municipal de São Vicente lotada de autoridades, pessoas de expressão na sociedade local e muitas das beneficiadas pelo nosso e outros projetos sociais. Eu estava vestindo um terninho azul e suando em bicas, tremendo muito, não de nervoso por meu pai também estar sendo homenageado na mesma cerimô-nia, em razão do seu trabalho, mas porque naquela noi-te eu me sentia especialmente desconfortável, a febre parecia ter aumentado bastante. Chegada nossa hora, anunciaram pai e filho, sob os aplausos dos presentes. Recebemos, cada um, uma bela placa e um distintivo da organização que nos distinguia com a honraria. Foi bem emocionante estarmos ali, eu e meu pai, homenageados juntos, no lugar onde ele tanto bem fez a muita gente. Voltei para meu lugar, onde pedi à minha mãe e minhas queridas amigas Eunice e Diadenir:

– Não aguento mais, tenho que ir embora.Elas, assustadas com meu aspecto, concordaram de

pronto e me ampararam na saída, sob os olhares apreen-sivos de todos. Já havia passado por algo parecido em 89, naqueles premonitórios sonhos da assembleia de bancários, e a associação com esse fato me aterrorizava novamente. E a Tal apareceu refletida no espelho do ele-vador, rindo largamente:

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– Agora eu te pego, você nem imagina o que prepa-rei pra você.

Chegando em casa, minha mãe trouxe o termôme-tro e aí foi dada a explicação de tamanho desconforto:

– Beto, você está com 40,4°!Ligamos àquela hora da noite para o doutor Ca-

seiro, que indicou um reforço na dipirona e pediu que eu fosse, às primeiras horas da manhã, para o Hospital Guilherme Álvaro, em Santos, onde eu passaria por uma consulta de emergência com ele. Quando ele me pediu para tirar a camisa, viu exposto um caroço no peito, per-to do pescoço, que eu nem havia notado.

– Já para a biópsia! E faz esse ultrassom.Biópsia? Era um nome quase tão feio quanto câncer

e, com o coração novamente apertado, fiz os exames, que foram seguidos por dias de angústia à espera de um re-sultado que diagnosticasse, em definitivo, aquele mal que me consumia desde o início do ano. E ele veio: nódulos. Nódulos no pescoço, nódulos na garganta, nódulos no pulmão, nódulos no fígado, nódulos no baço, nódulos no retroperitônio e nódulos na virilha. Nódulos por todos os lados, como diriam os Titãs. Caseiro não entendia:

– Betão, nunca vi algo parecido. Com seu nível de imunidade é muito difícil ter um caso de linfoma.

Um tumor. Um, o cacete, uma porrada deles. Eu e minha mãe nos entreolhávamos como quem se pergunta se um dia isso tudo teria fim, enquanto a Tal gargalha-va, como quem comemora sua definitiva vitória sobre alguém perplexo diante do poderio de fogo do inimigo. Câncer. Lembro-me do tempo que essa palavra sequer era pronunciada, as pessoas diziam “aquela doença” ou “a coisa ruim”.

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– Beto, vou encaminhar você para um especialista amigo meu, na Santa Casa de Santos, o Nicolau. Ele é um dos melhores hematologistas que conheço e vai poder tratar seu caso com o cuidado que merece.

Engraçado, a primeira coisa que pensei naquele momento foi na apresentação que eu faria dali a alguns dias, em Salvador. E decidi que minha atuação social, juntamente ao tratamento, seria fundamental para supe-rar mais esse desafio, além do que, comer uma boa fri-tada em Itapoã poderia me ajudar a digerir tudo aquilo.

– Marcão, tem o seguinte. Tenho um compromisso em Salvador e em uma semana tô de volta. Acho que vai ser até legal pra colocar a cabeça no lugar e adequar minha vida.

Após muitos protestos, minha mãe e Marcão viram que nada iria me fazer cancelar a ida para a Boa Ter-ra. Acertamos que dali a uma semana eu iria ver o dou-tor Nicolau, o Terror das Neoplasias. Eu e minha mãe saímos do consultório, inconformados. Câncer, tumor, neoplasia são vários nomes para uma situação que só ti-nha um sentimento: impotência.

Ainda assim, fui a Salvador quase pagando excesso de bagagem, de tanta dipirona, enquanto lembrava que esse excesso já havia sido de preservativos, num passa-do distante... O Encontro Estadual de Assistentes Sociais foi recheado de boas apresentações, incluindo a nossa, que foi bastante aplaudida e que gerou várias rodinhas deliciosas de afagos d’alma. Tenho saudades daquelas pessoas que tanto carinho me deram, em um momento em que meu futuro estava ameaçado, uma vez mais.

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NICOLAU, POR QUE FOGES?

Voltando para casa, fui conhecer meu novo médico na Santa Casa de Santos, doutor Nicolau. Um doc que era chamado de professor por seus colegas de profis-são, o que era um alento. Uma vez mais, eu estava sen-do acompanhado por um excelente profissional, apesar de carrancudo. Ele é da escola do doutor House, tinha sua atenção voltada somente para os exames, pois os pacientes mentem e atrapalham o tratamento. Ao olhar para ele, lembrei da piadinha, em que Jesus chama João e pede que beije sua mão, chama José e pede que bei-je seu pé e, surpreso, pergunta: por que foges, Nicolau? Após analisar os exames, ele confirmou o que o Caseiro já havia dito e detalhou:

– Senhor Luiz, seu caso é bastante sério. O senhor tem um linfoma de Hodgkin que está estadiado em quatro, já que o senhor apresenta nódulos desde o pescoço até a virilha.

– E até quanto vai essa escala, doutor?– Até quatro.Após uma breve pausa, tempo suficiente para ouvir

a gargalhada da Tal, perguntei:– Doutor, o que o cigarro tem a ver com esse tumor?– O linfoma é um tipo de tumor que não tem ori-

gem no fumo. E no seu caso está associado à baixa imu-nidade. É coisa do HIV.

– Mas, doutor... a minha imunidade está ótima, o próprio Caseiro disse isso!

E Nicolau, achando muito baixo meu CD4 de 400 cópias:

– Não senhor, é do HIV, porque seu CD4 não está nos níveis normais.

122 MORTE E VIDA POSITHIVA

Eu, cá comigo pensei: isso está me parecendo coisa

nova, lá vai o ratinho de laboratório de novo entrar em

ação. E ele continuou:

– Resta-nos saber se esse linfoma atingiu a medula.

O senhor vai ter que fazer uma biópsia.

– Ok, doutor. Vou fazer o mais rapidamente possível.

– Mas, fique sossegado. O linfoma é o tipo de tumor

com maiores chances de cura e, se fizermos tudo corre-

tamente, em seis meses o senhor estará liberado.

Isso nos alentou um bocado, em casa, gostamos da

certeza que ele demonstrou ao falar que havia cura e que

seria breve. Saí do consultório e tratei de providenciar o

exame, que foi feito na própria Santa Casa, dias depois.

Deitado no leito de um apartamento, eis que entra um

Apolo de jaleco que me fez pensar por alguns momentos

que a anestesia seria dispensável.

– Bom dia, sou o doutor Apolo Coxão. O senhor fez

alguma biópsia anteriormente?

Tentando ocultar o quanto estava babando por ele,

respondi que não, e ele me explicou o procedimento,

pedindo-me para virar de bruços. Após a aplicação da

anestesia local, ele começou a perfurar o osso do meu

quadril com uma espécie de saca rolhas, para atingir a

medula. Pense em uma fratura ou em um chute bem

dado no saco, a dor era mais ou menos por aí. Aquela

anestesia devia ser placebo, comecei a morder com for-

ça a toalha que a enfermeira havia me dado e as lágrimas

começaram a brotar por todo meu corpo. Minutos inter-

mináveis de uma dor que, de repente, deu uma trégua.

Ufa, pensei, até que não demorou tanto assim. Mas meu

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novo deus olímpico me surpreende e fala baixinho ao

meu ouvido:

– Agora vai doer um pouquinho.

Quando ele começou a aspirar a medula, parecia

que minha alma estava saindo por ali, ao ponto de quase

perder os sentidos, mas o medo de não acordar mais me

manteve lúcido. Enfim, a dor cessou – assim como veio,

foi –, o exame havia acabado. Olhei para ele e só tive

forças para murmurar:

– Foi bom pra você?

Ao que ele respondeu, sorridente:

– Foi exatamente o que eu esperava.

De posse dos resultados, voltei ao doutor Nicolau.

– É, senhor Luiz, eu temia isso. Sua medula está

seriamente comprometida, nós vamos ter um pouco de

trabalho para resolver e o senhor vai ter que seguir cor-

retamente o que for prescrito. Seu tratamento irá levar

de seis a oito meses, com duas sessões de quimioterapia

ao mês. Serão formulações bem fortes, devido ao estágio

em que se encontra a doença, e ao final de 12 sessões,

vamos ver a resposta que seu organismo produziu. Esse

é o receituário para a primeira sessão, leve à enferma-

gem e marque o mais rapidamente possível.

Bem, até que não era tanta coisa como eu estava

imaginando, tipo várias vezes por semana. Tudo bem,

seriam doses fortíssimas, mas haveria um ponto final e

isso era bálsamo para meus ouvidos. Fui à enfermagem

e entreguei à sorridente enfermeira, que pegou o livro

de agendamentos e, após analisar a prescrição, olhou

para mim e perguntou:

124 MORTE E VIDA POSITHIVA

– É uma sessão por mês, não é, senhor Luiz?

– Não, querida, são duas.

Pronto, o sorriso se foi. Não conseguindo disfarçar

uma reação de quem acaba de receber a notícia da morte

da melhor amiga, questionou em tom de lamento:

– Mas por que tão forte assim?

– Deve ser porque tá estadiado em quatro, baby...

– Nossa!

Esse foi apenas o começo de vários tropeços da

humanização na assistência hospitalar e foi agendada a

primeira sessão: segunda-feira, 14 de agosto. No dia se-

guinte ao meu aniversário, eu seria submetido à primei-

ra sessão de ‘químio’, aquela que, como um bom sutiã, a

gente nunca esquece. Mal apagaria a velinha e já estaria

novamente lutando para acender a próxima.

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TUMOR COM HUMOR

Tive um dos mais festivos aniversários em minha vida, com dezenas de familiares, pessoas muito queridas e que vieram até do Rio de Janeiro, como meus queridos Mário e Mônica. Tomei minha caipirinha de despedida e com ela brindamos mais um ano vitorioso que, certa-mente, viria. No dia seguinte, eu e mamis fomos ao blo-co F da Santa Casa, ansiosos pelo desconhecido mundo da oncologia, onde fui instalado em uma sala com várias pessoas submetidas à quimioterapia. Foi quando chegou uma enfermeira carregando uma bandeja cheia de tubos e se dirigiu a mim:

– Boa tarde, seu Luiz. Então, vai cortar o cabelo quando?

Ela se referia a meus longos cabelos em fio reto, cultivados nos últimos dois anos. Sem saber se ria ou chorava, respondi:

– Ué, precisa? Falaram pra mim que cai tudo sozinho!Pronto, estava instalado o antídoto para aquela si-

tuação: o bom humor, ainda que sombrio. O rapaz a meu lado estourou em uma sonora gargalhada, ao que a en-fermeira imediatamente se desculpou e, constrangida, iniciou a medicação. As pessoas da sala faziam de conta que liam revistas antigas, quando na verdade estavam ruminando seus fantasmas e eu pensei que não passa-ria meses naquele ambiente depressivo: nem morta! Vi-rei-me para o cara que havia dado risada e puxei papo, soltando a primeira piadinha com uns dois minutos de conversa. Com isso, a senhora ao lado dele deu risada e assim foi até o final da tarde, quando eu já soltava piadas de câncer, as mais obscuras possíveis!

126 MORTE E VIDA POSITHIVA

– Qual é a música tema do câncer de mama?– A saudosa Clara Nunes: era um peito só, cheio de

promessa, era só...O ambiente era outro, completamente diferente do

início da tarde, com mulheres sem mamas ao meu lado, quase se urinando de tanto rir. Foi quando uma enfermei-ra chegou por trás de mim e sussurrou ao meu ouvido:

– Seu Luiz, acho que o senhor não deveria contar piadas assim para esse tipo de gente.

Esse tipo de gente? Esse tipo de gente, ela quis di-zer? E a joguei no mundo da vulnerabilidade:

– Meu amor, esse tipo de gente é igual a você, só muda a cor da roupa e a qualquer momento você poderá estar do lado de cá. E outra, no início da tarde havia uma doença oprimindo todo mundo, agora está todo mundo tirando um barato na cara dela. Isso vira o jogo.

Assim começou minha ‘rotina’ no bloco F: eu apon-tava no corredor e alguém gritava “olha ele aí!”. Tam-bém, só com bom humor para aguentar as fortíssimas aplicações, que me derrubavam e me faziam sair de lá muito enjoado e extremamente fraco. Na volta para casa, invariavelmente, passávamos em uma casa de esfihas, onde minha mãe comprava uma bandejona cheia delas para levar para casa. Mas como, eu não estava enjoado? Ahá! Aí entrava novamente minha arma secreta, porque ilegal. Assim que chegávamos em casa, já havia um belo baseado prontinho para ser fumado e, assim que eu dava as primeiras tragadas, o desconforto passava quase que por completo. Dali a meia hora eu perguntava:

– Mãe, onde estão aquelas esfihas?Não sobrava carne sobre carne, queijo sobre queijo.

O uso da maconha durante meu tratamento foi funda-mental, pois perdi muito peso, chegando abaixo dos 50

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quilos, além de ter alterado meu hemograma, cujos nú-meros desciam a níveis irrisórios, após cada aplicação, e subiam a patamares estratosféricos, após tomar dez in-jeções na barriga, aplicadas entre uma ‘químio’ e outra, para elevar tanto série vermelha quanto branca. Se eu não tivesse me alimentado muito bem, talvez não tives-se colhido resultados tão bons como foram. Mas, mesmo com remédios e maconha, ainda faltava alguma coisa, era uma situação bastante complexa ter AIDS e câncer, então não tive dúvidas: hora de apelar para o etéreo.

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SE EU QUISER FALAR COM DEUS

Não que Ele nunca estivesse presente, pelo contrá-rio, o que não faltou foi ajuda de tudo que é crença ou divindade. Minha mãe se apegou à Nossa Senhora e a Santo Expedito o tempo todo, amigos e familiares co-locaram meu nome no centro, no culto, na novena, na gira, em tudo que é lugar sagrado. Eu nunca havia toma-do iniciativas nesse campo e me parecia claro que aque-le seria um bom momento. Alguém me recomendou um santuário famoso, no interior de São Paulo. Com fé, eu fui, pois a fé não costuma falhar. Lá chegando, pude ver um enorme painel com capas de revistas, matérias em jornais sobre casos de cura, especialmente de atletas de ponta. Isso reforçou meu otimismo e me acomodei na nave do templo, junto com dezenas de outras pessoas que estavam com o mesmo propósito.

Após uma longa preleção do líder espiritual, passa-mos todos por consultas individuais com o doutor Fritz e fomos direcionados para nossos quartos, onde seriam rea-lizadas as cirurgias. Eu estava terminando de desfazer mi-nha pequena mala, quando chega uma esbaforida senhora dizendo que eu não poderia fazer a cirurgia ali, que seria feita à distância. Era quase final de tarde e, não entendendo o motivo para essa novidade, pedi para falar com o tal líder espiritual, até que, após muita dificuldade, consegui falar com a esposa dele, que me revelou o motivo:

– É que no caso de AIDS, o procedimento é feito à distância.

Mais essa agora, eu estava sendo vítima de precon-ceito espiritual! Após várias argumentações de minha parte e de contra argumentações da parte dela, eu come-

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cei a ameaçar com imprensa e polícia, enquanto ela ten-tava falar com o marido. Até que ficou acertado que eles me hospedariam no hotel que havia ao lado do santuário e lá seria feito o procedimento. Eu estava exausto e aca-bei concordando, mas durante aquela noite, tive que re-petir seguidamente para mim mesmo, como um mantra:

– Isso é coisa do plano terreno, não é do plano es-piritual; isso é coisa do plano terreno, não é do plano espiritual...

A cirurgia foi feita na manhã seguinte e fui à pre-leção final, onde estavam algumas pessoas que eu ha-via conhecido quando cheguei e que ainda não sabiam o motivo de eu ter desaparecido. Contei o ocorrido, para indignação geral. Aí, entrou o líder espiritual que, após agradecer a todos e falar algumas palavras de estímu-lo, foi tomado pelo espírito de Frei Damião, que havia vivido na França do século XVIII. Acontece que esse frei teve como missão a luta contra a hanseníase, que era muito mais estigmatizada do que nos dias de hoje, e ele teria sofrido muita discriminação por trabalhar com esse público. E deu um baita sermão no tal líder espi-ritual que queria distância de mim, ao que meus novos amigos me cutucavam, rindo:

– Olha aí, Beto, cavalo que não marcha direito é castigado!

Mesmo com essa desastrosa experiência, eu conti-nuava sentindo necessidade de um auxílio celestial, até que lembrei da Bruxa, amiga minha da sala HIV da in-ternet. Na verdade, seu nome é Edi, mora na zona nor-te de Sampa com sua mãe, seu marido Washington e a bela Cibele, onde também funciona um centro de magia que trabalha os evangelhos, cabala, linhas da umbanda,

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inclusive a de esquerda e cigana. Claro, não seria uma igreja ou um centro convencional que iria me fazer ade-rir a um tratamento espiritual e ali eu senti uma ótima vibração. Então ficou acertado que eu faria 21 cirurgias espirituais com guias diversos. Mas quem me conduziu foi outro espírito de luz: Rosane, querida amiga Dengo-sa, da salinha HIV e da ONG, que se ofereceu para me levar e trazer de carro a cada uma delas, subindo a serra, atravessando Sampa de sul a norte, e voltando, por vezes de madrugada, comigo combalido a seu lado. Serei eter-namente grato a esses dois anjos, por tudo que fizeram por mim: muito obrigado Bruxa e Dengo.

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HÁ FLORES POR TODOS OS LADOS

Voltando ao plano terreno, no início do tratamento, eu sentia cada fio de cabelo tremer de medo pelo que poderia acontecer, as palavras da enfermeira na minha primeira sessão ainda ecoavam em minha cabeça. Eu ti-nha em minha formulação a tal dacarbazina, um frasco vermelho como fogo que seria um dos maiores respon-sáveis pela queda dos cabelos. Fiz a primeira sessão e nada aconteceu, mas um belo dia, após a segunda apli-cação, eu fui tomar banho e, ao passar os dedos pelos cabelos, um senhor chumaço saiu em minha mão. Era de se esperar, conformei-me, já imaginando o visual que eu iria adotar quando ficasse com a cabeça brilhando. Após a terceira sessão, decidi cortar o cabelo, pois não aguentava mais o ralo do box entupido a cada banho. Marquei hora em um salão onde nunca havia pisado e, ao me sentar na cadeira para lavar os cabelos, que ficava bem pertinho do movimentado cantinho das manicures, eu falei baixinho para o cabeleireiro:

– Eu vou te mostrar uma coisa antes de lavar, para que você não pense que fez uma grande bobagem ou que está em uma pegadinha.

E, com a maior tranquilidade, puxei um monte de cabelos entre os dedos. Ele não conseguiu disfarçar o verdadeiro terror que sentiu e, ao dar uma olhada de canto de olho, percebi que todas as manicures e suas clientes haviam parado de falar e expressavam o mes-mo sentimento.

– Fiz minha segunda sessão de quimioterapia e co-meçou a cair legal, então gostaria de deixá-lo mais curto, até chegar a hora de raspar.

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O rapaz recuperou-se prontamente, ainda que con-doído e voltei meu olhar para a mulherada, que conti-nuava petrificada e para as quais declarei, sem cerimô-nia, minha indignação:

– Logo agora que tinha conseguido deixar fio reto, pode?

Foi muito engraçado o que sucedeu, elas viraram os rostos e retomaram a conversa como quem nada ha-via visto ou ouvido, sob risos meus e do cabeleireiro. Também foi nessa época que eu e Fagundes nos sepa-ramos. Não havia mais sexo e nem afeto, portanto, não havia motivos para continuarmos juntos. Ao contrário da AIDS, o amor tinha cura!

Na quarta sessão, os cabelos começaram a cair de-mais e as falhas ficaram tão evidentes quanto a necessi-dade de raspar a cabeça. Ao contrário de uma persona-gem de novela que, literalmente, se descabelava ao som de uma ópera qualquer, fui ao barbeiro de meu pai, que raspava a cabeça com navalha, de onde saí com a careca brilhando. Fui direto para uma joalheria, onde comprei um par de argolas de ouro. O cigano, o pirata, o des-lumbrado, cada dia um novo personagem me ajudaria a superar a fraqueza, afinal, perdi cerca de 20 quilos, com maconha e tudo! Foram-se também todos os pelos de meu corpo, inclusive os cílios, restando uma tênue linha no lugar das sobrancelhas. Até que em uma bela tarde no bloco F, reparando o desproporcional número de mulheres em tratamento, falei para minha mãe:

– Mãe, na minha última sessão eu vou trazer uma braçada de rosas para essa mulherada.

Adivinhem em que dia caiu minha última sessão? Exatamente, no dia 8 de março de 2004, Dia Interna-

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cional da Mulher. Foi uma choradeira sem fim naquele corredor. Lembro muito bem de uma humilde senhora de uns 70 anos que pegava um trem e dois ônibus para fazer um tratamento cruel e que, ao receber a flor, me olhou com os olhos cheios d’água e disse:

– Filho, é a primeira flor que recebo em toda minha vida.

Não consigo traduzir meu sentimento naquela hora, ao mesmo tempo, felicidade por poder proporcionar essa alegria, ainda que no crepúsculo da vida, mas também tristeza, por imaginar a dureza da vida daquela mulher. Só sei que nos abraçamos e choramos como duas crian-ças, assim como todos ao nosso redor. E, com essa eterna lembrança no coração, terminei a tão temida quimiotera-pia com resultados sensacionais, provocando uma baita festa com meu querido Marcão e alegre indiferença por parte de Nicolau. Duas formas de praticar medicina, duas maneiras de se relacionar com o ser humano.

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FOI UM ARCO ÍRIS QUE PASSOU EM MINHA VIDA

O restante do ano foi dedicado ao meu restabele-cimento físico e ao Hipupiara, cada vez mais projetada nacionalmente como uma ONG de perfil político e que cada vez mais interferia nas políticas públicas em saúde e cidadania. Estava retornando de um evento no interior do estado com duas pessoas fofas, técnicos do governo do estado de SP, Miguel e Caio, quando me deu um click:

– Caio, ainda tem dinheiro para financiar projetos estratégicos?

– Depende do projeto, no que você está pensando?– Minha cidade é referência em simpatia à popula-

ção LGBT e nunca teve uma parada gay.– Escreve e manda para a gente analisar.Assim o Hipupiara, em parceria com a ONG APIS,

dos queridos Caetano e Gladys, lançou a semente da 1ª Parada da Diversidade da Costa da Mata Atlântica, que foi programada para domingo, 11 de julho de 2004, final de semana prolongado, em razão do feriado estadual da Revolução de 32. Deu a maior trabalheira, foram feitos contatos com várias instituições de Sampa, dentre elas a Associação da Parada de SP, que nos emprestou sua enorme bandeira de arco íris. Tudo programado, várias excursões esperadas e, na quinta-feira, véspera do fe-riado, tivemos a última reunião, à noite, para acertar os detalhes finais para domingo, quando ouvimos uma ba-rulheira enorme vindo lá de fora. Ao sairmos, sentimos o forte vento que arrastava galhos e vários objetos pela rua. Sim, o tempo estava mudando drasticamente.

O sol que reinara até então e as temperaturas ame-nas haviam dado lugar a muita chuva e forte queda na

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temperatura, causadas pela entrada de uma frente fria.

Uma a uma as excursões foram canceladas e dois dos

três trios elétricos agendados também declinaram de

suas participações. Tudo estava prestes a ruir e o do-

mingo parecia um pesadelo com chuva fina, 11° de

temperatura. Ao invés de um trio elétrico, estava lá um

fusquinha verde de propriedade de um pré-candidato a

vereador, tocando Celi Campelo. Eu me beliscava na es-

perança de acordar e tivemos que pegar o carro de um

amigo para ver o que estava acontecendo com o trio que

não chegava. Após quase brigar com os mecânicos, que

alegavam que seria difícil que o caminhão saísse, enfim

o trio foi levado para a praça.

Assim que o trio tocou a primeira música, foi como

o milagre da multiplicação do glitter: debaixo dos toldos

e de dentro dos bares começou a sair a legião do arco

íris, gritando de alegria por ver que a parada iria aconte-

cer, mesmo sob as mais adversas condições climáticas.

Assim, cerca de duas mil pessoas soltaram o lastro para

gritar contra o preconceito, com direito a uma parada

estratégica em frente aos edifícios na praia do Itararé,

onde moram muitos políticos e formadores de opinião

que estão sempre encrencando com o bolsão dos quios-

ques, um dos mais tradicionais pontos GLS do litoral

brasileiro. Eu, todo de couro, bradava ao microfone:

– Senhores moradores e senhoras moradoras do

Itararé, se algum dia o seu filho ou sua filha for assas-

sinado na porta de casa, pensem que esse assassino po-

deria estar empregado no turismo! Quem quer sossego

não deveria morar em frente ao maior ponto turístico

da cidade!

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Chegando ao final, perto do Quiosque da Cris, hou-ve uma baita festa e, enfim, minha querida cidade estava no mapa do arco íris e nosso coração se deixou levar. Logo após a prestação de contas com o Estado, a ONG solicitou reunião do Fórum de ONGs/AIDS da Costa da Mata Atlântica, colegiado proposto e presidido pelo Hi-pupiara, para iniciar a organização da segunda edição da parada para o coletivo de ONGs da região. Afinal, nossa intenção era a de fomentar ações nessa área, porque a nossa luta é contra a AIDS. Infelizmente, o Fórum não teve vida longa, muito desentendimento pela disputa de uma verba norte-americana fez com que diferenças se acentuassem e não houve mais entendimento. A para-da, então, passou a ser organizada por uma ONG LGBT sempre cercada de mistérios e, claro, deu titica. Palavras de ordem como “O mundo é gay” e “Vocês vão ter que nos engolir” afastaram vários apoiadores e hoje, infe-lizmente, ela não é mais realizada. Foi um arco íris que passou em nossas vidas e nosso coração se deixou levar.

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MEDALHA, MEDALHA, MEDALHA

Em setembro, iria acontecer o Congresso Paulista de Infectologia, com médicos, outros profissionais de saúde e ativistas. Como ele aconteceria em Santos, fui escolhido pelo movimento para representar as pessoas com HIV na mesa de abertura e, mal havíamos sentado, o orador chamou meu nome como primeiro a ocupar a tribuna e fazer a saudação ao público. Surpreso, lá fui eu:

– Boa noite, senhoras e senhores membros da mesa e participantes do Congresso. Quem me conhece sabe que eu gosto muito de piadas, então resolvi começar mi-nha fala com uma: ‘Joãozinho chega da escola, confuso, e pergunta ao pai: Pai, hoje a professora deu uma aula que eu não entendi nada do que ela falava. Era sobre ética, o que é isso? Ao que o pai, após refletir, responde: Pense que uma velha senhora faça uma compra de cinco reais em nossa loja e, por engano, entrega uma nota de 50. Aí entra a ética, o papai divide com o sócio’.

Gargalhadas generalizadas e aí eu comecei a des-cer o cacete em laboratórios, gestores, profissionais de saúde, médicos, pessoas com HIV, ONGs... Não dava pra aliviar pra ninguém, afinal, nuvens sombrias pairavam no horizonte da luta contra a AIDS, como a crescente es-cassez de financiamento e a crescente invisibilidade do assunto. Depois disso, o evento transcorreu e eu, quan-do não estava em alguma palestra, levava meu Ossinho para uma volta pelo pavilhão de pôsteres:

– O doutor sabe o que é isso?Mas nosso grande momento naquele congresso ain-

da estava por vir. Um laboratório farmacêutico trouxe uma infectologista de renome, doutora Márcia, para fa-

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lar sobre os avanços da medicina na área da AIDS, sendo que seria servido um lanche de brinde a cada participan-te. Como a palestra era na hora do almoço, todo mundo foi para o auditório principal para economizar grana, en-quanto ela discorresse sobre o tema. Meus queridos arau-tos do sul, Beatriz e Rubens, haviam me alertado com re-lação a uma fala da doutora em que ela culpava as pessoas com HIV pela não adesão ao tratamento. Sendo assim, instalei-me na primeira fileira, bem no centro, de onde a ouvi falar dos avanços dos medicamentos e do próprio conhecimento sobre a doença, até que ela soltou:

– O problema pela não adesão ao tratamento é que as pessoas com HIV não querem tomar o remédio.

Assim que foi aberto o debate, para variar um pou-co, minha mão foi a primeira a ser levantada. Cumpri-mentei-a, ao que fui retribuído com a lembrança das duas oportunidades em que havíamos nos encontrado e discutido sobre efeitos colaterais, e comecei:

– Doutora, eu tenho uma pergunta e um desabafo. Minha pergunta: por que eu fico resistente aos medica-mentos com tanta facilidade, se eu faço o tratamento direitinho, desde que tinha só o AZT e o 3TC? Antes de desabafar, gostaria de reafirmar minha grande admi-ração pela atuação da doutora no combate à epidemia, tanto que tenho algumas edições de seu Manual de HIV/AIDS. Por isso mesmo, eu fico profundamente contra-riado quando ouço da sua boca que nós temos culpa pela não adesão ao tratamento. Nós acabamos de nos livrar da culpa pela infecção e agora teremos que nos virar com a culpa pela não adesão ao tratamento? A gente não vive só com AIDS, doutora, a gente vive com problemas de família, de trabalho, afetivos, sociais, sexuais... É a soma

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disso tudo que vai facilitar ou não para que as pessoas tomem os remédios.

Palmas generalizadas e uma expressão de constran-gimento da parte dela, uma fortaleza a quem respeito muito até hoje. Ela responde:

– Beto, infelizmente, não tenho boa resposta para sua pergunta. Hoje é sabido que as pessoas que participa-ram da primeira fase da epidemia, onde tudo era tentati-va e erro, carregam consigo uma espécie de cicatriz que as torna mais suscetíveis à resistência viral. E, ao ouvir minhas palavras vindas de sua boca, percebi o erro que estava cometendo, retiro o que disse e peço desculpas.

Aí, sim, o auditório veio abaixo. Doutora Márcia é extremamente respeitada em seu meio, por sua compe-tência e assertividade em suas colocações. Acho que foi a primeira vez que ela se retratou publicamente em um evento de tamanha magnitude, tanto que, assim que to-dos foram liberados para saírem do auditório, o presiden-te do laboratório que a trouxe me procurou e me deu um forte e prolongado abraço, sussurrando em meu ouvido:

– Você fez a doutora Márcia se retratar publica-mente, merece um troféu!

Em outro evento, este no Rio de Janeiro, em de-zembro, o então coordenador do Programa Nacional de AIDS, doutor Chequer, me chama de canto e diz:

– Beto, quero dar uma notícia em primeira mão: es-tamos publicando, semana que vem, a portaria com os procedimentos para combate à lipodistrofia a serem in-cluídos no SUS. Preenchimento facial com metacril, ci-rurgias de mama, de giba. Sua insistência nesse tema foi decisiva para que ela existisse, fiz questão de que você fosse a primeira pessoa a saber disso.

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Medalha, medalha, medalha, como diria Mutley, o cachorro do Dick Vigarista. Essas eram as minhas, as que se ganha ao vencer um sistema que faz de tudo para que as coisas andem para trás.

Com essa coleção de conquistas, o Natal foi de uma revigorante calmaria, daquelas que precedem a tempes-tade. Uma tempestade simultânea ao furacão Katrina, que em 2005 devastou Nova Orleans, e que teve um im-pacto semelhante em nossas vidas. Tudo viraria de pon-ta cabeça naquele ano que estava prestes a iniciar.

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ROBERT GALLO, MY ASS!

E o ano já começou desafiador, com dois integran-tes do projeto de confecção mostrando sua verdadeira face e causando o maior estrago nas relações entre os demais membros da ONG. Apesar das cicatrizes, as coi-sas se normalizaram e várias conquistas foram somadas ao respeitado histórico da instituição. Paralelamente, minha atuação na Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV, a RNP+BR, também se tornava cada vez mais intensa, a luta pela atenção aos efeitos colaterais havia me dado bastante visibilidade e até hoje desconheço quem fale de disfunção erétil, por exemplo, na primeira pessoa do singular.

No meio desse rebuliço todo, aconteceu a 3ª Confe-rência da Sociedade Internacional de AIDS, que congre-ga médicos, cientistas e outros deuses de todos os mun-dos, trazendo o Olimpo para o Rio de Janeiro. Como era um evento internacional, os EUA impuseram um siste-ma de segurança padrão WTC, com chips nos crachás, permitindo que fôssemos monitorados passo a passo. Eu e o saudoso Júnior, de Ribeirão Preto, havíamos enchido tanto o saco da organização da conferência que conse-guimos 20 bolsas para ativistas do Brasil.

Dias antes do evento, o doutor Robert Gallo, su-postamente um dos cientistas que identificaram o HIV, foi entrevistado pela jornalista Roseli Tardelli, para a Agência de Notícias da AIDS. Nessa entrevista, ele havia declarado que era uma irresponsabilidade a distribuição universal do coquetel, que isso acarretaria problemas com resistência viral e tal. Quando foi questionado so-bre o que fariam as pessoas que não tinham condições financeiras para comprá-lo, ele foi taxativo.

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– Poor people? Poor people, my ass!

Em uma tradução livre, que as pessoas pobres se

danem! Ah, não tivemos dúvidas, o Hipupiara mandou

confeccionar e eu levei comigo uma baita faixa com os

dizeres, em vermelho sangrento:

– Robert Gallo, my ass!

Foi impressionante o que aconteceu, após efetuar

os registros na conferência postamo-nos na entrada do

gigantesco pavilhão principal do Riocentro, com a fai-

xa estendida. O apoio dos médicos a nossa afirmação

foi unânime, muitos nos abraçavam e tiravam fotos em

apoio à campanha para que aquele ser desumano reflita

antes de sentenciar à morte milhões de pessoas, um ar-

remedo de Adolf Hitler vestido de branco.

Também foi muito interessante frequentar mesas

técnicas sobre efeitos colaterais, resistência viral, ações

comunitárias. Mas tinha um lugar onde eu, volta e meia,

dava um pulinho, o bom e velho pavilhão pôsteres. Eu

ia com meu indefectível jaleco e também o estetoscópio,

munido de uma bengala em uma mão e Ossinho na outra,

interpondo-me no caminho dos doutores e questionando:

– Do you know what this is?

A partir dessa abordagem, as reações eram as mais

diversas, de espanto ou repulsa até a fria curiosidade.

Normalmente, rolava um bom papo sobre eventos adver-

sos, avanços da medicina e as necessidades das pessoas

com HIV. Para falar a verdade, através dessas conver-

sas, eu aprendi muito mais que nas palestras ou mesas

redondas, até que chegou a mesa de encerramento. Eu

e o igualmente saudoso ativista carioca Marcelinho nos

sentamos em uma das primeiras fileiras laterais do au-

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ditório principal, junto com cerca de quatro mil pessoas

que aguardavam as palavras finais e o show de Caetano

Veloso. O evento era top, então teria que rolar alguma

manifestação, mesmo que improvisada. Assim que o

mestre de cerimônias deu o seu “Good evening ladies

and gentlemen”, nós nos entreolhamos e, sem pensar,

levantamos e fomos para a frente da mesa com a faixa

do ‘my ass’ estendida. Fomos bastante aplaudidos pelos

elogiosos dizeres a Robert Gallo, mas nenhum dos dois

falava inglês fluentemente e estávamos nervosíssimos.

Mas isso não impediu que déssemos o recado em nosso

‘portunglês’ sobre a qualidade de vida das pessoas com

HIV e os efeitos colaterais. Cheguei bem perto do então

Ministro da Saúde, Saraiva Felipe, e quase esfreguei o

providencial Ossinho na cara dele:

– Senhor ministro, a gente não está falando de diar-

reia e vômitos. Nós falamos de cânceres e danos ósseos,

como esta minha cabeça de fêmur!

Yes! Aplauso geral por parte dos presentes. Retor-

namos a nossos lugares, vitoriosos, ao menos nós dois

havíamos feito nossa parte. Um a um os oradores dis-

cursaram, agradecendo a participação de todos, até que

a então representante da ONU para a AIDS na África

descreveu, com fortes tintas, os sete maiores proble-

mas a serem resolvidos naquele continente, sendo que

dois deles me tiraram do sério. O primeiro foi o proble-

ma das mulheres, que ela destacou dizendo que havia

inúmeras comunidades onde só havia homens adultos,

todas as mulheres haviam morrido em decorrência da

AIDS. O outro foi sobre os órfãos da AIDS, quando ela

transportou a todos para a infeliz realidade daquelas

144 MORTE E VIDA POSITHIVA

crianças que, em suas brincadeiras de roda, entoavam

músicas que falavam sobre o momento em que levaram

os caixões de seus pais para serem enterrados.

Nessa hora eu não aguentei e comecei a chorar, as

lágrimas caíam sem controle e tudo o que havia sido fa-

lado nos últimos dias perdera o sentido. A cerimônia

foi encerrada logo após essa fala e quase imediatamente

entrou Caetano Veloso e seu violão, para comoção gene-

ralizada, enquanto eu continuava chorando sem parar,

até que durante a segunda música eu saí do auditório.

Falando assim, até parece piada, sair da segunda fileira

de um show do Caetano, mas eu não tinha condições

psicológicas para mais nada, então, fui embora com um

gosto amargo na boca e um nó na garganta.

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ANTES DA TEMPESTADE...

Em agosto rolou o Encontro Nacional da RNP em Florianópolis, onde reencontrei vários amigos já na re-cepção do hotel, dentre eles, Renato, da comissão orga-nizadora. Estávamos ali, comemorando a ocasião, quan-do chegou um amigo dele e não deu outra, rolou aquela troca de olhares que você sabe que é muito mais que isso. Loiro, ‘franjudo’, lindo, alto e ainda por cima, vim saber disso na mais romântica das situações, falava fran-cês. Era Luiz, que abriu um largo sorriso, apresentou-se e entrou na conversa, até que cada um foi para seu quarto, acenando com um eventual encontro mais tarde. No final da tarde foi feita a distribuição das camisetas e pastas com o material do evento, formando-se uma longa fila que eu, munido dos direitos das pessoas com deficiência, ignorei, sob humorados protestos da galera: fui direto para a cara do gol e, para minha surpresa, era Luiz quem distribuía as camisetas.

Por mais que eu seja extrovertido nas relações so-ciais, sou meio tímido na intimidade, ao menos até que role um sinal muito evidente da outra parte. E aquele sorriso lindo com o qual ele me atendeu só poderia ser mais que um sinal:

– Veio pegar sua camiseta?E eu, debruçando-me no balcão, respondi:– Não, vim te dar um beijo.E, de imediato, demos nosso primeiro beijo, arden-

te como deve ser um primeiro beijo, ao ponto de causar um senhor alvoroço na fila. Estava selado um amor que dura até hoje, agora em forma de amizade e gratidão. Nem ele e muito menos eu imaginávamos qual seria a

146 MORTE E VIDA POSITHIVA

intensidade da nossa relação depois daquele evento. Foi muito difícil a despedida, mas maior era a ansiedade pelo reencontro, pois ele morava em Sampa e seria mui-to fácil manter um relacionamento legal. Logo, logo, sa-beríamos o porquê de tanta afinidade, ele seria o esteio a me amparar durante a pior tempestade que se abateu sobre minha família, quando eu beijei a boca da Tal.

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KATRINA

Era noite de 29 de agosto de 2005, meu pai havia

ido dormir, enquanto eu e minha mãe estávamos na sala,

acompanhando pela TV a chegada do furacão Katrina

a Nova Orleans. Foi quando recebi uma mensagem de

texto da então namorada de meu irmão: “Seu irmão dis-

se para procurá-lo na garagem onde ele guarda o carro.

Estou preocupada”.

Um calafrio percorreu minha espinha, muito mais

forte do que aqueles que eu sentia no auge do linfoma.

A bipolaridade do meu irmão vinha se acentuando, ele

vivia se queixando de dores mentais muito fortes, pri-

vação de olfato, paladar, de vontade de viver. Eu e mi-

nha mãe nos entreolhamos e saímos rapidamente para

a rua vizinha à nossa, onde ele guardava o carro na casa

de uma família conhecida. Chegando lá, vimos a luz da

garagem acesa, nos fundos do imóvel, ao que nosso ba-

timento cardíaco subiu mais um pouco. Tocamos a cam-

painha e veio atender dona Lola, uma velha senhora que

gostava muito do Kiko e que nos disse que o carro estava

lá no fundo.

Ao nos aproximarmos, pudemos ouvir o motor li-

gado e a apreensão praticamente suspendeu nossa res-

piração e nos fez correr em direção ao carro. Olhei pelo

vidro lateral e ele estava deitado no banco de trás, in-

consciente. Tentamos abrir a porta, mas estava tranca-

da. Quando percebi, minha mãe já estava entrando pelo

porta-malas, que estava semiaberto para possibilitar a

entrada de uma mangueira acoplada ao escapamento

para injetar gás carbônico dentro do veículo. Ela abriu a

148 MORTE E VIDA POSITHIVA

porta para mim, que entrei e vi que ele não estava respi-rando e sua face estava um pouco suja de fuligem.

Começamos a reanimação, eu no boca a boca e mi-nha mãe nas massagens cardíacas, tudo isso ao som do choro e dos gritos desesperados de dona Lola. A sensa-ção era de que nada daquilo que estava acontecendo era real, estava mais para um sonho ou um filme que iria acabar, mas não, tudo era verdadeiro e nessa realidade eu beijava a morte na boca. O neto da dona Lola acorreu prontamente aos gritos e acionou o 192, enquanto eu e minha mãe continuávamos a tentar sua reanimação, até a chegada da ambulância. Por vezes, nos entreolháva-mos como quem diz: que merda, aconteceu!

A ambulância partiu, enquanto eu e minha mãe fomos para casa, em silêncio, onde acordamos meu pai com a notícia, pegamos alguns documentos e seguimos para o hospital. Ao chegar, fui logo encaminhado para a sala de emergência, enquanto meus pais esperavam, no saguão, por um milagre. Milagre que não aconteceu, assim que entrei, logo veio um médico que confirmou a morte do meu querido irmão, que tanto me apoiou e que havia sucumbido à versão mais covarde da Tal, a da tristeza infinita. Meu irmão havia morrido de tristeza. Quando saí, dei de cara com minha mãe, abraçamo-nos e começamos a chorar por ter acontecido o que mais temíamos, enquanto meu pai, mesmo sentindo o baque, segurou as pontas e tentou represar seus sentimentos, o que quase lhe seria fatal algumas semanas mais tarde.

Voltamos para casa, onde logo mais chegou a polícia para abrir uma ocorrência e também os funcionários do velório, para pegar as roupas com as quais ele seria en-terrado. Já era quase uma da manhã quando meus pais,

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após vários tranquilizantes, desmaiaram e eu comecei a chorar copiosamente. Quanta incompetência minha, ajudar tanta gente na vida e não conseguir o mesmo em minha casa, em minha carne. Impulsivamente, liguei para Luiz, desculpei-me por incomodar tão tarde e desa-tei a chorar minha tristeza novamente. Após meia hora de desabafos, desligamos e eu, enfim, consegui dormir um pouco. Acordei às seis e meia da manhã com a cam-painha de casa. Era Luiz, que havia pegado o primeiro ônibus em Sampa e estava ali para me dar o suporte que eu tanto precisava, afinal, eu teria que dar todo o apoio que meus pais iriam necessitar dali para frente. Fomos ao IML com Toninho, um antigo e inseparável amigo de Kiko, para liberar o corpo e dar início aos serviços fú-nebres.

O velório encheu de gente, minha família era bem conhecida e meu irmão muito querido. Hoje, eu consi-go rir de uma situação que se repetiu até o momento do sepultamento, pois muitas pessoas haviam ido para o velório do “filho do Geraldo” ou do “filho da Aída”, naturalmente, pensando que o morto era eu e, ao darem de cara comigo, muitos perdiam a cor e a fala, ao que eu corrigia seu pensamento:

– Foi meu irmão quem faleceu.– Nossa, mas ele era tão saudável!– Pois é...Minha família jamais se recuperou desse baque,

por cinco anos anunciado. Meu irmão havia, finalmente, descansado das dores mentais, da alteração dos sentidos e de tudo de ruim que o transtorno bipolar traz consigo, a cara mais feia da Tal.

150 MORTE E VIDA POSITHIVA

AMIGO É COISA PRA SE GUARDAR

O tempo voava, mas parecia estagnado. O olhar da

minha mãe perdeu o brilho que tinha, enquanto meu

pai, quando não estava trabalhando, ficava olhando

através da televisão, como quem procura algo que sabe

que não irá encontrar. Não deu outra, ele acabou en-

fartando em um shopping de Santos, causando a maior

correria e uma internação de duas semanas, sendo uma

delas na UTI. Nossa casa agora respirava tristeza e eu

buscava forças no trabalho social que, juntamente com

o sempre presente Luiz, me fortaleceu bastante e fez

com que eu conseguisse trazer um pouco de conforto a

meus pais. Foi quando me dei conta que o Natal estava

próximo e a Tal é que estaria sentada à mesa, na cadei-

ra de meu irmão.

Cheguei à cozinha com a proposta:

– Vamos passar o Natal em Campos do Jordão?

Parece que eles estavam pensando a mesma coisa,

que seria difícil enfrentar a ‘noite infeliz’ em casa, e to-

param de imediato. Convidamos minha tia Lúcia, irmã

caçula de mamis, que também havia perdido minha sau-

dosa prima Mônica recentemente, para ingressar na tru-

pe e lá fomos nós. Hospedamo-nos em um belo hotel e

iniciamos os passeios pela cidade, seus cafés e restau-

rantes de lamber os beiços, até que meu pai começou a

lambê-los de um jeito estranho e dali a alguns minutos

estávamos no hospital, com a pressão de meu pai nas al-

turas, tivemos mais uma noite de vigília. Uma vez medi-

cado e após o repouso, voltamos para o hotel e, por fim,

para casa. Ufa, havíamos sobrevivido ao Natal.

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Para o Ano Novo, eu tinha outros planos, iria passar com Luiz e um casal de amigos, Petrônio e Aristides, em um apartamento de frente para a praia do Itararé, onde, na manhã seguinte ao réveillon, Luiz virou-se para mim e disse que queria conversar.

– Querido, acho que me sinto mais seu amigo que seu namorado.

E eu respondi de imediato:– Eu também tenho o mesmo sentimento. Então tá

combinado, somos amigos.Assim se consolidou uma grande amizade que man-

tenho até hoje, concebida em um beijo ardente e gerada através de um grande desafio. Para sempre levarei em meu coração a gratidão por tudo que me fez esse loiro, ‘franjudo’, lindo, alto e que, ainda por cima, fala francês.

152 MORTE E VIDA POSITHIVA

JERI, COMO VOCÊ MUDOU...

Era março de 2006, as coisas em casa haviam se acalmado, dentro na nova normalidade que nos regia, permeada de tristeza e saudades. Porém, em nenhum momento deixamos de fazer o que tinha que ser feito, papis continuou sua rotina na prefeitura e mamis nas várias atividades dela, dentre elas, o bingo sagrado. Não daqueles bingos a dinheiro, ela até hoje adora os bingos organizados e frequentados por senhoras tão ávidas em fechar uma linha quanto um contumaz usuário de co-caína. E são centenas delas, reúnem-se duas vezes por semana. São uma boa válvula de escape para minha mãe.

Eu me atirava no trabalho, tanto que relaxei na fi-sioterapia e perdi boa parte da minha massa muscular, comprometendo minha locomoção. Aí pensei: por que não ir a um lugar paradisíaco, onde eu pudesse subir e descer dunas até a musculatura fazer bico? Sim, Jericoa-coara tinha tudo que eu precisava para me recuperar fí-sica e psicologicamente, com a piscina da pousada para fazer os exercícios com peso, a praia para as caminhadas e exercícios de marcha e as dunas para, como já disse, deixar os músculos bicudos. Além do mais, iria reen-contrar muita gente querida e eu já sentia a maresia da galera vendo o pôr do sol no Mama na Égua, um barzi-nho em frente ao mar que era point no final de tarde. Tá decidido, um mês em Jeri.

Para chegar em Jericoacoara, estava muito mais fá-cil que antes, do próprio aeroporto de Fortaleza, parti em um confortável ônibus que nos levou diretamente a Jijoca, sede do município, o que me poupou de tomar outro ‘Boa Noite’ em Fortaleza. Chegando lá, uma jar-

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dineira aguardava para levar a mim e aos demais passa-geiros até Jeri e, recepcionando os turistas, um nativo conhecido que, quando me viu, perdeu completamente a cor, exclamando:

– Betão, você tá morto!Eu ri, já acostumado a essa reação por parte de

quem achava que eu tinha morrido, e respondi mostran-do a bengala:

– Morri não. Tô baleado, mas tô vivo. Demos um forte abraço, felizes pelo reencontro. No

trajeto, ele me contou que Ezequias havia lhe dito que eu estava à beira da morte. Ezequias é uma excelente pessoa, um pescador que sempre havia sido um parceiro das baladas em Jeri nos anos 90 e que havia ido me vi-sitar, em uma de minhas internações, com a namorada paulista dele, que o havia trazido para Sampa para co-nhecer a cidade. Nem lembro como soube que eu estava internado, mas ali ele ficou sabendo do meu estado e voltou para Jeri com a notícia da morte do ‘bonequeiro’ do cemitério.

O trajeto entre Jijoca e Jeri é lindo, com um dos céus mais estrelados que já vi até hoje e cuja luz é refle-tida nas imensas dunas. De repente, as estrelas começa-ram a se apagar e reflexos de luz elétrica começaram a aparecer ao longe, tornando-se maiores e coloridos até que, ao contornarmos uma pequena duna, entramos na Broadway, tradicional rua da badalação noturna. Duran-te a década em que fiquei sem visitar Jeri, a luz elétrica havia chegado ao povoado, com ofuscantes luminosos e imensas pousadas, mudando a cara do lugar. À primei-ra vista, não gostei, minhas memórias estavam baseadas em um lugar aonde se vai em busca de paz e descontra-

154 MORTE E VIDA POSITHIVA

ção, não em comércio e modelitos de grife, mas resolvi dar um crédito, primeiro iria sentir o lugar para depois fazer qualquer julgamento.

Instalei-me na Pousada Capitão Thomaz, bem em frente à praia, com um senhor jardim central e pisci-na, mas que guardava muito das pousadas de outrora. Meu quarto era bem modesto, mas tinha o necessário: cama, frigobar, banheiro, duas prateleiras na parede e sacadinha com rede. Deixei a bagagem no quarto e saí para a noite de Jeri, ver o que me aguardava. A mesma reação do meu amigo na jardineira se repetiu várias ve-zes naquela noite, inclusive quando encontrei Ezequias, que chorou copiosamente, enquanto me abraçava, o que me fez sentir que, apesar da luz elétrica e da badalação, aquela seria uma viagem bem legal. Até que cheguei na esquina da rua principal com a praia, onde ficava o Mama na Égua, que havia dado lugar a um empreendi-mento maior e com cara de baladinha de Maresias. Ali, naquela esquina, tomei o maior choque, um assobrada-do se erguia, dentro dele, mesas de sinuca rodeadas por muitos gringos diferentes dos aventureiros de outras épocas e, ao lado deles, o motivo de sua viagem: filhas e netas de pescadores amigos meus, todas maquiadas e segurando seus drinques durante as tacadas.

Não podia ser, minha amada Jeri havia se tornado um destino do malfadado turismo sexual! Com a chega-da da luz e das grandes pousadas, também vieram voos regulares da Europa para Fortaleza, carregando homens barbados e sedentos por meninas ainda sem peito e ga-rotos sem pentelhos. Para mim, a viagem havia acabado na primeira noite. Na época, a ONG fazia parte do Con-selho dos Direitos da Criança e do Adolescente de São

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Vicente e estava sempre atento a sinais de violência e o que eu via ali era praticado livremente e, pasmem, com a conivência de algumas das famílias, que viam naquela prática uma forma da filha ou do filho ir para a Europa e, quem sabe, ter uma vida melhor.

Voltei para a pousada super triste, sem saber se ia embora no dia seguinte ou ia ao mercado comprar umas latas de tinta spray para pichar na porta daquele bar: ‘Este estabelecimento promove a prostituição infantil’. Logo desisti desta ideia, pois em pouco tempo eu seria expulso ou até mesmo assassinado e jogado nas pedras da maré.

Resolvi, então, focar em minha reabilitação física e selecionar os lugares aonde iria, para evitar situações desagradáveis. O meu preferido foi um bar de reggae, o Mamma Africa, um reduto que havia escapado ao pro-cesso de ‘caretização’ de Jeri. Após beber um pouco e fumar alguns baseados, acabei conhecendo a orientado-ra pedagógica da escola local, que animada com minha história, perguntou:

– Você não gostaria de dar uma palestra na escola onde trabalho? A meninada é super carente de informa-ções e o bicho tá pegando por aqui.

Juro, não foi efeito do rum e muito menos da ma-conha, mas o sol clareou a noite e, de repente, a viagem passou a fazer sentido para mim, eu não sairia em guer-rilha, mas levaria informações para que os jovens não caíssem nas armadilhas do prazer e da paixão. Acerta-mos que eu daria duas palestras dali a dois dias e voltei para a pousada com a certeza de que aquela seria uma excelente viagem.

Chegou o dia, peguei algumas camisinhas do meu estoque e levei comigo duas bananas do café da manhã,

156 MORTE E VIDA POSITHIVA

que seriam os pintos simulados para demonstração do uso dos preservativos. Fui ao encontro de 40 jovens e adolescentes que me aguardavam no pátio e olhavam para mim com grande curiosidade. A atividade foi um grande barato, se o cearense já é espontâneo por nature-za, imaginem em uma cidade isolada do mundo por um deserto de dunas, é impossível manter uma máscara por muito tempo. Assim, foram mais de duas horas conver-sando com eles sobre sexo, drogas, forró e suas conse-quências, as boas e as ruins. Fizeram muitas perguntas e deram muitas risadas, uma interação bem legal, até que comecei a dar meu depoimento como pessoa vivendo com HIV: aí, todos se calaram, como acontece sempre que algum ativista com HIV abre seu coração. Finaliza-mos com um bate papo, muitos abraços, apertos de mão e almoço na escola, afinal, haveria outra intervenção dali a pouco, que também rolou na mesma vibração. Aquela noite eu festejei muito nos bares e dormi tranquilo, à espera de alguma repercussão na cidade.

E ela veio muito rapidamente, na manhã do dia se-guinte. Eu estava na piscina da pousada, descansando um pouco, após os exercícios matinais, quando chega-ram dois estudantes, o Moré e uma amiga dele. Ele tinha quinze anos, homossexual assumido perante a comuni-dade e havia ficado nas duas palestras, se destacando com questionamentos e piadas.

– Oi, seu Beto, tudo bem? Desculpa incomodar o senhor, é que nós somos da Associação dos Estudantes de Jericoacoara, participamos de suas palestras ontem e, logo depois, fizemos uma reunião, na qual decidimos colocar ações de saúde em nossos estatutos. O senhor nos dá uma força?

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A felicidade que me preencheu foi tão intensa que

eu comecei a abraçá-los e a festejar uma resposta comu-

nitária que ia além das minhas pretensões. Fomos para

o restaurante da pousada para colocar algumas coisas no

papel e acertamos a primeira de algumas reuniões com

toda a diretoria da AEJ. Tudo estava tão claro, eu me

sentia um Don Quixote pronto para enfrentar o poder

econômico que havia se instalado naquele lugar, que um

dia já havia sido o paraíso.

Pouco antes dos meninos irem embora, eu vejo

uma senhora acenando para mim, da praia. Fomos até lá

e ela se apresentou:

– Oi, seu Beto, o senhor não me conhece. Eu sou

esposa do Cacau da mercearia lá de cima e que tem esse

problema que o senhor tem. Será que o senhor podia dar

um pulo lá e ter uma conversinha com ele?

Lá fomos, eu e Moré, falar com o Cacau, em seu

comércio que ficava no extremo da cidade. Cacau já me

esperava sorridente e não se fez de rogado, colocando

em cima do balcão vários frascos conhecidos meus, os

do coquetel de medicamentos, sem se incomodar com

as várias pessoas que ali estavam para presenciar visita

tão inusitada.

– Cansei de esconder isso, eu não matei ninguém!

Foi emocionante, um diálogo tão despido de pre-

conceitos com a comunidade, coisa rara em nossas ci-

dades maravilhosas. Cada vez mais eu me sentia forta-

lecido, tanto física quanto psicologicamente. Se pessoas

soubessem que se doar faz tão bem, haveria mais solida-

riedade no mundo. E, como se isso tudo não bastasse, no

fim daquela mesma tarde, recebi a visita de uma italiana

158 MORTE E VIDA POSITHIVA

que era dona de pousada em Jeri há anos. Ela me disse, com seu belo sotaque:

– Bêto, nós, donos de pousada e comerciantes de Jeri, temos uma ONG com CNPJ e tudo, mas que não faz nada. Nós ouvimos sobre sua palestra na escola e quería-mos sua ajuda para colocar saúde nos nossos estatutos.

Era só juntar a fome com a vontade de comer, en-tão, propus uma reunião entre o pessoal da ONG e a AEJ, com o objetivo de unir esforços em ação conjunta. A partir daí, foi dar uns palpites de vez em quando e terminar meu fortalecimento muscular, porque o psico-lógico estava mais forte do que nunca, o que me ajudou a superar a recente perda de Kiko. Para falar a verdade, sua morte me ensinou, para nunca mais esquecer, que o apego é o pior sentimento que existe. Nada nos per-tence e tudo que nos rodeia, mesmo nosso corpo físico, é mera ilusão. A única coisa que levaremos desta vida são as nossas atitudes, muito mais que preces e outros rituais. Eu, sem soberba alguma, tinha um senhor orgu-lho de meu dia a dia e da forma como eu me relacionava com a vida e a morte.

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PLUNCT, PLACT, ZOOM! NÃO VAI A LUGAR NENHUM...

Voltei de Jeri completamente restabelecido, as du-

nas e os exercícios na pousada haviam me devolvido a

coordenação motora e a massa muscular, da mesma for-

ma que os acontecimentos decorrentes das palestras ha-

viam me fortalecido internamente, de forma que eu pu-

desse retomar os cuidados com meus pais e as atividades

do movimento. Dentre elas, uma que eu gosto muito, a

distribuição de preservativos em locais de grande fluxo

de pessoas. Além do Quiosque da Cris, nós atuávamos

na boate Ibiza, também chamada de Pé na Jaca, devido

ao estilo trash que atraía todo tipo de público, predomi-

nantemente LGBT.

Enfim, eu e alguns voluntários íamos todos os finais

de semana fazer a tal distribuição de preservativos, com

prancheta em punho e uma tabela com várias perguntas

do tipo: “Onde você costuma pegar preservativos?” ou

“Você usa preservativo em todas as relações sexuais?”.

Era véspera do feriado de primeiro de maio e eu

havia ido sozinho, pois o pessoal da ONG tinha aprovei-

tado o final de semana prolongado. Em menos de duas

horas, eu havia esvaziado uma baita bolsa de camisinhas

e à uma e meia da manhã, cansado que estava de tanto

andar e falar, chamei um táxi para ir embora. A boate

fica em uma rua sinuosa, que circunda o Morro dos Bar-

bosas e era protegida contra carros descontrolados por

três pedaços de trilhos de trem cimentados na calçada.

Eu encostei no poste em frente à movimentada porta de

entrada e fiquei aguardando o carro chegar, quando, ao

olhar para os trilhos, pensei:

160 MORTE E VIDA POSITHIVA

– Será que eu não estou correndo risco de algum carro desgovernado me atingir? Ah, não, esses trilhos seguram a onda.

Nem bem havia virado o rosto, ouvi um forte baru-lho de metal arrastando no chão, ao que vi, num relance, uma moto desgovernada vindo em minha direção. Foi tudo em fração de segundo, senti uma batida muito forte em meu corpo e, quando dei por mim, estava deitado no meio fio com o embriagado motociclista em cima de mim. Um grande alvoroço se formou na frente da boa-te, pois, além de mim e do motorista, havia mais três pessoas feridas. Aqueles trilhos realmente haviam me salvado a pele, a moto bateu em um deles e desviou para a parede da boate, atingindo três pessoas, ferindo uma travesti gravemente. Para mim, havia sobrado o moto-ciclista, que seguiu a tangente e me atingiu em cheio, fazendo de mim o seu ‘air bag de poste’. Logo depois de me levantarem do chão, o taxi chegou, o pessoal ime-diatamente me colocou dentro dele e lá fomos para o hospital, onde foi diagnosticado que eu havia fraturado meu quadril e três costelas. Cheguei a ouvir a risada da Tal, por trás da proteção de chumbo na radiologia, como quem me pergunta:

– Você não queria viver? Agora aguenta.Cheguei em casa por volta das três horas da manhã

e, sem conseguir apoiar a perna direita no chão, tive que tocar a campainha. Minha mãe abriu a janela assustada e eu logo tratei de tranquilizá-la:

– Tá tudo bem, eu só fraturei o quadril.Essa história de opera aqui e quebra ali já estava

virando rotina. Graças aos deuses não foi preciso ope-rar, mas eu teria que ficar um mês sem apoiar as pernas

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no chão. Tá certo que eu havia encontrado sentido em todas as adversidades que me desafiavam desde 1996, mas que sentido teria em ser atropelado na calçada, ca-reta, e após fazer um trabalho voluntário? Enfim, aquele mês de molho me fez perder a musculatura recuperada em Jeri. Então, assim que o ortopedista me liberou para apoiar os pés no chão, para Jeri voltei, pelo mesmo mo-tivo de três meses antes. A surpresa foi geral:

– Já de volta, Betão?– Vai mudar pra cá, é?Novamente hospedado na Capitão Thomaz, da

qual guardo lembranças preciosas com a saudosa Popp, de imediato iniciei uma série bem intensa para recu-peração física. Também entrei em contato com a ONG local e com os estudantes. Pude constatar problemas de relacionamento entre eles, pelo motivo de sempre, a boa e velha fogueira das vaidades. Aconteceu, ainda, um fato lamentável, que iria selar o fim da minha rela-ção com a vila. Um garoto invadiu meu quarto e levou meu MP3 player, que era presente de meu querido ir-mão, algumas bobagens e minha maconha, que estava guardada no congelador.

– Cacete, o fdp também roubou minha maconha?Aí entrou em ação a união comunitária para assun-

tos pontuais, marca registrada de Jeri que infelizmente não se reproduzia quando o problema era coletivo. Ime-diatamente, a notícia de que um cara já conhecido por pequenos delitos havia me assaltado correu a vila e, em questão de duas horas, ele foi interceptado com o MP3 em um pau de arara rumo a Jijoca, onde, na delegacia, foi apurado que ele tinha várias passagens como menor, mas que havia atingido a maioridade havia uma semana.

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Que tristeza me deu, ao ver aquele garoto – tinha cor-po e cognição de um menino de não mais que 14 anos – sentindo os rigores da Lei e de pensar em sua família, tudo o que poderia ter funcionado para que aquele broto de vida tivesse outras oportunidades. Triste, também, por constatar que Jeri não era mais um paraíso, afinal, no paraíso não tem insegurança, então me despedi de Jericoacoara com um nó no coração, sabendo que não mais voltaria ali. Jeri, c’est fini!

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HASTA MAÑANA, EVITA

Após minha estada no ‘SPA das Dunas’, voltei para casa, retomei o trabalho na ONG e o apoio a meus pais. O restante do ano transcorreu sem maiores atropelos, o que me deu fôlego para 2007, que seria um ano marcado por eventos políticos e técnicos na área de DST/AIDS. O primeiro deles ocorreria em abril, o Fórum Latino Americano de DST/AIDS, em Buenos Aires, cidade que sempre sonhei conhecer. Lá chegando, minhas expecta-tivas foram satisfeitas a cada passo, a cidade realmente é linda demais, sua arquitetura, arborização, a classe de seu povo sempre elegante, tudo começava a me fascinar, antes mesmo de me aprofundar no universo portenho.

Após me instalar no hotel e comer alguma coisa, dirigi-me ao enorme complexo de eventos para fazer a inscrição. Uma vez feita, fui em direção ao espelho d’água da entrada onde estavam reunidos alguns ativis-tas latino-americanos, aos quais me juntei e logo estava de papo com um argentino lindinho de tudo, que pa-recia uma miniatura do Rodrigo Santoro. Tudo estava correndo muito bem, até que, por engano, eu me referi à “província de Argentina”, ao invés de “província de Bue-nos Aires”. Foi o bastante para ele semicerrar os olhos e responder entre lábios raivosos:

– Província de Brasil!O papo esfriou, claro, e eu percebi que naquela ter-

ra eu teria que pisar em ovos e medir minhas palavras, o que não é bem a minha especialidade. Enfim, o evento teve início, revi muitas pessoas queridas e também co-nheci um bocado de gente de todos os lados. Fui a vá-rias apresentações e debates, sempre com meu jaleco,

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estetoscópio no pescoço e Ossinho em punho, o que me rendeu até uma entrevista para a TV Al Jazeera. Buenos Aires havia correspondido a tudo aquilo que a primei-ra impressão havia mostrado, excelentes cafés e restau-rantes a preços bastante razoáveis, bem como a Livraria Atheneo, uma das sete maravilhas do mundo portenho, instalada em um antigo e lindo teatro. Tudo estava tão bom que resolvi esticar minha permanência por lá, fi-cando mais uma semana para desfrutar de toda aquela delícia, por minha conta, remanejando a data do meu voo de volta.

Fui a teatros, saunas, exposições e parques públi-cos, em um festival de prazeres, gastando bem pouco, o que era perfeito. Tão perfeito que, na penúltima noite de estadia, eu estava tomando vinho em uma mesa na calçada do La Babieca, bem perto da Atheneo, quando um loiro alto, bonito e sensual se dirigiu a mim, com sua voz de bandoneon:

– Estás solo?Macaco velho nas malandragens da noite, um sinal

de alerta soou dentro de mim, mas eu estava tão inebria-do pela beleza e refinamento de Buenos Aires que logo pensei tratar-se apenas de um garoto de programa. O que não teria problema algum, pelo contrário, viria bem a calhar para uma despedida triunfal daquela cidade acolhedora, onde as mulheres andavam tranquilamente pelas ruas com suas joias reluzentes e seus narizes ope-rados. Respondi puxando a cadeira para ele:

– No más!Conversamos sobre nós, sobre Buenos Aires e so-

bre o vinho que tomávamos alegremente. Até que per-guntei a ele, com a mais pura das intenções:

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– Cuál es tu ocupación?– Yo soy soldador de aperturas...Pronto, a partir da apresentação dessas credenciais,

eu me entreguei completamente e fomos para meu hotel, rindo muito e nos beijando em plena travessia da Aveni-da Nove de Julho. Entramos no quarto e logo iniciamos as preliminares, até que acordei totalmente zonzo, com dor de cabeça no corpo inteiro e sem saber onde estava. Aos poucos, fui reconhecendo o criado mudo e o guarda roupas do hotel e, de imediato, percebi que havia no-vamente entrado em uma gelada, aquele pilantra havia levado minha carteira, roupas, câmera e as compras que eu havia feito. No meio do desespero, vi algo brilhando entre a cama e o criado mudo e, ao me abaixar, quase caindo de tão tonto, pude ver que era meu passaporte, o meliante não o havia visto, porque tanto o documento quanto o carpete do quarto eram verdes. Ufa, pensei, ao menos posso provar quem eu sou em uma terra distante e da qual eu conhecia muito pouco.

A polícia chegou e fez a perícia no quarto, atestan-do o arrombamento do pequeno cofre que ficava dentro do guarda roupas, de onde ele tirou toda minha grana. Fui conduzido à delegacia mais próxima, onde fui trata-do de forma extremamente cortês, ao contrário daquela manhã em Fortaleza. Para agravar a situação, por con-ta da administração da droga na noite anterior, a minha perna direita pouco conseguia produzir e eu a arrastava pelas ruas. Tinha apenas meu passaporte com dez pesos argentinos e uma dívida de cerca de 800 pesos no hotel, fora que eu ainda teria que arrumar cerca de 50 dólares para o táxi até o aeroporto e a tarifa para sair do país. Imediatamente, veio a lembrança de Marta e Oriva, um

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casal de amigos meus que também havia estendido sua permanência em Buenos Aires e passei a ligar seguida-mente para o hotel onde estavam hospedados, sem su-cesso. Tentei também junto ao consulado e embaixada do Brasil, que ficam em um lugar nobre da cidade, em nababescas instalações. A resposta que ouvi, após vários telefonemas:

– Olhe, senhor Luiz, será impossível solucionar seu problema, é uma quantia vultosa e o governo brasileiro não pode fazer nada pelo senhor.

– Mas, senhora, são somente 600 reais e eu tenho os documentos que comprovam que eu sou um cidadão brasileiro e que fui vítima de um crime em Buenos Aires!

– Lamento muito, como já disse, não podemos fa-zer nada.

Voltei ao hotel me sentindo um sem teto, sem gra-na, sem comida, com dívidas e sem ter a quem recorrer. Já era noite quando veio a ideia de procurar o escritório da TV Globo, talvez botando a boca no mundo eu con-seguisse colocar fim a meu calvário. Eu já me preparava para sair quando olhei para o telefone e decidi fazer uma última tentativa com meus amigos. Após três toques, a bela e rouca voz de Marta soou como música:

– Alô?– Mar... Mar... Marta... Buááááááááá! Não consegui segurar, comecei a

chorar compulsivamente, as lágrimas desciam aos bor-botões e eu mal consegui explicar para ela o que havia acontecido. Marcamos de nos encontrar naquela noi-te mesmo, em um restaurante na Avenida Corrientes, onde fui acolhido por abraços afetuosos, um bom prato de contra filé e a garantia de que, na manhã seguinte,

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eles me emprestariam o dinheiro para eu quitar meus débitos e voltar ao Brasil.

Buenos Aires é uma cidade fantástica, falta somen-te uma praia para ficar perfeita, mas, como em todos os lugares, também esconde seus segredos e suas mal-dades. Eu, que trabalho com prevenção a situações de risco, tanto de infecções quanto de violência, havia em-barcado em um sonho de Evita, sentindo-me seguro e respaldado pela cultura e ostentação locais. E olhe que não fui o único, durante o transcorrer do Fórum, dois ativistas LGBT haviam caído na mesma cilada, incluindo um grande expoente do movimento, que foi tirado de dentro de um carro que o levaria sabe-se lá para onde. Ficou a reflexão de como somos todos vulneráveis, uma circunstância aparentemente segura e um bom vinho podem fazer você abaixar a guarda em todos os senti-dos. Assim como em Fortaleza, quando eu ouvira Boa Noite, Cinderela, ao me deitar, em Buenos Aires, ouvi:

– Hasta mañana, Evita.Não chores por mim, Argentina, a culpa foi toda

minha e eu nunca deixarei de te amar.

168 MORTE E VIDA POSITHIVA

OSSO DURO DE ROER 2

Logo depois desse episódio, minha cabeça do fê-mur direito começou a dar os já conhecidos sinais de desgaste, deixando claro que era hora de instalar a se-gunda prótese de quadril. Durante uma das consultas que antecederam a cirurgia, doutor Itiro olhava aten-tamente meus exames de raio-X, quando outro médico bateu na porta e logo foi entrando, em reverências a seu professor:

– Com licença, doutor Itiro, estou com uma senho-ra na emergência que levou um tiro no quadril e está apresentando essa situação que, sinceramente, não en-tendi – disse, mostrando exames.

Após analisar os exames da mulher e dar sua opi-nião sobre o assunto, doutor Itiro emendou:

– Eu estou com o caso do seu Luiz, que também foge à normalidade. Ele tem necrose asséptica dos qua-dris e fraturou a perna direita que, estranhamente, não teve a mesma evolução da necrose que a perna esquerda.

Eu não consegui resistir:– Doutor, o processo de necrose da perna direita

não poderia ter sido retardado pela reação do organismo à fratura?

Após alguns segundos me olhando, surpreso pela audácia, ele lamenta com seu colega:

– Você está vendo? Eu tenho que aguentar isso des-de a primeira consulta...

Uma das primeiras coisas que fiz ao ser internado foi declarar meu interesse em levar minha cabeça do fêmur comigo, para fazer companhia à irmã gêmea. Fui para o centro cirúrgico reforçando meu desejo, para a equipe que me acompanhava no caminho de lu-

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zes, repetindo como um mantra meu pedido, até que fui anestesiado:

– Quero levar meu ossssss......Quando acordei na recuperação, perguntei à en-

fermeira:– Cadê meu osso?Ela não sabia. Foi um tal de perguntar para Fulano

e Cicrano, até que caiu a ficha, de alguma forma meu osso havia desaparecido sem que ninguém me desse resposta sobre onde poderia estar. E de nada adiantou encher o saco de todo mundo no hospital, àquela altu-ra, ele já deveria estar sofrendo horrores nas mãos de algum pesquisador maluco. No fim das contas, foi um ano relativamente tranquilo, muito diferente do que seria 2008, ano de muito trabalho, com direito à visita

de uma velha conhecida.

170 MORTE E VIDA POSITHIVA

TRABALHO, TRABALHO, TRABALHO

A articulação do Hipupiara com outros segmentos sociais, além do ativismo contra a AIDS, ganhava cada vez mais força. Chegamos a participar simultaneamen-te de seis conselhos municipais de direitos, absorvendo suas demandas e levando informações sobre a epidemia, quase todas desconhecidas pela maioria das represen-tações. Também estávamos realizando no SAE de São Vicente o Café Cidadão, uma variação do bom e velho Café Vida, que havia dado origem à ONG, só que com mais informações sobre o movimento de luta contra a AIDS, na tentativa de estimular as pessoas vivendo com HIV a aderirem à nossa causa, outra doce ilusão.

Uma pessoa que tive o grande prazer em conhecer foi Élia, uma alagoana linda e arretada, bem como seus dois filhos Ingo e Rainer, ambos moram atualmente na Alemanha. Ela também é osso duro de roer, já teve uma série de problemas de saúde e conseguiu tirar todos de letra, além de ter apoiado por várias vezes as festas que realizávamos na ONG. Vamos juntos a alguns locais GLS e flash back e ela é tão legal que recentemente a pedi em noivado, para surpresa geral e posterior esclarecimento:

– Nós nos amamos muito, mas nossa religião é mui-to rígida e não admite sexo nem depois do casamento!

Bem, além da luta contra a AIDS, a instituição tam-bém estava envolvida no combate à tuberculose, efe-tivou parceria com o Fundo Global de Combate à Tu-berculose e conhecemos muita gente boa, como o trio do Rio, Carlos, Alexandre e Roberto. Para variar só um pouco, o Hipupiara causou alguns rebuliços nessa histó-ria, organizando um movimento para impugnar um edi-

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tal completamente tendencioso e também para reduzir a ostentação dos hotéis cinco estrelas, onde eram reali-zadas as reuniões entre o Fundo, representantes do go-verno e das ONGs. Logo na primeira delas, no belíssimo hotel Manhatan, em Brasília, eu propus, ao final:

– Por que vocês não reduzem a suntuosidade com que somos tratados e remanejam essa verba para ações de ponta?

– São os padrões do Fundo Global – responderam.É, o ‘padrão FIFA’ não está sozinho no mundo, será

que é o Brasil que está fora dos padrões internacionais?

172 MORTE E VIDA POSITHIVA

PÓLIPOS E JALECOS

No início de julho, eu estava conversando com algumas pessoas conhecidas, em frente a um hotel no Guarujá, de onde sairíamos para a mesa de abertura de um evento promovido pelo Instituto Joana d’Arc, do combativo Luiz Eduardo, quando meu celular toca:

– Alô, Rrrrrobocop!Só uma pessoa me chama assim, doutor Leal, ci-

rurgião que há um mês havia feito a cirurgia de hemor-roidas em meu tuiuiú. Não que estivesse sangrando ou doendo, nada disso, era uma cirurgia estética, afinal, eu estava prestes a completar 50 anos e queria deixar a casa bonita para a festa.

– Doutor Leal, quando médico liga pra gente, numa sexta feira à noite a coisa é séria, o que aconteceu?

– Gostaria de conversar com você, Robocop, pode dar um pulo em meu consultório amanhã?

– Amanhã não tem jeito, daqui a pouco vou para um evento, onde ficarei todo o final de semana. Diga pelo celular mesmo, qual é o problema.

Após alguns segundos de pausa...– Na cirurgia que fizemos há um mês, eu identifi-

quei uns pólipos em seu reto e os mandei para a biópsia, cujo resultado chegou hoje: é um tumor maligno. Mas você pode ficar sossegado, porque não tem mais nada aí, eu retirei com uma boa margem de segurança. Mas, como não sou oncologista, não posso fechar seu caso, portanto estou preparando seu encaminhamento ao mé-dico especialista e recomendo que o senhor vá vê-lo o mais rapidamente possível. Ele talvez queira fazer algu-mas sessões de radioterapia, apenas por segurança. Foi

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muita sorte termos feito sua cirurgia de hemorroidas, pegamos o tumor bem no comecinho.

Tumor. Eu esperava nunca mais ouvir essa palavra, mas foi o que o doc falou. A sensação que tive naquele momento foi a mesma dos velhos exercícios de teatro amador, nos anos 70: agora seu pé está virando pozi-nho, suas pernas estão virando pozinho, seu tronco está virando pozinho... Eu nem sentia meu corpo e meu ros-to devia estar expressando o terror que eu sentia, tanto que alguém perguntou:

– Beto, você está legal?– Parece que tô com câncer de novo...Lembram-se daquele estado em que a gente paira

sobre a gente mesmo e vê tudo acontecer como se fosse um filme? Pois é, eu já o havia sentido por duas vezes, uma no socorro a meu irmão e outra no atropelamento da moto. Desta vez, eu pairava sobre a mesa de aber-tura do evento, que teve início minutos após o telefo-nema, com a impressão de que iria acordar a qualquer momento ou alguém interromperia a exibição daquele filme triste. Nem lembro o que disse em minha sauda-ção aos participantes, aquela palavra não saía de minha mente: câncer. O encontro transcorreu com metade de mim presente, a outra metade era absorvida por meu desespero. Outro câncer, meu Deus?

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DÉJA VU

Quando cheguei em casa no domingo à noite, não

houve muito tempo para rodeios, mesmo porque minha

mãe perguntou, logo de cara, se tinha alguma coisa er-

rada. Novamente aquela atmosfera pesada passou a per-

mear tudo o que se falava e ouvia:

– Tô com outro câncer, agora é no reto.

Mesmo com meu respeitável histórico de supera-

ções, era mais um tumor e dar essa notícia a meus pais

foi tão ou mais angustiante que em 1989, pois havia o

agravante de termos perdido meu irmão. Olhei para

minha mãe e, para minha surpresa, a Tal estava ao lado

dela, desta vez, olhando-a com ternura e desprezo, ao

mesmo tempo, como que dizendo:

– Já levei um, agora é a vez do outro.

Após o impacto inicial, fomos absorvendo a nova

situação a ser enfrentada e o primeiro passo foi procurar

o doutor Nicolau, que ficou surpreso com minha inespe-

rada aparição na Santa Casa:

– Seu Luiz, o senhor aqui?

– Pois é, estou com esse encaminhamento aqui.

Como não era sua especialidade, passou meu caso

a um colega que, por sua vez, optou por fazer uma nova

cirurgia para que ele pudesse verificar se estava real-

mente tudo em ordem, como havia dito doutor Leal.

Nada disso, feita a cirurgia, ele veio com a notícia de que

o local estava coberto de pólipos e que seria necessário

fazer uma radioterapia e, talvez, quimioterapia.

– Doutor, aqui na Santa Casa nós temos o que de

mais moderno existe na área?

175BETO VOLPE

– Não. A maior inovação é um aparelho chamado ‘acelerador linear’ e só existe em São Paulo e algumas outras capitais.

Tem um ditado aqui no litoral de SP que diz: se o problema de saúde é muito sério, melhor ir para o Hos-pital dos Imigrantes, alusão à rodovia do mesmo nome que nos liga com a Capital. Comecei a pesquisar e achei o Hospital AC Camargo, antigo Hospital do Câncer, que atendia meu convênio e tinha o tal aparelho. Dias depois, ao chegar ao bairro da Liberdade e entrar no hospital, vi porque ele constava como referência latino-americana no tratamento e estudo do câncer. Tudo ali era gigantes-co e limpo, enquanto que os seguranças, profissionais de saúde e até alguns médicos eram bastante simpáticos e me cumprimentavam a um simples cruzar de olhares.

Humanização na saúde, isso existe! Mas somente dentro do hospital, do lado de fora era um verdadeiro desfile de médicos trajando seus jalecos e estetoscópios no bar, na rua, no banco, no estacionamento... Para todos os lados que se olhava, lá havia um médico ostentando seu poder de adiar a morte daqueles que ali se encontra-vam. E olha que tem lei contra isso, pois o uso inadequa-do do jaleco é um dos principais veículos de transmissão de agentes nocivos, de fora para dentro do hospital. Pior ainda, lança na sociedade organismos resistentes que es-tão sendo submetidos a tratamentos. Durante toda minha passagem pelo AC Camargo, fui fazer minhas aplicações trajando um jaleco e o bom e velho estetoscópio que ti-nha sido um presente da minha querida Beatriz. Como era verão, eu era uma figura rara de se ver, todo esse apa-

rato por cima de camiseta regata e shortinho de surfista.

Volta e meia, algum médico perguntava:

176 MORTE E VIDA POSITHIVA

– O que você está fazendo com essa roupa, rapaz?

E eu respondia:

– Não sei direito, doutor, mas deve ter alguma coisa

muito perigosa por aqui, já que vocês não tiram o jaleco

por nada! Achei prudente também me proteger.

Enfim, após consulta com o doutor Ricardo, passei

por interminável sequência de exames e medições, para

poder agendar minha primeira sessão de radioterapia.

Um desses exames faria parte da minha rotina, a retos-

sigmoidoscopia, que consiste em introduzir uma câmera

para examinar o reto, para ver se encontra algo torto. É

realizado sob anestesia, mas por umas quatro ou cinco

vezes eu pedi para não ser anestesiado e dar uma olha-

dinha para ver como eu era por dentro, ao vivo, o que

rendeu uma boa aproximação com o pessoal do setor de

imagens, dado o tanto de bobagens que eu falava duran-

te os procedimentos.

O problema é que minha agenda só fazia crescer em

compromissos, dentre eles, o Congresso Nacional da So-

ciedade Brasileira de DST/AIDS, que reuniria em Goiâ-

nia alguns milhares de médicos e dezenas de ativistas da

luta contra a AIDS. O centro de convenções que abriga-

ria o evento foi construído no mesmo lugar onde houve

aquele acidente nuclear com uma cápsula de césio 137,

que foi manipulada por várias pessoas, causando quatro

mortes imediatas e cerca de outras 100 com o decorrer

do tempo. Inspirado pelas circunstâncias, fui à abertura

do evento, que era presidido por uma infectologista da

associação médica local. O ambiente estava um pouco carregado, pois du-

rante o encerramento do congresso anterior, realizado

177BETO VOLPE

havia dois anos no Recife, os ativistas e os médicos ti-veram sérias discordâncias e o pau quebrou na casa de Noca. Em Goiânia, eu estava sentado na primeira fila com meu xale dourado, meu adereço oficial para mani-festações, sob os olhares desconfiados da doutora Ma-riângela Simão, que era a diretora do Departamento Na-cional. Quando a médica disse boa noite, eu me levantei e, com a voz serena, pedi:

– A doutora poderia dar licença, só um pouquinho?Pronto, ela começou a tremer muito, ao ponto da

tremedeira ser notada das últimas fileiras do auditório. Recebeu um cochicho de Mariângela, dizendo-lhe para se acalmar, porque aquilo terminaria logo. Não dei tem-po para a resposta e continuei:

– Peço desculpas por quebrar o protocolo, mas as pessoas que vivem com HIV não aguentam mais tanto descaso com nossa qualidade de vida. O único edital pu-blicado pelo Ministério da Saúde para ações nessa área era tão técnico que nem a USP se enquadrou nos cri-térios. Há muitos anos clamamos por uma atenção aos efeitos colaterais, que deixaram de ser desconfortos gas-trintestinais e passaram a ser cânceres, por exemplo. A gente estava se acostumando a brigar contra um leão e agora aparece um tigre do outro lado? Por favor, inte-grem-se em uma estratégia para melhorar a qualidade de vida das pessoas com HIV. Novamente, peço descul-pas pela interrupção.

Nesse momento todos os ativistas se levantaram e gritaram palavras de ordem e estenderam suas faixas, sob os aplausos generalizados dos presentes. Eu sei que,

assim que acabou a manifestação, saí do auditório para

fumar um cigarro e, ao retornar, Mariângela estava se

178 MORTE E VIDA POSITHIVA

preparando para ocupar a tribuna e fazer seu pronun-

ciamento:

– Boa noite a todos e todas as presentes, é um gran-

de prazer estar com vocês em um evento dessa magni-

tude. Cadê o Beto?

E eu respondi, descendo a escadaria:

– Tô aqui!

– Beto, você deve imaginar o desconforto que sua

fala produziu em todos da mesa.

– Esse era o objetivo, doutora!

– Pois é, um desconforto que deveríamos sentir

todos os dias. Tanto que estou deixando de lado o dis-

curso que havia preparado e vou falar um pouco sobre

esse assunto.

E começou a discorrer sobre a falta que fazia essa

situação de desconforto com relação à AIDS, tão ba-

nalizada e excluída das prioridades governamentais,

coletivas e individuais, sendo que o evento seguiu

nessa mesma toada. Para mim, ficou definitivamente

comprovado que a participação social é um excelente

revigorante emocional, já que eu teria uma desafiado-

ra rotina pela frente. Eu ainda cumpriria meus últimos

compromissos, antes de fechar minha agenda, sendo

que um deles era a fundação do Núcleo São Vicente

da RNP+SP, na mesma Câmara de Vereadores do lan-

çamento do Hipupiara. Lamentavelmente, o grupo se

dispersou com o tempo, tanto pelos fatos que viriam a

ocorrer na ONG durante minha ausência quanto pela

má fé de alguns membros, chegando ao ponto do então

representante se apregoar dono do núcleo e restringir

acesso ao livro ata, por exemplo.

179BETO VOLPE

Fui também a um encontro regional de ONGs de

Hepatites Virais, com o querido Jeová, em dezembro.

Também rolou a edição daquele ano do Vivendo, o mes-

mo que fui, no Hotel Glória, em 1998, só que agora em

um hotel na Lapa. Lá conheci um gatinho lindo, a cara e

o jeitão do cantor Lobão dos anos 80, não o fascista de

hoje. Tivemos um affair delicioso e fora da cama tam-

bém nos demos bem, ele sempre me incentivava nos de-

bates – um deles foi durante a discussão sobre a vacina,

uma semana depois da notícia da primeira cura de um

caso de AIDS, o do tal paciente inglês. Como nenhuma

palavra a respeito havia sido proferida pelos componen-

tes da mesa, assim que foi aberto o debate eu perguntei:

– O que vocês acham da recente cura de um caso

de AIDS?

Ao que um deles, pessoa que gosto e admiro um

bocado, reclamou:

– É por isso que a gente não gosta de divulgar resul-

tados preliminares, eles criam esperanças nas pessoas e...

Nem o deixei continuar, levantei-me e protestei:

– Escuta, você acha que a gente vive de quê? Não

só eu, mas todo mundo que vive com HIV desta sala se

alimenta de esperanças a cada dia, é ela que nos man-

tém vivos!

Claro, muitas palmas e gritos de “é isso aí” ou “fa-

lou tudo, Betão”, esta última vinda do meu Lobãozinho,

ao que o palestrante se desculpou e teceu comentários

a respeito. Outra vez, foi quando um dos organizadores do

evento disse que tinha gente que estava fumando maco-nha, que ali era um hotel e isso não poderia acontecer.

180 MORTE E VIDA POSITHIVA

Eu estava ao lado dele e seria o próximo a fazer uso do microfone, e não resisti:

– Pessoal, antes de fazer a relatoria do meu grupo, eu gostaria de falar sobre esse episódio da maconha. Eu fumei maconha em meu quarto (ao que o gato gritou, lá do fundo, “eu também”), tomando todos os cuidados para o cheiro não ir para o corredor. E o quarto do ho-tel é uma extensão da minha casa, tanto de fato como de direito.

Risos gerais. Assim, foi meu último romance e mi-nha última relação sexual plena, uma vez que tudo mu-daria a partir do tratamento que eu estava prestes a ini-ciar. Levaria cerca de três meses com aplicações diárias e, segundo me informaram em consulta, não traria se-quelas permanentes, apenas certo desconforto durante esse período. E eu acreditei...

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SAÍDA PELO NONO ANDAR

As primeiras aplicações não causaram efeitos co-laterais e isso me fazia pensar que talvez nada sério acontecesse. Como elas eram feitas sempre no mesmo horário, havia um monte de gente que se encontrava diariamente para o tratamento. Fiquei amigo de algumas e conversava com todas, sempre procurando estimular aquelas pessoas que estavam deprimidas ou que desa-creditavam do resultado:

– Gente, nós estamos no melhor lugar da América Latina para fazer esse tratamento. Mas nada disso vai adiantar se, aqui dentro – e apontava para o coração – não houver a fé de que tudo dará certo.

Até que estava sendo bem divertido, eu havia trata-do com meus queridos amigos Cláudio Monteiro, Luiz, Cowboy e Fernando Martins de fazer um revezamento de hospedagem, uma semana na casa de cada um, depois repetindo a série e deixando as últimas duas semanas para me hospedar em um hotel vizinho ao hospital, mais um ato intuitivo que se mostrou bastante providencial.

Aos poucos, meu tuiuiú começou a coçar um pou-co, depois de forma incessante e logo veio a dor, que não se parecia com nenhuma outra que eu havia sentido, até então. Era uma dor atômica, que irradiava por toda a região perianal com crescente intensidade. Os médi-cos prescreviam banhos de assento com camomila, mas com o tempo nem isso adiantava mais. Então, passei a tomar medicamentos para a dor, que já alterava meu dia a dia, dificultava meu caminhar, me tirava o sono e ine-briava minha mente de pensamentos sombrios. Além da dor, também havia outro efeito da radiação, o tenesmo,

182 MORTE E VIDA POSITHIVA

que acontece com algumas parturientes que continuam

a sentir fortes e frequentes contrações, mesmo depois

de dar à luz e, só para deixar bem claro, eu estava dando

à luz pelo tuiuiú. Coceira, dores, contrações, sensação

de queimado, tudo junto me fazia tremer e até suar frio,

quando chegava a hora das refeições, pois eu sabia que

aquilo que eu iria comer teria que sair e antever esse

momento em uma mesa de refeições era uma tortura.

Nem o baseado diminuía aquela dor totalmente di-

ferente de todas que eu já havia sentido, intensa, profun-

da e continuada, que transformara meu tuiuiú em uma

rosa radioativa, estúpida e inválida. O tenesmo passou a

acontecer em intervalos de minutos e, a cada contração,

uma corrida para o banheiro. Até que o doutor cedeu a

meus apelos e prescreveu morfina, o que aliviou por um

tempo, mas nas duas últimas semanas, quando já estava

hospedado no hotel, a dor se tornou torturante. Eu não

dormia quase nada, colocava um ventilador apontado

para minha bunda, o ar condicionado ligado e nada de

alívio. Em uma noite de muita ventania em Sampa, eu

cheguei a olhar para a sacada do nono andar e pensar:

– Seria tão fácil acabar com essa dor!

Cheguei a ir até a sacada, confuso, mas retrocedi,

faltava apenas uma semana de aplicações e aquilo tudo

teria fim. E foi no começo desta semana que o doutor

Ricardo, ao me examinar, selou minha alforria:

– Senhor Luiz, o estrago que o tratamento causou

foi bem grande, então vamos suspender a última sema-

na, avaliamos que o que foi realizado até agora já foi o

suficiente.

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Ufa! Respirei aliviado. O calvário do tuiuiú havia acabado e eu finalmente poderia ir embora dali, conva-lescer dos tais estragos e voltar à minha vida normal. Não seria tão rápido assim, as dores e o tenesmo me acompanhariam por um bom tempo, apesar de cada vez menos intensos. Deve ser por isso que a sabedoria po-pular diz que radiação é igual a ‘ex’, a gente não vê, mas continua nos fazendo mal. Mas eu havia terminado o tratamento, não havia me jogado do nono andar e, com a menor intensidade dos efeitos colaterais, eu poderia dar atenção a uma das fases mais tenebrosas da Hipupiara, quando entramos para as estatísticas da violência.

184 MORTE E VIDA POSITHIVA

PERDEU, PLAYBOY!

Logo na primeira semana de tratamento, recebi a ligação de Paulo, marido de Edivaldo e diretor da ONG:

– Beto, arrombaram a porta e invadiram a ONG esta noite, levaram um monte de coisas.

Como eu não podia nem pensar em descer a serra para cuidar disso, perguntei:

– Foi feito B.O.?– Sim, a gente fez tudo direitinho, não se preocu-

pe. Faça seu tratamento que a gente está dando conta de tudo por aqui.

Com mais essa zica na cabeça, prossegui com mi-nha rotina hospitalar, até que, poucos dias depois, veio outra ligação:

– Oi, Beto. Olha, não se preocupa porque a gente está cuidando de tudo, mas a ONG foi invadida de novo.

De novo? Como assim, será que eles não sabem o trabalho que é feito ali? Talvez até soubessem, mas não se importavam, tanto que, de dezembro de 2008 a junho de 2009, a sede da Hipupiara foi invadida oito vezes, com subtração de equipamentos e depredação do que não havia sido levado, incluindo vários documentos e prestações de contas. Entraram pela porta, pela janela, pelo telhado e até por um buraco feito em uma das pa-redes do escritório jurídico. Sinceramente, não sei até hoje como conseguimos manter nossas portas abertas. Muita gente se afastou, com medo da violência, e havia ficado complicado gerir todos os trabalhos sem equipa-mentos e artigos de primeira necessidade.

Várias matérias foram publicadas pela mídia sobre os assaltos, sempre com o pedido de apoio da comuni-

185BETO VOLPE

dade, mas a AIDS não chama mais atenção de ninguém e pífia foi a resposta aos apelos que fazíamos, principal-mente, por voluntários. Até os maiores interessados na manutenção da ONG, as pessoas vivendo com HIV, pa-reciam padecer do mesmo mal que atinge a sociedade, onde todo mundo quer tudo pronto. “Eu tenho direi-tos!”, bradam nos serviços ambulatoriais, nas rodas de conversa, mas, na hora de arregaçar as mangas, poucos o fazem. O fato é que a ONG estava bem fragilizada, sem pessoal e sem recursos, apenas com uma sede e poucas pessoas para tocar os trabalhos.

186 MORTE E VIDA POSITHIVA

SEQUELAIDS

Por essa época, a ONG estava aprofundando suas ações na área de AIDS e deficiências. Já havia participa-do de mesas sobre o tema em congressos e eu também participara da fundação da Rede de Pessoas com HIV/AIDS e Deficiências, que nunca foi para frente, no mes-mo compasso do movimento em geral. Conheci muitas pessoas extremamente sensíveis, como geralmente são as pessoas com deficiências, e os vários profissionais que dedicam seu amor a esse trabalho. Percebi, também, que no movimento havia a mesma divisão interna que na luta contra a AIDS, alguns grupos chegavam a de-clarar que as legítimas pessoas com deficiência seriam aquelas que nasceram assim e não as que a adquiriram no decorrer de suas vidas.

É muito estranho esse tipo de pensamento para quem está no mesmo barco e remando contra a maré. Por várias vezes, eu brinquei, na entrada dos restauran-tes dos hotéis onde participava de algum evento, pedin-do que as pessoas se dividissem em filas de sintomáticos e assintomáticos, sempre com muitas gargalhadas dos presentes. Para variar, era uma brincadeira carregada de ironia, pois cada vez mais o movimento se dividia e cada um só via os interesses de seu segmento. Uma vez, durante a plenária ao final de um evento, tamanha era a discussão entre os participantes que eu, com minha voz naturalmente amplificada, gritei do fundo da sala:

– Pra mim, chega! Já que é pra dividir o movi-mento, estou conclamando todas as pessoas com de-ficiências que se reúnam na antessala do auditório, va-mos fundar a ‘SequelAids’, Rede Nacional de Pessoas Sequeladas pela AIDS. Somente nós, que já olhamos a

187BETO VOLPE

morte nos olhos e carregamos cicatrizes dessa doença em nosso corpo é que temos legitimidade para falar em nome do movimento!

E me retirei. Dali a pouco, começaram a sair alguns amigos, dizendo que a briga tinha diminuído bastante e que ainda tinha muita gente rindo. Claro que eu jamais tomaria qualquer atitude para fragmentar ainda mais o movimento, mas até que seria interessante, para dar um norte para uma embarcação sem bússola.

Mas a melhor parte desse trabalho foram, sem dú-vida, os contatos que fiz em vários lugares do país. Além de minha musa Marta Gil, notável socióloga com vários trabalhos reconhecidos e publicados, houve Ivana, Nan-da, Lilian e vários outros profissionais, além dos sur-preendentes e inestimáveis Tiago, Bia, Mariana e todo o pessoal da Carpe Dien, uma ONG formada por familiares de crianças e jovens com deficiência intelectual, onde já tive o grande prazer de fazer duas intervenções. Também pude participar da Reatech, a maior feira de produtos e iniciativas para a área, quando aconteceram várias edi-ções do Seminário de Sexualidade da Pessoa com Defi-ciência, organizado por minha querida Márcia Gori.

Mas, dentre todos os eventos dos quais pude par-ticipar nessa época, o mais provocante foi o Seminário Nacional de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Pessoa com Deficiência, em Florianópolis. Eu dividi uma mesa com Marta e Tiago, que é um dos autores do livro ‘Mude seu falar, que eu mudo meu ouvir’, escrito por um grupo de jovens com Down, dando toques de algumas mudan-ças de comportamento que as pessoas poderiam adotar para facilitar a comunicação com eles. Tiago havia dito, em algum momento, que não sabia o que era uma tra-vesti, não entendia o conceito. Aí, ele foi apresentado a Bárbara, uma das mais lindas travestis que tive o prazer

188 MORTE E VIDA POSITHIVA

de conhecer naquele Vivendo de 1998, no Rio de Janei-ro, e que atualmente trabalha na área governamental. Os dois ficaram conversando por um tempo, sentados em um canto qualquer.

Quando chegou nossa vez de ocupar a mesa, ele se antecipou a todos e dedicou fala à nova amiga, que mui-to lhe havia ensinado àquela tarde. Externou uma forma de amor absolutamente livre de preconceitos e recheada de carinho por Bárbara, que desidratava em prantos, em meio a algumas centenas de pessoas. Foi tão emocionan-te que, ao final da minha fala, eu me desculpei com to-dos e pedi Tiago em namoro. Ele, rindo muito, disse que já estava comprometido. A vida é bela demais, pensava eu em meu quarto do hotel, mesmo entre um e outro banho de assento, em minha inseparável minibacia para viagens, para aliviar as persistentes dores radioativas no tuiuiú.

Mas a melhor notícia do ano viria de uma consulta médica, no finzinho de março, com o doutor Nicolau que, após analisar atentamente meus exames, por fim decretou:

– Pois é, senhor Luiz, o que no início me parecia impossível aconteceu, o senhor está de alta. Já faz mais de cinco anos do final de seu tratamento e não será mais necessária sua vinda à Santa Casa.

– Estamos livres um do outro – brincou ele, dando talvez seu primeiro sorriso desde o início da aventura.

Aquela consulta marcaria o fim de um ciclo, eu ha-via vencido a AIDS e o câncer, juntos, e eu era mesmo um Highlander, como Caseiro me chama. Porém, assim como no filme homônimo, sempre há alguém à espreita para cortar sua cabeça e eu tinha alguém que empunha-va um alfanje e estava doidinha para decepar a minha. Afinal, havia sido o fim de um ciclo, apenas para que outro recomeçasse, imediatamente a seguir.

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THE SHINNING

Com alta do meu primeiro tumor e final do trata-mento do segundo, recebo uma mensagem eletrônica informando que o STF (Supremo Tribunal Federal) iria realizar Audiência Pública em Saúde, elencando quatro problemas fundamentais encontrados pelo SUS, sobre os quais a sociedade civil poderia enviar teses a serem defendidas. Dentre os problemas estava o acesso a me-dicamentos de alto custo, devido ao grande número de liminares expedidas pela Justiça em favor de pacientes que necessitavam de medicamentos aprovados inter-nacionalmente, mas ainda não incluídos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na lista de distribuição pelo SUS.

Eu já havia necessitado dessas liminares por duas vezes e havia adquirido certa bagagem em minha con-vivência com as advogadas do Hipupiara, então escrevi uma tese e enviamos para análise, meio que para ficar com a consciência tranquila, jamais imaginamos pisar no STF para fazer a defesa de qualquer coisa. A tese era relativamente simples: baseada em experiência piloto no CRT DST/AIDS do Estado de São Paulo, a ONG pro-punha que as demandas fossem enviadas a um comitê técnico virtual, a ser formado pela ANVISA, que ana-lisaria os pedidos e verificaria sua pertinência ou não, ao invés de sobrecarregar a Justiça com situações que promotores e juízes não estão a par. E não é que, algu-mas semanas mais tarde, alguém me liga do Fórum de ONGs/AIDS do Estado de São Paulo, parabenizando por ter sido aprovado para a Audiência Pública!

Uau! Era surpreendente demais e até engraçado, pois entre a Associação Brasileira de Magistrados e o Conselho Federal de Medicina, constava na relação de

190 MORTE E VIDA POSITHIVA

instituições contempladas o glorioso Grupo Hipupiara Integração e Vida! De imediato veio o medo, afinal, es-crever uma tese é uma coisa, defendê-la no STF seria outra completamente diferente, mas a insegurança deu lugar à mais plena confiança, quando fiquei sabendo das reações de algumas pessoas, daquelas que se acham o último ativista do movimento, durante uma reunião do Fórum de ONGs:

– Ele sequer é advogado! – bradaram os ativistas que são tratados por doutor ou professor.

– Temos que reescrever essa tese! – gritou outro, cheio de diplomas, cuja tese fora rejeitada.

Pois é, eu estaria representando a primeira institui-ção da luta contra a AIDS, seja da área governamental ou não, a defender uma tese no STF, quanta responsabilida-de! Dei um trato no que iria apresentar, acrescentando uma série de demandas do movimento à tese inicial, e lá fui eu a Brasília, à base de muita adrenalina e morfina. Hospedei-me no hotel que me fora reservado e, no dia 4 de maio de 2009, eu me apresentava no anexo II do STF para cumprir, talvez, minha maior tarefa, desde que ingressei no movimento de luta contra a AIDS. Ocupei meu assento entre o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica e a Associação Brasileira de Magis-trados e veio o aviso solene:

– Todos em pé, por favor. O Excelentíssimo Minis-tro Dr. Gilmar Mendes irá presidir esta Audiência.

Arrepios... Aquele sujeito baixinho e mal encara-do entrou na sala e, sem maiores delongas, começou a chamar os oradores do dia, sem olhar para ninguém e sequer esboçar um sorriso. Até que chegou minha vez:

– Convidamos agora o doutor Luiz Alberto Simões Volpe, da ONG Hipupiara de São Vicente.

191BETO VOLPE

A partir daí, eu pouco senti meu corpo. Dirigi-me à tribuna, cumprimentei o presidente e demais presentes e cometi minha primeira irreverência:

– Vou pedir licença, senhor presidente, para fazer uma ligeira correção em suas palavras.

O homem parou de escrever e olhou para mim, es-tupefato:

– Eu não sou doutor, não tenho formação acadêmi-ca. E, pela primeira vez em minha vida isso faz sentido, cercado de tantas notoriedades como hoje.

Delícia dupla! Primeiro, por me alforriar da úni-ca atitude minha que me causava um grande arrepen-dimento, que foi largar a Faculdade de Publicidade no meio do TCC, no início dos anos 80. A outra foi corrigir o presidente do STF, em uma transmissão nacional pela TV Justiça. Isso não tinha preço! A partir daí, eu parti para a defesa da tese, com pontos bem objetivos, outros em que carreguei na tinta da emoção e alguns com for-te ironia, que despertaram alguns sorrisos do supremo magistrado do país. Por fim, ameacei aqueles que eram contrários ao que eles chamavam de ‘judicialização’ da saúde com os fantasmas das pessoas que viriam a falecer em decorrência da falta de medicamento, para o derra-deiro e mais aberto sorriso da presidência.

Após minha apresentação, foi anunciado um inter-valo e me dirigi ao cafezinho, para depois ir lá fora fu-mar um cigarro. Quando cheguei no balcão do café, o senhor que os servia me cumprimentou efusivamente:

– Meus parabéns, estou nessa casa há décadas e é a primeira vez que vejo um presidente rir durante uma audiência pública.

Medalha, medalha, medalha!Saí para fumar. Logo depois chegou um senhor, que

me abordou:

192 MORTE E VIDA POSITHIVA

– Sou presidente do Laboratório Wantsomemoney do Brasil, meus parabéns por sua defesa, ela foi precisa e emocionante, no ponto certo.

– Então o senhor é um dos senhores de olhos azuis aos quais me referi na tese?

Eu havia dedicado parte da tese para criticar a vo-lúpia dos laboratórios farmacêuticos, aos quais nomeei como ‘as empresas de homens brancos e de olhos azuis’, como recentemente havia feito o então presidente Lula. Rimos muito.

– Sim, sou eu mesmo. Mas, além disso, sou dono de dois grandes centros espíritas, um em São Paulo e outro aqui, em Brasília. O senhor é espírita?

– Acredito em alguns fundamentos do espiritismo, mas nunca os estudei.

– Pois saiba que em todos os meus anos profes-sando minha fé, jamais vi alguém rodeado de tanta luz quanto o senhor ao defender sua tese. Foi deslumbrante!

The shinning! Eu me senti o próprio Jack Nichol-son em O Iluminado, um de meus filmes favoritos. Saber que o plano espiritual continuava ao meu lado renovou minhas forças e me fez até esquecer de tomar minha dose de morfina à noite, de tão leve e etéreo que eu me sentia. Conversamos um pouco mais, trocamos cartões e voltamos para o restante das apresentações. Poucas se-manas depois, sairia o resultado da audiência, um ofício ao Ministério da Saúde com recomendações baseadas nos trabalhos apresentados. A tese do Hipupiara foi ali transcrita praticamente na íntegra, retiradas as ironias e ameaças. Poderia estar difícil viver, mas era maravilho-so estar vivo e poder interferir positivamente na vida de tanta gente e em espaços tão importantes para a defini-ção de políticas públicas!

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VIVENDO A VIDA

Durante uma morna tarde de final de inverno, eu atendo o chamado do telefone e do outro lado estava minha amiga e jornalista Flávia Cintra. Conheço Flavi-nha desde o início da ONG, quando ela ainda morava em Santos com sua família. Ela também tinha uma histó-ria e tanto, havia ficado tetraplégica em um acidente de carro e lutava árdua e diariamente para concretizar seus sonhos. O que conseguiu de forma brilhante: hoje ela é casada, mãe de um adorável casal de gêmeos e também repórter de uma grande revista televisiva. Mas, à época, ela estava prestando consultoria para a novela Viver a Vida, na qual a personagem principal era uma modelo que sofria um acidente e ficava tetraplégica. Ela vivia o tempo todo assessorando a atriz Aline Moraes, ensinan-do como era a postura do pescoço, da mão, tudo para aproximar ao máximo a ficção da realidade.

– Betinho, você sabe que eu estou trabalhando na produção da novela, né? Então, eles vão exibir, ao final de cada capítulo, o depoimento de pessoas que tenham um histórico de superação e eu já sugeri você. Fique atento que a qualquer momento eles vão entrar em con-tato contigo.

Que ano aquele, seria uma compensação divina por tanto sofrimento com a radioterapia? Eu iria poder compartilhar minhas experiências ao final da novela de maior audiência da TV brasileira e isso seria o máxi-mo! Milhões de pessoas saberiam que viver com HIV é complicado, mas não é o fim do mundo, pelo contrário, pode ser o início de um admirável mundo novo, onde as prioridades são claramente estabelecidas e tolices às quais costumamos dar excessivo valor iriam para a li-xeira das vaidades.

194 MORTE E VIDA POSITHIVA

Conforme foi dito, uma das produtoras da novela me ligou e marcamos a gravação nos estúdios da Vênus Pla-tinada, em Sampa. Fui para lá bastante nervoso, baixou o peso da responsabilidade com relação ao que eu iria falar, mas acabou tudo dando certo e voltei para casa, cheio de expectativas. Assim fiquei até o dia da exibição do depoi-mento, quando eu, meus pais e minha tia Sirene estávamos plantados em frente à TV, aguardando o final da novela. Até que apareci na tela, com aquela música sentimental de fundo, falando sobre minhas peripécias e desafios e, prin-cipalmente, que a gente não deve desistir nunca, mesmo diante do maior desafio. Ao terminar o depoimento, foi aquela choradeira, todos rapidamente nos abraçando, num misto de alegria e despedida, pois meus pais iriam levar minha tia para a rodoviária, de onde ela sairia em vinte mi-nutos, em direção a São José do Rio Preto.

Ainda nos abraçávamos, quando um dos dois te-lefones tocou e, logo a seguir, o outro. Imediatamente, meu celular e daí para frente os três telefones não pa-ravam de tocar e assim ficaram por mais de uma hora: parentes, amigos e amigas estavam radiantes com minha aparição em horário nobre. Assim que tive um tempi-nho, corri para ver como estava a repercussão nas redes sociais e fiquei bege com as ‘trocentas’ mensagens e ou-tros ‘trocentos’ pedidos de amizade, numa clara mani-festação do poder de penetração das novelas brasileiras. Graças a isso, recebi vários pedidos de palestras e semi-nários Brasil afora, afinal, agora eu era platinado, havia virado global! É uma grande pena que o assunto não seja tratado nas tramas, nem que fosse com a simples apari-ção de preservativos no criado mudo, associando prazer e segurança em uma das inúmeras transas que rolam nas novelas. É, a AIDS já não despertava medo nas pessoas e se banalizava a olhos vistos.

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A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DA AIDS

Essa banalização acontecia da mesma forma como banalizaram a tuberculose, na segunda metade do sé-culo passado. Quando se descobriu um tratamento que poderia curar a ‘peste’ que tantos poetas havia dizima-do, ela foi considerada um problema de saúde superado e deixou de ser prioridade nas políticas públicas. Com tamanho descaso, o bacilo de Koch foi se fortalecendo e hoje é muito mais forte, resistente a várias alternati-vas de tratamento, e a tuberculose já é a segunda cau-sa de mortalidade em alguns segmentos da população. Com a AIDS, está acontecendo exatamente a mesma coisa, após a descoberta do coquetel, a doença passou a ser considerada crônica, sob controle. Como conse-quência, os investidores, os organismos internacionais de saúde e a mídia migraram das doenças infectocon-tagiosas, como AIDS e as hepatites virais, para as au-toimunes, como o câncer.

Tem um desenho que eu gosto um bocado, South Park, talvez o humor mais ácido da televisão, que nar-ra as peripécias de quatro amiguinhos do ensino funda-mental em uma pequena cidade do Colorado, EUA. Em um episódio, o mais preconceituoso dos quatro garotos, Eric Cartman, contrai o HIV por causa de um equívo-co da equipe médica durante uma cirurgia de extração de amígdalas. No dia seguinte, ele promove um show do Elton John em seu benefício, no Hilton Hotel, em um salão imenso cheio de mesas com toalhas até o chão e apenas quatro delas ocupadas. Quando a garçonete ser-ve os aperitivos, a mãe de Eric pergunta se não seria me-lhor esperar os demais convidados chegarem, ao que a moça responde:

196 MORTE E VIDA POSITHIVA

– Todos os que compraram ingressos já chegaram,

a AIDS é uma doença do século passado.

Eric solta, então, a máxima do episódio:

– Que merda, eu tinha que pegar essa doença logo

agora que ninguém mais quer saber dela?

Quando irrompe o mestre de cerimônias, Eric o in-

daga a respeito de Elton John, e ouve a resposta:

– Sir Elton pediu desculpas por não poder vir. Ele

foi dar um show para vítimas do câncer, que garantem

muito mais mídia a ele.

Bingo! Mais uma vez o humor desnudando a realida-

de. Nesse episódio, ainda rola uma série de ironias, todas

tão certeiras quanto essa. A AIDS já não era mais notícia

e muito menos prioridade. Financiamento e apoiadores

minguando, ONGs fechando, os voluntários cada vez

mais escassos tornavam a luta cada vez mais árdua.

A essa altura da minha vida, eu já tinha tido vários

artigos publicados em jornais e sites da internet, foi

quando tive a ideia de enviar um texto sobre essa banali-

zação da epidemia, intitulado ‘A insustentável leveza da

AIDS’, para a Folha de S. Paulo. Para minha surpresa, no

final de novembro de 2009, o artigo aparece na página

três, ao lado de um artigo de Delfim Neto. Ui, que ar-

repio na espinha! Minhas palavras tinham sido publica-

das com destaque no jornal de maior circulação do país.

Mais uma vez, no mesmo ano, eu me sentia absolvido

por ter abandonado a faculdade durante o TCC.

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AIDÉTICOS E PESSOAS COM HIV

No entanto, eu sempre me perguntava: as pessoas querem se ajudar? Cada vez mais as pessoas com HIV que procuravam a ONG vinham com um discurso na ponta da língua:

– Ainda bem que nós temos vocês para lutar por nós. Contem comigo!

Essa frase soa mais como uma sentença capital, as pessoas se colocam à disposição, engatam no trem das expectativas e acabam não fazendo nada, tornando-se um peso, ao invés de um suporte para que a diretoria possa realizar seu trabalho de forma mais consistente. Claro, nas festas de Natal, Dia das Crianças e Páscoa, a ONG ficava cheia de gente, muitos dos quais ainda com a cara de pau de reclamar que era cachorro quente e não sanduíche de carne, que o presente não era o que a criança queria e por aí vai.

Outro tipo de voluntário também aparecia com maior frequência, aquele que simplesmente desconhece o significado do voluntariado e que ia direto ao ponto:

– Eu queria ser voluntário, quanto vou ganhar?A vontade era de mandar a figura tomar naquele

lugar, mas a gente mantinha a calma e tentava explicar que, pela Lei do Voluntariado, não se pode dar nem aju-da de custo para transporte. Aí era batata, a pessoa caía fora e não aparecia mais. No entanto, existia, como ain-da existe em todo canto, o dissimulado, aquele que nor-malmente tem uma triste história de vida ou o desejo de mudar o mundo e se apresenta sempre da forma mais franciscana possível. Esses são os piores, pois se fazem merecedores de confiança e, quando você vai ver, o es-

198 MORTE E VIDA POSITHIVA

trago já está feito. Normalmente, seu ‘modus operandi’ é o mesmo: disseminar fofocas para minar o trabalho de alguém que possa ser um obstáculo para sua sanha de brilho e poder. Isso se agravaria um bocado no Hipupia-ra, mas os sucessos institucionais nos davam forças para superar esses contratempos.

O pior é que esse comportamento também se re-produz quando se fala em colegiados formados por re-presentações dessas ONGs ou redes. A fogueira das vai-dades queima forte e verdadeiros cartéis são formados para manter o estado das coisas no âmbito dos movi-mentos sociais. Outro fator que contribuiu para que o movimento nacional de luta contra a AIDS se fragilizas-se foi o trânsito de ativistas para a área governamental. Desde o início da resposta brasileira à AIDS, membros da sociedade civil foram convidados a compor os qua-dros do governo, o que foi muito útil naquele momento em que pouco se sabia sobre a doença e seus impactos. Só que agora isso tinha a finalidade de enfraquecer o controle social e os gestores conseguiram seu intento. Foi regulamentada a carreira de ativista, que inicia como voluntário, passa a agente de saúde, diretor e, a partir daí, o céu é o limite, trazendo muita promiscuidade nas relações entre governo e sociedade civil. Triste é ver que algumas dessas pessoas agem dessa forma, apenas e tão somente para fazer uma viagem mensal a Brasília e se hospedar às margens do lago Paranoá, em um hotel cinco estrelas. Eu começava a me cansar disso tudo.

Aidético é uma palavra horrorosa, um termo que trata de forma equivocada o ser humano e a doença que ele possui. Coloca em destaque a enfermidade, quando na realidade ela é apenas uma das características que

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formam aquele ser humano que ama, trabalha, estuda, curte praia, que vai ao teatro e ao cinema, que beija, pa-quera, trai, joga vôlei... É uma palavra que, sobretudo, tem o poder de matar uma pessoa. Mas bem que algu-mas pessoas que vivem com HIV mereceriam esse tra-tamento, então fica a sugestão para o Aurélio: “Aidético (a): pessoa que vive com HIV e que não aprendeu nada com tudo isso.”

Nessa época, o Hipupiara começou a ministrar uma série de cursos e treinamentos internos em Direitos Hu-manos e Gestão da instituição, com o intuito de fortale-cer os indivíduos para que nas eleições para a próxima diretoria eu pudesse me retirar e cuidar da minha vida. Ela estava jogada às traças e, no início de 2010, eu teria um sinal definitivo de que minha família precisaria mui-to de mim.

200 MORTE E VIDA POSITHIVA

SÃO TANTAS EMOÇÕES...

No começo do ano, eu, Luiz, seu atual marido Co-wboy e mais dois casais amigos, Raquel e Bernardo, Pe-trônio e Tide, alugamos uma casa em Tatuí, para passar o carnaval e saltar de paraquedas, um antigo desejo de voar. Luiz, Cowboy, Petrônio e Tide foram voar de ba-lão, enquanto eu e o outro casal fizemos a opção mais ra-dical. A gente acordou às cinco da manhã, já com taqui-cardia, para tomar café e pegar a estrada rumo a Boituva, cidade onde ficava o clube de paraquedismo. O coração acelerava à medida que o carro avançava na estrada, até que chegamos ao local e as emoções passaram a ocupar totalmente o lugar da razão. Havia um movimento in-tenso, vários grupos estavam agendados para saltar, sen-do que todos tiveram que fazer um curso de 15 minutos sobre os procedimentos de segurança a serem adotados. Foi quando eu soube que eu não colocaria um macacão, seriam apenas algumas alças que passavam pelo meio das minhas pernas e tronco e que seriam conectadas ao meu anjo da guarda temporário, que atendia pelo alen-tador nome de Pombinho.

Naquele momento, eu esqueci completamente o medo de morrer estatelado e passei a imaginar meu sal-to e o momento da abertura do paraquedas que, em um tranco, iria deslocar minhas próteses de cabeça de fê-mur, provocando dores horríveis e me levar para mais um atendimento de emergência no velho instituto de ortopedia. Essa cena passou em minha mente em menos de um segundo e, a partir daí, pouco me importava se eu me esborrachasse no chão. Eu abordei Pombinho, per-guntando se havia algum risco desse pesadelo se tornar realidade, ao que ele disse ser muito difícil, pois o corpo dele receberia 80% do impacto, enquanto meu tronco

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aguentaria a maior parte dos outros 20%, não sobrando quase nada para o quadril. Enfim, chegou nossa vez e os três fomos conduzidos ao avião, sempre com o pessoal de lá botando pilha na gente, em uma estratégia para jo-gar a emoção lá no alto:

– Cuidado com a turbina!– Por esse lado, por esse lado!Entramos e sentamos no chão do avião, com cada

paraquedista encaixado por trás em seu passageiro. Lá dentro, o terrorismo emocional continuava, todas as janelas tinham um adesivo vermelho enorme com os dizeres CAUTION ou DANGER. Foi quando um grande filho da truta de um instrutor nos mostrou seu enorme altímetro de pulso e disse:

– Quando chegar a quatro mil a gente salta.Parecia a história do gato e do churrasco, tem que

ter um olho na carne e outro no bichano, pois todos nós mantínhamos um olho nas pessoas e na paisagem, en-quanto o outro estava preso ao tal altímetro: três mil, três mil e duzentos, três mil e seiscentos... Falta pouco para eu deslocar as próteses!

– ‘Simbora’, galera!Nesse momento, acabaram todas as brincadeiras e

terrorismos, os instrutores nos conduziram firmemente em direção à porta da aeronave, até que chegou minha vez. Parados, à beira de um precipício de quatro quilô-metros, ele me diz para apoiar a cabeça em seu ombro e saltamos. Impossível, absolutamente impossível descre-ver o que se passou comigo naqueles primeiros cinco ou seis segundos. A sensação era a de que eu teria ficado lá em cima, apenas meu corpo estava caindo, uma coisa louca assim. Mas, assim que passa esse momento inicial, vem uma gigantesca onda de prazer, um verdadeiro tsu-nami invadindo cada célula do corpo, principalmente

202 MORTE E VIDA POSITHIVA

por estar desafiando aquela que há tanto tempo cismava em dar as caras. Quando olhei para o lado, lá estava a Tal despencando a meu lado, doida da vida, pois, desta vez, quem ria era eu.

Súbito, a lembrança do momento da abertura do paraquedas voltou com tudo e fiquei estarrecido quando ele começou uma contagem regressiva. Até que demos um tranco e minhas pernas continuavam ali, do jeitinho que estavam antes do salto. Aí não aguentei:

– Puta que pariu, que maravilhaaaaaa! C*#@... Que tesão!

Acho que eu transbordava endorfina por todos os poros e orifícios, tudo aquilo era magnífico, mas princi-palmente a delícia de estar resistindo a uma força incri-velmente maior que eu, a gravidade. Foi quando ele me pediu para segurar as alças do paraquedas.

– Você ficou louco? – perguntei aterrorizado.Ele me tranquilizou e insistiu no pedido, ao qual

atendi, ainda receoso. Ele me orientou para que baixasse um pouco uma das mãos, ao que começamos a descre-ver uma enorme curva no céu. Aquele, sim, foi o mo-mento mágico que eu esperava, o instante em que assu-mi o controle da resistência a essa força pretensamente maior, em uma espécie de batismo de sobrevivente. Após um tempo, ele retomou o controle, demos alguns loopings de tirar o fôlego e pousamos tranquilamente. Ainda no chão, pude ver minha amiga a meu lado e per-guntei se os meus olhos estavam tão arregalados quanto os dela, ao que ela respondeu que sim e começamos a rir muito, nos abraçando. É uma experiência pela qual todo mundo deveria passar, a de desafiar a morte em uma si-tuação radical, ainda que controlada. O ruim é quando as coisas saem completamente do controle.

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TEST DRIVE

O litoral de SP foi seriamente atingido por um forte surto de dengue naquele verão, superlotando as unida-des de saúde e matando várias pessoas. Em casa, nós to-mávamos todos os cuidados para não formar criadouros do mosquito e, para nossa surpresa, minha mãe foi uma das pessoas que teve que ir ao pronto socorro com fortes dores e outros sintomas clássicos. Uma vez diagnostica-da, passou a tarde tomando soro, eu ao seu lado. Deci-dimos que na manhã seguinte, procuraríamos o médico da confiança dela, de onde saímos com a recomendação para que fosse ministrada dipirona em caso de febre.

Após um dia de cuidados e observações, mamis to-mou banho, enquanto eu lhe preparava uma canja bem suculenta. Após o jantar, ela estava bem falante, mas muito cansada, e foi dormir cedo, não sem que eu antes verificasse sua temperatura: 36,9°.

– Mãe, a senhora não está com febre, então eu vou deixar aqui no criado mudo um copo com água e dipi-rona. Caso a febre volte durante a madrugada, a senhora toma, vira para o lado e volta a dormir. Tudo bem?

– Tudo bem, obrigada filho.Há horas em que concordo com o doutor House,

nunca confie em pacientes, eles mentem ou fazem coi-sas absurdas, até mesmo por conta do estado em que se encontram. No dia seguinte pela manhã, acordei e fui di-reto para o quarto dos meus pais, onde encontrei minha mãe ainda deitada, se queixando de muito cansaço. Eu a fiz se levantar para tomarmos o café da manhã e irmos ao seu médico. Quando eu estava pegando os talheres, percebi que o cantinho dos remédios estava revirado:

204 MORTE E VIDA POSITHIVA

– Mãe, alguém mexeu nesse armário durante a noite?

– Eu, filho. Senti que estava com febre, peguei

aquele copinho com água que você deixou, coloquei 40

gotas de dipirona e tomei. Foi difícil achar, estava lá no

fundão, atrás das pomadas...

– Mãe, eu falei ontem à noite que já tinha dipirona

na água! A senhora tomou o dobro da dose!

Não houve dúvidas, liguei para o Edson, pedindo

que nos levasse imediatamente ao médico, que orien-

tou sua internação para que a dengue fosse mais bem

monitorada, dando pouca importância à superdose do

remédio. No trajeto, minha mãe começou a ficar meio

ausente, não respondia às perguntas, o que nos levou a

falar com ela o tempo todo, até chegarmos ao São José,

o mesmo hospital da minha pneumonia e da fratura do

fêmur. Chegamos à ala de convênios, que fica no mesmo

setor da maternidade, onde havia vários pais ansiosos,

à espera por seus filhos. Minha mãe foi colocada em

uma cadeira de rodas e, enquanto o pessoal do hospital

providenciava os detalhes para interná-la, fiquei ao seu

lado, fazendo carinhos em sua nuca. De repente, a cabe-

ça dela caiu sobre minha mão, inerte.

– Socorro, minha mãe tá morrendo!

Não dá para descrever todo o pavor que senti na-

quele momento, não havia profissionais por perto e

eu não conseguia empurrar a cadeira rapidamente até

o setor de emergência, que ficava a uns 100 metros de

onde estávamos. Foi quando Anderson, um dos futuros

papais, levantou em um salto, empunhou as alças da ca-

deira e disse:

–Vem comigo!

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E saiu em disparada pelo corredor, eu na sua cola, mancando aos pulos e desesperado:

– Mãe, fica comigo, mãe, não vai agora! Mãe, pelo amor de Deus, não vai agora!

Chegamos à sala de emergência e, para nossa surpre-sa, ela estava trancada com cadeado. São Vicente é uma cidade que produz verdadeiras pérolas do absurdo. Há uns 40 anos, havia um projeto para instalar um reserva-tório de água em um bairro alto da cidade, que tinha um sério problema pela ação da gravidade. E não é que um vereador apresentou uma proposta de revogação da Lei da Gravidade? E também é, talvez, a única cidade onde uma sala de emergência fica trancada com cadeado.

– Quem tem a chave dessa merda aqui? Minha mãe tá morrendo, porra!

Procura daqui, procura ali, a chave, enfim, apareceu nas mãos de uma enfermeira, acompanhada de um mé-dico, graças aos deuses, conhecido da família. Ao entrar na sala, ele me perguntou:

– Beto, o que aconteceu?– Dengue com overdose de dipirona, 80 gotas.E a porta se fechou diante de mim, não sem que an-

tes eu pudesse ver a Tal lá dentro, alisando os cabelos de minha mãe e me dando uma piscadinha de rabo de olho. Sentei-me no único lugar disponível e, de imediato, uma senhora perguntou se era minha mãe, ao que olhei para ela com os olhos cheios d’água e nem precisou dar a resposta:

– Fique calmo, tudo irá acabar bem. Sua mãe vai retomar a consciência e logo estará de novo ao seu lado.

Depois dessa, não deu para segurar e as lágrimas começaram a correr pelo meu rosto. Eu não tive a mes-ma força que ela que, diante da ameaça de morte do fi-

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lho, deixou escapar apenas aquela furtiva lágrima. Sen-tir a cabeça da minha mãe desfalecer sobre minha mão foi uma das piores sensações que tive até hoje. Minha guerreira tombava por minha causa, como pude ter sido tão ingênuo e idiota? Porém, alguns minutos depois, a porta se abriu e o médico me convidou para entrar, ela já estava estabilizada. Entrei na emergência e lá estava mamis, com um sorriso confuso e fragilizado, mas feliz ao me ver.

– Mãe, que susto!– Nossa, se a minha morte for assim, irei feliz. Tudo

simplesmente apagou, sem dores nem nada.Lembrei-me do compromisso que assumi com meu

irmão, logo após sua morte, de que eu enterraria nossos pais. Bem, não seria daquela vez, ela foi encaminhada a um apartamento, onde permaneceu quase uma semana e voltou para casa bem mais fortalecida. Mas foi uma dura experiência, além do que, ela ainda carrega algu-mas sequelas desse episódio, um verdadeiro test drive da morte, que eu já havia experimentado algumas vezes.

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EU QUERO MEU REMÉDIO!

Desde o final do ano anterior, pipocavam relatos de falta de medicamentos em algumas cidades e estados que, com o tempo, se tornou a maior crise de forneci-mento de medicamentos na área da AIDS. O assunto foi tema de vários debates em comissões e grupos de tra-balho, sem que o problema fosse resolvido. Até aquele vulcão da Islândia, de nome impronunciável, foi usado como desculpa para o desabastecimento que se arras-tou por seis meses. As pessoas com HIV retiravam seus remédios, quando conseguiam, o suficiente para apenas uma semana, 15 dias, quando o correto é para um mês. Muita gente que não tem dinheiro para ir ao serviço de saúde uma vez ao mês não mais estava retirando seus medicamentos e, com isso, comprometendo seu trata-mento e a própria Vida.

Uma vez mais se fazia valer a frase de Caetano: “É impressionante a força que as coisas tomam quando elas têm que acontecer”. Em maio, aconteceria a edição de 2010 do Congresso Brasileiro de Prevenção em AIDS e Hepatites Virais, justamente em Brasília, pertinho do poder e dos holofotes. O movimento de luta contra a AIDS estava se organizando através de listas e grupos fechados para fazer uma bela manifestação na cerimô-nia de abertura, só que as informações vazaram para o governo, então, ficou decidido que um grupo restrito de pessoas idealizaria o ato e somente no dia, através do boca a boca, o formato da manifestação seria divulgado. Eu fazia parte desse grupo restrito e ficou acertado que eu daria o ‘grito de guerra’ para disparar a manifestação, após a qual nos retiraríamos, em sinal de protesto contra a desastrosa política de medicamentos.

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Chegou o dia, o Auditório Ulysses Guimarães come-çou a encher seus quatro mil lugares, enquanto o boca a boca rolava solto. Eu me sentei na primeira fileira dispo-nível para a plebe com minha ‘vuvuzela’, a irritante febre da Copa do Mundo da África do Sul, que aconteceria dali a dois meses. E falei baixinho para as pessoas que me cer-cavam, mostrando a ‘vuvu’ dentro de minha mochila:

– Olha, vocês não se assustem quando eu levantar, já estou avisando para ninguém ter um ataque cardíaco por aqui.

Risos gerais e eu trêmulo, ansioso pelo momen-to em que o então ministro da Saúde, Temporão (José Gomes Temporão), ocuparia a tribuna. O mestre de ce-rimônias chamou, um a um, os componentes da mesa de abertura: três órgãos da ONU, três ministérios e re-presentantes da sociedade civil. Eu procurava relaxar, achando que o ministro seria o último a falar, quando o mestre de cerimônias o anunciou como a primeira pes-soa a proferir sua saudação. Meu coração disparou. Ele se dirigiu ao microfone e, quando respirou para iniciar sua fala, levantei e soprei a ‘vuvuzela’ com todo o ar que havia em meus pulmões, ressoando naquele ambiente sem janelas como a trombeta do apocalipse. E gritei o sinal para os demais:

– Tá faltando meu remédio!Houve cinco segundos de um interminável silêncio,

tempo em que comecei a ouvir gritos de “quieto”, “para com isso” e “uuuuuu”. Como vi que não tinha volta, co-mecei a me dirigir para a frente do palco aos brados. Foi quando começou uma gritaria, eram os jovens vivendo

com HIV que puxavam um monte de ativistas, profissio-

nais de saúde e outras pessoas com HIV munidos de fai-

209BETO VOLPE

xas e correntes, todos vindo em direção ao palco. A in-

segurança se foi e ficamos gritando palavras de ordem,

até que iniciei minha fala de protesto. Nem bem havia

dito a primeira sentença e começaram os gritos:

– Microfone! Microfone! Microfone!

E o ministro, com cara de quem comeu uma ostra

estragada, veio em minha direção e o entregou a mim,

fuzilando-me com o olhar. Ele havia passado um aper-

to danado na véspera, durante uma manifestação em

Goiás, e não acreditava no que estava acontecendo. Aí,

falei tudo o que tinha que ser dito, da incompetência

na gestão de medicamentos, dos remédios entregues em

saquinhos de chup chup e, ao final, virei para a plateia

e finalizei:

– Estamos nos retirando dessa cerimônia em pro-

testo contra essa desastrosa política farmacêutica e

quem também não concorda com ela está convidado a

nos seguir.

Aí aconteceu algo maravilhoso, metade do audi-

tório se retirou, deixando o gomo central praticamen-

te vazio. Na saída, pude ver os pelegos do movimento,

quase todos hoje na área governamental, esgueirando-

se atrás das colunas da entrada. Foram se esconder da

manifestação, mas não adiantou, a própria manifesta-

ção os desnudou. Quando eu estava saindo do auditó-

rio, ainda pude ouvir o ministro se lamentando, dizen-

do que não tínhamos tido educação ao não lhe darmos

o direito de resposta. Mas nem ligamos, fomos para o

saguão anexo ao auditório e começamos a festejar o su-

cesso da manifestação, eufóricos. Gritávamos palavras

de ordem e cantávamos:

210 MORTE E VIDA POSITHIVA

– Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Ah, meu Deus, eu sei que a vida devia ser bem melhor e será! Mas isso não impede que eu repita: É bonita, é bonita e é bonita!

Foi, sem dúvida alguma, a manifestação mais con-tundente realizada pelo movimento social na era pós-coquetel. No dia seguinte, a surpresa: a declaração de Temporão de que teríamos sido mal educados, surtira efeito e foi um trabalhão para os manifestantes desmas-cararem essa jogada suja do ministro:

– Nós tínhamos que sair. Se ele usasse as mesmas desculpas que vinha usando até então, nós não aguen-taríamos calados e aí, sim, seria um barraco daqueles. O ministro teve várias oportunidades de nos dar res-postas e não as deu. Nós não estávamos ali para ouvir nenhuma resposta, aquela era a nossa resposta a tanta incompetência.

Isso foi repetido como um mantra nos corredores e entrevistas para a imprensa, e as pessoas concordavam conosco. O fato é que, desde então, não houve mais falta de medicamentos de forma generalizada, sinal de que deu certo. Mas, como já disse, algumas pessoas e insti-tuições formam um cartel no comando de determinados setores da luta contra a AIDS, muitos dos quais estavam atrás das pilastras durante o protesto. E, talvez para não desagradar ainda mais o provável futuro patrão, o movi-mento decidiu que não seria elaborada nenhuma decla-ração em nome das pessoas com HIV, coisa que foi feita por todos os outros segmentos da luta contra a AIDS, como prostitutas, usuários de drogas, LGBTT... Só nós não a havíamos feito.

211BETO VOLPE

Enfim, fomos para a mesa de encerramento com o auditório bem mais vazio do que na abertura, até que chega a hora do ‘representante’ das pessoas com HIV falar, um ‘ativista’ de Brasília que se desculpou pela falta de educação de seus colegas. Pra quê! Eu e alguns outros ativistas voamos para frente aos brados, afinal, quem ele pensava que era para tirar a legitimidade de pessoas que exigiam seus remédios para continuarem vivas! Tentei alcançar o palco, mas os seguranças me impedi-ram. Continuamos protestando até o fim da cerimônia, quando fomos almoçar no grande restaurante instalado no próprio centro de convenções. Quem estava lá, al-moçando? O próprio ‘pelegão’ que havia se desculpado. O pessoal me pedia para não ir falar com ele, pra dei-xar pra lá, e eu, dissimulado, concordei, até que a fila se aproximou da mesa dele e eu parti para cima, novamen-te aos gritos de pelego, sem vergonha e um monte de outras coisas que eu precisava soltar. Ele é um dos tais ‘aidéticos’ aos quais já me referi e, depois desse evento, sumiu do mapa.

212 MORTE E VIDA POSITHIVA

RECIDIVA

Enfim, avizinhavam-se as eleições do Hipupiara e eu me mantinha irredutível da minha decisão de não mais participar da direção. Foram vários cursos inter-nos realizados e, finalmente, conseguimos formar uma chapa com alguns membros da antiga diretoria e novos integrantes. Eu ainda não sabia, mas isso me renderia muita dor de cabeça, muita coisa errada aconteceu e eu tive, inclusive, que injetar uma boa grana da minha poupança para manter algumas titularidades ardua-mente alcançadas pela instituição. A propósito, du-rante toda a história da ONG, eu cheguei a colocar de meu próprio bolso o valor de um carro médio e tenho o grande orgulho de dizer que nunca recebi nenhum centavo de dinheiro público, salvo ressarcimentos por despesas efetuadas em deslocamentos. Enfim, a nova diretoria estava eleita e eu poderia dar um pouco de atenção à minha vida particular, que sofria de total abandono. Meu último namorado tinha sido Luiz e já fazia quatro anos, isso teria que mudar!

No final de setembro, fui à minha consulta trimes-tral com o proctologista, no AC Camargo, para o pro-tocolar controle do carcinoma. Após entregar a ele os resultados dos exames de sangue solicitados, conversar-mos um pouco sobre como eu estava me sentindo e o doutor Nakagawa me diz:

– Bem, seu Luiz, vamos pedir uns exames de ima-gem para a próxima consulta, ok?

– Tudo bem, mas o doutor poderia fazer um favor? Eu ouvi na mensagem telefônica aqui do hospital que vocês têm o tal de PET CT, um exame que dá a imagem tridimensional do organismo... Acho que meu convênio cobre isso.

213BETO VOLPE

Após concordar, ele fez os pedidos para esse exa-me, além do raio-X e da boa e velha retossigmoidosco-pia. Voltei para casa e tratei de logo agendar o tal PET CT, afinal, não sabia quanto tempo levaria para ficar pronto. Para minha surpresa, o exame foi marcado para dali a seis dias e o resultado sairia em menos de duas semanas, o que me deixou feliz, pois estava ansioso para me ver por dentro, tridimensionalmente.

Abri primeiro o envelope com a conclusão, onde constava a presença de atividade cancerígena na região. Meu coração acelerou e minhas mãos começaram a tre-mer, parti para as imagens e lá estavam duas áreas as-sinaladas em vermelho, uma no reto e outra no abdô-men. Imediatamente, liguei para o hospital e solicitei à atendente a antecipação da minha consulta, ao que ela perguntou o motivo e, após eu responder o que cons-tava no laudo, ela me disse que me ligaria em um ou dois dias para dar a resposta. Para meu desespero, meia hora mais tarde, ela liga remarcando a consulta para dali a uma semana e a retossigmoidoscopia no dia anterior, dando pinta de que havia algo muito errado.

Fui para São Paulo e me hospedei no mesmo hotel da época da ‘rádio’, para fazer o exame em um dia e pas-sar por consulta no outro. Eu estava cada vez mais an-sioso, mil coisas passavam por minha cabeça. Será que eu estava novamente com câncer? Teria que fazer outra radioterapia? Eu iria aguentar? Com esses pensamentos, fiz lavagem retal, introduzindo o bico de uma bisnaga em meu tuiuiú, enquanto via pela TV o elevador entrando e saindo do buraco onde estavam presos, havia dezoito dias, os mineiros do Chile. Novamente a ironia Divina me fazia rir em uma situação pra lá de complicada.

Após a nojeira que é a preparação para o exame, parti para o hospital, onde, após questões burocráticas,

214 MORTE E VIDA POSITHIVA

deixei os resultados do PET CT e, finalmente, entrei na sala de procedimentos. Eu estava tão à flor da pele que virei para a doutora, uma simpática potiguar, e pedi:

– Por favor, sem anestesia.– Como assim, para que sofrer?– Ih, doutora, tô tão nervoso com esse exame que

não estou nem aí para dor.E começou o exame com o gel de praxe e o tubo

entrando tuiuiú adentro. Ela foi bem legal, ficou conver-sando comigo sobre variedades, para ver se eu relaxava um pouco. De repente, o tubo sai e ela diz:

– Pronto, acabou.– Como assim? Não senti nenhuma picada de coleta

de material.– Não há nada em seu reto, está tudo certinho.Esse é o tipo de exame que você sabe na hora se

tem ou não alguma coisa errada, se tiver coleta de tecido para biópsia, o negócio é forçar na oração. E não havia sido feita nenhuma em meu reto, que àquela altura es-tava mais torto que rabo de porco. Foi uma grande sen-sação de alívio e voltei para o hotel exultante, não via a hora de entrar na sala do doutor Nakagawa e dar um fim naquela ameaça de pesadelo. Sabia de nada, inocente!

Na manhã seguinte, entrei vitorioso na sala do doc, que já estava com o resultado do exame na mão e sorriu, dizendo:

– Como esperado, senhor Luiz, o senhor não tem nenhum sinal de malignidade.

E eu perguntei:– E o PET CT, doutor?O exame não fazia parte da rotina, então ele havia

se esquecido e pediu que alguém o buscasse no setor de imagens. Assim que o envelope chegou, ele começou a analisar as chapas, até levantar uma sobrancelha. Eu

215BETO VOLPE

gosto muito de séries investigativas, do tipo que traba-lha com o perfil do assassino, e sabia que aquele levantar de sobrancelha não era um bom sinal.

– Algum problema, doutor?– É, temos um probleminha aqui. Um não, dois!– Como assim?– Seu reto está totalmente recoberto por nódulos e

também existem alguns em seu retroperitônio. – Mas o exame de ontem não deu nada!– Não é no lado externo de seu reto, que foi exami-

nado ontem, é na parede interna.Eu comecei a me sentir um pouco tonto...– Mas, doutor, o que a gente vai ter que fazer? Eu

não aguento outra radioterapia.– O seu caso é de uma recidiva e não será possível

fazer outra ‘rádio’. Teremos que extrair seu reto e seu ânus, costurar, instalar uma bolsa de colostomia defini-tiva e encaminhar o senhor para a quimioterapia.

Juro, quase perdi os sentidos. Não era possível, como assim, recidiva? Eu não sentia nada, meus exames de sangue estavam normais!

– O senhor tem certeza disso, doutor?– Lamento, mas está bem claro aqui em seu exame,

seu Luiz. Vou lhe pedir mais alguns exames, o senhor os faça rapidamente e marque um encaixe.

Saí do consultório da mesma forma como saí do CRAIDS, naquele tão vívido novembro de 1989. Ao andar pelos corredores, eu sentia o denso espectro da Tal me en-volvendo, só que dessa vez não houve sonhos a me prepa-rar, ela veio com o pé na porta. Assim que saí do hospital, encontrei Edson, que me aguardava. Para falar a verdade, ele é muito mais que um taxista de longa data, é um grande amigo que hoje faz parte da nossa família, considerado um filho adotivo por minha mãe. Ele logo percebeu que havia algo errado e, assim que entrei no carro, perguntou:

216 MORTE E VIDA POSITHIVA

– O que foi?Comecei a chorar copiosamente, enquanto a Tal

dava uma estrondosa gargalhada, sentada no banco de trás. Minha cabeça rodava, perdida em meu futuro pró-ximo com mutilação, bolsa de colostomia, outra quimio-terapia, meus pais. Meus pais! De repente, esse fantasma de 1989 também retornou: como contar para eles?

À medida que fui contando tudo para Edson, ele também começou a chorar e acabamos chorando duran-te todo o trajeto de volta para casa. Mas haveria uma se-gunda consulta, com mais resultados de exames, então decidi não contar nada em casa, até que o médico bates-se o martelo. Cheguei em casa e, não sei como, conse-gui ser tão dissimulado que meus pais não perceberam nada, o que foi um grande alívio. Consegui aguentar a barra, praticamente sozinho, contei apenas a alguns poucos amigos, fiz os exames que me foram pedidos e voltei à consulta com o doutor Nakagawa:

– É, seu Luiz, o diagnóstico foi confirmado, infeliz-mente.

– Mas não existe alguma forma de ao menos manter meu ânus e não ser mutilado?

– Lamento, mas pela nossa experiência com casos como o seu, a reto secção é inevitável. Mas, antes disso, teremos que investigar a extensão das lesões e faremos uma cirurgia no reto e outra em seu abdômen. Pode-mos já fazer a reto secção nessa última cirurgia, se o senhor preferir.

– Não, eu prefiro fazer essas duas e depois me pre-parar psicologicamente para a perda do meu tuiuiú.

Bem, Inês era morta. Agora, eu teria que contar para todos o que estava acontecendo, o porquê de eu andar meio distante e evasivo nas últimas semanas.

217BETO VOLPE

DÉJÀ VU 2

Eu e Edson descemos a serra calados, ainda absor-

vendo o veredito final dado pelo doc, com três cirurgias

pela frente, uma bolsa de colostomia definitiva e outra

quimioterapia. Seria uma guerra e tanto, com várias ba-

talhas bastante difíceis, mas a primeira concentrava mi-

nha atenção: contar para meus pais, afinal, agora eu não

teria meu querido irmão para me dar apoio e isso me

aterrorizava. Chegamos em São Vicente e, na primeira

oportunidade que tive, chamei meus pais à mesma sala

onde fui apresentado à Tal pela primeira vez e lá estava

ela, trajando seu velho roupão preto. Ao invés do alfan-

je, portava um bisturi. Não bastava se fazer sentir, tinha

que ter requintes de crueldade.

– Tenho uma notícia nada boa para dar a vocês.

Minha mãe me olhou com aquele mesmo olhar, pe-

dindo que eu não contasse, enquanto meu pai, bastante

abatido desde a morte de Kiko, levantou os olhos como

quem não acredita que a barra iria pesar novamente.

– Estou com recidiva de câncer no reto. Soube dis-

so há quase um mês e somente hoje veio a certeza do

diagnóstico.

– Eu percebi que você estava estranho – murmurou

minha mãe, desta vez contendo aquela furtiva lágrima,

de tantas que já havia derramado desde então.

Meu pai interveio:

– O que vai precisar ser feito? Outra radioterapia?

– Não, não existe radioterapia em casos de recidi-

va. Farei duas cirurgias para identificar o tamanho da

encrenca, depois uma terceira para extirpar meu reto e

218 MORTE E VIDA POSITHIVA

ânus, para instalação de uma bolsa de colostomia defini-

tiva, e outra quimioterapia.

Aí não deu outra, eu puxei o choro coletivo, por

onde extravasei toda minha angústia por aquela situa-

ção. Entre lágrimas, olhei para a Tal e ela estava pro-

jetando todo o filme da minha vida com HIV, desde o

diagnóstico em 1989, passando pela barra de 96, o pri-

meiro tumor, as fraturas, o segundo tumor e agora mais

essa. Será que eu iria aguentar outra ‘químio’? Eu iria

me acostumar com a bolsa de colostomia? Eu teria pro-

blemas com infecções? Daria para ir à praia? Com esses

pensamentos, fui acolhido pelo já esperado apoio dos

meus pais, dando-me segurança e conforto.

219BETO VOLPE

NHÉ! PEGADINHA DO MALANDRO!

Mesmo com o suporte da família, era hora de apelar ao etéreo, novamente. O Hipupiara foi fundador e ocupava uma cadeira no Grupo de Trabalho em Religiões e AIDS de São Vicente, inspirado por uma iniciativa das queridas Ivone e Analice, do CRT em Sampa. Acredito que essa é uma das grandes estratégias de combate à epidemia, afinal, se existe algo que está presente em todos os segmentos so-ciais, da mesma forma que a AIDS, é a fé. Em qualquer lugar do país existe um centro, igreja, templo, terreiro, sinagoga ou mesquita que, respeitados seus dogmas, po-dem contribuir na luta. Era esse conceito que eu tinha que trazer para minha vida, apelar a todos os santos, deu-ses, orixás ou almas para intercederem em meu favor. E como eu tinha vários contatos, por conta do trabalho que desenvolvia, comecei a romaria:

– Alô, Fulana? Escuta, tô com o seguinte problema, será que dá pra pedir para o grupo de senhoras fazer uma novena pra mim?

– Alô, Cicrano? Tô passando pela situação tal, dá para colocar meu nome no culto dos 318?

– Oi, Beltrano, como você está? Escuta, diz para o Seu Tranca que a coisa aqui ta pegando.

Assim, disparei uma verdadeira corrente de boas energias para me fortalecer e, quem sabe, tudo não teria passado de um grande susto. A corrente rodou o mundo, recebi orações até do Timor Leste, através da Pastoral da AIDS e isso foi um senhor alento, pois eu iria precisar de toda força possível para a primeira cirurgia que se aproximava. Segui todo o ritual dos exames pré-opera-

tórios e, enfim, fui internado para a cirurgia no reto. Mi-

220 MORTE E VIDA POSITHIVA

nha mãe e Edson me aguardariam em meu apartamento

no AC Camargo, enquanto eu partia deitado com uma

prancheta com meus dados sobre mim. Após a conta-

gem regressiva da anestesia, acordei na sala de recupe-

ração, ainda sem sentir as pernas. Uma enfermeira se

aproximou e eu perguntei:

– Correu tudo bem?

– Sim, não houve problema algum e logo o senhor

vai estar em seu quarto.

Chegando de volta ao apartamento, lá encontrei

mamis, Edson e a querida Marta Gil. Estranhei, pois es-

tavam todos sorrindo, ao que perguntei:

– O que foi? Por que esses sorrisos?

– O médico passou por aqui e disse que era apenas

inflamação, não há sinal de tumor em seu reto!

- Juraaaaaa?!

E nos abraçamos felizes da vida, pois tudo não havia

passado de um baita susto, até que o doutor Nakagawa

entrou no quarto e, com seu impassível jeitão oriental,

foi logo quebrando o clima de alegria:

– É, seu Luiz, não há nada em seu reto, mas o nódulo

no abdômen ainda tem que ser verificado em nova cirur-

gia e, se confirmar o diagnóstico, os procedimentos serão

os mesmos. Agende sua cirurgia para daqui a dois meses.

– Por que dois meses de espera, doutor?

– Para ter um intervalo de segurança entre as anes-

tesias, afinal, a próxima será mais invasiva que esta.

Após alguns dias internado, recebi alta do AC Ca-

margo e passei dois angustiantes meses, até que lá es-

tava eu novamente vendo as luzes passando pelo teto, a

contagem e a sala de recuperação. Mas, ao voltar para o

221BETO VOLPE

quarto, fui recebido com uma baita festa, todos os que

ali me aguardavam estavam pulando de alegria e vieram

ao meu encontro com abraços e beijos. Ainda zonzo da

anestesia, pensei:

– Que estranha forma do Senhor nos receber no

além... Devo ter morrido na cirurgia e estou sendo rece-

bido com imagens das últimas pessoas que vi em vida...

Ao perceber que eu não estava entendendo nada,

minha mãe se adiantou:

– O médico não te falou? Não tem nenhum tumor

em seu corpo, era só inflamação.

E todos caímos no choro, eu não tinha nenhuma

recidiva, não iriam cortar meu tuiuiú velho de guerra,

também não haveria bolsa de colostomia e muito me-

nos quimioterapia. Foi um baita susto, mas algo de ex-

traordinário acontecera em meu corpo, não havia como

negar, estava lá no exame super moderno que eu tinha

nódulos e o médico havia dado certeza do diagnóstico.

Eu teria que absorver essa situação e trabalhar com esse

‘milagre’, ao menos em minha intimidade. Foi quando a

médica assistente deixou escapar:

– Estranho! É o terceiro falso positivo que essa má-

quina dá em uma semana...

Silêncio no quarto. Com a mente confusa, consegui

apenas perguntar:

– Como assim?

– Essa máquina está confundindo inflamação com

tumor.

– E vocês usam essa máquina em um hospital de

câncer, sem ter certeza de seus resultados?Silêncio novamente, após o qual ela se desculpou

222 MORTE E VIDA POSITHIVA

e tratou de sair do quarto, imediatamente, percebendo que havia falado demais, e para a pessoa errada.

Mais uma vez, minha cabeça se encontrava envolta por sentimentos confusos. Eu havia acordado de um pe-sadelo sombrio e caído na dura realidade de ter sofrido tanto, junto com minha família e amigos, por nada. Por uma interpretação equivocada de um exame de última geração, em um hospital que é referência para toda a América Latina. Assim que o doutor Nakagawa foi me ver, não perdoei:

– Doutor, que história é essa de que a máquina tá confundindo inflamação com tumor?

– É, isso raramente acontece, infelizmente aconte-ceu em seu caso.

Acho que ele não sabia que sua assistente havia dado com a língua nos dentes e aí eu o coloquei em xeque:

– Mas estou sabendo que houve mais dois casos na mesma semana.

Ele ficou lívido na mesma hora e despistou:– É, parece que seu caso não foi o único. Como o

senhor ficou sabendo?– O senhor já deveria me conhecer...Ali nossa relação azedou. Eu estava em um lugar

onde eu tinha plena confiança no equipamento e, espe-cialmente, na equipe de profissionais e essa expectativa não havia sido correspondida. A primeira providência que tomei foi solicitar uma cópia de meu prontuário, aquilo não poderia passar em branco.

223BETO VOLPE

GRAVIDEZ INDESEJADA

À medida que minha indignação crescia, o mesmo acontecia com meu abdômen, uma pequena saliência co-meçava a despontar um pouco acima do umbigo. Como desgraça pouca é bobagem, eu ainda tinha problemas com evacuação, por conta da ‘rádio’, o que me obrigava a fazer muita força. Além disso, estava com uma tosse muito forte, o que fazia com que aquela saliência desse lugar a um monstrengo formado por duas hérnias, que tinham no total uns oito centímetros de lado por uns sete de altura. Doutor Nakagawa era uma pessoa da qual eu queria distância, mas eu tinha que finalizar esse pro-cesso antes de mudar de médico. Ele julgou necessário dar um tempo, pois havia acabado de fazer duas cirur-gias, marcou para março de 2011 e orientou para que, até lá, eu usasse uma faixa abdominal para diminuir os efeitos da tosse e da dificuldade na evacuação.

Minha gravidez indesejada avançava, cheguei a pu-blicar algumas fotos nas redes sociais com os dizeres: “Pessoal, é hora de falar a verdade. As duas hérnias eram apenas desculpa para ocultar uma gravidez que eu não havia planejado. Estou grávido de gêmeas, que já foram vendidas ao Leste Europeu e cuja renda será revertida para cursos de diagnóstico em PET CT para profissio-nais de oncologia.”

Para variar, eu falava sério em tom de brincadei-ra, estudos norte-americanos apontam que o número de falsos positivos para câncer é absurdo por lá. Pessoas que fazem ‘químio’ e radioterapias à toa, sem ter nenhu-ma lesão e, se é assim nos states, não é difícil imaginar a festa que acontece por aqui. Enfim, chegou o dia da

224 MORTE E VIDA POSITHIVA

cirurgia, com suas luzes, a contagem e nem cheguei a ver doutor Nakagawa, acho que ele entrou na sala de cirurgia depois que apaguei, para evitar algum diálogo constrangedor em frente a seus colegas. Acordei com um círculo de 80 pontos no abdômen, tive alta alguns dias depois e em dez retornaria para retirar os pontos, quando fui com Luiz.

Conduzido para uma sala na enfermaria, fui muito bem atendido por uma enfermeira para quem contei a triste história que, para minha surpresa, ela já sabia.

– É, eu soube disso, e parece que as duas outras pessoas também não receberam bem a situação.

Como receber bem uma situação dessas? Tentei ar-rancar dela o nome das outras duas, mas ela disse que desconhecia, até que chegou doutor Nakagawa, com quem eu não conversava desde a alta.

– Como está, senhor Luiz?– Fisicamente estou bem, mas minha cabeça está

um trapo.– É, os outros dois pacientes também estão um

pouco perturbados.– Um pouco perturbados, doutor? Eu quase enlou-

queci, saí pedindo prece para tudo que é credo, revivi o momento em que falei para meus pais que eu tinha AIDS e dei uma tremenda preocupação para minha família!

Silêncio, mais uma vez. E, após a retirada dos pon-tos, uma despedida formal, daquelas que a gente sabe que é para sempre. Saí da enfermaria com Luiz, aprovei-tamos e passamos no protocolo do hospital para retirar a cópia de meu prontuário, eu iria procurar um advogado e tomar alguma atitude.

225BETO VOLPE

CAIU NA REDE, É PEIXE!

Já fazia um bom tempo que eu era bastante atuan-

te virtualmente, especialmente nas redes sociais, onde

meu perfil era bastante agitado. Eu nunca as vi como

forma de comunicação artificial ou mesmo superficial,

eu sempre me comportei online da mesma maneira que

na vida real e conheço pessoalmente mais da metade

dos meus ‘migos’. Também mantenho um blog no qual

publico artigos de minha autoria e notícias, o Carga Vi-

ral, que é uma pedra no sapato de muita gente, especial-

mente dos gestores em AIDS. O então diretor do De-

partamento Nacional de AIDS, doutor Grecco, chegou

a pedir, em uma reunião com membros da sociedade ci-

vil, que deixássemos de procurar a imprensa e, olhando

para mim, de publicar artigos. Do jeito que a AIDS está

sendo tratada hoje por Brasília, dá muitas saudades dele.

Voltando à minha atuação no ‘Face’, eu posto de

tudo um pouco, as fotos de minhas iguarias culinárias,

que deixam o povo morto de ódio, ao mesmo tempo em

que os deixo enlouquecidos quando posto fotos de pri-

mos meus que, invariavelmente, procuram por abrigo

ou carinho. Na verdade são fotos de garotões que pesco

em sites gays, além dos coroas que satisfazem àquelas

pessoas que têm a Síndrome de Orquídea, como disse

minha querida Nadya, as que adoram um pau velho para

se agarrar. Mas o que mais faço é trabalhar com aco-

lhimento de pessoas em dificuldades. Se tenho sempre

uma fila de espera para firmar amizade virtual é porque

tenho poucos critérios para aceitar ou não uma nova so-

licitação, essa abertura existe porque muita gente, de-

226 MORTE E VIDA POSITHIVA

pois de um tempo de adicionada, me confidencia reser-vadamente:

– Olá. Eu também tenho HIV e até agora não con-segui aceitar isso.

– Oi. Eu vivo com HIV há 10 anos, estou bem de saúde, mas gostaria muito de ter a coragem de assumir isso como você faz.

– Oi. Eu sou professor e por ser homossexual es-tou sofrendo bullying na escola onde dou aulas, como posso agir?

Assim, meu mundo cresceu uma barbaridade, te-nho a grande maioria dessas pessoas em meu coração e sinto o carinho que me enviam em suas postagens e comentários, além de, nos momentos difíceis da minha vida, darem o apoio que tanto conforta minha alma. E viva a internet, novamente, assim como foi com a sali-nha HIV, um local de fortalecimento, informação e di-versão, a minha cara.

227BETO VOLPE

HEMODIÁLISE

Havia um ano, mais ou menos, que eu e minha mãe

insistíamos para que meu pai obedecesse à recomenda-

ção do clínico geral para que procurasse um nefrologis-

ta, pois seus exames indicavam sério risco de falência

renal e, consequentemente, teria que fazer hemodiálise.

E, no meio dessa zona toda do meu falso diagnóstico,

finalmente veio a indicação para que ele iniciasse uma

dolorosa rotina de três sessões semanais, com duração

de quatro horas cada uma. Lembro quando ele, lá nos

anos 1980, havia ido a um cardiologista bastante concei-

tuado em São Vicente e recebeu o prognóstico de que

teria uma: “sobrevida” de seis meses. Pois é, bem antes

de mim, o meu pai já lidava com essa palavra que se não

mata, aleija. Ele me procurou em meu emprego quando,

aos prantos, praticamente se despediu de mim ao me

dar a notícia.

O fato é que ele não morreu em seis meses e, desde

então, ele via os profissionais de medicina com certa re-

serva. Desta vez, isso lhe custou caro. As sessões eram

bem sofridas e ele, invariavelmente, chegava bastante

fragilizado. Foi visível a progressiva perda de peso de-

corrente do tratamento. Mas ele manteve toda a galhar-

dia com que sempre se apresentou em qualquer lugar,

com seu porte altivo e sua facilidade em se relacionar

com as pessoas, engatando uma piada assim que subia

no transporte municipal para a clínica. Eu olhava para

ele e refletia sobre a força daquele homem de 80 anos,

que insistia em viver, por mais que a saudade do filho

caçula estivesse estampada em seu rosto e as lembran-

228 MORTE E VIDA POSITHIVA

ças de traições políticas ainda o fizessem remoer senti-mentos negativos.

Tenho profundo orgulho da forma com que meu pai exerceu a política em São Vicente, sempre procuran-do trilhar o caminho da honestidade a serviço do povo. Tanto que, após 20 anos como vereador e outros tantos como assessor no gabinete do prefeito, nosso patrimô-nio se resume a uma casa de dois quartos e um carro po-pular na garagem. Ao passo que o legado moral deixado por ele é um grande contraponto à sujeira que impera na política vicentina, onde pés-rapados transformaram-se em milionários e trocaram seus casebres na periferia por belos apartamentos em frente ao mar.

Apesar dos pesares, o ano transcorria de forma cal-ma, com direito a um convite da minha prima em segun-do grau, Beatriz, e seu companheiro Neto, para eu ser padrinho de batismo de Enrico, em Rio Preto. Claro que aceitei, com bastante orgulho por fazer parte da vida de uma nova geração da família, pois também sou padrinho de casamento de Nathalia, outra prima muito querida de lá, e padrinho adotivo de Jéssica, que pretende ser médica legista. Lembro a piadinha que fala sobre sem-pre ser padrinho, nunca noivou ou pai, pois também sou padrinho de casamento de Eunice, de Celso e Cláudia, do banco, e de meu querido primo Robin, cujo filho Nic-kolas é um grande parceiro de vídeo games.

229BETO VOLPE

CÂNCER NA ONG

Um dia, recebo ligação do João, fundador da ONG e meu sucessor na presidência, dizendo que a primeira tesoureira teria anunciado sua saída da instituição, ale-gando falta de estímulo. Não deu para entender a que es-tímulo ela se referia, pois estava fazendo especialização em administração na USP através da instituição, o proje-to por ela coordenado e pelo qual recebia remuneração mensal havia sido capa de importante revista de saúde, havia total flexibilidade de horário e, após minha saída, o carro da instituição a levava e trazia para casa, quase que diariamente. Sugeri que fosse marcada uma reunião e que ele me convidasse a comparecer.

A reunião teve início com a tesoureira reafirmando sua intenção de se desligar da ONG, mas o que ela não esperava é que seu pedido de desligamento fosse aceito e que eu levaria uma proposta de redistribuição de tare-fas para suprir sua falta. Claro, ela voltou atrás, dizen-do que havia pensado na falta que ela faria à instituição e que daria para continuar até o final de seu mandato. Mas aí nossa amizade foi por água abaixo, a situação fi-cou tensa e achei por bem voltar o foco para meu pai e minha saúde, uma vez que ela continuaria a exercer o cargo de tesoureira e que a tal redistribuição de tarefas seria implementada, ainda que parcialmente. Não durou muito e João me ligou novamente, agora com a notícia de que as relações entre os membros da diretoria e al-guns voluntários não estavam nada boas.

Nova reunião foi marcada e, ao chegar lá, deparo com a tesoureira e sua mãe, que me olhava com olhos de Pinochet encarando um líder socialista. Uma vez inicia-

230 MORTE E VIDA POSITHIVA

da a reunião, João relatou que vários problemas de re-

lacionamento estavam ocorrendo, no que foi aparteado

pela tesoureira e por mim, já com estranhamento entre

ambos. Para minha surpresa, a mãe dela interrompe a

discussão elevando a voz:

– Você está perseguindo minha filha porque ela

descobriu que você estava roubando o Hipupiara!

– Como é que é? – perguntei, atordoado.

– Você está perseguindo minha filha desde que ela

descobriu que você roubou R$ 1.300,00 da ONG e pas-

sou para a conta da sua mãe.

De imediato veio à mente do que se tratava: um ano

antes, a ONG havia sido comunicada que, por conta de

um erro no lançamento de tributos, teria que saldar um

débito de R$ 6.100,00, quantia que não dispúnhamos

em caixa. Como havia um dinheiro para entrar dali a um

mês, convidei minha mãe para fazermos uma ‘vaquinha’

e, para evitar transação financeira direta entre mim e o

Hipupiara, eu transferiria R$ 1.300,00 para a conta de

mamis e ela faria a transferência integral para a ONG.

Uma vez que ela aceitou, liguei para a agência da Caixa

Federal onde mantínhamos conta e pedi para o encar-

regado transferir o dinheiro da minha poupança para

a conta da minha mãe. Ele pediu meu CPF, mecanismo

de busca para acessar minha conta e, equivocadamen-

te, transferiu de uma conta poupança da ONG, destina-

da a um projeto de enfrentamento à tuberculose, que

também apareceu na busca. Esse erro foi percebido pela

própria tesoureira e regularizado uns três meses depois,

o que me fez dirigir-me a ela:

– Você sabe que não foi isso que aconteceu.

231BETO VOLPE

– Você tentou roubar sim e se eu não tivesse desco-berto teria conseguido.

Nesse momento, eu me levantei e me retirei da reunião:

– Estou saindo para contratar um advogado, essa conversa irá continuar no tribunal.

Tem um ditado espanhol que diz: “cría cuervos, y te sacarán los ojos”. Essa garota bateu à minha porta al-guns anos antes, pedindo que eu a ajudasse em seu TCC de administração, que versava sobre o setor social. Fui a algumas reuniões com ela e sua parceira de trabalho, prestigiei sua apresentação à banca e a convidei para ser voluntária. Através de sua dedicação e conhecimento técnico, logo foi alçada à tesouraria e, apesar de vários alertas de pessoas conhecidas sobre as reais intenções da moça, não havia saída, a falta de voluntários qualifica-dos tornava a ONG refém de situações como essa.

Antes de entrar em casa, passei no escritório de advocacia vizinho, onde encontrei o advogado Thiago que, após ouvir meu relato, me solicitou cópias dos do-cumentos bancários e da ata da reunião. Fui para casa, liguei para o banco e relatei o ocorrido ao encarregado que havia autorizado a transferência que, para minha alegria, espantou-se:

– Mas ela sabia que tinha sido um equívoco!– Ufa, Danilo, você não imagina o alívio que suas

palavras me deram, pode se considerar testemunha nes-se processo.

Após esse contato, redigi uma carta à ONG, solici-tando cópia da ata da reunião e, para minha surpresa, foi-me respondido que, por orientação da advogada da instituição, o documento não me seria entregue, o que

232 MORTE E VIDA POSITHIVA

somente veio a acontecer após eu ameaçar recorrer à Justiça para obtê-lo. Por fim, oficializei a causa. Com o passar do tempo, eu inquiria o advogado sobre o anda-mento do processo ao que ele, invariavelmente, atribuía a culpa pelo atraso à morosidade do judiciário, até que me disse que havia sido marcada uma audiência de me-diação para agosto de 2012 que, no final das contas, aca-baria adiada a pedido da então ex-tesoureira. Ela alegou pânico, sempre segundo o advogado que se tornava cada vez mais ausente do escritório vizinho à minha casa.

Foi quando decidi procurar o Juizado Especial Cri-minal, onde se encontrava o processo e, outra surpresa, o mesmo constava como transitado em julgado à reve-lia, pois meu advogado não havia apresentado nenhum dos documentos que haviam sido solicitados. Ele estava mentindo o tempo todo, não somente para mim, vários outros clientes também foram lesados por esse sujeito que nunca mais vi, mas um dia isso irá ocorrer. Entrei com processo contra ele na OAB e, após enfrentar mui-tas barreiras provocadas pelo corporativismo, em 2014 foi instaurado um processo que, lamentavelmente, não viu irregularidades na atuação daquele profissional, fa-zendo com que eu tenha que conviver com esse ataque à minha idoneidade e à da minha mãe, maculados pela irresponsabilidade de uma amiga da onça, que me dói um dia ter conhecido.

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UM DIA DE MICHAEL JACKSON

Para confirmar a tradição, o ano não se encerraria sem um problema de saúde e desta vez era minha vi-são, que ficava mais embaçada. Fui encaminhado para a doutora Luci, uma oftalmologista que mais parecia uma psicóloga holística, com sua saia indiana e um jeito todo zen de se comunicar. Fui saber depois que estudar psicologia era seu objetivo, mas, como morreria pobre, havia resolvido fazer medicina para ganhar grana e de-pois iria realizar seu sonho. Lá, após alguns exames, o diagnóstico: catarata.

– Doutora, eu tenho 49 anos.– Pois é, Luiz Alberto, tenho atendido vários casos

de pessoas com HIV da sua idade, apresentando catara-ta. E, pelo seu histórico, imagino que tenha feito uso de corticoides algumas vezes, não?

– Bota algumas nisso, doutora.– Mas nós teremos um probleminha para fazer sua

cirurgia.Pronto, bastou o diminutivo para eu temer pelo

pior. Sempre que a notícia é ruim, os doutores vêm com “tem um probleminha” ou “vai dar um trabalhinho”. E ela continuou:

– Você fez uma cirurgia de miopia nos anos 80, que consiste em vários cortes feitos com bisturi de diamante no sentido da pupila para a íris. E a cirurgia de catarata é um corte feito ao longo da íris, o que pode causar o efeito ‘pedaço de pizza’ e descolar sua retina.

Mais uma vez, a especialização, não era apenas um caso de catarata, tinha um sério risco de descolamento de retina na cirurgia.

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– Fazer o que, doutora? Ta ficando bastante com-plicado para ler.

A partir daí, seguiu-se uma extensa sessão de exa-

mes e aplicações de laser para reforçar a retina e preve-

nir seu descolamento. A cirurgia foi marcada para um

sábado e lá fomos eu e meus pais para a clínica, naquela

quente manhã de final de primavera, onde também es-

tavam outros oito pacientes que seriam operados, como

numa linha de montagem. Fomos chamados para uma

pequena sala, onde trocamos nossas roupas por aven-

tais, toucas e sapatilhas de tecido, aguardando cada um

por sua vez de entrar na faca. Conforme ia se aproxi-

mando a minha vez, pude ouvir algo do que acontecia

na sala de cirurgia, uma risada ou frase mais alta da dou-

tora ou do anestesista, até que chamaram a senhora que

estava ao meu lado. Uns dez minutos depois, comecei a

ouvir as súplicas da mulher:– Não me engravidem, por favor! Eu não posso en-

gravidar!Credo, o que estaria acontecendo lá dentro, um

caso de abuso sexual em grupo? Finalmente, os gritos cessaram e algum tempo depois chegou minha vez. En-trei na sala de preparação, onde o anestesista tatuado e gatíssimo me aguardava para iniciar os procedimento, quando minha curiosidade falou mais alto e perguntei:

– O que aconteceu com a senhora que foi operada antes de mim?

Ele, entre risos, respondeu:– Algumas pessoas têm reações alucinógenas sob o

efeito do propofol, que é o anestésico que usamos nesse tipo de cirurgia.

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Não é à toa que Michael Jackson era viciado nessa droga, pensava eu, ansioso pela viagem alucinante que seria a compensação por tantos exames e raios laser, até que apaguei. Acordei sentindo-me um pouco tonto e desequilibrado, mas tudo foi passando, enquanto eu colocava minhas roupas e ia ao encontro dos meus pais, que me contaram que eu, durante a cirurgia, havia grita-do com os médicos, pedindo para que não quebrassem minha perna. Bagulho doido, meu!

Enfim, passada a tontura, eu estava me sentindo tão bem que paramos em um shopping de Santos para almoçar e, na praça de alimentação, comecei a sentir meu olho lacrimejar. Pensando ser uma reação normal do pós-operatório, não dei importância para isso, termi-namos a refeição e fomos para casa, eu estava cansado e fiquei em repouso o resto do dia. Meu olho continuava a lacrimejar e foi ficando um pouco vermelho, mas no dia seguinte eu teria o retorno à clínica e a médica veria se aquilo era ou não normal.

Acordamos cedo, com um sol bem forte que anun-ciava um domingo bastante quente. Fomos novamente para a clínica, onde a fila dos oito já estava formada. Fo-ram todos atendidos até que chegou minha vez e, assim que entrei no consultório, foi a vez dos olhos da doutora lacrimejarem, ou quase:

– Senta na cadeira de exames, acho que aconteceu alguma coisa com seu olho.

Ela começou a examinar minha vista esquerda, pe-dindo para eu olhar para a “luzinha”, para a “cruzinha”, caprichando nos diminutivos, até que ela retirou a para-fernália de meu rosto, reclinou na cadeira e determinou, meio que suspirando:

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– Vamos agora para o centro cirúrgico, sua retina está descolando e vamos precisar costurar isso aí.

Tem um videogame que eu jogo de vez em quan-do em que os inimigos são zumbis e têm suas bocas e olhos costurados. E não é que, bem ao longe, eu conse-guia identificar uma risadinha aguda e sarcástica, se de-liciando a cada ponto dado pela médica? Naturalmente que o pós-operatório exigiu muitos cuidados e diversos retornos à clínica, até que a doc, aliviada com a solução do meu problema na retina, me perguntou:

– Beto – já estávamos íntimos –, agora que está tudo bem com seu olho esquerdo, vamos marcar a ci-rurgia do direito?

E eu, assim como quem não quer repetir o encontro amoroso, porque o gatinho contou que tem HIV:

– Eu te ligo, tá?Claro que não liguei e até agora a outra vista tem se

comportado direitinho, acho que ficou horrorizada com tudo pelo que passou sua vizinha esquerda.

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A VOLTA DO BOÊMIO

Outra cirurgia viria a acontecer em março. Fortes dores na virilha denunciavam mais uma hérnia e não teve jeito, a não ser entrar na faca, completando 23 intervenções cirúrgicas em toda minha vida, a grande maioria após a infecção pelo HIV.

Uma ligação da ONG, em maio de 2012, feita pelo querido Celso que, infelizmente, viria a falecer em 2014 por uma série de complicações de saúde, mudou meu rumo uma vez mais. Ao telefone, ele me disse que a ONG estava à deriva, que a tal tesoureira praticamente não ia mais à sede e que a relação entre ela e os demais membros estava de mal a pior. Foi marcada, então, uma reunião com os remanescentes da diretoria e os poucos voluntários que restavam para analisar a situação e ver o que se poderia fazer. Como o mandato da então direto-ria expiraria dali a dois meses, foi consenso que o mais sensato a ser feito seria levar a coisa em banho Maria, até que um novo grupo viesse a assumir a condução da instituição. Foi quando o próprio Celso perguntou:

– Você volta, né? O Hipupiara é você e nesse mo-mento não vejo ninguém para assumir a presidência e devolver a ONG a seu caminho.

Relutei bastante, outras reuniões rolaram e eu insis-tia em permanecer como apoiador, mas não teve jeito, lá estava eu de volta ao ativismo, depois de um ano de reti-ro sabático, forçado pelas decepções com o movimento e pelas necessidades familiares. O problema era que não havia ninguém para assumir a tesouraria que, como foi confirmado depois, teria bastante trabalho para regula-rizar um monte de coisas feitas de forma incorreta. De

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repente, a iluminação: Diadenir, a mesma da viagem ao Uruguai, que já havia sido nossa tesoureira por duas ges-tões, lá no início dos trabalhos. Será que ela toparia uma dor de cabeça dessas? Didi, como costumo chamá-la, é praticante de ioga e meditação há várias encarnações e havia acabado de voltar de uma viagem à Índia, ba-nhado-se no rio Ganges e tudo o mais que tinha direito. Mas, como quem não arrisca, não petisca, liguei para ela:

– Oi, Didi, tudo bem?– Tudo, menino Beto, na maior tranquilidade.– Você não está achando meio tedioso ficar assim,

nessa paz toda? Não estaria interessada em fortes emo-ções? Estou voltando para a presidência da ONG em ju-lho e ainda não encontrei minha tesoureira.

– Menino Beto, parece que eu estava adivinhan-do. Há alguns meses, eu venho sentindo uma vibração estranha me empurrando para fazer algo comunitário, mas não sabia em que atuar. Aí me aparece você com essa proposta, claro que aceito!

Quase caí da cadeira, não é que as coisas estavam se encaixando? Finalmente, tínhamos uma diretoria for-mada e tentaríamos resgatar o Hipupiara de uma situa-ção da qual ainda não sabíamos a dimensão do estrago. Contamos com a mais que preciosa colaboração do que-rido Claudio, o mesmo que me hospedou na época da ‘rádio’, e também de Emílio, uma montanha de ternura e afeto. Era apenas o primeiro passo, outros dois convites iriam selar a volta do boêmio ao ativismo.

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MÚSICA E ATIVISMO

Eu adoro videokês, por três motivos: o palco, os holofotes e os aplausos dos amigos. Videokê é uma ati-vidade leonina por natureza, onde o importante não é interpretar bem uma canção, mas se sentir o próprio intérprete original. Faz parte da minha vida desde os anos 80, quando morava em Sampa e ia quase que sema-nalmente com o pessoal do banco aos então chamados ‘karaokês’, onde normalmente éramos os únicos ociden-tais presentes e tínhamos um cardápio bem reduzido de músicas nacionais para cantar. Foi assim que me reapro-ximei de uma grande amiga dos tempos de São Paulo, a Sônia, uma descendente de italianos linda, loira e que namora João, um negão de tirar o chapéu. Somos gran-des amigos até hoje, pois ela também está aposentada e mora em Praia Grande, o que nos dá a oportunidade de realizar nossos arrebatadores duetos, sempre acompa-nhados por um grupo de amigos muito queridos, como Regina, Mira e Tigrão. Também em karaokês, foram rea-lizados vários encontros da sala HIV da internet, no fi-nal dos anos 90, sendo que em um deles, conheci Lucas, um cara que viria a se tornar ativista da luta contra a AIDS.

Pois bem, em uma bela noite, eu estava no Parce-ria, videokê bem legal, grudadinho na bela Ponte Pênsil, em São Vicente, quando meu celular tocou. Era Lucas, fazendo um convite em nome da instituição que dirigia em São Paulo:

– Oi, Beto, tudo bem? Escuta, a ONG vai organizar um seminário sobre eventos adversos do coquetel e a gen-te pensou em você para escrever e coordenar o projeto.

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Apesar de algumas diferenças que rolaram com ele, quando do meu afastamento do movimento, não hesitei em aceitar, era um tema no qual eu havia me aprofunda-do e seria uma boa oportunidade de discuti-lo de forma apropriada. O evento aconteceria em agosto e o tempo era curto para tudo que precisava ser feito, mas não era somente sobre isso que ele queria conversar. Tinha ou-tro convite a fazer, mas este teria que ser feito pessoal-mente. Marcamos de almoçar em um sábado, quando ele não se fez de rogado e soltou o verbo:

– Beto, o movimento de pessoas com HIV está por um fio. Não há participação do coletivo, o colegiado está desmotivado e, se nada for feito, muito em breve a RNP+SP não existirá mais. O colegiado se reuniu e seu nome foi consenso para representar a Rede no estado de São Paulo, essa é a última chance que nos resta. Estou aqui para te fazer esse convite.

A oportunidade de exercer um papel mais efetivo dentro do movimento era bastante sedutora, talvez pu-desse fazer alguma diferença em um contexto em que a sociedade civil estava acomodada, pelos diversos mo-tivos já citados. O problema era que eu acumularia a presidência do Hipupiara, a representação estadual da Rede, o seminário de eventos adversos e os cuidados, cada vez mais necessários, a meu pai e sua dolorosa e extenuante rotina na hemodiálise. Mesmo assim, agra-deci a deferência e aceitei o convite – para um bom leo-nino, abraçar o mundo não é problema. Imediatamente, fui informado que a assembleia aconteceria em julho, na sempre aprazível cidade de Atibaia.

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HAY QUE ENDURECER, PERO...

Atibaia tem vários hotéis fazenda, sendo que even-tos na área de AIDS acontecem na Estância Lince, de passado tão glorioso quanto o Overlook Hotel, do bom e já conhecido O Iluminado, de Stephen King. Assim como o original, também assombrado por almas que va-gam à noite pelos corredores e pelo enorme gramado, ora se escondendo atrás de árvores, ora se mostrando sob a tênue luz de uma luminária. Durante o dia, os de-bates eram intensos e bastante comprometidos, à noite, a ‘pegação’ rolava solta. Lembro um encontro de ONGs em 2004, que coincidiu com outro evento que estava sendo realizado na mesma estância por três sindicatos filiados à CUT, e tinha entre os participantes uma gran-de estrela do proletariado. O primeiro contato entre as tribos aconteceu na sexta-feira à noite, durante o jantar, quando um movimento sindical rígido em princípios morais encontrou um movimento social caracterizado pela transgressão e pela espontaneidade. Foi um cho-que, eles praticamente evitavam o contato visual, para não dar chances à aproximação.

Porém, no almoço do sábado, o medo parecia ter dado lugar à curiosidade e, aos poucos, a comunicação começou a rolar entre os grupos. O clima ficou mais leve e alegre, até que alegrou demais. Era sábado à noite e várias famílias haviam saído para conhecer as famosas casas de doces locais, enquanto os solteiros sindicalis-tas davam uma festinha em suas cabanas, nos fundos da estância. Apesar de ter todo um contingente de gays, mulheres e travestis se rasgando de vontade de dar um pulinho lá, ninguém tinha coragem de se atrever a tan-

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to. Pois bem, estávamos eu e outros três ativistas muito queridos na porta do hotel, quando chegou um dos rapa-zes dos sindicatos, para o qual eu havia contado uma ou duas piadas na hora do almoço:

– Embora tomar uma gelada com a gente?Com indisfarçável alegria, aceitamos e dissemos

que iríamos em seguida, o tempo necessário para des-pistar nossos companheiros de movimento e adversá-rios na caçada. Trêmulos de ansiedade pelo que iríamos encontrar, fomos para a tal cabana, de onde vinha um som alto de música sertaneja e cheiro de churrasco. Fo-mos recebidos pela embriagada alegria de uns oito caras, todos fortes, suados e que dançavam, coincidência ou não, uma música que falava sobre um peão que sentava no cavalo só para levantar o rabo. Pronto, o passaporte para a alegria estava carimbado, começamos a beber, rir e dançar com os rapazes, até que um deles nos convidou para ir para dentro da cabana, onde teria mais bebida. A excitação era enorme, nós quatro estávamos satisfazen-do vários fetiches de uma só vez. Fomos para a cabana e ficamos na sala bebendo. As conversas começaram a ficar picantes e sugestivas, até que um deles se levantou, baixou o zíper e tirou sua ferramenta industrial para fora das calças.

– Que putaria é essa aqui?E não é que a estrela sindical havia voltado mais

cedo com sua família e pegou todo mundo no maior fla-gra? Foi um tal de colocar as coisas para dentro e a gente para fora, o clima tinha ficado bastante pesado e a festa havia acabado. Saímos de lá sem olhar para trás e rimos muito, quando encontramos o nosso pessoal e contamos o ocorrido. Essa e outras histórias povoam as saudades

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dos tempos em que eu tinha a inocência de que o mo-vimento de luta contra a AIDS era forte e coeso, o que não acontecia em 2012, quando estávamos fragilizados e desarticulados. Seria grande a tarefa de mudar com-portamentos, caso eu fosse conduzido à representação estadual, talvez maior do que convencer as pessoas a usarem camisinhas. Mas, enfim, julho chegou e duas assembleias me levaram à presidência do Hipupiara e à representação da RNP+SP, enquanto se aproximava o seminário de eventos adversos e o Congresso Brasileiro de Prevenção, o primeiro após a manifestação em Brasí-lia e no qual eu teria assento à mesa de abertura.

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A IDADE REAL

No dia 23 de agosto, teve início o Seminário Nacio-nal de Eventos Adversos de Medicamentos em AIDS e Hepatites Virais, no município de Nazaré Paulista. Cerca de 250 inscritos de todo o país, fora os mais de 50 que ficaram na lista de espera, demonstraram o interesse por um tema tão distante das prioridades do governo e mesmo da sociedade civil. Pessoas com HIV e hepati-tes, profissionais de saúde, médicos, gestores, um verda-deiro coquetel de setores ávidos por informações sobre lipodistrofia, osteonecrose, cânceres e envelhecimento precoce. Como palestrantes, foram convidados médicos, pesquisadores e gestores, distribuídos em cinco mesas, todas com nomes de músicas que tinham identificação com o respectivo tema e, para garantir profundidade nas discussões, seria apenas uma mesa por período do dia, com grande tempo para os debates.

A primeira delas foi ‘Da lama ao caos’, trazendo um histórico dos eventos adversos e seu panorama atual. Quando eu digo atual, serve tanto para a época do se-minário quanto para agora. Nada mudou, morrem ou vão parar em cadeiras de rodas, sem saber ao certo de onde partiu o tiro. Enfim, foi uma mesa até que suave. Mas tudo mudaria a partir do debate sobre adesão ao tratamento, ‘Should I stay or should I go’, formada por pessoas com HIV e hepatites, de todos os segmentos, gêneros e idades, que iriam dar seu depoimento e a per-cepção coletiva sobre o impacto dos eventos adversos em nossas vidas. Todas foram falas pesadas, recheadas de dores e limitações, até que chegou a vez do represen-tante dos jovens vivendo com HIV:

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– Muitos de nossos jovens estão com problemas de ereção e várias são as garotas que já estão apresentando os sintomas da menopausa antes mesmo de chegarem à fase adulta.

Peraí! Então, apareceu um dado novo na história, pessoas jovens estavam apresentando os mesmos pro-blemas que os ‘HIVéios’, como se costuma dizer. Des-de que comecei a me interessar pelo tema, um irritante argumento que foi padrão entre gestores e médicos era o de que estávamos vivendo mais, daí aparecerem os problemas relacionados à idade, sendo que alguns che-gavam ao cúmulo do descaso de dizer que deveríamos ser gratos por enfrentarmos problemas relacionados ao envelhecimento.

Os ativistas com HIV já sabiam, há tempo, que os jovens também estavam sendo afetados com o ‘avanço’ da idade, mas não imaginavam o quão abrangente isso era. São meninos e meninas que tomam o coquetel des-de a barriga da mamãe, que agora têm 14, 15, 18 anos de idade e que estão largando o videogame e partindo di-reto para clínicas de ortopedia, oncologia e cardiologia.

A ignorância permeava e continua permeando tudo que se refere a efeitos colaterais, pois até hoje poucas são as pesquisas envolvendo a qualidade de vida das pessoas com HIV. O apregoado ‘melhor programa de AIDS do mundo’ nunca se preocupou com os efeitos em longo prazo do uso do coquetel, o que ficou claro na mesa ‘Retrato em branco e preto’, que abordava a epide-miologia e suas deficiências no acompanhamento desses agravos. Mas nada se compararia às discussões sobre o envelhecimento precoce, que aconteceriam na mesa ‘O tempo não para’. Foram convidados dois médicos, um

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deles, ortopedista do Hospital das Clínicas de São Paulo, que conduzia um dos poucos estudos a respeito da inci-dência de danos ósseos e fez uma brilhante explanação sobre o assunto. No entanto, foi a apresentação de um infectologista do interior de São Paulo que levou os par-ticipantes a um estado de comoção coletiva.

Doutor Alexandre trabalha para a UNESP de Botu-catu, no atendimento de pessoas com HIV, e foi reco-mendado por meu querido Renato, do Rio de Janeiro. Ele era o encarregado de apresentar dados sobre esse fantasma que aterrorizava a todos nós, chamado enve-lhecimento precoce. Superou as expectativas, trazendo vários estudos internacionais e os saberes por eles pro-duzidos, traduzindo em números a dor que sentíamos na pele.

Sim, a ciência finalmente estava comprovando aquilo que as pessoas com HIV alertavam há pelo me-nos uma década, que estávamos ficando velhos em uma velocidade muito maior que o restante da população. Estávamos sentindo as dores e os odores dos desafios que a velhice apresenta, só que aos 50, 40, 20 anos de idade. Um dos estudos apresentados pelo doutor Ale-xandre foi bastante extenso, feito por pesquisadores italianos e que demonstrava que pessoas com HIV na faixa dos 50 anos, e que faziam tratamento há 15, esta-vam apresentando doenças características de pessoas sem HIV com 70 anos. Aquele era eu, afinal eu tinha problemas sérios com gordura no sangue, osteoporose, catarata e disfunção erétil, mas o pior é que eu não era o único a fazer essa constatação. Várias pessoas come-çaram a chorar simultaneamente, todos com a mesma pergunta aflitiva no olhar:

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– Se aos 50 eu estou com 70, com quantos estarei quando chegar aos 55?

Quem não chorava estava visivelmente tenso, nin-guém conseguia entender como pode uma situação dessas não ter a mínima atenção por parte do governo e mesmo da sociedade civil. O clima pesou um bocado na hora do debate, havia um misto de querer saber e ao mesmo tempo não querer saber de mais nada e sair dali para curtir o sofá de casa com uma coberta xadrez nos joelhos. Até que alguém deu uma sugestão:

– Pessoal, proponho que todos aqui tirem uma foto de si mesmos e tornem a fazer o mesmo daqui a cinco anos, para a gente ver o que mudou.

Ainda que ele tivesse falado em tom de brincadeira, o que não foi o caso, ninguém deu um sorriso sequer. A tensão era grande e o desânimo ameaçava derrotar a indignação. Muitas falas durante o debate foram no sen-tido de ir para o tal sofá de casa e curtir o tempo que restava. Até que levantei e disse a todos:

– Ei, pessoal, tudo bem que a situação é grave e de-sanimadora, mas não podemos esquecer que já passa-mos por situação bem parecida quando recebemos nos-sos diagnósticos de HIV+. Não podemos esquecer que, de certa forma, somos privilegiados ao saber o que está nos acontecendo e temos que manter em mente as mi-lhares de pessoas com HIV que estão ficando velhas an-tes de seus pais e não sabem o motivo. Daqui a dois dias estaremos no Anhembi e lá poderemos dar um recado à altura do desprezo que é dado à qualidade de vida das pessoas com HIV.

Para a sorte das pessoas com HIV e do próprio evento, que ameaçava gerar frustração ao invés de ener-

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gia, todo mundo aplaudiu, muitos se colocaram de pé, aos gritos de “é isso aí”, “vamos partir pro pau” e coi-sas do gênero. Era sábado à noite e uma festa à fantasia exorcizou qualquer chance de desânimo, todo mundo se divertiu a valer, até altas horas. No domingo, aconteceu a última mesa, ‘Olhos nos olhos’, com representantes do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Farmá-cia, mas os olhares já estavam voltados para o Congresso Brasileiro de Prevenção 2014, que teria início no dia se-guinte, no Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo. Lá nós poderíamos deixar de ser invisíveis aos olhos dos governos, nem que fosse no grito.

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SE VOCÊ PENSA QUE AIDS É GRIPE...

Partimos de Nazaré Paulista com destino a São Pau-lo, não sem antes nos reunirmos, redigirmos uma carta assinada pelas três redes de pessoas com HIV – RNP+, Rede Jovens e Cidadãs Posithivas – e elegermos a este que vos escreve como representante das pessoas com HIV na mesa de abertura do Congresso. Na oportuni-dade, foi possível observar a tal ‘insustentável leveza da AIDS’: primeiro, porque, no Anhembi, havia menos da metade dos participantes do evento realizado em Brasí-lia; mas o principal indicador dessa leviandade para com a epidemia estava na mesa de abertura, quando, um a um, foram chamados os representantes do ministro da Saúde, do secretário estadual da Saúde de SP, do prefeito da Capital. Em outras palavras, nenhum dos titulares das pastas apareceu, apenas representações que leriam tex-tos pasteurizados e sem profundidade. Aí chamaram os representantes da sociedade civil, das ONGs e, por fim, chamaram meu nome:

– Gostaríamos de finalizar a composição da mesa chamando o representante das pessoas vivendo com HIV, senhor Beto Volpe.

Sério, fica difícil para um leonino escrever sobre o que se passou sem resvalar no orgulho pelo reconheci-mento de tanta gente boa. Teve início ali uma salva de palmas e gritos de apoio que durou, pelo menos, cinco minutos. Eram pessoas com HIV, ativistas de ONGs, pro-fissionais da saúde e gestores que, em pé, não paravam de saudar as pessoas com HIV, dando-nos o reconhe-cimento negado pelos governantes. Eu agradecia, com os punhos em riste, aplaudia e a ovação não parava. Eu

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olhava para os demais membros da mesa, especialmente para os do governo, e não conseguia disfarçar meu olhar desafiador, como quem diz:

– A gente cansou, agora vocês vão ter que nos engolir!Finalmente, as pessoas se sentaram e logo fui cha-

mado a fazer minha saudação, o primeiro da fila. Eu ia começar a ler o que havia preparado quando disparei o primeiro petardo:

– Antes de iniciar minha fala, não dá para não ob-servar que nós estamos mais sujos do que pau de gali-nheiro. É uma total falta de respeito das autoridades que aqui deveriam estar presentes, mas preferiram enviar representantes, demonstrando que a AIDS deixou de ser uma prioridade governamental.

Pronto, teve início outra ovação bastante prolonga-da que continuou nessa toada até o fim da minha fala. Ao final, houve uma grande demonstração de indigna-ção do movimento, com grupos acendendo velas, le-vantando cartazes e iniciando um apitaço que chegou a impedir o representante do ministro de se pronunciar. Estava dado o tom, era hora de virar o jogo e, animados com a retumbante mesa de abertura, as pessoas passa-ram a assistir aos debates e palestras sobre tudo que é tema envolvido na luta contra a AIDS. Nos intervalos entre as atividades, podia-se ouvir um grupo cantando uma marchinha de carnaval:

– Se você pensa que AIDS é gripe... A AIDS não é gripe, não! A gripe dá um trabalhinho... A AIDS dá um trabalhão!!!

Essa paródia havia sido composta em Nazaré Pau-lista, naturalmente, entre um baseado e outro, e virou sucesso da parada musical do congresso. Sempre que se

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juntava um grupo de pessoas com HIV, uma delas pu-xava a marchinha, provocando todo tipo de reação, in-cluindo a de um médico que, ostentando seu jaleco com a logo de um grande hospital particular de São Paulo, não hesitou:

– Hoje em dia, com todo o conhecimento adquiri-do, a AIDS se tornou uma gripe, sim!

Claro, recebeu uma sonora vaia de todo mundo que estava nas imediações e foi embora puto da vida.

Outro fato que chamou a atenção de todos foi o de que os ‘turistas’ da AIDS não mais disfarçavam que es-tavam ali para fazer um AIDS tour, velho conhecido de todo mundo que trabalha na área. Muitas e muitas pes-soas foram vistas no tradicional centro comercial da Rua 25 de Março, facilmente identificáveis pelas bolsas ofe-recidas pela organização do evento. E dessas, boa parte nem se incomodava em aparecer no final da tarde com as compras do dia, loucas para irem a seus apartamentos para experimentar aquela calça que havia custado uma ninharia. É, a AIDS não é mais aquela, olha a cara dela.

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VOLPERINE RIDES AGAIN

À parte todo esse reconhecimento e o carinho, a vida não estava nada fácil. Conforme esperado, a situa-ção financeira e contábil da Hipupiara era lamentável, incluindo o não recolhimento de vários tributos e taxas, o que me obrigou novamente a enfiar a mão no bolso e despejar mais alguns milhares de reais para cobrir o rombo deixado pela direção anterior, enquanto Diade-nir quase enlouquecia para colocar a papelada e a casa em ordem. Quanto à Rede, eu esperava que, com um co-legiado composto por representações das várias regiões do estado, fosse mais fácil administrar e dividir tarefas.

Havia vários compromissos regulares, como o Fó-rum Estadual de Patologias, o Conselho Estadual de Saú-de e diversos comitês dentro do enfrentamento à epide-mia de AIDS. Era muito vai pra lá e vem pra cá, até que uma fisgada na coxa me fez lembrar a dor com sabor de morte que já havia sentido antes, pouco antes da virada do milênio. Primeira coisa a ser feita, passar por consul-ta com doutor Itiro, que pediu alguns exames de raio-X e ali veio um inesperado diagnóstico:

– É, seu Luiz, o senhor está desenvolvendo necrose na extremidade inferior do fêmur.

– Mas o doutor não havia dito que um aspecto po-sitivo da necrose no quadril é que ela não se desenvolve em outras partes do corpo?

– Normalmente não, mas em alguns casos isso é possível de acontecer. Vou lhe encaminhar para o grupo de joelhos, o senhor conhece o doutor Rosseti?

– Sim, cheguei a passar por consulta com ele, há um bom tempo.

– Pois bem, assim será. Agende rapidamente, o pro-cesso está em estágio avançado.

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Meu esqueleto continuava a morrer e novamente a Tal me lembrava de suas palavras em janeiro de 1997: não seria nada fácil viver. Saindo do consultório, tratei de marcar consulta com doutor Rosseti, um galã de arre-piar os ossos, que me recebeu dias depois:

– Seu Luiz, faz tempo que não o vejo por aqui, o que houve?

E eu, tentando esvaziar minha mente de pensamen-tos libidinosos:

– Nós não temos nos visto, mas ando por aqui mais do que gostaria, sempre com o doutor Itiro. Ele diagnos-ticou que estou com outra necrose e me encaminhou para o doutor.

Ele checou os exames que eu havia levado e disse que a necrose estava entrando em um estágio avançado, mas que ele não faria qualquer intervenção naquele mo-mento:

– A bola fica na sua mão, seu Luiz. Quando o se-nhor achar que essa dor está atrapalhando sua vida, re-torne e faremos a cirurgia para a instalação das próteses.

Eu não tinha tempo para me preocupar com o que iria acontecer no futuro, o presente tomava minha aten-ção por completo, tanto na condução dos trabalhos da Rede e da Hipupiara quanto na atenção à minha família. O Dia Mundial de Luta contra a AIDS se aproximava e era necessário capitalizar os dados apresentados no seminá-rio de eventos adversos, da mesma forma como fizeram nos Estados Unidos. A rede de pessoas com HIV de lá havia preparado um verdadeiro dossiê sobre envelheci-mento precoce e enviado aos mais influentes meios de comunicação, conseguindo matéria de capa na conceitua-da revista The New Yorker, com o título: ‘A nova cara da AIDS’. Ora, tínhamos um farto material sobre o assunto com os dados do seminário de eventos adversos, então...

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O SHOW DA VIDA

Então, elaborei um release à imprensa com o mes-mo título (‘A nova cara da AIDS’) e encaminhei à mídia, esperando que algum dos veículos se sensibilizasse e falasse da realidade enfrentada pelas pessoas com HIV, bem diferente do que o senso comum acreditava. Assi-nei o documento como sempre faço, com os destaques de meu prontuário médico no lugar de titularidades aca-dêmicas: ‘Beto Volpe. Representante da RNP+SP. Com HIV há 23 anos, 2 cânceres, 3 AVCs, 23 cirurgias’.

Uma bela manhã, meu celular toca e, assim que atendo, a pessoa se identifica:

– Oi, Beto, meu nome é Aline e sou produtora do Fantástico. Recebemos seu release e achamos que temos uma boa matéria para levar ao ar.

A estratégia havia dado certo! E ela continuou:– A realidade está bem diferente do que as pessoas

pensam, não é?– Pois é, esse é nosso maior inimigo no momento,

a desinformação generalizada sobre o que estamos en-frentando. Que bom que vocês aceitaram a pauta.

– Calma, Beto, a pauta ainda é uma sugestão, vai depender do resultado das gravações. Mas, além dessa realidade toda, o que mais nos interessou foi sua histó-ria, resumida em três linhas após sua assinatura. Você teve tudo isso, mesmo?

– Tive isso e mais um monte de coisas, minha vida tem sido bastante movimentada desde a infecção pelo HIV.

– Bem, quem vai fazer sua matéria é a repórter Flá-via Cintra e, assim que tivermos uma data, entraremos em contato. Você teria contatos de pessoas que se dispu-sessem a dar depoimentos?

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– Em novembro, estarei no Rio de Janeiro, em um encontro de pessoas com HIV. O que mais vai ter lá é gente para contar suas histórias.

– Perfeito, faremos gravações aí em São Vicente com você e também no Rio, nesse encontro que você falou. Parabéns pela luta.

Uau, havia dado certo, a nova cara da AIDS iria aparecer em um dos programas mais vistos da televisão brasileira e, ainda por cima, em matéria feita por minha querida Flavinha, o que dava a garantia de que seria pro-duzida com clareza e ética. Liguei para ela, exultante:

– Você vai fazer a reportagem!– Eu sei, querido, já fui informada pelo pessoal da

produção. Estou achando muito estranho, matérias não são entregues a um repórter que seja amigo do entrevis-tado. Mas estou bem feliz e ansiosa pelas gravações.

No final de outubro, Flávia e equipe vieram a São Vicente, onde ela me entrevistou e também ao doutor Caseiro. Tudo transcorreu da forma mais harmoniosa possível, pois ela conhece minha mãe e o Caseiro, en-tão, estávamos todos em família. Para a gravação exter-na, sugeri um píer desativado na Praia do Gonzaguinha, com uma vista incrível da Baía de São Vicente. Lá, ela encerrou a entrevista:

– Beto, você sonha com o quê?– Eu sonho com a cura da AIDS, com um sistema de

saúde que funcione como deveria e em morrer depois dos meus pais.

Olhamos fundo nos olhos um do outro e quase cho-ramos. Agora, era só esperar pelas gravações no Rio, o recado estava dado.

256 MORTE E VIDA POSITHIVA

NA TRAVE!

Chegou novembro e lá fui eu ao Rio de Janeiro para mais um Vivendo, dos grupos Pela Vidda Rio de Janeiro e Niterói, que teria muitas discussões sobre qualidade de vida e eventos adversos. Os trabalhos iniciaram ainda ecoando as novidades do seminário de eventos adversos e do congresso de prevenção de Sampa, com vários de-bates acalorados sobre o descaso do Ministério da Saúde para com a qualidade de vida das pessoas com HIV.

O querido Márcio, aquele que havia falado da maco-nha em 2008, cochicha em meu ouvido:

– A reportagem está aí, eles querem falar com você.Todos estavam ansiosos pela chegada do pessoal

da TV, então, foi o maior alvoroço, conheci a equipe de reportagem e combinamos como seriam feitas as grava-ções, minha e de outros depoentes. Foi bastante legal sentir que todos estavam mobilizados para que nosso recado fosse dado, empolgados com a possibilidade de uma visibilidade maior para nossa situação.

Domingo chegou e nada do tempo passar, parecia que não iria anoitecer nunca, o que aumentava a ansie-dade em casa, até que anoiteceu e começou o programa. Aparece o Ronaldo fenômeno e nada de AIDS, quem sabe no próximo bloco. Aí vem uma matéria enorme so-bre a noz macadâmia, outra sobre um sambista da Lapa e o intervalo. Talvez no próximo... No último... Nada, acabou o Fantástico e a matéria não havia ido ao ar. Eu e meus pais estávamos incrédulos, pensando no que po-deria ter acontecido, enquanto meus amigos nas redes sociais vieram em forma de avalanche, indignados com tanta falta de consideração com cada uma das pessoas

257BETO VOLPE

vivendo com HIV deste país. Na hora, foi deflagrada uma operação monstro de repúdio, via e-mails e nas pá-ginas do programa na internet.

Eu ainda estava atônito com a não exibição da ma-téria, quando o computador começou a girar para o lado esquerdo, enquanto eu sentia metade do meu rosto re-torcendo, lembrando muito uma crise de neurotoxoplas-mose. Minha única reação foi rezar para que aquilo não fosse nada sério e que passasse logo, o que realmente aconteceu. Sentindo um conhecido bafo quente lamben-do minha nuca, em menos de cinco minutos, novamente minha visão começou a ficar distorcida e meu rosto a repuxar. Eu tinha a intuição que aquilo poderia ser de-corrente do estresse da semana e da frustração pela não exibição da matéria e pedia a todos os deuses que nada de mais sério acontecesse. Esse segundo episódio tam-bém foi passageiro. Fui dormir como há muito tempo não dormia, com medo de não acordar. Um pernoite para relembrar os velhos tempos.

Na manhã seguinte, tratei de falar primeiramente com Caseiro, para ver o que poderia ter acontecido co-migo. Ele concordou com minha intuição, mas sugeriu que eu fosse a um cardiovascular, que agendei pronta-mente. Logo depois, liguei para a produtora da Globo de São Paulo, que me disse que a matéria havia ‘caído’ no Rio de Janeiro, mas que estavam negociando com eles para que fosse exibida no domingo seguinte. Eu desa-creditei completamente nas palavras dela, se tem uma coisa sagrada em comunicação é o tal do ‘timming’, e passei a semana frustrado. A Flavinha, mais ainda, mas me confirmou que estava havendo a tal negociação com a produção no Rio.

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QUER SABER MAIS DO QUE EU?

No domingo seguinte, 9 de dezembro, chovia fino em São Vicente e meu pai não estava muito bem, sentin-do fortes dores abdominais. Liguei para a farmácia do bairro, pedindo que entregassem um medicamento em casa, caso não passasse o desconforto, iríamos procu-rar um médico na manhã seguinte, pois é sempre bom evitar os plantões de final de semana nos hospitais. Aca-bei esquecendo que havia feito o pedido e fui deitar um pouco, afinal, todo mundo tem direito a um soninho após o almoço de domingo. Ouvi um chamado distante, ao qual não dei atenção. O mesmo aconteceu na segunda vez, até que na terceira, ouvi claramente:

– Seu Beto!Lembrei do remédio, pulei da cama e, qual um raio

com mobilidade reduzida, fui em direção ao portão de casa. O problema é que o piso estava molhado da chuva, eu escorreguei e caí da maneira como os personagens de desenhos animados escorregam e caem: fiquei suspen-so na horizontal e desabei com toda a lateral direita de meu corpo, batendo fortemente o quadril e o tórax. Na hora, o ar me faltou, eu tentava respirar e não conseguia, da mesma forma como acontecia nos meus tombos de skate, na juventude. Consegui restabelecer a respiração e tentei me levantar, mas não consegui, pois senti uma dor aguda que vinha de dentro da minha perna, com jei-tão de perna quebrada. Pedi ao entregador que tocasse a campainha para que minha mãe pudesse me ajudar a levantar e entrar em casa.

Deitei-me na cama e, enquanto minha mãe foi pe-gar um analgésico na cozinha, eu tinha certeza que havia

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quebrado alguma coisa no quadril e, talvez, no tórax, al-gumas costelas também doíam bastante. Assim, lá fomos eu e mamis para o temido plantão de final de semana em um hospital de Santos, onde um jovem médico analisou os exames de raio-X e tentou me tranquilizar:

– Pode ficar sossegado, seu Luiz, não há nada que-brado ai.

– Doutor, não pode ter havido um engano? Eu co-nheço dor de fratura, já me quebrei um bocado e já senti essa dor antes.

– O senhor está querendo saber mais que eu? Não há fratura, eu vou lhe receitar um anti-inflamatório, um analgésico e o senhor vai guardar um pouco de repouso até melhorar.

Eu ia insistir com ele, mas sua arrogância era tama-nha que eu resolvi me contentar com a injeção que eu iria tomar e no dia seguinte, ligaria para o doutor Itiro. Voltamos para casa no início da noite, fui para a cama e adormeci completamente chapado dos analgésicos, até que fui acordado por minha mãe aos trancos:

– Beto, Beto, tá passando sua matéria no Fantástico!Levantei zonzo e fui para a sala aos trancos, apoiado

em minha mãe, a tempo de assistir àquela pergunta fi-nal da Flavinha, encerrando a matéria: “Com o que você sonha?” Choramos às pencas em casa, mas nem tivemos muito tempo para festejar, o telefone fixo e os celulares dispararam e, entre uma ligação e outra, eu dava uma olhadinha no Facebook para ver a repercussão. Assim como no episódio do depoimento na novela, já haviam algumas centenas de pedidos de amizade e outras tantas publicações de carinho e reconhecimento por parte de meus amigos e também de gente que eu não conhecia.

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Muitos foram os pedidos de palestras pelo Brasil, sem-pre assessorado por Denise, jornalista amiga das antigas. Sim, havia dado certo, as pessoas com HIV haviam dado um show de vida e isso me fez esquecer a dor e o intui-tivo diagnóstico de mais uma fratura.

Logo pela manhã, liguei para o consultório do dou-tor Itiro e, em se tratando de emergência, ele pediu que eu fosse de imediato. Cheguei com muita dificuldade, utilizando um andador para me locomover, fui encami-nhado para o raio-X e, em seguida, para a sala dele, que avaliou demoradamente o exame e decretou:

– Seu Luiz, realmente não há fratura aqui.– Mas doutor, eu conheço essa dor, é de fratura sim!E ele, após algumas argumentações de ambas as par-

tes, afinou ainda mais o olhar de reprovação por minha desconfiança e me encaminhou para tirar outra chapa.

– Huuummm... O senhor tem razão, seu fêmur está fraturado, mas não completamente, a prótese o está es-tabilizando. Vai ser preciso repousar essa perna por, pelo menos, um mês.

Assim terminou 2012, um ano de muitas conquis-tas e alguns desafios, uma vez que a cirurgiã vascular confirmou a intuição de que aquele repuxo todo não ha-via passado de um estresse. Não seria nada comparado ao que eu passaria em 2013, tanto no trabalho quanto na família.

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O DESCANSO DO GUERREIRO

Um furacão assolou São Vicente no início do ano, em forma de alternância no poder municipal. A co-ligação que o detinha havia 16 anos deu lugar a outra, majoritariamente composta por forças conservadoras, especialmente o fundamentalismo cristão. Antes mes-mo da posse, meu pai já havia entregado seu cargo na prefeitura, no qual foi assíduo, pontual e produtivo du-rante todos os anos em que o exerceu, ao contrário de dúzias de ‘aspones’ por todos os lados. Uma aposenta-doria temerária, uma vez que ele sempre foi um homem extremamente apegado ao trabalho e ter que encerrar a carreira seria um baque e tanto para ele. E assim foi. Ele começou a alternar dias de uma cada vez mais sofrida hemodiálise e dias olhando para a televisão, mas visi-velmente com o pensamento nos desafios que a vida lhe propôs desde garoto. Por mais que sugeríssemos alter-nativas para o lazer, como ir ao pesqueiro ou mesmo se encontrar com outros aposentados que fazem ponto em alguns locais da cidade, nada o animava.

Ao contrário do meu pai, minha vida estava mais animada que nunca. Além dos vários deslocamentos para reuniões em São Paulo, havia uma iniciativa da RNP+SP que era um programa de entrevistas via internet, chama-do Debate Posithivo. Foi bem divertido participar dessa experiência, e também muito produtivo, vários gestores e membros da sociedade civil ali foram entrevistados e era grande o número de perguntas que recebíamos via e-mail. Mas nada superou uma noite em que todos os convidados tiveram problemas por conta do clima e, de repente, me vi sozinho em um estúdio para apresentar um programa ao vivo de duas horas de duração. Não houve dúvidas, a bola foi jogada para a audiência:

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– Você tem perguntas, sugestões ou críticas a fazer sobre qualquer assunto relacionado à AIDS, orientação sexual ou drogas? Fala que eu respondo!

O que aconteceu a seguir foi impressionante, o pro-grama começou a receber uma avalanche de perguntas, desde se o HIV pode ser contraído pelo sexo oral até aquelas sobre temas mais específicos, a maioria sobre efeitos colaterais. Como disse, foi bastante divertido fa-zer esse programa, ao contrário do relacionamento en-tre os membros do colegiado da RNP+SP. Alguns deles sequer se comunicavam com os demais, mesmo tendo sido montado um ‘e-grupo’ exclusivo para isso, a des-peito de manterem uma intensa vida nas redes sociais. Essa situação foi objeto de acaloradas discussões e eu começava a perceber que o padrão de acomodação que se via dentro das ONGs se reproduzia em um colegiado de representações.

Todo esse sentimento de contrariedade, no en-tanto, teve um belo refresco, quando subi ao altar para ser padrinho do casamento entre Flavinha e Valdemar, um antigo amor que havia retornado para completar sua vida. E, no dia 2 de fevereiro, lá estava eu ao lado de Magda, uma linda e assertiva advogada, fazendo piadas sobre a calcinha ‘time B’ que a fotógrafa deixa-va entrever a cada flexão, enquanto Mateus e Mariana, os gêmeos de Flavinha, traziam as alianças ao som de Aquarela, de Toquinho. Não houve quem não chorasse na Igreja de São Judas. Qualquer tipo de cerimônia que celebre a união de duas pessoas é sempre emocionante para mim, talvez por ter passado toda minha juventude achando que eu não teria direito a viver essa emoção e me escondia daqueles que me achavam sujo, depravado ou doente. Hoje, já não me escondo mais, tenho forças para gritar: Fora!

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FORA, FELICIANO!

Em março, os povos do Arco Íris e de Aruanda es-tavam com os nervos à flor da pele, por conta da elei-ção do pastor Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. Ele é todo midiático, com declarações racistas e homofóbicas, apesar do cabelo alisado e das sobrance-lhas fabulosamente feitas. Várias manifestações foram marcadas para o dia 8, uma delas na Avenida Paulista, onde conheci várias pessoas bem legais e com as quais mantenho contato até hoje. Uma pena que, perto do que poderia e deveria ser, pouca gente apareceu, mesmo as-sim deu para fazer um bom barulho, especialmente na minha mente, que logo pensou em realizar uma mani-festação em Santos, no sábado seguinte.

Foi uma correria durante a semana para conseguir, em nome da RNP+SP, um carro de som ou um megafo-ne, comunicar a prefeitura do ato, informar a imprensa e o principal, chamar o povo, que atendeu ao chamado da mesma forma que em Sampa, muito timidamente. É estranho, parece que hoje em dia as pessoas associam qualquer tipo de atividade coletiva à corrupção, da mes-ma forma que era atitude subversiva nos tempos da di-tadura. Mas, ainda assim, foi um ato bem legal, várias pessoas de destaque na região apareceram e gritamos a plenos pulmões, na Praça Independência: Fora, Felicia-no! Você não nos representa!

E tínhamos muitos motivos para isso. No ano an-terior, o Ministério da Saúde havia censurado duas pe-ças publicitárias para o carnaval que visava à prevenção da AIDS entre gays, o que aumentou ainda mais o abis-mo que separava os movimentos sociais de um Depar-tamento Nacional de AIDS que havia ficado de quatro

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para o fundamentalismo cristão. Tramitava um projeto de lei, de autoria da bancada evangélica, que permitiria ao Congresso Nacional rever decisões tomadas pelo Su-premo Tribunal Federal, ameaçando direitos já adquiri-dos, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o aborto em casos de anencefalia. Mas o pior de tudo é que essa ‘representação de Deus’ no parlamento tendia a aumentar, afinal, nas eleições municipais de 2012 as bancadas religiosas haviam crescido uma barbaridade, inclusive em São Vicente, com direito à presidência da Câmara Municipal e Prefeitura.

Eu penso mais ou menos como Einstein, que disse que a incrível complexidade e a infinita magnitude do universo tornam improvável a inexistência de uma força geradora e controladora de tudo. Acredito muito nas leis da natureza, tipo ação e reação, e também que essas leis devam se aplicar a tudo que a gente faz, deseja, pensa ou emite. Respeito profundamente essa força maior que a tudo controla e que tem, em minha opinião, o amor e a justiça como critérios para a tal ação e reação. Há gente que acredita em Jesus, outros em Oxalá, Shiva, Alá, Mao-mé, Santa Sarah, a lista é longa e há deuses para todo o mundo. Agora, se tem uma coisa que não suporto é impor os fundamentos de sua religião como verdade ab-soluta e encher as burras de dinheiro. O Estado é e deve ser laico, para garantir que todos possam professar sua fé, seja ela qual for. Não existiu, na história da humani-dade, um único país que tenha adotado uma religião ofi-cial e não tenha entrado em guerra civil ou com outros países por causa disso. Fora, Feliciano e Malafaya! Fora com todos os malditos mercadores do templo!

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ALFORRIA

No final do mês, eu tinha recebido a super cele-brada alta do tratamento do meu segundo tumor, o da radioterapia horrorosa que transformou meu tuiuiú em uma rosa cálida, mas havia muitas coisas para fazer ao mesmo tempo e todas elas demandando muito desgaste físico e emocional. O principal deles envolvia a saúde e o bem estar do meu pai, que definhava a olhos vistos, exigindo mais atenção de nossa parte, o que nos obrigou a contratar uma ‘cuidadora’ para nos ajudar durante o dia. Era muito triste ver a decadência de um homem que foi uma das figuras mais influentes da política regional e que sempre tratou o bem público com muito respeito. Um homem que sempre alegrava ou constrangia qual-quer ambiente com seu senso de humor mordaz, o qual, orgulhosamente, herdei. Um homem que, apesar de sempre manter certo distanciamento afetivo dentro de casa, nunca deixou que nada nos faltasse e sempre pro-curou nos dar uma vida confortável, mesmo nos anos difíceis do início do casamento.

Mas, pior que a decadência física, o que mais ele deixava transparecer era seu sofrimento pelas lembran-ças do seu passado, todas tristes. O filho que morreu, as traições políticas... Tudo nele era tristeza e comecei a mudar minhas preces:

– Por favor, Senhor, traga descanso a meu pai.Ao mesmo tempo, a diretoria eleita estava tentan-

do salvar o Hipupiara a todo custo, mas, mesmo com a prefeitura oferecendo um imóvel para continuarmos as atividades, o principal não aparecia: recursos huma-nos. Cada vez mais a AIDS perdia importância e cada

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vez menos as pessoas se ofereciam para colaborar com a causa. Além disso, não recebíamos a subvenção anual havia três anos, ou seja, sem grana e sem gente para trabalhar, a diretoria deliberou pelo fechamento da ins-tituição. Foi de cortar o coração: após 14 anos de uma íntegra e contundente ação social, o Grupo Hipupiara assinaria seu atestado de óbito em assembleia realizada para sua dissolução. Essa seria a primeira das três perdas muito grandes e sucessivas naquele ano.

A segunda foi a perda da esperança em um movi-mento de luta contra a AIDS unido e guerreiro, como fora antes do surgimento do coquetel. O que acontecia era exatamente o contrário, havia corporativismo de tudo que é jeito, cada qual defendendo seus interesses regionais, de gênero, orientação sexual ou mesmo pes-soais. Além da omissão da esmagadora maioria dos ati-vistas, que podia ser comprovada nas pífias manifesta-ções e no silêncio que reinava nas listas de discussão e outros mecanismos de integração virtual. No grupo da RNP+SP, especificamente, cheguei a fazer um levanta-mento das mensagens enviadas por mim e pelo coletivo. Eu havia postado 77 consultas ao coletivo nos nove me-ses de representação, com apenas 46 respostas por par-te das dezenas de ativistas paulistas vivendo com HIV. Além do que, o colegiado estava bastante enfraquecido por um episódio envolvendo falsidade ideológica de um dos membros e seu problemático companheiro.

Eu estava cansado e minha aparência refletia esse cansaço muito claramente. Mesmo contando com o va-loroso apoio de Paulo Giacomini, ativista das antigas, não dava mais para continuar com aquele ativismo ‘mas-turbatório’, no qual nunca se goza. O colegiado acatou

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minha proposta e convocou uma assembleia extraordi-nária para abril, onde eu apresentaria minha renúncia e outra pessoa seria eleita para representar a RNP+SP. A assembleia foi iniciada, li as quatro páginas do meu epitáfio de desabafo, agradeci e me retirei da reunião.

Naquele momento, eu senti o mesmo prazer de quem sai do armário, havia a sensação de que duas toneladas de pedras haviam sido tiradas das minhas costas. Não me ar-rependo nem um pouco de ter tomado essa atitude, hoje a situação está ainda mais séria e vejo um futuro muito sombrio para a luta contra a AIDS no Brasil, caso não haja uma verdadeira união entre seus segmentos.

268 MORTE E VIDA POSITHIVA

DAD IS DEAD

A partir de maio, as pernas do meu pai já não su-portavam mais seu peso pelo desgaste de, praticamente, quatro anos de hemodiálise. Ele era o mais antigo de lá, todos que faziam o tratamento quando de seu início já ha-viam morrido e a Tal passara a fazer plantão na cabeceira da cama dele, ao lado de ninguém mais ninguém menos que Suzana Vieira, sua cuidadora. Ele já não conseguia ex-pressar suas ideias com clareza, vivia remoendo as dores do passado e também não conseguia controlar direito seu organismo, o que inverteu nossos papéis do tempo em que eu era um nenezinho e ele trocava minhas fraldas. Nossa relação foi da falta ao excesso de intimidade em poucos meses e, no fundo, eu me sentia muito grato a to-dos os deuses por estar tendo a oportunidade de confor-tar meu pai em seus últimos momentos.

No meio desse rebuliço todo, eu também incluiria mais um CID em meu prontuário, a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), consequência de décadas de fumo. Era finalzinho de maio e doutora Beatriz, uma bela pneumologista, queria me internar a todo custo, pois os testes feitos em seu consultório indicavam uma crise aguda. Relutei tanto que chegamos a um acordo, eu faria o tratamento direitinho em casa, pois jamais deixa-ria minha mãe cuidando sozinha do meu pai e, ainda por cima, preocupada comigo em um hospital.

Ela ainda sofria um pouco com as sequelas da den-gue e de um procedimento cirúrgico em seu aparelho reprodutivo, então, à noite era eu quem mais ficava jun-to a ele, ouvindo suas histórias e mantendo a higiene e o conforto possíveis naquela situação. Às vezes, enquanto

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meu pai falava, eu me pegava pensando nas diferenças que marcaram nossa relação e que haviam provocado sérias discussões e atitudes equivocadas de ambas as partes. Meu pai era um homem conservador nascido no início do século passado, no então atrasado interior de São Paulo, e malufista até a medula, enquanto eu de-monstrara minha homossexualidade logo cedo, assim como a opção política bem mais à esquerda, o que nos colocaria frente a frente em várias ocasiões.

Em uma dessas noites, eu estava sentado ao lado de sua cama, quando ele me pediu que o ajudasse a se sentar. Ficamos cara a cara, distantes meio metro um do outro. Um clima diferente começou a ser sentido no quarto, o espectro da Tal não estava mais em seu plantão na cabe-ceira de papai e foi quando ele alcançou minha mão, de forma trêmula, olhou-me nos olhos e abriu seu coração:

– Beto, nós sempre discutimos muito e eu nunca aceitei sua forma de viver. Mas eu quero que você saiba que eu te amo e tenho muito orgulho da pessoa na qual você se transformou.

Surpreso e com a voz embargada, concordei:– Eu também te amo muito, pai, o senhor sempre

nos deu tudo que precisávamos para viver bem e, além de tudo, o senhor sempre foi para mim um exemplo de ética. O senhor é um homem bom, pai, e eu te amo.

Demos um forte e prolongado abraço. Eu não conse-gui conter as lágrimas que redimiam toda uma existência conflituosa. Então, entendi o fato da Tal não estar ali na-quela hora, tudo naquele quarto era vida. Nós havíamos conseguido reparar nossa relação em tempo, para que ele partisse tranquilo em sua jornada e eu tocasse mi-nha existência por aqui de forma muito mais leve, com a

270 MORTE E VIDA POSITHIVA

sensação de missão cumprida. Meses depois, no último

capítulo da novela Amor à Vida, os personagens Cesar

e Felix representaram exatamente o que nos aconteceu

naquela noite, em uma das cenas mais emocionantes e

libertadoras da teledramaturgia nacional. Quando assisti

a esse capítulo, de imediato, imaginei quantos e quantos

gays estariam ao lado de seus pais conservadores vendo

o verdadeiro amor transbordar sem preconceitos pela

telinha. Recebi vários depoimentos de alguns deles pela

internet, todos relatando que suas famílias também ha-

viam entrado em um estado de remissão coletiva.

Um dia, final de julho, meu pai pede à Suzana que

o levasse ao barbeiro e à prefeitura. Apesar de nossa

oposição inicial, pela fraqueza em que se encontrava,

acabamos concordando e lá foi ele cortar seus cabelos,

outrora sempre impecáveis, e visitar seus amigos. Uma

força agia no corpo dele, pois, naquele dia, várias de suas

amizades estavam na prefeitura e fizeram uma senhora

festa ao vê-lo. Ele voltou do passeio radiante, como se

tivesse realizado a última tarefa do plantão.

Naquela noite, eu e minha mãe estávamos assistin-

do a um programa qualquer na televisão. Eu ia de meia

em meia hora ver se ele estava bem e, se estivesse acor-

dado, trocava algumas palavras, até ouvi-lo ressonar no-

vamente. Em uma dessas passagens, às dez horas, ele es-

tava roncando, então eu ajeitei o lençol que deixava seus

pés descobertos e voltei para a sala. Por volta de dez e

meia, voltei ao quarto e ele não roncava mais. Aproxi-

mei-me e ele não parecia respirar, comecei a chamá-lo

em voz alta e balançar seu corpo, já inerte. Minha mãe

me ouviu da sala e veio em disparada. Pedi a ela:

271BETO VOLPE

– Mãe, liga para o SAMU, acho que o pai morreu!Os deuses haviam atendido minhas preces e meu

pai não iria viver sabe-se lá quanto tempo preso a tubos e ligações elétricas. Em menos de meia hora, ele havia partido como num sonho e não tenho dúvidas que ele deve estar alegrando ou constrangendo os seres com os quais deve estar convivendo. Lembrei-me da reporta-gem do Fantástico e da pergunta da Flavinha, sobre se eu ainda tinha algum sonho: eu havia dito que um deles seria morrer depois dos meus pais. Estava com meio ca-minho andado para realizá-lo e é muito estranho você desejar aquilo que mais teme.

Naquele momento a Tal reapareceu, mas sua ex-pressão não era irônica ou sarcástica, como costumava ser nos últimos 23 anos. Seu sorriso era amigável, ela estava aliviando a tortura de alguém que era prisionei-ro de uma cama e de maus pensamentos. Enfim, veio o pessoal do SAMU e, após todos os trâmites técnicos e legais, meu pai foi velado em um cemitério local. Muita gente foi a seu sepultamente, vários políticos da região e mesmo de São Paulo, além de familiares e amigos muito queridos, para prestar as últimas homenagens a um ho-mem que deixou um grande legado ético para a cidade e para todos que conheceu, inclusive os antiéticos. Des-canse em paz, meu pai!

272 MORTE E VIDA POSITHIVA

BOLÃO ENTRE AMIGOS

De repente, a casa silenciou, não havia mais a cuida-dora, os traslados para a hemodiálise. Passou a imperar o silêncio que era um alívio, pois meu maior medo com relação a meu pai era o de que ele padecesse naquela cama com seu sofrimento, por anos a fio. É muito recon-fortante pensar que àquela hora, quem sabe, ele estaria reencontrando Kiko e um monte de gente querida. Res-tamos eu, minha mãe e Duquinho, nosso poodle que, à época com 16 anos, já não mais enxergava ou ouvia e se guiava pelos instintos e pelo que lhe restava do olfato.

Passamos alguns meses nos acostumando à nova rotina e, em novembro, eu me dei a um luxo que há tem-pos desejava: passar uns dias em um SPA. Fui para Itu, onde fiquei dez dias em um chalé super simpático, com direito a ofurô na varanda, alimentando-me com mil e duzentas calorias por dia, e olhe lá! Muita ginástica, fi-sioterapia e sossego me deram bastante gás para voltar com uma visível melhora física e motora, afinal, o me-lhor da vida sempre está por vir! Uma noite, durante o lanche, veio a ideia:

– Mãe, a gente bem que poderia fazer um bolão...Minha mãe, que me conhece mais que eu mesmo,

olhou de rabo de olho como quem pergunta ‘O que vem por aí?’.

– A gente faz um bolão de quem vai primeiro, se eu, a senhora ou o Duquinho! A senhora é o azarão, é quem vai pagar mais, eu e Duquinho estamos cabeça a cabeça, na ponta, vamos pagar uma merreca.

Ela não aguentou e estourou em uma sonora garga-lhada, seguida de um solene ‘Ai, meu Deus do céu!’. Gra-

273BETO VOLPE

ças aos deuses minha relação com minha mãe só vem melhorando com o tempo e, para minha felicidade, ela optou por ser feliz, ao invés de chorar o leite derra-mado e as perdas da vida. Até hoje ela viaja em excur-sões com amigas e ainda vai a seus bingos beneficen-tes. Com frequência, estamos curtindo um bom happy hour em algum barzinho gostoso, como o Quiosque da Cris, para onde fomos uma vez, acompanhados da mi-nha tia Sirene. Estávamos comendo nossa lulinha com cebolas fritas, quando duas travestis lindas e cheias de classe sentaram em uma mesa mais ou menos próxima. Claro, em pouco tempo, já estávamos mantendo conta-to à distância, até que na hora de irmos embora eu fiz as apresentações:

– Essa é Aída, minha mãe.– Muito prazer.– E essa é Sirene, companheira de mamãe há 23 anos.Desnecessário descrever a expressão da minha mãe

e, especialmente, da minha tia, uma senhora do interior que não acreditava no que havia acabado de ouvir.

– Nossa, que espetáculo, meus parabéns! – saudou uma das meninas.

– Isso é onda do meu filho, esse maluco! Ela é irmã do meu falecido marido, não dê ouvidos para ele, não!

Fazer da existência da minha mãe um oceano de ro-sas passou a ser meu maior objetivo, depois de permane-cer vivo. Sou extremamente grato aos deuses por poder proporcionar a ela o máximo de risadas, as melhores re-feições e toda liberdade que ela puder desfrutar, após uma vida inteira condicionada a terceiros. Queria também po-der dar a ela todo meu coração, mas outra pessoa passaria a ocupar um lugar especial dentro dele, o cardiologista.

274 MORTE E VIDA POSITHIVA

SORRIA, VOCÊ ESTÁ HIPERTENSO

No início de 2014, eu estava bem fortinho, com ab-

dômen sarado e orgulhoso por ter dado continuidade ao

condicionamento físico iniciado em Itu. Treinava três

vezes por semana na Renascer, clínica de fisioterapia

que frequento desde os anos 90. Em março, sob o calor

do verão, cheguei à academia ofegante demais para as

três quadras que havia caminhado, encostei no balcão e

fui logo pedindo:

– Alguém me arruma um copo d’água, estou um

pouco enjoado.

Quando ouvi minhas próprias palavras eu lembrei

que enjoo é um dos sintomas de infarto, ao que mudei

meu pedido:

– Alguém chama o Paulo, acho que to tendo um treco.

Paulo desceu correndo as escadas e me levou a uma

sala onde mediu minha pressão: 23 x 18.

– Cara, é hospital agora mesmo!

No pronto socorro, fui medicado e peguei um en-

caminhamento a um cardiologista. Lá fui eu ao tenebro-

so mundo das veias e artérias, das sístoles e diástoles.

Mas o cardiologista também conheceria meu tenebroso

mundo e não disfarçou a reação de espanto com o relato

do meu histórico, já uma praxe comigo. Em suma, ele

restringiu meus exercícios e me prescreveu mais três

medicamentos, elevando para 26 comprimidos diários,

sendo que a maioria deles não é contra o HIV, mas para

a hipertensão, colesterol, triglicérides, osteoporose, re-

fluxo... Às vezes penso que Malévola rogou uma maldi-

ção em meu nascimento:

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– Toda vez que você estiver reabilitado e ganhan-do massa muscular, algo acontecerá e terá que começar tudo de novo.

Tem sido assim desde 1996, não houve um ano se-quer em que uma fratura, atropelamento ou situações familiares não tenham botado a perder toda minha mas-sa muscular e me feito reiniciar a reabilitação pratica-mente do zero. Às vezes, bate uma frustração enorme, outras vezes, há a resignação diante de algo que parece escrito para acontecer.

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O ÚLTIMO ELO

Na verdade, voltando a falar da minha mãe, ela ain-da não estava livre para ser feliz, pois Duquinho, que era o grande amigo de Kiko, tinha a saúde para lá de debilitada, havia completado 17 anos em março e não mais enxergava ou ouvia. Apenas um resto de faro e seu instinto o guiavam pela casa aos trancos e barrancos, o que lhe rendeu o carinhoso apelido de Carrinho de Trombada, aqueles dos parques de diversões. Seu lugar na hierarquia doméstica era acima de todos, pairando sobre a cadeia alimentar, afinal, era a última ligação fí-sica entre nós e meu irmão. Os caminhos se abriam, o auxílio era imediato e não seria por falta de carinho que ele iria padecer, todos se revezavam em cafunés e imagi-nários diálogos infantis.

No primeiro domingo de outubro, eu e minha mãe havíamos saído para jantar e, assim que chegamos em casa, percebemos que ele não havia comido nada, ao contrário, não havia se levantado de seu cafofo, ao lado da cama da minha mãe. E taca-lhe água com uma serin-ga. Tentamos dar comida na boquinha e fazer de tudo para o máximo de conforto. Na segunda, logo de ma-nhãzinha, nós o levaríamos à doutora Márcia, sua vete-rinária de longos anos e amante de animais, assim como toda sua equipe.

Infelizmente, não deu tempo, após uma noite en-tremeada de ganidos de despedida, pela manhã, minha mãe me procura, com lágrimas nos olhos:

– Beto, vai lá ver... Acho que o Duquinho se foi!Chegando lá, eu o vi deitado de lado, com as patas

esticadas, o que provocou arrepio que correu toda mi-

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nha espinha. Mais uma experiência íntima com a Tal, como se já não bastasse ter vivido de forma tão próxima a morte do meu irmão e do meu pai, além das minhas experiências de quase morte. Reparei que sua barriga não se movia e fui fazer um carinho para ver se havia al-guma reação. Seu corpo estava frio, então, fiz aquilo que nunca deveria ter feito, eu o peguei nas mãos. Tirando os episódios de CSI, eu nunca havia visto e muito menos tocado em um corpo com ‘rigor mortis’, até àquela hora. Seu corpo estava completamente duro, eu o ergui como quem pega uma estátua peluda e comecei a chorar, não tanto por ele, que havia encontrado a liberdade perdi-da há tempos com as limitações físicas. Eu pensava em minha mãe, pois eu tinha a nítida sensação de que ela sentia novamente a perda do filho.

Envolvi-o em seu lençol, liguei para a veterinária e, enquanto esperávamos, choramos bastante pela per-da de tantos significados em nossas vidas. Éramos seis e a partir daquele momento seríamos somente nós dois, mas eu tinha esperanças que minha mãe, enfim, pudesse dar seu grito de liberdade, ainda que tardio.

278 MORTE E VIDA POSITHIVA

E VIVA A FAMÍLIA!

Os dias passaram e o Natal de 2014 não foi tão pe-

sado quanto os anteriores, para falar a verdade, foi bem

legal, com minha tia Lúcia, em mais uma estada em

Campos do Jordão. Comemos de montão, passeamos

bastante e eu até tomei um tombo daqueles na inexpli-

cável falta de acessibilidade daquela cidade. Durante a

ceia, nós brindamos por mais um ano de resistência às

dores e tristezas da vida, pela sensação de acolhimento

de poder estar com pessoas muito queridas. Esse sen-

timento seria reforçado no réveillon, quando tia Sire-

ne veio de Rio Preto, infelizmente, sem minha querida

afilhada adotiva Jéssica, e assistiu conosco à queima de

fogos na praia do Gonzaguinha. Claro, com o conforto

que a varanda do Ti Maria nos proporcionava, onde co-

memos e novamente brindamos a um ano que prometia

ser mais tranquilo.

Mas, acima de tudo, este final de ano foi um brinde

à união de pessoas que vieram a esse mundo com a ta-

refa de compreender, apoiar e respeitar um ao outro e

que, independentemente da afinidade sanguínea, estão

sempre prontas, quando surge uma ameaça no horizon-

te. Eu me considero uma pessoa bastante afortunada,

pois vim ao mundo já contando com uma grande rede

de tios, tias, avós e primos dispostos a dar todo o esteio

que meus pais precisassem em eventuais situações de

dificuldade. Com o tempo, outras pessoas passaram a

fazer parte dessa família, como Carminha e Edson, uma

vez que eles sempre fizeram de tudo para que nossa vida

fosse o mais confortável e serena possível.

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Hoje, somos eu e minha mãe, formando um núcleo quase edipiano, não sei onde enfiar tanto amor e respei-to que sinto por ela, a mulher mais guerreira que tive o prazer de conhecer em toda minha vida, a base para o sucesso político do meu pai, incluindo aí os princípios éticos que o sustentaram. E que também soube fazer das tripas coração, desenvolvendo toda sua resiliência para segurar as barras mais pesadas que uma mulher possa imaginar para si. Uma mãe que sempre estanca seu choro para não demonstrar sua dor, deixando apenas escapar uma furtiva lágrima quando a barra pesa demais. Santa Aída do Amor Eterno, rogai por mim e por todos nós!

280 MORTE E VIDA POSITHIVA

MEU SEGUNDO LAR

Aí eu pensei: se ter uma mãe como a minha já é uma senhora bênção, como seria se eu tivesse um montão delas? Esse pensamento me surgiu logo após ver uma reportagem em uma emissora local sobre o Lar Vicenti-no, tradicional abrigo de idosos que contou com grande colaboração do meu pai nos idos dos anos 1970 e 80. O diretor fazia um apelo por voluntários e eu estava me sentindo muito parado para o meu gosto, então, entrei em contato com a assistente social de lá, marcando uma visita para melhor conhecer o trabalho deles e também perceber se seria ou não a melhor atitude a ser tomada.

Após ser bem recebido pela direção e pela profis-sional, ela me apresentou as dependências do abrigo, sendo que durante o trajeto, passamos por um grupo de idosos sentados em um canto, quietinhos. Na volta eu não aguentei:

– Você me dá licença um pouquinho?E fui ao encontro do grupo, onde contei minha

primeira piada de idosos, ao que eles caíram na gar-galhada. Estimulado pela reação positiva, mandei a se-gunda e os risos só aumentaram, o que decretou minha entrada naquele mundo tão estranho e tão familiar ao mesmo tempo. Lembrava minha mãe, que foi uma das filhas que mais cuidou do meu avô e minha avó, quan-do de seus últimos dias. Também me vinham à mente os cuidados e carinhos que troquei com meu pai, bem recentemente, incluindo aquela bela noite de amores e perdões. Desde então, eu passei a ir uma vez por sema-na para meu segundo lar, onde estão dezenas de mães e pais com os quais eu canto músicas de outrora, com

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minha querida musicista Nilza, e também mando algu-mas piadas do arco da velha, promovendo um momen-to pagão para o pessoal.

Em abril de 2015, houve um grande incêndio na vi-zinha cidade de Santos, que durou vários dias e produ-ziu uma nuvem de fumaça que era visível do jardim da instituição. Foi aí que seu Fernando me perguntou:

– Roberto, Roberto! Você sabe o que causou esse incêndio?

– Sei sim, seu Fernando. Foi uma periguete que estava com tanto, mas tanto calor na bacurinha que foi dançar um funk ao lado do combustível e explodiu tudo aquilo, foi uma loucura!

Gargalhadas gerais, especialmente dele que, quan-do notei, estava abordando outro senhor entre risos:

– Ei, você sabe o que causou esse incêndio? Foi uma periguete!

OLHARES ALHEIOS

Atuar como voluntário em uma instituição para ido-sos é um dos tratamentos mais eficazes para quem acha que falta sentido em sua vida. Tenho profunda afinidade com Teresinha, Elza, Ida, seu Mário, Fernando, as irmãs Franzoni, dona Kalil, seu Sílvio, Teresa e Mishiko. Ao contrário de atuar politicamente em uma causa, quando as decepções são muito maiores em número do que os ganhos, dar apoio emocional a pessoas que só querem respeito e carinho na vida lhe traz um retorno imediato, na forma de um sorriso ou abraço caloroso. Boa parte das pessoas ali internadas foi largada pelos filhos, com a orientação à assistente social:

– Qualquer coisa me liga, tá?Sendo que alguns chegam a mudar o número do te-

lefone sem avisar a instituição. Então, aqueles sorrisos e abraços calorosos vêm na medida apontada pela velha Lei de Newton: quanto maior a carência, maior será a retribuição. Certa vez, cheguei no Lar Vicentino, cum-pri minha rotina de cumprimentar todos os presentes na sala e alguns que estavam em seus quartos e topei com dona Angélica, uma senhora cadeirante e cega, que vive encostada em um cantinho escuro. Naquele dia, ela es-tava especialmente chorosa, lamentava sua condição de ser vivente, entre pequenos soluços. Eu me aproximei de seu rosto e lhe dei um beijo:

– Angélica, por que você está assim?– Eu não quero mais viver.– Querida, a nossa vida não é como as cadeias no Brasil.Após uma breve pausa, onde ela estancou o soluçar

e assumiu ares de quem estava intrigada, continuei:

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– Na cadeia, se o condenado cumpriu um terço da pena, já pode cair fora, enquanto que em nossas vidas, a gente tem que cumprir até o último minuto.

Pronto, ela soltou uma sonora gargalhada, encer-rando seu momento de lamentação diária.

– Angélica, deixa eu te perguntar uma coisa: você já não enxergava quando entrou aqui?

– Sim, filho, eu só vejo um pouco de luz com o olho direito, faz bastante tempo.

– Alguém já te descreveu o lugar onde você está? Você sabe como é o Lar Vicentino?

– Não...– Então, você vai saber agora!Destravei as rodas da cadeira e nos dirigimos ao

jardim central, onde me sentei ao lado dela e comecei a descrever o ambiente:

– Nós estamos em um corredor de paredes brancas e piso bege que rodeia um grande jardim central, com gramas bem verdinhas e arbustos. Também há algumas plantas que dão flores, estamos bem em frente a uma que tem uns dois metros de altura e dá lindas flores ver-melhas.

Levantei-me, colhi uma delas e a pousei em sua mão, ao que ela recomeçou a chorar, agora de forma mais efusiva, para minha surpresa e dos presentes à nos-sa volta.

– Angélica, desculpe se te magoei!Ela me interrompeu:– Filho, eu não estou triste. Estou chorando de ale-

gria por alguém ter sido os meus olhos pela primeira vez.Aí foi a minha vez de fazer uma força danada para

não cair no chororô. Nesse mesmo dia, encontrei seu

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Mário que, assim como 80% dos internos, sofre de Al-zheimer, apesar de se lembrar de mim, mas não da reali-dade que nos cerca. Ele estava indo para o refeitório, ao que ofereci meu afetuoso braço para fazer as vezes do frio corrimão. Durante o trajeto ele me pergunta:

– Seu pai também está internado aqui?– Sim, seu Mário, o senhor é meu pai.Ele se virou com um largo sorriso no olhar e vi-

brou, dando-me um forte e carinhoso abraço:– Nossa, eu ganhei um filhão!Assim, pela segunda vez em um só dia, experimen-

tei o que é o amor em sua mais pura essência, como eu comentei com minha psicóloga Márcia, com quem faço terapia há uns oito anos. Se você está se sentido cansado de tudo e não vê resultados nas coisas que faz, procure um abrigo de idosos e mude sua vida. O sentido dela pode estar bem mais próximo do que você imagina.

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MORTE E VIDA SEVERINA

Quando alguém diz que sou um exemplo, eu cari-nhosamente rejeito esse rótulo, pois sempre tive tudo a meu favor, por mais acuado que estivesse. Tenho uma família que sempre me apoiou e me proveu muito mais que segurança e conforto material, mas especialmente me passou princípios éticos de amor e respeito ao pró-ximo. Fui provido de uma excelente formação escolar, o que me possibilitou passar em um concurso público e hoje ter garantidos uma aposentadoria e um bom plano de saúde, sem os quais eu não estaria por aqui e muito menos teria tido condições de mergulhar no ativismo do jeito que fiz.

Exemplo, para mim, é aquela pessoa que tem todas as forças conspirando de forma contrária, fazendo de tudo para que ela um dia pule da ponte da vida, como gostaria de fazer Severino Retirante, personagem prin-cipal da peça Morte e Vida Severina, que me serviu de inspiração para nomear esse punhado de palavras mal ordenadas. São pessoas como dona Helena, uma das as-sociadas do Hipupiara, que mora em uma cambaleante palafita na periferia de São Vicente, tem um filho na pri-são, outro já caminhando por vales tenebrosos e a filha grávida do terceiro namorado. E, com todos os motivos do mundo para se atirar da tal ponte, ela se preocupa com a adesão ao tratamento, pois acredita que o dia de amanhã será melhor que o de hoje.

Mesmo com todas as diferenças sociais e íntimas, eu consigo me ver no papel de Severino Retirante, afinal, foram tantas as vezes que topei com a morte (a Tal) pelo caminho, que ela se tornou minha grande companheira

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de estrada. Ela me confidenciou seus dolorosos segredos e desnudou todas as limitações psicológicas e espirituais da minha vida, ao me impor severas restrições físicas e orgânicas que me obrigaram a tomar atitudes, ao invés de decisões. É por demais libertador ter a consciência de que, se não consegui todos os meus intentos, ao menos não deixei de tentar ou experimentar. Acredito profun-damente que só tem medo da morte e da velhice quem sabe que está em dívida com a vida, deixando de fazer a diferença quando teve oportunidade.

Não sei se irei antes ou depois da minha mãe, se minhas pernas aguentarão mais um ano ou dois sem ou-tra cirurgia, se ainda encontrarei o amor da minha vida ou algum dia irei parar no Lar Vicentino como interno e não voluntário. Tudo que sei é que, só por hoje, vale a pena viver!

E viva a Vida!

Este livro foi composto na tipologia Gandhi Serif 12 | impresso em off-set

90g/m² e Capa em Triplex Supremo 250g/m²