LITERATURA COMPARADA: O Fantástico em Murilo Rubião e Edgar Allan Poe.(Texto: Monografia...

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9 Apresentação Este trabalho tem como propósito apresentar o conceito e alguns aspectos da literatura fantástica dos séculos XIX e XX, fundamentado nos estudos desenvolvidos por Tzevetan Todorov, Sartre e Freud. Dentro desse universo literário, escolhemos o “Conto Fantástico” para desenvolvermos uma pesquisa sobre as principais características, semelhanças e diferenças específicas do gênero. Dado o fato de seu pioneirismo do estilo no Brasil, selecionamos a obra “O Convidado”, de Murilo Rubião, para ilustrar essa apresentação. Representando o Fantástico Tradicional, escolhemos o conto “O Coração Delator” de Edgar Allan Poe - a narrativa de “Horror” – no séc. XIX. O Fantástico Contemporâneo estará representado no conto “O Convidado” de Murilo Rubião a narrativa insólita, de “estranhamento” do séc. XX. Após a explanação sobre o Fantástico na literatura e suas variações segundo Todorov, serão pontuados elementos fantásticos na obra “O Convidado”. Posteriormente, serão analisadas separadamente as personagens e a construção do enredo nos contos selecionados “O Convidado”, de Rubião, e “O Coração Delator”, de Poe. Em seguida, será tecida uma comparação, diferenciando os aspectos fantásticos presentes nos dois contos.

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Apresentação

Este trabalho tem como propósito apresentar o conceito e alguns aspectos da literatura

fantástica dos séculos XIX e XX, fundamentado nos estudos desenvolvidos por

Tzevetan Todorov, Sartre e Freud. Dentro desse universo literário, escolhemos o “Conto

Fantástico” para desenvolvermos uma pesquisa sobre as principais características,

semelhanças e diferenças específicas do gênero.

Dado o fato de seu pioneirismo do estilo no Brasil, selecionamos a obra “O

Convidado”, de Murilo Rubião, para ilustrar essa apresentação. Representando o

Fantástico Tradicional, escolhemos o conto “O Coração Delator” de Edgar Allan Poe -

a narrativa de “Horror” – no séc. XIX. O Fantástico Contemporâneo estará representado

no conto “O Convidado” de Murilo Rubião – a narrativa insólita, de “estranhamento”

do séc. XX.

Após a explanação sobre o Fantástico na literatura e suas variações segundo Todorov,

serão pontuados elementos fantásticos na obra “O Convidado”. Posteriormente, serão

analisadas separadamente as personagens e a construção do enredo nos contos

selecionados “O Convidado”, de Rubião, e “O Coração Delator”, de Poe. Em seguida,

será tecida uma comparação, diferenciando os aspectos fantásticos presentes nos dois

contos.

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1. LITERATURA FANTÁSTICA

1.1. O Termo Fantástico

O termo fantástico, no domínio público, pode significar:

“a. aquilo que só existe na imaginação, na fantasia;

b. caráter caprichoso, extravagante;

c. algo fora do comum; extraordinário, prodigioso;

d. algo que não tem nenhuma veracidade; falso, inventado”.

(Houaiss, Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa, 2001).

1.2. A Literatura Fantástica

Nos limites dos Estudos Literários, apesar de manter as mesmas acepções da definição

do domínio público, o termo fantástico não pode ser tomado como definidor do gênero

literário, pela necessidade de uma maior avaliação científico-metodológica. Entretanto,

não deve ser elemento totalmente descartável para uma análise teórica, uma vez que foi

de grande importância para os teóricos em suas experiências, a fim de que pudessem

configurar o fantástico enquanto gênero literário.

A Literatura Fantástica já foi privilegiada com algumas tentativas de definição, dentre

elas estudos realizados por H.P. Lovercraft e Peter Penzoldt, mas somente na década de

70, através da obra Introdução à Literatura Fantástica, Todorov define o fantástico

como um gênero vizinho de dois outros: o estranho e o maravilhoso.

Para H. P. Lovercraft, o critério do fantástico não se situa na obra, mas na experiência

do leitor e esta experiência deve ser o medo. Nesse sentido, Peter Penzoldt completa:

”Com exceção do conto de fadas, todas as histórias sobrenaturais são histórias de medo, que nos obrigam

a perguntar se o que se crê ser pura imaginação não é, no final das contas, realidade”. (Todorov,1992, p.

40 –41).

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A partir dessas teorias, surgem Todorov e Sartre com teorias mais consistentes sobre o

”Fantástico Tradicional” e o ”Fantástico Contemporâneo” respectivamente. E ainda a

teoria do estranhamento postulada por Freud.

1.3. Todorov e o Fantástico Tradicional do séc. XIX

Em sua obra Introdução à Literatura Fantástica (1992, p. 49), Todorov classifica o

fantástico como:

a) Fantástico Puro

É aquele que se encontra entre o maravilhoso e o estranho, sendo que a

hesitação que o caracteriza situa-se sempre no presente.

b) Fantástico Maravilhoso

Corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir,

portanto, fica sempre a expectativa de ação no futuro.

c) Fantástico Estranho

O inexplicável é reduzido a fatos conhecidos, a uma experiência prévia,

relacionado assim ao passado.

Essas classificações correspondem às obras que mantêm por muito tempo a hesitação

fantástica, porém terminam no maravilhoso ou no estranho.

O diagrama abaixo poderá oferecer uma visão melhor dessa subdivisão.

F A N T Á S T I C O

Estranho

puro

Fantástico

estranho

Fantástico

maravilhoso

Maravilhoso

puro

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O fantástico puro está representado pela linha do meio, que separa o fantástico-estranho

do fantástico-maravilhoso. Esta linha corresponde perfeitamente à natureza do

fantástico entre dois mundos vizinhos.

A hesitação é a característica principal do fantástico e tem a função de provocar no

leitor uma sensação de horror ou de estranhamento.

O elemento fantástico transitará livremente nas narrativas em prosa, seja novela,

romance ou conto. Todavia, para isso essas narrativas devem apresentar caráter de

ficção.

Já na poesia e na alegoria, o fantástico não tem trânsito livre, pois, segundo Todorov, “o

fantástico implica não apenas a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor

e no herói; mas também uma maneira de ler, que se pode por ora definir negativamente: não deve ser nem

´poética´ nem ´alegórica´ ”. (Todorov,1992; p. 38).

No fantástico tradicional o tema predominante é o da “morte” e do “sobrenatural”, cujas

narrativas apresentam personagens psicopatas de condutas extremamente frias diante da

morte (O Coração Delator), ou personagens atormentadas por imagens sobrenaturais (O

Retrato Ovalado). Enfim, o fantástico tradicional transita entre o mundo real e o mundo

sobrenatural, o que não ocorre no fantástico contemporâneo.

Com o advento da psicanálise, esses possíveis desvios de personalidade, próprios da

literatura fantástica, começaram a ser esclarecidos cientificamente. Conseqüentemente e

por motivos óbvios, o elemento fantástico passou a causar menos hesitação no leitor.

Segundo Todorov, na passagem do séc. XIX para o XX, a literatura fantástica sofreu

uma radical mudança de rota, sendo necessária uma redefinição para o gênero, ou seja,

definir essa nova direção do fantástico como Literatura Fantástica Contemporânea.

Como representantes da Literatura Fantástica Tradicional, podemos citar: Hoffmann,

Nerval, L’Isle-Adam, Mérimée, Maupassant, Poe, Gogol, Henry James e outros.

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1.4. Sartre e o Fantástico Contemporâneo

Levando em conta apenas a arte e a literatura modernas, Sartre sugere que a

definição dada ao fantástico clássico, perfeita para caracterizar o fantástico do século

XIX, não mais condiz com boa parte da literatura e da arte do mais fantástico dos

séculos, o séc. XX. Para Sartre a ambigüidade e a hesitação já não têm caráter tão

relevante para o fantástico contemporâneo como teve no século anterior. A partir de

agora, o que realmente pesa é a representação social do mundo: o que deve ser

contrariada é a normalidade e não as leis naturais, ou seja, a postura do homem diante

de situações que beiram o absurdo, sem que haja uma reação ou interferência,

conduzindo-o para uma acomodação e aceitação hipócritas. Nessa nova concepção de

fantástico apenas o ser humano e as criaturas naturais devem ser focalizados. Os

fenômenos sobrenaturais não mais devem aparecer, pois já foram devidamente

esclarecidos pela ciência psicanalítica. O homem passa a ser coisificado, tem caráter de

homem-marionete, homem-fantoche, cuja existência se assemelha a uma prisão sem

paredes ou grades. Esse é o perfil do protagonista do fantástico contemporâneo que

permeia um Estado totalitário, cuja burocracia reduz as relações humanas impondo ao

ser humano uma simples troca de mensagens, cujo sentido principal já se perdeu. O

absurdo moderno torna-se muito mais inquietante do que a hesitação e a dúvida. No

fantástico contemporâneo é justamente a existência rotineira que se volta contra a

protagonista. Kafka é o grande nome ligado a esse gênero em obras como: O Processo

e O Castelo. Consolidando o gênero fantástico contemporâneo, surgem na literatura

hispano-americana nomes como Gabriel García Marques, Jorge Luis Borges, Julio

Cortázar e Julio Ramón Ribeiro.

No Brasil o gênero fantástico contemporâneo foi introduzido por Murilo Rubião,

considerado pai espiritual de autores como José Jorge Veiga e Moacyr Scliar. Embora

no Brasil o fantástico tenha tido uma maior repercussão a partir do século XX, podemos

encontrar elementos fantásticos em obras de Álvares de Azevedo e Machado de Assis já

no romantismo e no realismo.

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1.5. Freud

Para Freud, os temas recorrentes da literatura fantástica do final do século XIX perdem

sua importância, em virtude da chegada da psicanálise. O desejo sexual, cuja

manifestação era combatida pela Inquisição, encontra na ficção terreno fértil para se

expressar, travestindo-se de vampiro, demônio e assombração. Essa era uma forma de

exorcizar os desejos sexuais e muitos outros sentimentos do subconsciente humano. A

literatura fantástica foi o grande instrumento de canalização desses temores até a

chegada da psicanálise, que confere explicações científicas a temas como necrofilia e

incesto. A partir de então, esses temas já podem ser tratados livremente, não sendo mais

necessária a intervenção da bruxaria e do sobrenatural. Assim sendo, a literatura

fantástica toma novos rumos a partir do séc. XX, consolidando o fantástico

contemporâneo apontado por Sartre.

1.6. Rubião: Vida e Obra

Nascido em Nossa Senhora do Carmo do Rio Verde, hoje Carmo de Minas, em 1º de

junho de 1916, Murilo Eugênio Rubião era filho do filólogo e poeta Eugênio Rubião e

de Maria Antonieta Ferreira Rubião. Foi para Belo Horizonte com a família aos 7 anos e

ainda na adolescência começou a ler Machado de Assis, que considerava um dos

grandes escritores brasileiros. Entrou para a Faculdade de Direito da Universidade de

Minas Gerais em 1938, quando conseguiu emprego numa livraria, onde conheceu e se

tornou amigo do futuro presidente Juscelino Kubitschek.

No ano seguinte, sentindo a vocação pelas letras, conseguiu emprego na Folha de

Minas, onde tomou contato com intelectuais como o escritor Marques Rebelo. Após se

formar em Direito, em 1943, começou a organizar os contos de O Ex-Mágico, que vinha

escrevendo havia anos. Lançado em 1947, pela Editora Universal, do Rio de Janeiro, o

livro foi saudado por críticos como Otto Maria Carpeaux e Oscar Mendes. Em 1953, foi

a vez de Murilo Rubião publicar A Estrela Vermelha. Com os dois livros, se tornaria o

precursor do realismo mágico na América Latina, que depois faria famosos autores

como Gabriel García Marques, Juan Rulfo e Julio Cortázar.

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Murilo Rubião deixou Minas Gerais somente por duas vezes: a primeira, em 1949,

quando foi para o Rio como chefe da Seção de Documentação do Vale do São

Francisco. Voltou a Belo Horizonte em 1951, para se tornar chefe de gabinete do então

governador JK, do qual comandaria a campanha para a Presidência da República.

Em 1956, a convite do presidente, seguiu para a Espanha, onde até 1960 foi adido

cultural na embaixada brasileira. Depois voltou de vez para Minas e foi trabalhar na

Imprensa Oficial, onde, em 1966, criou o Suplemento Literário, no qual surgiu a

conhecida geração da qual participaram, escritores como Luís Vilela, Duílio Gomes,

Humberto Werneck, Luiz Gonzaga Vieira, Adão Ventura e Jaime Prado Gouvêa.

a) Reconhecimento

Embora respeitado nos meios literários desde sua estréia, com O Ex-Mágico, Murilo

Rubião só se tornaria conhecido em todo o país a partir de 1975, quando o editor Jiro

Takahashi, então na Editora Ática, lançou a célebre série “Autores Brasileiros”. Rubião

explodiu com O Pirotécnico Zacarias, que vendeu cerca de 100 mil exemplares, foi

indicado para vários vestibulares, virou tema de teses na academia e ajudou a chamar

ainda mais a atenção da crítica para a importância de sua obra. “Apostei na série e fico

feliz por ter ajudado a tornar a obra de Murilo Rubião mais conhecida e respeitada”, diz

Jiro Takahashi.

Homem circunspecto, sempre de terno preto e com seus inseparáveis óculos de grossas

lentes, Murilo Rubião lançaria A Estrela Vermelha, em 1953, pela Editora Hipocampo;

Os Dragões e Outros Contos, em 1965; O Convidado, em 1974, pelas Edições Quiron,

com prefácio de Jorge Schwartz, até ser publicado pela Ática. Seus livros saíram em

países como a Alemanha, República Tcheca e Estados Unidos, onde o professor Curtis

Pulsipher, da Universidade de Illinois, publicou tese de doutorado sobre sua obra.

Entre as várias publicações que existem sobre a obra e o pensamento de Rubião estão os

livros Mário e O Pirotécnico Aprendiz, da editora UFMG, coordenado por Marcos

Antônio de Moraes, que reúne a correspondência entre Rubião e Mário de Andrade de

1939 e 1944; e A Trama do Arquivo, da mesma editora. Organizado pelo professor

Wander Melo Miranda, esse trabalho mostra curiosidades do arquivo pessoal do

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contista, que, após sua morte, no dia 16 de setembro de 1991, foi doado pela família ao

Centro de Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG.

Para Eneida Maria de Souza, professora de literatura da UFMG e estudiosa da obra de

Rubião, ele é um dos grandes escritores da chamada literatura fantástica na América

Latina, que teve seu auge no boom dos anos 1970. “Ele se distingue do conceito do

realismo maravilhoso, mais voltado para uma idealização do continente como lugar

mágico, exótico e sensual”, diz a professora. Para ela, a poética de Murilo Rubião vai

além desse encantamento celebrado pelos vizinhos para alcançar uma dimensão mais

universalista e kafkiana. Autora de textos sobre a obra do escritor, com o qual conviveu

em Belo Horizonte, Eneida de Souza ressalta como característica importante na obra de

Rubião a precisão da linguagem, o cuidado com a revisão dos textos e o estilo

minimalista, que, na visão da professora, o distingue do barroquismo do realismo

mágico hispano-americano. “Não podemos deixar de assinalar o papel de Rubião como

intelectual e homem público, que exerceu funções de destaque, como adido cultural do

Brasil na Espanha e criador do Suplemento Literário”, lembra Eneida de Souza.

b) Obras de Murilo Rubião

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1.7. O Convidado – Características Gerais

A obra O Convidado reúne 9 dos 33 contos do autor, dentre eles o conto de mesmo

nome, que levou 26 anos para ser escrito e publicado. Esse conto em especial, terá uma

análise mais detalhada ao longo desse trabalho. Por ora, nos ocuparemos de uma

explanação geral da obra como um todo, apontando algumas características ora

psicológicas, ora sociais, ora lingüísticas.

“O traço mais relevante na narrativa de Rubião é o contraste da coerência de um discurso narrativo,

minucioso e impecável com a incoerência da matéria narrada”. O discurso de tramas bem

esquematizadas em cada uma de suas histórias apresenta acontecimentos tão absurdos

quanto insólitos, levando o leitor a aceitar essas situações como inevitáveis e naturais.

Essa coerência do absurdo e a incoerência do real impõem às personagens situações

irrecusáveis, confinando-as em suas próprias órbitas.

Todos os contos nela apresentados constituem uma atmosfera de familiaridade com o

absurdo e uma normalidade com o estranho, onde o fantástico não se apresenta como

uma duplicação imaginária do real ou projeção de outra realidade não menos comum. O

estranho aí se limita ao homem porque o puro fato de ser humano já é estranho. Vale aí

a ambigüidade: “ser humano”, tanto no sentido biológico quanto no sentido fraternal.

Além dessa característica do estranhamento (absurdo, insólito, passividade humana

diante das situações anormais), há também a pontual presença de epígrafes bíblicas no

início de cada um de seus contos, fato que denota outra contradição, pois o autor é

notadamente um agnóstico. Há uma associação de agnosticismo com aquele que crê em

uma força maior, mas não se detém a uma religião específica; apenas respeita a mágica

que governa o universo.

Como ele próprio declara em entrevista dada à J.ª de Granville Ponce e Elizabeth Lowe

(in Literatura Comentada – 1982), “...a religião católica não me convenceu. O catolicismo está muito

mais ligado à morte do que à vida, e transforma mesmo a vida em morte. Daí eu ter partido, não para a

eternidade que me ensinaram, mas para a eternidade já na própria vida”.

Essa opção do autor pela eternidade já na própria vida, é externada em Petúnia em que

as meninas que são crianças e flor ao mesmo tempo, numa ambigüidade de vida e

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morte, são constantemente desenterradas para realizarem bailados no jardim à noite,

mantendo dessa forma uma eternidade em vida.

A eternidade pode ser interpretada como uma busca pela verdade e pela perfeição, que

passa da ficção para a realidade, quando o autor afirma em suas entrevistas: ”Reelaboro a

minha linguagem até a exaustão numa busca desesperada da clareza”. Isso é caracterizado no trajeto

de suas personagens, sempre perdidas num mundo repleto de problemas e sem respostas

a questões fundamentais do homem.

Uma dessas questões é a dificuldade de relacionamento que se apresenta no conto Aglaia

e se repete em A Fila.

No primeiro, a protagonista é vítima de uma autofecundação que, mesmo após

submeter-se a uma esterilização, produz ninhadas de filhos e isso põe fim à sua vida

conjugal. Além disso, havia em pacto nupcial e um compromisso de não terem filhos,

entre outras exigências. Nesse contexto, para piorar a situação, a última filha do casal

nasce com olhos de vidro. O fim do relacionamento torna-se inevitável e Colebra (um

misto de cobra e lebre) foge deixando mulher e filhos.

No segundo, A Fila, o próprio nome do personagem anuncia o que vem pela frente:

Pererico, na linguagem popular, significa luta, briga cheia de peripécias e é exatamente

o que acontece com a personagem ao enfrentar uma fila para chegar à presença do

gerente de uma fábrica da cidade. Quando finalmente consegue chegar até o gabinete do

gerente, recebe a notícia de que o mesmo está morto.

Nesse episódio, além de se deparar com a dificuldade de relacionamento com o porteiro,

na busca de uma resolução para o seu problema (entrevista sobre assunto confidencial),

Pererico encontra obstáculo também no plano afetivo, onde a discriminação social

impede sua relação com a prostituta Galimene. Temos aí dois exemplos de dificuldade

no relacionamento humano: a burocracia e a discriminação social.

A temática do relacionamento conturbado é recorrente em toda a obra, abordando

questões como: violência sexual atribuída a Botão-de-Rosa; os encantos de Pererico

pela prostituta em A Fila; a libidinosidade entre Aglaia e Colebra, e o lodaçal das

recordações de incesto de Galateu. Isso revela a inquietação do homem diante da sua

impotência de reagir aos problemas criados por ele próprio e, como conseqüência

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natural, a culpa toma conta de sua consciência, punindo-o com o medo, o alheamento e

a frustração; situações que as personagens aceitam pacientemente.

O absurdo representado pela fecundação coletiva e pelo tráfico de drogas provoca na

sociedade uma rejeição ao hippie Botão-de-Rosa: “Antes da vinda desse marginal, nosso povo

tinha hábitos saudáveis, desconhecia os vícios das grandes metrópoles.” Esse julgamento feito pelo

povo irá provocar uma inversão naquilo que até então é considerado norma social.

Acusado, a princípio, de engravidar todas as mulheres da cidade, Botão-de-Rosa é

levado a júri. Num julgamento malconduzido e bem manipulado, o réu é

responsabilizado por mais outro delito, agora também por tráfico de drogas, que lhe é

imputado falsamente pela polícia. A sentença: pena de morte. A crítica do autor agora é

direcionada para a justiça, enquanto Instituição, que planta provas falsas e ainda aplica

penas que há muito tempo foram revogadas.

A partir daí, o absurdo dá lugar ao insólito, pois quem acaba marginalizado pela crítica

é o povo e não mais o marginal, que passa a ter um status de herói estóico, não apenas

no comportamento, mas também na forma de se vestir.

O comportamento de herói estóico é evidenciado em “um pobre diabo que se negava a

defender-se e nem se importava com sua própria condenação”, enquanto que a pureza do próprio

nome se manifesta no desapego à vida, no momento de sua morte: “desnudo ofereceu o

pescoço ao carrasco”. Temos então a grande catarse responsável pela catalisação dos

pecados do homem, que nos remete ao julgamento de Cristo.

A presença do caráter religioso é muito mais marcante nesse conto do que nos demais, a

notar pelos “cabelos longos”, “túnicas brancas”, “sandálias” etc., que novamente traçam uma

associação imediata à figura de Jesus Cristo.

“Como poderia ter escapado, se há poucos instantes a estreitava de encontro ao ombro?”. Perceba

como o tema do desencontro entre os homens se manifesta novamente na obra, logo no

início do conto Epidólia. Além desse, são recorrentes os temas arco-íris e o mar que

aparecem também no conto O Bloqueio. Segundo o próprio Murilo Rubião, Epidólia foi

inspirado num sonho de onde surgiu não apenas a intriga, mas também o estranho nome

da personagem. Para um agnóstico, o único espaço para que a força criadora possa

manifestar-se é o mundo dos sonhos – devaneio. As imagens de devaneio são recortes

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de uma plenitude impossível e isso podemos reconhecer em ”Chegara à exaustão e o nome da

amada, a alcançar absurdas gradações pelo imenso coral, levava-o ao limite extremo da angústia. Apertou

o ouvido com as mãos, enquanto o coro se distanciava, até desaparecer. Pirópolis recuara no tempo e no

espaço, não mais havia o mar. O parque readquirira as dimensões antigas, Manfredo pisava uma cidade

envelhecida”.

Nesse trecho do conto, tem-se a impressão de que a personagem acordou de um sonho.

Outra presença de fator onírico é o arco-íris que dá nome à farmácia de um tio de

Epidólia, os vidros contendo líquidos coloridos expostos no estabelecimento e o próprio

pintor, cuja própria atividade leva a um mundo de impressões. O Bloqueio traz a

problemática de um único morador de um edifício recém-construído que se vê às voltas

com intermináveis “obras de rotina”, segundo o próprio síndico do condomínio. Obras,

como se pode perceber, desnecessárias, já que o prédio é novo e a personagem seu

único morador. Entretanto, dando vazão ao absurdo, acontecimentos em série

contribuem para o descontrole emocional do morador. O barulho infernal de uma

máquina que destrói os andares inferiores do edifício isolando-o em seu apartamento faz

com que ele perca o sono. Restaurado o silêncio, dorme e sonha que está sendo serrado

ao meio. Acorda em pânico e, na realidade, há uma serra no andar de cima a executar

serviços que provocam estilhaços de material por toda a parte. O barulho incessante de

explosões secas, de movimentação de britadeira, bate-estaca que mais parecia estar

destruindo do que construindo; tudo isso leva o leitor a uma inquietação compartilhada

com o personagem, que gera uma circularidade de efeitos emocionais do início ao fim

do conto. No auge do desespero, em busca de uma saída, após um telefonema

conflitante da esposa, desce a escadaria e, oito andares abaixo, a escada termina

abruptamente, deixando-o com um pé solto no espaço. Ainda abalado, volta ao

apartamento e recoloca seus pensamentos em ordem. No final do conto, Gerion (a

personagem) vai ao encontro da máquina, que já perdera sua força e exibia aos poucos

os instantes finais da destruição. Tudo era pó. Podemos inferir que o mundo da obra é o

mesmo que nós leitores também vivemos no cotidiano. Curiosamente o nome Gerion foi

inspirado em um gigante da mitologia grega. Possuía três cabeças e corpo tríplice até a

altura dos quadris. A julgar pela fragilidade da personagem, notamos a inversão das

forças do real e do imaginário proposta pelo autor. As contínuas referências ao acúmulo

de pó durante todo o conto remetem à citação bíblica do Gênesis: ”és pó, e em pó te hás de

tornar”, embora a epígrafe utilizada pelo autor nesse conto seja: ” seu tempo está próximo a

vir, e os seus dias não se alongarão”. Entretanto as duas epígrafes se completam.

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No último parágrafo, no auge da angústia, antes que Gerión se entregue definitivamente

à ameaça da destruição, surge uma fagulha de sonho, como se fosse uma promessa de

resgatá-lo de uma situação sem saída. A imagem do arco-íris, símbolo bíblico da aliança

entre Deus e os homens, sugere uma renovação do ciclo: “Pelas frinchas continuavam a entrar

luzes coloridas, formando e desfazendo no ar um contínuo arco-íris”. “Teria tempo de contemplá-las na

plenitude de suas cores? – Cerrou a porta com a chave”.

Murilo Rubião em um de seus comentários enfatiza que o sobrenatural não lhe causa

susto ou estranhamento. Isso fica muito claro em Os Comensais, pois o tempo inteiro a

personagem Jadon tenta um contato com os freqüentadores do refeitório, que

permanecem alheios a qualquer atitude por ele manifestada, provocando-lhe uma

inconfortável sensação de impotência e rejeição ao mesmo tempo. O fantástico nesse

conto se manifesta a partir do momento que o leitor começa a questionar a situação

vivida pela personagem. A narrativa provoca no leitor uma reação de inquietude e

desconfiança, na mesma proporção que é atribuída à personagem. Ambos, leitor e

personagem, chegam a um ponto de não definirem ao certo se aquela situação faz parte

de um sonho ou de algo sobrenatural. O fato de o personagem nunca conseguir um

contato físico ou mesmo auditivo com os comensais direciona o leitor para uma

interpretação sobrenatural e isso podemos observar no trecho: “Experimentou o recurso de

dirigir-se bruscamente aos vizinhos e desapontou-se por não conseguir despertar-lhes a atenção.

Mantinham-se impassíveis mesmo quando as frases eram ásperas ou acompanhadas de gritos”, e

também num outro trecho: “Contudo desagradava-lhe o silêncio reinante, o segregamento que lhe

impunham. Ultrapassando o limite suportável do aborrecimento, desinibia-se nos vizinhos mais próximos,

dando-lhes pontapés por debaixo da mesa, à espera de que reagissem ou retrucassem com um palavrão.

Em nenhum momento percebeu neles o menor sinal de constrangimento. Era também por sadismo que se

entretinha às vezes em mortificá-los, calculando o esforço que despenderiam para ignorar a sua

impertinência.”

Essas passagens nos mostram claramente o conflito da personagem ante o real e o

imaginário. Com o desenvolvimento da narrativa, esse conflito torna-se ainda maior.

Reconhecendo a impotência de se relacionar com os comensais, tenta sair daquele lugar

e se depara com uma moça de aproximadamente 16 anos, muito parecida com Hebe,

uma antiga namorada. A partir daí, passa a ter relampejos de sua vida passada, que ora

se confunde com a realidade, ora com sonho.

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Num clima fantasmagórico, num mundo que nada tem de real, a personagem Jadon

tenta inutilmente um relacionamento com os personagens surreais, dentre eles a sua

Hebe.

Após tantos devaneios e alucinações, a personagem termina sozinha novamente: “Já na

sala de jantar, caminhou até a grande mesa de refeições, assentando-se cuidadosamente numa das

cadeiras. Os braços decaíram e os olhos, embaçados, perderam-se no vazio. Estava só na sala imensa”.

Além da busca de si mesmo e de relacionamentos, há também a idéia de infinito e vazio

das próprias aspirações que sempre abatem o homem moderno.

Extraordinários e fantásticos os acontecimentos se encadeiam em todos os contos dessa

obra, levando a termo todas as insatisfações e impotências do homem.

As situações alusivas à morte, vida após a morte, cadáveres e vampiros geralmente

estão relacionadas ao tema AMOR, à busca dele ou à sua perda. Por outro lado o

sobrenatural terá uma intensidade diferente para cada caso, pois é ele que dará a medida

dos desejos sexuais, para nos introduzir na vida após a morte.

Em contrapartida a crueldade e a perversidade humana estão no limite do possível e do

real, o que nos coloca na presença, apenas do socialmente estranho e

improvável.(Todorov –1992, pág.147)

Obedecendo as regras teoricas de Todorov, podemos arriscar uma análise para o conto

O Lodo, em que pese a seguinte linha de raciocínio: a perversidade humana reside na

insistência do médico em acompanhar a doença do personagem Galateu. Sendo uma

atitude contrária à sua vontade, fica caracterizado abuso moral. Isso provoca uma

pressão psicológica, logo, a conseqüência é a degradação física e moral. A comprovação

dessa hipótese vem da resignação de Galateu ao concordar em pagar quatrocentos mil

cruzeiros, referentes a ações indenizatórias devidas ao analista. No conto, isso fica claro

quando Galateu percebe o quadro sombrio que tem pela frente: “novas cobranças de

honorários, a penhora do apartamento, o desabrochar e o cerrar das feridas”.

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“A busca pela clareza”

Murilo Rubião reescrevia seus contos constantemente em busca de uma perfeição, mas

que fosse clara, pois considerava seus contos muito complexos. Portanto, não admitia

linguagem rebuscada.

O resultado dessa busca é uma linguagem enxuta, obediente às normas gramaticais e

sem afetar o entendimento do leitor. Faz uso constante da hipérbole (exagero) para dar o

efeito do absurdo e, por meio dele, são elaboradas as críticas à vida ou à sociedade, e a

linguagem é urbana e simples.

Murilo reescrevia seus contos até mesmo depois de terem sido publicados e, por mais

que se evidencie essa sua característica, fica quase impossível demonstrar sua

importância. Para isso, torna-se indispensável a apresentação de material concreto.

Dessa forma, anexamos a esse trabalho uma pesquisa feita pelo professor Audemaro

Taranto Goulart, da Pontifícia Universidade Católica de Minas – PUC/MG, que

apresenta em detalhes as correções originais feitas por Rubião referentes ao conto A

Fila. E assim podemos avaliar o quanto Murilo era criterioso e preciso com a

linguagem, bem como o cuidado que dedicava à sua obra.

Eis o texto do prof. Audemaro:

“Os exemplares do livro que Murilo distribuiu aos amigos e conhecidos contêm algumas correções à

tinta, e duas outras que são absolutamente inusitadas. Na que se refere ao conto “A Fila”, o escritor, não

satisfeito com uma parte do texto, datilografou-a numa tira de papel que colou sobre o texto original. E é

essa parte que quero focalizar porque ali temos nada menos que três textos diferentes: o original, que o

escritor descartou; o corrigido, que ele inseriu em alguns exemplares; e um terceiro, que apareceu na

republicação de O Convidado, em 1983, por uma outra editora. Transcrevo os textos abaixo:

1. Texto original:

“Foi recebido um mês depois. Afobado e feliz, esqueceu-se de cumprimentar o senhor calvo que o

atendeu:

– Arre! Até parece mentira. Quando o gerente poderá receber-me?

Depende do que deseja.”

2. Texto corrigido à máquina:

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“Um mês depois, foi atendido novamente pelo secretário.

Afobado e feliz, nem cumprimentou o homenzinho:

– Arre! Agora o gerente me receberá.

– Depende do que deseja.”

3. Texto republicado:

”Um mês em seguida, foi atendido pelo secretário. Afobado e feliz mal o cumprimentou.

– Arre! Agora o gerente me receberá.

– Depende do que deseja.”

Do texto 1 para o texto 2, podem-se ver as seguintes modificações. A frase “Foi recebido um mês

depois”, transforma-se em “Um mês depois foi atendido novamente pelo secretário”. Note-se que o

“recebido” dá a idéia de que a personagem tinha conseguido seu objetivo, que era ser recebida pelo

gerente, quando, na verdade, ela tinha sido apenas atendida pelo secretário que cuidava da agenda do

chefe. Desfaz-se, assim, a ambigüidade, o que ainda é reforçada pela explicitação, no texto 2, da figura do

secretário. O acréscimo da palavra “novamente” torna clara a situação de Pererico que ali vinha,

repetidamente, tentando alcançar a pretendida entrevista. E se antes o secretário era apenas um “senhor

calvo”, agora já é um “homenzinho”. É de se observar que este termo, tendo em vista seu caráter

depreciativo, revela uma postura de arrogância da personagem, o que é reforçado com a troca da

expressão “esqueceu-se de cumprimentar o senhor calvo”, por “nem cumprimentou o homenzinho”. Na

primeira, ocorre um lapso, algo não intencional, enquanto na segunda frase tem-se a deliberada ação de

desconhecer o interlocutor. Não se esqueça também de comparar a idéia de humildade e respeito com a de

arrogância, em duas situações: numa, está presente um “senhor calvo”, a quem se esquece de

cumprimentar; noutra, está o “homenzinho”, a quem não se cumprimenta.

Finalmente, contraponha-se a fala dos diálogos: “ – Arre! Até parece mentira. Quando o gerente poderá

receber-me?” do texto 1, com a do texto 2: “ – Arre! Agora o gerente me receberá!”. No primeiro caso, o

espírito humilde como que agradece aos céus por ter conseguido uma graça, além de mostrar-se

respeitoso, perguntando quando seria recebido. Já no texto 2, o arrogante diz para si mesmo, com toda a

convicção, que agora será recebido.

Examinando-se, a seguir, o texto 3, pode-se observar que há poucas alterações em relação ao texto 2, mas

elas são de grande relevância. Note-se a supressão das palavras “novamente” e “homenzinho”, além da

substituição de “nem” por “mal”. Tais modificações, na verdade, abrandam a dureza da arrogância que

havia no texto anterior, seja pela atenuação da agressividade, ao substituir o “não cumprimentar” pelo

“mal cumprimentar“, seja pela eliminação do tom depreciativo que se obtém com a supressão da palavra

25

“homenzinho”. E o mais importante é que, suprimindo a arrogância e a pretensão da personagem, Murilo

o conforma aos padrões do trágico que perpassa toda a narrativa. E, como se sabe, o trágico não lida com

o deboche e o escárnio. Muito ao contrário, o trágico escoa por circunstâncias como as da harmatía, ou

seja, pela falha na compreensão intelectual de situações da realidade, caracterizada, sobretudo, como uma

falha humana que tem lugar no mundo confuso que nos cerca. É aí que se dá a derrota de Pererico. Sua

falha trágica o encaminha para a punição, tal como se vê no conto. Mas as trapaças da linguagem são

insidiosas, mesmo com um domador de palavras como Murilo Rubião. Perceba-se, pois, a mudança que

se operou no início dos textos e atente-se para o “Um mês em seguida” do texto 3. Exatamente por ter

sido suprimida a palavra “novamente” neste texto, tem-se uma significação problemática, motivada pela

ambigüidade que se instala na frase. Afinal, não é muito próprio supor que “um mês em seguida” seja da

mesma linha de significação de “um mês depois”. Ronda o sentido da expressão uma idéia de “na

seqüência de um mês”. Fosse mantida a palavra “novamente” e essa idéia seria menos ambígua. Só se tem

certeza do sentido correto com a frase seguinte, que deixa claro que se trata de “um mês depois”. Mas

lembro que ambigüidade é o que menos freqüenta os textos murilianos, pontuados por aquela auto-

reflexão que faz do autor um dos marcos da modernidade de nossa literatura. Confesso que de todas as

mudanças que pesquisei em sua obra, esta foi a única que me pareceu inadequada. Culpa de quem? Da

linguagem, das próprias palavras. Que se lembre, por oportuno, o escritor português Fernando Namora

quando disse que as palavras são como uma serpente enrodilhada. Só se tem certeza de seu tamanho

depois do bote”.

Audemaro Taranto Goulart: professor da PUC Minas e autor de O conto fantástico de Murilo Rubião, Ed. Lê.

1.8. Crítica e Notícia

GLOBO, domingo, 22/10/78

Realidade, fantasia. Por Raquel Jardim.

Cronologicamente, “A Casa do Girassol Vermelho”, publicado com o nome de “A Estrela Vermelha”

(Ed. Hipocampo, 1953), é o segundo livro de Murilo Rubião, editado nove anos depois do aparecimento

de “O Ex-Mágico”. Profundamente diferente dos realistas mágicos que o precederam e mesmo dos

hispano-americanos com quem foi tantas vezes comparado, Murilo Rubião confessa duas influências:

Machado de Assis e a Bíblia, dois mananciais de inesgotável riqueza para o conhecimento do homem. Se

tanto na Bíblia como em Machado a visão do ser humano é a mais despida de fantasia possível, em

Murilo, a partir do desencanto do ex-mágico, a fantasia serve justamente para encobrir uma visão cética e

irônica do mundo, tão cética e irônica quanto a da Bíblia. Basicamente não se pode dizer que Kafka

influenciou Murilo Rubião, a não ser por um fenômeno kafkiano, pois ele não o conhecia nem de nome

quando escreveu seu primeiro livro. Mas esse parentesco, assinalado por Mário de Andrade em 1947, não

pode deixar de ser mencionado. Guardadas as devidas diferenças entre Praga e Belo Horizonte, aquele

escritor é realmente o mais aparentado com Rubião. Kafka não conhecia Machado e certamente não era

26

um aficcionado da Bíblia. Nada serviu para lhe atenuar a angústia, nem o cetecismo, nem a ironia, nem a

leitura da Bíblia. Digamos que em Murilo o fantástico e a angústia são um elemento lúdico, peças de um

quebra-cabeça que joga com extrema lucidez, ao passo que em Kafka elas estão no cerne da própria visão

de mundo.

No último conto deste volume, a personagem, Alfredo, tenta a metamorfose, numa tentativa lúcida de

fugir aos conflitos humanos. Em Kafka, pelo contrário, a metamorfose é sempre imposta à personagem,

que não a procura, mas a aceita como inevitável. Aí está, provavelmente, o fulcro da diferença entre os

dois autores, um noturno e outro solar, como também acentua Mário de Andrade.

No conto que abre esta coleção, “A Casa do Girassol Vermelho”, a visão onírica do mundo se transforma

de repente: “Um futuro mesquinho nos aguardava... Mariazinha e Nanico – dois idiotas – olhariam um

para o outro indefinidamente, alheios a qualquer determinação de romper com o mundo... Dei-me por

vencido. Não adiantava lutar. Tudo se quebrará”.

Emergindo do ventre de Belinha, um minúsculo girassol vermelho dá sinal de que tudo recomeça, não

obstante, tão inexoravelmente como se multiplicam os coelhos na cartola do fatigado ex-mágico. O que

há de insólito e original no mundo de Rubião é que nele a realidade, tão fantástica quanto a fantasia, é

igualmente tediosa. O desencanto de Murilo é aquele mesmo constatado pelo Eclesiastes (nada acontece

de novo sobre a face da terra...) e por Orlando, personagem de Virgínia Woolf, que começa a ver tudo se

repetir, através dos séculos. Também o do próprio Machado, este salvo pela sensualidade... Em “O

Homem do Boné Cinza”, a figura principal, Anatólio, lembra, às avessas, a heroína do conto ´Bárbara´

(publicado em “O Ex-Mágico”). Aqui, a personagem emagrece até se transformar numa minúscula bola

negra, ao contrário de Bárbara, que engordava. A gordura e a magreza são elementos do grotesco presente

em toda a obra de Rubião. Em “Dom José não era”, aparecem todos os equívocos do mundo muriliano.

Num gesto de coerência, a personagem se enforca, pois não conseguia corresponder à imagem que se

fazia dela.

A impossibilidade do diálogo e a falência da memória (antiproust) estão presentes em “Os Três Nomes de

Godofredo”. Como Barba Azul, Godofredo mata as suas mulheres, não conseguindo conservá-las na

memória, condenado definitivamente a se esquecer delas. Em “A Lua” (o mais poético dos contos) e em

“A Armadilha”, surge novamente o tema do assassinato, neste último transformado num quase

emparedamento e numa inexorável convivência até o final dos tempos. A inexorabilidade é, aliás, um dos

elementos mais usados pelo autor em toda a sua obra. Em “Marina, a intangível”, do caos ergue-se o

poema da heroína, “feito de pétalas rasgadas e de sons estúpidos”, sobrepondo a sua realidade a todas as

forças deflagradas contra ele.

Em “Bruma”, a presença do feérico e do onírico novamente se manifesta: estrelas vermelhas, luas, astros

coloridos, constelações, sóis, fogos de artifício fazem parte do mundo feérico do pirotécnico Zacarias.

“Alfredo” fornece a chave da obra muriliana: - “E o que faz aí, plantado como um idiota no cimo desta

montanha? Parou de gemer e fitou-me com indisfarçável curiosidade: “Bebo água”. Assim, os gestos

mais triviais e até mesmo lógicos deflagram forças incontroláveis, mas tudo se repete de forma

inexorável, conduzindo ao desencanto e à solidão.

Ao fundo, o sorriso irônico de Murilo, sabedor que os lobisomens existem como os funcionários públicos,

e que ambos são cômicos por estarem vivos e repetirem cotidianamente os mesmos gestos.

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SUPLEMENTO LITERÁRIO - NOTÍCIAS - 20/12/2006

Murilo Rubião é homenageado em edição especial do Suplemento Literário

O Suplemento Literário de Minas Gerais comemora 40 anos em grande estilo. No dia 20 de dezembro

duas edições da publicação foram lançadas na Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa: uma ligada à

comemoração e a trajetória do SLMG e a outra que homenageia o seu fundador, Murilo Rubião. “O

Suplemento é um jornal que, por estar a serviço do público, escritor e leitor, vem suplementar as

publicações literárias e culturais de Minas Gerais e do Brasil, através da diversidade de linhas de

produção e criação. Apesar da diversidade que sempre foi a marca dos Suplementos Literários, nossa

gestão – refiro-me à secretária de Estado de Cultura, Eleonora Santa Rosa e a minha, enquanto editora –

tem o diferencial da relação entre a iconografia e o conteúdo dos artigos, possibilitada pela alta qualidade

gráfica de cada jornal cuja responsabilidade é da designer gráfica Márcia Larica”, comemora Camila

Diniz, superintendente do Suplemento Literário.

Na edição de quarenta anos, o leitor terá a oportunidade de dialogar com o passado da publicação, através

de textos de Humberto Werneck, Jacintho Lins Brandão e Haydée Ribeiro. E também com o seu futuro,

abordado por Cacá Brandão, Eduardo de Jesus e César Guimarães.

Já o “Suplemento Especial: 90 anos de Murilo Rubião” traz ensaios de Audemaro Taranto, Márcia

Marques de Morais e Márcio Serelle, que abordam diversos aspectos da obra e do convívio com o

escritor.

No lançamento das duas edições do Suplemento, houve também a abertura da exposição “Bichos Soltos”,

ação coletiva dos alunos do Núcleo de Arte da Fundação de Arte de Ouro Preto, sob a coordenação de

Gabriela Rangel, e o lançamento do livro “Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa: 50 anos de

Cultura”.

Diálogo com outras artes

O primeiro exemplar do Suplemento foi publicado em 1966 e por esses tempos inúmeros intelectuais e

escritores deram contribuições às páginas desse importante veículo de disseminação da produção literária

mineira, brasileira e mundial. Dentre eles se destacam Laís Corrêa de Araújo, com a coluna de crítica

literária “Roda Gigante e Informais”, que permaneceu até a edição de maio de 1969, o escritor carioca

Alceu Amoroso Lima, Abgard Renault, Emílio Moura, Pedro Nava, Fernando Sabino, Paulo Mendes

Campos, Affonso Ávila e Silviano Santiago.

A professora da Faculdade de Letras da UFMG, Haydée Ribeiro, que desenvolve pesquisa comparativa

entre os Suplementos Literários mineiro e uruguaio, destaca que “toda produção simbólica está sujeita a

mudanças no tempo e espaço. E o Suplemento Literário abarca todas essas mudanças desde o seu

surgimento. Apesar dessas transformações, o Suplemento mantém as orientações mais gerais de quando

foi publicado pela primeira vez, somente se adequando ao contexto de hoje. Ele continua aberto para as

diferentes manifestações artísticas, como artes plásticas, pintura e cinema”.

Fonte: http://www.cultura.mg.gov.br/?task=interna&sec=6&cat=9&con=769&all_not=y&limitstart=30

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2. ANÁLISE DO CONTO “O CORAÇÃO DELATOR”

Dois itens serão prestigiados nessa análise: o narrador-personagem e o enredo. Durante

os parágrafos seguintes, serão utilizados fragmentos das obras O Coração Delator e

Filosofia da Composição, ambos de autoria de Edgar Alan Poe, além de outras fontes

de cunho científico-acadêmico, lingüístico, incluindo fontes on-line, a fim de corroborar

com os aspectos abordados.

2.1. Narrador-Personagem

No conto de Poe, a personagem principal é o próprio narrador, constituindo-se o que se

chama em Literatura de Narrador-Personagem, tendo em vista que o mesmo é o

protagonista da história como explícito logo no início: “É verdade! Sou nervoso... muito

nervoso... terrivelmente nervoso – sempre fui e serei.”.

As demais personagens são secundárias, já que o velho só tem uma única fala “Quem está

aí?”, e aos três policiais são referidas algumas frases pelo próprio narrador “Os policiais

ficaram satisfeitos.”, porém, os mesmos não proferem discurso algum explícito no texto.

O diálogo constante do narrador-personagem com o leitor denota a função emotiva do

conto, expressa em “Mas por que vocês insistem em dizer que sou louco?”; “Escutem-me! E

observem com quanta lucidez e serenidade lhes conto toda a história.”. Perceba que no primeiro

excerto o narrador acusa o leitor de insistir em sua loucura e, no segundo, conclama o

leitor de antemão a concordar com ele em sua “lucidez e serenidade” enquanto descreve o

episódio. Surgem nessas partes expressões de dois graves distúrbios mentais da

protagonista:

Psicose: estado alterado da personalidade em que uma pessoa tem sensações fora da realidade e

ausência de controle de seus pensamentos. Uma crise típica de Psicose pode ser detectada pela

combinação dos seguintes sintomas: alucinações auditivas, visuais; sensações e desconfiança de

estar sendo observado, provocado, gozado, comentado, controlado, perseguido, vigiado, traído;

sensação de que o ambiente está estranho; agitação, confusão, agressividade; insônia e

inapetência; alguns pacientes, principalmente quando a doença aparece na adolescência, ficam

meio pueris, superficiais, com um sorriso inadequado; pode aparecer subitamente ou aos poucos,

no decorrer até mesmo de anos; atribuição de significados diferentes a coisas reais que estão

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realmente acontecendo; sensação de que os mais diversos fatos não são coincidências, mas sim

que eles têm alguma coisa a ver com ela; isolamento, não querer contato com ninguém, assumir

um comportamento estranho.

Fonte: http://www.mentalhelp.com/psicose.htm

Sociopatia: Transtorno da Personalidade Anti-Social cujos portadores, os sociopatas, sensíveis

apenas a seus próprios sentimentos, desejos e necessidades, não enxergam nos outros um ser

humano, merecedor de consideração e respeito, mas sim meios utilizados para atingir seus

objetivos. Portanto, antiéticos. Quando lhes convêm, dissimulam perfeitamente emoções,

sentimentos pelos outros, levando-os a uma vida dupla, já que aparentemente mantêm atividades

cotidianas normais que não correspondem a sua verdadeira identidade, revelada a suas vítimas

indefesas somente nos momentos íntimos ou de crise. Suas atitudes impulsivas e incontroláveis

retratam o convencimento de estarem acima das leis e da sociedade; não sentem culpa ou

remorso; são covardes, pois praticam o delito com a certeza de a vítima não poder reagir; seu

comportamento obedece a uma lógica própria com o objetivo de obter prazer através da

violência; através da Mitomania, forjam situações persuadindo pessoas a acreditar no que não é

verdadeiro; manipulam pessoas com mentiras, insinuações, produção de provas “falsas”,

ameaças e violência para induzir-las a fazer o que eles querem.

Fonte: http://virtualpsy.locaweb.com.br/index.php?art=164&sec=99

Tendo em vista a omissão de qualquer descrição física das personagens por parte do

narrador, como altura, peso, cor de cabelo e de pele ou mesmo vestuário das

personagens, o enfoque dado às características desse narrador-personagem será a análise

psicológica de seu relato.

Nos parágrafos seguintes, será abordada a forma de Poe inserir na Literatura um conto

no qual a história é contada pelo olhar de um “louco”, mais precisamente, um portador

de um distúrbio mental denominado Sociopatia.

Ainda no diálogo constante entre o sociopata e o leitor, é usado um silogismo próprio da

personagem para persuadi-lo de sua sanidade é observado em “vocês pensam que sou louco”.

Outro sintoma psicótico apontado pela psiquiatria é a alucinação auditiva, retratada

como um aperfeiçoamento sensorial graças à sua “doença”, como ele mesmo observa: “a

doença aguçara-me os sentidos”. Graças a essa suposta superaudição, era possível ouvir todas

as coisas, “tanto as do céu quanto as da terra”, além de “muitas coisas do inferno”.

30

A paranóia é outra característica evidenciada pela personagem quando emprega

“insistem” (sinônimo de continuar: verbo que pressupõe ação anterior) e no inglês “will

say” (dirão: empregado com intuito de algo planejado de antemão, previsível). Em

ambos os idiomas, a expressão verbal demonstra um julgamento da personagem sobre o

leitor antes mesmo de lhe expor os fatos.

Além da alucinação auditiva, a alucinação visual da personagem lhe confere sentimento

misto de pavor e asco ao comparar o olhar do velho “assemelhava-se ao de um abutre – um

olho de um azul pálido encoberto por uma película.”. Tomado de tamanho terror por esse olhar,

decide “tirar-lhe a vida”, ignorando a humanidade do velho e o seu direito à vida.

A mesma alucinação visual leva o narrador a culpar o velho pela própria morte. Pois,

como ele mesmo disse, o desejo de matar o velho surgiu por culpa do próprio velho:

“Creio que foi por causa de seu olhar! Sim, foi por isso!”. Com isso, o narrador se exime de culpa

e a morte é encarada por ele como culpa da própria vítima.

A audição, sentido mais invocado no conto, aparece desde o primeiro parágrafo até o

último, enquanto a visão perde força assim que a protagonista enterra os pedaços do

cadáver do velho, pois deixa de ver o “Olho Maligno” que tanto o aturdia.

A Mitomania é explícita mais de uma vez no conto. Primeiramente, refere-se à audição

como um sentido aguçado pela “doença”, a loucura, negada por ele ao alegar nervosismo

em “Como então podem dizer que sou louco?” / “Já lhes disse que sou nervoso: pois é assim que sou.”.

Depois, após os policiais interrogarem sobre o grito ouvido pelos vizinhos na

madrugada: “O grito, disse-lhes, eu mesmo dera durante um sonho. O velho, informei, estava fora no

interior.” A negação de estar louco é própria de pessoas mentalmente perturbadas, com a

finalidade de persuadir o ouvinte de sua sanidade.

A ausência de responsabilidade moral ou consciência, típica de indivíduos sociopatas,

surge no excerto “A noite findava e pus-me a trabalhar apressadamente”. Nesse fragmento, a

morte é apontada como um ofício necessário, planejado e organizado “mas sempre em

silêncio”. Porém, para um sociopata nato, matar não é o bastante, há que se terminar a

tarefa com a exatidão fria de um açougueiro manipulando a carne de um animal. Então,

ele descreve o que fez: “Em primeiro lugar desmembrei o corpo: decepei-lhe a cabeça, os braços e as

pernas.”.

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Em seguida, o êxtase ao ver seu trabalho realizado: “E sorri satisfeito ao ver o ato

consumado.”. Perceba a vileza, a crueldade, a frieza e o cálculo empregados no homicídio,

como ferramentas necessárias à realização de um projeto, sem remorso, repleto de

satisfação pelo seu sadismo, como um profissional que conclui sua obra.

A meticulosidade do sociopata para encobrir o ato criminoso ao descrevê-lo no 10O.

parágrafo, manifesta a busca da perfeição de um assassino profissional, capaz de matar

sem deixar pistas: “Havia sido extremamente cuidadoso...: a banheira recolhera tudo.”, tomando as

devidas “precauções cautelosas” (observe a redundância léxica), a fim de encobrir seu

crime. Superjulgando-se acima da Lei e de qualquer suspeita, retrata nesse excerto o

MITO DO CRIME PERFEITO (aquele que não deixa suspeito nem pistas): “Não havia

nada para ser lavado... nenhuma mancha de qualquer tipo... nem sequer um único pingo de sangue.”.

Abrindo um parêntese, não seria moralista afirmar que crime perfeito não existe, já que

o crime em si significa uma transgressão da Lei e, portanto, uma imperfeição. Por isso,

a idéia é classificada de Mito.

Por fim, demonstra satisfação mórbida, gargalhando após todo esse quadro de horror:

“Ah, ah, ah!”; encarado como um “triunfo absoluto”, numa euforia louca própria de um

sociopata após concluir o ato, com a certeza de exercer poder sobre a vida e a morte.

Quando, na realidade, não passa de um covarde, pois atacou um velho indefeso, preso a

um leito, na calada da noite.

Quanto aos verbos escolhidos com o propósito de denotar violência física, crueldade e

frieza, podem ser percebidos nos fragmentos: “decepei-lhe a cabeça, os braços e as pernas.”;

“...arranquei três tábuas...e depositei tudo nas fendas.” Além desses, também há os verbos em

que se expõe agressividade verbal em “Esbravejei, vociferei e praguejei!”.

A hora marcante no conto e vista simbolicamente como crucial, já que marca a

passagem de um dia para o outro, é a meia-noite. Esta aparece repetidas vezes no conto

e em um dos fragmentos é possível notar a insônia da personagem, um dos sintomas da

psicose: “E fiz isso durante sete longas noites – todas as vezes exatamente à meia-noite“.

32

2.2. Efeito

“Eu prefiro começar com a consideração de um efeito.”

Em sua obra A Filosofia da Composição, Poe elege sua obra-prima, o poema “O Corvo”

– “The Raven” – para desvendar a base de toda a sua literatura aos leitores: a noção de

Efeito. Criador desse modus operandi, escreve: “logo procuro, em torno de mim, ou melhor, em

mim mesmo, as combinações de acontecimentos ou de tons que podem ser mais adequados para criar o

efeito em questão.”.

Poe compartilha algumas das ferramentas para a elaboração de suas obras. Enquanto a

poesia conta com a harmonia imitativa, o conto se apropria dela, utilizando-se do nome

de UNIDADE DE EFEITO. Para a criação dessa unidade, alguns aspectos são

essenciais, como brevidade da história, temática do lado obscuro da mente, apropriação

de recursos líricos como a palavra-som, aliteração, assonância, eco, rimas externas e

internas. Essa apropriação leva alguns estudiosos de literatura a classificarem a obra de

Poe como prosa poética, pois, apesar de pertencer ao gênero original grego épica, ela

incorpora aspectos líricos em sua estrutura.

Com o poder de despertar sentimentos no leitor e prender sua atenção durante a leitura,

o efeito deve contar com a interação do leitor para não se perder. Por isso, o gênero

conto deve ser lido sem interrupção, de uma vez só como o próprio autor aponta:

“quando são necessárias duas assentadas, interpõem-se entre elas os assuntos do mundo e o que

chamamos de conjunto ou totalidade cai por terra.”.

Em se tratando do mestre do conto fantástico de horror Poe, esse efeito gera um

verdadeiro suspense no leitor, o que também se perde se a leitura for interrompida.

Realidade: ”1) qualidade ou característica do que é real; 2) o que realmente existe; fato real;

verdade; 3) o conjunto das coisas e fatos reais.”.

Fantástico: “1) que ou aquilo que só existe na imaginação, na fantasia”; “4) que não tem

nenhuma veracidade; falso, inventado.”.

Gótico: “1) diz-se de ou gênero de prosa ficcional que envolve mistério e terror em ambientes

lúgubres, como castelos arruinados, passagens secretas etc., freqüentados por fantasmas e

entidades sobrenaturais.”.

Lúgubre: ”1) relativo à morte, aos funerais; que evoca a morte; fúnebre, macabro”; “3) que

inspira pavor; escuro, sinistro, medonho.”.

(Houaiss, Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa, 2001)

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Definindo-se fantástico como tudo aquilo que não é real, pode-se incluir nesse estilo

também o gótico, uma vertente literária que desafia a razão por um acontecimento

insólito. No conto, a temática da loucura de um homem que passa a viver o lado

obscuro de sua mente, transporta o leitor para outra realidade, a do subconsciente,

repleta de hesitação, grafadas com reticências pelo autor.

Em O Coração Delator, o fantástico é representado por Poe por meio de uma narrativa

em primeira pessoa, na perspectiva subjetiva de um sociopata a respeito da realidade,

captando o conflito ocorrido na mente da personagem, desde a concepção e a

consumação de seu ato criminoso até uma catarse, ainda que incompleta.

Alucinado pela audição aguçada, o narrador-personagem prossegue seu relato,

descrevendo fatos reais em meros flashes, como em “Entraram três homens e, com a maior

cortesia, identificaram-se como policiais.”; novamente em “Os policiais ficaram satisfeitos.” A

maior parte do tempo, ele se encontra em seu mundo particular, isolado em suas

impressões, pensamentos, alucinações, conclusões, julgamentos, lógica e sensações a

respeito da realidade que o cerca, premeditando o crime.

Ilustrando a unidade de efeito, Poe se vale da repetição das seguintes palavras: noite,

escuridão, breu, negro, velho, olho, olhar, louco, loucura, gemido, pânico mortal, dor,

sofrimento, meia-noite, nervoso, terror, horripilante, temer, temores, morte, morto,

vítima, funesto, coração, diabólico, pavor, angústia, escuro, grito, horrenda, cadáver,

agonia, hediondo, sangue, sino, abutre, vulturino, cabeça, leito, cama, aturdiam,

referências a riso. Também constam palavras não repetidas: rato, grilo, teia, aranha.

Todos esses elementos contribuem para compor um léxico gótico e a incansável

vivência do lado obscuro da mente da personagem, seus desejos mais profundos, sua

visão de mundo e sua lógica individual. Ao ler esse conto, atente para esse recurso, pois

com ele Poe consegue uma verdadeira hipnose no leitor, prendendo sua atenção do

começo ao fim, com movimentos circulares na construção dos parágrafos, levando-lhe

ao estado de transe. Note, por exemplo, a repetição da palavra morto no trechos: “O velho

estava morto. “... Sim, estava morto, completamente morto.” “Estava completamente morto.” A mesma

repetição ocorre nas sessões de hipnose quando o profissional induz o paciente a um

estado de passividade, fascínio e suscetibilidade.

34

Dividida entre dois cenários, a trama é construída na mente da personagem, mas

concretizada num cenário único e real: o quarto da vítima. O desejo de se livrar do “olho

vulturino” e, posteriormente, das batidas do coração até a ação principal se passam nos

aposentos do velho, onde a “teia de aranha”, isto é, a trama é concretizada. Perseverante

em sua árdua tarefa, enfatiza: “E fiz isso durante sete longas noites...” para, enfim, dar o golpe

mortal “...empurrei a cama pesada por cima dele.”.

A única ação principal é descrita em apenas uma frase: “Em um instante, arrastei-o para o chão

e empurrei a cama pesada por cima dele.”. Esse fato é uma das características do conto, um

gênero narrativo curto, de poucas personagens e enredo enxuto. O que vale no conto é o

poder da síntese. Poe demonstra habilmente esse aspecto, recheando o enredo com

tensões psicológicas da personagem e apenas uma cena real, mas de peso, embora

descrita bruscamente em apenas “um instante”.

Os animais referidos no conto são o rato, o grilo, o abutre, a aranha, usados

constantemente em vários contos de horror de Poe para compor o cenário gótico, pois

são animais de hábitos noturnos, sendo que dois deles, o abutre e o rato, são

decompositores, numa relação de simbiose natural, beneficiam-se da morte para sua

sobrevivência, alimentando-se de cadáveres. A aranha, inseto predador, usa sua teia

como armadilha para atrair suas vítimas e devorá-las após matá-las, e o grilo, um animal

de vida noturna, cujo canto é usado para atrair as fêmeas, capaz de cavar no solo

orifícios com até meio metro de profundidade que terminam numa habitação circular.

Para um leitor desatento ao título e apreciador de finais felizes ou óbvios, Poe propõe

um desenlace súbito e catártico. No entanto, não uma catarse purificadora, na qual o

criminoso é punido por seu ato vil, justiçado pela polícia ou mesmo vingado por algum

justiceiro e, sim, uma catarse parcial. A ponto de desejar a morte de tão insuportável o

“ruído abafado”, a personagem desabafa: “Senti que tinha de gritar ou então morreria!...”. Dessa

forma, o autor arma o suspense final e o leitor se pergunta: “E agora, o que vai

acontecer?”.

A resposta a essa pergunta é inusitada, uma confissão em “Admito o crime”. Porém,

mesmo que a personagem confesse, ela não explicita arrependimento. Ao observar a

linguagem agressiva “Canalhas!” e uma séria acusação aos policiais “Parem de fingir”, um

leitor poderia inferir que a personagem partirá para uma agressão física aos policiais ou

35

a si mesmo. Poe novamente surpreende quando o narrador grita “aqui está o bater desse

coração hediondo”.

Ufa! Com um final desses, Poe deixa a sensação de alívio no leitor, própria da catarse.

Findaram a agonia, a tensão, o ruído cada vez “mais alto”, o “zumbido”, a hipnose, as

alucinações, a dissimulação, a fúria, a crueldade, a frieza e a insensibilidade. Fim.

Graças a Deus! Acorde o leitor de seu transe, pois o tempo acabou.

Outro fator essencial para a compreensão do efeito são as referências ao tempo,

ocorridas diversas vezes na narrativa. Uma em particular se repete: “chegou aos meus

ouvidos um ruído abafado, monocórdico e rápido, como o tic-tac de um relógio enrolado num tecido”.

Na primeira vez, antes do homicídio, na segunda, enquanto os policiais conversavam

com a personagem. É interessante a abordagem comparativa do autor aproximando os

vocábulos “coração” e “relógio”: “conhecia muito bem esse som: eram as batidas do coração do

velho”, abafadas pela vestimenta ou talvez por um cobertor usado na cama. Sendo o

relógio um instrumento preciso para contar o tempo em horas, minutos e segundos, sua

batida é constante e invariável, simbolizando algo enfadonho e monótono. Por outro

lado, o coração simboliza o centro das emoções e seu compasso é marcado por sons

surdos, igualmente constantes, porém, variáveis. Essa variação deve-se ao

comportamento emocional, fazendo o ritmo cardíaco oscilar, aumentando ou

diminuindo conforme a força da emoção experimentada. Sabe-se que emoções fortes

podem provocar uma taquicardia e esse fato é enfatizado no conto, por exemplo, no

fragmento “mais alto... mais alto... mais alto... MAIS ALTO!”, graficamente empregando letras

maiúsculas para marcar o ápice emocional: o limite da emoção da personagem.

O leitor pode se perguntar: “Como é possível que ele ouça o coração bater sem um

estetoscópio?”. Em razão de a sua enfática “hiperagudeza dos sentidos”, é claro, como ele

mesmo pontua, capaz de captar as emoções do velho com precisão e nitidez, segundo

sua impressão sobre a realidade.

O riso é outro elemento do qual Poe lança mão para compor o efeito do ambiente

fantástico, isto é, o gótico e o lado obscuro da mente. Podendo expressar sentimentos

como alegria, satisfação, tristeza, escárnio, desprezo e zombaria, o riso manifesta-se

através da face. Algumas referências feitas pela personagem ao riso são pontuadas no

conto. Nos fragmentos: “Ah, vocês teriam rido muito se tivessem visto a astúcia com que eu

36

realizava esse gesto.”; “Cheguei mesmo a rir-me de tal idéia... e talvez ele tivesse me ouvido, pois

mexeu-se na cama repentinamente, como se despertasse assustado.”; “Sabia como o velho devia estar se

sentindo e tinha pena dele, embora no fundo me risse.” “… a banheira recolhera tudo... Ah, ah, ah!”;

“Sorri... O que havia a temer?”. Com o propósito de revelar o lado obscuro e sórdido da

personagem ao leitor, aquele lado que durante o dia ele não revela como dito em “todas

as manhãs... entrava no aposento... e falava-lhe sem nada a temer...”, o riso denota a satisfação, o

orgulho e a autoconfiança da personagem em si mesma diante de suas realizações.

2.3. Obras

37

3. ANÁLISE DO CONTO “O CONVIDADO”

Nessa análise, os objetos de estudo privilegiados serão a personagem, o narrador e o

estranhamento. Ao longo do texto, serão citadas passagens do conto O Convidado, do

Livro de Jó (inscrito no Cânone), além de outras fontes de cunho científico-acadêmico,

com o intuito de compor a argumentação. As ilustrações do poeta William Blake foram

tiradas do acervo virtual da Universidade de Boston – Massachussets – EUA – e podem

ser acessadas pelo site: www.bc.edu/bc_org/avp/cas/ashp/blake_job_text.html

3.1. Personagem

Murilo projeta em sua obra seu agnosticismo, resultado do abandono da religião

Católica Apostólica Romana, por meio de uma particularidade: manter o Cânone em pé

de igualdade com os mitos. Como ele mesmo responde em entrevista compilada para a

coleção Literatura Comentada – Murilo Rubião, de Jorge Schwartz: “Como abandonei a

religião e sou hoje um agnóstico, a minha tendência é não aceitar a eternidade e também

não acreditar na morte em vida.”. Para Murilo, as Escrituras não são sagradas, apenas

mitos como em qualquer outra cultura ou povo. Nesse conceito, suas obras mesclam

personagens de nomes bíblicos, com comportamentos totalmente avessos aos das

personalidades canônicas – José e Débora – a nomes mitológicos gregos – Faetonte e

Astérope.

Na Bíblia, José, um nome de origem hebraica (Yosef), significa “Deus acrescenta” ou

“Aquele que acrescenta”. No entanto, José Alferes nada acrescenta a si, à festa, aos

convidados, à Astérope ou a Faetonte. A popularidade do nome advém do fato de ter se

casado com Maria e ter criado Jesus Cristo como seu próprio filho. O José de Murilo

não é nada popular, ao contrário, seu círculo de amizades se limita aos funcionários do

hotel. Alferes é uma palavra derivada do árabe; o Al é artigo definido; o feres significa

cavalheiro (educado e gentil) e cavaleiro (o homem que monta um cavalo). Murilo

contraria o significado do nome visto que Alferes não é nada educado nem gentil como

denuncia o fragmento “A Alferes escapavam boas maneiras, daí a necessidade constante de

penitenciar-se das frases bruscas, onde a intenção de ferir inexistia.”

38

Débora deriva do nome hebraico Deborah, traduzido para o grego como Debbora ou

Deborra e em latim como Debora, cujo significado original é "abelha". Às duas

personalidades de nome Débora descritas na Bíblia não se referem marido nem qualquer

descendência deixada por elas. A primeira aparece em “E morreu Débora, a ama de Rebeca, e

foi sepultada ao pé de Betel, debaixo do carvalho cujo nome chamou Alom-Bacute.” (Gen. 35.8). A

segunda, no livro de Juízes: “E Débora, mulher profetisa, mulher de Lapidote, julgava a Israel

naquele tempo.” (4.4). Comentários Bíblicos divergem sobre esse versículo no que diz

respeito a Lapidote. Uns dizem que era uma região da qual Débora era originária, outros

dizem que seria seu marido. A Débora de Murilo não se casa, nem deixa descendentes.

Outro dado curioso relaciona-se ao significado desse nome: abelha. As abelhas

melíferas organizam-se em três classes principais: as operárias, que providenciam a

alimentação; a rainha, que põe os ovos; e o zangão, que se acasala com a rainha. Uma

colônia de tamanho médio compreende: uma rainha, cerca de cem zangões e sessenta

mil operárias. Fêmeas estéreis, as operárias assumem diversas funções de acordo com

sua idade. Na juventude, dedicam-se à nutrição das larvas, dos zangões e da rainha. Ao

fim desse período, tornam-se coletoras de alimento fora da colméia e, no fim da vida,

voltam à coleta no interior da colméia. Providas de glândulas secretoras de cera, ativam-

nas e transformam-se em "pedreiros", passando a construir e consertar as células, dentro

das quais armazenam pólen e mel, a fazer curtos vôos nos arredores e prestando serviço

militar, guardando a entrada da colméia e ferroando intrusos.

Tanto as abelhas operárias quanto as duas Déboras da Bíblia não procriam, mas têm seu

lugar na história, agem, participam ativamente da vida em sociedade. A Débora de

Murilo é nula, nem chega a entrar em cena no conto, não interferindo no enredo. Ela é o

objeto e, como tal, serve apenas para compor os desejos sexuais de José Alferes.

Faetonte, na mitologia grega, era o filho de Hélios e da ninfa Climene. Um dia seu pai

lhe entregou as rédeas do carro do Sol e ele se aproximou tanto da Terra que originou

um enorme e pavoroso incêndio e deu o fogo ao homem. Zeus fulminou-o com um raio

e Faetonte se precipitou sobre o rio Erídano (rio Pó). No conto, Faetonte tem as

“rédeas” do táxi, pois ele é o condutor. Trajando uma vestimenta que mais parece uma

fantasia “uma túnica azul com alamares dourados e a calça vermelha”, ele compõe o corpo de

personagens estranhas do conto. O leitor pode se perguntar: “Quem, em sã consciência, iria

39

se caracterizar desse modo para dirigir um táxi?” Na esfera do racional, isso seria no mínimo

ridículo, ao menos que Faetonte fosse outro convidado para a festa.

Em meio à festa, surge Astérope, descrita como “uma bela mulher. Alta, vestida de veludo

escuro, o rosto muito claro, o cabelo entre o negro e o castanho, parecia nascer da noite.”; “A voz

agradável, os dentes perfeitos...” a qual ia na direção de Alferes, “sorrindo com um copo de uísque

na mão e os olhos brilhando”. Essa passagem nos remete a um contexto mitológico se

notarmos os adjetivos e o modo como ela vai se aproximando de Alferes, já o seduzindo

somente pelo olhar, como a Medusa em meio à neblina. Note a sedução descrita por

Murilo, apropriando-se do comportamento das ninfas mitológicas, às quais conduziam

os homens para a morte através de seu canto, seu olhar e sua beleza incomparável.

Voltando a José Alferes, o que se sabe sobre a personagem José Alferes – a protagonista

– passa pelo filtro do narrador onisciente. O discurso direto empregado por Murilo para

marcar as falas das personagens distancia o narrador das mesmas, como se ele se

abstivesse de qualquer compromisso ou culpa durante a narrativa. O filtro seleciona

todas as impressões, sensações e cenas para construir o enredo e conduzir o leitor ao

mundo fantástico.

O narrador nos revela alguns traços da personagem em fragmentos como: “...contrariava o

seu gosto pelos detalhes” – detalhista; “julgou tratar-se de alguma festividade religiosa ou de insípida

comemoração acadêmica.” – preconceituoso; “tornou a examinar o envelope, preocupado com a

possibilidade de equívoco” – desconfiado; “seu círculo de relações não excedia o corpo de

funcionários do hotel, onde se encontrava hospedado havia quatro meses.” – introvertido; “Poderia ser

ela, sem dúvida, poderia.” – cismado; “Pensou em jogar fora a carta, só não o fazendo ao lembrar-se de

Débora,...” – hesitante; “Fizera diversas tentativas de abordar a moça e fora repelido.”, porém,

insistente; “já se convencera: a festa estava bem próxima. Se não, como explicar o procedimento de

tanta gente alugando indumentárias especiais nessa época do ano, quando o calendário não indicava

nenhuma festividade tradicional?” – dedução com lógica própria, permeada de intuição e

suposição; “constrangido e desajeitado” ao experimentar a fantasia.

O fato de morar numa cidade de cinco milhões de habitantes e conhecer apenas os

funcionários do hotel onde reside seria um pouco absurdo de conceber. Porém,

compreensível, já que a protagonista prefere ficar em casa, metida em pijamas durante a

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maior parte do dia. Esse dado revela ao leitor a introspecção e a timidez da personagem,

preferindo o isolamento a cultivar relacionamentos.

Com esse costume, José Alferes se priva da companhia de amigos e é levado ao

desenvolvimento de um comportamento comum observado em pessoas que preferem a

clausura: idealizar em seus pensamentos o objeto do desejo, no caso de Alferes, a

vizinha Débora. Podemos apontar esse aspecto em “Despreocupou-se das omissões do convite

– coisas de mulher – para concentrar-se apenas nas formas sensuais da vizinha: ancas sólidas, seios duros,

as pernas perfeitas.”. Não há nenhum diálogo explícito no conto entre José Alferes e

Débora. Apenas suposições sobre o que poderia suceder, descritas pelo narrador e

pensadas pelo próprio Alferes. Seu desejo pela vizinha é tamanho que se convence ser

ela a remetente da carta. A suposição se torna crença e logo adquire uma lógica própria

quando Alferes pensa: “Se a carta não vinha assinada – raciocinava – é que era desejo dela

permanecer incógnita.” Essa lógica determina a atitude dele, forçando-o a fazer a única

coisa razoável: obedecê-la.

As suposições mentais da personagem remetem o leitor ao elemento da incerteza

própria da vida. Aceitamos o dia-a-dia com a normalidade de um macaco que aceita

uma banana e supomos respostas para nossas dúvidas que não passam de conjecturas.

Conjecturas, claro, pois não temos uma visão completa da vida como Jó e as

personagens de Murilo também não tinham e, por isso, ficaram aprisionados nessa

incerteza. Muitas vezes, nem questionamos fatos chocantes, inusitados que no primeiro

momento nos surpreendem, porém, logo são esquecidos. Cada um esquece segundo o

grau de importância que cada fato lhe despertará. Se não despertar importância alguma,

logo será esquecido. Naqueles em que o grau de importância despertado é maior, surge

a indignação exteriorizada por meio das lutas contra essa prisão em uma tentativa de se

livrarem da realidade a qual foram inseridos. Mas em vão, como José Alferes, pois

desconhecem quando, como, porque e onde adentraram ao absurdo do mundo moderno.

Assim como todo o ser humano, José Alferes é um espectro do homem errante, sempre

em busca do caminho a seguir, deparando-se com o fantástico, incerto do futuro,

prossegue na dúvida e, na visão parcial da vida, envereda por caminhos sem volta.

Nessa concepção de dúvida constante gerada pelo entendimento parcial da realidade,

tomemos como exemplo o caso de Jó. No começo do livro, ele é abençoado pela sua

obediência e devoção a Deus. Mas o Adversário se achega diante do Criador e pede

41

permissão para destruir sua vida. Deus permite, só faz uma ressalva: “Somente contra a vida

dele não estendas a tua mão.”. Jó começa a passar por toda a tragédia descrita no livro, sua

prosperidade material se finda, perde os filhos, seus amigos o condenam e ele fica se

perguntando por qual motivo ele está passando por todo aquele sofrimento. Sem perder

a fé nem blasfemar, ele resigna-se perante os fatos, e continua louvando a Deus “o

SENHOR o deu, e o SENHOR o tomou: bendito seja o nome do SENHOR. (1.21)”. Enfim, o Criador

restabelece todos os seus bens, nova família e a saúde de Jó é renovada. Note que,

mesmo questionando Deus sobre a realidade pela qual passava, sua dúvida permanece e,

até o fim do livro, não lhe é revelado que todo o seu sofrimento ocorreu graças à

interferência do Maligno em sua vida, com a permissão de Deus.

Nessa incerteza aceita como parte da vida, Murilo conduz o leitor ao existencialismo,

trabalhando as questões filosóficas que assolam a humanidade desde a sua existência:

“De onde vim? Para onde vou? Por que estou aqui? Como é possível que aconteçam certas coisas? Para

que estou aqui? Como cheguei até aqui? Até quando estarei aqui?”.

A personagem José Alferes é um tipo de ser humano fadado ao determinismo

existencial, na busca pelo caminho a trilhar, como diz a epígrafe do conto. Ele não tem

escolha, já está previsto o que irá acontecer-lhe e ele tenta entender, questionar, escapar

daquela realidade, no caso, a festa, mas é aprisionado nela, ao mesmo tempo em que é

envolvido por forças externas até não mais poder retornar. A sua incerteza aparece

diversas vezes no conto: “– Não estou bem certo – respondeu Alferes”; “– Tem certeza de que é

neste lugar, Faetonte?”.

Exceto por José Alferes, que hesita devido à desconfiança em pensar se conhecia

Astérope de algum lugar: “preocupado em descobrir se teria visto uma jovem senhora, parecida com

ela num quadro, folhinha ou livro.”, os convidados não têm passado como é apontado por

Murilo nesse excerto. A passividade é demonstrada no fato de todos estarem

aguardando a chegada de um convidado, que segundo a razão de José Alferes, “nunca

virá”, mas continuam a esperá-lo. A alienação gerava diálogos que “giravam em torno de um

único e cansativo tema: a criação e corridas de cavalo.”, e quando questionados por José Alferes

sobre o convidado, “respondiam com evasivas”. A submissão e a ausência de livre arbítrio

são criticadas nos fragmentos: “Fui escolhida pela Comissão.” “Vale a pena correr o risco.”. A

vida dos convivas assim como a festa é um grande vazio, cujo conteúdo é preenchido

por formalidades inúteis, cerimoniais infinitos.

42

3.2. Estranhamento

“O mais estranho é o seu dom forte de impor o caso irreal. O mesmo dom de um Kafka:

a gente não se preocupa mais, é preso pelo conto, vai lendo e aceitando o irreal

como se fosse real, sem nenhuma reação mais.” Mário de Andrade.

Ilustração de William Blake

Fonte: http://www.bc.edu/bc_org/avp/cas/ashp/blakejob_color18.jpg

Um aspecto interessante dos contos de

Rubião são as epígrafes bíblicas

utilizadas para iniciar o texto. Em

particular nesse conto, cita-se o

versículo 23 do livro de Jó, capítulo 16:

“Vê, pois, que passam os meus breves anos, e

eu caminho por uma vereda pela qual não

voltarei.” É essencial investirmos

algumas palavras desse trabalho sobre

o livro de Jó. Quanto à Bíblia

consultada, cabe um parênteses. Não se

sabe qual versão Rubião usou para

encontrar esse versículo, pois, se

consultarmos a referência, o capítulo

16 termina no versículo 22. Portanto,

embora as palavras sejam as mesmas, o número difere.

Ainda que o livro de Gênesis esteja situado fisicamente como o primeiro livro da Bíblia

(Tradução Almeida Corrigida e Fiel, 1994) e Jó como o 18O, muitos teólogos e

historiadores concordam que Jó foi o primeiro livro do Cânone Sagrado a ser escrito.

Alguns fatores corroboram para essa tese: a organização familiar em clãs, como descrito

em Jó 1:1-4, adotada no período pré-mosaico e abolida posteriormente entre os hebreus;

a ausência de qualquer referência à lei de Moisés, a qual consta no Pentateuco, mais

precisamente no livro de Levítico; os sacrifícios oferecidos pelo chefe da família, no

caso desse livro, Jó, e não pelos sacerdotes, pertencentes à tribo de Levi (“Sucedia, pois,

que, decorrido o turno de dias de seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e se levantava de

madrugada, e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles,” Jó 1:5), nomeados levitas; a

43

longevidade de Jó, pois viveu ainda 140 anos depois que sua família foi restabelecida

(“E depois disto viveu Jó cento e quarenta anos; e viu a seus filhos, e aos filhos de seus filhos, até a quarta

geração.” Jó 42.16), ajusta-se ao período patriarcal, visto que depois do Dilúvio não foi

permitido ao homem viver mais do que 120 anos “Então disse o SENHOR: “Não contenderá o

meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne; porém os seus dias serão cento e

vinte anos.” (Gen. 6:3).

Ilustração de William Blake

Fonte: http://www.bc.edu/bc_org/avp/cas/ashp/blakejob_color3.jpg

O enredo do livro de Jó trata de um

homem temente a Deus e abençoado por

Ele que, em um dia, perde todos os seus

bens materiais, os filhos e as filhas, em

seguida, é abatido pela lepra, culpado

pelos amigos de seu próprio sofrimento,

desprezado pelas crianças (19:13-19) e

abandonado pela esposa. Desde o

capítulo 2, versículo 11, até o capítulo 37,

versículo 24, são relatados diálogos entre

Jó e seus amigos, esposa, servos e Deus,

mas o mesmo nunca blasfema contra o

Criador, nem perde a fé nEle.

Esses relatos levam o leitor a questionar

como entender o sofrimento do homem e lidar com as adversidades da vida. A partir do

exemplo de Jó “Havia um homem na terra de Uz, cujo nome era Jó; e era este homem íntegro, reto e

temente a Deus e desviava-se do mal.” (Cap. 1:1), pode-se constatar que mesmo aos tementes a

Deus é-lhes permitido sofrer. O livro relata que todo o seu sofrimento foi fruto da

interferência do Inimigo em sua vida, após Deus permitir que o mesmo o tentasse: “E

disse o Senhor a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está na tua mão; somente contra ele não estendas a

tua mão.” (Cap. 1:11)

No fim do livro, Deus restabelece a prosperidade de Jó, resgatando-o de seu estado

limítrofe de sobrevivência, restaura-lhe a saúde, os bens e lhe abençoa com uma nova

descendência. Após o estudo do livro, conclui-se que pessoas boas, consideradas justas

até mesmo por Deus, não estão livres de padecer.

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Ilustração de William Blake

Fonte: http://www.bc.edu/bc_org/avp/cas/ashp/blakejob_color16.jpg

Tanto no livro de Jó quanto no conto de

Rubião, o princípio abordado é o da

irreversibilidade da vida, manifestado logo

na epígrafe. Jó tem a sua vida e seus bens

restaurados, mas seus familiares mortos não

retornaram, também não perdeu a lucidez

nem a fé em Deus, enquanto que José

Alferes nem menciona acreditar em Deus,

não tinha a ninguém, apenas imaginava

possuir a vizinha, perde até a roupa do corpo,

no caso, a fantasia, que fica em frangalhos, é

confundido com o convidado, deixando-o

cada vez mais irritado, e após todas as

provações a que é submetido, ele não é restaurado, nem lhe é permitida a graça da

salvação. José Alferes é a metáfora de um desgraçado obrigado a coexistir com a

sociedade vigente, mesmo que ela não faça o menor sentido.

Rubião se apropria desse fragmento bíblico para tecer um conto. A trama é tecida em

torno do caminho da personagem central, José Alferes, após receber um convite para

uma festa à fantasia. Partindo de metáforas da vida real na construção de seus contos,

Murilo critica a encenação social da vida real, representada pela festa à fantasia, repleta

de formalidades, fingimento, alienação, vazio, manifestadas pelos sorrisos e cortesias,

características da conduta das personagens. Nesse contexto, os convivas não passam de

espectros sem passado, livre arbítrio ou raciocínio lógico, falam somente em corridas de

cavalos, sua vida gira em torno da expectativa de um acontecimento, que é a chegada do

convidado.

Enquanto no livro de Jó há salvação para o homem, Murilo nega essa solução para a

personagem José Alferes. Iniciando o conto com uma epígrafe à qual lhe atribui cunho

profético, envereda por um caminho que não consegue mais voltar. A partir do simples

ato de tomar o táxi de Faetonte, a personagem começa sua jornada ao estranhamento,

transportado para uma realidade sem data nem local específicos: a festa, que se dará no

bairro Stericon.

45

Quanto ao bairro Stericon, onde a festa irá ocorrer, não se sabe ao certo a inspiração de

Murilo para criar o nome. Talvez, influenciado pela obra profana de Petrônio –

Satiricon –, cunhou a palavra a partir da junção de Estéril e Satiricon, produzindo o

anagrama sonoro Stericon, já que o fonema “a” quase não é pronunciado. Nesse

contexto de esterilidade, insere-se a festa para a qual José Alferes é convidado. Embora

o evento deva se realizar, não sucede, pois o convidado não chega. Assim, Murilo

constrói uma metáfora de um útero que não pode conceber descendência. Os

convidados que integram a festa são áridos, incapazes de produzir qualquer outro

assunto que não seja sobre corridas de cavalos, inutilmente tentam procriar conversas

com José Alferes, mas seu útero, isto é, sua mente, é racional, portanto não está

preparada para tal investida e, logo, elas são abortadas instantaneamente por José

Alferes. Sua razão é tão forte que o ambiente se torna opressivo, como ele mesmo

pontua no conto, provocando uma inquietação da qual quer se livrar: “Sentiu-se aliviado ao

deixar para trás o ambiente opressivo da recepção.”.

O léxico escolhido por Rubião para compor o ambiente do conto sugere uma atmosfera

onírica. Dele fazem parte algumas palavras que se repetem ao longo do texto, como:

neblina, escuridão, caminho, jardins, noite, dúvida, medo, corredor, estreito, mal

iluminado, escondido, muros altos, escuro, inexpressivo, insegurança, esperada,

silenciosos, círculo, equívoco, desmentidos, convidado, engano, suor, brisa, parque,

sebes de fícus, estreitas passagens, mulher alta, veludo escuro, rosto muito claro, cabelo

entre o negro e o castanho, umedecidos, dentes perfeitos, cama, dormiremos juntos,

Comissão, risco, damas e cavalheiros amáveis, beleza, brilho, cerração, muro, cerca,

arame farpado, matagal, perdeu-se, avançava, retrocedia, rasgara-se, romperam-se,

sangravam, aflito, declive, equilíbrio, desprovido de sentido, sangue coagulado, feridas,

lacrimoso, ilusão, esperar, fingiu, temor.

O resultado do emprego desse léxico adicionado ao significado avesso do canônico, o

humano, o mitológico, o onírico, a incerteza da vida ao futuro sem salvação e à

circularidade de vida, que não se separa da morte, segundo Murilo, é nada menos que o

estranhamento. O fim de José Alferes é indissolúvel, sem explicação, incerto. Bem

diferente de Jó, cuja história, apesar de tanto sofrimento, teve um final feliz e o mesmo

foi recompensado pela sua integridade.

46

Nesse ambiente onírico, surge a neblina – condensação da água que ocorre junto à

superfície –, fenômeno físico muito explorado em ambientes oníricos, mitológicos e

noturnos. No conto, ela compõe a cena na qual Astérope aparece para Alferes pela

primeira vez, criando um ambiente propício à sedução. José Alferes é envolvido pelos

olhos de Astérope que “brilhavam como se umedecidos pela neblina que começava a cair.”.

Fator de obscuridade e confusão, a neblina vai se infiltrando no caminho de José

Alferes, tornando-o turvo, acirrando-se cada vez mais, ao deixar a festa: “Quase nada

enxergava porque neblinava forte.”; e após rolar por um declive “avistou, bem próximo,

frouxamente iluminado, o edifício que há pouco deixara.”.

Quanto mais a protagonista tenta compreender a situação através da razão humana,

menos sentido ela enxerga. O insólito prevalece e não há meios de escapar dele. Alferes

tenta fugir dessa “atmosfera opressiva” e, raciocinando estar próximo de tomar uma

condução que o leve de volta para sua realidade, isto é, seu apartamento, ele tenta o táxi,

mas em vão. Faetonte não cede. Então, Alferes decide arriscar abandonar a propriedade.

No caminho, apesar de ter se embrenhado por vários terrenos, desde o asfalto indicado

pelo “meio-fio”, uma propriedade privada em “muro”, o campo, figurado como “arame

farpado”, até um matagal descrito em “arbustos”, Alferes se perde e acaba retornando ao

ponto de partida.

Desse modo, Murilo sintetiza em um único parágrafo a circularidade da vida, apesar do

empenho do homem em sair de uma situação fora de seu controle, por isso, incômoda,

um movimento cíclico prende o ser humano e o mesmo não consegue transpor

definitivamente a realidade a que foi convidado a participar. Com isso, novamente

pode-se inferir uma metáfora construída por Murilo: a festa figura a vida para a qual

somos todos convidados independentemente à nossa vontade. Nessa festa, o ser humano

busca respostas racionais, porém, o sem-sentido, o inexplicável, o ilógico e tudo que

contraria a razão prevalece. O resultado é a dúvida, no caso de Alferes, “avassaladora”.

Uma severa crítica é captada por Murilo nesse conto quanto à ausência de sentido no

universo burocrático. Nesse ambiente estéril, cujas regras seguem a lógica do absurdo e

do non-sense, um Comitê de Recepção examina a autenticidade do convite e se o traje

obedece às normas preestabelecidas para o evento. Após a deliberação em assembléia

extraordinária, empregando um ritual de gestos e linguagem mecanizados assinalados

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em “Silenciosos, retrocederam alguns passos, para mais adiante fecharem-se em círculo, as mãos

apoiadas nos ombros uns dos outros. Confabulavam.”, a “comissão examinadora”, representada

por “três senhores discretamente trajados” permitiu a participação de Alferes na festa.

Logicamente os membros do Comitê não poderiam lhe impedir de entrar: “Concordamos

que o seu traje obedece às normas preestabelecidas e a autenticidade do convite é incontestável.”. Na

seqüência, surge a lógica do absurdo em “Apesar da evidência, o instinto nos diz que o nosso

homenageado ainda está por chegar.”. Embora a razão seja evidenciada, a decisão é tomada

baseada no instinto. Nesses fragmentos, Murilo questiona a lógica de Comitês,

baseando seus julgamentos tanto em provas incontestáveis, simbolizando a razão,

quanto na subjetividade do instinto, figurando a irracionalidade.

48

4. ANÁLISE COMPARATIVA

O objetivo dessa comparação é tecer um paralelo entre as características assinaladas em

ambas as análises, identificando os elementos fantásticos de cada uma ao longo do

texto. Como mencionado no item 1 deste trabalho, Literatura Fantástica, de acordo com

Todorov, Poe, representado nesse TCC pelo conto O Coração Delator, enquadra-se no

Fantástico Tradicional. Paralelamente, de acordo com Sartre, Murilo Rubião,

representado pelo conto O Convidado, figura entre o Fantástico Contemporâneo.

4.1. Os Elementos Fantásticos nos dois Contos

Embora Poe e Murilo sejam representantes do universo fantástico, ambos divergem em

vários sentidos. De um lado Poe, cuja temática gira em torno da morte e do

sobrenatural, componentes do estilo gótico, capazes de gerarem hesitação e dúvida no

leitor, constrói personagens que transitam entre o mundo real e o sobrenatural. De outro,

Rubião, cujos contos enveredam para o lado absurdo da própria existência humana,

deixando assim o extraordinário em pé de igualdade com a realidade, isto é, a própria

rotina do mundo real é encarada como absurda, excluindo a noção de transitoriedade

entre real e sobrenatural em suas obras. Em termos leigos, pode-se dizer que eles

propõem estilos diferentes para o gênero Fantástico.

Ainda para compor o estranhamento, propositadamente em Murilo encontram-se

descrições sobre a vestimenta das personagens com exatidão de cores, modelos e

tamanhos, além do cenário, desde o quarto de hotel de José Alferes, ao perfume no

elevador, o estacionamento e o táxi de Faetonte, o bairro Stericon e suas mansões

“residências ricas, de arquitetura requintada e de mau gosto”, a atmosfera neblinosa da festa

localizada em um “sobrado mal iluminado e meio escondido por muros altos.”. Mas em Poe isso

não ocorre. O cenário real onde acontecem as poucas ações do conto de Poe não é

caracterizado, obviamente porque o foco está no cenário psicológico, ou seja, a mente

da protagonista.

Ambos os autores projetam em suas obras suas experiências pessoais de vida. Murilo

deixa claro em entrevista a Literatura Comentada seu agnosticismo, posição adotada

49

após abandonar a religião católica, cujos padrões formaram a base de sua literatura. Poe

revela em sua obra A Filosofia da Composição a busca em si mesmo para atingir o

efeito específico para cada obra. Mas não subjetivamente como muitos pensam que se

escreve uma história ou um poema por pura inspiração, sorte ou intuição e, sim, com “a

mesma exatidão e lógica de um problema matemático.”, como o próprio Poe demonstra.

É interessante observar o fato de Freud ter contribuído para mudar o rumo da

caracterização do Fantástico, com a Psicanálise. Segundo Houaiss, o termo consiste em:

Psicanálise: “1. teoria da alma ('psique') criada por Sigmund Freud (1856-1939, neurologista

austríaco); 2. método terapêutico criado por S. Freud, empregado em casos de neurose e psicose,

que consiste fundamentalmente na interpretação, por um psicanalista, dos conteúdos

inconscientes de palavras, ações e produções imaginárias de um indivíduo, com base nas

associações livres e na transferência”.

Isso nos leva a crer que as ações, os pensamento e sentimentos da protagonista de O

Coração Delator podem hoje ser explicadas pela Teoria da Alma. Porém, isso não

desmerece nem inferioriza Poe, pelo contrário, mostra que mesmo antes da ciência se

propor a estudar fatos dantes considerados sobrenaturais, o autor já expunha em sua

obra as perturbações da mente humana, capazes de transportar o homem, no caso, a

protagonista, do mundo real para o particular e vice-versa. Mas a mente humana prega

peças a ponto de confundir as realidades e prender a protagonista na realidade sombria,

cuja volta torna-se cada vez mais difícil, até que o mundo real é vivenciado apenas em

flashes e o lado obscuro da mente prevalece como real. Poe capta muito bem essa

armadilha a que o homem está sujeito e escreve um conto que, embora possa ser

explicado do ponto de vista da psicanálise, ainda provoca suspense, hesitação e dúvida

nos leitores do gênero e é objeto de estudo até hoje, tanto na literatura quanto na

psicologia.

Ainda que a protagonista de Poe seja mentalmente perturbada e totalmente irracional, a

ela são concedidos o livre arbítrio de decidir o que fazer, a realização de seus desejos

mais profundos, além da liberdade de transição entre a realidade social e a pessoal, isto

é, seu lado insano. Porém, a José Alferes Murilo não lhe permite essa liberdade. Uma

vez na festa, Alferes fica preso nela e não mais se livra dela. Sua razão não é compatível

num mundo sem sentido, vivido por espectros, repleto de burocracias inúteis, em

virtude de um convidado que nunca chega, fato aceito como normal. A normalidade do

50

iminente aguardado misteriosamente é a ilustração usada por Murilo para representar o

absurdo moderno, elemento essencial do Fantástico Contemporâneo, da situação em que

o mundo se encontra: sem sentido.

Dentro do Fantástico, Poe trabalha com a noção de efeito enquanto Rubião trabalha com

a noção de estranhamento. O efeito tem o intuito de despertar uma sensação no leitor de

acordo com os recursos utilizados e a temática abordada. Com Poe, o efeito provoca

asco, raiva, suspense, medo, terror, pavor, além se ser hipnótico com tantas palavras

repetidas cuja semântica é de obscuridade, a ponto de hipnotizar o leitor para que ele

leia o conto até o fim sem parar. Já o estranhamento tem o objetivo de causar reflexão

no leitor sobre o que realmente é absurdo, normal, real ou mera rotina. José Alferes, por

exemplo, vivia na rotina de um hotel havia quatro meses. Sua rotina se quebra ao

receber um convite misterioso, com informações incompletas, mas nem por isso ele

deixa de comparecer devidamente fantasiado, como exigido no convite. Sua rotina é

estranhamente alterada pelo desconhecido, porém, ele prossegue, mesmo desconfortável

naquelas roupas, decepcionado com a viagem repentina de Débora e o “uniforme

incomum” de Faetonte. Esse fator demonstra a tentativa racional de Alferes em entender

o non-sense, o absurdo do mundo moderno, denominado mundo real, a partir da razão.

Psicologicamente falando, ambas as ações das personagens são movidas pelos desejos.

Enquanto a de Poe, pelo desejo de onipotência sobre a vitima, a de Rubião, por um

desejo sexual em relação à vizinha Débora, a qual supunha ser a anfitriã. Perante tal

desilusão, o desejo sexual perde terreno principalmente para o medo do ridículo “medo de

cair no ridículo se descobrissem ter sido convidado a participar de uma festa por uma mulher que viajara

na véspera”, além da mesquinharia “os gastos feitos” e a diversão idealizada “dificuldade de

substituir por outro o programa idealizado”.

Outro absurdo apontado por Rubião é a criação de Comitês, como o de Recepção, cuja

função se limita a formalidades inúteis, tais quais desfazer enganos, examinar vestuário,

validar convite, apenas cumprindo rituais. Uma crítica de Murilo ao universo

burocrático, a principal função do Comitê não tem expressão “Moveram de leve as cabeças

num comprimento inexpressivo.”. Poe também não deixa a desejar nesse ponto, pois

criticando a polícia, incumbida de desvendar o crime, aponta suas ações irrelevantes em

“conversavam sobre assuntos corriqueiros” e, despreocupados, “placidamente e sorriam.”. Poe

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ridiculariza o trabalho da polícia, além de não lhes permitir nenhuma fala, também não

solucionam o caso, visto que no fim do conto o assassino se confessa.

Enquanto em Poe temos o narrador-personagem, em Murilo o narrador é onisciente. O

efeito de uma leitura, cujo narrador é onisciente sobre o leitor, é totalmente diferente

daquela cujo narrador é personagem. Primeiramente, o onisciente se distancia da trama,

narrando o que vê, sem envolvimento emocional ou qualquer apelo ao leitor. Isso pode

ser notado através da pontuação marcada com sinais precisos como pontos, vírgulas e

travessões (para marcar os diálogos entre as personagens).

Já o narrador-personagem de Poe impõe juízo próprio à narrativa, a si mesmo exalta,

defende-se e nega sua loucura com argumentos baseados na lógica própria. Outra vez a

pontuação é objeto de importância na análise, sendo marcada pelas reticências, fator que

denota a dúvida persistente na mente da personagem em relação a sua saúde mental,

apesar de afirmar com veemência sua lucidez. Assim, o foco recai sobre a mente

perturbada do sociopata, o qual dialoga em primeira pessoa com o leitor, denotando a

função emotiva que serve de propósito para apelar ao leitor e convencê-lo de sua

sanidade.

Por outro lado, José Alferes é apenas uma personagem, embora protagonista, o foco não

está sobre ele e sim sobre o referente, isto é, a vida e os caminhos pelos quais o homem

envereda. Nessa vereda, Murilo se utiliza da neblina, um fenômeno físico real para

compor o cenário do universo fantástico. O cenário de Poe se passa quase o conto

inteiro na mente da protagonista, constituindo um cenário psicológico. Captando a

psique humana, Poe faz uso do efeito de repetição de palavras para primeiramente

representar o olhar do velho e, depois, o zumbido que a protagonista ouve. Enquanto o

narrador onisciente vê e narra a neblina, sem lhe atribuir juízo algum, o narrador-

personagem não só vê um olho ao qual atribui o adjetivo “vulturino”, como também ouve

sozinho o “zumbido”, certo de ser o coração do velho depois de morto e enterrado. Essa

diferença, de partir de algo real para algo absurdo, remete o autor para a epígrafe

utilizada na análise do conto O Convidado, de autoria de Mário de Andrade, “vai lendo e

aceitando o irreal como se fosse real, sem nenhuma reação mais.”.

Outra diferença entre os dois contos diz respeito à contribuição de personagens

secundárias para o desfecho. As ações das personagens secundárias de Poe nesse conto

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não interferem para o destino da protagonista, porém, em Rubião, as personagens são

peças-chave para o entendimento da obra, interferindo diretamente nas ações e reações

de José Alferes. Isso ocorre porque em Poe a personagem já perdeu a razão e, embora

movida por sua vontade e seus impulsos, ela é a única responsável por suas decisões.

No entanto, em Murilo, José Alferes tenta compreender o absurdo da vida sob o prisma

da razão e da ciência, ignorando a ação das personagens secundárias sobre seu caminho.

Se atentarmos para o fim de ambos os contos, em Poe ocorre a catarse, ainda que

incompleta, como anteriormente discutida. No entanto, em Murilo não existe essa

possibilidade para o leitor. José Alferes, apropriação do servo Jó, não é resgatado, e

após lutar com todas as forças para retornar ao contexto anterior, é forçado a aceitar sua

nova rotina de vida, conduzido por Astérope, num cenário inóspito, caminha para

tornar-se um espectro do mundo real.

No universo do Fantástico, a temática entre os contos constitui uma antítese. De um

lado, Poe aborda a morte e o sobrenatural, contados a partir da visão de um louco que

afirma ser apenas nervoso, negando totalmente a natureza de seu transtorno. De outro,

Rubião reflete sobre a vida e o absurdo da realidade presente e atual, interferindo no

destino do homem, mudando sua rotina, transportando-o para outro mundo até torná-lo

um espectro do mundo real, sem retorno, sem resgate, salvação, razão ou esperança.

Enfim, se o homem em Poe é insano, em Murilo ele se metamorfoseia, tornando-se um

espectro, solto no mundo, perdido, vagando como um fantasma na modernidade

inevitavelmente absurda. Para o homem, não há escapatória, nem mesmo é possível usar

de razão para compreendê-la, pois a razão está comprometida e também é absurda por

se basear em conceitos presentes na realidade de um mundo absurdo.

Portanto, ambos os contos são fantásticos, cada qual segundo uma teoria. Em Poe, de

acordo com a teoria de Todorov, o enfoque é dado à realidade psicológica, existente

somente na mente da protagonista; em Murilo, conforme a teoria de Sartre, o foco é a

própria realidade permeada de absurdos, incoerências, irracionalidade, apesar da

tentativa de compreender os acontecimentos por meio da razão.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Fantástico enquanto elemento da literatura se apresenta como uma incógnita já a

partir de sua definição, uma vez que os teóricos e estudiosos no assunto ainda se

debruçam na busca de uma classificação que lhe seja perfeitamente adequada.

Entretanto, pelo que já se tem publicado, consegue-se classificar algumas obras dentro

desse gênero, ainda que haja controvérsia quanto às suas reais características.

Por ora, segundo Todorov, o que há de se considerar é o fascínio que o gênero exerce

nos leitores, quer no aspecto de estranhamento/maravilhoso, quer no aspecto do

terror/horror.

Tendo como base essa linha de crítica lógica, podemos afirmar que, tanto no horror

como no maravilhoso, os monstros são alheios ao mundo real, não existe um pacto

criado entre o leitor e o autor ao fazer julgamentos em relação às suas ações na trama.

Enfim, os monstros são o que são; o que é passível de discussão é a existência ou não

desses monstros, seja na concepção do sobrenatural, e nisso podemos nos deparar com

influências da religião; ou na concepção do horror, que pode estar revelando ações de

caráter psicológico.

Podemos identificar claramente essas afirmações no conto O Coração Delator, quando

o narrador-personagem diz: “É verdade! Sou nervoso... muito nervoso... terrivelmente nervoso –

sempre fui e serei.”. Nota-se nesse fragmento um direcionamento do caráter psicológico da

personagem.

É característico do fantástico tradicional questionar o leitor a respeito das ações da

trama, por exemplo, na passagem: “Mas por que vocês insistem em dizer que sou louco?”;

“Escutem-me! E observem com quanta lucidez e serenidade lhes conto toda a história.”. Essa

estratégia é utilizada para levar o leitor a questionar o que está a sua volta.

Já o fantástico contemporâneo – maravilhoso/estranhamento – tem sua lógica relaxada,

com regras que se impõem conforme a necessidade. Nesse caso, ele cobra do leitor não

uma posição frente à ação, mas deixa-lhe a responsabilidade de encontrar uma saída ou

solução para determinada situação. Ou ainda, aceitar o que lhe é imposto sem mais

questionamentos.

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A função do fantástico contemporâneo é levar o homem à uma reflexão de si mesmo

diante da banalização da vida.

A exploração do insólito e do absurdo no fantástico contemporâneo reflete o

comportamento do homem moderno diante da sua impotência em solucionar problemas

gerados por ele próprio. Desse modo, mostra uma degradação moral e física que acaba

por provocar sua anulação existencial.

Murilo Rubião, no conto O Convidado, explora muito bem essa questão da anulação

existencial quando aponta a falta de iniciativa e a passividade diante das imposições às

quais são submetidas as personagens. Isso podemos reconhecer nas falas: “Fui escolhida

pela Comissão.” e “Vale a pena correr o risco.”.

Esse é apenas um dos exemplos, pois, nesse conto, o insólito se faz presente o tempo

todo, transmitindo ao leitor uma inquietação constante e aparentemente sem solução.

Enfim, o fantástico não necessita de uma ação definitiva e incontestável, pois

percebemos que há momentos do gênero que se mesclam com a realidade.

Dessa forma, não podemos rotular essa ou aquela obra como genuinamente fantástica.

O máximo que podemos fazer é verificar elementos fantásticos e seus reflexos em

autores que permitam que a realidade seja observada e retratada em seus contos

fantásticos.

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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Editora Mundo Cristão, 1991.

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SCHWARTZ, Jorge. Murilo Rubião: Seleção de textos, notas, estudos biográficos,

histórico e crítico e exercícios por Jorge Schwartz. Literatura Comentada. São Paulo:

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TZVETAN, Todorov. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Editora

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Artigos Publicados em Jornais e Revistas Literárias

Todos os artigos abaixo foram pesquisados no Centro de Estudos Literários, Acervo

Murilo Rubião, da Universidade Federal de Minas Gerais.

ALMEIDA, Márcio. A literatura mágica de Murilo Rubião. Estado de Minas. Belo

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Links

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