MINUTOS - Amazon S3

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ARTHUR FLORES DOIS MINUTOS PARA O COMEÇO DE TUDO

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Arthur Flores

DOISMINUTOS PARA O COMEÇO DE TUDO

Copyright © 2019 by Editora Globo S.A.

Copyright do texto © 2019 by Arthur Flores

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocó-pia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora.

Projeto Gráfico e DiaGramação:

Taísa Alcantara

arte Da caPa:

Jhonã Magnane

revisão:

Louise Branquinho

orientaDor

Paulo César Castro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil)

FLORES, ArthurDois Minutos para o Começo de Tudo /Arthur Flores. –1 .ed - Rio de Janeiro: Globo Alt, 2019.

ISBN 978-85-359-1415-3

1. Ficção infantojuvenil brasileira, 2. Literatura LGBT I. Título.

Direitos da edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora Globo S.A.

Av. Nove de Julho, 5229 – São Paulowww.globolivros.com.br

[Projeto da aluna Taísa Silva de Alcantara/DRE: 116192612]

DOIS MINUTOS PARA O COMEÇO

DE TUDOArthur Flores

Para Taísa(E para todos os garotos que já amei)

Capítulo um 11

Capítulo dois 17

Capítulo três 23

Capítulo quatro 27

Capítulo cinco 33

Capítulo seis 39

Capítulo sete 43

Capítulo oito 49

Capítulo nove 55

Capítulo dez 59

Capítulo onze 63

Capítulo doze 69

Capítulo treze 77

Capítulo catorze 81

Capítulo quinze 87

Capítulo dezesseis 89

Capítulo dezessete 97

Sumário

Capítulo dezoito 103

Capítulo dezenove 107

Capítulo vinte 113

Capítulo vinte e um 117

Capítulo vinte e dois 121

Capítulo vinte e três 127

Capítulo vinte e quatro 131

Capítulo vinte e cinco 133

Capítulo vinte e seis 137

Capítulo vinte e sete 145

Epílogo 147

Agradecimentos 151

Apenas temos este momentoVocê e eu

Sem qualquer culpaApenas a geografia

Venha e aumente esse barulhoPor aqueles milhões de pessoas

Que não têm uma vozSe isso significa algo para você, diga isso alto

Nós não precisamos de palavrasFeche os seus olhos e veja

Nós seremos pássarosVoando livres

Alimentando o mistérioSem medos e unidos

Birds – ColdplAy

CAPÍTULO UM

eu acho que há alGo meio filosófico em anDar De bicicleta. Quer dizer, sério, para pra pensar. Você não pode parar, precisa sempre continuar pedalando com suas próprias pernas. Às vezes, depois de já ter pedalado bastante, você pode até dar uma descansada e deixá-la ir sozinha durante um curto espaço de tempo – mas uma hora você precisa assu-mir o controle de novo (e muitas vezes acionar o freio) e, depois, voltar a pedalar. Senão a bicicleta para. E você talvez caia, principalmente se for meio desastrado. Como eu.

— Olha por onde anda, otário. — Ops. O meu papinho furado quase me fez perder o controle deste meio de transporte aristotélico.

— Foi mal! — grito, olhando para nós. Larissa ri. — Você deveria prestar mais atenção em sua própria filosofia — ela diz. — É, é. Eu sei — digo, e nós diminuímos a velocidades de nossas bikes super iradas

de cor laranja do Banco Itaú. O painel marcador de temperatura mais próximo não me parece confiável. Estou

vendo certo? 37ºC, ele diz. Não sei. Parece pouco demais. A sensação térmica deve estar beirando os 45. Por isso acho o Fahrenheit uma escala de medida muito mais confiável. Sério, na minha cabeça faria muito mais sentido ver um 98,6ºF escrito ali, no painel, inter-calando a cada minuto com o relógio.

Não, eu não fiz essa conversão de cabeça. Estou com o celular na mão, com o aplicativo de Clima aberto. Larissa já está de cara feia pra mim.

— Se eu te ver com essa merda na mão mais uma vez eu juro que vou embora sem nem dar um tchau. — Ela revira os olhos, devolvendo a bicicleta para um dos pontos de retirada. Tiro meu capacete (quem usa capacete para andar de bicicleta?) e, depois de guardar na mochila, faço o mesmo que minha amiga.

— Desculpa. Só queria que ele me mandasse algo. Uma mensagem. Um emoji. Um áudio. Qualquer merda.

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— Ângelo, vou confiscar isso — Lari pega o celular da minha mão — só para garantir que teremos uma tarde saudável neste lugar lindo.

— Lari, é sério. Prometo que não vou mais pegar no celular.— Se toca. — Ela ri, guardando o aparelho em sua mochila azul.

Depois de perder o contato com a tecnologia, volto de nossa pausa para o meu trabalho de todo sábado de folga na Praça Mauá: desenhar pessoas. Mais precisamente, faço caricaturas de pessoas. Não porque eu gosto, mas é o que as pes-soas gostam. Além de ser mais rápido de fazer, claro. E eu preciso de dinheiro. E as pessoas pagam para verem os seus defeitos expostos; aparentemente, ninguém tem um espelho decente em casa (ou um celular com uma câmera decente).

Infelizmente, hoje o movimento não está lá essas coisas. Não que esteja va-zio, longe disso. Há crianças até demais andando para lá e para cá, além de uma fila enorme pro Aquário. Talvez as pessoas estejam de mau humor hoje. É. Deve ser isso. Acho que você precisa estar de muito bom humor para pagar por um pedaço de papel que vai te mostrar o quanto é feio.

— Vai, senta ali. Vou fazer uma sua. — Eu já tenho umas dez caricaturas minhas. Acho que já tá bom. — Lari

faz bico. — Vai, por favor, senta ali. Serve pra chamar clientes. Quase sempre funcio-

na. As pessoas olham e pensam: “uau, aquela deusa está fazendo uma caricatura com aquele viado, ele realmente deve ser bom”.

Ela sorri e revira os olhos, mas depois se senta no banquinho de madeira de frente para mim.

— Toma. — Minha amiga abre a mochila e devolve meu celular. — Pra você postar um story no IG. Divulgação é tudo. E as minhas tranças precisam ser vistas pela maior quantidade de pessoas possível.

— Abusada — respondo, e ela dá de ombros, sorrindo. Se você já viu uma caricatura, deve saber que é feita na maioria das vezes

apenas à caneta preta. Mas, quando desenho alguém íntimo, costumo usar uma canetinha colorida aqui e ali. Hoje, em homenagem ao novo visual de Larissa, pinto suas tranças de roxo, exatamente como estão agora.

Quando acabo, ela fica surpresa por eu ter feito uma semi-caricatura — eu a retratei da forma mais natural possível dentro desse estilo, e ela amou.

Depois da nossa estratégia de marketing, cinco pessoas vieram até nós du-rante toda a tarde. Costuma ser melhor que isso, mas o dia foi suficiente para pelo menos pagar as nossas passagens e até um 2 por 15 no McDonald’s. Não dá pra reclamar.

Já de barriga cheia e no ponto de ônibus à espera do 292, meu celular ex--confiscado toca.

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— Será que é ele? — digo, de boca aberta. O celular informa: “número desconhecido”.

— Ninguém aqui tem bola de cristal — Lari diz, deslizando o dedo sobre a tela.

— Oi — uma voz diz. Grossa. Bonita. Sei lá, sabe? Inexplicável. — Quem fala?Larissa olha para mim, atenta.— Liam. Lembra de mim? — ele sorri. Eu consigo ouvi-lo sorrir. — Liam… Seu sotaque tá muito engraçado, sabia? — digo, e nós três rimos. É. Este é o momento no qual estamos na velocidade que nos permite parar

de pedalar. Nós deixamos a vida correr naturalmente. A paixão costuma fazer isso com a gente, acho.

A cada palavra dele ao telefone, sinto como se estivesse perdendo o controle. Lembrar do sorriso dele é como olhar para o lado por um segundo e no outro dar de cara com um poste de luz.

— I’ve missed you — ele diz. — Saudade. Muita saudade de você, Angel. Não, não é apenas um poste de luz. Tá mais para um tronco de árvore

mesmo. Morri.

ele não muDou quase naDa. Tirando a barba, tudo permanece em seu devido lugar; os brincos nas orelhas, o cabelo ondulado meio bagunçado, as sobrancelhas tortas acima dos olhos de cor verde-esmeralda que tentam se esconder atrás dos óculos quase transparentes que contrastam da melhor maneira possível com sua pele negra.

Liam estava de touca (assim como todos os outros dias seguintes) quando eu o encontrei pessoalmente pela primeira vez há pouco mais de quatro anos, na praça de alimentação principal do Norte Shopping.

— Decepcionado? — Lembro de ouvir sua voz rouca olhando diretamente para suas mãos grandes sobre a mesa.

— Por quê? — disse, meio nervoso. — Eu já tinha te visto pessoalmente, mas você não, então… Sei lá. — Liam deu de

ombros, o que me fez sorrir. Acho que eu tenho riso frouxo, sempre tive. — Ah, para. Eu estava horrível. Um completo desastre. Por que você ainda quis

me encontrar mesmo depois de me ver com aquele uniforme horroroso?— Você estava uma gracinha. Aquele uniforme te deixa bem gay. Acho que foi

isso. Eu meio que gosto de garotos gays. — E ele piscou para mim. Eu lembro de sorrir e pensar: “O que tem de gay em um uniforme ridículo de

escola?”.— Então você é da Pensilvânia? A terra de James Odell! — Larissa pergunta

logo depois de pedir mais uma cerveja ao garçom.

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— Que nada. Pura enganação esse garoto — digo, e nós rimos. — É. Eu nasci aqui, mas fui pra lá bebê. Meu pai é de lá. A família dele toda.

A minha mãe é daqui de Inhaúma. Minha avó mora em um lugar sinistro. — En-quanto Liam fala, Lari escuta como se não soubesse de absolutamente nada, mas é óbvio que ela já me ouviu falar o suficiente para escrever um livro sobre ele. Essa garota é simplesmente tudo.

— Em casa, seus pais conversavam em inglês ou português? E você, com a sua mãe? — Ela finalmente faz uma pergunta que nem eu sei, e depois olha para mim, rindo. Já entendi. Estou sorrindo.

— Meu pai não fala português. Minha mãe falava em português comigo lá. Não quando meu pai estava. É. A gente falava mais inglês. Acho que estou um pouco… hã…

— Você tá puxando o s igual paulista. Qual o sentido? — observo, e ele tom-ba a cabeça.

— Nada de paulistenho aqui — Lari diz depois de levar o copo até a boca. — Vamos aprender a puxar o s carioca. Repete comigo: paxtél, paxxxxtél.

— Pashhhhhhtel. — Quando Liam termina, nós gargalhamos.

ouvi-lo falar em inGlês é bem sexy, aDmito. Imagina para um garoto de, tipo, dezesseis anos? Eu achava o máximo na-

quela época. E quase tudo que sei da língua até hoje devo a ele (deixo aqui uma menção honrosa ao Duolingo).

As escadas que dão para o estacionamento daquele shopping serviam tanto para darmos uns beijos quanto para eu ter umas aulas particulares. Não posso me esquecer dos Whoopers também, claro. A nossa história teve um cenário lindo, como você pode perceber.

Quando se está no primeiro ano do Ensino Médio, você definitivamente não se acha bonito. Não se você é um ser humano normal – a maioria das pessoas só fica realmente bonita depois dos dezoito, no mínimo –, e, é claro, a puberdade chega de diferentes formas para todos, mas, putz, é sério, tente se lembrar da sua classe do Ensino Médio. Se você segue alguma daquelas pessoas no Instagram, já deve ter percebido que todo mundo era simplesmente horrível.

Resumindo: eu era (sou) feio. Magro demais, espinhas demais, com um corte de cabelo cafona demais, assim como as minhas roupas na época, que ainda eram escolhidas pela minha mãe.

Eu não estava à vontade naquele meu primeiro encontro com um garoto lindo e gringo (você entendeu), pra piorar.

Umas três semanas antes da praça de alimentação do Norte Shopping, em novembro de 2014, Liam havia me adicionado no Facebook do nada. Lembro de

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pensar: “Uau, um garoto gringo me adicionou?”. Eu o aceitei me sentindo o máxi-mo. Hoje em dia eu pensaria que era um fake, mas ok. A questão é que, dias depois, uma mensagem dele apareceu para mim:

Ele: Hey. Eu acho que acabei de te ver agora na rua :)

E eu entrei em êxtase e desespero.

Eu: Oi. Você fala português????Onde você wme viu????

O Ângelo de dezesseis anos adorava usar pontos de interrogação.

Ele: Sim!Você estava saindo do shopping :))

Apesar de morarmos mal, a casa da minha avó, onde minha mãe, meu pa-drasto e eu moramos, fica apenas a quinze minutos do shopping, e eu havia acabado de chegar em casa quando recebi a primeira mensagem dele.

Era o final do primeiro ano do Ensino Médio. Lembro de olhar para mim mesmo, para a camiseta vermelha, branca e azul do Elite e revirar os olhos auto-maticamente. Corri para o espelho do banheiro. Meu cabelo estava uma merda. Tinha uma espinha do tamanho da minha cabeça bem no meio da minha bochecha esquerda. Me deu vontade de chorar.

Mas, mesmo assim, ele continuou. Depois, bem depois, eu acabei desco-brindo que ele havia me visto de longe naquele dia. E que os óculos dele haviam quebrado horas antes (obrigado, destino).

Ele: Você estuda no colégio dentro do shopping?

Eu: Sim. No Elite. Tem dois colégios lá.Então você mora aqui? No seu perfil diz Pensilvânia, Estados

Unidos.

Ele: Me mudei a pouco tempo.

Antes de julgá-lo pelo uso errado do “a” em vez de “há”, lembre-se da infor-mação sobre ele morar nos Estados Unidos, o pai não falar português etc.

Eu: Entendi. Legal! Por que se mudou?

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E ele nunca mais respondeu – na minha cabeça de adolescente, claro. Esperar horas por uma resposta era motivo de querer vomitar de tanta ansiedade. Eu tomei banho, almocei, terminei um dever de casa qualquer, fiz uns dez rascunhos de de-senho, rasguei vinte, ouvi Too Weird To Live To Rare To Die (meu álbum preferido da época), vi um pouco de Vale A Pena Ver De Novo com a minha avó, metade de um filme da sessão da tarde, reli a nossa mísera conversa e… nada.

Nada, até às 18h45, hora em que ele reapareceu.

— Dezoito e quarenta e cinco — eu acabo lenDo a hora no Painel DiGital à nossa frente na PresiDente varGas DePois Do “31ºc” sumir.

— Hm? — Liam tomba a cabeça mais uma vez, sorrindo. — Nada — digo, balançando a cabeça e rindo. — Fala — ele insiste, me dando um empurrãozinho no ombro. — Besteira. — Mordo os lábios. — Foi a hora em que você voltou naquele

dia. Você me mandou aquela mensagem de “Hey, eu acabei de te ver” quase uma da tarde, nós trocamos cinco palavras e depois tu sumiu. E aí você voltou às 18h45. Eu sei, meio doentio lembrar disso — digo, encarando-o.

(Em minha defesa, eu andei relendo as nossas conversas por saber que ele estava voltando).

Ele ri. Ele ri, e depois passa as mãos em seus cabelos ao redor das orelhas, os não cobertos pela touca. Liam olha para mim. Sem perceber, ele toca o centro dos seus óculos, ajeitando sem necessidade alguma, apenas por vício de trejeito.

— Você não mudou nada, sabia? — ele me diz em inglês com sua voz incri-velmente bonita.

CAPÍTULO DOIS

talvez eu seja um Pouco viciaDo em Dinheiro. E, para piorar, eu tenho um pai que apoia essas minhas loucuras. Quando eu disse que começaria a fazer caricaturas na Pra-ça Mauá em alguns dos meus finais de semana de folga, ele apenas sorriu, me abraçou e disse: “o mundo precisa conhecer seu talento”. Mesmo eu já sendo escravo de uma empresa de telemarketing seis vezes por semana e professor particular de inglês quatro horas por mês, tudo isso enquanto sou estudante de biblioteconomia na UNIRIO.

Agora, enquanto ouço uma cliente reclamar sobre o seu plano de internet que aumentou de repente, Ricardo, o supervisor, pede para que eu silencie a chamada para falar comigo. Não tenho o que fazer, ponho a ligação no mudo. Cláudia Regina vai ter de ficar falando sozinha.

— Sabe da Larissa? Ela tá doente ou algo do tipo? — ele pergunta, presunço-so, olhando mais para o próprio relógio no pulso esquerdo do que para mim.

— Ela já deve estar chegando — falo, também evitando contato visual. E ela acaba chegando bem na hora em que Ricardo dá as costas para mim. — Foi só falar que ela apareceu — ele me diz ainda de costas, apenas com o

rosto levemente virado e um sorriso sarcástico. — Atrasada. De novo. Trinta e… — dá uma última checada no relógio — cinco minutos.

Hoje Lari extrapolou. Fica até difícil de defendê-la. — … Não aguento mais, sabe? Toda vez é isso. Vocês prometem uma coisa e

acontece outra. Eu só queria a merda do meu plano antigo, de R$39,90. — Retorno para Cláudia Regina. Ricardo está pondo a mão direita, a que possui uma aliança de ouro enorme, no ombro de Lari.

— Então, senhora, o plano mais barato disponível aqui é o de R$59,90. Qua-tro gigas de Internet, SMS ilimitado, ligação ilimitada para todo o Brasil, e…

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— Acho que você não me ouviu direito — a voz dela se altera. Conheço bem esse tipo. Todo dia eu encaro uma Cláudia Regina diferente. — Eu estou pagando R$49,90. Entendeu? E eu quero pagar meeeenos. Menos que R$49,90. Qualquer coi-sa menor que R$49,90. Entendeu?

Ponho a ligação no mudo para dar um leve suspiro. Eu sei que você está do lado dela agora. Você com certeza já foi uma Cláudia Regina, mas, sério, eu juro, a gente só pode oferecer o que o sistema nos oferece de forma automática. E o siste-ma é burro. Melhor: ele não se importa com o seu bolso. No final, quem acaba se passando por idiota e malvado somos nós, pobres trabalhadores.

(Momento desabafo aqui, desculpa).Resumindo, Cláudia Regina quase me xingou, se estressou, desabafou sobre

estar desempregada há dois meses (acontece) e depois desligou. O segredo para eu não surtar durante esse árduo processo? Pensar em coisas boas, sempre. Hoje, em especial, Liam é o meu ponto de fuga.

Ficamos conversando até uma da manhã essa noite. Muita coisa para falar, muita coisa para atualizarmos um ao outro, mas a verdade é que pouco falamos das coisas essenciais. Nós focamos em coisas mais leves – como ele me contar que ainda tem a mania de escovar os dentes debaixo do chuveiro por influência minha, e eu mesmo não faço mais isso –, como se, de repente, nós nunca tivéssemos nos afastado desde o nosso último beijo no Ensino Médio.

Mas, claro, nós também falamos sobre coisas mais sérias, porém a distância faz com que assunto delicados não sejam muito bem-vindos, e foi mais ou menos o que aconteceu. Resumindo, foi ótimo, mas a parte ruim é que acabei dormindo pouco, e agora estou morrendo de sono.

Ele [em inglês, por preguiça de escrever em português]:Contei pro meu pai que sou gay antes de vir para cá. No aeroporto, na verdade. Para não termos muito tempo para discutir o assunto. Meio covarde, eu sei.

Eu [também em inglês, gastando toda minha inteligência bilíngue às 00h45]: E o que ele disse??

Ele: Nada. Ele fingiu que não escutou.Foi o que pareceu.Nós ainda tínhamos uns quinze minutos até o meu embarque (minha mãe estava longe, eles não estão se falando),

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mas, mesmo assim…Eu disse “pai, sou gay”, e ele foi meio que “o dia está bonito hoje, hein?”.

Eu: Putz.

Ele: É…Você sabia que translação de Vênus é menor que a sua própria rotação?

Depois disso, ficamos em silêncio por alguns minutos. Eu não sabia o que dizer, nem ele. Anos resumidos em horas de conversa, e, ainda assim, senti como se ele nunca tivesse ido embora.

Será que ele pensa o mesmo de mim?

Às 15h40, saio do trabalho. Lari deveria estar saindo junto comigo, mas, como chegou atrasada, sairá trinta e cinco minutos depois do horário. Antes de sair, disse que não esperaria por ela por causa do meu encontro com Liam. Ela revirou os olhos e disse: “pronto, o típico caso de quem abandona os amigos por macho está acontecendo”.

Já em casa, olhando para o meu guarda-roupa, penso que eu simplesmente não tenho roupa para o evento de hoje.

O meu nível de desespero chegou ao ponto de falar para o meu pai que tenho um encontro. Ok, ele perguntou, mas eu dificilmente respondo. Ele me aceita rela-tivamente bem, assim como minha madrasta, mas não é como se eu me sentisse à vontade para falar de garotos. Seria como um garoto hétero nerd falando sem parar sobre LOL para sua namorada completamente entediada.

— Qual é o nome dele? — ele pergunta.O nome dele. Nomes dizem tanto sobre as pessoas assim? A gente sempre

faz essa pergunta no automático, mesmo que isso não revele absolutamente nada. — É… Liam. Liam Felipe — digo, olhando para sua expressão séria através do

espelho do banheiro. Pego a minha escova de dentes dentro do suporte em cima da pia.— Diferente. Você não conheceu esse garoto nesses aplicativos não, né? Vi

uma reportagem no jornal sobre um garoto que foi se encontrar com um cara no motel e morreu. Foi morto, na verdade.

Sente o drama.— A gente se conhece há uns quatro anos… — E começo a escovação. Olhos

no espelho. — Você tá namorando escondido há quatro anos? — ele diz “quatro anos” de

forma dramática, com os olhos bem arregalados.

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— Ângelo, você tá namorando? — minha madrasta, que ainda está almoçan-do (quando trabalho domingo, eles costumam me esperar chegar), diz da cozinha, que só fica a poucos metros do meu quarto.

— Não tem ninguém namorando. — Retiro a escova da boca, os dentes ain-da repletos de Colgate. — Eu disse que a gente se conhece há uns quatro anos, pai. Ele passou um tempo sumido, mas agora voltou. É isso.

Ele me dá um chega pra lá e toma metade do espaço em frente ao espelho, pegando uma das duas escovas restantes; aperta a embalagem de pasta com tanta força que sai bem mais do que o necessário. Isso não pode ser um bom sinal.

— Quero saber da fofoca. — Teresa aparece na porta do banheiro, ainda mastigando algo e cheirando à cebola. — Então, você tá namorando?

— Você é gay desde os dezesseis anos, Ângelo? Por que demorou tanto tem-po pra contar pra gente?

Ai. Meu. Deus. — Eu… Pai, eu já te expliquei aquele lance de nascer assim e coisa e tal…— Você entendeu o que eu quis dizer. — E o barulho da escova contra os

dentes dele se parece com uma serra elétrica cortando uma madeira. Quando me dou conta, nós três estamos de frente para o espelho, apertados,

visto que o banheiro não é grande. Estou a um passo de cair no box. — Eu tô quase caindo aqui — falo, rindo. Depois de sair do banheiro, volto para o meu quarto com a desculpa de que

preciso me arrumar, e é o que realmente faço. Antes de ir, dou um beijo rápido na bochecha dura do meu pai, um “beijo, Tetê!” para a Teresa e um grito de “bença, vó!” da escada para minha avó, que mora na casa de cima.

No quintal, Pedro Henrique está me esperando de língua para fora e o rabo balançando feito limpador de para-brisa de carro. Quando meus pais (às vezes falo assim para facilitar a minha vida) estão em casa, meu cachorro sempre fica no quin-tal, pois meu pai não o suporta dentro de casa.

Tudo que você precisa saber sobre Pedro Henrique resumidamente: ele é um labrador de cor marrom, tem dois anos e meio e é a coisa mais linda do planeta Terra. É o amor da minha vida.

eu nem Preciso Dizer que marcamos De ir ao norte shoPPinG, luGar onDe tuDo começou. Também não preciso dizer que a sugestão foi minha, já que eu sou o gay cafona e romântico da relação (que ainda não existe).

Eu [em português porque me esqueci]: Já cheguei. Tá por onde?

Ele [em inglês]: Vim de carro. Estou estacionando agora mesmo.

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Vou sair perto da entrada do Carrefour.Não se preocupe, não estou digitando enquanto dirijo.O teclado está digitando por mim.Emoji de sorriso.Celular burro.

Por sorte dele, estou apenas a uma escada rolante de distância do mercado. Subo. Ao ler o “Carrefour”, grande e azul, minha cabeça explode em memórias. Olho para a rampa de entrada/saída ao lado, a que dá para o estacionamento, e sigo em frente.

— Não tem ninguém vindo — ele me disse enquanto nos escondíamos atrás de uma das pilastras do estacionamento, há cinco anos, no final de 2014.

— Tá. Então, tá. — Sorri, ajeitando delicadamente sua touca na orelha direi-ta, que estava levemente fora do lugar.

— Tá. — Liam sorriu, e logo depois tocou seus lábios nos meus.

E agora ele está aqui, encostado em uma das pilastras do mesmo estaciona-mento daquele dia, olhando para mim com um sorriso bobo. Sem carro, sem nada. Só ele.

Antes que eu fale alguma coisa, ele olha para a pilastra cinza e branca (quase preta de tão suja), acariciando-a de leve. Ele provavelmente acredita que foi nessa que demos nosso primeiro beijo, mas não foi. Foi a de trás.

Este é o Liam tentando ser romântico e fofo. — Bem-vindo à nossa máquina do tempo — ele diz, pondo a ponta dos de-

dos da mão esquerda em meu queixo quando me aproximo. Com os da direita, ele ajeita os óculos.

Enquanto nos beijamos, eu só consigo pensar na minha batida de bicicleta hipotética. O poste de luz primeiro virou um tronco de árvore, e agora uma pilastra de concreto. E morri. De novo.

CAPÍTULO TRÊS

— eu comecei a tocar teclaDo assim que voltei Pra Pensilvânia. Acho que na segunda ou terceira semana. E eu também cheguei a tocar na igreja... Não ria. — Ele me olha, sorrindo, pegando uma camiseta branca com origamis azuis da arara de roupas da loja.

— Eu lembro. — Sorrio. — Do teclado, no caso. O lance da igreja deve ter sido depois de você ter sumido do mapa.

Os lábios dele voltam à posição normal repentinamente. Liam se vira para uma bermuda jeans meio rasgada, fingindo estar bastante interessado nela. Ele mexe no cabelo, ajeita os óculos. Incrível. Ainda conheço todos esses passos.

— Desculpa — ele diz ao perceber minha hesitação em tentar mudar de as-sunto, mesmo que de lado.

Quando encosto minha mão sobre o ombro dele, os autofalantes da loja co-meçam a tocar Happy, aquela maldita música do Pharrel Williams. Assim que solto um “ah, não” de resmungo, Liam ri, e um dos seguranças da loja passa por nós olhando torto. O fato é: nós odiávamos essa música com todas as forças. Foi da nos-sa época, da época em que nos conhecemos. Você só não sabe do que estou falando se tinha menos de, sei lá, dois anos? É sério. Foi uma febre insuportável.

Lembro até de ficarmos mais próximos depois de confessarmos um ao outro que detestávamos a música em um de nossos primeiros encontros.

É. O ódio une as pessoas, apesar de tudo. Passado o momento climão, vamos ao provador. Juntos. Ser gay tem que te

dar umas vantagens nessa sociedade divisora de gênero, não? — Eu tinha uma banda ruim lá na Pensilvânia. De rock. Com três amigos —

ele diz ao sair do provador de frente para o meu a fim de me mostrar a blusa branca com uma calça preta.

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— Adolescentes mais rock é a formula perfeita para se ter música ruim — digo, e ele sorri. — Mas vocês gravaram alguma coisa? Tocaram em algum lugar? Na escola?

— Não. Não, não era nada sério. Mas nós tínhamos músicas autorais. O vocalista e eu escrevíamos juntos. Harry.

— Meu Deus, vocês eram a One Direction americana. Rockeira — digo, e nós rimos.

— Idiota. — Ele dá um passo para trás e volta para dentro da cabine, fechan-do a cortina.

Quando volto para a cabine e olho para o espelho, me deparo com um cabelo completamente bagunçado, além do zíper da calça meio aberto. Eu e a minha ma-nia de rir colocando a mão na cabeça.

Ao arrumar, percebo o quanto me importo de estar bonito para ele. É en-graçado. É como se o tempo não tivesse passado. É como se tivéssemos quinze, dezesseis anos novamente.

Termino de me trocar antes dele. Espero com as peças em mãos, olhando apenas os pés dele na parte onde a cortina verde-musgo amassada não o alcança. Sorrio. Nós não estamos fazendo isso à toa, claro. Costumávamos vir ao provador quase sempre na época da escola. Eu fazia questão, aliás. Principalmente nos dias em que eu acabava esquecendo de levar uma camiseta reserva na minha mochila – encontrá-lo com aquela camiseta patética do Elite era a morte pra mim.

Lembro-me de uma vez em que saí furtivamente de minha cabine e dei uma espiada na que Liam estava. Com a ponta dos dedos, afastei-a apenas uns dois, três centímetros, apenas o suficiente para ter aquela visão...

— Gostou do que viu? — ele me perguntou quando estávamos em um dos nossos esconderijos secretos do Norte Shopping, a escada de emergência.

— Hm? — Dei uma mordida em praticamente metade do Whooper, o que fazia parte do nosso ritual.

— Gostou do que viu? — disse, com mais ênfase, rindo e bebericando o copo de refrigerante.

Pus a mão na boca e fiz um sinal de “espera”, porque, claro, eu nunca, em hipótese alguma, falaria de boca cheia.

— Eu vi você me espiando. Nem adianta. Eu vi. Nem adianta negar. — Liam me deu um empurrãozinho, o que me fez quase engasgar. Começamos a rir.

Ele reaparece abrindo a cortina infelizmente completamente vestido. O Ân-gelo daquela época era mais inteligente, sem dúvidas.

Parado de frente para mim, Liam parece ler os meus pensamentos. Verdade seja dita: nossa intenção, desde aquela época, era vir para o provador na tentativa de rolar um beijo. Ou qualquer outra coisa (como uma espiada). O tal benefício gay

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que eu disse. Mas, bom, nunca rolou. Nós tínhamos medo. Mais ele do que eu, para falar a verdade.

— Que foi? — pergunto, encarando-o. Enquanto ele sorri, um cara velho e barbudo entra no corredor e fecha a

segunda cortina do lado esquerdo, o mesmo de Liam. A música da loja muda para “Fica”, depois disso, o cara solta um espirro bizarro atrás da cortina.

— Vamos? — Liam solta um sorriso e depois me puxa delicadamente pelo braço.

— então, você e a larissa se conheceram na faculDaDe? — ele me pergunta enquanto esperamos nossos pedidos na fila do Burger King.

— Não. No trabalho. A faculdade foi uma coincidência. Pra falar a verda-de, eu lembrei dela da matéria que tínhamos em comum, Inglês II, mas ela não me reconheceu. Dei um susto nela na semana seguinte quando entrei na sala. Foi engraçado.

— Acho que ela não presta muita atenção em meninos, pelo jeito. — Não. Nem pensar. É como se fôssemos invisíveis. — Ela que tá certa. — Ele sorri para mim, com as mãos no bolso, segun-

dos antes de “Angel”, seguido de uma risadinha, ser chamado pela atendente do estabelecimento.

Já caminhando para as escadas de incêndio, ficamos em silêncio por alguns minutos, o que me faz pegar o celular em meu bolso, assim como ele. Mensagens de Tomás no nosso grupo.

Tom: Voltando!!! Estou bem perto.Já deixo aqui avisado que não piso na faculdade amanhã

Lari do sapato-enorme: Cara de pauComo foi a viagem? Mandou meu beijo pras suas mães?Elas gostaram da Camila????

Eu: Como foi pra Camila conhecer as sogras??????

Lari do sapato-enorme: Tadinha da Camila, duas sogras. Quem aguenta isso, gente?

Eu: Melhor que dois sogros. Imagina aturar dois do meu pai?

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Tom: (Camila em áudio): Tô viva, gente.Acho que elas gostaram de mim!! Ou fingiram muito bem. Se bem que o Tomás pode ter herdado o talento para atuar delas, né?(Voz do Tomás, tomando o celular da mão dela): Elas adoraram a Camila, gente. E, ah, cara, eu e a Camila tivemos uma ideia muuuuuito gewnial. Sério. Preciso falar com vocês.

Eu: Saiam do celular, estou ouvindo barulho de trânsito.

Lari do sapato-enorme: Pois eu quero saber mais disso aíMandem mais áudios (e continuem vivos pfv).Que ideia, garoto???? Sabe que eu odeio mistério.

— Terra chamando Ângelo. — Liam toca o meu ombro, e eu desligo imedia-tamente a tela do celular.

— Oi. Oi, desculpa — digo, percebendo que já chegamos à entrada para as escadas. — Foi o Tomás mandando mensagem. Ele está voltando de São Paulo. Ele dirige e tals. Foi com a namorada.

— Ainda não me falou sobre ele. — Liam abre a porta, que range de uma maneira tão escandalosa que nós dois fazemos careta. — Mas ele parece ter uma vida incrível.

Sorrio. Acho que isso diz muito sobre como sabemos muito pouco sobre a vida. Também diz sobre como nunca ficamos satisfeitos com o que temos, acho.

Depois de subirmos alguns lances de escada, chegamos ao destino final. É uma área pequena, suja e secreta – há uma porta corta-fogo, e, após ela, um cor-redor curto com uma sacada perigosa de vista tenebrosa; tudo o que vemos é o cinza dos altos prédios e os diversos tons sem graça de casas do bairro. Há também umas plantinhas quase mortas sobre o piso quebrado abaixo de nós, além de cinzas e pedaços de cigarro para todos os cantos. Esse era o lugar. O nosso lugar. Onde vínhamos para correr dos nossos problemas de adolescente. Foi aqui, exatamente aqui, que me apaixonei por ele.

CAPÍTULO QUATRO

hoje um Garoto surtou lá no trabalho. E olha que ele nem recebeu uma men-sagem do ex, assim como eu recebi. Estava tudo relativamente normal quando, de repente, ouviu-se um grito seguido de um barulho. Todos tiraram seus headsets na mesma hora, inclusive eu. Olhei assustado para Larissa, que estava no computador à frente do meu. Ricardo logo tratou de aparecer e acalmar a todos, claro, mas ninguém foi capaz de dar atenção àquele homem insuportável. Depois de muito burburinho, todos ficaram sabendo o que havia acontecido: Maurício, com dois anos e meio de casa, simplesmente socou a parede de PVC de sua sala. Bom, acho que esse é o nível da saúde mental das pessoas que trabalham aqui.

Mas, voltando: recebi uma mensagem do meu ex. Nós terminamos há uns cinco meses e não nos falamos há três, acho. Sinceramente? Parecia até que eu sabia que Liam iria voltar, mas não. Só acabou da forma mais natural do mundo. Sem bri-gas nem nada do tipo marcante, apenas um “acho que não dá mais, então é isso…”.

Acho que esse é o tipo de término mais propício à um possível retorno, por-que dá a sensação de que você deixou tudo por nada, o que não é verdade. Às vezes simplesmente não é para ser, e ninguém precisa ser babaca com o outro para perceber isso.

— Oi — atendo sua ligação depois de muita insistência. Sempre odiei isso nele. Daniel simplesmente não entende o significado da palavra espaço.

— Já estava quase desistindo. — Ele riu. — Tinha alguma coisa de errado na minha mensagem?

Serve o simples fato de ela existir?— Aconteceu alguma coisa? — pergunto, e logo depois ouço Daniel suspirar. — Saudade.

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Silêncio. Quando ele percebe que não vou falar absolutamente nada, prossegue:

— Mandei mensagem cedo justamente por isso. Queria te encontrar depois do seu trabalho. Você ainda sai quatro horas?

— Ah, sim. Já estou em casa — minto. Estou me encarando no espelho do banheiro da faculdade com o celular no viva-voz em cima da pia, apenas esperando o horário da minha aula de Análise da Informação.

A tela do meu celular acende sozinha e, quando olho, o rosto de Liam está na tela, sorridente, com uma touca azul-marinho e muita neve ao fundo. Digo para o Daniel que preciso atender outra chamada e, sem tempo para respostas, desligo (e atendo).

— Adivinha — ele diz em inglês. E depois em português. — Não me diga que seus pais se acertaram. — Não. — Ele ri. — Idiota. Are you at College right now? — Infelizmente. Tenho uns cinco minutos até a aula começar.— Ah, tudo bem. A gente se fala depois então? — Me ligou só pra isso? — Sorrio para o espelho. Meu Deus. A minha cara

de bobo, que vergonha.— Prefiro deixar no ar — diz, e eu consigo ouvir umas notas de teclado ao

fundo. — Ah, para. Hm, tô ouvindo. Tá praticando? — Uhum. — Liam faz uma sequência de notas aparentemente sem sentido.

— Fingindo, na verdade. Eu toco mal, te disse isso. Aquele meu tio que mora no Jacaré, não sei se você se lembra, disse que vai me dar umas aulas. Ele toca vários instrumentos, ficou até orgulhoso em saber de mim… Mas, bem, sozinho eu fico à vontade pra tocar. Posso tocar qualquer merda sem vergonha alguma já que estou sozinho. Um milagre. Alone.

— Isso é um convite? — pego minha mochila e meu celular, ambos em cima da pia. Tiro a chamada do viva-voz e levo o aparelho à orelha, já saindo do banheiro.

— Prefiro deixar no ar. E ele desliga. Esse garoto. Esse garoto, olha…

Eu: Para o nosso azar, eu simplesmente não posso mais faltar nessa matéria se não quiser reprovar direto.

Ela é um saco, então eu já faltei bastante.Para eu morrer na forca só falta a boca para completar o

rostinho do boneco de pauzinho.

Ele: Putz.

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Tá aprendendo comigo.

Mas, pelo menos, eu consegui a minha maldita presença. Já é alguma coisa. Agora, já quase no fim da aula, acabo de me lembrar que Tomás, Lari e eu marca-mos de nos encontrar no bar do Sílvio nove e meia para conversarmos sobre a ideia incrivelmente sensacional de Tomás. Ele é assim, sempre prefere falar sobre coisas importantes pessoalmente. Já eu na maioria das vezes não consigo, acabo falando tudo logo por mensagem mesmo. Se eu tiver uma pulguinha atrás da orelha antes de dormir (óbvio, algo que seja humanamente possível de se resolver), preciso dar o meu jeito o quanto antes, ou o meu sono vai pra bem longe. Foi dessa maneira que eu terminei com Daniel por chamada de voz no WhatsApp.

— Ele tá viajando — Alexandra diz, o que me faz virar a cabeça para o lado, tirando meu disfarce de aluno super atencioso.

— Total. Mas você ainda não contou como foi o encontro ontem. Só jogou a bomba hoje e pronto. Zero informações. — Pedro, sentado logo atrás de mim, concorda com Alê, falando próximo ao meu ouvido.

— Vou contar tudo, prometo — digo. — Vocês acreditam que ele me chamou pra casa dele hoje? Mas eu não posso mais faltar, vocês sabem.

— Ele tava sozinho? — Alê pergunta.— Aham.— Meu Deus — Pedro diz. — Que pecado.

Só de imaginar o que poderia acontecer naquela casa, só ele e eu, me dá vontade de socar a parede dessa sala, tal qual meu colega de trabalho mais cedo.

O mais engraçado é que já tivemos uma oportunidade como essas, mas não na casa dele, e sim na minha. Certa vez, em um daqueles poucos meses em que esti-vemos juntos, minha avó resolveu passar um final de semana na casa de uma velha amiga em Seropédica e, milagrosamente, meu pai teria de trabalhar naquele sábado. O meu pai é técnico em redes e bem raramente acaba acontecendo de ter que viajar para estados próximos a trabalho. Foi assim que tudo se encaixou, e aí, claro, o adolescente à flor da pele Ângelo arrastou o seu pseudo namorado para casa.

Não fizemos nada, infelizmente. Mas, de qualquer forma, eu era muito novo. Éramos. Eu lembro de planejar muito sobre aquele dia, e pensar e pensar e pensar sobre ele de todas as formas possíveis, fazer um roteiro mental sobre o que iríamos ou não fazer, mas, na hora, nós só fizemos companhia um ao outro. Por mais que minha vó estivesse longe e meu pai em São Paulo, ainda havia uma insegurança dentro de mim. Parando para pensar agora, se meu pai surtou só de saber que “eu era gay” desde aquela época, imagina se ele soubesse que Liam esteve em nossa casa? Meu Deus do céu. Tá pra nascer homem mais dramático.

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— Legal seus desenhos — ele disse ao entrar em meu quarto, que era (ainda é) repleto de desenhos meus pela parede. — Você tem que me desenhar também. Quanto você cobra? — E aquela pergunta me fez rir. Mal sabia ele que eu já tinha a própria bíblia só de desenhos dele, sobre ele… Sobre nós.

Liam aproximou-se da parede em que ficava a cama (e fica até hoje), apertando os olhos, observando um dos meus desenhos.

— Pera, aquele ali é o Itachi? — perguntou.— Se você descobriu quem é significa que não está tão ruim assim. — Sorri para ele. — Ou talvez eu seja um bom espectador de Naruto. — Idiota — respondi, dando um soco de leve em seu ombro. — Eu sei que tá

uma merda. Mas o meu pai fala que tá legal, e eu escolho acreditar nisso.— Na verdade… Tá bem incrível. É sério. Quanto você cobra? — disse, fazendo

um círculo imaginário com seu dedo ao redor do próprio rosto. — Quero essa belezinha aqui pelas suas mãos.

Nós nos beijamos, óbvio. Mas foram beijos tímidos, delicados. Foram pou-cos, porém o suficiente para eu jamais me esquecer deles, daquele dia. Nós assis-timos a alguns episódios de Naruto e, depois de fazermos pipoca, Liam me apre-sentou à obra-prima Death Note, um anime de 2006 simplesmente impecável que a Netflix fez questão de destruir em um filme bizarro há uns dois anos. Lembro-me de assistir a esse filme chorando, tanto pela produção podre em si quanto por lem-brar dele, que já não falava comigo há muito tempo.

— Detalhe — digo, saindo dos pensamentos do nada, fazendo Alê se virar bruscamente. — Adivinha quem deu uma de fênix e reapareceu das cinzas? Daniel.

— A sua vida é muito emocionante, não consigo acompanhar — Pedro disse. — Quando isso? Hoje? — Alê inquire. — Hoje. Agora, gente — digo, olhando de soslaio para Pedro. — Bem antes

da aula. E agora ele está me mandando mensagem atrás de mensagem. Mandando fotos. Aqui — falo, pegando meu celular e mostrando aos dois bem rapidamente.

— Ele é muito insuportável, que inferno — Pedro resmunga. — Mas isso é fogo de palha, você sabe. Daqui a pouco ele some. Não foi assim logo depois de vocês terminarem?

— Para, o Dani é legal — Alexandra discorda. — A questão é que não tem mais volta, gente. Tipo, mesmo se o Liam não

estivesse aqui, sabe? Talvez, e um talvez bem mais ou menos. 1% de chance. Mas, tipo, não dá. Sem chance. Zero chance.

— Ele nem sabe da existência do Liam, né?— Não — respondo Pedro. — Mas isso não faz diferença.— Pode falar, você visitou uma cigana ou alguma coisa assim. Sabia que ele

tava voltando — Alexandra diz, e nós três rimos.

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Depois de séculos, a aula finalmente acaba, e eu sigo sozinho para o bar do Sílvio após deixar meus amigos no ponto de ônibus.

Sou o primeiro a chegar. O bar do Sílvio fica numa esquina ruas atrás do prédio da Biblioteconomia. Tem uma decoração bem clássica (pra não dizer extremamente velha), cadeiras quadradinhas de tom marrom-surrado, duas TVs para o pessoal assistir futebol às quartas, além de quadros com diversas fotos de jogadores antigos do Flamengo.

Lari diz no grupo que ainda está saindo do prédio de Letras e Tomás manda um emoji de carro com a mensagem: “chegando”. Peço uma porção de batata com calabresa pro Sílvio e espero. A solidão do amigo pontual do grupo.

Felizmente, antes da porção de batata ficar pronta, Tomás chega junto com Cami-la. Ele está completamente careca. Não, quase. Máquina um, acho.

— Meu Deus, cadê seu cabelo? — digo, abraçando-o. — Ele surtou — Camila responde, sentando-se ao meu lado. Tomás se senta de

frente para mim, restando ainda um lugar vago para Lari. — Minha irmã fez o serviço. Pode falar, fico lindo de qualquer jeito. — Puta cabeção — Camila fala, rindo. Rio também.— Ah, que isso, vacilo. — Tom ri também. — E aí, gente. — Lari já chega se jogando na cadeira. — Tomás, que que isso, meu

filho? — Ela olha para ele, fazendo uma cara engraçada que só ela consegue. — Já fui humilhado o suficiente, ok? — ele diz, e então Sílvio aparece com as

nossas queridas batatas. — Vão beber alguma coisa? — pergunta o velho, sorrindo.— Segura aí, Seu Sílvio — Tomás o responde. — Não posso ficar bêbado agora.

Espera só mais um pouquinho. — Tá bem, tá bem. — O velho ri antes de se virar. — Mas eu posso, Seu Sílvio. Desce uma pra mim. Uma só, ainda estamos na se-

gunda-feira — Lari diz e, depois de o velho ir para a cozinha, se vira para Tomás: — Mas, e aí? O que você tem pra falar? Eu espero que seja algo bombástico do tipo “ganhei na Mega-Sena”, porque, pra esse suspense todo…

— Na verdade, é bem idiota — Camila diz, o que nos faz rir. — Não, nada disso. Você também achou legal.— Mas não pra esse alarme todo, né? Meu Deus do céu. — Tá, vou falar, mas quero que vocês me levem a sério, gente… — Tomás diz,

olhando para mim e Larissa alternadamente. — Hm? — Lari resmunga, debochada. — Fala logo, meu Deus do céu. — Pego no pulso de Tom, balançando-o. — Gente… É que… Depois de tanto tempo pensando numa forma de con-

seguir expressar tudo o que eu sinto, tudo que a gente sente… E, tipo, a gente não tem grana pra fazer algo grande. Tipo um filme, o que é meu sonho. Lari já cansou

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de me ajudar a criar roteiros e tudo mais no ano passado… — Lari assente com a cabeça. — E, tipo, eu pensei, sei lá… da gente fazer um podcast, sabe? Pra falar sobre a gente. Sobre os nossos problemas.

Lari e eu nos entreolhamos, sérios. Olho para Camila, que está com um olhar de “eu avisei”. Tomás nos encara com cara de cachorro sem dono.

Segundos em silêncio. Longos segundos. E, depois, risadas.

— Eu disse que era bem idiota — Camila finalmente quebra com a mudez da mesa, e em seguida explodimos em risadas.

CAPÍTULO CINCO

tomás é o cara mais chato Do munDo, com toDo o resPeito (mas nós o amamos). Sabe aquele amigo que só gosta do que ninguém gosta, que só recomenda músicas de artistas que ninguém nunca nem viu, ou que assiste àqueles filmes de três horas em que não acontece praticamente nada por puro conceito? Tomás é uma mistura de tudo isso. No nível de ter uma conta no Twitter só para falar de filmes. É sério.

Agora, para não ser totalmente injusto, às vezes eu até gosto de umas músicas desconhecidas que ele me manda. Quando eu escuto, claro. Mas, pelo menos, eu ainda escuto alguma coisa, diferente da Lari, sabe?

E a graça nesse lance do podcast ontem à noite foi justamente esta: Tom não costuma ir na onda do que todos estão falando ou fazendo, ele anda na contramão disso tudo. E podcast é a coisa do momento. Acho que eu conheço umas três pessoas que têm um podcast lá na faculdade. Um amigo do Pedro tem um sobre fofocas da moda há uns dois anos (até tentei ouvir, mas não aguentei dez minutos). Enfim. Não ouço podcasts. Se eu já ouvi trinta minutos disso em toda minha vida é muito, e, até onde sei, Larissa também não tem o costume.

— Deixa eu te falar — ela diz, rindo, os olhos alternando entre Doritos, Oreo e Cheetos. — Ouvi um podcast ontem. Já tinha ouvido alguns antes, mas faz tempo.

— Ah, não. — Dou um sorrio. — Também vai se render à modinha?— Se o Tomás se rendeu, meu filho... Ai, acho que vou pegar o Oreo

mesmo. — Todo mundo sabe que no final você escolhe Doritos — digo, apertando

o número 06 da máquina de lanches da área de convivência (break, para os mais íntimos) do nosso trabalho.

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— O abuso. — Ela revira os olhos, colocando a nota de cinco para dentro da lata velha. — Mas, sério, vou te mandar o link. Foi no Spotify mesmo. Não tem nem desculpa.

— Era sobre o quê? — Ah, era bem engraçado. Duas garotas lésbicas falando sobre coisas… lés-

bicas. Sei lá, foi como conversar comigo mesma, mas muito mais legal. E aí, depois de longos quarentas minutos que pareceram cinco…

— Deu ruim — digo ao perceber que o Doritos simplesmente não quer ser comido, permanecendo paradinho atrás do vidro.

— Lata velha de merda. — Lari dá um tapa involuntário na lateral da má-quina, o que faz Júlia, uma menina que está sentada atrás de nós assistindo Globo Esporte, sorrir para nós. — E, bom, foi isso. Fiquei com vontade de falar também, sabe? Às vezes eu me sinto entalada, como se não tivesse voz. Literalmente. Tipo, às vezes a gente só quer ser ouvido. Só isso. Ser ouvido. É pedir muito? Porque o Twitter já passou da época em que se falava sozinho.

— Licença. — Júlia aparece no meio de nós dois. — Já sei qual é a dessa máquina — diz, meio séria. Ela olha ao redor, mais especificamente para a porta da sala, e, ao perceber que ninguém viria, prosseguiu: — É só dar um chutinho de leve aqui. — E o All Star branco de seu pé direito vai de encontro à máquina, apenas um pouco abaixo da parte onde o vidro termina.

Magicamente, a embalagem vermelha cai. Júlia pega o biscoito da área de retirada e entrega nas mãos de Lari, sorrindo.

— Ela é meio nova aqui, não? — pergunto assim que a garota sai do break.— Deve ter uns meses, não sei. Acho que ela acabou de sair do treinamen-

to… Garoto, você tá me ignorando totalmente sobre o assunto podcast. — E já sabe mais sobre a máquina do que a gente. Tá. Foi mal. É que eu

senti um clima. — Sorrio. — Então, ouvir podcast é revigorante? Vou procurar algo gay, então.

— Que clima, garoto? — Você tá me ignorando, garota? — Idiota. — Lari ri. — Tipo, eu até acho ela bonita. — Tem cara que é. Ela não me engana. Lari ri, mas, para a nossa infelicidade, Ricardo entra no break, levando o

clima bom para bem, bem longe.

às 16h, esPero Por larissa numa starbucks minúscula a uns Dez minutos De ca-minhaDa Da emPresa, que fica bem Próxima à rio branco. Ela já deve estar vindo pra cá. Hoje, milagrosamente, ela só chegou dez minutos atrasada.

Pedi um café americano, um dos mais barato que eles têm, até porque é fim de mês e estou aqui apenas para aproveitar o Wi-Fi e o cheiro bom desse lugar.

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Troco algumas mensagens com Pedro, que diz que não vai à aula hoje por conta do aniversário de uma de suas irmãs mais nova. Três aninhos. Ele me envia uma foto dela já com a fantasia para a festa: Moana. Ela tem a pele negra, apenas alguns tons mais claros que o irmão, e um cabelo grande até demais para a idade. Tem o mesmo olhar fofo e as bochechas gordinhas e furadas de Pedro.

— Bú. — Deixo o celular cair na mesa com o susto. Quando olho para cima… — Tá sozinho? — Daniel diz, apontando para a cadeira de madeira à minha frente. Antes mesmo de minha resposta, ele se senta.

— Oi… Hoje é o meu dia de sorte.— Desde quando você toma café puro? — Ele sorri, deixando sua mochila

no chão, bem ao lado da minha. — O que faz por aqui? — pergunto em um tom sarcástico.— Entrevista de emprego. Estágio. Tô destruído, fiz umas cinco avalia-

ções... — Daniel diz, tirando o celular do bolso de sua camisa social preta e colo-cando sobre a mesa. — Bom, você sabe que eu sou viciado em café, afinal, quem fez você gostar disso aqui? — Faz um círculo imaginário no ar, na direção de seu coração.

— Legal. Espero que você passe — digo, sincero. — Estou esperando a Lari. Ela já devia ter chegado, na verdade.

— Parece que as coisas não mudaram muito. — Ele sorri.— É. Acho que deu muito pouco tempo, sabe? Pras coisas mudarem. Tudo

continua na mesma. — Sorrio com os dedos entrelaçados próximos à minha boca. — Ah, é, pois é…

Hm. Agora acho que deu certo. Cruzando os dedos da mão mentalmente. Não, espera, tenho os dedos dos pés também. Droga, esse tênis é 37 e eu calço 38, não tem espaço pra isso. Pobre sofre, sabe? Comprei mesmo apertado pois estava em promoção, só para usar no trabalho mesmo. Não poderia perder essa oportunidade.

— RuPaul — uma voz forte diz, preenchendo o silêncio do nosso constran-gimento. Além de nós, há mais três pessoas bebendo seus respectivos cafés, e duas delas riem quando a atendente alta repete pela terceira vez: — RuPaul.

— Meu Deus, sou eu — Daniel diz, levantando-se subitamente.

Seguro o riso. O homem de terno à nossa esquerda, duas mesas depois da nossa, também está tentando se segurar. Olho de soslaio para a mulher à mesa atrás de mim. Ela olha para o celular, fingindo rir de algo engraçado na Internet. Mulheres… sempre pensando mais rápido.

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— Eu vivo fazendo isso, você sabe. — Daniel volta rapidamente com seu Duplo Mocha. — Eu me distraí completamente. Mas foi engraçado. — Sorri depois de dar uma olhada para as pessoas ao redor, e eu, sem querer, acabo sorrindo para ele.

Quinze minutos passam rapidamente. Mexo no celular o máximo que con-sigo para ele perceber que não quero mais conversar, mas ele continua falando, falando… E Larissa aparece, finalmente. Mas por mensagem.

Lari do sapato-enorme: Ai, foi mal a demora.Ricardo me chamou para uma conversinha particular.Advertência! Ainda tá na Starbucks?

Eu: Tô.E com o Daniel.

Virou perseguição, é oficial.

Lari do sapato-enorme: Amado…Você deve estar me odiando!!!Guenta aí que já estou chegando pra te socorrer.<3

Depois de ser salvo por ela, pegamos o ônibus para a Urca. Nós fazemos isso quase todo dia: sair do trabalho, enrolar um pouco, ir para a faculdade. Como moramos longe, não vale a pena voltar para casa, exceto por alguma emergência.

O bom de chegarmos cedo é que, às vezes, quando Tomás – que, diferente de nós, estuda Teatro em turno integral (manhã e tarde) – acaba não tendo uma aula ou outra, podemos nos reunir e ficar jogando conversa fora por uma hora.

Hoje, para a nossa sorte, é um desses dias.

— Tô dentro — Lari dispara, de repente. — O quê? — Franzo o cenho, confuso. — Sério? — Tomás abre a boca, depois sorri. — Gente, vai ser incrível, sério. — O lance do podcast. — Ela olha para mim. — Ah. Não sei. Não sou bom em falar. Nunca fui. Só sirvo pra desenhar, e

mesmo assim não sou nenhum desenhista daqueles.— Todos nós sabemos falar. Nós precisamos. — Tomás põe a mão sobre o

meu ombro. — Tudo é questão de prática. Quando você começar a falar sobre o que está sentindo, vai se sentir mais leve. Sério.

— Então não é só a Lari que anda ouvindo podcast motivacional.

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— Deixa de bobeira, garoto. Não custa nada tentar. — Gente, eu não tenho o que dizer, sério. Vocês podem fazer, de boas. Eu

vou ouvir, mesmo não achando graça nenhuma em podcasts. Prometo. Eu ouço. O de vocês eu ouço.

Silêncio. Ambos me encaram com uma expressão triste, como uma criança chateada ao ser enganada pela mãe quando diz “na volta a gente compra” e essa volta jamais acontece.

Sílvio passa por nós três com uma cara confusa. Ao ver a única garrafa vazia em nossa mesa, a recolhe junto com os copos.

— Que foi? — Sílvio pergunta para Tom. — Tão brincando de detetive, as-sassino e vítima?

— Não teria graça com três pessoas, Seu Sílvio — Tomás responde.— Ué, me parece coisa de bêbado. — O velho ri.— Poxa, seu Sílvio, foi só uma. Hoje ainda é terça, calma — Lari rebate,

rindo. Quando o assunto acaba, a dupla volta a me encarar. Tom cruza os braços,

Lari cruza as pernas. — Ok, vocês venceram — digo baixinho, roendo a unha do meu dedão

esquerdo. — Vai gravar com a gente? — Tomás pergunta, empolgado. Dou de ombros. Depois de vibrarem mais do que quarenta homens assistin-

do a um gol do Flamengo neste bar, eles se levantam e me abraçam. Recebo um beijo de cada em minhas bochechas.

— Podcasts têm que ter tipo uma trilha sonorazinha, né? Tipo rádio? — pergun-to quando os dois voltam aos assentos.

— Ah, é, é, tem sim — Lari diz, animada. — Seu Sílvio, mais uma, por favor — grita em direção à cozinha.

— Mas isso a gente vê depois. Dá pra pegar alguma coisa pronta na internet e tal. O mais importante é o que vamos falar. Já começa a preparar seu roteiro. Coisa básica, somente em tópicos, assuntos, sugestões de quadros, essas coisas, e… — Tomás responde.

— É que eu acho que já sei quem pode ajudar a gente com isso — eu o inter-rompo com um sorriso bem largo no rosto.

CAPÍTULO SEIS

em 2015, liam e eu usávamos bastante o skyPe, PrinciPalmente Durante a ma-DruGaDa, quanDo nossos Pais já tinham iDo Dormir. Ele ainda não sabe, mas até mesmo nessas situações eu o desenhava – o notebook sobre minhas pernas esticadas na cama e o meu caderno de desenho bem ao meu lado, fora do campo de visão dele. Certa vez, quando ainda estava aprendendo a fazer bocas abertas (até então, só havia uns trezentos desenhos dele de boca fechada) eu acabei soltando um “merda” por ter errado um dos traços do lábio superior. Ele, que estava falando alguma coisa sobre a família do pai, parou de falar, confuso.

— What happened? — Nada. Desculpa. Uma formiga me mordeu — disse, e ele riu da minha

mentira horrorosa.

Confesso que, às vezes, eu acabava me perdendo quando ele falava por muito tempo. Quando Liam precisava falar sobre um assunto mais longo e complexo, acabava falando a maior parte em inglês, e, mesmo que fosse bem pausadamente, eu não entendia uma coisa ou outra, porém tinha vergonha de admitir isso.

— My God… Really? — era o que eu dizia quando estava perdidaço. — O que tá fazendo? — perguntou. — Fica olhando pra baixo all the time. — What? No, no. I’m so sorry. — desculpei-me. — I’m just a little… distra...cted?— Distraído?

Ficamos em silêncio por alguns instantes. Os olhos dele não estavam em mim, provavelmente usando o Twitter, outra coisa que usávamos na época. Eu

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podia ver seu olhar subir e descer atrás das lentes dos óculos pretos e redondos, estilo Harry Potter. Aproveitei esse momento para voltar ao meu desenho. Depois de um bom tempo apenas um ouvindo o respirar do outro, Liam olhou para mim. E não parou mais de olhar, nem por um segundo, o que me fez desistir de desenhar seus lábios grossos sorridentes. Apaguei os dois traços que eu já havia feito e larguei o lápis. Voltei-me para ele. Sem nada. Só nós dois e o silêncio.

— Não vai falar nada? — perguntei com o meu inglês meia boca, claramente nervoso.

— Falar o quê?— Alguma coisa. Só tá aí, me olhando. — É… Só estou admirando sua beleza. Não posso? — Ele passou a mão nos

cachos, entregando a mim o melhor dos sorrisos. — Bobo — falei baixinho, minha pele indo do branco ao vermelho.

Ele riu, e eu acabei rindo também. Depois daquele famigerado “ai, ai” mais um suspiro ao final, tive certeza sobre o que eu estava sentindo naquele momento. Apaixonado eu já sabia que estava, claro, desde a primeira vez em que o beijei, mas…

— Eu te amo. — As palavras saíram da minha boca tão rapidamente que mal me dei conta do peso que carregavam. Foi quase sem pensar, como todo coisa que sai direto do coração.

Mas ele não disse nada. Diferente de antes, seus olhos não encontravam mais os meus. E quando o silêncio ficou constrangedor demais, Liam foi embora dando uma desculpa qualquer. Fechei o notebook e coloquei na mesa que fica ao lado da minha cama. Como eu encararia aquele garoto no dia seguinte, em nossa sala de aula?

Quando peguei o caderno e o lápis para também fazer o mesmo, me deparei com aquele desenho, que naquela noite eu havia feito no estilo mangá. Lá estava ele: os olhos grandes, o cabelo caindo na altura da sobrancelha, os brincos minúsculos nas orelhas. Mas, no lugar onde deveriam estar os seus lábios, o vazio. Lembro-me de rir até a barriga doer, colocando o caderno e o lápis em cima do notebook. Faz sentido, pensei.

Desde então, isso virou uma marca minha. Naquela época eu nem lembrava da existência da profissão coach, mas eu praticamente fui o meu próprio – peguei algo ruim que havia acontecido e transformei em uma lição de vida. Depois, assis-tindo a mais e mais animes (recomendados por ele, inclusive), percebi que, quando filmados de longe, os personagens desse formato de desenho perdem os olhos, o nariz e a boca, ficando apenas um rosto vazio em um corpo detalhado.

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Foi assim que passei a enxergá-lo depois daquela madrugada, como se ain-da não fôssemos próximos o suficiente para eu conhecer seus detalhes. Precisava chegar mais perto para enxergá-lo por completo. Uma tarefa e tanto. Liam era com-plicado, apesar de todas as suas qualidades, mas eu estava disposto a lutar por ele. Sempre estive.

CAPÍTULO SETE

— Promete não rir? — ele pergunta olhando para mim.— Deixa eu ver logo isso, garoto — digo, puxando a manga amarela de sua

camiseta.— Promete?

Assinto. Liam me entrega um dos fones de ouvido para dividirmos. Ele abre o YouTube e digita “Greek Gods” na barra de procura. Já começo a rir.

— Okay, não vou te mostrar mais nada — ele resmunga.— Agora nem adianta correr. Já sei o nome. Ele balança a cabeça e revira os olhos, mas depois acaba concluindo a pes-

quisa. Um dos primeiros vídeos da lista a aparecer é I’m just a fool (in love), Greek Gods. Ele toca a tela com o indicador e, após dois anúncios (YouTube, pior rede social possível), uma bateria marcada soa em meus ouvidos, logo ganhando compa-nhia de uma voz aguda do vocalista, uma guitarra e um som grave de contrabaixo, que depois descubro não ser um contrabaixo.

— Pode falar, você achou que era um baixo — Liam diz assim que, após um minuto apenas em close no garoto que canta (um magrelo alto com cabelo de Justin Bieber quando era criança), a câmera abre o plano, revelando o resto da banda cer-cada por um fundo branco: um tecladista gato de camisa polo preta e touca cinza da Adidas, um guitarrista baixinho de olhos puxados e um baterista de alargadores número cinco mil.

— O som é bem cafona, mas pelo menos o tecladista é bonito — falo, olhan-do para ele.

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Se eu fosse o Tomás, com toda certeza poderia listar várias referências que me fazem lembrar I’m just a fool, mas só consigo pensar em algo como “hm, parece o My Chemical Romance, só que muito ruim!”, mas é claro que eu não digo nada. Por mais que ele saiba que isso é ruim, tenho medo de errar com ele. Ainda estamos distantes de certa forma, como se, à medida que nos reconhecemos, Pensilvânia e Rio de Janeiro ficassem cada vez mais próximos.

— O Ângelo de quinze anos gostaria disso — concluo assim que o vídeo acaba.

— Chegou o nosso. — Liam bloqueia a tela do celular, levantando-se da cadeira azul da estação de metrô, estendo a mão para mim.

Pego na sua mão, sorrindo, e me levanto. Depois do aperto para tentar entrar no metrô em direção à Pavuna às 17h30, conseguimos um lugar no canto, bem próximo à passagem de um vagão para o outro, onde o chão balança tanto quanto as paredes. Liam segura na única barra livre próxima a nós, e eu faço o mesmo. Ficamos bem próximos, já que o vagão está lotado. Nem gosto.

— Então, hoje você é professor? — Pois é. É uma vez por semana só. Eu ajudo um garotinho que mora lá na

minha rua. É do quinto ano, tem dez anos. — Inglês? — Sim. E outras coisas básicas. É bem tranquilo, por isso não saio. Comecei

no final do ano passado, e aí naquele período eu não tinha aula às sextas. Eu sempre monto a minha grade com um dia de folga, fato. Mas este ano, por ter começado a trabalhar e tal, fiz grade com três dias de aula. Fico quarta e sexta em casa, mas aí resolvi marcar com ele às quartas pra justamente ter a sexta livre.

— Sextou — diz, com o x fazendo som de s paulista. — Viu? Estou aprendendo. — Nada disso. Esse som de s aí não tá nada legal.

Nós dois rimos.

DePois De trinta minutos cheGamos a inhaúma. Desço para um lado da escada e ele, o oposto. Chego em casa, tomo um banho, troco de roupa e começo a esperar poucos minutos até sair de casa ao lado de Pedro Henrique, que está deitado ao meu lado no sofá. Enquanto faço carinho em seu pelo macio com a mão direita, na esquerda leio as mensagens de Lari reclamando de mim para Tomás em nosso gru-po, dizendo que o boy mal chegou e já estou abandonando-a. Explico que ele estava pelo centro para fazer algo para a mãe e aproveitou para me ver, além de jogar na cara que, se ela não tivesse chegado tão atrasada, teria ido embora com a gente. Ela envia um sticker da Gretchen com cara de nada e diz: “E ficar de vela? Não, obriga-da”. Tomás chega depois que a conversa termina, rindo.

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— Ângelo? — Minha avó aparece na porta da sala. — Tá sozinho? — Oi, vó — digo, deixando o celular no braço do sofá e indo até ela. Pedro

Henrique permanece de olhos fechados. — Sim. Meu pai já deve estar chegando. A Teresa disse que ia ao médico hoje. Pré-natal e tal.

— É, eu ia com ela, mas não estou me sentindo bem hoje. — O que a senhora tem? — Eu a seguro no braço até chegarmos ao sofá de

dois lugares, que está vazio, onde ela senta na beira. — Nada demais. Só um pouco de dor e cansaço — diz, pondo as mãos nas costas.— Tá vendo? A senhora nunca se senta direito! Encosta no sofá, vó — digo,

pegando em seu braço.— Eu tô bem, garoto. — Ela sorri, ajeitando a saia preta. — Por que não

foi lá em casa domingo à tarde? — Com “lá em casa” ela simplesmente quer dizer “subir as escadas”. — Você sempre vai.

— Eu saí esse domingo, cheguei do trabalho e fui direto me arrumar. Descul-pa — explico, sentando-me ao seu lado.

— Você? Saindo em pleno domingo? Deve ser alguém muito especial, hein? — Ah. — Coço o cabelo. — Saí com a Larissa. Saiu um filme que a gente

queria muito ver…— Então vocês estão namorando? — Quê? Não, vó. Somos só amigos, vocês já estão cansados de saber aqui

em casa. — Ué, não estou entendendo nada. Quando perguntei pro seu pai aonde você

tinha ido ele foi bem claro: em um encontro.

Agora eu entendi por que a velha decidiu descer as escadas do nada em plena quarta-feira à tarde.

Meu cachorro acorda, pula do sofá e, depois de cheirar a minha avó, senta-se no chão, ao meu lado.

— Por que tá mentindo pra mim? Desde quando você me esconde as coisas, Ângelo? Quer dizer, seu pai disse que não sabia com quem você ia ter o encontro, mas pelo menos ele sabia de alguma coisa.

Por sorte, sou salvo por minha madrasta, que chega da rua com uma bolsi-nha de lado, uma sacola branca enorme de um laboratório de imagem e a mão em sua barriga de grávida pequena, quase quatro meses.

— Oi, Dona Nilda — Teresa diz com a voz cansada. — Meu Deus, preciso ir. — Aproveito a deixa, pegando o celular do sofá e

colocando no bolso. — Já estou atrasado. Beijo, vó. — Dou um beijo em sua testa. — Tchau, Tetê.

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— Tchau, querido — ela me responde. — Vai pra Viviane? — Sim — digo, dando um beijinho em sua barriga. — Até daqui a pouco.

Respiro aliviado após passar da porta para o quintal ao lado de Henrique, que provavelmente já sabe que meu pai está chegando. Faço um carinho rápido nele e parto. Lucas já devia estar estudando comigo há três minutos.

Exatamente sete casas depois, toco a campainha da casa da família Flores, um duplex novo de esquina cor rosa bebê.

Viviane, mãe de Lucas, abre a porta não muito sorridente. Espero que a re-cepção calorosa não seja apenas pelos quase quatro minutos de atraso. O menino já está à mesa acompanhado de livros, cadernos e canetas espalhados pela mesa, que fica bem próxima à porta da sala, na varanda, que é coberta por um telhado estilo colonial.

— E aí? Muitos deveres? — Sento-me ao seu lado, também virado de costas para a entrada da casa.

— Ângelo! — o garoto diz bem alto, algo que sempre me dava susto no come-ço. — Cinco páginas no livro de inglês. E eu acho que tem alguma coisa no caderno de português… — E leva a mão ao queixo, com os olhos semicerrados, pensativo.

— Bom, não vamos perder tempo. Qual dos livros? — pergunto, apontando para os dois à nossa frente.

— O volume 3. — Volume 3 na mão — digo, já folheando o livro. Qual página?— Espera aí… — Lucas folheia sua agenda escolar por uns segundos. —

Aqui. 68 até 72. — Página… 68. — Sorrio, chegando na página.

Apesar de eu não ter estudado no Elite no quinto ano, os livros de lá mexem um pouco comigo ainda hoje. É um pouco mais infantil, claro, mas a capa dura em tons azuis, o formato da diagramação, o sumário… Tudo ainda é muito parecido, o que me dá saudade. Naquela época, quando eu pensava ser o maior sofredor da história da humanidade, não imaginava que desejaria tanto ficar lá, sendo um ado-lescente por mais tempo.

Explico a matéria, e, como sempre, Lucas demora mais do que o normal para aprender. Para a sorte dele, tenho paciência. Só com ele, claro. Ele é a única criança que eu aturo. Eu nem faço ideia do que vai ser quando o Ícaro ou a Lilian nascer.

— Meu Deus... — solto, titubeando, quando finalmente me dou conta. — Quê? — Lucas para de fazer o exercício, segurando o lápis no ar. — Minha madrasta. Ela deve ter descoberto o sexo do bebê hoje. Meu irmão.

Ou irmã.

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— Você quer que seja menino ou menina? — Ele sorri.— Hm, não sei. Acho que menina. Elas são mais legais, né? — É? — Lucas tomba a cabeça.— Um dia você vai entender. — Toco a ponta do nariz dele, que volta os

olhos para o livro.

Enquanto o espero terminar, mando uma mensagem para Teresa perguntan-do se descobriu o sexo e pedindo desculpas por ter me esquecido de perguntar quan-do ela chegou. A mensagem chega e ela não fica online, mas acabo descobrindo através do status do meu pai, que já havia postado há vinte minutos: “Que venha o meu filhão Ícaro!”, com um emoji de menino com outro de bola de futebol ao lado. Ele deve torcer para vir um machão desta vez, suponho.

— Posso te contar um segredo? — Lucas diz baixinho. — Claro. — Desligo o celular e o ofereço meu dedo mindinho. — Não conto

pra ninguém.— Eu… — Ele entrelaça seu dedo minúsculo ao meu. — Quando a gente

sabe que gosta de alguém? — Você simplesmente sabe, ué — sussurro. — Tá gostando de alguém da sua

sala? Você é muito novo pra namorar, garoto.— Eu sei. — Ele sorri. — Mas eu gosto dela. Fiz até uma carta pra entregar

pra ela amanhã, mas queria que você lesse antes. Não quero que ela ria de mim. — Cadê? Ele olha para os lados e depois estica o seu corpo para fora da cadeira até sua

cabeça alcançar a porta da sala, provavelmente para saber onde sua mãe está. Antes de abrir a mochila, ele olha para mim e faz um “shhh”, com o dedo indicador encostando nos lábios.

Há o barulho da TV ligada que vem lá de dentro, mas o zíper vermelho da mo-chila do Batman Vs. Superman de Lucas parece fazer um barulho de motor de carro velho. O menino pega o papel, fecha a mochila e volta para a cadeira, entregando-me a carta. Abro o pedaço de folha de caderno dobrada.

Você e muito especial pra mimquer fazer o procimo teste em dupla de ciências comigo?Não sei muito bem o que dizer aqui, mais eu gosto muito de você! maiseu tenho vergonha de ir falar com você por causa do gabriel que nunca sai de perto de você e eu acho que ele não gosta de mim um poucoJa até sonhei com você um diaespero que você goste de mim tambem

Lucas

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— Quem é Gabriel? — pergunto, sorrindo para ele. — Precisamos fazer umas correções nesta carta.

— Ele é um garoto que sempre senta atrás dela. Todo dia. E eu tenho vergo-nha dele. Ele fica zoando as pessoas.

— Já terminou tudo, filho? — A mãe de Lucas aparece na porta da sala com um olhar crítico.

— Sim, mãe. — O garoto pega o lápis sobre o livro e volta a fazer os últimos dois exercícios, letras f e g, que faltavam. — Só mais esses dois aqui!

Dobro o bilhete lentamente enquanto Viviane se afasta, voltando para den-tro da casa. Lucas olha para mim, para o pedaço de papel e depois para o livro novamente.

— Vou guardar aqui — sussurro enquanto deixo a carta de amor entre as diversas páginas do caderno de português do garoto.

Ele pisca para mim, sorrindo.

CAPÍTULO OITO hoje a minha comPanhia De sábaDo na Praça mauá é tomás. Larissa ficou com a folga para amanhã, mas combinamos de esperar por ela aqui, principalmente por-que eles estão muito animados para falar sobre o nosso futuro podcast. O movimento está incrível – são duas e meia da tarde, mas eu provavelmente já fiz mais de dez caricaturas, e agora ainda me resta uma pequena fila de três pessoas aguardando.

— … É, foi basicamente isso — Tomás diz ao meu lado, de pé, com a cabe-ça levemente abaixada, olhando para o desenho.

— Bom, acho que você precisa ser paciente. Um pouco mais. Eu sei que é meio óbvio dizer isso, mas, olha pra mim. — Olho para ele, para o alto, rapi-damente, e depois me ajeito em meu pequeno banco de madeira. — Zero barba. Nem um pelinho. Mentira — falo, agora olhando para a menina sentada à minha frente, que está vidrada no celular. Faço o nariz gigantesco dela no papel. — Cres-ce um ou outro bem falhado aqui do lado esquerdo. E só do lado esquerdo, acre-dita? É ridículo.

— Mas minhas mães estão gastando muito dinheiro com isso, Ângelo. Você sabe. Há anos. E eu sinto como se nada mais mudasse. Isso há um bom tempo. Só estou gastando, gastando e gastando… e…

— Suas mães te entendem. Elas não ligam pra isso, Tom. — E agora faço os traços do que sempre deixo por último: a boca.

— É que às vezes eu me sinto mal por reclamar. Como se eu fosse ingrato. Sendo que não é justo. Eu reconheço que tenho muita sorte. Eu sei disso. Mas… é frustrante. Eu coloquei tudo de mim nisso. Tudo. E nunca parece o suficiente.

— Você não é ingrato por simplesmente querer o melhor pra si mesmo — digo, sem olhar para ele, entregando a caricatura para a viciada em Twitter.

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Ela me entrega uma nota de dez e eu agradeço. A próxima adolescente da fila se senta. — Tom? — continuo, agora olhando para ele.

— Você tem razão. — Ele sorri de olhos fechados, as mãos indo até sua cabeça raspada.

Enquanto desenho os últimos dois clientes (um casal), Tomás vai buscar Ca-mila de bicicleta próximo ao Museu do Amanhã, e, nesse meio tempo, Larissa aparece falante, reclamando bastante de uns homens escrotos do trabalho – Ricardo no topo da lista. Depois me conta uma outra bomba… Júlia e ela interagiram mais uma vez. Novamente no break. Aparentemente, esse vai ser o lugar onde essa his-tória de amor irá começar.

— Acredita que ela é de Cabo Frio? — Ela mora com quem aqui?— Não falou. Ela soa meio misteriosa, sabe? Acho sexy. — Isso se chama truque de sedução — digo, finalizando a caricatura do casal

com o clássico coração ao fundo. — E você caiu feito um patinho. — Me respeita. — Trocaram número?— Não! — Ela respira fundo, revirando os olhos. — Eu sou muito burra.

Devia ter pedido.— Calma, garota. Ela não vai sumir, não. — Ela parece do tipo que um dia sorri para você e diz bom dia e no dia se-

guinte pode nem olhar na sua cara. — Isso é verdade. — Pois é. Adoro ser pisada — ela diz, e nós rimos.

lá Pelas cinco, vamos Para o ccbb Porque tomás e larissa querem ver uma exPosição sobre realismo Por lá, e, como é Grátis, ninGuém reclama. Ao che-garmos, infelizmente a fila está simplesmente quilométrica, o que nos faz desistir de imediato. Camila aponta para a escada que dá para o teatro, no salão principal, logo depois da Livraria da Travessa. Nos acomodamos próximo a um grupo de garotas, Lari e eu no último degrau, Tom e Camila no penúltimo. O clima aqui é agradável, com a arquitetura imponente, de grandes pilastras em detalhes dourados, mas, ao mesmo tempo, delicada – as paredes são de um tom bege, o que passa certa calmaria. O teto circular de vidro cercado de portas de madeira clássicas só ajudam. O céu lá em cima parcialmente nublado, visto que estamos em setembro; logo, logo o calor estará ainda mais entre nós, porque essa cidade não respeita muito bem as regras de temperatura de estações do ano.

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— Então, alguém pensou em alguma coisa? Um quadro? Um roteiro? — A gente vai falar sobre o quê? — Sobre a gente — Tomás me responde. — Eu tive umas ideias, mas nada de muito bom. Alguém já pensou em um

nome? — Lari pergunta.— Primeiro de tudo — Camila se pronuncia —, onde vocês vão gravar? Pre-

cisa ser em uma casa. Um lugar fechado. Com bastante silêncio. — Bom, eu comprei três microfones. Pensei em esperar eles chegarem pri-

meiro e depois pensar nisso. — Tom, como assim você já comprou e não avisou nada? — Relaxa, é por minha conta — ele diz para Larissa. — Vamos focar nas

ideias. E num local.— Bom, zero condições de ser na minha casa. Meu pai fica em casa o dia

inteiro, vocês sabem...— Não, sim, total… — Tomás concorda, pensativo. — Lá no apartamento é

complicado. Minha tia é um porre. E fora que mal tem espaço. — Poderia ser na minha casa, meu quarto tem bastante espaço, mas, vocês

sabem… — Camila diz em um tom melancólico. — Bom, acho que sobrou pra mim — digo após alguns segundos de silêncio,

quebrando o clima triste. — Tipo, pelo menos agora, no começo. Daqui a pouco a Teresa já está de barrigão e depois deve entrar de licença, mas, por enquanto, dia de semana eu fico em casa sozinho até umas sete e meia quando não estou na faculdade, que é a hora que meu pai e ela chegam. Ele sempre passa no trabalho dela para buscá-la. Um dia ou outro ela vai ao médico por causa do pré-natal e tal, mas acho que dá… O único ser que pode nos atrapalhar com o barulho é o Pedro Henrique — digo, e eles riem.

— Sua vó também não mora com vocês? — Tomás inquire.— Sim, mas é na casa de cima, e ela praticamente não sai de lá. Ai de mim

se não subir aquelas escadas pra ver a velha.— Fechou. — Lari sorri, e Tomás também. — Então, acho que sexta é o ideal

pra gravar. É o dia em que nós dois não temos aula na faculdade. — Eu tenho aula até tarde na sexta, mas vou trancar essa matéria. Já estou

atrasado mesmo.— Isso que é um cara determinado — Camila diz, dando um empurrãozinho

no namorado. — Então...Fechou? — Lari pergunta.— Não. — Sorrio. — Só queria dizer que o Liam pode ajudar a gente com o

lance da trilha sonora e tal. Por causa do teclado. Dá pra fazer tudo nele. — Liam, hm? — Tomás dá um tapinha em meu ombro. — Já estão namo-

rando… de novo?

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Reviro os olhos, rindo, o que faz meus amigos me perturbarem ainda mais sobre o assunto.

Antes de seguirmos viagem para casa, Camila nos reúne para uma foto. Se o Tomás é o louco das músicas e dos filmes, ela é do tipo conceitual no Instagram, do tipo que se importa com paleta de cores, etc. Ela posta a foto no stories, claro – uma foto com várias pessoas não cai bem no feed. Na frente, Tomás, com seu sorriso largo e o nariz cheio de pintinhas, e logo depois Camila, com seus cabelos ruivos curtos e desbotados, Lari, com suas tranças roxas simplesmente super fotogênicas, e, mais no fundo, eu… Sem estilo algum. Até o cabelo raspado de Tom está mais na moda que o meu, que já não sabe o que é um corte há mais de três meses.

Reposto a foto nos meus stories graças à marcação feita por Camila, e Liam responde apenas alguns minutos depois.

Ele: Por que o mais bonito ficou no fundo? Não entendi

Eu: Digitando em português?Que milagre é esse?

Ele: Descobri que meu teclado possui um tradutor automáticoacho isso bem útil

Eu: Cara de pau

Quando chego em casa, meu pai está assistindo TV na sala. Henrique tenta me seguir até dentro de casa e eu preciso fechar a porta antes que ele entre.

— Teresa tá em casa? — Jogo a mochila no chão, perto do sofá, e me sento ao lado dele.

— Lá em cima com sua vó — ele diz sem tirar os olhos do filme.— Por que você disse aquilo pra minha avó? — Aproveito a nossa primeira

oportunidade sozinhos desde quarta. — Domingo passado. O encontro.— Eu só respondi à pergunta dela. Era exatamente o que eu sabia, até porque

não faço ideia de quem seja o garoto. — Ele olha para mim. — Porque, pelo jeito, não sou confiável o suficiente para você.

— Pai. — Respiro fundo. — Eu não estou pronto pra contar para minha vó ainda. Só queria que você entendesse isso.

— Eu… Eu queria que você entendesse o meu lado também. — Ele pega o controle no braço do sofá e pausa o filme. — A sua avó já desconfia. Assim como todo mundo. Na semana passada, ela jogou um verde pra Teresa.

— O que ela disse? — pergunto, incrédulo. — Depois a Tetê te explica melhor. Olha, eu não vou saber o que dizer quan-

do sua vó vier falar comigo. Vou acabar contando a verdade.

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Passo os dedos sobre a minha bochecha esquerda, em meus pequenos pelos teimosos que cismam de crescer. Não sei o que dizer. Nem sei se quero dizer alguma coisa de fato.

— A sua avó coloca muitas expectativas em você. Você é tudo que restou pra ela. Às vezes ela solta pra mim, sem querer, que se arrepende de ter tido apenas a sua mãe, apenas uma filha. E você é uma extensão dela. Você é tudo que ela tem.

— É… Um peso e tanto — digo, com as lágrimas já querendo escapar dos meus olhos, tão teimosas quanto os pequenos pelos em minha bochecha.

— É melhor que conte a ela antes que algo pior aconteça. A sua avó não é uma velha tão retrógrada assim, ela vai entender. Quer saber? Outro dia, Tetê e ela estavam assistindo o Pabllo Vittar cantando no Caldeirão do Huck — ele diz, rindo.

— Vou pensar sobre isso. — Sorrio, e ele bagunça o meu cabelo. — E o encontro? Como foi? Você não disse nada.— Bom… — Semicerro os olhos, falando com certa hesitação. — O que deu

em você? — Estou tentando ser o exemplo. Quando sua vó me perguntou sobre você

no domingo e eu tive que me conter, percebi como isso deve ser ruim pra você também. Ter que se segurar. E eu sinto muito, filho… Mas eu te amo, você sabe. Só tenho dificuldade de falar sobre… isso.

Sorrio, e a pressão de minhas bochechas contra os meus olhos faz as lágrimas teimosas descerem.

CAPÍTULO NOVE

eu: posso te ContAr um segredo?

Ele: Bom ou ruim?

Eu: Depende.

Ele: Ok, vamos lá.

Eu: Queria te dar os parabéns.Sei que prometi que não procuraria nada do Greek Gods

depois de você mostrar aquele vídeo,

Ele: Não. Não não não não não. Não!!!!

Eu: mas eu não resisti, desculpa!

Eu: Ângelo, eu te odeio tanto.

Eu: Vi o cover que vocês fizeram do Coldplay. Sabe de uma coisa?

Nunca tinha percebido o quanto eu amo In my place…até ver você tocando ela.

Eu: Você está perdoado graças a essa mensagem.Mas apenas por isso.

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E nunca mais procure nada nosso.

Eu: Hm kkk bjs.

Ele: ÂNGELO!

Eu: De onde saiu o nome da banda?

Ele: Cara, esquece essa banda, por favor.Arrependido de ter te mostrado.Sério.

Eu: Só essa última pergunta e juro que não falo mais nada sobre isso.

Ele: Ok. Vou responder.I’m such a sucker.Bom, foi mais uma brincadeira.Porque ninguém na banda era um deus grego.Eu sou negro, o Harry, o vocalista, é muito feio,como você viu, e o guitarrista é filho de japoneses.E tinha o Chuck, que era gordo e punk. Hoje em dia eleestá bem mais magro.

Eu: Bem criativo para um bando de adolescentes.

Ele: Obrigado, foi ideia minha.

Eu: E foi você que escreveu aquela música do clipe?

Ele: Você já gastou a sua última pergunta.

Eu: Só o Harry? Só você? Ou vocês dois?

Ele: Sim, fui eu. Pronto, chega de Greek Gods.

Eu: A letra é linda.Tão linda quanto você.

Ele: Eu já te desculpeiNão precisa mentir, haha.

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Eu: Não estou mentindo, idiota.É a verdade.

Ele: Você também é lindo.

Eu: Eu sei.

Ele: S U C K E R

CAPÍTULO DEZ — Descobri que ela fuma. Mas tá tentando parar. Ontem, no break — Lari me conta enquanto passamos pela catraca da recepção da ÁTIQ, nosso inferno seis vezes por semana, juntos.

— Putz. Eu gostava tanto dela. — Sorrio, revirando os olhos.— É. Ela estava fumando lá perto do canil. Pelo menos ela adora cachorro.— Acho que posso reconsiderar o meu sentimento por ela — digo. Nós dois

estamos passando pelas portas automáticas e o calor do lado de fora está nos abra-çando. — Já estão trocando mensagens?

— Então… Não pedi o número dela ainda. Nem ela pediu. Já achei o Twitter e o Instagram dela, mas não sei se devo seguir. Ela parece do tipo que se afasta por qualquer coisa, né, você sabe. Estou com medo de parecer desesperada.

— Seguir alguém numa rede social te faz parecer desesperado?— Sei lá, cara. Essa garota é um mistério. Por que ela não pede a droga do

meu número?— Por que você não pede a droga do número dela? O sinal fica verde e atravessemos a rua, indo em direção à Avenida Presidente

Vargas. — Você nunca fica do meu lado. Só me arrasa. — Muito dramática, meu Deus. Eu vejo o modo como ela olha pra você.

Ela tá na sua. Vai por mim — digo quando já estamos no ponto de ônibus, onde precisamos nos despedir, porque, às quintas, Lari é quem não vai para a faculdade comigo por conta do curso de espanhol, aqui, no centro.

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Ela sorri. Depois de um abraço, minha amiga se despede, e eu permaneço no ponto à espera do meu ônibus. Coloco os fones, olhando para todos os lados, já me preparando para a viagem até em casa. Há umas vinte pessoas aqui, acho, e tudo parece bem. Dou play em In my place, do Coldplay. Porque eu simplesmente não consigo parar de pensar nele, nem nessa música.

Depois de quase dez minutos, o 292 chega. Quando já estou na pequena fila que sempre se forma para entrar, Greek God, uma música que acabei achando por acidente no YouTube graças às minhas pesquisas pela banda de Liam, é interrom-pida por uma ligação.

— Me diz que você não está no ônibus indo para casa — Liam diz assim que aperto o botão que serve para controlar chamadas em meu fone, ainda com o celular no bolso.

— Vou entrar nele agora. Por quê? — digo, subindo o primeiro degrau. — Não entra. Quero que você me leve em um lugar. Pode ser?— Onde você tá? — Viro-me de costas para o motorista, pedindo desculpas

para as pessoas que estão tentando entrar. Ouço resmungos. — Tá aqui no centro?— Na verdade, estou na porta do seu trabalho. Só que me atrasei um pouco.

O plano era te pegar de surpresa. — Pode me encontrar por aqui, na Candelária? — Candelária, ok. A igreja enorme. I’ll meet you there in five minutes — ele diz,

desligando.

Quando chega, Liam diz que quer ir à praia. Na Pensilvânia há muitos lagos para banho, mas eles moravam longe dos realmente limpos e os seus pais quase nunca iam, segundo ele. Depois de muita indecisão, pegamos o metrô com milk--shakes de morango em mãos que ele mesmo fez questão de pagar.

A essa hora, sentido Botafogo, ainda é possível ir sentado se você escolher o vagão certo.

Liam observa as pessoas atentamente, como se tudo ao nosso redor fosse muito interessante. Quando o pergunto sobre seu olhar analítico, ele diz que se lembra de pensar, na primeira vez em que veio para cá, em como todo mundo é muito diferente no Brasil, coisa que não acontece em sua antiga casa. Percebo o quanto esse assunto o incomoda, por isso não o pressiono, e ele para antes mesmo de chegarmos ao nosso destino final, o bairro do Flamengo.

Já na praia, andamos com certa distância da areia, à beira das árvores que guardam a Praia do Flamengo. Tem bastante gente na areia, mas pouca na água. Está calor o suficiente para ter vontade de vir até aqui, mas não o bastante para a grande maioria ter coragem de encarar as águas frias do mar. Milagrosamente, Liam pede para eu tirar uma foto dele. Ele nunca foi de gostar de câmeras, e por

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isso mesmo sempre fui obrigado a desenhá-lo por todo aquele ano em nossa ado-lescência. Foi a forma que encontrei de guardar os nossos momentos para sempre além de dentro da cabeça.

Ele se posiciona de costas para o mar, bem próximo ao limite da calçada. Ajeita os óculos, estica sua camiseta azul que diz “paz” em japonês e, depois, abre um sorriso tímido, sem saber o que fazer com os braços.

— Wait — ele diz, esticando o braço, fazendo com que sua mão me impeça de capturar o seu rosto. — É… A touca. Segura aqui. — Eu a seguro com a mão livre e a coloco em minha bolsa de lado, estilo “empresário”. — É pra mandar pro meu pai. Se eu estiver de touca ele vai reclamar. Ele sempre reclama.

Ele sorri, tímido, e tenta arrumar alguns fios rebeldes em sua cabeça. Eu o capturo rapidamente, talvez umas dez fotos seguidas. E, como a oportunidade é única, finjo para ele que ainda estou em ação, enviando a foto para o meu celular. Ele vai me matar por isso uma hora ou outra, mas eu mereço, este momento é meu. Depois de apagar a foto enviada da nossa conversa, digo que terminei, devolvendo o celular.

Após andar por quase toda a praia, vamos para a areia e nos sentamos pró-ximos ao mar. O vento está frio, e o sol já parece querer se despedir de nós. Liam segura suas pernas com os braços, apreciando a vista e a brisa refrescante.

— Como estão as coisas com a sua mãe? — eu finalmente pergunto, aprovei-tando o clima bom para entrar em uma zona não tão segura.

— Hoje meu pai ligou pra ela — ele responde depois de um tempo. — Pra falar sobre mim. E ela brigou comigo. Por isso fugi pra cá.

— Por quê?— Porque ela não queria que ele soubesse. Na verdade, acho que ela está

certa. Agora ele vai ficar infernizando a minha vida. E a dela. E ela não merece isso. — Ele é seu pai. A gente sente essa necessidade de falar. Não tem jeito. — É… Bom, meu pai é um cara tranquilo, no geral. Em relação a quase

tudo. Uso brincos desde a adolescência e ele nunca ligou, você sabe. Mas... isso é diferente. Ele acha que eu preciso voltar pra Pensilvânia. Pra ele poder… me ajudar.

Seu olhar se perde no mar, e eu o acompanho. Há um homem e uma pequena menina, provavelmente pai e filha, brincando dentre as águas. É uma cena pura, bonita. É o amor em sua forma mais completa, como sempre deveria ser.

Ele não fala mais nada, e eu respeito seu silêncio. Sei que eu não deveria pensar nisso, mas já estou pensando no meu surto se perdê-lo de novo. Enquanto caminhamos entre as árvores com o sol se pondo atrás de nós, agora, em direção ao metrô, penso no quanto ele tem a dizer, mas nunca diz, como se tivesse algo

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prendendo-o, como uma corda amarrada em seu pescoço. O seu silêncio demonstra tristeza, e até mesmo desespero. Tento me manter calmo.

Agora, já na estação, tento fazer com que ele olhe para mim mais uma vez.— Lari, Tomás e eu vamos criar um podcast — digo, virando-me para ele, que

está em pé ao meu lado, apenas a cinco passos do fim da plataforma.— Podcast? — Ele sorri. — Você gosta? Não tenho costume de ouvir. — É. E eu pensei em você para nos ajudar. — Não sou falante o suficiente para fazer um podcast. — Ele torce o nariz.

A televisão acima de nós diz que o próximo metrô para a Pavuna chega em seis minutos.

— Você pode ajudar de outras formas. Precisamos de uma trilha sonora pró-pria. — Sorrio, tocando um teclado imaginário com os dedos no ar.

— Sure. — Ele assente com a cabeça. — Mas você sabe que eu não sou muito bom.

— Não é o que o seu cover de In my place diz. — Idiota. — Liam ri.

Já dentro de um dos vagões, de pé, minutos depois, eu o vejo semicerrar os olhos, tombando a cabeça. Liam quebra o silêncio:

— Você não devia estar na faculdade? Ou pelo menos indo pra lá? — ele pergunta, confuso.

— Talvez. — Dou de ombros.— Fiz você perder aula. Não acredito. — Relaxa. Eu adorei o nosso fim de tarde. — Não faça mais isso — ele briga, o que acho fofo. — Ah — emenda segun-

dos depois, lembrando-se de algo —, essa não é a mesma praia que matamos aula uma vez, é?

— Não. Foi em Botafogo. Tinha um shopping em frente, lembra? — Com um milhão de escadas rolantes. — Ele sorri. — Verdade. — Como estava sol, pensei ir ao Flamengo porque teria gente tomando ba-

nho. A de Botafogo não dá, aí quase sempre está vazio, então é meio perigoso. Fui assaltado lá ano passado.

— Putz.

Dou um tapa de leve em seu ombro. Nós rimos.

— Gostei. Foi algo novo. Acho que não precisamos mais viver no passado — ele diz.

A minha cabeça vira um ponto de interrogação gigantesco porque eu não

faço a mínima ideia do que ele realmente quer dizer com isso.

CAPÍTULO ONZE

ninGuém vai à Primeira semana De aula no ensino méDio. Bom, eu nunca ia, pelo menos, então não posso afirmar com toda a certeza do mundo. Minhas amigas também não iam, Alexandra (a mesma que hoje cursa biblioteconomia comigo) e Clara, que nunca mais vi depois que a escola acabou. Naquele meu 2º ano não foi diferente. Já era 2015, e nós nos conhecíamos só há pouco mais de dois meses por causa do episódio do Facebook. Eu já gostava dele, e estava apreensivo por estudar-mos juntos agora. Não éramos assumidos. Se alguém da turma percebesse, as coi-sas ficariam complicadas. Liam também não estava preparado. Prometemos um ao outro que seríamos discretos. Ele já até havia feito amigos quando me sentei ao seu lado naquela sala de aula pela primeira vez. O clichê de ficar isolado por ser novo e não conhecer ninguém não se concretizou, mas é claro que todos estranharam o garoto que falava um português escorregadio e, às vezes, o misturava com o inglês da maneira mais natural do mundo.

— Liam. — Lembro de ouvir o seu nome pela primeira vez saindo da boca de Bárbara, uma das garotas mais bonitas da sala.

Meu coração acelerou. Por um motivo idiota, mas, definitivamente, lembro de senti-lo se revirar dentro de mim, confuso. Alexandra, que na época era mais baixa e ainda não tingia os cabelos de cinco mil cores a cada uma semana, me olhou, confusa.

Elas ficaram observando o “garoto misterioso” durante os dois primeiros tempos inteiros daquele dia, matemática, e eu estupidamente fingi fazer o mesmo. O professor já estava indo para o segundo capítulo do livro, sobre geometria, e eu estava perdido. Não pela matéria, nada disso, nunca me importei com nada na escola

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(exceto Artes, claro), mas, sim, pelo o que as pessoas da sala estavam pensando sobre ele. Eu tinha acabado de fazer dezesseis anos e a coisa mais famosa do planeta Terra era a falecida One Direction. As meninas só sabiam falar disso. Só o nome dele já era motivo suficiente para as garotas ficarem perdidamente apaixonadas.

— Deve ser um sinal de Deus. — Lembro de comentar com as meninas na hora do intervalo.

— Se ele fosse gay, o nome dele seria Harry. Ou Louis — Alexandra obser-vou antes de morder uma batata Ruffles.

— Será que ele é gay? Não tem muita cara. A Bárbara já está se jogando pra cima dele, você viu? — Clara disse.

— Você viu, cara? Ela forçando assunto e ele nem respondendo direito. Ele parece do tipo tímido. Deve estar de saco cheio dela.

— Calma, Ângelo, ele nem sabe seu nome ainda. — Pois é, né. — disse, mantendo minha encenação. — Já tá na hora de vocês

me chamarem bem alto lá na sala. Umas três vezes seguidas, pra ele gravar bem.— Gente, gente — Clara, que estava com o celular na mão, chamou nossa

atenção. — Aqui, a Aline tá me contando. — Ela nos mostrou a tela de seu What-sApp. — Ele morava nos EUA. Só que nasceu aqui.

— E o que mais? — Alê perguntou, empolgada.— Como assim, o que mais? É isso, ué. Ele deve ter se mudado há pouco tem-

po. Não sei — completou ela, dando de ombros. E daí em diante não prestei mais atenção em nenhuma das aulas daquela

semana, mais do que o meu normal de desatento na época. Estava com medo. Eu reparava nas garotas olhando para ele o tempo todo, e ele sempre me ouvia recla-mar depois, por ligações.

Eu ficava observando o modo como ele falava, a maneira como seus cachos se embolavam ao redor de suas orelhas, sua postura correta ao se sentar na carteira azul, e até mesmo o jeito que ele se curvava ao rir de alguma piada vinda do fundo da classe. Lembro de reparar em como suas sobrancelhas eram (são) perfeitamente separadas na medida certa acima dos olhos, como se o seu rosto tivesse sido dese-nhado à mão com a técnica das grades – que é quando se faz pequenos quadrados com uma régua em todo o plano, para que a proporção do objeto na folha fique o mais correto possível – e o resto do mundo fosse feito apenas no olhômetro.

A partir dali, tudo mudou. Ver Liam cinco vezes por semana era bom e ruim ao mesmo tempo. Mas eu não me apaixonei assim tão fácil. É claro, ele era de longe o garoto mais bonito daquela sala, mas aos dezesseis anos eu ainda não havia me aceitado muito bem. E nem ele. Por isso, tudo foi tão conturbado. Ser adolescente já é complicado, mas quando você é uma das pessoas da sigla, a coisa parece se multiplicar, como se a vida já não fosse dramática o suficiente.

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Eu: CARA!!!Acabei de lembrar.

Meu Deus.Você

viuo filme

de Death Noteda Netflix???????

Ele: OMFGNão me lembre dissoPor favorA minha cabeça dói só de pensar

Eu: SIM!!!Pessoalmente falamos mal

mais detalhadamenteAgora eu preciso de uma recomendação

Tô aqui na minha vó e ela dormiu no sofáViu algum anime bom recentemente?

Ele: Faz um tempo que não vejo anime.Estou mais culto agora, haha

Eu: Quem é você e o que fez com o Liam?

Ele: Tenho lido mais livros ultimamente. Não tenho visto nada.O último mangá que eu li foi o 698 do One Piece, no começo do ano.Sendo que já está no 957.Desisti.

Eu: Já desisti disso faz tempo, acompanhar mangáé coisa de louco.

Sou meio ruim de ler, você sabe.Que livro você tá lendo?

Deve fazer uns mil anos que não tento ler um.

Ele: Ok, vou admitir, estou me esforçando pra lerporque tenho um propósito.

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Estou lendo Two boys kissing.

Eu: Putz.A Lari já leu esse livro. Vive me dizendo pra ler.

Sou uma vergonha de gay. Mas que propósito?

Ele: O livro é muito bom.Ah, então, é que eu queria aprender a escrever melhor.Eu “descobri” que gosto de escrever ano passado.

Eu: Depois me mostra algo seu?Meu Deus, você é a alma gêmea da Larissa.

Vou te dar um livro em português.Que tipo de brasileiro é esse?

Ele: Ah, para. Meu português já tá “um brinco” (minhamãe que me ensinou essa).Mais um mês aqui e ninguém nem vai suspeitarque já pisei fora do país.

Eu: Uma penaPorque eu me derreto todo com esse sotaque fofo.

Exceto o som do seu S, claro.

Enquanto minha vó ronca ao meu lado no sofá, fico feliz em descobrir A ga-rota que conquistou o tempo na Netflix. Foi um dos animes que Liam me recomendou em nossos oito meses frequentando a mesma escola cinco vezes por semana.

Fala sobre uma menina que descobre acidentalmente que consegue voltar no tempo, e ela faz bem o que um adolescente faria: usar o poder para trivialidades, como fazer uma prova já sabendo o que iria cair ou fugir de uma cena constrangedora do dia a dia. Lá para o meio da história, um dos melhores amigos dela, Chiaki, assume que é apaixonado por ela, o que a faz fugir – saltar no tempo – para evitar aquela tragédia.

Liam me recomendou esse filme umas duas semanas depois do episódio do “Eu te amo” via Skype, justamente para quebrar o gelo, mas o tiro acabou saindo pela culatra: fiquei mais surtado do que eu já estava.

Se ele tivesse o poder de Makoto, teria feito isso na época? Talvez. Depois daquela falta de resposta dele, acho que até eu mesmo faria.

Mas, sendo bom ou ruim, não há como voltar no tempo. E, agora, pensan-do bem, tanto sobre o passado quanto o presente, entendo o que ele quis dizer na quinta-feira.

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— Promete voltar alGum Dia? — eu lhe perguntei dentro de um abraço em nosso último dia juntos naquele 2015, o ducentésimo quinquagésimo terceiro.

— Não faz pergunta difícil — sussurrou. Podia sentir o medo em sua voz. Estávamos em nosso esconderijo de vista tenebrosa do shopping. Era agosto e

o vento estava gelado, mas sempre valia a pena subir cada um daqueles degraus para poder abraçá-lo sem medo de ser visto pelo mundo.

— Querer que você fique faz de mim uma pessoa horrível? Porque isso impli-ca em querer que seus pais fiquem separados — disse, sem soltá-lo por um minuto. Aquele pequeno espaço sujo e sem graça era desconfortável, mas era nosso.

— Talvez você seja, mas só um pouquinho. Eu te perdoo. — Liam sorriu.Depois de alguns minutos em silêncio, sentindo o vento em nossa pele e ob-

servando a vista de cor gris, ele pegou em minha mão, entrelaçando seus dedos aos meus. Foi um dos melhores momentos da minha vida.

Ficamos assim durante um tempo. Conversando sobre o que havíamos vivido. Sobre o futuro. Sobre expectativas frustradas… Sobre nós, juntos. Sobre nós, separados.

— Preciso ir — ele disse depois de pegar o celular do bolso, que dizia “Três chamadas perdidas de Mãe”.

Nunca havíamos passado tão devagar por aquela porta vermelha em verniz. Descemos as escadas de mãos dadas, bem lentamente, como se quiséssemos parar o tempo, ou até mesmo voltar nele. Para o dia primeiro. O nosso primeiro dia.

Quando infelizmente chegamos ao térreo, Liam me parou. Ficamos ali, encarando a última de tantas portas vermelhas. Com pesar, senti sua mão se desvencilhar da minha.

Ele olhou para mim e sorriu. Se naquela época eu já tivesse me tocado do quanto In my place é perfeita, teria pensado naquele momento que essa era a nossa música, a trilha de nossa pequena história de amor.

Quando penso na cena hoje, remonto o acontecimento com essa música de fun-do, como um bom manipulador de memórias. I was scared, tired and underprepared, but I waited for it. If you go, If you go, then leave me down here own my own. Then I’ll wait for you.

— Eu também te amo. — Foi a última coisa que ele disse antes de atraves-sarmos a porta que nos separava do resto do mundo. — E mil desculpas pelo dia do Skype. Mas eu também te amo. Muito.

Aquele nosso último beijo foi incrível. Eu o vejo agora, com a nossa música ao fundo. Estava assustado, cansado e desesperado, mas eu esperei por isso. Se você for, então deixe-me aqui sozinho, e eu esperarei por você.

Quando minha avó acorda e o filme termina, penso em como tenho sorte de não poder voltar no tempo, pois eu não mudaria nada em nossa história.

Acho que você tem razão, Liam.

Não precisamos mesmo viver no passado.

CAPÍTULO DOZE abro o Portão e Deixo meus amiGos Passarem Primeiro. Henrique dá uns latidos tímidos quando eles entram, mas para assim que o repreendo. Pedro cumprimenta o xará, que o recepciona com lambidas na mão. Olho para cima, para a janela do quarto da minha avó, que está fechada. Estamos seguros.

Seguimos. Larissa e Tomás abrem espaço para que eu possa abrir a porta da sala. Alexandra e Pedro também me esperam em silêncio; os dois são viciados em podcast (eu não fazia ideia disso) e resolveram assistir à nossa primeira gravação assim que lhes contei sobre o nosso projeto.

Depois da sala, a primeira porta do corredor é o banheiro, e a segunda é o meu quarto, agora um lugar de gravação do nosso podcast ainda sem nome. Tomás pediu para pensarmos em algo durante esta semana, mas, até ontem, quando ele mandou uma mensagem em caixa alta dizendo “os microfones chegaram!!!!!!!”, eu não havia nem tentado pensar em nada por estar ocupado demais montando um possível roteiro sobre o que vou falar (se eu consegui algo, foi graças à Lari), então nem tive tempo suficiente para isso.

— Quarto de Otaku — Pedro diz, apontando para o meu pôster de Your name atrás da porta.

— Ah, fala sério, até eu já vi esse — Alexandra rebate, e eu sorrio para ela.— Não reparem nos desenhos. São muito antigos e eu tenho preguiça de tirar. E Tomás, que nunca veio aqui, já está olhando para eles bem de perto em mi-

nha única parede “livre”, onde fica minha cama e uma mesa; fora a da porta, uma parede é ocupada pelo guarda-roupa e outra, pela janela com a cortina.

— Por que tem desenho da Lari na parede e meu não? — ele pergunta.— Cheguei primeiro, se toca — Lari debocha, fazendo-o revirar os olhos.

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— Pera aí, cadê o meu? — Alexandra olha para a parede por uns segundos. — Ah, ali. Acho bom.

— O surto de ciúme. — Rio, mas ela me bate. — Tomás e eu merecemos um nosso nessa parede. Sem conversa — Pedro

afirma, e Tom assente com a cabeça.— O boy aqui. — Alexandra toca o dedo indicador sobre o desenho não

terminado de Liam na parede.

Após minutos de distração, fechamos a janela e carregamos a mesa até ficar de frente para a minha cama. Tomás senta em minha cadeira giratória e retira seu notebook, os microfones e os headsets de sua mochila. Alexandra e Pedro se sentam um pouco afasta-dos em cadeiras trazidas da cozinha, e Lari e eu sentamos de frente para Tomás, na cama.

Antes de fecharmos a porta e iniciar, o guardião da casa entra com o rabo balançando e para ao lado de Alê, que o puxa para fazer carinho. Ele deita no chão, aproveitando a mão dela em sua barriga.

Enquanto esperamos Tomás montar todo o esquema, fazendo um monólo-go sobre coisas tecnológicas que ninguém entende – modelo de gravador digital, tipo de entrada, programa de edição de áudio etc. –, Liam aparece por mensagem perguntando se já começamos a gravar o podcast. Eu o convidei para assistir, claro, assim como Lucas e Alê se (auto)convidaram, mas, para o nosso azar, o tio dele, que é super ocupado, marcou a primeira aula de teclado com ele para hoje.

Ele pergunta em áudio se pode ligar para nos ouvir em ação, explicando que o tio está atrasado. Todos concordam. Após tudo estar em seu devido lugar, Lari e eu nos aproximamos da mesa, para a beira da cama. Encaro o microfone, que tem espuminha e tudo, e até fico com medo de perguntar o preço. Pelo olhar de minha amiga, ela também deve estar pensando a mesma coisa.

— A Camila sugeriu um nome pro podcast. Vocês pensaram em algum? — Tom nos pergunta, entregando os fones de ouvido. Isso me faz pensar no trabalho, o que me faz rir de desgosto sozinho.

— Não — Lari e eu falamos em uníssono. — Nem eu. — Ele sorri. — Mas, bem, na verdade, pensei sim. Todo mundo

aqui é minoria, com essa necessidade de falar, o que é o motivo disso aqui existir. Sugeri “os sem voz” com a Camila, o que eu já achei bom, mas isso a fez lembrar de sua laringite aguda no final do ano passado… Vocês sabem como ela é, boba toda vida. Disse até que começou a aprender Libras para se comunicar com as pessoas. E aí, é isso. Laringite. O que acham?

— Eu adorei! — Alê diz. — Tipo, se eu visse um podcast com esse nome no Spotify, com toda certeza clicaria para ver sobre o que é.

— Não, total — Pedro concorda.

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— Fechou — Lari concorda. E eu assinto, sorrindo. — Eu adorei o nome, só pra constar — Liam diz, sua voz saindo meio distan-

te no alto falante do meu celular em cima da mesa. — Bom, é isso. Roteiros em mãos? — Tom nos pergunta, e nós os balança-

mos. — Não se preocupem com erros, vou editar depois. Só falem.

Ele dá uma última olhada em seu gravador antes de iniciarmos.

[t] Ai, eu não faço a mínima ideia de como começar de uma maneira dife-rente, gente.

[l] Não é tipo “olá, esse é o podcast laringite e eu sou o Tomás e...”[t] É que todo mundo começa assim. Tirando a Laurinha Lero.[l] Boa tarde, boa noite, bom dia, dependendo da hora que você está ouvindo.[t] (rindo) Boa. Pra gente aqui é boa tarde. Cinco e quarenta e cinco agora.[A] No meu roteiro eu coloquei a apresentação primeiro.[l] Então o bonito já pode se apresentar.[A] Eu? Gente, não, começa você.[t] Então, ouvinte, esse é o Ângelo e ele vai se apresentar para nós neste

momento. Pode começar, Ângelo.[A] Ai, tá bom. Então, é aquele clichê de não saber falar sobre si mesmo,

mas meu nome é Ângelo, como vocês já sabem, eu sou gay, tenho 20 anos, faço biblioteconomia, e… Só? Ah, eu trabalho também, gente.

[t] Você tem dois empregos.[A] Exatamente, o próprio Julius. E eu moro com meu pai e minha madras-

ta, e minha vó mora na casa de cima. Eu… Ah. Bom. A minha mãe morreu no parto. Eu nasci e ela morreu. Foi isso. Sei que é meio pesado, mas eu tenho uma relação muito estranha com tudo isso porque eu olho pras fotos dela e fico pensando que eu só existo por causa dela, sabe? E eu não faço a mínima ideia de quem ela foi. Não de verdade. Sei de ouvir dizer, do pouco que meu pai já me contou. Ele raramente quer falar sobre ela, isso deixa ele triste, claro. A minha vó ainda fala mais que ele, mas… Ai meu Deus, já comecei isso aqui da pior forma possível. É porque vocês não estão vendo a cara da Lari e do Tomás.

[l] Já tô vendo que eu vou chorar em todas as gravações.[t] A Lari é a mais chorona do grupo. [l] Talvez seja verdade.[A] É totalmente verdade.[l] Calados.[A] Ah, é. Bem… É complicado. Por muito tempo eu senti culpa pela morte

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dela. Quando eu tava entrando na adolescência, eu me lembro com muita clareza mesmo. Foi quando eu percebi que era gay, lá pelo oitavo ano, e aí eu comecei a pensar que era melhor eu ter morrido e tal… Esses pensamentos destrutivos que a gente tem quando se descobre LGBT e acha que é errado e começamos a nos odiar e nos culpar por isso. Eu lembro de ficar perguntando sobre ela e ninguém querer falar sobre o assunto. Hoje em dia é menos pior, tanto pra eles quanto pra mim, mas acho que sempre vou ter esse sentimento beeem lá no fundo. Não é algo que eu pense diariamente, longe disso, mas quando isso me pega, o que é raro, mas acontece, é meio forte, sabe? Porque é como se eu devesse amar a minha mãe mesmo sem fazer a menor ideia de quem era. E o meu pai é um cara fechado. Ele até poderia ser do tipo que não toca nas coisas da pessoa, deixa o guarda-roupa intacto, as roupas, os objetos pessoais, mas não. Não tenho memórias claras an-tes dos nove, dez anos, para falar a verdade, mas a essa altura o único resquício de vida da minha mãe naquela casa era um porta-retratos com a foto dela no rack da sala e um na geladeira da cozinha, que inclusive continuam aqui até hoje. Es-tamos gravando na minha casa, informação nova. Enfim. E aí meu pai se fechou pro mundo, e só foi arrumar uma namorada há pouco tempo, quando eu estava saindo do Ensino Médio, e só ano passado ela veio morar aqui, com ele. E agora ela está grávida. E ela tem 34 anos. Meu pai tem 51.

[t] 34 anos?[l] E ela ainda parece mais nova do que é.[A] Pois é. Eu acho que meu pai já tá meio velho pra criança, mas ela é nova,

então… E meu pai está encarando isso como uma nova chance. Semana passada eles descobriram o sexo do bebê, é um menino, e aí colocou no status o anúncio com um emoji de um menininho com uma bola de futebol ao lado.

[l] Dessa vez o filho hétero vem.[t] Morto (rindo).[A] Já falei demais, agora é você.[l] Ué, por que eu? [t] Vai, Lari, se apresenta.[l] Tá bem. Então, gente, meu nome é Larissa, né, tenho 20 anos também,

curso Letras na UNIRIO, na mesma faculdade do Ângelo, ele não falou, mas eu tô falando.

[A] Desculpa! (Rindo)[l] É, e... Ai, eu tô fugindo de falar sobre mim, mas eu e o Ângelo nos co-

nhecemos no trabalho. Nós trabalhamos juntos ainda, infelizmente, porque é telemarketing, e depois descobrimos que estudávamos no mesmo lugar, mas, enfim… Tenho 20 anos… Ah, já falei. Então, além dessa loucura de trabalhar e estudar, também faço curso de espanhol no Centro, e eu também gosto de ler e escrever nas horas vagas. Tomás e eu já escrevemos tantos roteiros pra curta na vida que eu nem sei.

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[t] Verdade, pra mais de 10.[l] Pois é, e são sempre bem pessoais, mas a gente não tem dinheiro pra pro-

duzir filme nenhum e assim nasceu isso aqui.[t] Podcast arte acessível. [A] Esqueci de falar sobre a minha arte.[l] Perdeu a vez, sossega aí (rindo). Então, eu moro com os meus pais, que

atualmente só vivem juntos. Meu pai dorme no sofá há mais de um ano, e ele tá desempregado mais ou menos há esse tempo também. Ele nem tem pra onde ir, e minha mãe sabe disso, por isso atura ele lá, mas vocês devem imaginar como é a situação. Uma merda. E… Ai, nossa, sério, tá insuportável. A minha mãe trabalha muito, muito mesmo, tanto de dia quanto de noite, e eu tenho uma irmã mais nova que está no Ensino Médio e a minha mãe tá pagando escola particular pra ela porque acha injusto tirá-la sendo que meus pais se mataram pra pagar pra mim a vida inteira. E eu entendo. Comecei a trabalhar justamente pra isso, pra ajudar como posso, e meu pai se sente horrível por isso. Pra vocês terem uma noção, ultimamente ele tem falado que anda enjoado, e aí acaba não almoçando, não jantando, mas a real é que ele está se sentindo mal por estar sendo sustentado pela gente, e principalmente pela ex-mulher, né? E eu tenho levantado de madru-gada pra dar comida pra ele, pra forçar ele a comer enquanto minha mãe está dormindo, assim ele se sente menos mal, sabe? No fundo, no fundo, isso é algo machista, mas eu não consigo vê-lo assim. Então quase toda noite faço isso. Lá pelas duas da manhã, coloco a comida no prato, vou até a sala e bato no ombro dele. E aí eu finjo que vou voltar a dormir, mas fico no banheiro tentando escutar barulho de prato sendo lavado na pia, que é o que ele faz depois de comer pra não deixar rastros. Coloco pouquinha comida, que é justamente pra não ficar muito na cara para minha mãe. Uma situação merda, até porque já basta esconder me-tade da minha vida pra ela, mas não tem jeito.

[A] E a sua mãe fala alguma coisa sobre o seu pai? Dele continuar lá.[l] Não. Pra falar a verdade, a gente quase não se vê. A gente janta junto e é

isso. Por causa do trabalho e tudo mais. O que é triste. Minha mãe tem o trabalho regular e também trabalha noite sim, noite não no extra. Quando estamos juntas ela só pergunta sobre o trabalho, aí eu reclamo e ela me motiva a não desistir. Às vezes eu quero muito largar, o Ângelo sabe como é horrível aquilo lá, mas agora não dá, infelizmente. Mas, gente, sério, não trabalhem em telemarketing. Pelo bem da saúde mental de vocês.

[A] Vez do Tomás? [l] Vez do Tomás.[t] Vez do Tomás, então. Bom, gente, meu nome é Tomás, vocês já sabem.

Eu sou homem trans, sou bi.[l] Esqueci de falar que sou lésbica. Tá todo mundo falando de sexualidade.

Agora pode continuar.

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[t] Como sempre, bi sendo silenciado (rindo).[l] Garoto... (Rindo)[t] E, bem, então, vou começar falando sobre o que todo mundo quer ouvir

quando se trata de pessoa trans, né? Comecei a minha transição com 18 anos, hoje eu tenho 23, sou o tiozão do trio, e, bem, eu curso Teatro na UNIRIO, assim como meus amigos aqui. E, ah, a Lari não disse, mas eu digo. Conheço o Ângelo através dela, porque há uns dois anos nos conhecemos na Wizard, eu estava no final do curso de espanhol e ela meio que tinha acabado de começar lá, e continua até hoje, no Centro. Ficamos amigos por conta de uma feira de cultura que eles fizeram e acabou misturando o curso inteiro, enfim, mas eu saí de lá no começo desse ano, terminei, já me livrei daquilo, já posso encontrar com a Shakira e conversar de boas.

[l] Não vejo a hora de acabar também. Anitta que me aguarde.[t] (rindo) E, é, então, eu tenho duas mães, o que todo mundo acha bem legal

e é mesmo, e tive a sorte de ter pessoas que me apoiassem desde o meu primeiro segundo de dúvida. E, bom, pelo meu sotaque vocês já devem ter percebido que eu sou do interior de São Paulo, que é onde minhas mães vivem, e eu me mudei pro Rio pra morar com a minha tia na Tijuca, justamente pra cursar Teatro aqui. Voltando à transição, tudo começou com psicólogo, claro, porque eles querem ter toda a certeza do mundo. Você precisa ter um diagnóstico médico. Enfim, e, gente, o SUS oferece isso de graça, apesar de boa parte dos exames eu ter feito no hospital particular mais por questão de rapidez, claro, porque eu tinha como sustentar isso. Minhas mães tinham... têm uma boa condição, mas o SUS tem esse acompanhamento de graça, o que é ótimo. Mas sempre acaba rolando um medo do médico, sabe, medo sobre o que ele pode pensar de você, ou se vai ten-tar te fazer desistir, enfim… Eu procurei na internet mesmo recomendações de médicos com pessoas trans que já haviam passado pelo o que eu ia passar, e foi tudo bem. A mastectomia eu acabei fazendo pelo próprio SUS mesmo, porque é bem cara, e deu tudo certo. Pra quem não sabe, é o nome da cirurgia que se retira a mama. Isso foi no começo do ano passado. Fui pra São Paulo pra poder fazer e acabei perdendo um período na faculdade por conta da recuperação, que são quase dois meses, e… Falei tudo? Com certeza não, mas isso aqui não é um diário de transição de uma pessoa trans. Só estou falando essas coisas porque sei que vão me perguntar isso uma hora ou outra se esse podcast der certo, mas vocês sabiam que com essas pessoas maravilhosas aqui nessa mesa eu sou só o Tomás? O Tom, na verdade? (Rindo). Eu não sou o Tomás, o homem trans. Como nessas novelas, sabem? Que o fato de ser trans resume o personagem, e ele não tem nada além disso. E eu não sou só isso. Nós não somos apenas letras dentro de uma sigla, apesar de precisarmos isso por questões políticas, sociais, enfim…

[l] Que homem, sou apaixonada.[A] Palmas pra esse homem maravilhoso.

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(Som das palmas e gritos de Pedro e Alexandra)[A] Essas palmas fortes são dos meus amigos que estão aqui nos assistindo,

nos ouvindo, Alê e Pedro, que são viciadíssimo em podcasts, aliás.[p] Laringite agora é meu fave, pronto e acabou.[Al] Pois o meu também.[t] Já temos fãs. [l] A fama vem.[t] Então, acho que terminei. Quer dizer, então, voltando ao Teatro bem

rapidamente, eu me descobri ator no terceiro ano do Ensino Médio, quando a minha escola resolveu que ia ter aulas de Teatro do nada. Era uma escola de riquinho de lá, óbvio, e o professor era maravilhoso, fez vários gays se revelarem lá, inclusive, e eu acabei ganhando o papel principal para a peça de fim de ano. Foi uma experiência incrível. Me senti muito garotinho de série da Netflix.

[l] Eu já tive o prazer de ver esse homem em cena, gente, e é de morrer de bom.

[A] Única privilegiada deste quarto, inclusive.[t] Infelizmente nossos horários na faculdade não batem.[A] Pois é.[t] Então, e é isso… Tem aquilo que a Lari falou, sobre o sonho de fazer um

filme e coisa e tal… Inclusive ela tem o sonho de ser escritora também. Ela não disse, mas eu conto o babado aqui. Ah, e, claro, estou namorando, gente. Há seis meses. O nome dela é Camila, e ela é perfeita.

[A] E deu nome a este podcast, inclusive. Maravilhosa. E, sobre a Lari, já que é pra explanar, vamo explanar. Não me deixa ler nada. Nunca. Nunca, gente.

[t] Um dia vou invadir o computador dela, pessoal, prometo.[l] In-su-por-táveis.[A] Somos.[t] Então, gente, acho que é isso o nosso primeiro episódio. Nós pretende-

mos fazer em quinzena, e vamos falar sobre tudo aqui. Assuntos do momento, pautas LGBT, Cultura Pop, Cultura não pop, enfim. Ah, não posso esquecer de mandar um beijo pra minha namorada linda que infelizmente não pôde estar aqui com a gente.

[l] E não foi por conta de Laringite.[t] Nós temos que explicar esse nome, aliás. Foi meio sem roteiro, meio

fora do esperado, mas o objetivo final era esse mesmo, vocês conhecerem um pouquinho das vozes sem rostos que estão ouvindo. Já tem alguém rouco aí ou foi pouco?

[l] Minha balinha de gengibre com mel tá aqui na bolsa, prontinha.[A] Diretamente do ramal Belford Roxo.[l] E é do trem mesmo.

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— E aí? — Tomás pausa a gravação e tira os fones de ouvido. — O que acharam?

— Melhor do que eu imaginava — admito.— Ai, eu amei. — Lari sorri para nós.— Nosso bichinho também amou. Ficou aqui quietinho ouvindo — Alê

afirma.— Também amei — Liam reaparece em meu celular. — Meu tio chegou aqui

faz uns dez minutos, mas foi impossível parar de ouvir vocês.— Vou te mandar mensagem quando eu for editar — Tom fala, mexendo em

seu notebook.— Já tenho algumas coisas prontas, só falar comigo.

Depois de guardarmos tudo e devolver a mesa e as cadeiras para seus respec-tivos lugares, eles vão embora. Meu pai e Teresa chegam apenas uns vinte minutos depois.

CAPÍTULO TREZE a Primeira vez que vi Dois homens De mãos DaDas foi em seroPéDica, em uma vi-sita à casa Daquela velha amiGa De minha avó que mencionei. Meu pai também estava conosco no dia. A casa da senhora Lurdes é do tipo semi-fazenda, com um quintal do tamanho de uns cinco campos de futebol, muitas árvores e cachorros vira-lata a cada três passos.

Eu tinha apenas 11 anos. O ano era 2010. Niko e Félix ainda nem sonhavam em existir no horário nobre da TV para a família tradicional brasileira. Isso teve um impacto forte em mim, sabe? Aqueles dois homens se olhando, sorrindo, a mão de um procurando a do outro, mesmo que timidamente, com os pés calçados sobre um chão ainda sem asfalto, como se fosse uma ironia do destino. Era por volta das duas da tarde de um feriado de Páscoa, as ruas estavam desertas. Carlos, neto de Lurdes, e eu andávamos alguns metros à frente de nossos pais e nossas avós, o que nos possi-bilitou de ver a cena antes de todos. Quando viramos à direita, saindo do campo de visão dos adultos, demos de cara com aqueles dois, apenas a alguns passos de nós.

— Viu os bichinhas? — Carlos riu para mim após passarmos por eles.Lembro de olhar para trás e vê-los soltar as mãos quando já se ouvia as vozes

de nossas famílias ao virar a esquina.— Quem? — Desviei o olhar, fingindo não saber do que ele falava.— Aqueles dois caras de mãos dadas. Você não viu?

Hoje, quase uma década depois, olhando para os dois garotos que passam do outro lado da rua enquanto tento controlar Pedro em sua coleira, penso em como tudo tem mudado rapidamente. Não que a Terra tenha virado o paraíso, mas, caramba, olhar para trás e ver dois garotos se beijando… Quantos anos eles devem

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ter? Quinze? Dezessete? Dezesseis? Não sei. Mas aqueles dois garotos têm sorte. Eles devem saber disso.

— Ângelo! — De repente, quando olho para frente, o pequeno Lucas está fa-zendo carinho em meu cachorro. Sua mãe dá um sorriso contido depois de dizer “oi”.

— Ele gosta de você — digo a ele quando Pedro Henrique dá uma lambida em sua mão.

— Vamos, filho. Daqui a pouco o Ângelo aparece lá em casa.— Ele pode levar o cachorro? — o garoto pergunta.— Não, querido. Vamos, seu uniforme já está todo sujo. — Daqui a pouco estou lá com você — falo, puxando Henrique de leve pela

coleira.

Depois de nos despedirmos, caminho para casa aos poucos, parando a cada minuto para Pedro verificar a área. Já a cada segundo verifico meu celular, que não recebe uma mensagem de Liam há trinta e duas horas. Não estou surtando nem nada, mas até mesmo meu pai respondeu meu status com “que milagre é esse?” quando postei uma foto saindo com o cachorro na coleira. Eu não faço isso há um bom tempo. Desde quando comecei a trabalhar, praticamente. Um fracasso de dono.

Já na casa de Lucas, pergunto sobre sua cartinha de amor, mas ele só res-ponde tímido que ainda não teve coragem de entregar. Está com vergonha, e a cara dele toda vermelhinha fica um amor. Acho que até dá vontade de ter um filho. Mas passa rápido.

A nossa hora passa voando. Fazemos alguns exercícios e ele me conta sobre as coisas inacreditáveis que aconteceram em sua sala de aula. Viviane vem até nós apenas para passar o olho… Tudo normal.

Chegando em casa, minha avó, meu pai, Teresa e sua mãe estão na sala, conversando alto e rindo. Fecho a porta atrás de mim, ouvindo o chorinho de Pedro Henrique, o que parte meu coração, mas o grito do meu pai acelera meu coração.

— Olha o que eu comprei pro Ícaro! — Meu pai me mostra uma camiseta minúscula do Botafogo com o número 10 atrás e o nome do bebê logo abaixo.

— Ele vai ser flamenguista, todo mundo sabe. — Teresa pega a blusa da mão dele, rindo.

— Vai sonhando.— Nem um nem outro, vai ser vascaíno como eu, como sua mãe era — mi-

nha avó diz para mim, aproximando-se.— Não há um consenso nessa família. — Maria, mãe de Teresa, ri.

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Olho para Teresa. Ela está desviando o olhar. Joga a blusa do Botafogo no sofá e, depois, olha para o meu pai.

— Ele vai ser como o irmão, Brasil — digo, quebrando o gelo.

Depois de um tempo de conversa, descubro que Teresa e Maria foram fazer algumas compras para o bebê hoje, e a mãe veio trazer a filha em casa. Compraram roupas, sapatinhos, uma banheira e algumas inutilidades. Por volta das nove, meus pais e eu fomos levar Maria até a porta. Vovó ficou lá dentro.

— O que a minha vó insinuou sobre mim? — pergunto à Teresa, com meu pai ao lado, ainda na calçada de nossa casa.

— Ah, nada demais. — Ela olha para o meu pai, séria. — Mas eu quero saber.— Ângelo… Vamos entrar. — Por favor, Tetê. É só responder. Não vou ficar chateado.— Não foi nada demais. O seu pai provavelmente exagerou no uso das pala-

vras. Tinha um garoto claramente gay na TV, no Caldeirão do Huck.— Ah, o Caldeirão do Huck. — É. Era um fã da Pabllo Vittar. Sua vó disse que você parecia com ele. Com

o tal garoto. Ele era claramente gay. Assenti, segurando o riso. — Defina claramente gay. — É tipo você. Quando a gente olha, já sabe. — Amor! — meu pai diz de cara feia.— Isso não é uma ofensa. — Ela levanta a sobrancelha para ele.— Mas não é coisa que se diz.

Enquanto os dois começam a discutir, saio de fininho para casa, encontrando minha avó sentada no sofá com os olhos quase se fechando, abandonando os per-sonagens da novela dentro da televisão. Após alguns minutos sentado ao seu lado, percebo que ela finalmente se entregou ao sono, com os olhos fechados, as mãos sobre a barriga e as costas na almofada. Abaixo o volume da TV e dou um beijo em sua testa antes de ir para o meu quarto e tentar ligar mais uma vez para Liam.

quinta-feira. Nada de ele aparecer. Sério, não é possível. Acho que agora eu já tenho o direito de surtar, since-

ramente. Enquanto ouço a Cristiane Rodrigues Coelho reclamar sobre o seu plano horrível de telefone fixo e internet, a minha cabeça só consegue processar pontos de interrogações infinitos sobre ele.

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— Entendo, senhora. É porque esse plano antigo não existe mais. Era preço promocional para novos clientes. — Mas, o que será está acontecendo??? Será que ele só vai reaparecer quando for dizer “Oi, e aí? Voltei pra Pensilvânia :)”? — Entendo. É. Não tem como. Ah, sim. É uma opção, mas causaria bastante transtorno. Na verdade, a promoção para novos clientes agora é outra. Não é tão barata quanto aquela que a senhora tinha, mas... — Eu só queria que ele APARECESSE. Mandasse qualquer coisa. Podia ser só um emoji. O lado ruim de tudo é que eu nem sei de fato onde é a casa dele. — ...A senhora pode tentar. Isso. Não, senhora. Sim, há uma multa, porque esse tipo de plano é com fidelidade. A senhora teria que dar uma olhada no seu contrato.

Na hora do break, Larissa, Júlia e eu vamos até o canil da empresa, que fica no estacionamento deles, atrás do prédio. Eles são cinco no total, e a verdade é que cada um aqui os chama do que quiser. Eu os batizei de Robin, Mutano, Ciborg, Ravena e Estellar (Os jovens titãs). Dessa forma fica impossível esquecer.

Enquanto as meninas aproveitam os nossos últimos 120 segundos para dar uns amassos entre os carros, tento pegar a bolinha de borracha da boca de Ravena – que, apesar do nome, é macho. Só há uma fêmea entre os cinco, e o sorteado foi o nosso vira-lata caramelo, aquela raça que você encontra em qualquer esquina do Brasil.

De volta ao trabalho, a hora passa devagar até às 15h42. Cheguei dois minu-tos atrasado hoje e Larissa, seis minutos antes. O que uma paixão não faz com uma pessoa, não é mesmo?

Quando finalmente vamos embora de lá juntos, Liam está me esperando na porta da empresa, na calçada. Ok, ele não foi para a Pensilvânia. Posso respirar à vontade agora.

— O que houve? — digo ao abraçá-lo. — Estou sem celular — ele diz, passando a mão em meu cabelo. — Desculpa

sumir. Pelo menos, hoje cheguei na hora certa aqui.— Tá tudo bem? — Lari pergunta a ele. — Tá sim. Só fiquei sem celular.— Foi roubado? — ela pergunta. É o que você pensa quando mora no Rio. — Não. — Sorri. — Só minha mãe mesmo. — Menos pior. Gente, estou indo lá. Vou pro curso. Falo com vocês depois.

— Lari se despede de nós e depois segue em frente. — Para onde vamos? — pergunto.— Lugar nenhum. Você tem faculdade hoje, não vou fazer você faltar de novo. — Só tenho aula às seis e meia. Anda, você precisa me contar o que aconteceu.

Ele balança a cabeça, sorrindo, mas acaba concordando em me acompanhar.

CAPÍTULO CATORZE

estamos em um clima mórbiDo DesDe a sexta PassaDa. Larissa foi demitida lá do trabalho, o que a deixou muito preocupada por conta de sua situação em casa en-volvendo seu pai, claro. Ela mal nos responde no grupo, nem atende minhas insis-tentes ligações. Era tudo o que ela não precisava agora, sinceramente. Como se não bastasse, uma coisa meio chata aconteceu hoje envolvendo a Júlia, a garota que ela anda ficando. Há uns três dias, a última vez em que consegui conversar com minha amiga decentemente sem ela sumir de repente, Lari disse que, apesar de tudo, estava feliz por ter conseguido conhecer Júlia antes que ela saísse, porque a considera… especial. “Acho que é a primeira vez que sinto que realmente tenho alguém. Mas eu estou com medo. Medo dela mudar do nada”, ela digitou. “É meio estranho, mas é bom, mesmo que tudo esteja indo bem rápido”.

Só que hoje, logo assim que cheguei, tive a infelicidade de ouvir uma conver-sa da garota com duas amigas no corredor que dá para o segundo andar, bem perto do break.

— Acho que você tá precisando de um trato — ela disse à amiga. — Um bem grande. — E pairou as duas mãos no ar, uma bem distante da outra.

— É, você deve estar precisando também — uma das amigas respondeu. — Pra ver se para de me encher o saco.

— Estou falando com propriedade. Já fui bem tratada ontem. Estou bem satisfeita. Aliás, foi a melhor transa que eu já tive, sinceramente.

— Como se você já tivesse transado com uns mil caras, para. — A outra riu.— É. — Júlia assentiu. — Acho que posso dizer que esse foi um dos poucos

que valeu a pena.

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Ao terminar essa última fala, olhei para ela passando bem ao seu lado. Eu quis que ela soubesse que eu havia ouvido, para que, talvez, ela mesma contasse à Larissa o que acha sobre o relacionamento das duas.

E eu realmente espero que ela tenha entendido isso. Mas, se nada mudar, eu vou precisar contar. Tudo bem que elas não têm nada oficial, como disse Tomás, mas eu conheço a amiga que tenho, e ela já está em um poço sem fundo de ilusão. E a pior parte disso tudo é que a última coisa que eu quero fazer agora é ter que dar outra notícia ruim a ela. Não. Não mesmo, de jeito nenhum.

já à noite, enquanto Penso sobre toDa essa situação, tomás e eu conversamos sobre o podcast, que vai ao ar amanhã Pela Primeira vez. Nós preparamos todo um material de divulgação, tanto digital quanto físico. Nada mirabolante, até por-que não posso mais permitir que Tom gaste mais dinheiro do que ele já gastou, por isso eu mesmo fiquei com a responsabilidade de imprimir os “folders” (uma arte com as informações do Laringite em uma A4), os quais irei colar pelos corredores de cada canto da faculdade. Tudo isso bem no meio da aula de História do Livro e das Bibliotecas II, o que me faz fazer uma breve anotação para o nosso próximo episódio do Laringite na borda esquerda da folha que a professora nos deu hoje.

Já no milésimo slide da aula, Tomás para de me responder por um tempo. Pedro e Alexandra parecem realmente interessados (eles são melhores alunos que eu), mas, apesar disso, vão chegar atrasados hoje em nossa próxima aula só para me ajudar a colar alguns dos mais de cinquenta papéis pelo nosso prédio e o do curso de Letras. No fundo, eu quero que isso tudo dê certo, sinceramente, mais por Tomás e Lari do que por mim. Não sei se eu tenho essa necessidade toda de ser ouvido. Tenho? Quero dizer, eu estou me expondo totalmente nisso tudo. Para um cara gay como eu, que sempre teve uma vida reservada… não sei. Andei procurando fugir disso, de todos esses pensamentos, porque não quero voltar atrás e estragar tudo, mesmo querendo implorar para Tomás que não poste aquilo de jeito nenhum amanhã de manhã.

— Eu adorei essa logo. Quem fez? — Alê, agora com a cabeça metade rosa, metade roxo, pergunta, colando um folder nosso ao lado do melhor bebedouro que há por aqui.

— Foi a Camila. E o Tomás, acho. Eles são ótimos nisso. — Amanhã vai ter gravação? — Pedro pergunta, cortando mais um pedaço

de durex com os dentes. — Ainda não sabemos. A Lari ainda está meio mal. Estou pensando em

visitá-la amanhã. — Acho que pode fazer bem a ela, sabe. Falar. Vai ser uma boa distração.

Vocês precisam convencê-la.

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— E, depois de convencê-la, nos chamar para a gravação também. — Pedro concorda com Alê, sorrindo.

Mais tarde, na volta para casa, Lari finalmente reaparece em nosso grupo, cha-mando apenas o Tomás para ir ao CCBB, ironicamente, já que roubei o passeio deles o fazendo com Liam na última quinta depois do trabalho. Ela até usa um meme, o que demonstra certa melhora e, quase uma hora depois, quando já estou mais perto de casa, pergunta sobre a gravação do nosso podcast, para a felicidade de Tom. Apesar de tudo, ela ainda quer gravar, o que significa que eu já posso começar a surtar, acho.

Um pouco mais tarde, depois de jantar com minha avó, meu pai e Teresa, deitado, recebo uma mensagem de Liam. Finalmente.

Ele: VolteiImagino que esteja chorando agoraSei que faço muita falta!

Eu: Garoto?Como recuperou o celular?

Ele: Minha mãe deixou de surtoMas meu pai ainda quer que eu volteMas acho que isso não vai acontecer

Eu: Você voltaria? Se pudesse?

Ele: Como assim?Eu posso

Eu: Então você vai voltar?

Ele: Você voltaria?

Eu: Não. Mas eu não sou você.E eu sei que você sente falta de lá.

Ele: Mas ir pra lá sabendo o que meu pai quer fazer parece loucuraPor mais que ele seja… tranquilo. Não sei.

Eu: Não sei. Não é como se você tivesse a melhor mãe do mundo.

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Ele: Bom, pelo menos ela fingeque nada está acontecendo.

Eu: E isso tá bom pra você? Ser invisível?

Ele: Você fala como se fosse um ativista LGBTComo se tivesse uma página no Facebook sobre gays.Ou uma conta no Instagram para falar de animes com personagens gays.

Eu: Eu sou hipócrita, ok.

Ele: Não posso reclamar da minha mãe.Não sei. Ela não sabe como lidar com isso.Mas ela me ama.

Eu: E isso é o suficiente? Ter que fingir o tempo todo que o assunto

não existe?Que você não é quem realmente é

somente perto dela?(Isso serve pra nós dois)

Ele: Não é o ideal, mas acontece.AliásEu escrevi uma coisa sobre isso.Em português.Pode ver e dar uma corrigida pra mim?Aproveita enquanto estou com coragem.

Eu: Hmm. Quero.

Ele: “É díficil ser o que as pessoas não esperam. Eu percebi isso logo cedo. Ainda não sei dizer se isso foi bom ou ruim, se me ajudou ou me prejudicou. Por um lado, acho que carrego esse sofrimento a mais tempo do que deveria. Por outro, isso me ajudou a enfrentar certas coisas recentemente. Experiência, como dizem. Eu me lembro de gostar de um garoto da minha classe

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quando eu tinha doze anos. Ele se chamava Joe. Eu me lembro de tudo, até mesmo de pensar “Ei, eu não deveria gosta de garotas? Será que eu sou o único garoto que gosta de outro garoto?”. Fiquei aliviado quando descobri que não era o único depois, mas ainda assim tinha medo dos meus pais… Joe, para o meu azar e para a sorte dele, não era como eu. Ele era (é?) o que as pessoas consideram como normal. Só que eu nunca me senti diferente das outras pessoas. Não como elas nos olham, não como elas falam de nós. Eu sempre me senti bem sendo eu mesmo. Quando eu era criança, jogava videogame com outros garotos, praticava esportes com eles, como basquete e futebol, e até mesmo entrava em brigas estúpidas que só meninos costumam entrar, mas, ainda assim, eu podia ouvir aqui e ali coisas ruins sobre mim, mesmo que eu não entendesse perfeitamente o que tudo aquilo significava. Eu me sentia perdido. Vazio. Como se todos me assistissem de longe, como em um anime, onde o personagem perde todos os detalhes do rosto quando não está perto. Ainda hoje me sinto assim. Como se a minha existência não fizesse sentido. Na verdade, não tem. Não do jeito que vivo. Ou será que alguém acha justo um garoto como eu viver assim, escondido, só porque a grande maioria acha que eu sou um erro? Pensando bem, acho que existem pessoas que pensam assim. Muitas, aliás. Talvez minha mãe se encaixe nisso. Eu sou o filho dela enquanto eu não tocar no assunto, enquanto eu fingir que não a um garoto que gosta de outros. Outro. Tive certeza disso tudo quando cheguei aqui. Quando conheci um certo garoto que deu sentido à palavra “amor” em minha vida. Descobrir que eu poderia amar um garoto foi uma coisa. Quando finalmente amei vi que era algo que estava realmente fora de controle. Eu não podia simplesmente desistir ou fingir que não queria isso. No final de tudo, acho que isso é tudo culpa sua, Angel. Você me fez enxergar que eu não poderia mudar quem eu sou.Viver com a ilusão de que um dia eu poderia mudar parecia mais confortável para o meu eu de cinco anos atrás.

Eu: Você quer acabar comigo?

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Ele: Tem algum erro?

Eu: Eu…Pouco.

Mas… Eu só queria poder te dar um beijo agora mesmo

Ele: Até levei um susto hahahaMas você pode sim me dar… um beijo amanhã

Eu: Socorro saslkfnmsakfnsa

Ele: Vou na gravação de vocês amanhã.Meu tio não vem.Tomás me chamou.

Eu: Ah, claro, como se eu não tivessete chamado milhões de vezes.

Ele: Chamou? Não lembro rsEu: Idiota

Ele: Eu também te amo.

Eu: Te amo mais.

CAPÍTULO QUINZE

ele: estAvA Aqui no shopping AgorA.No banheiro.E eu me lembro de você me ensinar sobre essas coisas que os homens escrevem nas portas das cabines na época da escolaMas hoje eu vi um que não reconheci, ou pelo menos não lembro.Não entendi direito.“Mão amiga” é algo sexual também?

Eu: Eu não tô conseguindo respiraraaaaaaaaaaanfksfsljfsofngggg

CAPÍTULO DEZESSEIS

[t] sabe uma coisa que eu Percebi só hoje, DePois Do nosso Primeiro ePisóDio subir no sPotify? Que eu não contei pras minhas mães que estou fazendo um podcast.

[l] E você quer mesmo que suas mães saibam que você tem um? Porque eu pretendo falar muito mal dos meus pais aqui.

[t] Faz sentido.[l] É claro que faz.[t] Mas um dia seremos muito famosos e isso será inevitável, então pense

bem no que vai falar (rindo).[l] Mãe, pai, apesar de tudo, amo vocês.[t] Então, este é o segundo episódio do Laringite e temos QUADROS dessa

vez, além da minha namorada maravilhosa nos assistindo.[l] E um homossexual mudo também.[A] Dois homossexuais mudos. [t] Verdade. Hoje temos um convidado estrangeiro aqui com a gente.[lF] Na verdade, eu sou brasileiro (rindo).[t] Vocês vão entender essa história já, já. Vamos ao primeiro quadro, antes

de tudo.[l] Basicamente, a gente já vai começar reclamando da vida.[t] Que comece o Reclame Aqui. [música tema de aproximadamente 7 segundos][t] Então, gente, eu lembro de desistir do Facebook na época das eleições,

no ano passado, mas agora não tem pra onde correr. As notícias horríveis sobre

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a política brasileira simplesmente chegam, e, por mais que eu realmente quisesse ficar sem saber de nada, sei que preciso, sei que precisamos. Mas, olha, sincera-mente? Tá foda. O Twitter antes servia mais parar me fazer rir, hoje em dia serve mais pra eu passar raiva.

[l] Nossa, sim. Todo dia uma notícia revoltante envolvendo um certo polí-tico.

[t] Não sei se vocês viram aquilo do Bolsonaro não assinar o diploma do Prêmio Camões que o Chico Buarque ganhou.

[A] Eu vi e realmente fiquei chocado, porque eu pensava que já tinha visto de tudo vindo dele.

[t] Às vezes não parece real, sabe? Uma pessoa tão imatura à frente do Brasil. [l] Esse ano inteiro tem sido conturbador. Aliás, alguém ainda tem saúde

mental por aqui?[t] Não.[A] Zero.[lF] Eu cheguei há pouco tempo, mas também odeio o Bolsonaro.[t] Assim que se fala. [A] Bom, eu só queria dizer antes de começar que esse quadro é simplesmen-

te tudo pra mim. Aliás, obrigado, Lari, por essa ideia, porque no trabalho eu e a Lari que ouvimos os problemas dos outros, e aqui têm pessoas para ouvir os nossos, e isso é incrível (ri, depois fica em silêncio por alguns instantes após olhar para Larissa).

[A] Então, estou com uma situação meio ruim em casa. Com minha avó. E com meu pai. Na verdade, mais com o meu pai, que quer me convencer de contar pra ela que sou gay. Vó, não ouça esse podcast.

[lF] Sua vó não sabe o que é podcast.[A] Graças a Deus. Bem, aliás, eu também andei preocupado com isso essa

semana. Essa exposição que é fazer um podcast. Já pararam pra pensar? Estamos aqui falando da nossa vida para anônimos na internet.

[t] Pensa pelo lado positivo, aqui não é como em um vídeo no YouTube, onde você pode ter comentários horríveis a seu respeito.

[A] É, mas, mesmo assim.[l] E você vai contar pra sua avó? [A] Não sei se devo. Acho que eu não quero odiar a minha avó, se é que vocês

me entendem. Eu amo muito a velha.[l] Exagero, sua vó é um amor.[A] Com héteros.[t] Mas, se você fosse contar pra ela hoje, como faria isso? (Silêncio. Ângelo pensa: “Nossa, ele é realmente bom nisso de podcast”)[A] Eu gostaria que fosse da maneira mais natural possível, sem aquele sus-

pense de “eu preciso te contar uma coisa”.

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[l] É só levar o Liam pra sua casa, então.(Ângelo e Liam trocam olhares)[A] Eu quero que seja natural, mas também não quero causar um infarto na velha.[t] Justo. Bom, por que você não começa a introduzir o assunto aos poucos?

Como assistir a um filme com algum personagem gay inofensivo? Aliás, uma vez eu vi uma lista sobre isso.

[l] Filmes LGBT pra assistir com a família? [t] Basicamente. Só que ele começa do básico, como um personagem gay

em, sei lá, uma pequena cena dentro do filme inteiro, até chegar ao último, onde ele é o personagem principal.

[A] A pessoa que inventou essa lista tem uns três cérebros.[lF] Provavelmente (rindo).[A] Então, agora é a vez da Lari reclamar.[l] Ai, gente… Tá cada vez mais difícil ser eu.(Camila, Alexandra e Pedro, afastados da mesa, riem) (Pedro Henrique solta

um latido tímido)[t] Esquecemos de mencionar nossos três espectadores fieis, os dois Pedros e

a Alexandra, amigos do Ângelo.[A] O outro Pedro é o meu cachorro.[l] Que é a coisa mais linda do Universo, aliás.[t] Mas, qual é a sua reclamação, senhora?[l] Então, vocês já sabem, fui demitida. Parece até ironia, porque no nosso

primeiro episódio eu falei que não saía porque não podia mesmo, pra vocês ve-rem como é a minha vida. E as coisas pioraram lá em casa, como vocês podem imaginar. Ontem eu saí com meu pai e paguei o hambúrguer mais caro do Burger King pra ele com o dinheiro da minha rescisão. Vocês não têm noção de como ele tá magro. Ainda se recusa a comer direito. Acho que ele deve estar com uns 65kg, sendo que ele tem quase um metro e oitenta. É muito triste vê-lo assim, sabe? E ontem ele disse que essa situação, estar lá em casa, está insuportável. Disse que sente vontade de ir pra Salvador, onde a minha avó mora, onde ele nasceu, mas não consegue abandonar a gente, minha irmã e eu. Eu quase falei que ele precisava ir, mas fiquei com medo de ele me interpretar mal. E... a minha mãe fingiu muito mal quando reagiu bem à minha demissão. Ela tentou parecer forte, como sempre faz, mas eu sei que ela só não gosta de demonstrar fraqueza. Vejo isso pela situação com meu pai. A diferença é que ele se abre comigo, já minha mãe…

[A] Se você está ouvindo isso e conhece um lugar com uma vaga de emprego, por favor, eu imploro, liga pra gente.

[t] Seu pai tem e-mail? [l] Envie para o nosso WhatsApp, porque estamos chiques agora e temos

um. Sempre achei chique usar o Business.

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[t] Nosso número é 2190876543.[A] O que nos leva ao nosso próximo quadro...[t] Tem razão. Vamos começar o quadro mais interativo deste programa, o

Ninguém solta a mão de ninguém.(Remix de uma fala de Andresa Urach em A Fazenda 6 [Você não está só me

ofendendo, você está ofendendo todos os gays do Brasil, porque eu sou bissexual e isso está em todas as notícias do mundo] com fundo instrumental)

[t] Então, esse quadro vai funcionar mais ou menos assim: Vocês vão man-dar um relato em áudio pra gente sobre uma experiência boa ou ruim sua sendo LGBT e a gente responderá ligando pra vocês de repente, na hora em que esti-vermos gravando.

[l] Mas hoje vamos ligar para uma pessoa aleatória da lista de contatos do Tomás, já que esta é a estreia do quadro.

[A] Liam, um número de um até cento e quarenta e dois. Aliás, que tipo de pessoa tem cento e quarenta e dois contatos? Só alguém importante como o Tom.

[lF] Hm… Ok. Cento e dezenove, pra facilitar a sua vida.[t] Cento e dezenove… Pera… Ok. Noooossa. É um amigo do meu Ensino

Médio.[l] Se for hétero passa pro próximo.[t] Ele é gay. Nós fizemos Teatro juntos no último ano.[A] Chamando.[s] Alô?[t] Oi, Samuel. É o Tomás, lembra de mim? Do Ensino Médio?[s] Tomás! Claro que lembro, garoto. Como você tá, bicha?[t] Tô ótimo. Estou gravando um podcast chamado Laringite com uns amigos

neste momento. Inclusive, já está disponível no Spotify, depois pesquisa. Tem problema se a gente incluir essa ligação no programa?

[s] Que foda! Não, que isso. Só tem que ser rápido, estou aqui no cinema com o Bruno e o filme começa em uns dez minutos.

[t] Gente, gostaria de pedir palmas pra esse casal. Samuel conheceu Bruno quando estava no segundo ano do Ensino Médio e estão juntos até hoje.

[l] Ai, sonho (batendo palmas).[A] Meta (batendo palmas e tentando não olhar para Liam).[s] Ai, gente, obrigado. Eu que lute pra aturar esse garoto.[t] Então, vamos ser rápidos. Conta pra gente uma experiência boa ou ruim,

ou uma boa e uma ruim, como um garoto gay, LGBT.[s] Hmmm, ok. Uma coisa ruim aconteceu no carnaval deste ano. Eu estava

com o Bruno e um amigo dele, e acabou que ele foi dar em cima de um hétero e o cara foi bem rude, sabe? Tudo poderia ter terminado de boa se ele não tivesse sido babaca, mas acabou que, depois de tanto o Lucas pedir desculpas a ele, o idiota deu um empurrão nele, e eu acabei não me aguentando. Eu sempre fui brigão,

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você sabe, mas nunca tinha chegado a esse nível. O Bruno ficou desesperado, mas mesmo eu tendo voltado pra casa com um olho roxo, o cara também levou umas porradas bem boas. Eu sei que isso é péssimo, mas tenho esse instinto meio valentão. O Bruno tá rindo aqui.

[l] Se a sua experiência ruim é dar uma surra em um hétero, já tô aqui ner-vosa pra ouvir a boa, garoto.

[A] Morta (rindo).[t] Crianças, não façam isso em casa.[s] Não, poxa, foi algo ruim. Eu também saí fodido. Mais que ele. Não me

arrependo, mas também não faria de novo. Faz sentido?[lF] Você parece ser um amigo incrível.[t] Ele é, sempre foi.[s] Ah, que isso (rindo). Bem, a experiência boa, além de ter conhecido esse

garoto lindo aqui ao meu lado, foi com os meus pais. Por mais que eu tenha so-frido com o resto do mundo, que é cruel, ter o apoio dentro de casa foi essencial. Acho que, se todos nós tivéssemos isso, tudo seria bem mais fácil. Quando eu e Bruno começamos a namorar, eles estavam se separando, mas, mesmo assim, foram incríveis comigo e com ele. A minha mãe já me aceitava tranquilamente, meu pai também, mas ele melhorou muito depois do Bruno. Acho que tornou a coisa mais real, sabe? Me ver com um garoto e tal. E foi incrível. Sei que tenho muita, muita sorte, e sou muito grato por isso. Aliás, lembrando bem agora, a nossa experiência de Teatro no terceiro ano foi incrível. Porque nós ouvimos coisas maravilhosas do nosso diretor, lembra? Ele era uma pessoa incrível. Pra muita gente ali foi bem importante ouvir tudo aquilo de um adulto, como se ele fosse um espelho de cada um dos pais daqueles adolescentes. Enfim, sou real-mente grato por essas coisas.

[t] E você teve algum tipo de trabalho com o seu? No processo de aceitação? Nossa, sim, o professor Rodrigo era realmente incrível.

[s] Bom, eu queria que realmente tivesse uma fórmula mágica pra esse tipo de coisa, mas infelizmente não tem. Apesar de ser difícil para a grande maioria, cada caso é um caso. Eu conheço um em que a pessoa esperava que os pais fos-sem praticamente matá-la, e no final foi tudo bem. Também conheço o contrário. É difícil. Mas acho que o segredo é ter paciência, infelizmente. Uma coisa: as coisas acabam se ajeitando uma hora ou outra, então seja você mesmo com ou sem seus pais dando apoio.

(Larissa, Liam e eu trocamos olhares em silêncio)[t] Perfeito. Muito obrigado pela participação, gato. E bom filme pro casal.[s] Pode deixar que eu vou ouvir depois.(Música instrumental, sons de troca de estação entre rádio e canais de televi-

são, alguns segundos de silêncio)[A] E vamos para a estreia de mais um quadro.

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[l] Qual o nome desse mesmo?[A] Sou todo ouvidos.(Música tema com fala de Tulla Luana [Que que isso agora? Tão querendo me

calar? Ninguém me cala, não. Eu sou a fodona da internet. Você é uma homofóbica maldita])[l] Nesse quadro, gente, sempre teremos a participação de um convidado.

Cada um de nós trará uma pergunta para o convidado em questão. O de hoje, no caso, vocês já ouviram, é o Liam.

[lF] Hã, oi. Eu não faço ideia de como começar isso.[A/T] Sei bem como é isso.(risadas)[l] Começa fazendo um breve resumo sobre a sua vida.[lF] É… Então, meu nome é Liam, eu nasci aqui no Rio, mas meu pai é da

Pensilvânia, nos Estados Unidos, então fui pra lá bem cedo. Meu pai tem um amigo de infância que mora no Catete, e na época ele veio pra cá por conta do casamento desse amigo, e aí ele acabou conhecendo a minha mãe, que é daqui mesmo. Eu voltei pra cá na primeira vez que eles se separaram, há anos, e esse ano acabou acontecendo a mesma coisa. Mas acho que dessa vez é pra sempre.

[t] Isso aqui ainda não conta como a minha pergunta, mas, pra quem não sabe, Pensilvânia é o estado daquele escritor bem famoso, o James Odell, que morreu há dois anos. Eu soube que depois da morte dele fizeram até uma estátua pra ele na capital e tudo mais. Como foi por lá depois que tudo aconteceu?

[lF] Hã, ah, foi bem triste. Ele era muito querido em todo país, mas, bem, todo mundo sabia onde ele morava, sabe? Era engraçado, às vezes, passar em frente à casa dele. Antes de ele morrer, claro. Até decidir os livros dele depois disso. Meu pai gosta bastante dele. Gostava. Ele sempre insistiu para que eu lesse. Hoje, no quintal da casa dele, só se vê flores e presentes e essa coisas… Fizeram um túmulo sem um corpo pra ele. E é claro que teve um boom sobre suicídio. Eventos em todos os lugares, nas escolas, praças, igrejas… O filho dele chegou a participar de alguns.

[t] E o fato de ele ter deixado tudo em um relato foi absurdamente assusta-dor.

[lF] É. E lucrativo, claro. A editora deve ter ficado muito feliz, sinceramente. Nada melhor para uma obra de arte do que a morte do próprio autor.

[t] Quando estivermos mortos, este podcast será aclamado, fiquem atentos.[lF] Pode ter certeza.[t] Então, agora é a minha pergunta de verdade. Ela é bem óbvia, mas, dan-

do outra informação importante aqui, o Liam ajudou na composição das músi-cas que vocês ouvem neste programa. Ele ainda não entendeu o humor por trás dos memes que eu escolhi para remixar, mas isso é questão de tempo. Mas, nesse pouco tempo em que trabalhamos juntos eu não pude deixar de pensar no que você mais estranha no Brasil, nos brasileiros, enfim, algo que é muito diferente

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da América do Norte.[lF] Ah, essa é fácil. Apesar de saber quase tudo sobre aqui desde pequeno,

por causa da minha mãe, que sempre me contou tudo e me ensinou a falar portu-guês, ver algumas coisas na prática é bem estranho, como a lixeira que fica dentro do banheiro nas casas daqui, ou… Sei lá, coisas mais simples, como comer pizza de garfo e faca, não comer praticamente nada de manhã, ou tomar dois ou três banhos por dia, ou até mesmo as sungas que os garotos usam na praia.

(Todos riem)[lF] Ou… Não sei. Acho que eu lembro de estranhar as pessoas me abraçan-

do nos primeiros dias da escola sem nem me conhecer direito. Mas, tipo, hoje eu acho ok, mas é engraçado. Bom, tem muita coisa de diferente, mas, é, é o que eu me lembro agora.

[A] Eu tô aqui pra defender a sunguinha de praia. Pelo amor de Deus, con-tinuem usando.

[l] E eu queria deixar uma nota de que eu não como pizza de garfo e faca, mas, se eu não me engano, nem guardanapo americano usa, né? Pelo amor de Deus.

[t] É tudo na mão mesmo.[lF] É, isso é outra coisa estranha daqui (rindo).[t] Então, agora uma coisa legal que aqui tem e lá não.[lF] Tem muita coisa. Eu poderia falar, sei lá, brigadeiro (todos riem), mas

a coisa que mais me marcou foi a diversidade. Eu comentei isso com o Ângelo esses dias. Assim, no bairro onde eu morava, especialmente, você encontra pou-cas pessoas negras. Sei lá, o modo como todo mundo é diferente aqui traz uma sensação boa. Sei que não é como se racismo não existisse aqui, mas…

[l] É, eu imagino. Já é difícil mesmo sendo a maioria.[lF] Sim. Mas, é, eu acho as pessoas aqui muito bonitas. E simpáticas. Não

tem como não gostar desse lugar.[l] Olha, acho que vamos ter que passar pro Ângelo, porque a minha pergun-

ta era mais ou menos sobre isso.[lF] Sério? Desculpa.[A] Não quer fazer outra? [l] Não pensei em uma pergunta extra, mas fiquei feliz de ele falar sobre isso

sem eu precisar perguntar.[A] Ok.(Ângelo olha para Liam, sorrindo)[A] A minha pergunta é bem simples… (Liam olha para Ângelo, sorrindo; Tomás e Larissa observam)[A] Alguma coisa ainda te faz pensar em voltar pra casa?

CAPÍTULO DEZESSETE

tive um sonho estranho envolvenDo bicicletas, Gays e minha avó essa noite. Mas eu não lembro exatamente da história do sonho. Só acordei com uma sensação estranha, e uma vontade pulsante de fazer uns rabiscos. A aparição de minha vó no sonho tem uma explicação simples, já que combinamos essa semana de (milagrosa-mente) sair em família hoje, sábado, minha folga, graças a ela. Não posso afirmar com propriedade que Liam esteve no sonho, mas estou incluindo ele no meio desta bagunça que estou passando para o papel: tudo o que me lembro a respeito do enigmático sonho.

O resultado ocupa um dos poucos espaços em branco da parede do meu quarto. Por volta das onze da manhã, saímos juntos em direção ao metrô. Nós podemos usar o carro do meu pai, que na verdade é da empresa dele, mas a escolha pelo transporte público foi da minha avó, que já não sabe o que é isso há um bom tempo, e como a ideia do passeio inteiro foi dela, nós concordamos.

Já dentro do trem, em pé ao lado do banco no qual minha vó está sentada, ouço os sete áudios que recebemos nas últimas duas semanas, desde o dia em que o segundo programa foi ao ar.

Há uma pergunta especialmente engraçada de uma garota de 15 anos para a Lari envolvendo sexo entre garotas, e vários outros relatos sobre ser LGBT, mas dois em questão me chamaram muito a atenção. O primeiro não se identificou, mas dis-se que “é uma sensação inexplicável pensar que minha mãe, a pessoa que mais amo neste mundo, nunca vai me aceitar totalmente, porque ela nunca toca nesse assunto e às vezes acaba demonstrando uma esperança irracional de que talvez eu namore uma garota um dia, o que praticamente me destrói. E, bom, tem o fato de que sou gordo. Tudo isso do corpo perfeito é bem tóxico, e, mesmo eu tentando manter esse pensamento de que não preciso de ninguém pra ser feliz, ver todos os meus amigos

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namorando é um pouco frustrante na maior parte do tempo. É complicado. Apesar de tudo, depois que entrei na faculdade eu encontrei pessoas que me fazem sentir bem, me aceitar melhor, e sou muito grato por isso.”

Esse garoto me fez lembrar de Pedro. Ele não gosta muito de falar sobre isso, mas sei que se sente um pouco dessa maneira, e, ouvindo isso, percebo que não tenho tentado ajudá-lo. Não como deveria. Não sei. Ele não gosta que sintam pena dele. E, de certa forma, é isso, Alê e eu não sentimos. Pedro é incrível e não precisa desse tipo de sentimento, mas quando ele está calado, sentimos o tempo todo que deveríamos perguntar se está tudo bem, porém ele sempre se fecha.

De qualquer forma, ontem ele estava bem. Depois da gravação, nós saímos e dividimos três pizzas no shopping. Nós bebemos, conversamos. Ele nos mostrou o garoto com quem tem conversado, no Tinder. Foi bem divertido. E todos pareciam bem, sem exceções. Mas aí é que está o perigo. Sei que não estão. Larissa e Tomás, por exemplo, com um copo de Brahma na mão, parecem os seres mais felizes do mundo inteiro; não que eles não sejam felizes, afinal, felicidade é algo abstrato, e é tecnicamente impossível estar totalmente bem o tempo inteiro, mas… às vezes, acabo pensando sobre isso, principalmente agora, ouvindo um áudio, também de uma pessoa anônima, falando sobre como ela já tentou se matar diversas vezes desde que se descobriu.

Eu tenho essa paranoia estranha quando se trata de perdas. Talvez porque eu já tenha chegado a este mundo perdendo. Não sei. Só não quero mais perder ninguém, assim como perdi minha mãe e Liam por um tempo.

Eles precisam ficar. Pra sempre. Ou pelo menos até eu ir embora.

Já no último áudio que ouço estamos no segundo trem, após a baldeação, e um garoto chamado Mateus, um colega de classe de Lari, direcionou seu relato a mim: “Ângelo, você tá preocupado com sua vó, mas, assim, eu me assumi pra minha no começo deste ano, e foi bem menos pior do que eu pensava. Eu moro só com ela e minha mãe, e as coisas estão bem tranquilas agora. Quer dizer (rindo), quando minha mãe descobriu da pior forma, né, me pegando no flagra com um garoto aqui em casa, foi tudo bem tenso, mas, no geral, eu diria que as velhas reagiram de forma ok. A minha avó ainda implica com as minhas viadagens, tipo, as minhas roupas, mas eu não acho que reclamar disso seja 100% justo, afinal, ela tem setenta anos, mas, ainda assim, causa uma sensação meio frustrante dentro de mim, sabe? Como se o meu interior fosse menos importante que o exterior. No fim, acho que elas se importam em como as pessoas vão nos enxergar. Enfim. Eu amo minha vó, e espero que dê tudo certo com a sua. E nada vai ser perfeito, você sabe. Com seu pai também não deve ter sido. Sei lá, mulheres são sempre melhores (rindo), vai na fé. Beijo pra vocês.”

— É a próxima — meu pai diz ao meu lado. — Vamos ajudar sua vó a se levantar.

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Eu a seguro por um braço e ele, por outro. Depois de deixarmos os apressa-dos passarem, seguimos nosso destino, saindo da estação.

Pegamos um Uber do Largo do Machado até o Trem do Corcovado, porque, mesmo tendo a opção de subir de van, o que é bem mais cômodo para uma senhora de idade, a minha vó fez questão de subir no trenzinho.

Já sentados, aguardando a saída da máquina vermelha, um garotinho que está sentado do outro lado, à minha direita, em que as cadeiras ficam viradas para trás, fazendo os passageiros terem uma visão diferenciada dos demais, fala comigo. Alguma coisa nele me faz lembrar de Lucas. Não sei. Talvez seja o cabelo.

— Também sou Botafogo — ele diz, feliz, apontando para a minha camisa. Sorrio. Ele não precisa saber que só estou fazendo isso porque meu pai deu

quase 200 reais em um pedaço de pano preto e branco há dois dias.— Na verdade, é uma camisa horrível — minha avó intervém, com cara de

nojo, mas em tom de brincadeira.— Você é o quê? — o menino pergunta para ela.— O melhor do Brasil, é claro. — Ela ri, o que faz o garotinho fazer uma

expressão de dúvida.

O trenzinho sobe lentamente. Árvores, montanhas e mais árvores ao nosso redor. Por uns minutos, quase não consigo ver o céu, mas, quando ele aparece, é o azul mais vibrante de todos. Já bem no alto, quando temos um vislumbre da vista lá de baixo, a cidade, a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Jockey Club, o menino cujo o nome não perguntamos até faz menção em se levantar para ver, mesmo estando do lado do trem que dá para a visão, mas a mãe ao seu lado o repreende. Dou uma leve encurvada, para que a minha avó consiga ver melhor, mas não sei se adianta muito, já que ela não sorri.

O passeio finalmente acaba… de começar. Antes de subirmos até o Cristo, eles decidem parar em uma das pequenas lojas que vendem souvenir, e minha avó e meu pai olham tudo como se nunca tivessem pisado no Rio antes.

Depois de eles olharem bastante para não comprar absolutamente nada, va-mos em direção à escada rolante que dá acesso a um dos picos mais altos desta cidade.

Quando chegamos, já está bem cheio, e as pessoas tiram fotos e fotos de todos os ângulos possíveis. Bem perto do Cristo, de frente, onde todos querem fazer um registro, há um casal… Há um casal se beijando. Um casal que eu acho ter visto dentro do pequeno trem. Uma menina de uns dezoito anos está com o celular na mão a alguns passos deles, guardando o momento para sempre.

Olho para minha vó. Sua expressão está normal, aparentemente, mas os ócu-los escuros escondem seus olhos castanhos cansados. Ela está olhando para aqueles dois? Aqueles dois garotos se beijando?

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— Hoje faz quarenta e três anos da última vez que estive aqui, que foi a primeira — vovó diz depois de ocuparmos o lugar dos garotos e tirarmos uma foto juntos. — Foi com o seu avô. Eu lembro da data porque foi aqui que ele me pediu em casamento. Eu tinha dezenove anos, pouco mais nova que você.

— A sua vó quis vir nessa data no ano passado, mas eu fiquei doente na época — meu pai explica, e eu nem me lembro disso.

— É. E aí precisei esperar mais um ano. Seu pai me enrola há muito tempo. Sua mãe também me enrolou. Mas, como dessa vez eu disse que pagaria tudo, ele resolveu agir.

— Ele é um mão de vaca — digo, e ela ri.— O preço é meio absurdo, vai. E eu nunca tive a mínima vontade de vir

aqui. Só estou fazendo isso pela sogra. Fora que este ano o dia caiu no sábado, então...

— Hoje também é a minha segunda vez — Teresa nos conta. — Eu tinha quinze anos na primeira. Foi presente do meu namorado na época.

— Então, é a primeira vez apenas dos homens. — Olho para vovó, que tenta piscar para mim, mas acaba fechando e abrindo os dois olhos, o que me faz rir. Ela nunca consegue.

A vista é realmente impressionante, o Pão de Acúçar, a Urca e todo o resto. Depois de alguns minutos, conseguimos lugares bem na ponta, onde a visão é ainda melhor. Os dois garotos estão a alguns passos de nós… e a velha não parece inco-modada, aparentemente.

— Você pode tirar uma foto nossa? — Um deles me pega de surpresa com um toque no ombro.

— Claro — respondo. Ele me entrega o celular, juntando-se ao namorado e a amiga, que minutos

atrás era a fotógrafa.Quando aponto o celular para eles, acabo esbarrando na tela com o polegar,

o que faz a câmera virar-se para a frontal. Vejo que minha avó virou-se para ver o registro. Novamente, os óculos de sol a tornam um mistério.

Conserto meu erro e registro a foto deles. Tiro uma na vertical e outra na horizontal. Eles são lindos, o lugar é lindo, então tudo fica realmente perfeito.

Pouco depois, com meu pai e minha avó à frente, em direção à capela bem abaixo (e atrás) do Cristo Redentor, Teresa puxa minha manga preta e branca.

— Essa era uma ótima oportunidade para chamar seu amigo. — Tetê sorri. — Há diversos casais gays aqui.

— Não sei como falar com ela ainda. Mas ela... Você viu ela me olhando enquanto eu tirava foto daqueles três? Ela falou alguma coisa?

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— Não. Na verdade, seu pai puxou um assunto aleatório porque ficou nervoso. — Típico — resmungo.— Seu pai também não sabe como falar. Se ele soubesse, já teria falado. — É. Acho que a gente é meio parecido nesse ponto. Quando os três se afastam por uns minutos, mando uma foto para Liam, que

responde com emojis chorando. Também mando fotos para os meus amigos, que me zoam de hétero machão por conta da camisa.

— Aqui é um ótimo lugar para se fazer um pedido importante, não acha? — alguns minutos antes de descermos, minha vó me pergunta.

— É. É impressionante.— Seu avô é criativo. Quando você for fazer um pedido importante para sua

garota, pense nisso. Precisa ser um lugar marcante.

Fico em silêncio. Olho para trás, para o meu pai, que está tirando uma selfie sorrindo com Teresa.

— Que foi? Não pretende se casar? Sua mãe iria querer que você se casasse. Você já viu as fotos do casamento dela com seu pai. Ela era detalhista, foi tudo ab-solutamente planejado, apesar de simples. Sua mãe era incrível. E eu vejo um pouco dela em você. Quer dizer, não passa nem perto, mas dá pro gasto. — Ela tenta piscar novamente, sorrindo, e eu não consigo não rir.

— Eu me sinto culpado por não pensar muito nela. E por ter… É... Sei lá. Mas, só pelo o que sei, tenho certeza de que nunca vou chegar aos pés dela.

— Deixa de ser bobo. Você tem quase tudo dela, até os defeitos. E vocês têm o mesmo nariz. Infelizmente, você teve o azar de puxar o cabelo do seu pai. O cabelo dela era lindo, bem ondulado e cheio. Mas os seus olhos são os olhos dela. Por isso é difícil olhar pra você e não pensar nela — ela diz, já emocionada, e eu a abraço de lado, repousando minha cabeça sobre seu ombro.

— Eu penso que é como se ela tivesse se unido a você. Como se vocês duas fossem uma. Eu tenho uma mãe e uma avó ao mesmo tempo, sabia?

— Ah… Sua mãe era mais bonita, puxou seu avô. Mas, acho que é verdade. Tento ser esse tempo todo o que ela seria pra você. Não que eu consiga, mas… — Ela ri.

Dou um beijo em sua bochecha molhada. Depois, seguro em sua mão para voltarmos com meus pais em direção ao trem.

Voltamos para o trem, para a descida, e ela cochila ao meu lado durante metade do percurso, com a cabeça encostada em meu ombro. Enquanto isso, percebo que minha suspeita de antes estava certa; vejo aqueles dois garotos e a garota a alguns bancos à frente.

Quando vejo aqueles dois se beijando novamente, a única coisa que consigo pensar é: Eu realmente espero ser feliz assim um dia.

CAPÍTULO DEZOITO

terça. Mais um break sozinho, para variar. Encaro a velha máquina de lanches e

o meu par de tênis número 37, que hoje parece estar me sufocando mais do que nunca. Há uns caras quase gritando enquanto jogam videogame a alguns passos de mim, então não consigo pensar direito. Hoje o dia está mais estressante que o nor-mal, para variar. Quase nenhum atendimento deu certo. Cheguei pela primeira vez em tempos atrasado, mas foi suficiente para que Ricardo me chamasse a atenção. Acho que eu preciso de um atestado médico de uns três dias, porque minhas férias ainda estão muito longe da realidade.

— Pegou a doença da Lari? — uma voz diz atrás de mim. Depois, ocupa o espaço vazio ao meu lado direito. Júlia.

— Indecisão? — É. — Ela sorri. — Como ela tá? Gente, o que essa garota quer, afinal? — Tá bem. Ser demitido é meio ruim, né, mas…— Entendi. É que ela parou de me responder desde a última vez que a gente

se viu. — Bom… — Olho para os números da máquina e aperto o 06. — Ela deve

ter tido um bom motivo. Não chocando absolutamente ninguém, a máquina trava e o biscoito não

desce. Júlia sorri, balançando a cabeça.— Eu sei o que você tá pensando. — A garota sorri, dando um leve chute com

seu All Star na máquina. — Você ouviu o que eu disse aquele dia. Sobre transar. Com um cara.

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— Você transou com um cara? — digo, fingindo surpresa. Depois me inclino e pego o Doritos pelo qual paguei. — Não ouvi, não.

— A questão que você não sabe é que eu estava falando sobre ela naquele dia. Olha, quem me colocou aqui foi o Ricardo, tá legal? Ele é meu tio. Então, mesmo absolutamente qualquer pessoa desta empresa sendo LGBT, eu não posso ser.

— Ricardo… — Semicerro os olhos, surpreso. — Meus pêsames. Mas... foi depois daquele dia que ela parou de falar com você?

— Isso. Uma amiga minha que tá viajando emprestou a casa. A gente dor-miu junto. Foi bem legal. Mas depois ela sumiu.

— Entendi — digo, com quase certeza do que isso significa. Júlia sai sem despedidas, tirando um maço de cigarros do bolso de trás da

calça. Para alguém aparentemente antipática, ela até pareceu bem… preocupada. E comunicativa.

Eu: MulherTu tá apaixonada, não tá?

Lari do sapato-enorme: Ih surtou

Eu: Desde quando você me ESCONDEas coisas?????

Lari do sapato-enorme: Hm, não faço ideia do que você tá falando

Eu: Vocêtransou

coma

Júlia!

Lari do sapato-enorme: Amigo, fui otáriaMe perdoa

Eu: E ela também, pelo vistoAcabou de me procurar toda preocupada

Lari do sapato-enorme: hm hmSério???Gente

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Eu: Ela tá na sua

Lari do sapato-enorme: Não confioEla também ficou estranha depoisEu te disse, ela faz esse tipoNão sei dizer se foi só o jeito dela

Eu: Ela tá na suaVai por mim

Lari do sapato-enorme: Vai pra faculdade? Me encontra láPor favorPreciso de um ombro pra chorar

Eu: Tenho dois disponíveis!!!!Mas vem cá

Tu sabia que a Júlia é sobrinha do Ricardo?

Lari do sapato-enorme: ?????????????????????????????????????????????????????????????????????AH MAS EU ATIREI PEDRA NA CRUZSÓ PODE

CAPÍTULO DEZENOVE

quarta. Feira de Biologia do colégio. Acordei pensando sobre esse dia hoje, e tal-vez eu tenha sonhado com isso também, não tenho certeza. Mas eu me lembro perfeitamente daquele dia. Alê, Clara, eu e um outro garoto de nossa sala fizemos uma maquete 3D de um olho, nosso projeto inteiro foi sobre visão humana. Não lembro sobre o projeto do Liam e de seu grupo, mas tenho as lembranças dele ao lado de dois garotos o tempo inteiro. Naquela época, nós tínhamos acabado de nos reconciliar após o episódio constrangedor do Skype, e, às vezes, sorríamos discreta-mente um para o outro. Àquela altura, faltava pouco para eu contar tudo às minhas amigas, mas eu tenho certeza de que, a partir daquele dia, pelo menos Alexandra já desconfiava de algo – lembro do sorriso suspeito dela ao me ver olhando para ele.

Isso foi logo depois de eu segui-lo até o banheiro, o que provavelmente aju-dou Alê a concluir a história que se criava em sua cabeça.

— Você disse pra sua amiga? About us? — ele me perguntou enquanto lavava as mãos em uma das quatro pias.

— Por quê? — disse, assustado, olhando para ele através do espelho.— Ela não para de olhar pra mim. — Desculpa. Mas eu juro que não contei nada.

Estávamos sozinhos. Depois de secar as mãos, ele permaneceu em silêncio. Quando dei dois passos, para me aproximar mais dele, Liam se moveu em direção à porta. Ele deu as costas para mim e, por um momento, achei que tudo estivesse arruinado. Para sempre. Como um bom coração adolescente costuma pensar em acontecimentos drásticos que fogem do controle.

Quando voltamos para os nossos projetos, para o olhar de Alê para mim,

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pouco depois, três garotos do terceiro ano vieram até nós, e Clara, que era sempre a primeira a falar, começou a explicar imediatamente a parte dela. Mas, quando eu comecei a falar, a expressão deles mudou de um tédio descarado para um deboche indiscreto, com aquele tipo de sorriso que só garotos como eu sabem reconhecer. Eu, nitidamente incomodado, comecei a gaguejar, o que fez os garotos gargalharem.

— Look. Essa eu aprendi… semana passada. O Tomás me recomendou — Liam diz, e agora tenho apenas a visão de seus dedos e das teclas do teclado em nossa chamada de vídeo.

— É. Ele adora recomendar músicas.

Ele começa a tocar, mas não reconheço a música. Porém, é bonita. Realmen-te bonita. Um sorriso tímido se forma em meu rosto, causado pela minha admira-ção por ele hoje, a mesma de anos atrás.

— Ei — Liam disse para aqueles garotos, saindo de trás da mesa de seu pro-jeto. — Algum problema?

— Então você é o namorado? — o do meio, o mais alto, o dono da risada mais irritante, o provocou.

Quem diria. As mãos que hoje trazem melodias suaves através dessas teclas brancas foram capazes de encontrar o nariz pontudo de um garoto anos atrás.

— Meu Deus do céu. — Lembro de ouvir Alê falar quando Liam acertou aquele garoto em cheio.

Não demorou muito para que tudo terminasse rápido. Dois professores che-garam e os separaram. Mas eu lembro de olhar pra ele, que estava com a cara meio amassada, os óculos completamente tortos acima do nariz e uma pontinha de san-gue já chegando em sua boca, e sorrir.

— Um dia eu canto pra você. Minha voz não está legal hoje. — Eu adorei. De verdade. Foi como um soco bem no meio da cara. De tanta

emoção, sabe.Ele faz cara de confuso, e eu rio.

Quando me dou conta, olho para o celular e a hora de ir para o Lucas acaba de chegar, o que me faz saltar do sofá rapidamente, acordando Pedro Henrique, que dormia em um sono profundo ao meu lado. Desligo a vídeo-chamada, infelizmente, pego as chaves no braço do sofá, calço os chinelos à beira da porta e quase tenho que arrastar meu cachorro para fora, que estava muito bem acomodado dentro de casa.

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Já na casa de Viviane, tento ajudar o menino a gravar preposições com mú-sica, que é obviamente a forma mais fácil, e ele se diverte bastante. Hoje, aparente-mente, a mãe dele parece estar bem ocupada dentro de casa, o que faz termos um pouco mais de privacidade, além de Lucas se sentir menos pressionado. Quando ele termina todos os deveres, ainda temos dez minutos juntos, e eu sugiro que joguemos forca para matar o tempo. Ele concorda, gostando da ideia.

— Entreguei a carta hoje — ele revela quando acerto a terceira palavra que ele me faz adivinhar. “Doritos”.

— E aí? — O quê?— O que ela disse? — Acho que ela não leu ainda.— Como assim?— Eu escondi na mochila dela. Quando deu a hora do recreio. Esperei todo

mundo sair.— Esperto. Depois me conta o que ela disse, tudo bem? — Tá bom. — Ele sorri. — Só estou com medo da carta. Acho que tá ruim.

Eu me levanto. Olho para o celular e há diversas notificações de áudios de Tomás em nosso grupo. E duas chamadas perdidas.

— Mas você foi corajoso. E a carta ficou ótima. Não precisa ter medo. Vai dar tudo certo, tá bem?

Ele sorri.

Assim que grito um tchau para Viviane, começo a ouvir os primeiros áudios. A maior parte se resume em choro, o que me deixa um pouco aflito e desesperado. Aos poucos, já mais controlado, Tom explica o que aconteceu superficialmente de forma confusa. Ele diz que prefere dizer pessoalmente, como sempre, mas, depois, já na casa dele, com Tomás mais controlado, descubro que ele estava no shopping com a Camila quando o pai dela chegou de repente. Fez escândalo. Levou a filha pelo braço à força, o que causou um alvoroço na praça de alimentação.

— Onde você tá? — pergunto assim que ele atende.— Oi, migo. — Mas é Lari quem atende. — Ele tá no banho. — No apartamento da tia dele?— Isso. Uma amiga dele de lá da faculdade também tá aqui.— Acha uma má ideia eu ir aí? — Não, tá tranquilo. Mas já tá meio tarde, você vai dormir aqui? — A tia dele não tá em casa? — Ele disse que ela só volta amanhã.

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Volto para casa apenas para pegar um pouco de dinheiro, o RioCard e o meu carregador. Antes de partir, subo as escadas e dou um beijo em minha avó, avisando que talvez não volte hoje, já que ela quase nunca vê o celular. Desço, encho a vasilha de ração de Henrique e finalmente vou para a casa de Tomás.

já no PréDio, subo até o quinto anDar De elevaDor. Assim que a amiga de To-más, Taísa, abre a porta para mim, sinto um cheiro gostoso vindo de dentro do apartamento. De… chocolate. Ao passar pela pequena cozinha, a sala média e a duas portas fechadas, chego ao quarto dele e encontro os meus amigos deitados na cama com uma pequena panela cheia de brigadeiro caseiro. Tom, que está com os olhinhos vermelhos, sorri, com a cabeça sobre o ombro de Lari.

— Pega uma colher pra você — Lari diz, sorrindo. — Aqui. — Taísa, atrás de mim, me oferece uma colher. Ela pensou rápido. — Valeu. — Nada. Tom, eu já tô indo, tá? Tá ficando tarde. Morar longe é uma merda,

você sabe. — Não vai mais dormir aqui? — Larissa pergunta.— Minha mãe tá de graça. Olha, fica bem, tá? — Ela chega mais próximo

da cama e abraça o nosso amigo. — Chegou um reforço para me substituir. Cuida bem dele! — diz para mim.

Depois de Taísa ir embora, nós três nos apertamos na cama de solteiro de Tom. Ficamos em silêncio por longos minutos, com exceção da TV ligada do outro lado do quarto, nos fazendo rir uma vez ou outra enquanto assistimos How I Met Your Mother no escuro. Em determinado momento, nosso amigo resmunga algo sobre o pequeno (mas impolgante) surgimento de pelos em sua bochecha direita, e nós a acaraciamos, comemo-rando, primeiro Lari, depois eu. Faço uma piada sobre isso indicar que, talvez, sejamos nossas respectivas “cara metade”, e ele ri. Explico para nossa amiga logo em seguida.

Brigadeiro, risadas, silêncio, suspiro. Depois de uma hora, Tom cria coragem para falar. Lari e eu revezamos o carinho no cabelo agora já crescidinho de Tom. Ainda assim, faz cócegas na ponta dos dedos, o que é bem legal.

No fim da noite, pouco depois das onze, já quase na metade da primeira tempo-rada da série, Camila aparece ligando de um número desconhecido, que depois descobri-mos ser da irmã dela. Ela se lamenta, principalmente por ter deixado o pai descobrir tudo, culpando a si mesma. Minha amiga e eu tentamos controlar a situação, mas é difícil com os dois tão tristes.

Tudo isso me faz pensar em minha avó, em Liam e em meu pai. Estar aqui, abraçado com meu amigos em lágrimas, não parece justo. Não parece justo mesmo.

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Depois da ligação, Tomás resolve jantar. Lari e eu comemos mais cedo, en-tão nós o observamos comer em silêncio, sentados no sofá, ainda com HIMYM de fundo. Para a nossa sorte, Tomás é um garoto calmo. Não é explosivo. À essa altura, acho que eu já estaria gritando bem alto. Era tudo o que eu queria agora. Gritar. Bem alto. Para que todos deste prédio pudessem ouvir. Mas, aparentemente, parece que conseguiram nos silenciar. Nos tornaram invisíveis de novo.

— O que vocês acham… — Eu pauso o episódio através do controle delibe-

radamente. — De nós pararmos de assistir a série e…— Cara, é o episódio do abacaxi — Tomás diz antes mesmo de terminar de

mastigar o macarrão em sua boca. — Sem chance.— Ele que manda. — Lari diz.— Deixa eu falar, cacete — digo, e eles riem. — Me dá isso aqui. — Tomás tenta pegar o controle de mim enquanto equi-

libra seu prato de comida com a outra mão.— O que vocês acham de gravar um episódio? Pro podcast? — digo, levantan-

do-me do sofá, escapando dele. — Tipo, agora.

Quando meus amigos trocam olhares com sorrisos largos nos lábios, desligo a televisão e deixo o controle sobre o rack de madeira antiga da tia insuportável de Tomás.

CAPÍTULO VINTE

— você se aPaixonou Por alGuém enquanto esteve fora? Ele não responde de primeira. Liam pega o guardanapo com um sorriso no

rosto, esbarrando em minha mão sobre a mesa de propósito, como se fosse muito engraçado precisar de um pedaço de papel para comer uma fatia de pizza. Depois da primeira mordida, ele mastiga. Lentamente. Depois, dá uma ajeitada nos óculos.

O ruído das pessoas ao nosso redor, por toda a praça de alimentação, preen-che o nosso silêncio por alguns segundos.

— Putz.— Vou entender isso como um sim — digo, e nós dois rimos.Quando Liam faz menção em dizer algo, somos interrompidos por uma sur-

presa agradável. Lucas. Viviane, a alguns passos de nós, o espera enquanto intercala o olhar entre o filho e a tela do celular.

— Recebi o teste de português ontem! Tirei 7! — ele diz, sorridente, com uma felicidade infantil genuína.

— Bate aqui. — Estendo a punho fechado para ele, que vai de encontro ao meu com a sua mãozinha.

— É seu amigo? — ele pergunta, olhando para Liam. — Liam — responde, estendendo a mão para o menino. — Nome diferente.O pequeno Lucas sorri, e logo depois se vai assim que sua mãe o chama, o

que me faz voltar para Liam e a sua não-resposta. — Eu namorei um garoto durante uns meses. Mas isso foi ano passado. No

caso… Foi o Harry. Do Greek Gods.— Eu sabia. — Bato na mesa de leve involuntariamente, rindo. — Eu sabia.

Senti uma química entre vocês naqueles dois vídeos. Eu sabia.

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— Sabia nada. — Ele ri. — Para. Não foi nada demais. Nada comparado ao que eu sinto por você.

— Claro. — Sentimento que durou todos esses anos.— Verdade.— Você fala como se nunca tivesse namorado. — Eu? — É. Daniel, hm? — Quem foi o fofoqueiro? Eu vou matar o Tomás.— Eu descobri sozinho.— Aham.— É sério. — Ele gargalha, largando o pequeno pedaço de massa em sua

mão, o que certamente é uma das coisas mais apaixonantes que vi em toda minha vida.

Enquanto terminamos o que nos resta de pizza, eu o observo ajeitar a touca em sua cabeça. A de hoje é verde, um verde bem claro. Combina com seus olhos.

— So... Tomás. Como está? — Ainda mal. Mas vai ficar tudo bem, acho. Hoje ele ia tentar encontrar com

a Camila. Escondido.— E o podcast? — Ah, é. — Sorrio. — Gravamos na quarta mesmo. De madrugada. Foi

incrível. Nós até iríamos gravar outro hoje, já para ficarmos adiantados, mas, como a tentativa de encontro dos dois não deu certo ontem…

— É uma droga isso tudo. Tenho medo de passar por isso. — Ele não olha para mim, e pausa por alguns instantes. — Com você.

— A gente não precisa pensar nisso agora — digo, mas, apesar disso, a pri-meira imagem que vem em minha cabeça é o rosto de minha avó. E o da minha mãe, por associação.

— Meu pai disse que vem pra cá mês que vem. Isso foi ontem à noite. — Ah… Por quê? Por sua causa? — Não. — Liam leva o copo de Coca-Cola à boca antes de continuar. —

Bom... Acho que sim, um pouco. Mas ele não fala sobre isso. Ele... Não me lembro como se fala isso em português. To overreact.

— Não sei se é a tradução exata, eu acho, mas é como se fosse um exagero? — Minha explicação sai mais em tom de pergunta do que resposta.

— É. Na primeira vez que eles se separaram, ele overreacted — Liam sorri. — Foi horrível. E dessa vez ele estava tão calmo que nós até estranhamos.

— Bom, é. Ele até fingiu que você não disse nada quando estava contando sobre ser gay.

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— É. Mas agora… a ficha caiu. — Ele sorri, e sei que é porque adora essa expressão em português. — Ontem minha mãe chorou bastante. Disse que não podemos mais ficar na casa da minha avó. Ela não quer mais encontrar ele. Ela não quer que ele encontre a gente. Mas, ao mesmo tempo, sinto que ela está triste. Por estar longe de tudo. Da vida dela.

— Isso é uma droga.— É. Mas, mesmo assim, sinto falta dele. — Saudade — digo, e ele finalmente olha para mim. Ainda estou pensando

no seu “mas” com um sotaque diferente, agora não tão mais paulista, tampouco carioca.

— Saudade…Sei que é arriscado, mas ponho a minha mão sobre a dele durante alguns

segundos. — Mas, e o Daniel? Você ainda não me falou sobre ele — ele diz quando foge

do meu toque, levantando-se da mesa. — Vamos? Preciso ir. Meu tio disse que vai lá pra casa em meia hora.

Caminhamos em direção à saída J, a do metrô, e o ar quente nos faz lembrar que já é novembro, o que significa que, em breve, vamos todos morrer de tanto calor. Apesar de querer abraçá-lo, Liam me oferece sua mão e eu a aperto. Ele desce as escadas de um lado e eu, do outro. Enquanto caminho para o ponto de ônibus, olho para o marcador de temperatura a alguns metros da calçada onde estou. 33º graus, diz, o que é claramente uma mentira descarada. Ou talvez seja apenas a impressão que o clima frio de dentro do shopping faz parecer que tudo é pior aqui fora – como sair de um sonho e cair de cara no chão, na realidade. Como… como ter o garoto que eu amo de volta assim, de repente, e pouco tempo depois saber que posso per-dê-lo novamente.

O ônibus chega. Subo, sento em um dos bancos mais altos e ponho meus fones de ouvido no volume máximo. Talvez hoje seja um bom momento para viver o drama de pensar na vida com a cabeça encostada em uma janela de ônibus.

Penso, penso, penso. Eu não preciso perder o controle agora. Não com os meus amigos precisando de mim. Não comigo precisando ter coragem para falar com minha avó, que, bem no fundo, sei que me aceitará bem. E sei que ele também precisa de mim. Sei disso.

Coloco Ainda para tocar, uma recomendação de ontem feita por Tomás, por-que quero sofrer. Às vezes tudo o que preciso é de uma música triste apenas para girar a faca que já está fincada em meu coração.

Pouco antes de chegar em casa, Tomás e eu recebemos uma ótima notícia de Lari no grupo: uma entrevista de emprego para a próxima segunda-feira. Ler a mensagem me faz até trocar o clima de minhas músicas.

CAPÍTULO VINTE E UM

alexanDra estreou uma nova cor De cabelo Para o nosso início De Provas. Hoje temos prova de Análise da Informação e estamos confiantes. Nosso professor parti-cular, Pedro, nos deu uma aula completa ontem à noite.

— Daniel me mandou mensagem ontem, dizendo que ouviu o podcast — con-to para eles enquanto aguardamos o professor, que está atrasado.

— Socorro. E aí? — Pedro pergunta. — Gente? Esse garoto já tá até namorando outro. — Sério? — Ele se vira para Alexandra.— Como você sabe, Alê?— Ele postou no Instagram ontem. Eu sempre esqueço de dar unfollow em ex

de amigo. Uma foto beijando o cara, inclusive. — Os privilégios do gay assumido — Pedro comenta. — É. Bom, fico feliz por ele. Foi basicamente por isso que nos separamos,

acho. Mas ele me contou que estava namorando. Fez questão, na verdade. Eu não sigo mais ele, nunca ia saber. Mas ele deixou soltar sem querer no áudio de pergunta para o Laringite. “Conheci um cara no Tinder há duas semanas e ele me pediu em namoro ontem. Não consegui dizer não, mas tenho medo de estar indo rápido de-mais. O que faço?” — digo, imitando a voz de Daniel, debochado.

— Acho que ele confundiu o programa. — Alê ri. — Pepita, corre aqui — Pedro diz, e nós rimos alto.

O professor entra na sala quando ainda estamos falando mal de Daniel, rin-do, o que o faz ficar de cara feia. Os outros alunos vão chegando com diferença de segundos.

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Depois de fazer a prova, que estava de acordo com as previsões de Pedro, nós três vamos ao bar do Sílvio, porque tomar alguma coisa (eles, no caso) depois de provas é de lei. Lari acaba sentando conosco e ficando por um tempo também, e nós conversamos sobre a sua entrevista de mais cedo, o podcast e Tomás (que não vem para as aulas desde a semana passada). Até onde sabemos, o encontro de sexta não deu muito certo, mas Camila mantém contato através do celular da irmã.

Voltando para casa, da janela do ônibus já é possível observar a decoração de Natal do lado de fora das lojas, e até luzes pisca-pisca nas janelas de prédios e casas. Por um lado isso é bom, já que eu amo as festas de fim de ano. Mas este ano dezembro tem um outro significado. A volta do pai de Liam. E, talvez… Não. Não quero pensar nisso.

Chegando em casa, depois de passar por Pedro Henrique, feliz após ver sua vasilha abastecida, vejo que Teresa está na sala, sentada no sofá com uma pequena agenda em mãos. A TV está ligada. Ouço a voz da minha avó bem perto, da cozi-nha, junto com a do meu pai.

— Oi, querido. — Ela sorri. — Olha, oito de dezembro. Anota aí no celular. Chá de bebê do Ícaro.

— Já tem lista? — pergunto, sentando-me no sofá ao seu lado, pondo a mão em sua barriga.

— Estou fazendo. Sua vó tá me ajudando. — Quero ser o primeiro a assinar. — Oi, meu filho. — Minha avó chega na sala.

Eu levanto para abraçá-la, e ela me segura por mais tempo que deveria. Meu pai também vem para a sala, passa por mim dando um sorriso tímido e depois se senta ao lado de Teresa. Tento me desvencilhar, mas a velha não me larga. Tem alguma coisa errada nesta casa?

— Filho — minha vó diz após me deixar, depois de dois ou três minutos que pareceram vinte. — Senta aqui. — Aponta para o sofá.

É. Chegou o momento. Esse abraço disse tudo.Teresa pega o controle e desliga a TV. Meu pai pega na mão da esposa. Esco-

lho me sentar no sofá menor, sozinho, vendo os três lado a lado. Segundos de silêncio. Espero. Como se inicia uma conversa dessas? Será que eu

sigo algum filme que tenha visto? Como é que o Simon iniciou essa conversa mesmo?

— A mãe do Lucas saiu daqui há alguns minutos — meu pai toma a iniciati-va de começar. Mas… Mãe do Lucas?

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— Ah. — Olho para os três, confuso, os lábios semiabertos. — O que ela queria?

— Ela… Bem, uma mãe de um aluno da sala do Lucas veio procurá-la hoje. Parece que o Lucas fez uma cartinha pra esse aluno. E, segundo a Viviane, você ajudou o Lucas a fazer essa carta.

Meu Deus…— Não foi bem assim — digo, sorrindo, mas o meu coração não para de

bater mais forte. — Ela disse que ouviu você falar algo do tipo, mas ignorou, achou que era

bobeira. — O Lucas disse que era para uma menina. Mas, mesmo assim, é sério isso?

Mesmo se eu soubesse. Você...— Ângelo — meu pai me interrompe. — Olha, você tem que entender que...— Tenho que entender o quê? — agora eu o interrompo. Minha garganta parece secar. Minha vó não olha para mim. Seus olhos estão

fixados no chão. Suas mãos estão entrelaçadas sobre suas pernas, que não param de se mexer. Os olhos de Teresa, aflitos, são os únicos que encontram os meus.

— Então ele disse que era uma garota? — ela pergunta, quebrando o silêncio repentino.

— Isso. Assinto com a cabeça sem parar, nervoso. Ela não olha para mim. O que ela

sabe além disso? No que ela está pensando agora? O que aquele abraço longo quis dizer?

— Bom, você devia contar isso. Ela provavelmente ouviu só um pedaço e acabou concluindo que...

— Pai, mesmo se eu soubesse… eu não faria nada de diferente. Nada. — Ela também disse que te viu com seu namorado na sexta passada — mi-

nha vó diz, agora finalmente levantando a cabeça. Pelo jeito, a Viviane ficou com raiva de mim mesmo. Profundamente. Agora

eu quem desvio o olhar. Penso na cena de sexta, ela nos observando de longe en-quanto Liam e eu conversávamos com Lucas. Talvez, muito talvez, ela tenha visto a minha mão na dele… Não sei. Parece improvável. De qualquer forma, eu preciso levantar o meu corpo antes que as lágrimas comecem a descer. Fecho os olhos. É isso. Não dá pra terminar essa conversa hoje. Não desse jeito.

Eu me levanto e, sem olhar para eles, vou para o meu quarto e tranco a porta. Deito na cama, mesmo ainda sem tomar banho, e bato com o travesseiro em minha própria cabeça repetidamente, porque, bom, aquela mulher resolveu que tinha a porra do direito de tirar o meu momento de mim. Deveria ser o meu momento. Falar com a pessoa mais importante da minha vida era meu momento, só meu, e ela tirou isso de mim, assim como o Martin fez com o Simon. E o que ele fez depois disso mesmo? Surtou. Verdade. Eu devo estar no caminho certo.

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Depois de alguns minutos, Teresa vem me procurar, batendo na porta, mas não atendo, mesmo sabendo que suas intenções são boas.

Só não quero ver ninguém agora. Talvez eu só precise chorar um pouco, para variar. Enquanto desenho e assisto a algum filme ou anime. Enquanto… converso com ele. É. Essa é a resposta.

— Angel. — Ele me atende enquanto já o desenho em meu bloco de papel. Sorrio, porque a voz rouca dele é a única coisa capaz de me fazer ficar bem

neste momento.

CAPÍTULO VINTE E DOIS

[l] ontem eu vi uma ProPaGanDa Da leaDer e ouvi a musiquinha De toDo ano. Pronto, agora eu já tô em clima de Natal, não tem jeito.

[t] Só viu ontem? Acho que já tem umas duas semanas que começou.[l] Tenho uma certa resistência em relação ao Natal porque ele apaga total-

mente a verdadeira data mais importante do ano, o meu aniversário. Vocês não sabem, mas eu faço aniversário junto com Deus, dia 25. Não sou perfeita assim a toa. Mas a parte ruim é que as pessoas lembram de Deus, não de mim.

[A] Ah, tadinha.[l] Gente, é sério.[A] O próprio John Lennon essa garota insuportável.[l] Mais respeito por favor (rindo).[t] Hoje a gente tem estreia de quadro, como vocês já sabem, e o tema de

hoje, como vocês já leram aí e como pedimos na semana passada, é coisas de explodir a cabeça.

[l] Recebemos milhares de áudios.[t] Áudios absurdos.[l] Inacreditáveis.[A] Milhares de áudios incríveis. Uns 8.[t] E já vamos abrir o programa mostrando um aqui, que foi enviado pelo…

Nathan, que é de fazer o cérebro se partir em um bilhão de pedaços.(Música tema com barulho de explosão e o grito da Inês Brasil)[n] Hã… Oi, pessoal. Nathan aqui. Então, esses dias eu tava no Twitter e

vi uma menina comentando alguma bosta que o Bolsonaro tinha falado, aí um

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desses famosinhos comentou o tuíte dela dizendo que não aguentava mais existir no mesmo momento que esse homem e disse que queria voltar no tempo e matar o próprio avô pra impedir que ele existisse. Mas aí eu parei pra pensar e… Se ele nunca nascesse, como poderia voltar no tempo e matar o próprio avô?

(Barulho de tiro e explosão)[t] A nossa cientista com doutorado em física espacial vai explicar pra gente.[l] Hã... Sei lá, viado. Próxima.(os três riem)[t] Vamos pra próxima. [A] Não, não. Reclame Aqui, por favor. Tô querendo reclamar, falar mal dos

outros.[l] Então, o presidente Bolsonaro disse que...[A] Garota! [t] Depois voltamos aos áudios (rindo).(música tema de aproximadamente 7 segundos)[A] Eu preciso de um gay pra me cancelar, não aguento mais a minha vida.[l] Ah, tadinho.[t] Pode reclamar, meu filho.[A] Mais um crime de homofobia terrível no mundo. Um gay foi impedido

de exercer seus direitos como trabalhador. Fui demitido sem motivo algum. A Lari até foi entendível, porque ela era uma péssima funcionária.

[l] Mas não tem um pingo de respeito.[t] Bolsonaro, pode levar.[A] Calados (rindo). [t] E eles falaram o motivo?[A] Corte de gastos, mas sabemos que foi homofobia, já tá claro pra mim.

Primeiro a Lari, depois uma colega nossa que é bi, e agora eu. Gente, pelo amor de Deus.

[l] Aquela empresa é um lixo.[t] Total.[A] Fui me despedir dos nossos cachorros ontem, Júlia estava lá com eles.

Ravena vai sentir minha falta. Parece que ela sabia que eu estava indo embora. Depois fui me despedir da nossa Starbucks.

[l] Aaaah, que saudade dessa Starbucks.[A] Pois é. Mas é isso. O lance com minha avó tá na mesma. Não nos fala-

mos ainda depois daquilo. Mas esta semana é o chá de bebê do meu irmão. Acho que vamos ser obrigados a nos falar de alguma maneira.

[t] E você já conseguiu falar com o garotinho?[A] Não. Não. Eu nem sei como vou fazer isso. Não quero nem olhar na cara

da mãe dele, sinceramente.(Música tema, efeitos de troca de estação de rádio)

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[l] Bom… Eu sei que a gente reclama bastante, mas hoje eu gostaria desse meu espaço aqui pra agradecer. Eu sei que parece até programa da Universal, mas boralá.

[t] Eu vou colocar uma música gospel de fundo na edição.[l] Idiota.(música de fundo começa: Quando eu chorar – Bruna Karla)[l] Então… Este ano tem sido difícil pra mim em diversos aspectos, mas

agora, no final, tudo parece estar se encaixando. Eu arrumei um novo emprego, graças a Deus, e, quer dizer, estou em treinamento ainda, mas… Sei lá. Estou com uma sensação boa.

[A] O nome disso é paixão.[l] Calada.[t] Você, ouvinte, não consegue ver o que nós dois podemos agora.[A] A nada surpreendente cara de apaixonada de Larissa.[l] Gente, mas não me deixam falar, que inferno![t] Ela está terrivelmente apaixonada.[l] Desisto de vocês.[A] Pode falar (rindo).[l] Então, é, ontem eu fui pedida em namoro.(música de fundo troca para: Melodia do amor – Bruna Karla)[l] Ainda não falei sobre ela aqui.[A] Ela estava guardando esse segredo de vocês.[t] Não confiem nessa garota.[l] O nome dela é Júlia, a mesma que o Ângelo acabou de falar, sabem,

pessoas ouvintes.(Música de fundo troca para: Anna Júlia – Los Hermanos)[l] E, mesmo eu estando morrendo de medo de falar isso aqui, familiares

ou qualquer pessoa conhecida que possa acabar com a minha vida, tapem os ouvidos, mas eu gostaria de deixar um beijo muito especial pra ela, porque eu fui burra e disse sim umas cem vezes. Eu te amo, Ju.

[A] Eu te amo, Ju (imitando a voz).(“Eu te amo, Ju” fica em repeat, com Melodia do Amor de fundo)[t] Fiquei traumatizado aqui, vou nem reclamar de nada hoje.(Remix de uma fala de Andresa Urach em A Fazenda 6 [Você não está só me

ofendendo, você está ofendendo todos os gays do Brasil, porque eu sou bissexual e isso está em todas as notícias do mundo] com fundo instrumental)

[t] Mentira. Antes de passar pro próximo quadro, gostaria de agradecer por todas as mensagens que recebi de vocês, de apoio, carinho, tudo, a maioria do pessoal da minha faculdade. Agora, por enquanto, as coisas estão melhores. A Camila está bem, e acho que tudo vai ficar bem em breve. Bom, é isso.

(Lari e Ângelo olham para Tomás, sorrindo)

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[t] Momento Ninguém solta a mão de ninguém, mais uma parte do progra-ma onde gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e tudo mais reclamam de suas vidas, porque este é um espaço democrático, todos têm direito de reclamar, e não só os apresentadores.

[l] Reclamar é a base deste programa.[t] A primeira reclamação é da Bruna.[B] Oooi, seus lindos, meu nome é Bruna. Eu sou bi e tô muito apaixonada

por uma amiga. Contei pra ela semana passada e ela disse que gosta de mim, mas tem trauma de garota bi por causa da ex. Devo deixar pra lá ou insistir? O que eu faço pra ela mudar de ideia? Beijo.

[l] Essa pergunta foi 100% pro Tom.[t] É (rindo). Então, eu namorei um garoto ano passado, ele tinha esse mes-

mo probleminha aí, mas, ai, amiga, o Tomás do ano passado te falaria pra você tentar de tudo, mas, sabe o que eu acho agora? Você não é a ex dela. Se ela esti-vesse namorado uma garota lésbica babaca, viraria hétero? Ela deixaria de pegar garota por causa disso? Pensa nisso, gata.

[l] Ai, eu amo um homem (aplaudindo).[A] Amamos (aplaudindo).[t] Ai, parem, sou sensível. Próximo relato.[K] Meu nome é Karine, tenho dezesseis anos e a minha pergunta é pra La-

rissa. Então, eu estava saindo com uma garota mais velha, ela tem vinte e dois, e, tipo, acho que estamos ficando desde… maio? Maio, é, e agora ela meio que su-miu do nada. Eu já reli as nossas conversas diversas vezes e ainda não encontrei nada que eu tenha feito de errado. O que houve? Por que mulheres fazem isso?

[l] Adorei esse final (rindo). Por que mulheres fazem isso? Minha filha… o sofrimento está apenas começando.

[A] Que horror, garota.[l] Mas é, ué. Olha, Karine, você é menor de idade, ela tem vinte e dois

anos… Acho que ela provavelmente se tocou que estava errada ficando com você.[t] Antes tarde do que nunca.[l] Exato. Pode seguir em frente. Mesmo que ela volte, você não deveria

aceitar, sabe? Espera fazer dezoito, pelo menos. Nunca é tarde quando existe amor de verdade.

[A] Essa garota tá impossível hoje. Um show de cafonice.[t] Música gospel de fundo de novo, por favor.(música de fundo entra, mas para depois de 3 segundos)[A] Vamos pra próxima.[h] Bom dia, boa tarde, boa noite, meu nome é Hugo e eu me meti em uma

cilada muito grande. Comecei a sair com um cara do Tinder há uns quatro me-ses, foi tudo ótimo, ele me levou de carro pra sair, nós jantamos juntos, depois fomos pra um motel, enfim, tudo isso no primeiro encontro mesmo, mas ontem

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eu descobri que ele é casado, tem filhos, não um, nem dois, nem três, mas quatro, quatro filhos, e, bom, foi uma decepção, né? Mas eu tô apaixonado por ele. Ar-risco até dizer que amo. Não sei o que fazer, gente. Me ajudem.

[A] Quantos anos o Hugo deve ter?[t] No máximo vinte. Quem procura um daddy tem essa idade.[l] Bem verdade.[A] É, mas, Hugo, se você for menor de idade, o que eu não ficaria muito

surpreso, já que esse teu daddy não vale nada, por favor, corre.[l] E se você for maior de idade, corra do mesmo jeito.[t] Gente, quatro filhos. Vocês namorariam alguém com quatro filhos?[l] Deus me livre.[A] Hugo, pelo amor de Deus, meu filho, sai dessa.(Música tema com fala de Tulla Luana [Que que isso agora? Tão querendo me

calar? Ninguém me cala, não. Eu sou a fodona da internet. Você é uma homofóbica maldita][t] Hoje não temos nenhum convidado, não temos Sou todo ouvidos, mas

eu não podia deixar de tocar essa abertura icônica feita pelo nosso querido Liam. [A] Na verdade, o Sou todo ouvidos de hoje é com vocês, que nos mandaram

perguntas de explodir a cabeça.[t] Putz, verdade. Faz sentido. Vocês estão dominando este programa hoje.

É tudo de vocês.[l] Aliás, o Sou todo ouvidos do próximo programa é comigo, com Pedro,

que sempre nos assiste aqui, mas hoje não está, e com a Júlia.[A] O sorriso dela ao falar o nome Júlia, socorro.[l] Cala a boca, gay (rindo). Nós vamos falar um pouco sobre ser LGBT e

negro. Vai ser uma conversa muito interessante e eu vou ficar aguardando as per-guntas e os relatos de vocês sobre isso ansiosamente, meus amores.

[t] Não desperdicem esse tema maravilhoso da semana que vem, mandem muitas perguntas.

(Música tema de aproximadamente 5 segundos)[t] Próxima pergunta de explodir a cabeça.[lF] Oi, vocês não me conhecem, mas meu nome é Liam Felipe e a minha

pergunta na verdade não é uma pergunta, mas apenas uma constatação. Aprendi essa palavra hoje. Vocês sabiam que, se considerarmos desde que a Terra surgiu, há sei lá quantos anos, os seres humanos só fizeram parte até agora de zero vír-gula zero, zero, zero, quatro por cento da história do planeta, e se essa linha do tempo fosse convertida para um ano, os humanos modernos só apareceriam no dia 31 de dezembro, mais ou menos às 23h58? Bom, é só isso mesmo. Nós somos muito insignificantes. Durmam com essa.

[t] Fonte: vozes da minha cabeça.[A] Esse garoto… Olha, vou te contar. Quem escondeu esse áudio de mim?[t] Eu tenho controle de tudo.

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[l] Liam simplesmente acaba de matar o ego de qualquer ser humano que existe.

[t] Leoninos em desespero neste momento.[A] Você sabe se ele viu isso em algum lugar? Ou ele tá brincando?[t] Não faço ideia. Mas acho que faz sentido.[l] Acho que não temos mais espaço para nenhuma pergunta de explodir a

cabeça hoje. Tá todo mundo transtornado aqui.[t] É isso, já chega deste programa.[A] E não se esqueça do quanto você é insignificante.[l] E não se esqueça de reclamar disso pra gente na semana que vem.[t] É isso.[A] É isso.[l] Feliz Natal pra vocês.

CAPÍTULO VINTE E TRÊS

uma semana e tanto. Na segunda, acordei com uma mensagem de Daniel, com dúvidas do por que a pergunta dele não havia aparecido no programa. Eu quase ignorei, mas respondi que deixei de lado outras perguntas que eu (também) não sabia como responder, como a de um garoto chamado Lorran, que disse que estava em dúvida sobre que curso fazer e queria saber “como alguém chega à conclusão de que quer fazer biblioteconomia”. Sinceramente?

Na terça de manhã, recebi o meu 5,8 da prova de Análise, mas o professor disse que ouviu o meu podcast e que “pelo menos nisso eu mereço um 10”, o que foi surpreendente.

À noite, meu pai viajou a trabalho para São Paulo, o que me deixou bem livre para conversar com Teresa sobre diversos assuntos. Também a ajudei a preparar as coisas para o chá de bebê, que é hoje, todos os dias, exceto na quarta, dia em que fui assinar a minha rescisão de contrato no trabalho e encontrei com Liam no Centro, onde andamos de bicicleta juntos.

Nós acabamos de almoçar, mas a hora marcada é 15h30, então estamos aqui, no sofá, relaxando, já que está tudo pronto para que as convidadas cheguem. Pedro Henrique está deitado com a cabeça em cima dos meus pés, feliz pra caramba por estar dentro de casa a semana inteira.

Ele: Meu pai está jogando sujo.

Eu: O que ele fez?

Ele: Disse que comprou um carro novoE que agora o que ele já tinha é meu

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Eu já dirigi muito aquele carroEle me emprestava quando eu precisava.

Eu: Vou ser trocado por um carroEntendi.

Ele: Idiota. Claro que não.Mas…É uma 4x4.

Eu: Não faço ideia do que é isso.

Ele: Ah, para

Eu: Sério.

Ele: Para

Eu: Mentira. Só tô com raiva do carro mesmo.

Ele manda um áudio rindo, mudando de assunto, e eu fico grato por isso. Eu me sinto mal em falar esse tipo de coisa, porque acabo fazendo uma… pressão? Quero dizer, ele não precisa ficar. Não por mim, somente. Sei lá. É estranho. Ele tem uma vida lá, sabe? Não quero que ele pense que vou odiá-lo se ele escolher me deixar. Ok, estou sendo dramático demais. Mas é isso. Eu só espero que o avião do pai dele caia vindo pra cá. Mentira. Não. Não falei sério. Eu juro.

Teresa e eu pulamos do sofá quando a primeira convidada chega, às 15h23. Só podia ser a mãe dela, Maria, claro. Ela chega com uma bandeja cheia de docinhos, e a grávida é a primeira a roubar um beijinho dentre os diversos tipos.

Aos poucos, as mulheres vão chegando, e, quando começa, eu assisto tudo de longe, apenas como expectador. Acho que só agora está caindo a ficha, como ele adora dizer. Eu realmente vou ter um irmão. Um pirralho. Uma criança. Na mesma casa que eu. É isso. É isso?

Pensar nisso me faz lembrar do Lucas. O que será que a mãe dele disse pra ele? Que eu estou doente? No começo do ano, Lari me contou de um livro sobre contos lésbicos que leu, e disse que havia um com uma história de uma mulher que tinha uma sobrinha, não sei, não lembro muito bem, e, quando a família descobriu que ela era lésbica, não quis mais ter contato com ela, e a desculpa que deram para a criança para o “desaparecimento” dela era de que ela estava muito doente. É bem a cara da Viviane, mas ainda moramos na mesma rua, claro. Não sei. Só lembrei disso. E só não queria que Lucas pensasse que eu o abandonei de repente, sem nem dizer o porquê.

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O chá de bebê acaba. As mulheres vão embora às 18h, exceto minha avó, que fala comigo normalmente, como se nada tivesse acontecido. Ela nos ajuda a arrumar toda a bagunça causada pela festa, e a nossa noite termina.

No domingo, quando meu pai finalmente volta para casa, eu o encontro de-pois de voltar da Praça Mauá, onde finalmente voltei a desenhar pessoas aleatórias na companhia de meus amigos. Liam também foi dessa vez.

— Então, gente, eu conversei com o Tomás ontem, e ele topou. — Lari olha para Tom, que sorri. — Vamos comemorar meu aniversário e o Ano Novo em Cabo Frio. Vou levar minha irmã também, então acho que meus pais não vão reclamar.

— A Júlia vai? — pergunto.— Vai. Ela é de lá, esqueceu? É, então, aconteceu essa madrugada. Contei

pra ela.— O quê? — Tomás arregala os olhos junto comigo, feliz.— É. Na verdade, a fofoqueirinha viu uma mensagem no meu celular. Mas tá

tudo bem. Ela é uma adolescente em pleno 2019. — E você já viu alguma casa? — Então, uma amiga da Júlia, de lá, tem uma disponível. É perfeita, meio

cara, mas eu ainda tenho o meu dinheiro da rescisão, e como arrumei emprego rápido, acho que dá. Eu pago a maior parte, faço questão.

— Acho que dá sim — digo, pensativo. — É a oportunidade perfeita pra gente. Pra Camila — ela diz, olhando para

Tomás. — E para vocês — conclui, olhando para mim e depois para Liam.

Olho para ele. Quanto mais o encaro, mais sua expressão séria se desfaz, terminando em uma risada.

— Talvez seja possível. Lari e eu trocamos olhares. E rimos. Ele puxou o s acidentalmente. Tomás

também ri.— Parem de fazer bullying com a gente. — Tomás põe a mão nos ombros

dele. — Nada de talvez. Vai ser o melhor dia das nossas vidas.— Vamos dar um jeito — Lari diz.— Tem risco de você acabar voltando antes? — pergunto, e a expressão dos

meus amigos mudam. — Bom… — Liam empurra os óculos para mais próximo de seus olhos com

o indicador. — Meu pai disse que chega aqui amanhã. Não faço ideia do que vai acontecer depois disso.

CAPÍTULO VINTE E QUATRO

eu: A CAdA diA que pAssA e seu pAi ContinuA no BrAsil

Uma fada morre Até quando, Deus?

Ele: Idiota hahahaMeus pais brigaram ontemPode ficar feliz

Eu: Eu? JamaisQue pena 😍😜****😭😭😭😭

Ele: A passagem de volta dele já tá compradaPrimeiro de janeiro

Eu: E a sua?

Ele: Também

Ele: Angel?Eu: Então você vai mesmo...?

Ele: Eu queria conversar com você pessoalmenteMasMinha mãe vai voltar também

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Eles brigaram ontem, mas já estão conversando bem hojeEu conversei bastante com ela hoje mais cedo. Ela disse que não tem como eu simplesmente ficar.Ela disse que minha vó já está velha demais.Disse que posso me virar, mas… É complicado.

Ele: Eu… Não sei bem o que pensar agora.Mas pelo menos eles me deixaram viajarEra o mínimo que eles podiam fazer por bagunçarem minha vida.

Eu: Bom…Não é tudo, mas é alguma coisa.

Ele: Mas tem uma condição.

Eu: Ah, pronto.

Ele: Vocês vão precisar vir aqui em casaEles não fazem a mínima ideia de quem vocês sãoEles querem conhecer vocêsSei láVer que vocês são reais.

Eu: Putz.

Ele: Angel.

Eu: Jesus.Ele: Deixa de ser bobo. Eles são super legais

Eu: Imagino.As MELHORES pessoas

DO MUNDO

Ele: Amo você

CAPÍTULO VINTE E CINCO

Dia vinte e quatro De Dezembro. Temos apenas oito horas até a comemoração do nascimento de Jesus e Larissa, mas todos nesta casa só tomaram vergonha de montar a Árvore de Natal hoje. Estou tendo ajuda de Teresa, mesmo já de barriga grande, de 7 meses, com vovó e meu pai falando o tempo todo para que ela descanse enquanto Tetê revira os olhos.

Meu pai está procurando as luzes pisca-pisca para a árvore, e minha avó está na cozinha, preparando o exagero de comida que o Natal praticamente nos obriga todo ano.

No fim da tarde, quando já está tudo praticamente encaminhado, Tomás nos conta que as mães dele surtaram quando ele disse que este ano não passaria o réveil-lon junto da família. Lari nos conta que o clima em casa não está nada natalino, já que o pai dela vai passar a noite na casa de um amigo do antigo trabalho. A irmã e ela estão ajudando a preparar a ceia, mas ninguém tem coragem de falar sobre o assunto, tirando a mãe dela, que ainda não aceitou muito bem o fato de as duas deixarem ela sozinha com o ex-marido em plano Ano Novo. Lari disse que está de drama, porque a mãe e os irmãos dela vão pra lá.

Liam disse que é meio estranho Natal sem neve, mas que não vai sentir falta dela em nossa viagem de Ano Novo, sem dúvidas. Ele está no tédio e, enquanto os pais estão conversando trancados no quarto há duas horas, ele alterna entre ajudar a avó e ler As vantagens de ser invisível. Por fim, ele escapa de tudo para ensaiar uma música de natal no teclado, para mais tarde.

Alê vai passar esta noite na casa de uma tia, em Campo Grande, e Pedro vai passar em casa mesmo, com sua família enorme.

O dia passa rápido, e, quando me dou conta, as luzes coloridas ganham mais destaque em nossa árvore agora que escureceu. Por volta das sete da noite, Maria

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chega, adiantada como sempre, e dessa vez acompanhada do marido, pai de Teresa. Trinta minutos depois, uma visita totalmente inesperada também chega: a amiga da minha avó, de Seropédica, com a filha e o neto... Carlos.

— E aí? — ele diz ao apertar minha mão. Para a minha infelicidade, Carlos está ridiculamente bonito.

— Quanto tempo — respondo, já me virando para abraçar sua mãe e sua avó.

Já depois das dez, o irmão mais novo do meu pai, que mora em Niterói, chega pra encher a casa de vez com sua esposa e a pequena filha, de dois anos. Isso é um sinal para que o plano de seguir os passos de Simon seja abortado.

Minutos antes de Jesus nascer, todos já estão comendo, e quando finalmente dá meia-noite, todos se movem, deixam seus pratos de lado, e começam a abraçar a pessoa que está logo ao lado. Eu tento fazer tudo isso enquanto mando mensagens com stickers de parabéns para Lari, claro. Tomás manda um “Larissa nasceu e Jesus também”, além de diversos áudios de parabéns pra você, nessa data querida junto com suas mães e sua irmã.

Assim que consigo fugir de todos, vou lá pra fora e fico longos minutos abra-çado com meu filho, Henrique, que ficou assustado com tanto barulho, como sem-pre acontece. Um tempo depois, Carlos aparece, simpático, puxando assunto.

— Tadinho. — Ele sorri, agachando-se para ficar mais próximo de nós, pas-sando a mão sobre o pelo macio dele. — Acredita que a minha não se assusta com isso? Nada abala aquela cachorra. Ela é bem abusada, você tem que ver.

— Deixa eu adivinhar... — começo — É uma pinscher. — Na mosca. — Carlos sorri.

Nós brincamos com meu cachorro, no quintal, durante um tempo. E, quan-do os fogos acabam, entramos novamente.

Depois que todos terminam de comer, vou para o meu quarto e ouço os áu-dios que Liam me mandou 00h12 em resposta às minhas mensagens. Em um deles, ele disse: “Hm, entendi, amigo de infância. Não me diga que ele vai dormir no seu quarto?”. Minutos depois, na cozinha, minha avó me informa:

— Filho, a Lurdes e a família vão dormir aqui, e eu disse que o Carlos pode-ria dormir no seu quarto. Tem problema? Lá em cima só tem espaço pra elas duas.

— Ah, claro, sem problema — respondo, rindo, indo digitar uma mensagem para Liam logo em seguida.

— Filho — ela me chama novamente, quando estou saindo da cozinha para o meu quarto.

— Oi? — digo, com o celular em mãos, somente com a cabeça virada para trás. — Quando vamos conversar sobre aquele assunto? Bloqueio a tela do celular, virando-me devagar para a cozinha, para ela.

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— Escolhi as palavras erradas naquele dia e te assustei. Mas não era isso que eu queria. Por mim, não importa o que você escolha ser. E me desculpa, se eu dis-ser qualquer coisa errada também, pode me corrigir. Mas eu amo você. E sua mãe também amava, porque mãe ama desde o momento em que descobre que vai ter um filho. Vem cá. — Ela sorri, e eu caminho até ela a passos curtos, mas, quando chego, ela me abraça forte.

Talvez aquele abraço quisesse dizer isso naquele dia. Eu. Amo. Você.— Eu amo você. E você não precisa esconder mais nada de mim. Tá me

ouvindo? — Ela acaricia meu cabelo, chorando um pouquinho, e eu estou comple-tamente paralisado, duro.

— Eu…— Olha. — Ela termina o abraço, dando um leve passo para trás, secando

as lágrimas. Avisto a foto das duas, minha mãe e minha avó, que fica na lateral da geladeira. — Não precisa falar nada agora. Depois a gente conversa. Mas eu só queria que você soubesse disso. Não gosto de passar o Natal brigada com ninguém. Natal é um dia especial.

— Amo você — É tudo que eu consigo dizer.

Quando balbucio mais algumas palavras, hesitante em falar, meu pai chega na cozinha com cara de confuso. Ela sorri para ele e ele sorri de volta; o que mais me pareceu uma conversa mental sobre mim.

Meu pai bagunça o meu cabelo e pisca para mim, e minha avó pega um re-frigerante da geladeira e, antes de caminhar em direção à sala, ela tenta piscar para mim também, mas não consegue. Ela ri de si mesma, e eu sorrio. Olhando para o fim do corredor, vejo o meu tio com a filha no colo e Teresa brincando com ela, toda boba, provavelmente já imaginando como tudo será com Ícaro.

Já depois das duas e meia, todos já estão indo dormir. Meu pai põe um colchonete para Carlos em meu quarto, no chão, ao lado da minha cama, o único espaço possível.

Nos primeiros minutos de luz apagada, ele me pergunta se eu vou dormir agora e se me incomodo de ele ligar rapidamente para a namorada, e eu digo que não duas vezes.

Converso com meus amigos que ainda estão acordados e com Liam, que tocou teclado junto ao tio quase a noite toda e agora só quer descansar os dedos, o que o faz mandar um áudio atrás do outro, o que não me importo.

Carlos só termina sua ligação às 3h20. Liam vai dormir alguns minutos de-pois, deixando-me sozinho. Fecho os olhos, mas o sono não vem, já que não consi-go parar de pensar em minha avó. E em minha mãe. Vejo uma foto da foto em meu celular, a da geladeira, onde as duas estão bem novas, minha mãe antes mesmo de conhecer meu pai, com apenas dezesseis anos. Ela era linda.

— Tá acordado? — ele sussurra, quebrando o silêncio.— Infelizmente.

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— Também tô sem sono. — Uma merda. — Ah. Posso te fazer um pedido?Medo! Até abro os olhos.— Vi os seus desenhos na parede. Não pude deixar de notar, são incríveis.

Você faz um pra mim? Na verdade, pra minha namorada. Se der, claro. — Acho que dá. Vocês vão embora que horas amanhã? — Não sei. Amanhã é domingo. Provavelmente à tarde, minha mãe deve

querer ir à igreja. Cantata de Natal, sabe como é — ele diz de uma maneira engra-çada, e por um momento lembro de alguns momentos bons de nossa infância.

— Acho que dá sim. Assim que eu acordar eu faço. — Tá bom — ele diz, mas não respondo. Fecho os olhos novamente. — Vi que você curte anime. Também ando curtindo ultimamente. Esse garoto realmente quer assunto. Sorrio. Lembro da voz de Liam dizendo

há minutos atrás: “Se puxar assunto no meio da noite é porque tem coisa.”

— Curto bastante — digo, e neste momento alguém bate na porta do quarto, que, destrancada, é aberta logo em seguida.

— Seu irmão vai nascer — meu pai diz, atropelando as palavras, desapare-cendo pela porta logo em seguida.

Olho para Carlos, que também olha para mim, assustado. Quando saio do quarto, minha avó já está na porta da sala, toda descabelada, com a avó e a mãe de Carlos atrás. Meu pai e eu ajudamos Teresa a chegar até o carro enquanto as velhas entram em excitação. Depois de a deixarmos lá, as mulheres nos dão coordenadas para que busquemos as coisas que precisam ser levadas, e em questão de minutos saímos em quatro para o hospital. Teresa geme de dor o tempo todo, no banco de trás, ao lado de minha vó, o que me dá certa aflição.

Ao chegarmos, ela vai para a emergência imediatamente junto com o meu pai. Depois de quase duas horas, minha avó e eu descobrimos pelo meu pai, que volta à recepção, que era alarme falso. De qualquer forma, agora o parto já tem dia marcado: oito de fevereiro, um dia antes do meu aniversário. Já quase às sete, voltando para casa, meu pai diz estar aliviado, porque, se o Ícaro nascesse hoje, ele teria esquecido as nossas camisas do Botafogo, o que faz Teresa rir e, logo em

seguida, gemer de dor. Todos nós rimos.

CAPÍTULO VINTE E SEIS

acho que hoje tive o mesmo sonho Daquela noite, com bicicletas e coisas Do tiPo, mas Dessa vez também havia um bebê no meio, Provavelmente o meu irmão. No final, mesmo eu lembrando de tudo, nada fez sentido. Há certas coisas na vida que você simplesmente precisa aceitar, e não entender, mas isso não me impediu de desenhar um rosto de um bebê bem pequeno no meu Desenho do Sonho, na parede do quarto.

Minha mala já está quase pronta para a viagem. Está tudo certo. Vamos sair amanhã de manhã, por volta das seis, e, depois de Lari, sua irmã, Júlia e eu passar-mos na casa de Liam, a fim de conhecer os pais dele, Tomás vai nos buscar de carro. Camila vai para lá de ônibus, com uma amiga de infância dela em quem a família confia, para despistar os pais, que não querem nem sonhar com ela e o namorado no mesmo lugar. Deve chegar três horas depois de nós, segundo os nossos cálculos, mas Tom vai buscá-la na rodoviária.

A minha pasta de desenhos repleta de história já está na mala, bem guardada, mas, ao olhar para o desenho dele, ainda sem a boca, fico em dúvida se devo ou não guardá-lo. Ou se até mesmo devo terminá-lo.

Do dia 30 para o 31, durmo morrendo de vontade de acordar logo, o que me faz me arrepender um pouco quando encaro os pais de Liam pela primeira vez, na sala de sua casa.

— Então, vocês estudaram juntos naquele ano em que moramos aqui — a mãe, Cristina, afirma assim que nos sentamos no sofá.

— Isso — Lari diz quando percebe que travei. — Ficamos com muita sau-dade dele.

— Menos a irmã da Larissa — Liam nos corrige.

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— Ah, é — minha amiga concorda. — Ela é a minha irmã mais nova — diz, e a menina assente, tímida.

— Alguém quer café? — o pai, Franklin, pergunta com um sotaque muito engraçado e uma pronúncia terrível, o que nos faz ter que segurar o riso. Bem que Liam avisou.

Nós conversamos durante um tempo, e quase quarenta minutos depois, o homem branco, alto, de cabelos brancos e sotaque engraçado nos deixa partir. A Cristina havia deixado um pouco antes, na verdade, mas ele deu a palavra final, apenas para o nosso atraso. Apesar do ranço, Liam se parece bastante com ele. É engraçado. Com toda certeza, ele é o Liam daqui a algum tempo. Só que branco.

Seguimos o cronograma. Já no carro (com Lari carregando sua irmã no colo, detalhe), insisto muito para que Liam me deixe mostrar os Greek Gods para as meninas, mas ele diz a resposta que eu já esperava: “deletei o vídeo”. Mas, claro, eu sabia que isso aconteceria, por isso baixei o clipe e o cover de In My Place, só para garantir. Depois de muitos nãos, ele deixa, fazendo a alegria da nossa viagem. Para o meu azar, depois de Lari pedir para assistir mais uma vez, ele toma o celular da mão dela, indo até a minha galeria e deletando o vídeo.

— Eu não acredito — ele diz do banco da frente, virando para nós a tela do celular. — Eu não acredito que você fez isso. — Liam começa a rir, e Tomás olha para ele, agora que o carro está parado no trânsito, sem entender nada.

— Putz. Ele faz questão de me mostrar a tela enquanto seu dedo aperta “sim” para a

pergunta “mover 1 imagem para a lixeira?”, apagando aquela foto que tirei dele na praia, para que enviasse para o pai.

Na viagem, mais de três horas de músicas nos acompanharam. Mas uma delas em especial me marcou, que foi Birds, escolhida pelo Tomás. É o velho clichê dos cabelos ao vento na janela de um carro e a música perfeita. Foi quase isso. Estou com uma sensação boa, apesar de tudo. Eu tinha tudo pra ficar estressado, o garoto viciado em dinheiro perdendo os dois empregos praticamente de uma vez só, ou até mesmo a parte de mim apaixonada, perdendo pela segunda vez o mesmo amor, mas, bem, foi como Liam mesmo disse: não precisamos viver no passado. Acho que é isso. Não quero me preocupar com o primeiro de janeiro. Não quero me preocu-par com todos os outros dias depois desse dia. Preciso aproveitar o agora, enquanto seguro na mão dele dentro deste carro, vivendo este momento no qual somos livres.

Quando chegamos, deixamos nossas coisas na casa e ficamos aguardando pela mensagem de Camila. Às quatro da tarde, quando ela chega, Tomás, Liam e eu vamos buscá-las no aeroporto, e depois todos eles vão para a praia… menos ele e eu.

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Acho que só os sagrados nascidos no dia 25 de dezembro sabem o quanto eu esperei por esse momento, sinceramente.

— Deus tarda, mas não falha. De nada — Lari disse e me deu um tapa na nuca antes de sair com as garotas e fechar a porta atrás de si, deixando-me sozinho com ele. Essa garota é simplesmente tudo.

A casa conta com o básico e dois quartos, com três camas em cada um. Ain-da não decidimos como será feita a divisão, visto que o número de pessoas não bate com o de camas disponíveis, mas isso fica para depois. De qualquer forma, Liam se antecipou e escolheu um dos quartos para deixar as coisas dele ao lado de uma das camas. A mesma que ele está sentado neste exato momento.

— Isso é um convite? — pergunto, ainda da porta do quarto, rindo. — Não sei como fazer isso de maneira romântica — ele diz, com aquele

(putz) sorriso perfeito. — Mas eu sei.— Como assim? — Tô brincando. Mas tenho uma coisa pra te entregar. É meio romântica —

digo, surpreso com meu autocontrole. Vou até minha mochila, pego a minha pasta de desenhos, sento-me ao seu

lado e a deixo sobre suas pernas. Ele abre a pasta azul com muito cuidado, olhando para mim o tempo todo, como se tivesse medo do que estivesse por vir. Ele põe o dedo indicador no meio dos óculos, ajeitando-o. Quando Liam vê o primeiro dese-nho, sua boca se abre, e logo depois leva a mão até ela, sorrindo.

Somos nós dois há cinco anos na praça de alimentação daquele shopping. Nosso primeiro encontro. O primeiro oi. O começo de tudo.

O segundo, estamos na escada rolante. O Ângelo da época da escola apenas alguns degraus atrás do Liam do passado, espiando-o.

No terceiro, estamos em meio a uma partida de basquete, esporte que Liam era melhor que qualquer um daquela sala. Na “foto” tento cercá-lo, mesmo que inutilmente, e ele sorri para mim, com a bola no ar a poucos centímetros da palma de sua mão.

No sexto, estamos sentados nas escadas de incêndio do shopping, de mãos dadas pela primeira vez, com Whoopers em nossas mãos livres. No sétimo, o nosso primeiro beijo, na pilastra (a exata) do estacionamento do Norte Shopping. E o oitavo é sobre o nosso segundo beijo, bem atrás daquela mesma porta corta-fogo vermelha.

A nona é como se fosse um print de Skype. O sorriso dele bem grande e o meu bem pequeno, no canto inferior direito da folha.

No décimo, Liam está vestido de Naruto, dando um chute na cara daquele garoto do terceiro ano, na feira de biologia, e eu, de Hinata, observando tudo com dois corações gigantes nos olhos. Ao ver essa, ele ri, balançando a cabeça.

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O dois seguintes são uma mistura de outros acontecimentos aleatórios, tendo um como grande destaque na folha. O décimo primeiro, por exemplo, tem foco na foto que roubei do celular dele, do nosso recente dia na Praia do Flamengo. No dé-cimo segundo, a maior parte retrata a vez em que matamos aula no Botafogo Praia Shopping (há escadas rolantes ao redor da folha inteira), com Liam me dando uma cópia do Midnight Memories em frente ao Mcdonald’s.

O último é ele. Apenas ele. Ainda sem a boca.

— Você. Você… — Liam se vira para mim, dando-me um beijo. — Você e meu pai jogam sujo.

— É o nosso jeitinho — digo, e nós rimos. Liam guarda os desenhos e põe a pasta sobre a mala dele, que está deitada

no chão. Quando ele se volta para mim, todos os pelos em meu braço se arrepiam. Sorrio ao lembrar de todos os momentos em que imaginei este momento, inclusive o Ângelo mais novo, mesmo que com certa inocência.

Começo tirando sua touca, porque foi assim que sempre imaginei. Ele deixa os óculos em cima da pasta azul. Depois, enquanto o beijo e tiro sua blusa, penso em colocar uma música, mas tenho medo de fazer qualquer coisa que estrague este momento. Não porque sexo é uma coisa estritamente especial para mim, mas sim porque Liam é.

Continuamos no silêncio, apenas com o barulho de nossas respirações. Nus. Corpos unidos, conectados.

Passo os meus lábios sobre cada pedaço de seu corpo. Ele é lindo. Mais lin-do do que por foto. Enquanto o beijo, abro os olhos vez ou outra, apenas para ter certeza de que vou poder registrar isso depois. Do meu jeito, é claro. Com o lápis.

— Vou sentir sua falta — ele diz depois, bem depois, quando chegamos no fim.

— Não quero falar sobre isso. — Eu vou te amar pra sempre.— Liam.— É sério. Deixa eu ser romântico, é o meu momento. Nós rimos.— Como eu vou deixar de viver no passado se não vamos mais ter um pre-

sente? — pergunto depois de alguns segundos. Estamos deitados lado a lado, nus, de mãos dadas.

— Você não sabe brincar, Angel. Não tem jeito. — Parei. — Idiota. — Ele ri. — Bom, é uma pergunta difícil, mas… Há quatro anos,

quando fui embora daqui, nunca imaginei que fosse voltar um dia. Por isso que eu sumi. Eu queria te esquecer. Eu juro que queria te esquecer. Mas desta vez é

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diferente, porque sei que isso é impossível. Agora, já mais… maduro. — Ele faz uma careta, sorrindo. — Sei que não é possível esquecer alguém como você.

Fico em silêncio. Já começo a imaginar a próxima vez em que receberei uma mensagem de Liam do nada, dizendo que já tem passagens compradas para cá, as-sim como aconteceu este ano, quando ele me chamou no Facebook depois de anos e mandou essa bomba.

— Que foi? — Ele se vira para mim, acariciando meu rosto com a ponta dos dedos.— Nada. Eu te odeio. — Aham. Claro.— Cala a boca — digo, puxando-o para mais um beijo.

Depois de um longo banho juntos (escovamos os dentes dentro do box!), nós colocamos nossas roupas para a virada do ano. Quando já estamos quase saindo, Liam insiste que está se sentindo mal por não ter preparado nada romântico para hoje, diz que vai baixar um aplicativo que imita teclado e tocar uma música român-tica para mim, mas eu evito que ele passe vergonha. Quando comento que ele errou a pilastra do nosso primeiro beijo daquele dia no shopping, ele ri, não acreditando, e nós brigamos (de boa) até chegarmos à praia, que fica a uns quinze minutos de caminhada da casa alugada.

— I was going to sing “I’m just a fool (in love)” — ele diz quando chegamos à praia. O painel marcador de temperatura registra 38ºC atrás de nós.

— Você o quê? — I was going to sing.— Você não brinca comigo — interrompo.— O quê? — Ele ri.— Liam, você escreveu essa música pro Harry — digo, e nós dois rimos. — Deixa de bobeira. Escrevi pensando em você. — Liam pisca para mim.— Você não tem medo de morrer, já entendi. — Dou um empurrão nele, e

assim entramos nas areias da praia.

Encontramos nossos amigos alguns minutos depois, já nos sentando nas can-gas estendidas na praia. Está bem cheio, há um funk no último volume vindo de algum carro e nós conversamos do único jeito possível, gritando. Camila e Tomás estão inquestionavelmente felizes, e fico muito feliz por vê-los assim. Esses dois não vão se desgrudar nem um minuto esta noite, aposto.

Camila conversa um pouco conosco na água, enquanto Júlia e a irmã de Lari guardam as nossas coisas na areia. Depois, trocamos o clima de pesado para leve e agradável, tal qual as águas deste mar, mornas e relaxantes.

Quando Liam e eu ficamos sozinhos no mar, tento não me importar com as pessoas ao nosso redor e o beijo enquanto posso. Vivendo o presente.

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— Estamos apenas a… — Ele olha no relógio em seu pulso por momento — cinquenta e seis minutos para o começo da humanidade.

— Hã? — É. Aquilo que mandei pra vocês no podcast. A humanidade só apareceria

dia 31 de dezembro às 23…— Ah, lembrei — eu o atrapalho sem querer. — Os 0,004% que fazemos

parte da história.— Exato.O primeiro de janeiro se aproxima cada vez mais, e a cada minuto Liam

aperta o meu corpo contra o dele, dizendo que está ficando desesperado. Honesta-mente? Estou sendo o amigo insuportável que fica agarrado ao namorado o tempo todo ao lado dos amigos, mas acho que eles entendem a situação. Tomás e Camila também não estão muito atrás de nós, e olha que ela não vai para o outro lado da América, tipo, amanhã.

Enquanto aguardamos os minutos finais, a contagem regressiva e os fogos, ele começa a sussurrar uma música em meu ouvido, fazendo-me perder a concen-tração na conversa de meus amigos. Competir com a voz da Marília Mendonça no último volume em algum lugar muito perto daqui é quase impossível, mas consigo reconhecer. É Ainda, a música que Tom me recomendou há semanas. Ainda… É. Eles nos recomendou a mesma música. E foi essa que eles estava tocando no tecla-do no Skype para mim naquele dia. Sorrio. Droga. Eu deveria ter aceitado o lance

do aplicativo que imita instrumentos musicais.

23h24. Camila começa os seus trabalhos como fotógrafa, tirando fotos de todos nós e de seu belo namorado.

23h31. Liam vira um copo de vinho. Júlia vira dois de cerveja.23h36. Tiro fotos do casal Julissa, nome criado por mim. A irmã dela tam-

bém resolve entrar nas fotos no fim. 23h42. Liam aceita tirar fotos comigo. Peço à Camila que tire no mínimo

vinte, só para garantir. Minha mão direita e meus lápis 2B agradecem o descanso.23h47. Tomás pega Camila no colo e a joga no mar. Larissa e eu filmamos. 23h50. Sou vítima do mesmo assassino e acabo me molhando todo

novamente.

Quando começa a contagem regressiva dos cinco minutos, nós nos viramos para o mar, todos juntos, gritando. Todos na praia gritam. Ao me lembrar da chega-da dos fogos, mando a mesma mensagem para Teresa e meu pai, pedindo para que cuidem de Pedro Henrique.

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Todos continuam a gritar. A cada segundo que passa, sinto Liam mais distan-te. O dia primeiro vai chegar, e depois disso irei perdê-lo.

— Dois — todos ao nosso redor gritam. — Dois minutos para o começo da humanidade — ele fala em meu ouvido,

com as mãos em meu peito. — Um — nós gritamos. Todos gritam.

Quando a contagem do minuto final termina, os fogos começam.Liam pega em meu braço e eu me viro. Agora, vendo-o bem de perto, com

nossos lábios se tocando e toda essa festa ao nosso redor, sinto que o conheço por completo. Cada parte desse garoto. Eu conheço.

Sinto como se a câmera tivesse dado um super zoom, e agora os detalhes antes não vistos de longe se tornam perceptíveis. Começo a rir no meio do nosso beijo, porque me lembro acidentalmente de Naruto e Hinata.

— Que foi? — ele pergunta, sorrindo.

Olho para os olhos dele. Para o cabelo dele. Para a boca dele. Sinto que agora é o momento certo. Quando voltar para casa, preciso abrir aquela pasta e completar aquele desenho; desenhar cada traço perfeito dos lábios dele.

— Eu espero mesmo que você volte um dia, garoto.

CAPÍTULO VINTE E SETE

[l] olha, acho que vamos ter que Passar Pro ânGelo, Porque a minha PerGun-ta era mais ou menos sobre isso.

[lF] Sério? Meu Deus, desculpa.[A] Não quer fazer outra? [l] Não pensei em uma pergunta extra, mas fiquei feliz de ele falar sobre isso

sem eu precisar perguntar.[A] Ok. (Ângelo olha para Liam, sorrindo)[A] A minha pergunta é bem simples… (Liam olha para Ângelo, sorrindo; Tomás e Larissa observam)[A] Alguma coisa ainda te faz pensar em voltar pra casa? [lF] Bom… Algumas coisas. Deixei alguns amigos para trás, a família do

meu pai… Mas sabe de uma coisa?[A] O quê?[lF] Eu também teria motivos para querer voltar pra cá, se estivesse lá. (Tomás e Larissa sorriem; Ângelo continua olhando para Liam, nervoso)[lF] E você seria o maior deles, garoto.

EPÍLOGO

estou em uma loja De brinqueDos Do norte shoPPinG. Fazia tempo que eu não entrava em uma dessas, e, misericórdia, é tudo um absurdo de caro. Até para poder ter um irmão nesse país você precisa de um emprego.

Para piorar, qualquer brinquedo para um recém-nascido parece inútil. Por que eu decedi dar um brinquedo? Não era mais fácil ir a uma loja de roupa infantil e comprar qualquer conjuntinho fofo por apenas cem reais? Talvez alguma coisa do Botafogo que ele ainda não tenha, o que é meio difícil. Aliás, onde meu pai compra essas coisas? Existe uma loja de roupas só do Botafogo? Eu nunca vi, sinceramente. E se existe, eles realmente vendem roupas para bebês?

— Oi — Uma voz me tira do meu devaneio, mas não presto muita atenção. Olho para o lado, mas não há ninguém. — Oi — Ele repete, puxando a borda da minha camisa por trás.

— Lucas — Eu digo assim que me viro e o vejo. Sorrio. Ofereço meu punho fechado para que ele me cumprimente.

— Você tá melhor? — Ele pergunta depois de nossas mãos se afastarem.— Como assim? Eu tô bem. E você? — Minha mãe disse que você parou de me dar aula porque estava doente —

diz, movendo um braço do Batman que está na prateleira à nossa frente. Então Viviane lê livros lésbicos?— Ah…Bom, xingar na frente de crianças não é legal.— Tá tudo bem comigo. Não se preocupe — Sorrio mais uma vez, e ele também.— Lucas! — Reconheço a voz no momento em que ela ecoa no corredor.

Viviane. — Lucas! Vamos embora. Anda.

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— Então você vai voltar a me ensinar? — O garoto pergunta antes de dar os primeiros dois passos para trás. Viviane repete seu nome, impaciente.

— Vamos ver — Pisco para ele.

Ele me dá um pequeno tchau antes de fugir da mão de Viviane, que tenta segurar o filho para sair da loja. Infelizmente, não tive tempo de perguntar sobre a carta. Aliás, acho melhor deixar esse assunto para lá, de qualquer forma. Mas será que ele realmente mentiu para mim? Ou só colocou a carta na mochila erra-da? Não sei. Não parece provável. Mochilas de meninos e meninas nesta idade são muito diferentes… Ah. É. Doente. Ok. Eu não consigo esperar mais nada de bom dessa mulher, sinceramente.

Mas, então, é, eu vou dar quarenta e nove reais em um mordedor da Fi-sher Price, não tem jeito. Ícaro, eu espero que você seja tão bom garoto quanto o Lucas, de verdade. E que não seja hétero. Quarenta e nove reais. De verdade. Lembre-se disso.

Chegando em casa, os preparativos para o primeiro mesversário do meu irmão já estão em andamento. Maria está colocando o pequeno bolo preto e branco sobre a mesa da sala, onde logo atrás há um painel que diz Í-C-A-R-O, UM MÊS. Abaixo disso há um pequeno painel decorativo de tema campo de futebol com o escudo do Botafogo bem grande, claro.

Vou até o quarto do bebê, o dos meus pais, e encontro Teresa deitada na cama, com o Ícaro de olhos fechados com a pequena cabeça em seu peito.

— Presentinho — digo, e ela sorri, mas depois coloca o dedo indicador nos lábios. Sou um desastre com crianças muito pequenas.

Deixo a sacola com o presente em cima da tábua de passar roupa ao lado da porta e volto para a sala, para ajudar a mãe de Teresa a arrumar tudo. Nós colocamos os docinhos ao redor do bolo, brigadeiros de um lado, beijinhos do outro. Começamos a conversar sobre Ícaro, e Maria fala que ele é a cara do pai. Eu sorrio, sem saber o que dizer, já que para mim bebês têm tudo mais ou menos a mesma cara. Mas ele é lindo, é isso que importa.

Quando paramos um pouco para descansar, vou para o meu quarto. La-rissa me liga, o que é meio raro. Atendo.

— Nós finalmente criamos o nosso IG — Ela diz, empolgada. — Olha a mensagem que eu te mandei. Saiu o primeiro post agora mesmo. Se eu fosse você, iria lá ler. Não é porque é meu Instagram, não. Mas porque é um texto do Liam…

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Ela desliga na minha cara, e eu posso visualizar Larissa rindo de mim. Mas faço o que ela manda. Abro a minha conversa com ela e copio o user que ela me enviou. Copio e colo na aba de buscas do Instagram. User: ourheadsfullofdreams. 1 publicação. 8 seguidores. Seguindo 37 pessoas. Clico em “seguir”, e depois na única foto que há logo abaixo.

É a nossa foto na praia naquele 31 de dezembro. Ok. O importante agora é me manter firme. Não é como se eu pudesse simplesmente deixar a bicicleta correr sozinha agora. Mão no guidão, olhos para frente. Cuidado com as árvores, pilastras e postes. Respira.

“Certas coisas são difíceis de entender. Por que coisas incríveis acontecem e logo depois coisas horríveis acontecem também? Gostaria de saber a resposta, mas, por enquanto, continuo acordando com essa dúvida todos os dias. Isso quando consigo dormir, é claro. Hoje eu tive um sonho terrível, acordei às 3h10 da madru-gada, desesperado. Foi uma coisa idiota, mas explica tudo que estou sentindo no momento. No sonho, algum problema mundial fazia todas as nações desistirem da existência de todos os aviões, e a primeira coisa que eu pensei quando soube da notí-cia foi: “Meu Deus, como vou voltar para o Brasil?”. Coisa de doido. E eu pesquisei rapidamente no Google notícias sobre o assunto assim que acordei. Mas era só um sonho, para a minha sorte. Agora são 3h55, e, como não consigo dormir, estou escrevendo isso aqui. Eu não me acho um bom escritor, na verdade, mas tenho sen-tido essa necessidade de escrever. Talvez seja só porque eu não fale muito, ou talvez eu esteja querendo negar algo que, tipo, eu PRECISO fazer. Isso faz sentido? Não sei. Minha cabeça está doendo, e, mesmo depois de dois comprimidos, eu não con-sigo para de pensar nele. Nele, você, Angel, que está lendo esse texto. Sei que você vai ser o único a ler isso aqui, mesmo não gostando muito de ler. Eu sinto muito a sua falta. SAUDADE. Como é bom saber da existência dessa palavra. Bem… Acho que preciso voltar a dormir. Desculpa por esse texto horrível. Estou enrolando só pra dizer que estou com saudade. Eu amo você. Eu fiz uma música pra você antes de começar a escrever isso aqui, e eu espero de verdade poder tocar pra você um dia. Pessoalmente. Bom, é isso. Espero que não se esqueça de mim, porque eu nunca vou me esquecer de você. Nunca.”

Morri.

AGRADECIMENTOS

antes De tuDo, Gostaria De Dizer que esse livro não existia sem a taisa. Ela é realmente uma pessoa incrível e me acompanha há bastante tempo (eu ainda escre-via fanfics!); estar dentro desse projeto é realmente incrível por mim. Se ela for tão boa editora quanto é como ser humano, não vai ter pra ninguém. Amo muito você, garota.

Obrigado especial ao meu melhor amigo, Marcus, que foi o primeiro a ler de-pois de Taisa, claro, e da minha revisora maravilhosa, a Louise, por motivos óbvios. Obrigado, garoto, por nunca me deixar desistir. Amo você. Um beijo muito especial também pra Lou, que fez um trabalho maravilhoso neste livro.

Obrigado a todas as pessoas que me serviram de inspiração para a criação dos personagens desse livro, como o Rodrigo e a Larissa (e muitos outros!). Um muito obrigado também para minha maravilhosa Carla, que me disse absolutamente tudo sobre trabalhar em telemarketing - foram uns cinquenta áudios de 10 minutos cada.

Um grande beijo também para alguns amigos que me ajudaram a escrever esse livro sem nem saber de nada, como o Guilherme, o Phil e o João. Amo vocês, seus gays.

Um obrigado especial a todos os meus amigos que me apoiam em qualquer coisa que eu faço, como o Marlon, a Marselly, a Chrys, a Cris… Bom, como sou muito sortudo, tenho tantas pessoas especiais em minha vida que a lista ficaria gran-de demais para uma simples página de agradecimentos de fim de livro.

É isso. Obrigado. Amo vocês.

Esta obra foi composta em Calisto MT para a Globo Alt em dezembro de 2019.