MIGRAÇÃO E LITERATURA NAS OBRAS DA COLEÇÃO “AMORES EXPRESSOS”

31
MIGRAÇÃO E LITERATURA NAS OBRAS DA COLEÇÃO “AMORES EXPRESSOS” Giordana Maria Bonifácio Medeiros¹ Resumo O presente trabalho consiste em uma análise dos livros Estive em Lisboa e lembrei de você, Nunca vai embora e O filho da mãe da coleção “Amores Expressos” da Companhia das Letras. A partir da reflexão acerca do confronto com o espaço não-nacional, efetua-se uma análise dos autores, narradores e/ou personagens que se encontram em situação de deslocamento. Ante os resultados dos questionários elaborados na pesquisa, pretende-se nas linhas que se seguem discutir a permanência ou a quebra da estereotipia tanto em relação à figura do estrangeiro, quanto em relação ao tema proposto pela editora e pelo coordenador da pesquisa. Abstract The presente work it’s a analysis of the novels Estive em Lisboa e lembrei de você, Nunca vai embora e O filho da mãe from the collection “Amores Expressos” of the Publisher Companhia das Letras. On the basis of the reflexion about the confront with the no-national, this work pretends

Transcript of MIGRAÇÃO E LITERATURA NAS OBRAS DA COLEÇÃO “AMORES EXPRESSOS”

MIGRAÇÃO E LITERATURA NAS OBRAS DA COLEÇÃO “AMORES

EXPRESSOS”

Giordana Maria Bonifácio Medeiros¹

Resumo

O presente trabalho consiste em uma análise dos livros Estive em

Lisboa e lembrei de você, Nunca vai embora e O filho da mãe da coleção “Amores

Expressos” da Companhia das Letras. A partir da reflexão acerca do

confronto com o espaço não-nacional, efetua-se uma análise dos

autores, narradores e/ou personagens que se encontram em situação de

deslocamento.

Ante os resultados dos questionários elaborados na pesquisa,

pretende-se nas linhas que se seguem discutir a permanência ou a

quebra da estereotipia tanto em relação à figura do estrangeiro,

quanto em relação ao tema proposto pela editora e pelo coordenador da

pesquisa.

Abstract

The presente work it’s a analysis of the novels Estive em Lisboa e

lembrei de você, Nunca vai embora e O filho da mãe from the collection “Amores

Expressos” of the Publisher Companhia das Letras. On the basis of the

reflexion about the confront with the no-national, this work pretends

makes an analisys of the authors and/or characters who are in

displacement's situation.

On the basis of questionary’s results criated for the research,

this work wants make a discussion about the broke or not for

stereotypes in relation both the foreigner and the theme proposed by

the Publisher and the research coordinator.

_________________________1. Graduanda em Letras pela Universidade de Brasília - UNB

Introdução

O presente trabalho consiste numa análise dos livros

Estive em Lisboa e lembrei de você de Luiz Ruffato, Nunca vai embora

de Chico Mattoso e O filho da mãe de Bernado Carvalho da

Coleção “Amores Expressos” da Companhia das letras. De

início, focar-se-á o contexto de surgimento da coleção

pautado por inúmeras controvérsias e polêmicas.

Num segundo momento, será apresentado um conciso

resumo das obras de modo a situar o leitor no contexto dos

romances. A questão crucial do presente artigo será

apresentada nos itens de cinco a sete, onde, mediante os

questionários utilizados para a análise da obra, serão

discutidas as questões da exogenia e suas implicações

presentes ou não nas obras em estudo.

Vislumbra-se, a partir da leitura das obras

mencionadas, propor a reflexão acerca do confronto com o

espaço não-nacional. No cerne da análise destes livros

estão os escritores, narradores e/ou personagens que se

encontram em situação de deslocamento. O intuito final é

descrever as estratégias narrativas e escolhas estéticas

empregadas na problematização literária das experiências

vivenciadas quando o indivíduo está fora de sua pátria.

Procura-se entender a questão de como ler uma escrita

produzida sob a influência de outras realidades históricas

e sociais experimentadas pelos personagens e, mesmo, pelo

escritor, sob o contexto de situações de inclusão e

exclusão, que poderão ser ampliadas ou reduzidas pelo

sujeito leitor.

Assim, será alvo de discussão a migração abordada na

obra Estive em Lisboa e lembrei de você, sob os aspectos acima

especificados de modo a serem identificadas as questões

relacionadas a migração, no tratamento dos personagens

nacionais e estrangeiros. Também será fruto de discussão a

fuga da polêmica que Chico Mattoso empreendeu em Nunca Vai

Embora, de modo a não tratar de questões políticas e

sociais, num país em que elas transbordam. Por fim, O filho

da mãe, último romance, designado para a pesquisa, será

objeto de questionamento quanto as relações entre o

nacional e o não-nacional perpetuadas no cerne da obra.

Isto posto, ante os resultados dos questionários

convertidos em gráficos para melhor apreensão dos dados,

pretende-se nas linhas que se seguem discutir a permanência

ou a quebra da estereotipia tanto em relação à figura do

estrangeiro, quanto em relação ao tema proposto pela

editora e pelo coordenador da pesquisa.

1. “Amores Expressos”, controvérsias e polêmicas.

A coleção “Amores Expressos” surgiu sob uma grande

tempestade de polêmicas. O produtor cultural Rodrigo

Teixeira e o curador João Paulo Cuenca tiveram de responder

por uma produção cara demais com objetivos, no mínimo,

controversos, desde o seu primeiro anúncio em 2007 na

imprensa.

O objetivo da coleção era primeiramente tratar de um

tema em voga na literatura contemporânea: a mobilidade

espacial e o contraponto entre o nacional e o universal. O

projeto previa o envio de 16 escritores brasileiros para

várias cidades do mundo com o intuito de criar histórias de

amor, ambientadas nessas cidades, sob a atmosfera social,

política e cultural do país e habitat em que se

encontravam.

Ocorre que as viagens dos escritores seriam

financiadas com recursos públicos, advindos da lei Rouanet

de incentivo à cultura, para posterior publicação pela

editora Companhia das Letras. Não se pode esquecer que os

lucros do projeto restariam com a editora e as despesas

seriam designadas ao governo. Ante a tormenta de críticas

que se abateu sobre o lançamento da coleção, o produtor

resolveu não mais a custear com recursos públicos, mas com

recursos privados, o que não poderia ser diferente tendo em

vista a quantia vultosa que foi despendida com o projeto,

inicialmente prevista em R$ 1,2 milhões.

O projeto contou com a promoção de minidocumentários e

blogs nos quais os autores relatavam os efeitos da exogenia

em sua literatura, bem como as realidades que viveriam os

personagens sob tal influência. Na verdade, é necessário

falar que, que além da polêmica criada em torno da coleção,

os autores, em sua grande maioria, escreveram histórias

trágicas em que os amores são tão expressos quanto alardeia

o nome da coleção e, ainda, deveras trágicos.

2. Estive em Lisboa e Lembrei de Você

O romance de Luiz Ruffato, na verdade, uma novela,

narra a trajetória de um imigrante brasileiro em Portugal.

Serginho sai do interior de Minas, da cidade de Cataguases,

numa aventura. Lança-se numa aposta cega, para Lisboa.

Tinha em mente tão somente que retornaria, já de posse de

uma boa soma a fim de “investindo em imóveis em Cataguases,

garantir uma velhice tranquila de ‘papo-pro-ar’”(RUFFATO,

2009, p.29).

Ocorre que logo se deu conta de que o dinheiro que

ganhava como garçom não seria jamais suficiente para

manter-se e ao mesmo tempo realizar uma boa poupança.

Assim, Lisboa acaba por prender o brasileiro, o sonho então

se torna um pesadelo. Sozinho, perdido numa terra que não é

sua, sem qualquer perspectiva de retorno, o narrador tem

somente uma alternativa: voltar a fumar.

É nesse contexto que novela foi dividida pelo autor

em dois capítulos. O primeiro é “Como parei de fumar”. Em

Cataguases, seguindo o conselho dos amigos, Serginho deixa

de fumar. Compreende-se isso como um sinal de esperança, no

mesmo momento que decide ir para Europa numa aposta cega de

felicidade. É nesse capítulo que o narrador rememora sua

vida em Cataguases desde seus amores, Noemi sua ex-esposa e

seu filho Pierre, seus pais falecidos e tudo que de algum

modo conspira para que ele siga para Portugal “tentar a

sorte”.

Já no capítulo, “Como voltei a fumar”, é apresentado

todo um contexto, ou soma de fatores que fizeram o narrador

perder as esperanças que alimentava antes de chegar a

Portugal, de retornar para Cataguases, para a velhice

tranquila com que tanto sonhava. Nada mais lhe resta senão

retornar para o vício como um refúgio ante a dura realidade

que vivia.

Envolvido com Sheila, não foi difícil ela o ludibriar

de modo a pegar um empréstimo com a garantia do passaporte

de Serginho. Ilegal em Lisboa, demitido do emprego que lhe

garantia a subsistência em Portugal, sem apoio de amigos e

família, desterrado no sentido figurado e próprio da

palavra, enfim, resta-lhe o consolo do vício. O derradeiro

prazer que lhe subsiste.

3. Nunca vai embora

Nunca vai embora narra a viagem de Renato, um homem que

vivia submisso aos desmandos do pai, e Camila, a mulher que

consegue desvencilhar o personagem principal da relação

doentia, e mesmo edipiana, na qual o filho está sempre

desejoso de livrar-se do genitor. Camila leva Renato para

Cuba, com intuito de gravar um filme (ela era estudante de

cinema) enquanto Renato aproveita para fazer turismo pela

cidade.

Ao chegar a Cuba, há um conflito de interesses entre

o casal: Renato e Camila desejam facetas diversas da

cidade. Um quer a Cuba dos turistas, dos hotéis e

restaurantes caros, enquanto o outro quer se entranhar na

Cuba suja, fora dos roteiros turísticos, que não se mostra

receptiva, mas é o retrato de uma realidade que se esconde

fora do alcance dos visitantes endinheirados, que procuram

a ilha do Caribe tão somente para diversão.

Repleta de atividades, Camila distancia-se de Renato,

que, louco de ciúmes, tenta se inserir no ambiente de

Camila, mas a cidade torna-se para ele ainda mais hostil, o

reencontro com a cineasta acaba por fazer-lhe sentir ainda

mais desprezado a ponto de o casal protagonizar uma briga

motivada por seus interesses tão diversos. No fim, após uma

noite de sexo violento, Camila desaparece.

Renato, num primeiro momento, acredita que ela tão

somente o abandonou. Assim, deixa a pensão barata escolhida

por Camila para mudar-se para um hotel de luxo, proposto

por ele desde o primeiro instante que chegaram à ilha de

Fidel. Ele queria sorver a cidade que lhe apetecia. Porém,

não demora muito para o abandono doer-lhe. Perdido, lança-

se na primeira birosca que enxerga na cidade e chora suas

mágoas para dois amigos, que jogavam no bar.

Pepe, um dos donos da birosca, impinge em Renato a

ideia de que Camila foi sequestrada. O dentista, já

transtornado, é facilmente envolvido numa perseguição

infrutífera em busca de sua amada. Chegam a achar um filme

de Camila filmando Renato. Mas nada que comprove que ela

não tenha tão somente partido em razão da discussão que

tiveram.

Os métodos pouco convencionais de Pepe não resolvem o

mistério, ao contrário, a investigação malfadada nada

encontra de concreto. Por fim, Renato termina na pensão

barata onde revê o último filme feito por Camila

infinitamente. Renato não podia voltar, não sem Camila.

Depois de embrenhar-se na Cuba suja, a cidade não permitia

mais que ele partisse. Então, ele foi aprisionado por

aquela realidade e nunca mais iria embora.

4. O filho da mãe.

Uma história intricada, com certeza. O filho da mãe, a

obra mais complexa, até o momento, desta coleção, é uma

narrativa confusa e cheia de idas e vindas. Recortada,

força uma nova leitura para se compreender todas as

estranhas relações apresentadas pelo autor nesse romance.

A história está ligada ao conflito na Chechênia, mas a

maior parte da narrativa ocorre em São Petesburgo. Anna é

mãe de Ruslan, checheno, refugiado de guerra que vai para

Rússia quando a avó, não vislumbrando escapatória para o

neto, prefere mandá-lo em busca da mãe enquanto morria

sozinha em um campo de refugiados. O filho da mãe em

questão é fruto de um relacionamento que sua mãe preferia

manter escondido de sua nova família com Dmítri. Aquele é o

símbolo de uma tentativa de vida malfadada em razão das

difíceis condições econômicas suportadas na Chechênia

Maksim e Roman, filhos de Anna no segundo casamento

desconheciam a existência do irmão. Assim, quando a mãe é

abordada com uma carta do filho bastardo, pensam tratar-se

de um caso extraconjugal de Anna. Dmítri, o segundo marido

de Anna, um funcionário da inteligência russa aproveita do

relacionamento de seu filho Maksim com skinheads para

expurgar a “mancha” chamada Ruslan do passado da família.

Andrei, recruta russo, filho de brasileiro, cuja mãe é

subjugada pelo marido russo, foi obrigado pelo padrasto a

alistar-se no exército onde é prostituído por seus

superiores. Quando retornava para o quartel, onde deveria

entregar o montante auferido com os “serviços sexuais”, é

assaltado por Ruslan. Para não voltar ao quartel, Andrei

busca o auxílio duma organização de mães de soldados que

tenta salvar os jovens do serviço militar.

A partir de então, Andrei coloca-se numa busca

frenética por Ruslan, para reaver o que Petesburgo retirou-

lhe: a esperança. Encontra-o quando ele preparava-se para

cometer um novo assalto. Andrei o persegue por toda a

cidade, indo até ao submundo de São Petesburgo.

O recruta e Ruslan terminam por se envolver. Fugindo

da polícia, beijam-se e vão refugiar-se na ilha de Nova

Holanda, uma cercania de São Petesburgo, ignorada pelas

autoridades. Ruslan confessa-se preso, pois lhe tomaram o

passaporte de modo que ele não pudesse sair da cidade. São

muito parecidos, até mesmo nos dramas que vivem. Não é por

menos que muitas vezes o autor repete que são como gêmeos e

que Andrei enxerga-se nos olhos de Ruslan. “São o encontro

de dois mundos, de dois corpos, numa espécie de fantasia

última, uma quimera que será considerada um monstro e

finalmente destruída”. (VIDAL, 2012, p.189).

Andrei sempre foi ao encontro de Ruslan, não poderia

mais deixar de fazê-lo. Ruslan era seu espelho, era o que

ele procurava e não conseguia jamais encontrar. O amor era

tudo o que tinha e não queria mais perder. Porém, o romance

perdurou pouco. Dmítri deixou cair o endereço de Ruslan,

propositalmente, para que Maksin e Roman agissem contra o

irmão que ambos consideravam amante da mãe.

Roman, a mando de Maksim, marcou um falso encontro

entre Ruslan e a mãe. A separação de Ruslan e Andrei era

certa. Aquele, acreditando que sua mãe iria vê-lo

presenteou Andrei com uma concha: “ lá de onde eu venho,

diziam que as conchas guardam a ressonância das coisas”.

(CARVALHO, 2009, p. 157) Andrei, já de posse do passaporte,

estava prestes a ir ao encontro do pai no Brasil.

Ruslan deixou ao amado uma carta onde falava da

quimera, “o animal que era dois sem ser nenhum” (CARVALHO,

2009, p. 158), monstruosidade que trazia mau-agouro. E do

kunak o “amigo estrangeiro que todo homem tem que o salvará

da morte e que ele também tem obrigação de salvar”.

Concluiu a carta dizendo que “as quimeras morrem para que

sobreviva o pacto dos que não podem contar nem com Deus nem

com os anjos”. (CARVALHO, 2009, p. 158).

Anna revelou a Maksim a identidade do irmão, o que lhe

deixou desnorteado. Um irmão do Cáucaso para ele seria pior

que “morrer, do que nascer cego ou preto”. (CARVALHO, 2009,

p. 171).

Maksim seguiu ao encontro de Ruslan, sob a vigia de

Dmítri. Nesse encontro, o skinhead espancou o irmão com

auxílio dos comparsas. Andrei, assistindo a cena e para

salvar Ruslan, segurou-o nos braços em meio a uma poça de

sangue, enquanto Dmítri tirava o filho das imediações.

Andrei apertou o passaporte nas mãos de Ruslan desacordado,

numa última esperança, pedia que o tirassem dali e que o

levassem para onde pudessem salvá-lo. Ruslan morreu,

entretanto.

Ao final Maksim e Anna vão para Nova York, a mando de

Dmítri que queria proteger o filho do indiciamento pelo

assassinato do irmão, enquanto Andrei foi forçado a voltar

ao exército. Enviado à Chechênia, morreria numa missão

malfadada, em que houve uma sequência de mortes provocadas

por desentendimentos fomentados pela questão de uma

quimera, que nascera trazendo mau-agouro.

5. Estive em Lisboa e lembrei de você, o lugar comum da migração.

O livro de Ruffato, breve e conciso, como os demais da

coleção, não consegue escapar do lugar comum da migração.

Ou seja, o protagonista, Serginho, encontra o que é

relegado à maioria dos brasileiros ao sair do Brasil, na

procura de uma vida melhor no exterior: o preconceito, a

exploração e a pobreza. Nesse sentido, afirma Maria

Aparecida Carvalho:

O livro de Ruffato transforma o amor queestava na origem da proposta em um elementolateral em um panorama conciso das agrurasenfrentadas pelos imigrantes nacionais:pobreza, depressão, preconceito, exploração euma possibilidade cada vez mais remota devoltar à terra natal. Seu personagem central,Sérgio Sampaio, até encontra amor físico, mas oque está no foco da narrativa é a luta diáriapela sobrevivência e como essa peleja um tantodesigual esmigalha minuciosamente as ilusõesdeslumbradas que ele, em sua aventura deimigrante, forjara ao tentar a sorte emPortugal. (CARVALHO, 2011)

Dentro da proposta inicial da obra encomendada pela

Companhia das Letras, Serginho vive uma paixão

desafortunada por uma prostituta, mas é por este novo amor

enganado e abandonado. A sequência da história leva o

leitor para um fim esperado, qual seja, a derrota do

imigrante, que não conquista o desejado no início da obra e

se vê sem qualquer esperança de um dia voltar para casa.

Assim, sem saída, resta-lhe tão somente voltar a

fumar. Essa ação coroa sua derrota, pois nada mais possui,

nem emprego, passaporte ou tão somente a possibilidade de

retornar ao Brasil. Mas, quem é o imigrante? Segundo

Ferreira, o imigrante vive uma situação peculiar, nem é

cidadão nem é estrangeiro.

“Nem cidadão”, pois não tem todos os direitosconsagrados da “democracia liberal”, por assimdizer. E “nem estrangeiro”, pois por mais queele esteja “de passagem” no país em queestá/reside, é uma passagem duradoura, às vezesaté perene – para iniciarmos com os paradoxos –ou pelo menos uma estadia mais prolongada que ado o estrangeiro-padrão(o turista). (FERREIRA,2012).

Já a situação do imigrante pobre é sobremaneira pior,

pois, além do fato acima relatado, sua situação agrava-se

pelo fato de ter de aceitar condições de vida degradantes

no país estrangeiro. Conforme destaca Silvano Santiago:

Está criada uma nova e até então desconhecidaforma de desigualdade social, que não pode sercompreendida no âmbito legal de um únicoestado-nação, nem pelas relações oficiais entregovernos nacionais, já que a razão econômicaque convoca os novos pobres para a metrópole

pós-moderna é transnacional e, na maioria doscasos, também é clandestina. O fluxo de seusnovos habitantes é determinado em grande partepela necessidade de recrutar desprivilegiadosdo mundo que estejam dispostos a fazer serviçosdo lar e de limpeza e aceitem transgredir aleis nacionais estabelecidas pelo serviço demigração. (SANTIAGO, 2004, p. 51)

Este imigrante não é cidadão, não é estrangeiro, não é

homem, é brasileiro. Sua única alternativa é aceitar uma

subvida no exterior, sob o peso do preconceito ora velado,

ora patente.

O retrato da migração não é mais a do pobre nordestino

que foge da seca sobre um caminhão pau-de-arara, está longe

o tempo dos retirantes da monocultura do latifúndio e da

seca nordestina retratado em Vidas Secas. Nesse sentido

destaca Silvano Santiago: “hoje os retirantes brasileiros,

muitos deles oriundos de estados relativamente ricos da

nação, seguem o fluxo do capital transnacional” (SANTIAGO,

2004, p. 52).

Contudo, pode-se afirmar que Ruffato não escapa do

lugar comum da migração, apesar de enfocar a

clandestinidade, um tema não muito usual na literatura

brasileira. A descrição dos personagens lusitanos e

brasileiros é muito assemelhada aos tipos comuns tão

pontuados na cultura em geral. O brasileiro falante e o

europeu mal-humorado e antipático são assim descritos logo

quando Serginho desembarca em Portugal:

Passei dormindo meu primeiro dia em Portugal,debaixo das cobertas no Hotel do Vizeu, naMadragoa, um bairro antigo pra caramba, deruinhas estreitas e casario maquiado, uma

antiguidade tão grande que até as pessoas sãopassadas, velhas agasalhadas em xailes pretos,velhos de boinas de lã subindo-descendo devagaro ladeirame, sem ar, escorados nas paredes,gente extravagante que parece uma noite deitoujovem e acordou, no dia seguinte, idosa, cheiade macacoa, vista fraca, junta dolorida, dentemolengo, perna inchada, e, assustados, passarama desconfiar de tudo, sempre enfezados,respondendo para dentro, incompreensíveis,respondendo as perguntas com irritação [...](RUFFATO, 2009a, p. 39).

Nessa linha de pensamento destaca-se Homi Bhabha:

Julgar a imagem estereotipada com base em umanormatividade política prévia é descartá-la,não deslocá-la, o que só é possível ao se lidarcom sua eficácia, com o repertório de posiçõesde poder e resistência, dominação e dependênciaque constrói o sujeito da identificaçãocolonial (tanto o colonizador como colonizado).(BHABHA, 2005, p.106).

Segundo Bhabha, a única maneira de compreender o

discurso que produz o estereótipo é entender o que o torna

um regime de verdade e não submetê-lo a um julgamento

normatizante, entender quais as ferramentas que esse

discurso utiliza para afirmar identidades fixas, pois o

estereótipo nada mais é

do que uma forma de conhecimento eidentificação que vacila entre o que estásempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo quedeve ser ansiosamente repetido, como se aduplicidade essencial do asiático ou a bestialliberdade sexual do africano, que não precisamde prova, não pudessem na verdade ser provadasjamais no discurso. (BHABHA, 2005, p.105).

Apesar de valer-se do padrão comum da migração, Estive

em Lisboa e lembrei de você apresenta um novo retrato do

cosmopolitismo do pobre. A imagem de Serginho na sua

chegada a Lisboa, cheio de esperança numa terra nova,

assemelha-se muito às esperanças nutridas por Fabiano de

Vidas Secas ao chegar à fazenda onde pretendia iniciar uma

nova vida com a família. Assim, na obra de Graciliano

Ramos:

Num cotovelo do caminho avistou um canto decerca, encheu-o a esperança de achar comida,sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca,medonha. Calou-se para não estragar força.Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca,subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros.Fazia tempo que não viam sombra. Sinha Vitória acomodou os filhos, que arriaramcomo trouxas, cobriu-os com molambos. O meninomais velho, passada a vertigem que o derrubara,encolhido sobre folhas secas, a cabeçaencostada a uma raiz, adormecia, acordava. Equando abria os olhos, distinguia vagamente ummonte próximo, algumas pedras, um carro debois. A cachorra Baleia foi enroscar-se juntodele.Estavam no pátio de uma fazenda sem vida Ocurral deserto, o chiqueiro das cabrasarruinado e também deserto, a casa do vaqueirofechada, tudo anunciava abandono. Certamente ogado se finara e os moradores tinham fugido.Fabiano procurou em vão perceber um toque dechocalho. Avizinhou-se da casa, bateu, tentouforçar a porta. Encontrando resistência,penetrou num cercadinho cheio de plantasmortas, rodeou a tapera, alcançou o terreiro dofundo, viu um barreiro vazio, um bosque decatingueiras murchas, um pé de turco e oprolongamento da cerca do curral. Trepou-se nomourão do canto, examinou a catinga, ondeavultavam as ossadas e o negrume dos urubus.Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltoudesanimado, ficou um instante no copiar,fazendo tenção de hospedar ali a família. Maschegando aos juazeiros, encontrou os meninos

adormecidos e não quis acordá-los. Foi apanhargravetos, trouxe do chiqueiro das cabras umabraçada de madeira meio roída pelo cupim,arrancou touceiras de macambira, arrumou tudopara a fogueira.Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas,arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás,farejou um minuto, localizou- os no morropróximo e saiu correndo. Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se umasombra passava por cima do monte. Tocou o braçoda mulher, apontou o céu, ficaram os dois algumtempo aguentando a claridade do sol. Enxugaramas lágrimas, foram agachar-se perto dos filhos,suspirando, conservaram-se encolhidos, temendoque a nuvem se tivesse desfeito, vencida peloazul terrível, aquele azul que deslumbrava eendoidecia a gente.Entrava dia e saía dia. As noites cobriam aterra de chofre. A tampa anilada baixava,escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidõesdo poente.Miudinhos, perdidos no deserto queimado, osfugitivos agarraram-se, somaram as suasdesgraças e os seus pavores. O coração deFabiano bateu junto do coração de SinhaVitória, um abraço cansado aproximou osfarrapos que os cobriam. Resistiram a fraqueza,afastaram-se envergonhados, sem ânimo deafrontar de novo a luz dura, receosos de perdera esperança que os alentava. (RAMOS, 1994, p.12-13)

As obras se aproximam justamente pela esperança que

ambos os personagens possuíam ao se estabelecer numa nova

terra hostil e cujas promessas pareciam estar muito

distantes de serem cumpridas. Ambas apresentam a imagem do

migrante que apesar de sua busca, nunca deixaria o papel

que ocupa na escala social: o do pobre. Inaugura Serginho

a nova pobreza, posterior à Revolução Tecnológica que,

mesmo na clandestinidade, parte em direção de uma vida

melhor, numa nova terra. Ainda que os caminhos sejam tão ou

mais tortuosos que aqueles enfrentados por Fabiano quando

se retirava do sertão.

6. Nunca vai embora, um retrato de Cuba sem as questões

polêmicas.

Para um leitor comum, que esperava ver temas

relacionados à política cubana retratados na obra, Nunca vai

embora foi decepcionante. Ocorre que, tendo em mãos um

oceano de polêmicas, o autor preferiu fugir de todas elas.

A questão política foi ignorada, sendo citado o nome de

Fidel uma única vez e sem quaisquer intenções de conivência

ou repúdio ao regime ditatorial cubano. Mattoso apresentou

duas Cubas, a dos turistas e a do submundo, mas muito pouco

do sentimento do povo cubano.

Não é difícil entender por que Mattoso preferiu

escapar dos temas políticos: pois isto seria o esperado, o

que o prenderia ao estribo da convenção. Não é por menos

que se valeu de um enredo cinematográfico, de modo a contar

uma história que poderia ser facilmente convertida em

filme. Nisso, buscou apresentar as duas cidades, uma que é

escondida de todos e àquela que permitem o mundo conhecer.

Mattoso tentou construir a imagem de uma Cuba

dividida. Dois mundos numa ilha, dois mundos que não se

misturam. Óleo e água numa questão sem solução. O narrador,

Renato, por provir de uma família abastada, preferia viver

a Cuba turística, já sua namorada queria viver uma Cuba

fora de tais roteiros. Opostos que não se deveriam

misturar, que, quando se encontram, deixam alucinado o

narrador que finda seus dias preso a uma ilusão.

Mas o que se discute aqui é questão da migração posta

em cheque nesta Coleção. O personagem Renato, narrador, vê-

se preso a Havana pela ilusão que sustentava quanto à

mulher que amava. Membro de uma família abastada, faz o

movimento inverso da corrente migratória que busca os

grandes centros à procura de uma nova oportunidade de vida.

Renato é um turista cuja loucura não o permite partir de

Cuba. Ele é o personagem que “Nunca vai embora” enquanto

todos os demais seguem suas vidas.

Outra coisa que se faz notar na obra é a fuga da

polêmica, das questões políticas que brotam em cada esquina

de Cuba, mas foi superficialmente abordada por Mattoso. No

livro há o encontro de duas cidades: a Havana turística e a

do submundo. Renato circula pela cidade cartão postal até o

desencontro amoroso quando passa a deslocar-se para a

Havana suja, a conhecida pelas obras Pedro Juan Gutiérrez.

Tanto Renato quanto Camila realizam uma viagem que se

esgota nos discursos que se repetem sobre Havana, aquela

que não precisamos visitar fisicamente para conhecermos.

O livro divide-se também em dois momentos: o primeiro

no qual o casal vai aos poucos se desfazendo e o segundo em

que Renato parte numa busca “detivetivesca” de pistas sobre

Camila. O narrador vê-se desamparado, abandonado em Cuba

sem razões para partir ou ficar. Assim, decide por ficar

para sempre preso a uma fita de videotape. Em uma repetição

sem fim de um romance arruinado, de duas vidas que não

podem mais seguir em conjunto.

Não promove Mattoso, propositalmente, uma discussão

sobre a migração, pois Renato escolheu ficar. Sua origem

elitista permitiria que se estabelecesse onde bem

desejasse. Mas ele não desejava nada mais que Camila.

Porém, ela não mais estava consigo e isto ele não conseguia

aceitar. Assim, permaneceu em Cuba por sua própria escolha.

Escolheu ilhar-se na Cuba suja, em que todas as suas

lembranças dirigem-se à Camila, ilusão que não lhe permite

retornar ao Brasil.

7. O filho da mãe, uma obra instigante.

O filho da mãe prima por ser uma das únicas obras da

coleção a apresentar um romance homossexual como foco da

narrativa. Foi um dos romances melhor elaborados dentro da

proposta “Amores Expressos”, que exige uma segunda leitura

para poder ser compreendido em todos os seus meandros pelo

leitor.

Ocorre que foi uma das únicas obras a escapar dos

lugares comuns presentes em todos os livros do projeto

“Amores Expressos”. Ou seja, enquanto o projeto em questão

apontava para temas universais, histórias que poderiam ser

contadas em qualquer lugar do mundo, afastadas das

problemáticas sociais; livros que poderiam circular

livremente num ambiente transnacional; O filho da mãe não

escapa da polêmica, assim até mesmo a questão mais sensível

na política externa do governo russo foi discutida pelo

autor, talvez em repúdio ao comportamento apolítico de

tantos autores desta coleção.

Os refugiados, apresentados na obra, mostram um novo

tipo de desigualdade que se apresenta em níveis

transnacionais. Imigrantes que, clandestinamente, seja na

Rússia, como apresenta Carvalho, ou em Portugal, como o

Serginho, de Ruffato, se inserem em outros países, em busca

de melhores condições de vida. Vidas em ruínas que tentam

se reestruturar no exterior, mas ao contrário do que

procuram, restam ainda mais fragmentadas. Foi por sua

nacionalidade que Ruslan foi obrigado a roubar estrangeiros

em São Pesterburgo e Serginho foi demitido de seu emprego

de garçom em Portugal. Mas foi também nas ruínas onde se

encontraram Ruslan e Andrei, que surgiu a vida: o amor tema

central da coleção, o trágico amor que constrói o que se

desconstrói.

Carvalho, conforme cita Paloma Vidal, procura

reproduzir em suas obras, realidades em que as pessoas não

se reconheçam (VIDAL, 2012, p.189), fugindo assim do tema

homogeinizante da Coleção, erigindo uma obra que se esquiva

da cimentada fórmula colonizadora, algo que não pode ser

reproduzido em qualquer realidade senão a proposta no

romance.

O estrangeiro, contudo, também se apresenta

marginalizado nessa obra, em que a discriminação impede a

inclusão do imigrante. A existência de um membro Checheno é

simplesmente insuportável para uma família russa. Um mal

que deveria ser expurgado a todo custo.

Outro aspecto significativo em O filho da mãe é,

sobretudo, o movimento, os corpos que transitam todo o

tempo. Há uma desterritorialização, o que representa o

signo da nova miséria, em que os homens são despojados

também de sua nacionalidade, de seu lugar de asilo. Nesse

sentido, Andrei e Ruslan buscam nos corpos um do outro a

segurança que não possuem, o kunak que lhes permitirá

“seguir seu caminho em paz, sabendo que existe no mundo

alguém, como eles, com quem eles poderão contar na vida e

na morte.” (CARVALHO, 2009, p. 158). É notório que Ruffato e Carvalho conseguiram

apresentar a carga traumática fruto da expatriação. O mal-

estar do indivíduo que se vê longe das fronteiras nacionais

a que estava acostumado. O desenraizamento que faz de

Ruslan e Serginho párias em terras estrangeiras, forçados a

comparações constantes entre o vivido no presente e o

vivido outrora. Vidas divididas entre realidades que não se

misturam. Vidas que não serão jamais reconstruídas.

A migração, nesse sentido, também é uma violência. A

simples necessidade de cruzar as fronteiras do seu país em

razão da guerra ou da falta de oportunidades econômicas são

relações traumáticas. O homem que sai de seu país de origem

perde sua condição de existência, é visto tão somente em

função do trabalho, explica Sayad:

A estadia autorizada do imigrante estáinteiramente sujeita ao trabalho, única razãode ser que lhe é reconhecida (...) Foi otrabalho que fez “nascer” o imigrante, que ofez existir, e é ele, quando termina, que faz“morrer” o imigrante, que decreta sua negaçãoou que o empurra para o não-ser. (SAYAD, 1998,p. 55).

O imigrante é submetido ao trabalho degradante que o

nacional não se permite fazer. É visto tão só como mão de

obra. Perde as feições, como no quadro “Operários” de

Tarsila do Amaral, pessoas em que as feições apresentadas

se confundem, e não se fixam. São operários sem nomes e sem

rostos, estatísticas que os números insensíveis encobrem.

O filho da mãe é, sem dúvida, o melhor trabalho

surgido na coleção “Amores Expressos”. Tendo em vista a

fuga dos padrões impostos, de modo a não se imiscuir de

apresentar questões polêmicas ou fugir das questões

sociais, ao contrário, traz para o bojo da obra toda uma

problemática que torna o livro uma obra impossível de se

repetir em outra realidade.

8. Conclusão

A coleção ”Amores Expressos”, desde o início, fonte de

acentuada polêmica, foi alvo de muitas críticas: escritores

e blogueiros inundaram a internet com acusações acerca de

três pontos do projeto: supostamente reunir apenas amigos

dos organizadores; a temática do amor e o fato de o projeto

usar dinheiro público para financiar viagens

internacionais.

Mas escapando à veracidade das querelas, o cerne da

pesquisa que se empreendeu nesse último semestre foi

discutir a migração na literatura. Desta feita, na divisão

dos trabalhos, foi sugerido a cada aluno-pesquisador a

escolha de três livros de pesquisa. Coube-me a tarefa de

lidar com Estive em Lisboa e lembrei de você, Nunca vai embora e O filho

da mãe.

Lidas as obras, com o auxílio dos questionários, foi

possível analisar a migração e seus efeitos sobre os

indivíduos fora de sua pátria. Assim, as questões que mais

chamaram atenção foram, sem dúvida, o trabalho e migração

econômica. O que não foge do que se convencionou como causa

máster da expatriação, tal como apresenta o gráfico a

seguir obtido com a submissão das obras aos questionários:

Personagens01234567 decepção amorosa

emigração econômicaexílio políticoestudostrabalho viagem turística crise identitária ou existencialrealização pessoalperegrinaçãonão pertinente não identificadooutro

Gráfico 2 – Razões da expatriação

A maioria dos personagens/imigrantes desta coleção foi

submetida ao mesmo destino dos brasileiros que saem do

Brasil à procura de melhores condições de vida no exterior:

preconceito, pobreza, subvalorização, clandestinidade e

possibilidades cada vez mais remotas de voltar a sua terra

natal.

Desde a época das Grandes Navegações os pobres buscam

em novos continentes em uma promessa longínqua de trabalho

e riquezas. Não é diferente do que ocorre hoje. O pobre,

mais uma vez, seguindo o “fluxo do capital” é obrigado a

deixar sua terra, para fugir da pobreza, e partir para

outros países em busca de melhores condições de vida.

Ocorre que hoje, não mais são expulsos pela seca, como

ocorrera com Fabiano de Vidas Secas, o pobre, agora, sai das

regiões mais abastadas do país, onde não conseguiram

inserir-se no mercado capitalista, para tentar fazê-lo em

outros países.

No artigo intitulado “O cosmopolitismo do pobre”,

Silviano Santiago analisa duas formas de multiculturalismo

que são encontradas ao longo da história cultural mundial.

A primeira tem origem mais antiga, baseada na ideia de

estado-nação que, resumidamente, foi uma construção “de

homens brancos para que todos, indistintamente, sejam

disciplinarmente europeizados como eles” (SANTIAGO, 2004,

p.54), o que ocorreu com as Grandes Navegações e com a

descoberta de novos continentes. A segunda, de acordo com

Santiago, é uma forma recente e que ainda vem se

estabelecendo através da resolução de dois pontos

basicamente: dar conta do intenso fluxo de migrantes pobres

nas megalópoles pós-modernas e resgatar grupos étnicos e

sociais, economicamente prejudicados durante a vigência do

primeiro multiculturalismo. Sobre o processo de passagem de

uma forma para outra, ele comenta:

Ao perder a condição utópica de nação –imaginada apenas pela sua elite intelectual,política e empresarial, repitamos – o estadonacional passa a exigir uma reconfiguraçãocosmopolita, que contemple tanto os seus novosmoradores quanto os seus velhos habitantesmarginalizados pelo processo histórico. Ao serreconfigurado pragmaticamente pelos atuaiseconomistas e políticos, para que se adéque asdeterminações do fluxo do capitaltransnacional, que operacionaliza as diversaseconomias de mercado em confronto no palco domundo, a cultura nacional estaria (ou deveestar) ganhando uma nova reconfiguração que,por sua vez, levaria (ou está levando) osatores culturais pobres a se manifestarem poruma atitude cosmopolita, até então inédita emtermos de grupos carentes e marginalizados empaíses periféricos (SANTIAGO, 2004, p.59-60).

Podemos considerar este novo multiculturalismo como

um desdobramento das mudanças trazidas pela globalização

com o enfraquecimento dos estados-nações e com o aumento de

trocas culturais que ocorre tanto através da vida cotidiana

com as migrações, viagens etc., como pela ampliação das

redes de comunicação representadas pelas mídias, pela

academia, pelos museus e por várias outras instituições. Em

outras palavras, o multiculturalismo atual é um fenômeno

que vem ocorrendo atrelado ao caráter transcultural do

mundo contemporâneo. É ele que instaura, conforme a

expressão de Santiago, o “cosmopolitismo do pobre”.

Nesse sentido, apresenta-se a questão do desterramento

dos personagens, indivíduos que sofreram a violência da

migração. Pessoas que se deslocam de seu país de origem à

procura de melhores condições de vida, em busca de uma

promessa de prosperidade que jamais deixará de ser tão

somente uma simples promessa.

Pode-se dizer que a coleção “Amores Expressos”

apresentou personagens cosmopolitas. Mas o que é

cosmopolita? Cosmopolita, o dito ideal universal-

cosmopolita, para Carlos Enrique Ruiz Ferreira parte:

“em última instância, e consequência lógica, dadefesa dos Direitos Humanos. Representa o fimdas muralhas, o fim das fronteiras territoriaissoberanas, o fim da distinção entre nacional eestrangeiro. Desse modo, propugna o fim doconceito/classificação de um ser humano como“imigrante”, ou como o “de fora”. É a afirmaçãodo ser humano como ser humano, parte dacoletividade Humanidade, e a negação ousublimação da afirmação do ser humano enquantonacional, parte da coletividade Estado-soberano-nacional.” (FERREIRA, 2012)

Podemos dizer que os cosmopolitas de hoje são homens sem

pouso, que transitam sem destino. Assim, tal qual Serginho,

narrador da obra Estive em Lisboa e lembrei de você, os imigrantes,

sentem-se discriminados e fora de contexto quando em um país

estrangeiro. A simples possibilidade de ouvir a sua própria

língua é razão de muita alegria. As cidades representadas nas

obras parecem avessas aos personagens retratados na coleção. São

homens que, vítimas preconceito, são subjugados a uma vida de

clandestinidade e sofrimento.

A elite representada por Renato de Nunca vai embora, não tem

necessidade de buscar uma melhora em seu padrão econômico,

assim, quando em viagem, segue os roteiros turísticos e

distantes da realidade do país em que se encontra. Mattoso

apresentou o choque entre o mundo burguês a que Renato estava

acostumado com a Cuba real, que foge às imagens de cartão

postal, a Cuba suja de Pedro Juan Gutiérrez.

Bernado Carvalho apresentou o checheno marginalizado na

Rússia, o migrante que foge das ruínas de seu país em busca de

sobrevivência no estrangeiro. Em território Russo, Ruslan é

obrigado a efetuar pequenos roubos para manter-se, com a

esperança de conseguir, também, um passaporte para evadir da

relação de exploração a que estava submetido na Rússia.

Assim, o fato mais marcante nessa coleção é a figura do

indivíduo quando em espaço transnacional. As obras primaram por

mostrar a situação do migrante, nos contextos específicos da

clandestinidade, da busca desenfreada por uma esperança que

esvai a cada dia, sem, inclusive, a possibilidade de retornar

para sua casa e sua gente.

Uma das consequências deste novo multiculturalismo ou

“cosmopolitismo do pobre” é que ele nos leva além das

discussões acerca da identidade nacional, bem como da

tensão das forças culturais externas, ele transpõe a

discussão centro-periferia para fora do país, relativizando

o que se conhecia por centralidade nacional. Hoje as

questões de centro-periferia extrapolam fronteiras,

seguindo o dito “fluxo do capital”.

Referências

AZEVEDO, Luciene. “Como se faz um autor: Milton Hatoum:permanência e transformação do regionalismo”. In:DACALSTAGNÈ, Regina & MATA, Anderson Luís Nunes da (orgs.)Fora do retrato: estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo:Belo Horizonte, 2012.

BHABHA, Homi. K., O local da cultura. Belo Horizonte: Ed.da UFMG, 2005.

BERND, Zilá. “Figurações do deslocamento nas literaturasdas Américas”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.º30. Brasília, julho/dezembro de 2007, pg. 89-97.

BERND, Zilá. (org.) Dicionário das mobilidades culturais; percursosamericanos. Porto Alegre: Literalis, 2010.

BORGES, Débora Evangelista Silvério. Emigração e queda: estudo da obra Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato.Monografia de Graduação. Brasília: TEL/IL/UNB, 2013.

BRANDÃO, Luís Alberto. “Vozes estranhas – o imagináriolinguístico em Milton Hatoum”, em Grafia da identidade:literatura contemporânea e imaginário nacional. Rio deJaneiro/Belo horizonte: Lamparina Editora/Fale (UFMG),2005.

CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia dasLetras, 2009.

CARVALHO, Maria Aparecida de Oliveira, O turista escritor esua canção do exílio em Estive em Lisboa e lembrei de você,disponível em:http://revistas.unincor.br/index.php/recorte/article/viewFile/293/pdf, 2011.

DACALSTAGNÈ, Regina. (2005), “A personagem do romancebrasileiro contemporâneo (1990-2004)”. Estudos de LiteraturaBrasileira Contemporânea, nº 26. Brasília, 2005, pp. 13-71.

FERREIRA, Carlos Enrique Ruiz, O imigrante como umsubversivo prático-político, possibilidade de um “novomundo” – o projeto universal-cosmopolita dos DireitosHumanos em contraposição à Soberania territorial,disponível em:http://oestrangeirodotorg.files.wordpress.com/2012/12/imigrante-como-subversivo-carlos-ruiz-ferreira.pdf, 2012.

MATTOSO, Chico. Nunca vai embora. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

OLIVIERI-GODET, Rita. “Estranhos estrangeiros: poética daalteridade na narrativa contemporânea brasileira”. Estudos deLiteratura Contemporânea, n.º 29. Brasília, janeiro/junho de2007, pp. 233-252.

PIRES, Maria Isabel Edom et all. Revista cerrados (org.)Dossiê trânsitos e desassossego. Universidade de Brasília,Departamento de Teoria Literária e Literaturas, n. 27,2009.

RAMOS, Graciliano, Vidas Secas, 65ª ed. Rio de Janeiro:Record, 1994.

RUFFATO, Luiz. Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo:Companhia das Letras, 2009.

SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte:Editora da UFMG, 2004.

SAID, Edward. Orientalismo- o oriente como invenção do ocidente. Trad.Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SCHOLLHAMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio dejaneiro: Civilização Brasileira, 2009.

VIDAL, Paloma. “Viagem e experiência comum: O filho da mãe, deBernardo Carvalho”. In : DALLCASTAGNÈ, Regina & Mata,Anderson Luís Nunes da (orgs.) Fora do Retrato: estudos de literaturabrasileira contemporânea. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012