Marion Velasco Rolim eimas

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Pequenos ritornelos na peça sonora Selva de Metal Small ritornellos in sound piece Jungle Metal ROLIM, Marion V. 1 PPGAV- IA, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Resumo Este artigo trata do processo de criação da peça sonora Selva de Metal, de minha autoria, que encontra na manipulação mecânica de duas obras de arte: esculturas de metal (réplicas) - série Bichos de Lygia Clark e bolinhas de ping pong - série Ping Poem de Lenora de Barros, o material sonoro base para a criação da peça sonora (eletrônica), que associada à ação com voz ao vivo, foi apresentada na Mobile Radio – radio arte web instalada na 30ª Bienal de São Paulo – Brasil, em 2012. As obras manipuladas, o desdobramento nas proposições das artistas, a correspondência entre ações, operações, procedimentos utilizados, a mescla de meios de 1 Marion Velasco Rolim é artista multidisciplinar e pesquisadora. Doutoranda em Poéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS, em Porto Alegre (RS), sob orientação dos Profs. Drs. José Avancini (IA-UFRGS) e Mario Ramiro (ECA-USP). Mestre em Design pela Universidade Anhembi Morumbi (SP) e graduada em Artes Plásticas pela UFRGS (RS). Integra os grupos de pesquisa Design: inter-relações na contemporaneidade (ziguezague-transversalidade e design de moda) do PPG Design da Universidade Anhembi Morumbi e Arte e Historiografia do PPGAV na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Pequenos ritornelos na peça sonora Selva de Metal

Small ritornellos in sound piece Jungle Metal

ROLIM, Marion V.1

PPGAV- IA, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Resumo

Este artigo trata do processo de criação da peça sonora Selva deMetal, de minha autoria, que encontra na manipulação mecânica deduas obras de arte: esculturas de metal (réplicas) - série Bichosde Lygia Clark e bolinhas de ping pong - série Ping Poem de Lenorade Barros, o material sonoro base para a criação da peça sonora(eletrônica), que associada à ação com voz ao vivo, foiapresentada na Mobile Radio – radio arte web instalada na 30ªBienal de São Paulo – Brasil, em 2012. As obras manipuladas, odesdobramento nas proposições das artistas, a correspondência entreações, operações, procedimentos utilizados, a mescla de meios de1 Marion Velasco Rolim é artista multidisciplinar e pesquisadora. Doutoranda emPoéticas Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS, emPorto Alegre (RS), sob orientação dos Profs. Drs. José Avancini (IA-UFRGS) eMario Ramiro (ECA-USP). Mestre em Design pela Universidade Anhembi Morumbi (SP)e graduada em Artes Plásticas pela UFRGS (RS). Integra os grupos de pesquisaDesign: inter-relações na contemporaneidade (ziguezague-transversalidade edesign de moda) do PPG Design da Universidade Anhembi Morumbi e Arte eHistoriografia do PPGAV na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

expressão e difusão, bem como a natureza hibrida da arte sonora,evidenciam os conceitos de território, desterritorialização e ritornelo,conforme pensados e propostos pelo filósofo francês GillesDeleuze.

Palavras Chave: Arte Sonora, Lygia Clark, Ritornelo.

Abstract

This article discusses the process of creating the sound pieceJungle Metal, of my own, which is the mechanical manipulation oftwo works of art: metal sculptures (replicas) - Series Animals byLygia Clark and ping pong balls - Series Ping Poem by Lenora deBarros, the sound material basis for the creation of sound piece(electronics), which associated with the action with live voice,was presented at the Mobile Radio - radio art web installed atthe 30th Bienal de São Paulo - Brazil, in 2012. Works-arthandled, the split in the propositions of artists, thecorrespondence between actions, operations, procedures used, mixof means of expression and dissemination, as well as the hybridnature of the sound art, highlight the concepts of territory,deterritorialization and ritornelo, as designed and proposed bythe French philosopher Gilles Deleuze.

Key Words: sound art, Lygia Clark, ritornelo.

Apresentação

Como artista, tenho ziguezagueado pelas Artes Visuais, Design e

Música, desde o final dos anos 1980. Atualmente, me localizo num

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território ENTRE - que tem o som como material de criação

artística, explora suas características visuais, espaciais,

performativas e vem sendo chamado de Arte Sonora.

A peça sonora Selva de Metal e este artigo integram minha pesquisa de

doutorado em Poéticas Visuais: ESTRONDO – performatividade,

ambientações com voz e outros sons, que investiga a inter-relação

entre Arte da Performance e Arte Sonora, através dos gêneros:

performance com voz e som, banda de artista, paisagem sonora e

programas de radio-arte.

Em setembro de 2012, por ocasião do convite para fazer três

programas2 na Mobile Radio3, durante a 30ª Bienal de São Paulo, em

São Paulo, reativei minha escuta desta cidade4, a fim de encontrar

“sons em potencial” para a criação de novos trabalhos. Como

estratégia de interação com os lugares, adotei a prática da

2 Os três programas sob o nome MaisonM foram editados, produzidos eapresentados ao vivo, por mim, na MobileRadio - BSP, nos dias 09, 10 e11/11/12.3 Estação temporária de rádio arte - projeto artístico da inglesa SarahWashington e do alemão Knut Aufermann.4 Vivi e trabalhei em São Paulo de março de 2005 a dezembro de 2010. Nesseperíodo, registrei o cotidiano de diversos bairros, na forma de imagens,textos, clipes de sons, que foram disponibilizados em blogs comonaorelha.uol.com.br e empilhamento.blogspot.com e sites de relacionamento comoyoutube e facebook.

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caminhada com anotações e gravações dos sons e ruídos urbanos, em

mídia celular.

Mas foi numa situação indoor, como a visita à exposição Lygia Clark:

uma retrospectiva5, que encontrei o material sônico para a criação de

Selva de Metal.

A exposição, conforme o título indica, apresentou um panorama da

obra de Lygia Clark (1920-1988) – que preferia não ser chamada de

artista e, cuja obra aberta, orgânica, sensorial investiga o

corpo e o espaço. Pioneira da arte relacional e da noção de

performação – pela participação / manuseio das obras, Clark

transforma o espectador em participador e a arte em experiência

de vida. Por suas idéias, atitudes e proposições que

desterritorializaram o campo da arte, criou uma obra atemporal,

de grande importância para a História da Arte brasileira e

mundial.

5 A exposição “Lygia Clark: uma retrospectiva” foi realizada no Itaú Culturalem São Paulo, numa parceria com a Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”e com curadoria de Felipe Scovino e Paulo Sergio Duarte. O periodo expositivofoi de 01 setembro a 11 de novembro de 2012.

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A voz dos Bichos – réplicas

O caráter participativo da mostra e a presença de grupos de

jovens estudantes deixaram a sala “viva”. Assim, não pude ficar

indiferente aos sons que se produziram no 1º andar da exposição.

Ali, se encontravam as obras A casa é o corpo – instalação que faz

referência ao corpo humano e convida o visitante a passar pelo

seu interior e Bichos - objetos originais e nove diferentes

réplicas.

Neste ambiente sônico, identifiquei a justaposição e sobreposição

de risadas, gritos, conversas, estouros de balão – um dos

elementos presentes no interior de A Casa é o Corpo, que, vez ou

outra, se rompia na passagem-vivência de um participante, e uma

estridente algazarra metálica produzida durante a manipulação das

réplicas6 dos Bichos.

6 Os Bichos originais não podem mais ser manuseados, por isso, réplicas foramcriadas e disponibilizadas para a manipulação do público, conforme haviaproposto Lygia Clark.

5

No final dos anos 1950, Lygia Clark incomodada com as questões do

suporte, rompeu com a pintura e propôs dobras no plano, que se

projetavam no espaço. O conceito de organismo vivo foi

experimentado na obra Casulo (1959) e na série Bichos (1960) –

que ganhou prêmio de melhor escultura nacional na VI Bienal de

São Paulo em 1961.

Os Bichos são objetos de alumínio, de diferentes tamanhos, cujos

planos/faces são articulados por dobradiças. Essas estruturas, ao

serem manipuladas, se desdobram no espaço, configurando

diferentes formas.

Depois de manipulá-los, compreendi o que Clark dizia sobre a

“vida própria” dos Bichos e os movimentos que eles sabiam fazer

(CLARK apud BRETT 2005, 98). Bicho é uma obra viva, receptiva,

que carece de ativação. No contato, estabelece intimidade com o

sujeito (participador) e vice-versa. Na ação, suas faces reagem:

dobram, desdobram, batem, deslizam umas sobre as outras, se abrem

– o interior vira exterior e o exterior, interior..., se

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precipitam, tombam por conta própria, até encontrar a ‘melhor’

posição e entrar em estado de repouso/espera.

O critico de arte, Mario Pedrosa também fez referência às

respostas imediatas que os Bichos dão, quando estão em estado de

relação com o participador

(...) Em muitos deles, por sua complexidade e superposição

de estrutura, uma espécie de engrenagem interna faz com que a

geração de um plano no espaço, ou o simples deslocar dele, vá

ter imediata repercussão no conjunto, e todas as partes

começam a mexer-se, como por conta própria, em busca de uma

nova posição. Mexe-se a obra por vezes como um inseto, ou

sugere-se, então, a ideia de uma estranha máquina de

construir espaço (...) (PEDROSA apud BRETT 2005, 119).

Até o momento, não encontrei textos que façam referência à

dimensão sonora dos Bichos (originais e réplicas). Em geral,

comentam a dimensão sensorial da obra, pelas suas características

formais, visuais e táteis.

7

Sueli Rolnik, ao discorrer sobre o pensamento poético de Lygia

Clark, o aplica às questões subjetivas contemporâneas e faz uso

de palavras sonoras como burburinho e grasnar, mas não busca o

sentido da produção de sons em si, mas uma metafórica para o

‘fazer barulho’ em outras instâncias

“(...) nosso corpo-bicho tem esperneado mais do que nunca:

com as novas tecnologias de comunicação e informação, cada

indivíduo é permanentemente habitado por fluxos do planeta

inteiro, o que multiplica as hibridações, aguçando,

consequentemente, o engendramento de diferenças que vibram no

corpo e o fazem grasnar. (...) muitos fluxos, muita

hibridação, produção de diferença intensificada; mas,

paradoxalmente, pouca escuta para este burburinho, pouca

fluidez, potência de experimentação debilitada. Neste mundo

de subjetividades mercadológicas, tende a ser mínima a

permeabilidade entre a arte - onde, e só onde, o grasnar é

ouvido como apêlo à criação – e o resto do planeta. Fora da

arte e do artista, cada grasnar do bicho, cada morte de uma

figura do humano tende a ser vivido como aniquilamento de

tudo (...)”. (ROLNIK 1996, 3)

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Através de entrevista, feita pela Internet, com o músico carioca

Joaquim Pedro, foi possível conhecer algumas características do

Bicho original7, que sua família coleciona

“Eu tenho um Bicho sim e foi o objeto do primeiro vídeo que

fiz na vida... Nesse vídeo, eu só joguei uma trilha por

cima... mas você pode ver como ´ele´ é, pelo menos, e um

pouco da movimentação... essa escultura fica em cima de uma

mesa de vidro (80's), e como ela é de metal, as pontas finas

riscam o vidro e fazem uns agudos ótimos... mas as dobradiças

fazem pouquinho barulho, mesmo velinhas... Ela é bem frágil,

mas seria demais 'tocá-la' ao vivo...” (Joaquim Pedro Dos

Santos, email mensagem ao autor, Outubro 11, 2012)8

7Ainda em busca dos objetos Bichos - originais, entrei em contato com aFundação Vera Chaves Barcellos, localizada em Viamão – Rio Grande do Sul, quetem em seu acervo, uma peça, mas a manipulação da peça e a gravação desta açãonão foram autorizadas.8 Site das formas criadas pelo Bicho original – do acervo da família Dos Santos(RJ). Trilha sonora criada por Joaquim Pedro Dos Santos:http://www.youtube.com/watch?v=86E374Ba4RM Outro trabalho que usa Bichos como referência e mistura às novas tecnologias,chama-se: BICHOS IMPOSSIVEIS, de Alexandre Rangel, disponível emwww.quasecinema.org

9

De acordo com John Cage, “o silêncio não existe. Sempre está

acontecendo alguma coisa que produz som!” (John Cage apud

Schaffer 2011, 118), assim, na exposição, tanta vibração e atrito

fizeram os Bichos “barulhar” pelas dobradiças, pelos planos e

pontas, quando despencavam e arranhavam a bancada.

Ao serem manipuladas ao mesmo tempo, as ‘vozes´ das réplicas –

cada uma com seu timbre e altura, marcavam território, construíam

uma espécie de “muro de tijolos sonoros” (Deleuze and Guattari

2007, 116). A materialidade da voz, também destacada por Zumthor

(2007, 82-85), faz com que as múltiplas vozes dos Bichos marquem

suas presenças e criem ritornelos, “fundando um centro e

desenhando um lugar” (Ferraz 2205, 77), ao bramir, rosnar,

cricrilar, grasnar, trinar, coachar. O que se ouvia era um

território-selva (de metal) 9.

Em meio a todas estas questões, algumas perguntas ainda ficam sem

resposta: – os Bichos originais produziam som, ou a dimensão

sônica da obra só se realiza nas suas ordinárias replicas? –

9 Estes sons encontrados motivaram novas visitas à exposição para capturas comgravador de som de melhor qualidade e autorização da Instituição onde aexposição acontecia.

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Nesse caso, essa nova característica não amplia a potência do

Bicho-obra? – Lygia Clark não teria previsto a voz do Bicho, já

que em obras posteriores explora todos os sentidos, inclusive o

olfato?

O pipocar de Ping Poem

Por ocasião da viagem a São Paulo, fiquei hospedada em casa de

artistas, onde havia outra obra potencialmente sonora, as peças

“Ping Poem” – bolinhas de ping pong com palavras impressas, da

artista Lenora de Barros (1953) que, desde o final dos anos 1970,

trabalha com questões de identidade em associação à palavra,

através da fotografia, vídeo, ações performáticas e instalações

sonoras.

Existem diversas versões dos objetos-poema e uma delas data de

2006. As palavras escritas na sua superfície também variam, as

que eu manuseei traziam seu nome: Ping Poem. Pela convocação ao

jogo (poético) esta obra se inscreve na noção de performação.

11

Para a captura do som, minha ação aconteceu com quatro bolinhas

sobre um piso de lajotas. É da natureza leve das bolinhas de ping

pong, o pipocar. Pipocar é naturalmente sonoro. Desse modo,

anunciam seus percursos no espaço, indicam tempo de voo e de

queda, se projetam, criam guinadas, tomam direções em acordo com

os encontros (ritornelos de partida) e podem se posicionar em

qualquer lugar – “Adeus, eu parto sem olhar para trás”, anunciam

Deleuze and Guattari. (Deleuze and Guattari 2007, 138).

O som oco, ligeiro e desterritorializado, produzido pelas Ping

Poems, na peça Selva de Metal, parece compor com os Bichos aquele

aspecto do ritornelo que se abre, já que enxerta ou põe a

germinar “linhas de errância”, com volteios, nós, velocidades,

movimentos, gestos e sonoridades diferentes, conforme descreveram

Deleuze and Guattari. (Deleuze and Guattari 2007, 117).

Samples – as vozes das obras como ritornelos

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Todo material sonoro capturado indica o tempo das minhas ações

com as bolinhas de ping pong e com cada uma das réplicas, somadas

à paisagem sonora onde se inseriam.

A pós-produção10 consistiu em trabalhar esse material com

equipamentos e softwares desenvolvidos para músicos e DJs. Um

procedimento usado foi o corte de trechos específicos de som –

amostras / samples, a fim de tocá-los e compor a peça. Não houve

modificação com plug ins (efeitos) dos timbres capturados. Cada

sample traz a ´voz´ de um Bicho réplica e de Ping Poem. Os ruídos

do ambiente não foram limpos. Segundo Murray Schafer, “por trás

de cada peça musical se oculta outra peça musical – o minúsculo

mundo de eventos sonoros que temos descuidadamente aceitado como

´silenciosos´. Ruído é som que fomos treinados a ignorar”.

(Schafer 2011, 120), Assim, os ruídos produzidos pelos

visitantes, na sala de exposição, permaneceram criando

profundidade de um espaço-tempo e um ´em casa´.

10 A pós-produção do material coletado aconteceu em estúdios com tecnologiadigital para a criação de música profissional: o CME- Centro de MúsicaEletrônica - PPG Música/UFRGS (1ªedição) e o homestudio do produtor musicalVicente Rubino (samples, composição – ação live, mixagem).

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A peça sonora começou a se configurar quando os samples foram

jogados no controlador de som Lauchpad tablet – equipamento

sensorial: sonoro, visual, tátil, que permite acionar, justapor,

compor com samples através de teclas luminosas, e depois, tocados

ao vivo. Esta espécie de colagem sônica ao vivo teve a duração de

dezesseis minutos.

A manipulação dos samples realizada no Lauchpad faz

correspondência com a primeira manipulação – mecânica dos Bichos

e de Ping Poem, em São Paulo. Agora, o Bicho se dobra, desdobra,

bate, desliza, se precipita, tomba, entra e sai, misturado à voz

de Ping Poem, no acionar das teclas da media eletrônica.

Assim, temos: o bicho (mundo animal) > o Bicho-objeto original

(obra de arte) > o Bicho-réplica + voz > o Bicho voz eletrônica.

Não há imitação. Na peça sonora, convoca-se a voz e a ação do

Bicho réplica, o fantasma do Bicho-objeto original e de Ping

Poem. Toda vez que se identifica uma voz, um ‘grunhido’, o Bicho

retorna, se faz presente, marca suas distâncias e, mesmo que, na

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peça essas vozes apareçam de modo desordenado, assimétrico, se

reconhecem os pequenos ritornelos.

Na Radio arte web

A minha ação com voz no formato spoken word e cantada ao vivo, na

Mobile Radio – 30ª BSP, teve texto que faz referência aos sonhos

que tive com bichos tecnológicos, vento e música.

Apesar das temáticas serem afins à peça sonora Selva de Metal, só

ganhei confiança em misturá-los ao trabalho, depois que soube que

a obra Baba Antropofágica (......) de Lygia Clark se originou de um

sonho fantasmagórico (Brett 2005, 102).

Entendo a minha voz na peça sonora (ao vivo e, depois, na versão

gravada em estúdio) como o grito do feirante, pensado por Deleuze

and Guattari (Deleuze and Guattari 2007, 129) que marca presença,

“cruza-se no meio (...) – cada um marca um território onde não

pode se exercer a mesma atividade nem ecoar o mesmo grito”, mas

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também, entra e sai, criando uma ruptura no desenho, agora

territorializado pelos samples.

Um dos textos-sonho que foi sobreposto à peça sonora, diz

“Sonhei com um bicho tecnológico. Na verdade, acho que fui

catalogada por alienígenas. eu estava num espaço público -

uma galeria, um ateliê, sei lá... de repente um bicho - tipo

centopéia com corpo facetado e aquela casca de camarão, só

que em um branco perolado, picou meu dedo indicador da mão

esquerda. O ´ferrão´ era branco e ficou um tanto pra fora do

dedo. Na extremidade, se via uma espécie de ponta de dardo,

só que dobrada. Uma pessoa viu a cena e disse: - Meudeus, Vc

foi picada! O que fazia a coisa parecer pior do que eu

imaginava... Mas eu não sentia nada.

O bicho andou um pouco e parou. Mesmo paralisado, ele

vibrava... Eu peguei uma de suas extremidades e forcei.

Queria quebrar. O que eu achava que era a cabeça, não chegou

a sair, tirei só uma lasca. Ele permaneceu, ali, vibrando...

Já no meu dedo..., não queria mexer no ferrão e deixei...,

mas algo começou a se transformar: aquela base quebrada-

dobrada começou a se abrir como uma flor. No começo, era tudo

em tons claros, depois, as ´petalas´ foram mudando de padrão

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muito rápido... do floral pro xadrez, do xadrez pro listrado,

do listrado pro pontilhado, do pontilhado pro ziguezague, pro

ziguezague, pro ziguezzzzzzzzzzzzzzzz”. (VELASCO 2010)

Considerações Finais

O Bicho não é bicho (animal), é engenhoca mecânica, “estranha máquina de

construir espaço”, mas foi assim pensado por Lygia Clark, por se comportar como

tal. O Bicho original se move, cria e desfaz seu território incessantemente, se

realiza na relação íntima com o outro (o participador), mas ao que tudo indica,

não tem voz.

É sua réplica, seu duplo – criado para manter a ‘integridade’ da

obra original, que lhe dá todas as vozes. No entanto, a algazarra

sonora não foi pensada como estratégia para suprir a falta desta

dimensão na obra original, ela acontece pelo material e modo como

é feito. As vozes ordinárias resmungam, gritam, cantam, se

espalham pela sala de exposição e, desse modo, se impõem, criam

territórios, tanto quanto seu modo-transformer e a vontade de

formas.

Detectei desdobramentos possíveis nas obras destas duas grandes

artistas brasileiras. Para Bichos de Lygia Clark, a peça sonora

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Selva de Metal traz uma situação inédita, ao transcodificar os

sons encontrados na ação mecânica, para o meio digital e operá-

los com cortes, sobreposições, repetições. Trata-se, ainda, de

propor uma operação conceitual: TOCAR obras de arte.

Desse modo, há sempre a possibilidade de convocar a voz dos

Bichos e das Ping Poems, acionando-as de outros modos e em novas

versões.

______________________________________________________________

Observações

Entre a pesquisa e a apresentação de Selva de Metal na radioweb,

foram realizadas três viagens entre as cidades brasileiras: Porto

Alegre – capital do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil,

onde resido e São Paulo – maior cidade do país e da America

Latina. Foram usados cinco lugares distintos: Itaú Cultural (ação

e captação de som), residência dos artistas Lucia Koch e Rodrigo

Bivar (ação e captação de som) das peças Ping Poem de Lenora de

Barros, em São Paulo; Centro de Música Eletrônica – PPGMus/UFRGS

(pré-edição do material sonoro) e home-estudio do produtor

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musical Vicente Rubino (edição, composição/ação live, mixagem) em

Porto Alegre. Radio web arte Mobile Radio, na 30ªBienal de São

Paulo (apresentação de programa ao vivo), no Pavilhão Ciccillo

Matarazzo - Parque Ibirapuera, São Paulo.

Foram usados os seguintes equipamentos e programas: celular Nokia

– navigator (clipes de som, vídeo e imagens), gravador Zoom H4,

software de edição de som Nuendo 4 - Steinberg, controlador de

som Lauchpad – Ableton Live – Novation.

Foram feitas gravações com mídia celular (clipes de som e vídeo)

da minha manipulação dos Bichos e de outros visitantes na

exposição “Lygia Clark – uma retrospectiva” 11.

Referencias Bibliograficas

11 Disponivel no site Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=b_y3GyxOVkE

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BRETT, Guy. Brasil Experimental: Arte / Vida (proposições e

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___________. http://novo.itaucultural.org.br/programe-se/agenda/evento/?

id=60416 (acessado em 20/06/2013)

___________.http://www.lygiaclark.org.br/noticiaPt.asp (acessado em 30/06/2013)

_____________. http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1145183-obra-de-lygia-

clark-e-revista-em-grande-retrospectiva-paulistana.shtml (acessado em

30/06/2013)

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo: editora

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FERRAZ, Silvio. Livro das Sonoridades [notas dispersas sobre

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música para músicos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

ROLNIK, Suely. Lygia Clark e o híbrido arte/clínica. Revista

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http://www.caosmose.net/suelyrolnik/pdf/Artecli.pdf

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SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Editora UNESP,

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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac

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