Marco Feliciano e a senha do cartão: a web como espaço profano e conversação mediada por...

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Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013 1 Marco Feliciano e a senha do cartão: a web como espaço profano e conversação mediada por computador 1 Vítor de Lima CAMPANHA 2 RESUMO Buscamos, no presente estudo, demonstrar como a pregação do pastor e deputado Marco Feliciano que alcançou ares de polêmica por uma referência feita ao cartão de crédito de um fiel gera discussões e conflitos em conversações de usuários da internet ao deixar o espaço sagrado do templo (ELIADE, 1992) e, por meio da gravação da mesma e sua postagem no site youtube, apresentar-se em um espaço público e profano. É a partir desse trânsito que o conteúdo é ressignificado pelos sujeitos, de onde se derivam algumas das polêmicas que envolvem o nome do pastor. Unem-se a isso declarações de Feliciano em redes sociais, acerca das quais igualmente inflamadas discussões acabam por atravessar outras redes, sites e fóruns. Demonstra-se, assim, a multimodalidade das conversações no ciberespaço (RECUERO, 2012), consequência da interconexão de redes e seus interagentes, mostrando a web como um espaço de amplificação das falas e debates. PALAVRAS-CHAVE: Debate interreligioso; conversação mediada por computador; youtube; redes sociais. Introdução Atualmente figura de destaque tanto no meio religioso quanto no político, o pastor e deputado Marco Feliciano entrou em evidência devido a uma série de polêmicas envolvendo suas declarações e posicionamentos religiosos. Acusado de racismo e homofobia, o líder da denominação evangélica Templo do Avivamento ligada à Assembleia de Deus assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, gerando ainda mais discussão. 1 Trabalho apresentado na VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesical (Eclesiocom), realizada em São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013. 2 Graduado em Comunicação Social Universidade Federal de Juiz de Fora / MG

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Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013

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Marco Feliciano e a senha do cartão: a web como espaço profano e conversação

mediada por computador1

Vítor de Lima CAMPANHA 2

RESUMO

Buscamos, no presente estudo, demonstrar como a pregação do pastor e deputado

Marco Feliciano – que alcançou ares de polêmica por uma referência feita ao cartão de

crédito de um fiel – gera discussões e conflitos em conversações de usuários da internet

ao deixar o espaço sagrado do templo (ELIADE, 1992) e, por meio da gravação da

mesma e sua postagem no site youtube, apresentar-se em um espaço público e profano.

É a partir desse trânsito que o conteúdo é ressignificado pelos sujeitos, de onde se

derivam algumas das polêmicas que envolvem o nome do pastor. Unem-se a isso

declarações de Feliciano em redes sociais, acerca das quais igualmente inflamadas

discussões acabam por atravessar outras redes, sites e fóruns. Demonstra-se, assim, a

multimodalidade das conversações no ciberespaço (RECUERO, 2012), consequência da

interconexão de redes e seus interagentes, mostrando a web como um espaço de

amplificação das falas e debates.

PALAVRAS-CHAVE: Debate interreligioso; conversação mediada por computador;

youtube; redes sociais.

Introdução

Atualmente figura de destaque tanto no meio religioso quanto no político, o

pastor e deputado Marco Feliciano entrou em evidência devido a uma série de

polêmicas envolvendo suas declarações e posicionamentos religiosos. Acusado de

racismo e homofobia, o líder da denominação evangélica Templo do Avivamento –

ligada à Assembleia de Deus – assumiu a presidência da Comissão de Direitos

Humanos da Câmara dos Deputados, gerando ainda mais discussão.

1 Trabalho apresentado na VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesical (Eclesiocom), realizada em São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013. 2 Graduado em Comunicação Social Universidade Federal de Juiz de Fora / MG

Cátedra Unesco de Comunicação e Desenvolvimento/Universidade Metodista de São Paulo VIII Conferência Brasileira de Comunicação Eclesial, São Bernardo do Campo, SP, 22/8/2013

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No presente artigo, analisaremos como uma pregação de Marco Feliciano,

gravada em vídeo e publicada na internet, gera o conflito nas conversações mediadas

por computador a partir do momento em que deixa o espaço sagrado – o templo – e

aparece em um espaço profano – a web, onde está publicamente à mercê de sujeitos que

não pensam da mesma forma dos adeptos do culto do pastor. Utilizaremos, para elucidar

as implicações sagrado versus profano, o autor Mircea Eliade (1992).

Uma vez no ciberespaço, a pregação, na qual o pastor recolhia ofertas,

disponibiliza-se em um espaço que, além de profano, apresenta conversações

multimodais de usuários interconectados, onde as informações circulam de forma viral

por diferentes canais: redes sociais, fóruns, sites, etc. Assim, observando as

conversações mediadas por computador conforme Raquel Recuero (2012),

procuraremos expor como o conteúdo relacionado a Marco Feliciano atravessa o

ciberespaço e é percebido pelos atores envolvidos nas conversações. Há, assim, espaço

tanto para o vídeo postado no youtube com a pregação do pastor quanto para suas

declarações em redes sociais e seus desdobramentos e amplificações gerados pela

interconexão dos atores on-line.

1. Espaço Sagrado e Espaço Profano

Em seu livro O Sagrado e o Profano, Mircea Eliade (1992, p. 20) teoriza sobre o

antagonismo sagrado versus profano relacionando-os ao espaço. Para o autor, todo

espaço sagrado implica automaticamente em uma hierofania: a irrupção do sagrado. O

resultado é um território qualitativamente diferente do espaço comum, destacado do

meio cósmico.

Na experiência de não homogeneidade espacial, o espaço sagrado é tido como

experiência primordial religiosa, lugar a partir de onde o mundo é fundado:

Vemos, portanto, em que medida a descoberta – ou seja, a revelação – do espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso;

porque nada pode começar, nada se pode fazer sem uma orientação

prévia – e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É por

essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer-se no “Centro do Mundo” (idem, p.17).

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A experiência dessa busca pelo centro, segundo Eliade, é a obtenção de um

centro fixo que dê a orientação necessária em meio ao caos do espaço profano. O espaço

sagrado não é construção humana, mas uma reprodução da obra divina - os

colonizadores espanhóis e portugueses tomavam posse de novas terras “em nome de

Jesus Cristo”, erigindo a cruz e consagrando o território, ou seja, colocando ordem ao

caos, recriando o espaço como no início dos tempos o próprio Deus teria criado.

Se o que ainda não é Cosmos – território sacralizado – é Caos, e se é no espaço

sagrado que o mundo é criado, tudo o que não é cosmos, não é mundo. Resumindo, o

que não é ‘nosso mundo’ por ainda não ter sido recriado pela sacralidade, ainda

permanece amorfo: sem estrutura ou consistência, em suma, profano. Espaços de caos e

cosmos podem conviver próximos, e tal dualidade não é monopólio de sociedades

primitivas:

Escolhamos um exemplo ao alcance de todos: uma igreja, numa

cidade moderna. Para um crente, essa igreja faz parte de um espaço

diferente da rua onde ela se encontra. A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O

limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância

entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo

tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam,

onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo

sagrado. (idem, p. 19)

2. Templo: o centro do mundo

No caso em estudo, temos uma atividade que é transferida do interior para o

exterior do templo, ou seja, há um deslocamento do espaço sagrado para o profano. Mas

o que faz do templo tão especial? Certamente, para Eliade (p.25), como local de rotura

na homogeneidade, os santuários e templos, assim como cidades santas, estão no

“Centro do Mundo” – o ponto fixo de onde se orienta em meio ao caos e faz-se uma

ligação entre Terra e Céu (e chegando, com seus alicerces, às regiões inferiores). A

hipótese é exemplificada pelo simbolismo encontrado nos templos de diversas religiões:

A capital do soberano chinês perfeito encontra-se no Centro do

Mundo: aí, no dia do solstício do verão, ao meio dia, o gnomo não

deve ter sombras. É surpreendente encontrar o mesmo simbolismo

aplicado ao Templo de Jerusalém: o rochedo sobre o qual se erguia o templo era o “umbigo da Terra”. O peregrino islandês Nicolau de

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Thvera, que visitara Jerusalém no século XIII, escreveu acerca do

Santo Sepulcro: “É ali o meio do Mundo; ali, no dia do solstício do

verão, a luz do Sol cai perpendicular do Céu” (idem, p.26).

Ademais, o templo extrapola a sacralidade espacial para tornar-se casa dos

deuses, ressantificando o mundo continuamente. Sua santidade está abrigada da

corrupção do espaço profano por ser considerado projetado pelos próprios deuses.

Assim, mais uma vez o homem recria o espaço divino – mas, como um ‘veículo’,

inspirado pela graça e reproduzindo o ideal celeste3 (p.34).

Ao se transferir a fala do pastor Marco Feliciano que ocorria no templo,

portanto, em um espaço sagrado, para um espaço público e consequentemente não

sagrado – profano – temos uma mudança no sentido da pregação. Ela já não diz respeito

apenas ao homem religioso que se encontrava em seu “centro do mundo”, seu templo: o

que se passara até então apenas no Cosmos, ficou à mercê do Caos. Assim, até o próprio

templo passa por ressignificações quando, no caso, a pregação muda de contexto.

Como podemos ver na Figura 1, que mostra a discussão entre usuários do

youtube no local destinado aos comentários sobre o vídeo, é emblemático o juízo feito

pelo comentarista sobre o templo em resposta a um interagente que defende as ações de

Marco Feliciano na situação do vídeo.

3 Eliade prossegue exemplificando a inspiração arquitetônica divina, como nos sonhos do rei babilônio Gudéia com a

deusa Nibada, no qual essa lhe revela o projeto do templo; assim também Jeová teria revelado a Moisés o modo de construção do tabernáculo e de seus utensílios. Já a basílica cristã é concebida como imitação da Jerusalém celeste, criada por Deus juntamente com o paraíso de onde Adão seria posteriormente expulso (p.35).

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Figura 1 – Discussão entre usuários do Youtube – 20/06/12

A palavra antro, que significa “um lugar de perdição e vícios” (FERREIRA,

1987), é exatamente o oposto do que o templo representa para o homem religioso. Esse

é um exemplo dos embates gerados em consequência da transferência da pregação de

um espaço sagrado para um espaço profano. A partir daqui, observaremos os debates

nos comentários do vídeo no Youtube como conversas mediadas por computador e suas

implicações teóricas.

3. Comunicação mediada pelo computador e representação identitária

Ao estudar a comunicação mediada pelo computador, Raquel Recuero (2012)

explicita a evolução de ferramentas computacionais em espaços conversacionais onde o

suporte tecnológico é subvertido pela apropriação dos usuários. A conversação

amplifica e reconstrói o ambiente mediado, que como tal, possui características e

limitações específicas.

Como a comunicação é mediada e, muitas vezes, os interagentes não se

conhecem pessoalmente, é comum que eles promovam suas representações. A

“presença é construída através de atos performáticos e identitários, tais como a

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construção de representações do eu” (RECUERO, 2012). No caso das redes sociais ou

blogs, as representações são identificadas mais facilmente, pois tais espaços dispõem de

ambientes personalizáveis onde é possível se colocar fotos, ressaltar gostos e opiniões,

entre outros. É nos perfis de redes sociais que o usuário seleciona o que quer mostrar de

si, podendo administrar a impressão dos outros sujeitos sobre ele, em uma construção

identitária (GOFFMAN, 2009 apud SÁ e POLIVANOV, 2012).

No estudo em questão, tratamos de comentários em um vídeo no Youtube, onde

não existem tais espaços que funcionam exclusivamente para a representação da

identidade. Assim, a manifestação fica a cargo dos atos performáticos durante os

debates.

Figura 2 – Discussão sobre o dízimo (acesso em 08/07/2012)

Figura 3 – Ateu x Crente (acesso em 08/07/13)

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Como vemos nas figuras acima, é o posicionamento de cada interagente na

discussão que atua como forma de apresentação dos sujeitos no ciberespaço. No

primeiro caso, a discussão gira em torno dos ensinamentos bíblicos, e os comentadores

demarcam suas posições teológicas demonstrando que, apesar de crentes, possuem

ideias diferentes. Na Figura 3, fica clara a representação da identidade religiosa, quando

o interagente se define como ateu – assim como o usuário que o responde deixa claro o

seu posicionamento teísta.

É importante ressaltar que tal espaço de conversação – o dos comentários do

Youtube – é público, ou seja, as interações podem ser vistas por qualquer um que tenha

acesso ao site. Dessa forma, o falante não tem ideia exata de sua audiência nem da

percepção que estes terão sobre sua mensagem4. Argumentos e pontos de vista

funcionam também como uma forma de exposição, por vezes seletiva, da personalidade,

bem como a construção e administração da impressão causada5.

Tais impressões criadas e legitimadas remetem à “face”, termo que se refere a

um conjunto de valores e atributos positivos construídos pelo indivíduo durante as

interações. É em Brown e Levinson (1987) que temos, a partir do trabalho de

Goffman, uma construção mais ampla a respeito da noção de face.

Para os autores há dois tipos de face, a positiva e a negativa. [...] vê-se a face positiva como o desejo, a aceitação de uma imagem

positivamente construída do ator em questão que é imposta aos demais

na interação e para qual este ator busca aceitação. A face negativa está relacionada ao território, ao espaço pessoal, à liberdade de expressão e

à liberdade de imposição (RECUERO, 2012, p.88).

No momento em que a face é ameaçada, temos o conflito na interação. No caso

dos debates presentes nos comentários sobre o vídeo estudado, o que poderia evitar

tamanho grau de conflito?

4 A autora compara os espaços públicos e privados de conversação, salientando que essas fronteiras nem sempre são claras, podendo ser simultâneas. Tudo depende das plataformas utilizadas. (RECUERO, 2012, p. 56-58). 5 Situação similar foi encontrada em estudo anterior (CAMPANHA, 2012), quando analisamos os debates inter-religiosos presentes na fan page do Facebook da personagem fictícia Irmã Zuleide. Falas dissonantes também se demonstraram como expressões individuais e formas de apresentação dos sujeitos na rede.

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4. Polidez no Youtube?

Segundo Kerbrat-Oercchioni (2006, apud RECUERO, 2012) a polidez é o

elemento que tem como objetivo preservar a cooperação nas interações, evitando

conflitos e ameaças à face. Trata-se de normas sociais, estratégias apropriadas para

organizar e coordenar as falas num mínimo de cordialidade. Em conversações online,

onde as relações são mediadas pela plataforma tecnológica, as intenções nem sempre

são claras. Sem o contato físico, a percepção pode ser prejudicada. Um interagente

pode, por exemplo, não compreender que o parceiro na interação fez uma piada e,

levando a situação a sério, ofender-se, sentindo uma ameaça à face.

Por outro lado, o contato apenas virtual pode estimular o abandono da polidez. A

possibilidade é de que o conflito seja tão comum em conversações mediadas por

computador devido a uma sensação de anonimato e impunidade (RECUERO, 2012, p.

91). Quando a polidez é totalmente derrubada e todos os limites rompidos, tem-se a

discussão inflamada comumente chamada flamewar.

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Figura 4 – Flamewar – 20/06/12

É importante ressaltar que a falta do contato pessoal gera fenômenos de

interação típicos das discussões em redes sociais, fóruns e espaços destinados a

comentários. Um deles é o comportamento troll. Trata-se de um interagente que nem

sempre tem uma posição determinada no debate, mas se diverte postando comentários

que causem desavenças e inflamem ainda mais a discussão. Outro conhecido

comportamento é do hater, que como o próprio termo sugere, odeia algo. Nesse caso,

parte-se do pressuposto que ele odeie tal coisa por amar outra, e que os comentários,

geralmente acintosos, são como uma defesa daquilo que ele ama6.

6 Os termos troll e hater são mais amplamente explicitados por Monteiro e Amaral (2012, p. 9) ao discutirem os embates e performances de gosto, apuradas nas redes sociais, de fãs de diferentes estilos musicais.

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Ao transitar do espaço sagrado do templo ao espaço profano do Youtube, local

não só frequentando pelos seguidores de Marco Feliciano, a pregação do pastor ganha

ares de polêmica. O que é comum ou até motivo de bênçãos para aqueles que estão no

templo, é algo absurdo para os que não compartilham do mesmo ideal religioso. O

trânsito entre os espaços acaba, inevitavelmente, colocando todos em contato e gerando

o conflito.

5. Polêmicas e conexões

Se da perspectiva de Eliade (1992) podemos considerar que a pregação de Marco

Feliciano foi profanada ao sair de seu espaço sagrado e penetrar o espaço profano do

Youtube, é importante destacar a multimodalidade do espaço de rede. No momento em

que o vídeo é colocado na web, há a possibilidade de que ele seja compartilhado com

vários usuários e por vários meios, sendo as redes sociais grandes agentes replicadores.

O vídeo em questão, apesar de ser usado em nossa análise como principal

exemplo de migração entre espaço sagrado e profano e suas consequências, não foi a

única publicação na web geradora de polêmicas relacionadas ao pastor e deputado.

Publicações de Marco Feliciano no Twitter consideradas homofóbicas e racistas

também trouxeram à tona muitas discussões, acirradas quando o mesmo tomou a frente

da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. As próprias

redes foram palco de discussões e “protestos” contra o pastor.

Conforme Raquel Recuero,

essas conversações diferenciam-se das demais conversações no espaço digital porque, constituídas dentro das redes sociais online, são

capazes de “navegar” pelas conexões dessas redes, espalhando-se por

outros grupos sociais e por outros espaços. [...] São conversações

públicas que migram dentro de diversas redes e que, deste modo, interferem nas redes sociais que utilizam as ferramentas. Assim, uma

conversação em rede nasce de conversações entre pequenos grupos

que vão sendo amplificadas pelas conexões dos atores, adquirindo novos contornos e, por vezes, novos contextos (RECUERO, 2012, p.

123).

Após ser considerado por alguns como homofóbico e/ou racista, o nome de

Marco Feliciano é com frequência mencionado no Twitter em meio a críticas, piadas e

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ofensas. Da mesma forma, as fotos do pastor postadas por ele no Instagram passaram a

ser “motivo de chacota”, segundo noticiado em sites de notícias.

SÃO PAULO – Uma foto publicada no Instagram do pastor e

deputado Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, virou motivo de chacota nas redes

sociais nesta segunda-feira. Datada de 23 semanas atrás, a imagem

mostra o pastor provavelmente alisando os cabelos. No título da imagem, a frase: “Momento descontração...Raridade!!!”, seguida de

mais de 650 comentários - até o início desta noite-, a maioria

zombando do parlamentar e chamando Feliciano de "bicha", "diva",

"bee" e "mona", entre outros. (FOTO..., 2013, online.)

Na sequência dos acontecimentos, o assédio ao perfil de Feliciano no Instagram

gerou o cancelamento da conta pelo pastor. O fato seria confirmado por ele via Twitter,

no qual pediu desculpas pelo cancelamento alegando a falta de limites e a “crueldade

das pessoas nos recados” (MARCO..., 2013, online).

Em breve resumo, temos falas e postagens que geram conversações, conflitos e

polêmicas que extrapolam as redes sociais e ganham repercussão nacionalmente.

Concomitantemente, elas prosseguem sendo discutidas dentro das redes. É nelas que

Feliciano é atacado, e avisa da saída de uma rede social em outra. É, portanto, visível a

amplificação dada pela conexão dos atores, recontextualizações, ressignificações e

trânsito do conteúdo e das conversações entre vários sites e redes sociais.

Considerações finais

Imaginemos que o vídeo em questão não tivesse vindo a público pelo Youtube.

Nesse caso, o conteúdo da pregação que gerou polêmica permaneceria apenas no espaço

sagrado do templo, onde ele tem um sentido para os interagentes presentes, no caso, os

fieis. É a partir do momento em que a pregação é trazida, por meio do vídeo, para um

espaço público e consequentemente profano, onde estaria sujeito à visão e crítica de

vozes discordantes, que acontecem as discussões, a flamewar. Da mesma forma ocorreu

no cenário off-line, sendo a gravação um estopim de discordâncias e polêmicas em

âmbito nacional.

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As discussões geradas por Marco Feliciano em seus diferentes momentos na

web, seja por conteúdo em vídeo ou por declarações pessoais nas redes sociais,

demonstram a multimodalidade das conversações em rede e a interconexão existentes

no ciberespaço. São essas ligações que apresentam a web como um espaço “sem

fronteiras”, onde a interação é, de certa forma, livre. Espaços sagrados, que funcionam

como centros de mundo para o homem religioso, são o oposto: um local de unidade e

concordância entre os interagentes, exemplificado pelos fieis presentes na pregação que

vemos no vídeo do Youtube.

No ciberespaço, os diferentes atores se encontram: evangélicos que defendem

Marco Feliciano e outros que o criticam, pessoas de outras religiões, ateus, trolls,

haters, todos mantendo construções identitárias por meio das conversações mediadas

pelo computador. Mais que um espaço profano, o ciberespaço, apenas virtual, é onde

todos os espaços podem se encontrar – graças a essa presença de todos os atores. Se,

assim, o conflito torna-se inevitável, caberia aos interagentes tirar proveito disso,

alçando os debates a uma forma mais produtiva. Porém, com um alcance tão amplo e

uma presença de personagens tão pulverizada e fragmentada, este pode ser um caminho

tortuoso.

Apesar de considerarmos a web como espaço basicamente profano, baseando-se

nos argumentos de Eliade, não podemos nos eximir de pesquisar a questão com mais

profundidade. Se o espaço digital é, em sua essência, múltiplo e interconectado, ele

deve conter espaços de hierofania, mesmo que tais fronteiras, como já explicitado, não

sejam tão bem demarcadas – o que pode ser discutido em novos trabalhos que surjam a

partir dessa reflexão.

REFERÊNCIAS

AMARAL, Adriana; MONTEIRO, Camila. “ESSES ROQUERO NÃO CURTE”: performance de gosto e fãs de música no Unidos Contra o Rock do Facebook. XXI Encontro Anual da

Compós, Juiz de Fora, 2012.

CAMPANHA, Vítor L. A página de Irmã Zuleide no Facebook: considerações sobre o cenário

religioso brasileiro a partir de um fake. I Jornada de Mídias e Religião, São Leopoldo, 2012.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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FERREIRA, A. B. H. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. Rio de Janeiro:

Editora Nacional, 1987.

FOTO de Marco Feliciano no Instagram vira motivo de chacota nas redes sociais. O Globo,

online. 18 mar. 2013. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/pais/foto-de-marco-feliciano-

no-instagram-vira-motivo-de-chacota-nas-redes-sociais-7873992>. Acesso em: 10 jul. 2013.

MARCO Feliciano apaga fotos do Instagram e desabafa no Twitter. Portal R7, online. 30 mar.

2013. Disponível em: <http://noticias.r7.com/brasil/marco-feliciano-apaga-fotos-do-instagram-

e-desabafa-no-twitter-30032013>. Acesso em: 10 jul. 2013.

PASTOR MARCO FELICIANO homofóbico e racista pedindo dinheiro e senha...

[Vídeo postado no Youtube]. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=zNO6VCX6KRE> Acesso em 20 jun. 2013.

RECUERO, Raquel. A conversação em rede: Comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2012.

SÁ, Simone Pereira de; POLIVANOV, Beatriz Brandão. Materialidades da comunicação e

presentificação do sujeito em sites de redes sociais. XXI Encontro Anual da Compós, Juiz de Fora, 2012.