joice aglae brondani - Repositório Institucional da UFBA

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JOICE AGLAE BRONDANI

VARDA CHE BAUCCO! TRANSCURSOS FLUVIAIS DE UMA PESQUISATRIZ:

Bufão, Commedia Dell’arte e Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas.

Orientadora: Profª Drª Antônia Pereira.

Salvador 2010

Escola de Teatro - UFBA

Brondani, Joice Aglae.

Varda che baucco!transcursos fluviais de uma peaquisatriz: bufão, commedia dell’arte e manifestações espetaculares populares brasileiras / Joice Aglae Brondani. - 2010.

314 f.: il. Orientadora: Profª. Drª. Antônia Pereira.

Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2010.

1. Imagem. 2. Imaginário. I. Universidade Federal da Bahia. Escola

de Teatro. II. Pereira, Antônia. III. Título. CDD 153. 32

 

Dedico a Pedro José Brondani e Zenita Stefanello Brondani, meus pais e totens, por me ensinarem a viver, a sonhar e a amar.

A Vanderlei Brondani, pela mão que sempre encontro estendida em sua forte presença e a Sidnei Brondani, pela força que me empresta - meus irmãos e heróis – cavaleiros da armadura brilhante.

 

AGRADECIMENTOS

A Érico José, pelo amor que transpassa nossas vidas e almas. Pela presença e ausência, pelas discussões e silêncios, pela força e delicadeza, pelas lágrimas e sorrisos, pelas alegrias e tristezas, enfim, por aquilo que vale a pena.

A Antônia Pereira Bezerra, pela amizade e pacienciosa orientação.

A Sônia Lúcia Rangel, pela poesia.

A Maria de Lourdes Rabetti, pela atenção, força e amizade.

A Daniel Marques da Silva, pelas inquietantes e enriquecedoras anotações.

A Raimundo Matos de Leão, pela disponibilidade.

Ao CNPQ, pela subvenção destinada ao desenvolvimento desta pesquisa, sem o qual a mesma não teria acontecido.

Ao PPGAC-UFBA, por acolher esta pesquisa.

A Léo Azevedo, pelo afeto que comove o olhar atento atrás da lente fotográfica. Pelo tempo dedicado (fotografias e filmagens), embarcando e acreditando no trabalho.

A Giuliano Campo, pela confiança em apresentar meu projeto aos orientadores da Università di Roma Tre - Nicola Savarese e Raimundo Guarino.

A Savarese, por me aceitar e a Guarino, por me receber como orientanda.

A Claudia Contin, pelo tempo desprendido, flores e folhas, risadas e trabalho.

A Ferruccio Merisi, pelas oportunidades.

A Verônica Risatti, pelo belo encontro, pela amizade, fotografias, revisões de tradução e prossecchi.

A Alice Mosanghini, pela crença e desenhos.

A Lucia Zaghet, pela atenção e disponibilidade.

A Alessio Prosser, pela compreensão e acolhida.

A Dr. Davide Porporato, pelo interesse em dialogar com a alteridade.

Ao Mestre Alabama, pelos muitos anos de apoio a esta pesquisa, pela generosidade e capoeiragem.

A Peri Stefanello pelas ídas ao consulado.

A Selvino e Inês Stefanello Rolon, por serem tios e amigos.

 

A Cristina e Lorena Zani, pela companhia.

Ao Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá (RS).

Ao Ilê Axé Iyá Nassô Oka Terreiro da Casa Branca (BA).

A Ekedy Sinha (Gersonice Azevedo Brandão).

A Renato Wilians Carneiro, pela gentileza.

Ao Ilê Axé Pony Solayo (BA).

A Pai Carlos de Xangô (BA) e a Mãe Cutu (PR), pelo Axé.

A Sérge e Cristina Pechiné, pelo Axé, apoio e traduções.

Ao professor “Marquinho” e membros da Associação ACACI – Sacile, pela calorosa recepção e capoeira nos dias do inverno italiano.

A “família Rabello”, em especial a Andréa Rabello, pelos dias de refúgio e amistosas companhias.

A Diana Ramos, Fabiana Monçalu, Fernando Lopes, Flavia Gaudêncio, Jorge Baia, Maryvonne Coutrôt e Simone Araújo, pelas horas de ensaios, momentos de amizades e companheirismo.

A Samuel André, pelos dias de luz.

A Rosana Alves Brondani, Nica Alves e Enzo Alves Brondani, pelas alegres presenças.

A Paulo e Cristina Rodrigues, pela força sem mesura.

A Diego Nicolini, pelas imagens editadas.

A Nair D’Agostini, pela maestria e amizade.

A Inês Marocco, por me apresentar a Commedia dell’Arte.

A Paulo Marcio Pereira, por andar em caminhos alternativos e me apresentar o teatro.

A Beatriz Pippi, Gisela Biancalana e Adriana Dal Forno, pelos anos de ensinamentos e estudos.

RESUMO

A presente tese vem apresentar uma pesquisa que possui como ponto de partida as teorias sobre imagem e imaginário, em Bachelard, apoiando-se, também, na ideia bachelardiana de um Fundo Comum dos Sonhos que se perpetua e se renova através de um DNA imaginal que punge a realidade por meio dos impulsos criativos e atitudes lúdicas, agindo no corpo do pesquisator, através de um processo de imaginação e de, segundo Lecoq, um Fundo Poético Comum. Tais processos de pungências, na realidade objetiva, alastram-se rizomaticamente por toda a história da humanidade, não tendo limites de tempo, cultura, espaço e território. Advindo de uma esfera imaterial, mas sensível, o DNA imaginal conecta-se aos Bufões, às manifestações espetaculares populares brasileiras e às máscaras dell’arte e é, principalmente, através dele e da formação de circuitos musculares e energéticos, que é possível acessar as máscaras da commedia dell’arte, fazendo um transcurso pelas técnicas do Bufão, de translocação e transdução caleidoscópicas.

Palavras-chaves: Imagem. Imaginário. Bufão. Commedia dell’Arte. Práticas Espetaculares Populares Brasileiras. Translocação Caleidoscópia. Transdução Caleidoscópia.

RÉSUMÉ

Cette thèse fait état d’une recherche qui repose sur les théories de Bachelard sur l’image et l’imaginaire. Elle s’appuie aussi sur son idée de Fond Commun des Rêves qui se perpétue et se rénove au travers d’un DNA imaginal qui aiguillonne la réalité au moyen des impulsions créatives et des atitudes ludiques et agissant dans le corps du chercheur par un processus d’imagination et d’un Fonds Poétique Commun developpé par Lecoq. De tels processus d’inspiration sur la réalité objective se répande de façon “rhizomorphe” durant toute l’histoire de l’humanité, sans limites de temps, de culture, d’espace et de territoire. Venant d’une sphère immatérielle mais sensible, le DNA imaginal atteint les Bouffons, les manisfestations spectaculaires populaires brésiliennes et les masques dell’arte. C’est principalement par ce DNA et la formation de circuits musculaires et énergétiques qu’il est possible d’accéder aux masques de la commedia dell’arte en faisant un passage par les techniques du Bouffon de translocation et de transduction kaléidoscopique.

Mots-clès: Image. Imaginaire . Bouffons. Commedia dell’Arte. Manisfestations Spectaculaires Populaires Brésiliennes . Translocation Kaléidoscopique. Transduction Kaléidoscopique.

SINTESI

La presente tesi espone una ricerca che ha come punto di partenza le teorie relative all’immagine e all’immaginario, di Bacherland, sostenuta, inoltre, dall’idea bachelardiana di un Fond commum des rêves1 che si perpetua e si rinnova attraverso un DNA immaginifico che punzecchia la realtà per mezzo di impulsi creativi e attitudini ludiche, agendo nel corpo del ricercattore, attraverso un processo di immaginazione e di, secondo Lecoq, una Fondo Poetico Comune. Tali processi di punzecchiatura della realtà oggettiva, si propagano di modo “rizomatico” in tutta la storia dell’umanità, senza limiti di tempo, cultura, spazio, territorio. Provenendo da una sfera immateriale, però sensibile, il DNA immaginifico si connette ai Buffoni, alle manifestazioni spettacolari popolari brasiliane e alle Maschere dell’Arte ed è, principalmente attraverso questo e dalla formazione di fasce muscolari e circuiti energetici, che è possibile accedere le maschere della commedia dell’arte attraverso un percorso nella tecnica del Buffone, della traslocazione e della trasduzione caleidoscopica.

Parole-chiave: Immagine. Immaginário. Buffoni. Commedia dell’Arte. Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasilian. Traslocazione caleidoscopica. Trasduzione caleidoscopica

1 A expressão encontrada na língua italiana para designar o que, em português, foi traduzido como Fundo Comum dos Sonhos é “primato superiore dei sogni”, mas preferiu-se deixar a expressão na língua na qual foi escrita.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................................10

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 13

2. (UM) UNIVERSO (E UM) IMAGINÁRIO ..................................................................... 22

2.1. IMAGEM / IMAGINÁRIO: O MAR EM QUE SE MERGULHA .................................. 22

2.2. MANIFESTAÇÕES ESPETACULARES POPULARES: PERPÉTUO IMAGINÁRIO 37

2.3. CONEXÕES INUNDADAS: MÁSCARAS, CARNAVAIS E BUFÕES........................ 63

2.3.1. O bufão e algumas conexões ........................................................................................ 67

3. ATITUDES LÚDICAS....................................................................................................... 88

3. 1. O BUFÃO: CORPO-MÁSCARA – UMA DESCOBERTA............................................ 88

3. 2. O BUFÃO: UM ESPETÁCULO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS ................................. 104

3. 2. 1. Fato(s) do Brasil – um espetáculo satírico............................................................. 105

3. 2. 2. “A Prece”, “A Oração” e “Arlecchino e la Valle dell’Omo”................................ 113

3.3. UNIVERSOS CONECTIVOS: O BUFÃO; O ZANNI E .. ............................................ 119

4. FESTATOLAS DE TRANSDUÇÕES – TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA

DELL´ARTE......................................................................................................................... 140

4.1. TRANSLOCAÇÃO: TÉCNICA MOTRIZ PARA A TRANSDUÇÃO......................... 145

4.2. DE FESTAROLAS A TRANSDUÇÕES: ZANN PIEDINNI ........................................ 170

5. IMAGINAÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS.............................................. 189

5.1. SERVETTA “PAPAIETTA”, A CORTIGIANA ENAMORADA: MÁSCARAS

FEMININAS DA COMMEDIA DELL’ARTE........................................................................192

5.1.1. “Né Serva, né Padrona”.............................................................................................. 205

5.1.2. Preparação do espetáculo para Papaietta ................................................................ 208

5.2. PANTALONE, IL VECCHIETO PICANTIN / O VELHINHO PICANTEZINHO.........209

5.3. THE HOLY FOOL: CAPITANO E BRIGHELLA ......................................................... 216

5.3.1. Brighella, o zanni trabalhador .................................................................................. 218

5.3.2. Capitano: o “grande” guerreador............................................................................. 223

5.4. ARLECCHINO, O ZANNI ESPERTO........................................................................... 230

6. CONCLUSÃO................................................................................................................... 239

REFERÊNCIA .................................................................................................................... 244

APÊNDICE A - FATO(S) DO BRASIL ............................................................................. 262

APÊNDICE B - A ORAÇÃO ................................................................................................ 265

APÊNDICE C - “ALLA RICERCA DI UN ZANNI”.......................................................... 271

APÊNDICE D - RELATÓRIO DE ATIVIDADES........................................................... 274

APÊNDICE E - SOBRE PAPAIETA E TRANSDUÇÕES .............................................. 280

ANEXO A – IMAGENS GRÁFICAS................................................................................. 298

ANEXO B - “ARLECCHINO E LA VALLE DELL’OMO ”.............................................. 304

ANEXO C – PUBLICIDADE 1........................................................................................... 305

ANEXO D – PUBLICIDADE 2........................................................................................... 307

ANEXO E – PUBLICIDADE 3 ........................................................................................... 308

ANEXO F – CARTAZ ........................................................................................................ 309

ANEXO G – PROGRAMA 1............................................................................................... 310

ANEXO H – PROGRAMA 2............................................................................................... 311

ANEXO I – “L´ARLECCHINNO ERRANTE”................................................................... 312

ANEXO J - IMAGENS “ALLA RICERCA DI UN ZANNI” ............................................. 313

ANEXO L – DVD ................................................................................................................. 314

 

 

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APRESENTAÇÃO

Esta tese intitulada “VARDA CHE BAUCCO! TRANSCURSOS FLUVIAIS DE UMA

PESQUISATRIZ: BUFÃO, COMMEDIA DELL’ARTE E MANIFESTAÇÕES

ESPETACULARES POPULARES BRASILEIRAS” vem apresentar uma pesquisa que foi

engendrada ao longo de alguns anos. Anos estes que antecedem o período da mesma, dentro

da instituição universitária – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de

Teatro da Universidade Federal da Bahia – pois teve seu início na imaginação de uma criança.

Considerando uma imaginação que retumba e pulsa de maneira sutil e continua na sua

silenciosa equação, quando ouvia meus nonnos⁄avós e genitori⁄pais falarem em dialeto

italiano, navegava entre mundos brasileiros e italianos, num universo imaginário sem

fronteiras e passaportes. Quando fazíamos brincadeiras, atrapalhávamo-nos com alguma

ordem dada por eles, ou ainda, quando fazíamos travessuras, meu pai falava logo “Ma varda

che baucco!”. Traduzindo de modo coloquial, “Varda che baucco” é uma espécie de

advertência jocosa “Mas olha que maluco! Que coisa de louco! Mas, que loucura!” e escutá-la

me fazia rir muito.

Cresci ouvindo esta e outras expressões veneto-friulanas, como também ouvindo

minha mãe falar da “Mãe Preta”, no caso, minha bisnonna⁄bisavó por parte da mãe, uma negra

fugida dos arredores de Salvador, que encantou meu bisnono, recém-chegado das terras

estrangeiras, e partiu com ele para o sul do Brasil. A partir desta “convivência” com Salvador

e Itália, estes mundos longínquos integravam o grupo de cidades/países/lugares que visitava

diariamente em minha imaginação.

O tom jocoso da expressão advinda da região de Veneza, região na qual, segundo

Fausto Nicolini (1993), a Commedia dell’Arte fez seu grande nicho na Itália, traduz, também,

um pouco do que é esta tese: um transcurso que, no primeiro olhar, parece um emaranhado de

conceitos enredados de forma “baucca”. Pois, para se apropriar das máscaras dell’arte, faz-se

um percurso através da construção de uma técnica de bufão, depois, da edificação de uma

técnica que traz como base a assimilação da própria cultura, para então apresentar um

caminho de possível acesso e apropriação destas máscaras.

Diz-se que o caminho escolhido é, de certa forma, baucco, porque se poderia,

simplesmente, entrar em uma escola italiana de commedia dell’arte e seguir toda a sua

formação, de acordo com as metodologias que estas apresentam. Mas investigam-se os

processos criativos que se realizaram ao longo de um percurso e, esta atriz e pesquisadora,

 

 

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esta pesquisatriz - cujo termo foi adotado por achar que ele dá conta desta natureza do ator de

processos criativos, um ator que não se detém à atuação e se estende às questões teóricas que

envolvem e adentram a pesquisa1 - foi comovida a estruturá-los e aqui os apresenta como tese.

Não foi somente o desejo de aprender a commedia dell’arte, mas de apreendê-la

através do próprio referencial cultural popular brasileiro. Talvez, por ter convivido, de certa

forma, com as culturas, italiana e brasileira, na minha imaginação, as duas sempre estiveram

relacionadas e faziam/fazem parte da minha convivência.

Os transcursos que tento delinear aqui fazem parte destes engendramentos que se

alimentaram na lembrança e na imaginação, aliados a movimentos de afetos que foram

acontecendo ao longo de minha formação teatral.

Todas estas afetações entre passado, presente e futuro, encontraram/encontram um

espaço de sonho e de poética para se realizar, um espaço que se transforma/metamorfoseia-se

em um corpo que atua e se realiza em impulso criativo. São impulsos que, aos poucos, vão-se

deixando desvelar, mostrando suas vertentes rizomáticas, transbordamentos e capacidades de

agregações.

Neste processo, foi difícil deixar de lado alguns dados, algumas práticas espetaculares

populares brasileiras, mas era necessário, se não limitar, ao menos, delinear uma área de

atuação, sem descartar aquelas que não foram contempladas, mas também não abraçando

todas as práticas espetaculares populares brasileiras e máscaras dell’arte italianas, pois seria

um horizonte muito vasto. Para realizar um vislumbramento dos “recortes” desta tese, foi

necessário adotar algum tipo de critério, não se desejava anular, reduzir ou negar experiências

que colaboraram para o transcurso realizado, mas buscar um modo de qualificação. Então,

todo o processo passou a ter como “norte” as profundas experiências sensíveis.

Nesta perspectiva, a técnica do Bufão que foi criada traz a percepção da parte mítica e

do universo dionisíaco que é inerente à máscara. Não seria possível viver a experiência

mitificante e mistificante nas máscaras dell’arte se não soubesse de onde advinha a força

misteriosa das mesmas.

A segunda técnica que integra o transcurso de apropriação das máscaras dell’arte

consiste em um processo de assimilação da própria cultura popular brasileira, para daí, a partir

dela, apropriar-me da cultura da alteridade.

                                                            

1 O termo “pesquisator” já tinha sido utilizado pela Drª Maria de Lourdes Rabetti, no ano de 1994 (no mês de maio). O termo consta no programa da leitura pública da peça “O dote” de Artur Azevedo (RABETTI, 1994, p.4-5).  

 

 

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A terceira técnica, na verdade, não é de commedia dell’arte, mas uma técnica de

acesso e apropriação das máscaras da commedia dell’arte continianas, a qual, para acontecer,

apoia-se nas duas anteriores. Esta técnica constitui o nó impulsionador desta tese, pois, foi o

vislumbramento dela que deu início à busca de uma estruturação do transcurso desenvolvido

por esta pesquisatriz, um caminho que “funde” as três técnicas apresentadas nesta tese.

Nas máscaras dell’arte, a pesquisa reteve-se nas máscaras do Zanni, Servetta, Nobile,

Cortigiana, Pantalone, Capitano, Brighella e Arlecchino (todas as máscaras são

contextualizadas no Capítulo IMAGINAÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS) e nas

manifestações brasileiras da Capoeira, Maculelê, Maracatu, Coco, Ciranda, Xaxado,

Caboclinho, Frevo, Samba, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás2 (as práticas espetaculares

populares brasileiras são contextualizadas no Capítulo FESTAROLAS DE TRANSDUÇÕES

– TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA DELL´ARTE). Como pesquisatriz movida por

afetos, sei que certos caminhos podem ser complicados, mas também sinto que, quando

aspectos sensíveis são movidos, podem existir conexões que fogem de uma lógica racional,

agindo no campo da subjetividade.

É este aluvião subjacente do imaginário de uma pesquisatriz que tento emergir,

estruturando-o em técnicas para a cena. Nada mais que memória e imaginação, este é o

conteúdo imaterial que trabalho, transformando-o em material de cena e de estudo.

                                                            

2 É necessário deixar claro que, nesta pesquisa, são enfocadas as “danças dos Orixás” e não as religiões afro-brasileiras (Candomblé, Umbanda e vertentes), das quais tais danças fazem parte. Mas é claro que serão realizadas algumas explicações destas religiões, para contextualizar as danças, quando necessário.

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1. INTRODUÇÃO

Ao iniciar as conjecturas que relatam o transcurso de desenvolvimento desta tese, devo

anunciar que considero como primeiro pressuposto a fala de que este processo de pesquisa

está submerso na subjetividade. Isto não significa que se trata de uma experiência sem

profundidade, uma vez que diz respeito a um estudo objetivo e concreto dentro do que se

propõe: uma possibilidade de acesso às Máscaras dell’Arte através de células de

Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras, a partir de experiências vividas

sensivelmente. Quando afirmo que esta pesquisa é submersa na subjetividade, tenho o desejo

de sublinhar que a mesma foi movida por um primeiro impulso sensível e que a busca pela

compreensão teórica dos afetos que moviam este impulso surgiu de maneira consequencial e

necessária.

Dentro destas expectativas, afirmo ainda que o mar em que esta se encontra

mergulhada está, numa primeira e/ou última instância, nesta interlocutora (entre locução),

pois foi quem inicialmente percebeu sensivelmente a ação deste imaginário. Escrevo como

alguém que experienciou a ação do imaginário no próprio corpo, em atitude lúdica e

imaginação.

Quanto às especificidades concernentes a esta explanação, alerto para o fato de que:

“Esta pesquisa flutua!”. Mais uma vez, devo chamar a atenção para uma expressão que utilizo

e destacá-la como a exclamação advinda da constatação de que ela não possui uma âncora

lançada em terra firme, ela é uma jangada flutuando em mar aberto e que, principalmente, não

terminará com esta tese, continuará flutuando em novos mares e oceanos, redescobrindo-se

em possibilidades e desdobramentos, por isso a ideia de não ancorar, mas de vaguear ou

vadiar1.

O processo criativo que apresento alimenta-se de subjetividade, movimenta-se num

imaginário, um espaço tão movediço que somente aqueles que experimentam e se co-movem

através dele podem comprovar seu furor. Um processo no qual as relações imagéticas são de

grande importância, e suas inúmeras articulações são as fontes de comoção para o acesso à

commedia dell’arte.

Antes de prosseguir com as considerações sobre esta pesquisa e as dinâmicas

1 Algumas utilizações do termo vadiar, segundo o Dicionário Virtual Houaiss 1.0: passear de um lado para outro, vaguear; entreter-se com jogos, brincadeiras, divertir-se; jogar capoeira; nos candomblés de caboclo, dançar segundo o rito.

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conectivas dialógicas entre a commedia dell’arte e as manifestações espetaculares populares

brasileiras, é preciso especificar de quais manifestações espetaculares populares brasileiras,

está-se fazendo referência e de qual commedia dell’arte e Máscaras dell’arte este estudo dá

conta.

Começo destacando que a prática dentro das manifestações espetaculares populares

brasileiras que envolvem esta pesquisa estende-se ao Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo,

Caboclinho, Xaxado, Capoeira, Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás2. Tais

manifestações espetaculares populares brasileiras que integram a pesquisa não foram

escolhidas segundo preceitos ou padrões, foi o corpo, a musculatura, que as requeria como

suporte. Para cada máscara que trabalhava, o corpo foi buscar, nos circuitos musculares que já

conhecia, a força propulsora e energética que necessitava para fazer uso e apropriar-se das

máscaras dell’arte - como se procurasse um caminho conhecido para chegar ao “novo” que se

apresentava como experiência.

Por este motivo, não é possível criar um elenco de justificativas para a eleição e uso de

cada manifestação citada, como também não é possível justificar a ausência de outras.

Certamente, se a pesquisa tivesse outras experiências dentro da commedia dell’arte para

relatar e/ou se estendesse por um tempo maior, outras manifestações espetaculares populares

brasileiras seriam utilizadas e elencadas. Como já dito, é o corpo que vai buscar o circuito que

lhe serve como ponto referencial de musculatura, energia e ação. A escolha das manifestações

brasileiras e das máscaras dell’arte que integram esta pesquisa são dados flutuantes -

concordando com Deleuze, quando este cita Hume, que o dado é “[...] o fluxo do sensível,

uma coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções” (DELEUZE, 2008, p.

95). Com isso, não é possível fechar a pesquisa em um número fixo de manifestações, tanto

brasileiras quanto italianas. Quero dizer que a pesquisa poderia estender-se por todas as

manifestações espetaculares populares brasileiras e todas as máscaras dell’arte, mas o elenco

que a integra é, somente, uma consequência das experiências adquiridas, tanto dentro das

manifestações espetaculares populares brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo,

Caboclinho, Xaxado, Capoeira, Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás), quanto das

Máscaras dell’arte (Zanni, Brighella, Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Nobile/Innamorata,

Pantalone e Capitano). Como já mencionado, se houvesse tempo maior de experienciar,

2 Minha prática na área da dança começou na infância com a ginástica artística e o balé clássico, na adolescência com jazz, dança moderna e cursos de danças populares brasileiras. Posteriormente, a dança acompanha toda minha formação teatral (professora, atriz e diretora) como atividade paralela e, na Pós-Graduação, além de continuar a formação complementar em dança, participava das festividades populares, aprendendo dentro das próprias festas e com os populares. A capoeira já tinha tido contato com ela no Rio Grande do Sul, mas foi em Salvador, com o Mestre Alabama, que tive a prática sistemática desta.

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certamente as conexões alastrar-se-iam por muitos outros caminhos.

Sobre a commedia dell’arte, são muitas as escolas especializadas neste teatro que

povoam o território italiano, onde cada qual desenvolve sua estética, estilo e formação de uma

técnica. Algumas fazem a commedia dell’arte mais oitocentista, também conhecida como

commedia à francesa, outras partem para a linhagem quinhentista ou medieval e, ainda, tem

aquelas que trabalham com uma estética mais “veneziana”, que, na verdade, são as máscaras

que pertencem ao carnaval de Veneza e não, necessariamente, fazem parte da commedia

dell’arte. Esta pesquisa faz referência à commedia dell’arte da Scuola Sperimentale

dell’Attore, realizada, redesenhada, defendida e difundida por Claudia Contin e Ferruccio

Merisi, importantes pesquisadores (prático-teóricos) da área. Ambos se dedicam à commedia

dell’arte mais próxima àquela feita nas praças medievais, de 1400, 1500, 1600, para a qual

construíram um treinamento que requer muita aplicação, mas que se mostra muito eficaz para

a técnica em que se empenham. Este treinamento é altamente codificado e com máscaras

físicas totalmente engendradas do imaginário da cultura popular italiana, o qual se constitui

de: golpes de máscaras, máscara física, movimentação codificada das máscaras físicas,

improvisação com as máscaras, construção de canovacci (roteiros das peças), construção das

máscaras em papel machê e, posteriormente, em couro e trabalho de voz específica para as

máscaras.

A escolha pela commedia dell’arte continiana tem a ver com uma simpatia pessoal

pelo trabalho destes mestres3. Uma perspectiva que convocou meus afetos e conquistou-me de

maneira sensível e muito objetiva, pois, através do trabalho destes pesquisadores, tive fortes

percepções imaginativas da realização das conexões entre as máscaras da commedia dell’arte

e as células de manifestações espetaculares populares brasileiras4.

Neste momento, é necessário chamar a atenção para um ponto muito importante desta

pesquisa, não se está buscando estabelecer correspondências, traçar paralelos ou fazer

comparações entre as manifestações espetaculares populares de ambos os países que integram

esta pesquisa, pois se trata de expressões artísticas culturais diversas e de campos diferentes

(teatro, dança, luta e ritual). É justamente por se tratar de expressões artístico/culturais tão

diversificadas que é impossível, para uma só tese, dar conta do imenso manancial que se

forma.

3 Refiro-me a Contin e Merisi como mestres de Commedia dell’Arte, pelo conhecimento (“maestria”) destes dentro deste gênero de teatro. 4 É necessário dizer que foram realizadas experiências também com outras escolas e estilos de commedia dell’arte (Pantakin, Carlo Bosso, Lecoq) e, por fim, optou-se pela escola redesenhada por Contin e ensinada na Scuola Sperimentale dell’Attore.

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Por esta pesquisa tratar de um percurso muito específico de relações conectivas que

aconteceram e acontecem, primeiro, de maneira sensível, é que não se configura da urgência

desta tese procurar vínculos de similaridades e correspondências entre as culturas5 destes dois

países. Não se pretende equiparar as manifestações espetaculares populares brasileiras

concernentes (conjuntamente ou cada uma delas) e a commedia dell’arte (o fenômeno teatral

ou cada máscara), porque esta pesquisa navega e mergulha em outros tipos de mares,

correntes e oceanos. Considerando os transcursos fluviais desta pesquisa, ter como

abordagem questões aproximativas, comparativas ou de equiparações entre a commedia

dell’arte e as manifestações espetaculares populares brasileiras provocaria um desvio muito

grande do seu cerne.

Nesta tese, tenta-se dar conta de um caminho de acesso às máscaras dell’arte muito

específico, no qual esta pesquisatriz lançou mão de todo o acervo muscular e energético que

possuía para realizá-lo. Não se está negando a importância de relações dialógicas de

equiparações, aproximações e comparações, o que se percebe é que cada uma destas seria

tema para uma nova pesquisa de tese, pois são outros universos que se abrem a cada conexão

estabelecida. Aqui, as relações aconteceram e acontecem em outras vias conectivas, sendo

prioridade as conexões musculares e energéticas, o que não significa dizer que relações de

outras naturezas não serão convocadas quando há a necessidade destas para uma melhor

compreensão das conexões primordiais desta pesquisa. Tal como aconteceu com o Bufão, o

qual se tornou parte importantíssima da mesma, pois não se pode esquecer que, para

compreender muito das máscaras dell’arte, é preciso compreender, também, o universo

carnavalesco: reino do Bufão por excelência. E foi desta maneira que se percebeu a

necessidade de entrar nas águas do oceano bufonesco.

Tanto como as manifestações espetaculares populares brasileiras, as máscaras dell’arte

que integram as experiências desta pesquisa também não tiveram um “processo de seleção”.

Num primeiro momento, experimentei todas as principais máscaras dell’arte (Zanni,

Brighella, Arlecchino, Pulcinella, Pantalone, Ballanzone, Capitano, Servetta, Cortigiana e

Nobili), posteriormente, em intensos laboratórios específicos, experenciei o universo de

algumas máscaras e foi a partir desses mergulhos profundos que as conexões foram

fortalecendo-se. Como já dito, não foi possível adentrar de modo intenso em todas as dez

principais máscaras da commedia dell’arte, faltando aqui, para completar, os mergulhos nas

5 Tomando como ponto de vista parcial, a compreensão de cultura da pesquisadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo, a qual compreende cultura como o conjunto de crenças, valores, tradições, vivências, atitudes, visões e compreensões de mundo, que formam um povo.

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máscaras de Dottore/Ballanzone e Pulcinella. Para tanto, seria necessário prolongar o período

das experiências, contudo, como a pesquisa se encaminha dentro de um sistema institucional

acadêmico, o qual segue regras e datas, deixarei estas duas máscaras, como também, tantas

outras manifestações espetaculares populares brasileiras e conexões entre estas, para

vadiagens além desta tese e/ou como encaminhamentos para pesquisas posteriores.

Anterior, paralela e posteriormente, ao processo de apreensão das principais máscaras

físicas da commedia dell’arte, segundo ensinamentos de Claudia Contin e Ferruccio Merisi,

as máscaras de Zanni, Brighella, Arlecchino, Capitano, Pantalone, Servetta, Cortigiana e

Nobile foram transpassadas por células das manifestações espetaculares populares brasileiras

e, certamente, se houvesse tido tempo para executar um laboratório aprofundado de

Dottore�Ballanzone e Pulcinella, encontraria também muitas conexões rizomáticas entre a

cultura popular brasileira e estas máscaras dell’arte.

Com as máscaras dell’arte, aconteceu e acontece, a cada novo experimento, a

impossibilidade de limitar a experiência a um número específico de máscaras e práticas

espetaculares populares brasileiras para a realização das conexões rizomáticas. Então, viu-se

que a solução era restringir esta tese às experiências realizadas, intentando mostrar um

transcurso mais preciso e específico.

Antes de prosseguir e adentrar as questões pertinentes ao desenvolvimento da

pesquisa, é necessário fazer observações sobre algumas expressões que serão utilizadas ao

longo das explanações. Cesare Molinare faz uma grande reflexão sobre a commedia dell’arte

e como esta deve ser considerada em relação à sua natureza:

Dado que a commedia dell’arte é um gênero teatral, talvez não seja um gênero tão forte como o nô japonês e nem mesmo como a ópera italiana, mas um gênero considerando o modo como este termo é usado na literatura, na qual se distingue entre romance, tragédia, épico, etc.: uma abstração e uma normativa. Uma abstração que procura reunir em uma mesma categoria fenômenos diferentes, porém, através alguns de seus traços assimiláveis; e uma normativa com tendência a definir estes traços pertinentes e os impor como necessários (1985, p.15).6

Nesta pesquisa, é adotada a visão de que a commedia dell’arte pode ser vista como um

gênero teatral, então, ao longo da mesma, muitas vezes, a palavra “gênero” será empregada

para se fazer referência a ela.

Da mesma maneira, o termo mais utilizado para se reportar às máscaras da commedia

6Tradução da autora: “Poiché la commedia dell’arte è un genere teatrale, non magari un genere forte come il nô giapponese, forse nemmeno come l’opera italiana, ma un genere nel senso in cui questo termine si usa in letteratura, dove si distingue fra romanzo, tragedia, epica e quant’altro: un’astrazione e una normativa. Un’astrazione che cerca di riunire in una stessa categoria fenomeni differenti, ma per qualche loro tratto assimilabili; e una normativa tendente a definire questi tratti pertinenti e a imporli come necessari.”

18

dell’arte será “máscara”, já que, para esta pesquisadora, tais máscaras trazem em si a ideia do

arquétipo e de um imaginário que se concretiza naquele objeto (posteriormente, adentra-se à

questão do imaginário), o qual funciona como uma espécie de ícone e “link”7 para este

universo transcendente. A palavra “link” - termo emprestado da área da informática - é

utilizada, aqui, como uma metáfora. Ela aparecerá, muitas vezes, coligada à palavra “objeto”

(objeto/link) e serve para sublinhar a potência da máscara/objeto como um portal a este

universo transcendente. Para esta pesquisa, a máscara/objeto quando acionada (portada,

nominada ou na sua compreensão) funciona (em ideia) como um link, abrindo outro

“hiperdocumento” - o universo (arquétipo) do/no qual ela foi engendrada e representa. A

palavra link, fazendo-se valer das considerações de Bachelard8 sobre o uso cuidadoso de

analogias e metáforas e reforçando este uso da última com o olhar de Maffesoli9, ela

“empresta” sua capacidade de sintaxe e dinâmica auxiliando a compreensão do

funcionamento da máscara dentro da commedia dell’arte. Contudo, sublinha-se que, para esta

pesquisa, a Máscara constitui um grau de excelência tal que constitui uma categoria, não

estando no mesmo grau dos personagens ou tipos.

Ainda sobre a máscara, este estudo tentará dar conta das máscaras da commedia

dell’arte intrincadas nas experiências que formam os transcursos desta pesquisatriz, pois são

muitos os estudos sobre “Máscara”- olhares que a mostram de forma mais geral e abrangente

ou que enfocam, somente, a relação entre máscara e ritual; ou ainda que se dedicam,

exclusivamente, à máscara como fenômeno estético e teatral; ou os que se aprofundam nas

relações exclusivas da máscara com o teatro oriental ou com festas populares da América

Latina e do Ocidente. Alguns destes estudos servem como base de conhecimento na área,

outros se dirigem sobre casos específicos e outros ainda, são considerados referenciais da

commedia dell’arte, mas todos serão convocados na medida em que o discurso avançar e se

fizer necessário introduzir a compreensão do universo que se apresenta diante das máscaras

dell’arte que integram este estudo10.

7 Do dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0: substantivo masculino. Rubrica: informática - elemento de hipermídia formado por um trecho de texto em destaque ou por um elemento gráfico que, ao ser acionado (ger. mediante um clique de mouse), provoca a exibição de novo hiperdocumento. 8 Para saber mais ler: “A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento” de Gaston Bachelard (1996). 9 Para saber mais ler: “Elogio da Razão Sensível” de Michel Maffesoli (2008). 10Podem-se citar, aqui, alguns estudos sobre a máscara, com visões generalizadas, específicas de rituais, carnavalescas ou teatrais: “L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo” de Daniele Vianello; “Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra” de Roberto Tessari; “La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni” de Alessandra Mignatti; “Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte” de Claudia Contin; “Commedia dell’arte: Le Jeu Masqué” de Michele Clavilier e Danielle Duchefdelaville; “Les jeux et les hommes – Le masque et le vertige” de Roger Caillois ; Tracce di teatro sciamanico tra Africa e

19

Embrenhar-se em uma busca exclusiva sobre a máscara ao longo da história seria, para

esta tese, uma confrontação não justa, dado que se trata de um campo muito abrangente.

Ainda se dirigisse o campo investigativo para o que a máscara representa em cada uma das

duas culturas, o discurso não se tornaria menor. Quando se fala de máscara, nas duas culturas,

formam-se inúmeras encruzilhadas e, neste caminho, acaba-se por abrir muitas outras janelas,

o que continuaria afastando o discurso do objetivo central desta tese, que é o caminho de

acesso às máscaras da commedia dell’arte através de células (movimentos, golpes, passos) de

manifestações espetaculares populares brasileiras.

A relação das duas culturas não se dá de modo comparativo ou por equivalências,

busca-se detalhar um modo de acesso a um gênero teatral de uma cultura diferente, “através

da própria cultura”. Como dito, não se trata de uma aproximação entre as manifestações

espetaculares populares de ambos os países, trata-se de um modo muito particular de

apropriação das máscaras da commedia dell’arte, diria até mesmo “antropofágico” - pois foi o

meu corpo que, metabolizando as máscaras da commedia dell’arte após “ingeri-las”, fez-me

perceber, através de mecanismos/metabolismos muito próprios, que era possível realizar

aquelas máscaras tendo como referências musculares e energéticas as experiências que já

eram inerentes ao meu corpo.

Outro ponto importante que deve ser destacado é que, tanto as máscaras da commedia

dell’arte quanto as danças, a capoeira e o maculelê, estas são vistas como manifestações

espetaculares populares, certamente, que cada qual advinda da cultura de um país diferente e

de áreas diversas (dança, teatro, luta, ritual). É preciso explicar, todavia, que não se trata de

colocá-las na mesma condição, mas de considerá-las vindouras da mesma força criativa e é,

nesta instância, que elas cruzam-se e conectam-se.

Além disso, é preciso dizer que muitos são os teóricos que não consideram a

commedia dell’arte como uma manifestação espetacular popular, uma vez que ela integraria o

grupo das artes maiores ou superiores, também consideradas “eruditas”11. Segundo Guarino

Mediterraneo. Le maschere e la danza come contatto con stati di coscienza “diversi” de Giovanni Azzaroni; “La maschera di Bertoldo. Le metamorfosi dell villano mostruoso e sapiente. Aspetti e forme del Carnevale ai tempi di Giulio Cesare Croce” de Piero Camporesi; “Pulcinella. La maschera nella tradizione teatrale” de Carmine Coppola; “L’Uomo e la Maschera” de Alfonso Renzo Degano; “Mistero buffo. Giullarata popolare” de Dario Fo; “Le Maschere Veneziane” de Danilo Reato; “I Mamuthones. Testimonianza diretta dalle tradizioni di Mamujada (Sardegna)” de Franco Sale; “Arte della Maschera nella Commedia dell’Arte” organização de Donato Sartori e Bruno Lanata; “As máscaras de Deus – Mitologias Primitivas” de Joseph Campbel; “ Festas: Máscaras do Tempo. Entrudo, Mascarada e Frevo no Carnaval do Recife” de Rita de Cássia Barbosa Araújo; “No Pulso do Ator: Treinamento e Criação de Máscara na Bahia” (tese Doutorado UFBA) de Isa Maria Faria Trigo; “Dal rito al teatro” de . Victor Turner; “Il Fool e il suo scettro. Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni e dei giullari” de William Willeford. 11 Como exemplo, pode-se citar Raimundo Guarino, o qual foi meu orientador na Univercità di Roma Tre e que,

20

(2005), a commedia dell’arte estaria neste grupo por apresentar uma grande complexidade,

enquanto que dentre as artes menores estariam aquelas consideradas mais “simples”, como o

circo. Nesta pesquisa, além de não se considerar a hierarquia de “arte superior ou maior” e

“arte inferior ou menor”, também existe a posição pessoal contrária a tal hierarquia, pois, para

esta pesquisadora, o popular não é visto como menor ou inferior e, muito menos, simples. O

que é “da qualidade do popular” revela-se, cada vez mais, como uma estrutura de natureza

muito complexa, como se pode ler no estudo do pesquisador Erico José Souza de Oliveira

(2007). Para esta pesquisa, sem adentrar em questões sociológicas ou antropológicas e

discussões sobre o que abarca o “popular”, o termo é adotado como advindo de um povo.

O transcurso realizado, ocupando células de algumas manifestações espetaculares

populares brasileiras para se apropriar das máscaras da commedia dell’arte, é repetido com

novas combinações, a cada novo acesso às máscaras. São níveis e subníveis de conexões

dialógicas que fazem parte de outras sutilezas, como energias e corporeidades que me

permitem chegar à linguagem codificada de cada máscara da commedia dell’arte. É com este

transcurso que as máscaras dell’arte ganham vida, através de um teor muscular, energético e

qualidades de tensões e movimentos que estão dentro das possibilidades de cada máscara.

O primeiro capítulo tenta dar conta das teorias que permeiam este mecanismo

imaginativo, buscando conceitos e usando a metáfora como elemento importante para a

compreensão de tais mecanismos.

O segundo capítulo tenta colocar em evidência a cena, a técnica para a cena e a teoria

da cena. Ele adentra o universo mítico do bufão, relata a construção da técnica para esta

máscara e desvenda o pensamento que está por traz deste universo, conectando-se com o

carnaval e as festividades populares brasileiras.

O terceiro capítulo conecta o bufão à Máscara dell’arte e traz um panorama das

manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa, sinalizando

possíveis caminhos de conexões entre tais práticas e as máscaras dell’arte.

O quarto capítulo traz o universo das máscaras dell’arte, principalmente das

continianas, e intenta mostrar os encaminhamentos de acesso e apropriação das máscaras -

como estas podem ganhar vida através de códigos das manifestações espetaculares populares

brasileiras. Este capítulo se relaciona diretamente com o APÊNDICE E, no qual estão

em conversa de orientação, chamou minha atenção para o fato que a commedia dell’arte não é uma manifestação espetacular popular, pois se trata de uma arte complexa e requintada. Esta divisão entre “artes maiores” e “artes menores” é ideia muito difusa na Europa e Camporesi, no seu livro “Rustici e buffoni. Cultura popolare e cultura d’élite fra Medioevo ed età moderna.”, faz uma discussão detalhada sobre esta divisão, aconselha-se, para aqueles que se interessam pelo assunto, fazer a leitura da obra de Piero Camporesi, acima citada.

21

contidos os roteiros do espetáculo realizados na Scuola Sperimentale dell’Attore, cuja direção

é de Claudia Cotin e Ferruccio Merisi “Papaietta Poliglota” e da Aula-Espetáculo

“Transduções Caleidoscópicas e Imaginações: Máscaras dell’Arte e Cultura Popular

Brasileira”, cuja direção é de minha autoria.

Ainda, através de documentos e relatórios, os ANEXOS buscam ilustrar, comprovar,

enfim, complementar algumas das conjecturas realizadas ao longo da tese que traz, ainda,

como apoio à explicação e compreensão dos transcursos realizados, um DVD, o qual contém

imagens que tentam mostrar um pouco dos processos e resultantes da prática desta pesquisa.

Não resta senão começar as implicações que dizem respeito a este mar aberto em que

me coloco. Não resta senão lançar-se e intentar desvelar os transcursos realizados.

22

2. (UM) UNIVERSO (E UM) IMAGINÁRIO

2.1. IMAGEM/IMAGINÁRIO: O MAR EM QUE SE MERGULHA

Fruto de um devaneio1, esta pesquisa vem legitimada na ideia de imagem/imaginário,

em Gaston Bachelard2, cuja exposição se dará ao longo do desenvolvimento da mesma.

Este estudo tem como principal objetivo justificar um acesso às máscaras da

commedia dell’arte, por meio de um trajeto particular realizado através do estudo das mesmas

e de algumas manifestações espetaculares populares brasileiras.

A intenção é de investigar este gênero teatral, o qual tem como elemento representante

a máscara, ou melhor, a meia-máscara e, através de uma prática das danças do Cavalo-

Marinho, do Coco, da Ciranda, do Samba, das danças dos Orixás, do Xaxado, do Caboclinho,

do Frevo, do Maculelê, do Maracatu e da Capoeira, pinçar movimentos que sirvam como

motor e propulsor das máscaras dell’arte – Zanni, Servetta, Cortigiana, Pantalone, Capitano,

Brighella, Arlecchino e Nóbile - dando vida a estas.

Para esta pesquisa, as máscaras da commedia dell’arte são vistas como ícones, são

verdadeiros portais de acesso a todo um universo imaginário, o qual se concretiza no

objeto/link “máscara” e se reafirma em uma máscara física muito específica. Cada máscara

dell’arte é constituída do objeto/link e da máscara física, onde esta última se torna a

complementação e o suporte para o primeiro se movimentar e ganhar vida. Cada máscara

possui codificações de posturas, movimentos, relacionamentos e exigem do ator que deseja

portá-las uma preparação específica e detalhada.

O estudo e prática das máscaras dell’arte e das manifestações espetaculares populares

brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Frevo, Capoeira, Samba, Xaxado, Maculelê, Cavalo

Marinho, Dança dos Orixás e Caboclinho) que integram esta pesquisa permitirão a realização

de um caminho de acesso à commedia dell’arte ímpar, através de células e micropartículas de

ações, movimentos e composições pinçados das manifestações supracitadas.

Este outro caminho percorrido pelo pesquisator é, na verdade, uma possibilidade de

apropriar-se das máscaras dell’arte a partir de outras experiências já incorporadas por ele.

Portanto, é muito importante que, antes de tentar realizar o tipo de conexão que se apresenta

1Do dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0: verbo transitivo direto – 1 conceber na imaginação; sonhar. Gaston Bachelard utiliza o devaneio como a capacidade que o ser humano tem de “sonhar acordado”, ou seja, de conceber na imaginação, agir dentro de outra instância que não a realidade objetiva - Viola Spolin chama de “realidade objetiva”, a realidade compartilhada em sociedade. Para saber mais, ler: A terra e os devaneios do repouso, de Gaston Bachelard e O Jogo Teatral no Livro do Diretor, de Viola Spolin. 2Para saber mais sobre a imagem e imaginário em Bachelard, ler: O direito de sonhar, de Gaston Bachelard.

23

nesta tese, o ator que se aventurar por este caminho realize a prática (danças, golpes) das

manifestações espetaculares populares brasileiras a que se faz referência.

Esta experiência de encontrar outro caminho de acesso às máscaras à italiana se

concretizou através da generosa atenção de alguns mestres e colaboradores, como Mestre

Alabama (Capoeira Regional e Angola - Salvador – BA); Mestre Biu Alexandre (Cavalo-

Marinho de Condado – PE); Ekedy Sinha (Terreiro da Casa Branca – Salvador – BA); e

outros anônimos das brincadeiras carnavalescas brasileiras e dos pesquisadores Arlecchino

Claudia Contin e Ferruccio Merisi – idealizadores da Scuola Sperimentle dell’Attore3

(Pordenone-Itália).

É preciso dizer que não foi a partir do contato com Claudia Contin e Ferruccio Merisi

que esta pesquisa nasceu, ela já estava encaminhada e estes dois pesquisadores se tornaram a

certeza de que estava fazendo um caminho seguro e consistente. Meu primeiro contato com

um treinamento de commedia dell’arte foi ao estilo de 1800, muito mais próximo da forma

francesa de fazer este gênero de teatro, um modo mais refinado. Este caminho inicial foi por

volta de 1998 e o encaminhamento daquele treinamento, muitas vezes, fugia dos domínios de

meu corpo, pois eram indicações estrangeiras ao meu conhecimento físico. Para tentar realizar

os movimentos que me eram pedidos, utilizava alguns conhecimentos que já faziam parte de

meu corpo4 e, dessa forma, conseguia dar vida às máscaras dell’arte - através de um “acervo”

que já fazia parte de minhas vivências físicas e sensíveis, trazidos por lembranças imagéticas,

se tratava de posturas e movimentos que fazem parte de algumas manifestações espetaculares

populares brasileiras.

Antes de continuar com as relações que formam a base desta pesquisa, é necessário

esclarecer que esta se empenhará em relatar as conexões que se realizaram entre as máscaras

da commedia dell’arte (Zanni, Arlecchino, Brighella, Capitano, Pantalone, Servetta,

Cortigiana e Nobile) e as manifestações espetaculares populares brasileiras integrantes da

mesma (Coco, Ciranda, Maracatu, Frevo, Caboclinho, Xaxado, Maculelê, Samba, dança dos

Orixás, danças do Cavalo Marinho e Capoeira), sem se ater à historicidade destas, mas

recorrendo a estes dados sempre que se fizer necessário.

As experiências vividas corporalmente, seja nas manifestações espetaculares populares

brasileiras, seja nas máscaras dell’arte, foram intensificadas no estágio realizado na Itália, na

Scuola Sperimentale dell’Attore (PN). Acredito que somente partindo da experiência vivida é

3 A Scuola Sperimentale dell’Attore realiza todos os anos um festival chamado “L’Arlecchino Errante”, o qual busca, a cada edição, a realização de diálogos entre a commedia dell’arte e uma outra cultura. 4 Como já mencionado, me dediquei à dança durante muito tempo, tanto popular, quanto clássica, passando depois, à prática e experiência teatral.

24

possível mostrar com maior nitidez e eficiência o caminho realizado por mim de apropriação

das máscaras dell’arte. Os mecanismos físicos das manifestações espetaculares populares

brasileiras, os quais eram muito mais próximos à minha vivência, trabalhavam em meu corpo

e as lembranças/imagens os auxiliavam a encontrar aquilo que a máscara italiana exigia como

suporte corporal e energético para portá-las.

Com base em tal observação, as buscas pela compreensão da ação daquelas

lembranças/imagens tornaram-se fortes impulsos para a pesquisa, chegando à conclusiva de

que a instrumentalização do comico dell’arte através do treinamento da escola italiana é

válida e necessária, e que o ator pode utilizar instrumentos mais próximos da própria vivência

para acessar as Máscaras que compõem a commedia dell’arte. O treinamento criado pelas

escolas italianas traz a corporatura das Máscaras, as quais, por sua vez, comportam traços da

cultura, seja concreta ou do imaginário, em que foram engendradas. A utilização de recursos

de experiências intrínsecas daquele que deseja “apropriar-se” e “se deixar apropriar” das

máscaras deste gênero teatral, auxilia o corpo, tanto na fisicidade5, quanto na corporeidade6, a

realizar tais apropriações, ou seja, o ator utiliza-se de recursos/mecanismos inerentes ao seu

conhecimento/vivência para chegar a uma “nova” experiência – as máscaras da commedia

dell’arte.

Após a constatação da possibilidade de acessar as máscaras da commedia dell’arte

através de movimentos pinçados das manifestações espetaculares populares brasileiras já

citadas, surgiu a inquietação de saber como acontece tal conexão. O que intrigou e instigou,

numa primeira instância, foi a reverberação entre as imagens/lembranças e as máscaras da

commedia dell’arte.

As Máscaras dell’Arte foram engendradas num tempo espaço longínquo e muito além

das fronteiras territoriais e, nesta pesquisadora, encontraram eco no acervo imaginal e

muscular vindouros de manifestações espetaculares populares brasileiras - tão populares e

com ramificações tão carnavalescas e ritualísticas quanto as das máscaras italianas.

A ideia de um pensamento rizomático, para dar conta desta natureza de conectividade

em que a raiz principal se destrói nas extremidades e “vem se enxertar nela uma

multiplicidade imediata” (DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 14), contempla esta pesquisa de

modo muito satisfatório e coerente, pois esta se situa numa estrutura de pensamento que

trabalha com a conjunção “e”, a qual alia forças para chegar a um resultado, que também não

5“A fisicidade é o aspecto puramente físico e mecânico da ação física [...] a forma dada ao corpo, o puro itinerário da ação.” (BURNIER, 2001. p.55). 6“A corporeidade, é a maneira como as energias potenciais se corporeificam [...] é mais do que pura fisicidade de uma ação [...] é a forma do corpo habitada pela pessoa” (BURNIER, 2001. p.55).

25

é considerado “o resultado”, pois é uma coligação que se encontra no meio da rede.

As máscaras dell’arte que ganham vida através do processo de apropriação abordado

nesta tese estão entre uma dinâmica conectiva das próprias máscaras all’italiana7 e das

manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa. Estas máscaras,

que ganham vida através das supracitadas manifestações, estão no meio de uma rede que se

conecta por muitos lados, elas fazem parte de uma teia que não se sabe onde é o início,

possuindo alianças, de um lado muito concretas e, de outro, totalmente subjetivas. Um

exemplo deste tipo de conectividade é a máscara do Arlecchino e sua conexão com o frevo:

ambas possuem ligações com o carnaval. Esta máscara possui, dentro de suas codificações de

máscara física, posturas com os mesmos circuitos musculares de alguns passos de frevo –

tornando-se uma conexão muito concreta. Por outro lado, possui também a conexão realizada

na atmosfera festiva carnavalesca e no circuito energético – ao adentrarmos à máscara de

Arlecchino, estas conectividades serão tratadas mais a fundo, mantém-se aqui o caráter de

exemplificação.

Foi nesta natureza conjuntiva que a ideia desta pesquisa foi se desenvolvendo e, nestes

pensamentos/caminhos gramíneos, o devaneio ganhou potência e propiciou a atuação dos

princípios da conexão e da heterogeneidade, da multiplicidade, da ruptura a-significante, da

cartografia e da decalcomania - definidos por Deleuze e Guatarri como preceitos do

“pensamento rizoma”8. Estes pensamentos gramíneos proporcionaram a constituição da teia

formadora desta pesquisa – “ervas daninhas” que se alastram em dimensões e/ou direções

movediças e transbordam em imagens.

Desta inquietação, surgiu a necessidade de adentrar as questões que envolvem as

reverberações entre tais manifestações espetaculares populares9. Porém, é necessário dizer

que, ao optar pela compreensão de tais reverberações, se escolhe também um caminho

movediço e escorregadio, no qual a coesão acontece na multiplicidade e subjetivação - esta é

uma característica típica do pensamento rizoma10. Foi esta natureza de pensamento que

executou as conexões realizadoras e motivadoras desta pesquisa, sublinhando, mais uma vez,

7 Utilizarei, neste momento, a expressão “máscaras all’italiana ” para me referir as máscaras físicas sem a interferência propulsora das manifestações espetaculares populares brasileiras, somente com o treinamento italiano, advindo da cultura popular italiana. 8Para saber mais sobre os Princípios do Pensamento Rizoma de Deleuze e Guatarri, ler “Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia” Vol. 1. 9Como dito anteriormente, alguns teóricos afirmam que a Commedia dell’Arte não é uma manifestação popular, pois é altamente requintada e complexa. É necessário dizer que não vejo as Manifestações Espetaculares Populares como um resultado simplório ou menor, mas sim donas de uma espécie de complexidade que podem até aparentar uma falsa simplicidade - a commedia dell’arte é um bom exemplo dessa visão. 10“A noção de unidade aparece unicamente quando se produz na multiplicidade uma tomada de poder pelo significante ou um processo correspondente de subjetivação” (DELEUZE; GUATARRI, 2000. p.17).

26

que:

Ele [o rizoma] não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto [...], linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 14).

É nessa definição de conexões de naturezas em movimento e metamorfose e de um

“[...] sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória

organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados”

(Ibidem, 2000, p.33), que esta pesquisa foi se encaminhando e que Bachelard, Deleuze e

Guatarri se engendram, se liquidificam, se liquefazem e se ramificam no pensamento

formador da mesma.

Mas esse pensamento abarcador e ramificado não implica em falta de profundidade,

ele é tão abrangente que pode conectar-se com uma forma de estruturação mais incisiva, sem

perder a propriedade horizontal. O pensamento rizoma de Deleuze e Guatarri, aos olhos dessa

pesquisadora, pode se conectar com o pensamento raiz de Bachelard11. É certo que a

estruturação do pensamento raiz propõe uma forte unidade principal, uma espécie de pivô que

suporta as raízes secundárias. Mas, e se considerarmos que estas raízes secundárias, no

desenvolver do pensamento, evoluíram tanto que se tornaram tão fortes quanto o era a raiz

central e esta, então, passou a ser mais uma das ramificações, fazendo parte de uma

estruturação de pensamento que se alastra, também, horizontalmente.

Deste modo, este arraigamento não pode ser pensado como única raiz/direção que

irrompe e bifurca, criando, até mesmo, uma espécie de hierarquização ou unificação. Esta raiz

deve ser pensada como gramínia, a qual se alastra de modo vertical e horizontal

simultaneamente.

Seguindo a forma do pensamento raiz de Bachelard, a verticalidade chega a níveis do

inconsciente e este, por sua vez, está conectado com o devaneio, com o sonho, com a alma e

com a realidade – formando uma espécie de rede, sem hierarquias. Por outro lado, com tantas

conexões, é impossível pensá-las como uma imagem puramente vertical, pois, desta forma,

estaria se colocando uma ordem hierárquica. A partir das várias conexões que se estabelecem

com o inconsciente, devaneio, sonho, alma e realidade, começa-se a pensar numa forma

imagética radiculada horizontalmente e, esta natureza de coligação de pensamentos, os quais

podemos dizer, subjetivos, só pode ser visualizada como um rizoma, pois “[...] o rizoma é esta 11Para saber mais sobre o pensamento raiz de Bachelard, ler: A terra e os devaneios do Repouso.

27

produção de inconsciente [...]”(DELEUZE; GUATARRI, 2000, p. 28).

Todas as imagens trazidas por Bachelard que envolvem a raiz/árvore não são expostas

numa escala de valores hierárquicos, mas sim como modos de validação de um pensamento e

destes elementos (copa-galhos-folhas-caule-raiz), como importantes células que fazem parte

de uma série de conexões que o fortificam. Para conectar o pensamento raiz de Bachelard e o

pensamento Rizoma de Deleuze e Guatarri, tem-se que transformar a imagem vertical da raiz

em uma imagem horizontal. Para tanto, deve-se lembrar que, quando Bachelard utiliza a

imagem da raiz/árvore, é para falar da profundidade dos atos/pensamentos que aparentam

serem superficiais, como também, da imagem que auxilia a compreensão da dinâmica entre

sótão/porão, ou copa/raiz, ou fantasias/segredos/lembranças, como um espaço de movimento

e troca de intensidades entre experiências e imaginação, sem dar uma valorização hierárquica.

Ao utilizar uma imagem vertical, como a árvore/raiz, Bachelard não a utiliza como forma de

hierarquização, mas como metáfora ou analogia para a compreensão de um funcionamento da

dinâmica entre realidade e fantasia – como também o fazem Deleuze e Guatarri quando

utilizam a imagem do rizoma.

Por outro lado, Deleuze e Guatarri não negam ou se opõem de modo incisivo ao

pensamento raiz/árvore, ao contrário, eles apontam a possibilidade da conexão da raiz ao

rizoma. Num primeiro caso, eles vêm a raiz como uno e, para incluí-lo na multiplicidade,

devem subtraí-la desta. Para esta pesquisadora, o caso não é de exclusão total, mas de um

deslocamento da posição de uno para codividir uma conectividade múltipla, abortando o

vértice e fazendo brotar novas ramificações, as quais se espalharão de modo gramíneo –

insisto nessa coligação em que a raiz una se abre para dar espaços a novas conexões porque

foi dessa forma que esta pesquisa se desenvolveu – ou, quem sabe, foi assim que ela foi

percebida, primeiro era somente uma raiz e, na medida em que se adentrava ao campo prático,

a mesma desabrochou em ramificações, tão amplamente que dar conta destas florescências se

tornou muito difícil.

Em outro momento, Guatarri e Deleuze (2000, p.31) afirmam que mesmo aquilo que é

subjetivo possui, em algum momento, uma ligação mais profunda e essa profundidade pode

ser ligada à imagem de uma raiz – a qual não precisa ser “uno”:

O que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça o mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias e suscite um canal despótico.

28

Com isso, parece muito oportuna a opção em conectar o pensamento rizoma e o

pensamento raiz, pois da mesma forma que Bachelard utiliza a imagem da raiz/árvore como

uma analogia para a compreensão das dinâmicas entre realidade e fantasia, pode-se utilizá-la

como imagem metáfora que irá servir para a compreensão de uma ligação mais profunda com

esse campo da não realidade ou do inconsciente.

Ainda, é muito significativo para a compreensão da coligação raiz/rizoma o modo

como Bachelard pensa a imagem e as conexões que utiliza para requerer seu “direito de

sonhar”, constituindo mecanismos rizomáticos. O próprio se utiliza do transbordamento

assinalado por Deleuze e Guatarri para mostrar a poética de seu pensamento em relação à

imagem/imaginário - a própria escritura de Bachelard provoca, no leitor, o transbordamento

suscitado pelo rizoma.

Desse modo líquido e transbordante, Bachelard valida o inconsciente como material

para o artista e nada transborda mais que este, nada é mais movediço e aquoso que o sonho,

que o devaneio, enfim, que a imagem/imaginário. Este mecanismo “imagem/imaginário e

rizoma” é o que comove o processo desta pesquisa, o qual se constitui de “tubérculos”, como

uma teia sem centro, na qual “Todas as entradas desembocam na mesma altura da malha

simbólica. Tudo é nó e conexão no tecido imaginal. Cada link, feito um porto, é ponto de

chegada e de partida” (SILVA, 2003, p.11), constituindo conexões variadas que se formam,

até mesmo, num grau de “partículas submoleculares”, ou seja, de pequenos ou mínimos

fragmentos.

Neste mecanismo “imagem/imaginário e rizoma”, a imagem acontece e o imaginário

inunda, ambos agem e transformam a subjetividade deste universo em um corpo concreto: o

corpo do pesquisator/pesquisatriz.

No processo de pesquisator, a imagem poética funciona como motor que impulsiona a

ação. Uma imagem desencadeia uma série de relações cíclicas e, de certa forma, espiraladas

que, na busca de compreensão, não é possível saber onde é o começo ou o fim, pois as

conexões, de alguma maneira, se repetem e se transformam-

imagem/imaginário/imaginação/transformação/ação/imagem/imaginário/imaginação/transfor-

mação/ação. A imagem age no imaginário que transforma o corpo, o qual transformado age,

provocando outra imagem, que por sua vez repete o ciclo; então, não se sabe mais o que é real

e o que é imaginação – mas, se ambos se realizam num corpo, pode-se considerar a ambos

reais. Contudo, para o artista que gera processos criativos, a mescla entre real e imaginário é

uma condição natural, pois ele sabe que o segundo “[...] emana do real, estrutura-se como

ideal e retorna ao real como elemento propulsor” (SILVA, 2003, p.12) da ação, da

29

imaginação, novamente da ação e mais uma vez da imaginação e assim sucessivamente...

É neste abscôndito, obscuro, ondulatório, imaterial e enigmático mundo do imaginário

(em Bachelard) que este meu devaneio/pesquisa ganha força, num pensamento guiado muito

mais pelo intuitivo que pelo raciocínio – isso quer dizer que o aspecto sensível guia os

caminhos, realiza os engendramentos e a razão o auxilia na transformação deste instinto em

explicação da ação, em palavras e conceitos – em tese.

Apesar de o imaginário ser caracterizado como “(...) ao mesmo tempo, uma fonte

racional e não racional de impulsos para a ação” (SILVA, 2003, p.13) ele ainda é considerado,

pelas ciências, uma fonte subjetiva e “flutuante”, portanto, não tão “confiável” para fins que

necessitam de resultados exatos - como uma tese. Mas a insegurança aparece no momento em

que o sujeito que está neste lugar movediço, não se vê banhado nestas águas, encontrando-se

trêmulo, com medo de ser levado por esse mar e frágil em suas certezas. Neste momento,

percebe-se enfim que o “[...] ser humano é movido pelos imaginários que engendra.

[confirmando que] O homem só existe no imaginário” (SILVA, 2003, p.7) – e permanecer na

turbulência de ser resultado de um imaginário, de certa forma, amedronta. Por outro lado, o

medo ensina a ser cauteloso e pode servir como um incentivo a olhar com mais atenção e

mais além.

Como consequência, esta pesquisa teve encaminhamentos que não foram

vislumbrados através das certezas e, sim, das dúvidas, das turbulências e tempestades. Ela é

composta por pensamentos que se movem ou derivam nas várias proporções do imaginário e

totalmente engendrados pela memória e pela imaginação - partes de um complexo que não se

dissociam.

Num processo criativo, tanto a imaginação, quanto a memória se validam como

verdades transformadoras. É ainda válido reafirmar que a memória com a qual se trabalha não

está ligada somente à história de vida ou a um curto prazo temporal, mas sim a toda história

que permeia a existência do ser humano e, quiçá além dela, já que por ter uma natureza

líquida o imaginário inunda e trasborda facilmente. A memória a que nos referimos é muito

mais do que lembranças: são adicionadas a estas, os sonhos e a poesia, gerando um fundo

poético que contém a memória, abriga o devaneio e protege o sonhador e cuja potência é uma

das mais fortes formas de integração para pensamentos, lembranças e sonhos do ser humano.

Neste processo de pesquisatriz, trabalha-se com a força da memória junto à

imaginação, uma espécie de reservatório/motor. Este reservatório/motor conta com a força

propulsora desta memória enquanto portadora de partículas e submoléculas da história,

tornando possível a atualização entre passado e presente através do imaginário e, assim,

30

“Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova” (BACHELARD,1989, p. 25).

O corpo é despertado e alimentado por imagens que encontram eco no seu próprio

interior, pois ele mesmo, o corpo, é resultado de um tempo que passou e traz consigo a

memória de uma história numa espécie de DNA imaginal. Este funciona, nesta pesquisa,

como elemento fundante e age como princípio, mais que como um conceito12, ele ganha a

importância de uma analogia e imagem explicativa e ativa dentro da pesquisa, é um “cordão”

de genes imaginários que percorrem toda a existência e que aqui, neste processo, se utiliza do

corpo para mostrar sua ação concreta. Através da aceitação, concepção e entendimento de um

DNA imaginal, o qual ultrapassa o espaço/tempo, torna-se possível atinar para um corpo que

traz em si a história, em memória e imaginação:

Tanto nossa alma como nosso corpo são compostos de elementos que já existiam na linhagem dos antepassados. O “novo” na alma individual é uma recombinação, variável ao infinito, de componentes extremamente antigos. Nosso corpo e nossa alma têm um caráter eminentemente histórico e não encontram no “realmente-novo que acaba de aparecer” um lugar conveniente, isto é, os traços ancestrais só se encontram parcialmente realizados. Estamos longe de ter liquidado a Idade Média, a Antiguidade, o primitivismo e de ter respondido às exigências de nossa psique a respeito deles (BACHELARD, 1989, p.25).

O que se procura fazer, através do imaginário, é dinamizar e se comover com as

lembranças de nossa alma. Porém, não somente as lembranças de nossa infância, também as

remotas, os componentes antigos de nossa alma, os genes imaginais da história entremeados

pela imaginação. Dessa forma, a história serve de alimento e de aliada da imaginação, é a base

de trabalho para o pesquisator. Portanto, a partir desta compreensão de dinâmicas entre

lembrança-memória–imaginação, é possível entender mais detalhadamente e a fundo a

premissa de Bachelard em relação ao artista, quando ele afirma que para este “O fato não

basta, o devaneio trabalha [...]” (1989, p.37).

A imaginação valida a história, até mesmo aquela que não se conhece

conscientemente, uma vez que é nestes espaços fugidios em que a lembrança falha, que ela

completa/trabalha, confirmando outra premissa de Bachelard, a de que “[...] a imaginação

aumenta os valores da realidade” (1989, p.23). O que nos proporciona muito mais liberdade

para a criação artística.

Mas são nestas extensões, em que a memória falha e a imaginação trabalha, que a ação

dos genes imaginais é “sentida”. O DNA imaginal traz consigo fragmentos de memória de

uma realidade passada e a imaginação dá conta daquilo que não se sabe racionalmente, ela

12 Não se está entrando no campo das neurociências, o “DNA”, aqui, funciona como analogia e/ou metáfora.

31

trabalha a partir das sensações desta memória, arrematando a imagem que se forma e

fendendo a percepção sensível. O reservatório/motor comove o pesquisator através de

sentimentos, lembranças e visões que se realizam, em alguma instância, no seu corpo.

Para se realizar, a força que a imaginação possui é bem maior que a da razão e é desta

força imaginal que o pesquisator se utiliza. O acesso à commedia dell’arte que proponho vem

legitimado em uma realidade (física, corpo da pesquisatriz) e em uma virtualidade

(imaginação). O reservatório/motor funciona como válvula de impulso, dessa maneira, a

valorização da realidade através da imaginação faz com que a experiência vivida ganhe um

expoente maior, que atravessa a história (no DNA imaginal – num imaginário) e se manifesta

no corpo da pesquisatriz.

O vislumbre do possível acesso às máscaras da commedia dell’arte, através deste

caminho, aconteceu num momento em que a memória e a imaginação encontraram eco na

alma desta que escreve (pesquisatriz) – foi fazendo tais máscaras físicas que meu corpo

buscou, no seu acervo muscular conhecido, o suporte para dar a vida às mesmas, e estes

movimentos que as vivificam são de danças pertencentes a manifestações espetaculares

populares brasileiras. Claro que, num primeiro momento, as conexões não eram tão

complexas, mas quando os universos se conectaram, percebi: apesar de se tratarem de duas

culturas diferentes, de momentos históricos diferentes, de áreas artísticas diferentes – teatro,

festa, dança, luta – havia uma conexão cognitiva entre elas e eu precisava descobrir como ela

se realizava.

Quando estava fazendo as máscaras dell’arte pela primeira vez, o corpo procurava a

energia, a qualidade da ação e a vibração correspondente ou análoga àquela que me pediam,

dentro das experiências musculares que já possuía. O movimento codificado da máscara

all’italiana encontrava o seu eco naqueles pinçados das danças pertencentes às manifestações

espetaculares populares brasileiras, como se uma imagem (codificação da máscara) se

colocasse sobre a outra, e estas imagens vindouras de manifestações espetaculares populares

diversas se encaixavam em muitos pontos, mostrando que possuíam circuitos musculares

muito símiles.

Entretanto, como é possível uma imagem encontrar eco na alma de alguém? Esta é

uma resposta simples e, ao mesmo tempo, complexa: através do imaginário. Michel Maffesoli

(2001, p.75) fala do imaginário como uma aura, para ele “O imaginário é uma força social de

ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não

qualificável”, é uma força, um catalisador, uma energia, uma atmosfera, ou seja, não é

possível vê-lo, mas se pode senti-lo, ele é da ordem do sensível e é também um espaço de

32

convivência e contato com o outro, fazendo parte do coletivo, aliás, o imaginário faz parte de

um indivíduo e de um grupo, ele identifica o indivíduo ao grupo e vice-versa. É esta

identificação plural e singular que faz com que a imagem/imaginário encontre eco naquele

que se permite “comover-se” através dele.

No devaneio, o pesquisator produz poeticamente nuanças que dinamizam, através de

imagens comuns retidas em algum lugar do inconsciente (ou do cosmos, da atmosfera),

identificações sensíveis que também entram em contato com a alma de seu receptor. A

imagem promove o processo criativo tornando-se material concreto - ela agita a percepção

sensível e comove o corpo.

A dinâmica entre imagem/imaginação e memória constrói seus valores ativamente, os

quais também são inconscientes e integram “elementos arcaicos de nossa alma”, utilizando

mais um conceito de Bachelard (1990, p.88), de um Fundo Comum dos Sonhos.

Mas o que são estes “elementos arcaicos da alma”, os quais fazem parte do Fundo

Comum dos Sonhos? A meu ver - subjetividade pura, o que não significa dizer que esteja no

campo do incompreensível, ininteligível e não conceitual, mas sim no das experiências

sensíveis - é na combinação dos elementos arcaicos da alma que “as imagens se formam no

espírito”, utilizando a expressão de Ítalo Calvino (1999, p.97) quando este escreve sobre a

formação das visões de Dante.

Pode-se dizer, também, que os elementos arcaicos da alma são genes que estão

presente na constituição do DNA imaginal e que fazem parte do que Bachelard chama de “a

priori onírico”. O “a priori onírico” é uma condição que acompanha o ser humano e é parte

fundante de um Fundo Comum dos Sonhos.

O que é, então, este Fundo Comum dos Sonhos o qual é constituído pelo “a priori

onírico”, que é inerente à condição humana, que traz em si “elementos arcaicos da alma”, os

quais auxiliam na formação das imagens no espírito e comportam o DNA imaginal? Segundo

Bachelard, o Fundo Comum dos Sonhos é um espaço imaterial no qual passado, presente,

fantasia, história, realidade e imaginação comungam. Ainda mais interessante é a natureza

deste Fundo Comum dos Sonhos, além de estar presente em cada ser humano, ele está

também fora dele.

O ser humano tem em si este “a priori onírico”, traz consigo a recombinação de

elementos antepassados, chamado por Jung de “caráter eminentemente histórico”13; ele aporta

nas suas ações, de modo subjetivo, as pulsões mais antigas da alma, assinalado por Gilbert

13 Para saber mais, ler: Memórias, Sonhos, Reflexões, de Jung.

33

Durand como “trajeto antropológico”14, ou ainda ele faz parte e comporta a “aura”, este

espaço singular e plural a que Maffesoli se refere - estas manifestações subjetivas de um

passado além vida fazem parte da condição humana. Seja qual for o nome dado aos elementos

que integram esta condição, foi a partir deste espaço imaterial que esta pesquisa se comoveu e

se ramificou nas várias direções: Dionisio, Satiros, Charivari, Bufão, Carnaval, Manifestações

Espetaculares Populares Brasileiras e Máscaras dell’arte.

Reafirmando, esta tese baseia-se no pressuposto de que: o ser humano tem em si um a

priori onírico; que em nossa alma se encontram elementos arcaicos que agem em nós como

força a partir da ação da imagem; que tais elementos recombinam-se ao infinito e apoderam-

se de nós, nos dando a possibilidade de habitarmos a imagem que nos comove.

Não é fácil, contudo, para o pesquisator permanecer nesta dinâmica, é preciso apreciar

a beleza de mergulhar num mar sem saber a direção exata a seguir e, muitas vezes, ao invés

de mergulhar, simplesmente “flutuar”, deixar-se levar pelas circunferências ondulatórias que

se formam na água ou pelas ondas e redemoinhos de um mar de imagens.

Para o auxílio prático da ação do imaginário no corpo, alia-se ao Fundo Comum dos

Sonhos de Bachelard, uma ideia desenvolvida por Jacques Lecoq, a do Fundo Poético

Comum.

Esta instância chamada por Lecoq de Fundo Poético Comum é um espaço tão

imaterial quanto o Fundo Comum dos Sonhos, mas ele se torna concreto por se manifestar,

agir, no corpo do ator, passando do imaterial ao concreto.

Lecoq não chega a desenvolver profundamente o conceito do Fundo Poético Comum,

ele afirma a sua existência e fala de sua natureza:

Trata-se de uma dimensão abstrata, feita de espaços, luzes, cores, matérias e estão presentes em cada um de nós. Os elementos se sedimentam em nós através das nossas experiências e sensações de tudo aquilo que olhamos, escutamos, tocamos, degustamos. Tudo se imprime em nosso corpo e constitui o fundo comum do qual surgem ímpetos e desejos de criação (LECOQ, 1997, p.57).15

Ao lermos a citação acima, pode-se perceber a semelhança conceitual do Fundo

Poético Comum de Lecoq com o Fundo Comum dos Sonhos de Bachelard. A união de tais

ideias é, à primeira vista, muito oportuna, pois ambos se firmam na existência de um espaço

14 Para saber mais, ler de: A Imaginação Simbólica, de Gilbert Durand. 15 Tradução da autora: “Il s’agit d’une dimension abstraite, fait d’espaces, de lumières, de couleurs, de matières, de sons, qui se retrouvent en chacun de nous. Ces éléments sont déposés en nous, à partir de nos diverses expériences, de nos sensations, de tout ce que nous avons regardé, écouté, touché, goûté. Tout cela reste dans notre corpos et constitue le fonds commun à partir duquel vont surgir des élans, des désirs de création”.

34

imaterial onde tudo se encontra. Bachelard indica a imaginação como grande ponto de

conexão deste espaço com a realidade, já em Lecoq, para o trabalho do ator, tal conexão se dá

na ação deste espaço sobre o corpo e na ação realizada por este corpo – os pensamentos estão

de acordo, o espaço imaterial se manifesta no corpo e, para tanto, utiliza-se da imaginação

(imagem em ação).

A semelhança da natureza, compreensão, extensão e capacidade de atuação entre o

Fundo Poético Comum e o Fundo Comum dos Sonhos, para esta pesquisa, é muito propícia.

A dimensão abstrata presente em cada um de nós a que Lecoq se refere é muito análoga ao

imaginário – este espaço coletivo e individual – e quando ele fala de “elementos que se

sedimentam em nós”, entende-se como os elementos arcaicos da alma. A similaridade entre

“dimensão abstrata” (Lecoq) e “imaginário” (Bachelard), como este espaço imaterial que

funciona como reservatório/motor da ação/imaginação/ação, é mais uma das condições bases

para esta pesquisa, visto que é neste espaço de conexões imateriais que as manifestações

espetaculares populares, ou podendo ser chamadas também de expressões artísticas culturais,

ou práticas espetaculares populares de países diversos, se realizam. Como já dito, não se trata

de relações comparativas ou paralelas, mas de conexões entre diferentes manifestações

espetaculares populares de países distintos e com naturezas artísticas diversas (teatro, dança,

luta e ritual). É justamente por se tratar de expressões/práticas/manifestações

artísticas/culturais/espetaculares tão diversificadas que este espaço imaterial se torna o

principal suporte de conexão, pois é a partir dele que as outras vias de conectividades foram

vislumbradas.

Retornando a afirmação de Lecoq de que o Fundo Poético Comum é um “fundo

comum do qual surgem ímpetos de criação”, é inevitável associá-lo ao Fundo Comum dos

Sonhos e à função que o imaginário exerce como reservatório/motor para o ato criativo.

Para Bachelard, o Fundo Comum dos Sonhos é um espaço impalpável, imaterial,

porém, sensível - imagem/imaginário/imaginação – o qual faz parte do ser humano, podendo

manifestar-se nele e fora dele. Para Jacques Lecoq, o Fundo Poético Comum é como uma

força ou uma energia, a qual toma o corpo do ator, habitando-o, e todos os elementos que

constituem esta força são vindouros de um espaço imaterial, onde tudo se encontra.

Existe uma forte e, ao mesmo tempo, delicada conexão entre estes dois espaços, o

Fundo Comum dos Sonhos possui uma dinâmica que aflora na imaginação e o Fundo Poético

Comum precisa da imaginação para se realizar no corpo do pesquisator. O Fundo Poético

Comum não acontece sem o Fundo Comum dos Sonhos, pois a poesis se dá no corpo do

pesquisator através da ação do imaginário. Nesse caso, pode-se dizer que o Fundo Comum

35

dos Sonhos serve de reservatório/motor para o Fundo Poético Comum realizar-se.

Neste processo, tal como numa rede rizomática, não se sabe exatamente onde é o

início das conexões, pois o que se percebe sensivelmente é que o Fundo Comum dos Sonhos e

o Fundo Poético Comum possuem uma dinâmica de correspondência recíproca, em que agem

através do devaneio e devaneiam através da ação, ou seja, ambos sonham, devaneiam e agem

recombinando os elementos da espiral imaginal, com a finalidade de transformar e “reviver-

se” no corpo do pesquisator. O Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum movem

as energias e os afetos16, enquanto que os sistemas nervoso e muscular auxiliam no

processamento de um material abstrato (imagens, sensações), para a transformação deste em

um corpo (sensações, ações). A evolução e a intensidade da interlocução entre ambos

acontecem da mesma forma que a dinâmica entre imagem/imaginário/transformação/ação,

isto é, de forma horizontal, numa teia de conexões rizomáticas, que se repetem numa rede

cíclica, sem entrada, sem saída, sem hierarquia e com muitas conexões, as quais se

metamorfoseiam e se multiplicam.

O Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum engendram-se

dinamicamente e comungam da mesma natureza subjetiva. Mesmo que Lecoq fale do Fundo

Poético Comum ligado ao trabalho de corpo do ator, ou seja, algo que poderia ser considerado

como “material concreto”, tal corpo é trabalhado a partir de um espaço imaterial. Então, pode-

se dizer que o Fundo Poético Comum é tão impalpável e subjetivo em seu nascedouro

(dimensão abstrata) quanto o Fundo Comum dos Sonhos o é em sua totalidade. De outro

ponto de vista, pode-se dizer que o Fundo Comum dos Sonhos, em última instância de seus

manifestos, se transforma pela imaginação, no corpo do pesquisator, tornando-se, então, tão

concreto quando o Fundo Poético Comum.

A interlocução rizomática entre imagem/imaginário - Fundo Comum dos

Sonhos/Fundo Poético Comum - constitui a principal dinâmica de pensamento desta tese.

Com isso, chega-se à constatação de que toda esta pesquisa se desenvolve a partir de um

universo abstrato, imaterial e subjetivo, mas que tem como forma de constatação um material

muito concreto: o corpo/ação desta pesquisatriz.

Mas como foi alertado no início, não existe a preocupação de se jogar âncora no mar

do imaginário, mas sim de mergulhar/pairar, seguir estas águas incertas. Quando se fala em

não lançar âncora, entende-se que há a consciência de que esta é uma pesquisa que se

16Emprega-se a palavra “afeto” como referência às percepções dos sentimentos/emoções causados através dos estímulos trazidos nesta pesquisa, pois a própria palavra traz em si uma ação (afetar) e para este processo cabe muito bem seu emprego e referência.

36

metamorfoseia a cada nova conexão, a cada nova corrente marítima que passa a

jangada/pesquisatriz se move, segue, paira, para, mergulha, volta à tona, olha em volta,

conhece, reconhece e re-conhece o mar. Lança garrafas ao mar, espera a próxima corrente e

novamente se move – nesse sentido, a âncora não é lançada.

Neste campo de incertezas e correntezas, cria-se uma tentativa de imagem das

ramificações de tais conexões. Não se trata de um esquema e, sim, como mencionado, de um

intento de vislumbre imagético - uma garrafa ao mar.

A flor e o pensamento - tentativa imagética da dinâmica rizomática desta pesquisa. A

primeira imagem é um desenho realizado, aleatoriamente, no primeiro dia de aula da

disciplina “Processos Criativos”, ministrada pela Profª. Drª. Sônia Rangel, em março de 2007.

A segunda imagem é um intento de visualização da rede formadora da pesquisa, realizado

sobre e a partir da primeira imagem, em junho do mesmo ano, na finalização do semestre:

1.

37

2.

2.2. MANIFESTAÇÕES ESPETACULARES POPULARES: PERPÉTUO IMAGINÁRIO

“A peste toma imagens adormecidas, uma desordem latente e as leva de repente aos gestos mais extremos; o teatro também toma gestos e os esgota: assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é, entre a virtualidade do possível e o que existe na natureza materializada. O teatro reencontra a noção das figuras e dos símbolos-tipos, que agem como se fossem pausas, sinais de suspensão, paradas cardíacas, acessos de humor, acessos inflamatórios de imagens em nossas cabeças bruscamente despertadas[...]”

Antonin Artaud (1993, p.21)

Para não criar desconforto em relação a algumas expressões utilizadas ao longo deste

discurso acerca das considerações sobre as manifestações espetaculares populares e o

imaginário, é propício esclarecer que os termos “espetacular” e “popular” são vistos de um

ângulo muito simples, sem grandes questionamentos semióticos, antropológicos ou

sociológicos. Também, não se entrará em uma discussão etnocenológica do que é espetacular

38

ou teatral17. Para esta pesquisa, o espetacular é tido como um ato realizado para ser visto, o

qual extrapola a ideia de cotidiano e possui uma consciência do olhar da alteridade. Enquanto

que o popular é visto como uma manifestação advinda de um povo, não entrando na discussão

sobre as divisões entre “grandes tradições” ou artes maiores, como são consideradas as artes

eruditas e “pequenas tradições” ou artes menores, as artes populares – como já mencionado,

para esta pesquisa, esta divisão não é relevante.

A expressão “manifestação espetacular popular” foi adotada por considerar que esta

abrange as atividades cênicas de muitas áreas, seja a dança, o teatro, o canto, os rituais, a luta

ou a festa. Com isso, ela estaria abraçando todas as “atividades artísticas cênicas” que fazem

parte dessa pesquisa, a qual trata da proposta de um possível acesso às máscaras da commedia

dell’arte (aqui, faço referência em específico à de Claudia Contin e Ferruccio Merisi), através

de células (movimentos, golpes, passos - circuitos musculares/energéticos) pinçadas de

manifestações espetaculares populares brasileiras (coco, ciranda, maracatu, frevo, capoeira,

maculelê, xaxado, caboclinho, samba, cavalo marinho e dança dos Orixás).

Também já foi destacado que o interesse desta pesquisa é um transcurso muito

específico de relações conectivas e que, apesar de ser uma possibilidade instigante e muito

rica, não está entre os objetivos deste estudo, criar um vínculo de igualdade entre culturas18 de

países diversos ou de correspondências entre as manifestações espetaculares populares destes.

Certamente que, no momento em que as imagens se formavam (e se formam) e a imaginação

trabalhava (e trabalha), paralelismos, comparações e aproximações se estabelecem, porém,

compreende-se que são novos campos que se apresentam, os quais mereceriam estudos

específicos e detalhados, não cabendo dentro desta tese, pelas próprias extensões destes novos

campos abertos.

Considerando somente os transcursos conectivos entre as Máscaras da Commedia

dell’Arte e as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras que incorporam esta

pesquisa, sem adentrar profundamente em outras questões, já se tem um grande “espaço” de

estudo. Para tanto, entende-se que é preferível aprofundar-se nos objetivos a que se destina –

o trabalho desenvolvido pela pesquisatriz para acessar as máscaras dell’arte – do que fazer

observações superficiais em campos que não fazem parte das relações primárias aqui

estudadas, o que não quer dizer que as relações secundárias e terciárias sejam sem

17“[...] podemos dizer que qualquer ato em si pode ser visto como algo pleno de teatralidade, a partir da consciência de quem o pratica e do olhar de quem o presencia. Já a ação espetacular é aquela que provém de um evento invulgar, que foi elaborado para ser visto e admirado.” (OLIVEIRA, 2007, p.40). 18 Entende-se como cultura o conjunto de crenças, valores, tradições, vivências, atitudes, visões e compreensões de mundo, que formam um povo.

39

importância e que não poderão ser acionadas quando necessárias e relevantes.

Este argumento contempla ainda os dados históricos das Manifestações Espetaculares

Populares que integram esta pesquisa (coco, ciranda, maracatu, frevo, capoeira, cavalo

marinho, samba, xaxado, caboclinho e dança dos Orixás, Zanni, Servetta, Brighella, Capitano,

Arlecchino, Pantalone), eles serão acessados ao longo do discurso, conforme a necessidade de

contribuição destes aspectos para que as experiências realizadas e o “caleidoscópio” das

interconexões construídas com as máscaras da commedia dell’arte sejam compreensíveis.

A partir destas exposições, iniciam-se as considerações sobre aquilo que se deseja

falar mais atentamente – as conexões realizadas entre a Commedia dell’Arte e as

Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras que servem como ponto de partida para

esta pesquisa prática.

Este estudo investe em uma perspectiva do trabalho do ator e sempre que se faz

referência a este, se está falando do jogo do ator e, com isso, se vê a necessidade de realizar

algumas observações sobre a arte (ou necessidade) de “jogar”.

O ser humano possui a atividade lúdica intrínseca a sua natureza, ela faz parte de uma

linha evolutiva milenar que se alastra rizomaticamente pela existência humana. As

manifestações espetaculares populares também são resultantes desta atividade e estão ligadas

à busca incessante do ser humano pela sensação de sentir-se satisfeito ou de sentir prazer19. A

satisfação e o prazer têm largas conexões com o jogo, a festa, o ritual, o cômico e o riso, pois

são ações físicas e fisiológicas que resultam em sensações de prazer - também não é o

momento de adentrar aos domínios do cômico e do riso, mas tais considerações são de grande

importância e serão retomadas ao longo do discurso.

As relações entre o jogo e a vida comum em sociedade ou, utilizando uma expressão

de Viola Spolin para o cotidiano, a realidade objetiva20, são muitas. O dia a dia requer do

indivíduo certo grau de seriedade. No entanto, para o ser humano (e não somente para ele),

não é possível permanecer exposto a uma situação de tensão por longo período, é necessário

que se tenha uma espécie de respiratório21, ou seja, um momento em que é proporcionada ao

indivíduo a possibilidade de relaxamento e, até mesmo, de ter a sensação de igualdade e

19 Também não se adentrará a questão freudiana de pulsão, pois requereria uma introdução e um desenvolvimento neste campo que se distanciaria do objetivo da pesquisa, para esta é suficiente considerar que o ser humano busca em todas as suas relações a sensação de satisfação e prazer, em diversas graduações. 20 Para saber mais sobre a noção de “realidade objetiva” e sua relação com o jogo e o jogador ler: O jogo teatral no livro do diretor, de Viola Spolin. 21 Utiliza-se a palavra “respiratório” como um espaço no qual a tensão do dia a dia é dissolvida, um momento em que a pressão é afrouxada. É uma espécie de área de relaxamento das leis da realidade, sem perder o contato com a mesma. - Do dicionário virtual Houaiss versão 1.0: adjetivo.1 relativo à respiração; 2 que torna mais fácil ou possibilita a respiração; 3 que serve para se respirar

40

insubordinação às punições severas das leis sociais. Nesse sentido, o respiratório é, de certa

forma, um espaço libertário e propício ao “prazer”.

Esta insistente necessidade de sentir prazer pode ser satisfeita através da capacidade

imaginativa/criativa inerente ao ser humano, pois a imaginação possui, conforme caminho

mencionado anteriormente, a capacidade de trazer sensações ao corpo, entre elas a do prazer e

da satisfação. Desta maneira, o respiratório se torna um espaço onde o imaginário/imaginação

age, promovendo na realidade objetiva uma série de manifestações lúdicas, as quais

propiciam certo “distanciamento” desta, mas não um total desligamento. Os engenhos lúdicos

criados pela imaginação, os quais proporcionam tais sensações, podem ganhar tanta força que

deixam de ser uma manifestação individual e se transformam em uma manifestação de um

grupo, podendo passar ao patamar de uma manifestação espetacular popular.

Estas manifestações espetaculares populares podem ainda serem vistas e referenciadas

como “jogo”. O emprego do termo “jogo” para denominar tais práticas espetaculares

populares vem em comum acordo com Johan Huizinga. O autor afirma que a palavra jogo

para referenciar tais práticas, surge a partir de um “ato de concepção de inúmeras línguas”22 e

abrange uma enorme variedade de relações, sejam elas entre animais, crianças ou adultos,

abolindo limites territoriais, culturais ou raciais. Dessa forma, o conjunto de manifestações

espetaculares populares que integram esta tese, sejam brasileiras ou italianas, é visto dentro de

uma mesma categoria: a do “jogo”. Esta compreensão de jogo abordada por Huizinga, a qual

serve a esta pesquisa, vem suspender barreiras territoriais e culturais que possam existir entre

as manifestações espetaculares populares aqui estudadas, colocando-as no mesmo espaço

imaterial e possibilitando as conexões destas a partir de uma mesma condição.

Huizinga apresenta a justificativa de que a nomenclatura “jogo”, como inferência às

manifestações resultantes desta capacidade de engenhar, não está ligada somente às questões

de competição, mas também às de ludicidade. O autor traça um caminho oportuno e

convincente sobre a origem da expressão “jogo” e mostra que, desde os gregos, ela esteve

ligada, tanto à competição, quanto à festa. Ainda que fizessem distinção entre o jogo e a

competição, considera-se que ambas pertencem aos mesmos domínios. Segundo Huizinga

(1993, p.36):

[...] na vida dos gregos, ou a competição em qualquer outra parte do mundo, possui todas as características formais do jogo e, quanto à sua função, pertence quase inteiramente ao domínio da festa, isto é, ao domínio lúdico. É totalmente impossível separar a competição, como função cultural, do complexo “jogo-festa-ritual.

22Para outras informações sobre jogo e linguagem, consultar: Homo Ludens, de Johan Huizinga.

41

As reflexões de Huizinga sobre jogo – as quais contemplam as manifestações

espetaculares populares de interesse para esta pesquisa – suscitaram, nesta pesquisadora, o

entendimento de que, qualquer que seja a manifestação integrante do complexo “jogo-festa-

ritual”, ela emerge de um engenho imaginativo e comporta uma complexidade de sensações,

como visto anteriormente. Este caminho foi construído a partir da certeza de que as

manifestações inclusas na tríade “jogo-festa-ritual” fazem parte dos domínios da ludicidade

que, por sua vez, integra os domínios da imaginação (imaginário).

Através da tríade de Huizinga, também se faz a conexão com o cômico e o riso, estes

dois “elementos” podem integrar qualquer um dos itens da mesma, com diversos graus de

inferência e inter-relação.

Para avançar, gradualmente, nestas relações e nos mecanismos consideráveis para esta

pesquisa, vê-se a festa como um elemento que interliga a tríade, assim também como jogo, já

que se instaura como um evento temporário e cria, em certo grau, uma “dualidade na

percepção do mundo e da vida humana” (BAKHTIN, 1999, p.5), trazendo o “princípio da

vida material e corporal” 23 enfocado por Rabelais e reafirmado por Bakhtin como a grande

força do popular. Além disso, a festa não é só um evento coletivo, ela é, também, um evento

individual, podendo se instaurar no corpo de cada indivíduo, separadamente e com

graduações diversas.

Quando Bakhtin explica os princípios do cômico popular evidenciados por Rabelais

como força e, de certa forma, como modo de viver a vida, pode-se perceber o quanto a festa é

importante para a conexão da tríade de Huizinga e, especificamente, para esta pesquisa. Ao

mesmo tempo em que ela é um elemento da tríade, nela, todos os três elementos podem estar

contidos e/ou se instaurarem. No entanto, considerando-a como jogo, Bakhtin ressalta que

nem sempre o contrário é possível, mesmo que ambos pertençam aos domínios do lúdico,

nem sempre o jogo é festa. De acordo com Bakhtin (1999, p.16), para que o jogo seja festa é

necessário que este tenha:

[...] um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida corrente, a do espírito e das ideias. A sua sanção deve emanar não do mundo dos meios e condições indispensáveis, mas daquele dos fins superiores da existência humana, isto é, do mundo dos ideais. Sem isso, não pode existir nenhum clima de festa.

Dessa forma, a imaginação, universo onde se forma a ideia e que engendra engenhos

23“[...] imagens do corpo, da bebida, da satisfação de necessidades naturais e da vida sexual” (BAKHTIN, 1999, p.8).

42

lúdicos que interferem na realidade objetiva, é quem permite a “chegança”24 do “elemento a

mais” - deste elemento que Bakhtin assinala como instaurador da festa no jogo. Este elemento

advindo dos fins superiores da existência humana instaura no corpo e na atmosfera o clima de

festa. Através deste elemento, os princípios da vida material e corporal se concretizam num

corpo, o qual traz em si uma “ancestralidade festiva” (OLIVEIRA, 2007) 25 - um corpo

prazenteiro que se emana e exala (-se em) festa. A noção de ancestralidade festiva trazida pelo

pesquisador Érico José Souza de Oliveira vem fortalecer a tríade de Huizinga, pois reafirma a

festa como ritual, compreendendo nela, não somente o carnaval, a comicidade e o riso, mas os

ritos, os jogos e os fins superiores da existência humana - levando em conta as considerações

anteriores que sublinham a potência do DNA imaginal e da imaginação em transformar o

corpo e, através deste, então, fazer parte da atmosfera: exalando (-se em) elementos arcaicos

da alma através da dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos, Fundo Poético Comum,

imagem e imaginário).

A partir destas colocações, pode-se chegar à conclusão de que o Fundo Poético

Comum interage com as atividades lúdicas que se manifestam no corpo dos jogadores

trazendo as sensações vindouras de um espaço abstrato em comum (Fundo Comum dos

Sonhos). Então, conforme conexão estabelecida na tríade de Huizinga, o Fundo Poético

Comum também se instaura e age na festa, no corpo prazenteiro daquele que exala (-se em)

festa. Através desta conexão, jogo/lúdico/imaginação/pesquisator, o ator, seja em laboratório

ou em cena, pode ser um corpo em festa que se exala e comunica-se de modo

prazenteiro/festivo, e dessa maneira, o jogo do ator pode ser jogo/festa, desde que ele permita

a chegança dos elementos vindouros de “uma outra esfera da vida”.

Através dos princípios da vida corporal e material de Rabelais, da dinâmica recíproca

do Fundo Comum dos Sonhos e do Fundo Poético Comum, o ritual, o jogo, a festa e o

carnaval se caracterizam, não somente pela imagem ou pensamento abstrato, mas também

pela imaginação - experimentação concreta no corpo deste material sensível. Melhor dizendo,

o que propicia o estado de festa não é somente a imagem criada desta, mas é a tomada do

corpo por esta – a imaginação. Quando o corpo é tomado pelo jogo/festa, ele traz em si os

24Conforme Houaiss – Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa 1.0: subst. Fem. 1. Chegada (ação de chegar); 2. Dança de par praticada em Portugal no século XVIII, proibida como imoral; 3. Dança dramatizada com acompanhamento instrumental, baseada em tradições ibéricas, e cuja coreografia evoca as aventuras marítimas portuguesas e as lutas entre cristãos e mouros; 4. auto ou representação; 5. Visitas, tradicionalmente bem acolhidas, feitas pelos festeiros às residências por ocasião das festas de Natal e Reis. Vendo que “chegança” traz em si um sentido de ação, acolhimento, representação e festa,vê-se que é uma boa palavra para referenciar a instauração do elemento necessário à festa. 25A noção de ancestralidade festiva do pesquisador Oliveira chama a atenção para um corpo que comporta a festa e o ritual.

43

elementos sensíveis de um “elo genético” (DNA imaginal) advindo de um estágio anterior ao

da civilização humana. Conforme Bakhtin assinala, os princípios material e corporal devem

ser considerados como universais, pois fazem parte dos fins superiores da existência humana

– do Fundo Comum dos Sonhos.

As manifestações espetaculares populares que fazem parte desta pesquisa são

consideradas, por esta pesquisatriz, como festas/jogos ou jogos/festas e integram a tríade de

Huizinga, portando genes imaginais vindouros da outra esfera da vida, aquela que é universal

e que constitui o “a priori onírico” do ser humano.

Estas manifestações espetaculares populares - engendros da atividade lúdica – se

justificam na própria satisfação resultante de sua realização, em qualquer que seja o grau. O

jogo não faz parte das necessidades urgentes da vida social (como comer, vestir, morar, etc.),

mas das necessidades do ser humano que se justificam na sua gratuidade, e esta é uma das

características fundantes do jogo e da festa:

Visto que não pertence à vida “comum”, ele [o jogo] se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo contrário; interrompe este mecanismo. Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. (...) Todavia, em sua qualidade de distensão regularmente verificada, ele se torna um acompanhamento, um complemento e, em última análise, uma parte integrante da vida em geral (HUIZINGA, 1993, p.11-12).

Conforme a citação de Huizinga, o jogo integra parcialmente a vida cotidiana e, assim,

tem-se outra característica fundante do mesmo: a sua natureza de evento contido na vida

cotidiana e compartilhado por aqueles que o realizam.

[...] o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana” (1993, p.33).

As observações realizadas por Huizinga acerca do jogo são concernentes às

manifestações espetaculares populares integrantes desta pesquisa, todas possuem uma

finalidade lúdica e, apesar de se manifestarem na realidade objetiva, pertencem à natureza de

evento temporário. Nelas, o indivíduo suspende a vida cotidiana e adentra um universo que

move seus afetos e lhe proporciona a possibilidade da sensação de um corpo em festa -

prazenteiro. Neste evento temporário, o jogo estabelece-se como duplo da realidade, ainda

que esteja contido nesta. Contudo, o que é importante salientar, é que esta dualidade, mesmo

44

que tenha finalidades tão diferentes – uma lúdica e outra de ordem social - não constitui

universos opostos, mas sim complementares, o respiratório criado pela atividade lúdica

auxilia a ordem/realidade e, com isso, realidade e imaginação se alentam numa dinâmica

recíproca, mesmo mecanismo de funcionamento da lembrança/imaginação comentado

anteriormente.

Através do jogo/festa, e não só dele, o imaginário encontra um meio muito propício

para permear o cotidiano e, assim, o DNA imaginal pode se perpetuar na existência humana,

uma vez que este espaço da atividade lúdica auxilia o ser humano para que os sonhos, os

devaneios e o inconsciente possam se “realizar”, em qualquer que seja a instância. Esta

realização da capacidade imaginativa não tem como exigência ser parte do cotidiano, desta

maneira, ela pode acontecer no espaço da fantasia, na forma de um evento, um universo muito

mais propício às suas finalidades sensíveis.

Entretanto, no jogo também existem regras, cada manifestação espetacular popular

tem suas normas, embora, estas continuem a fazer parte dos domínios do lúdico, não surgem

como “leis”, e sim como partes da interação entre os indivíduos, uma espécie de acordo

temporário. Quaisquer que sejam as regras, o indivíduo compartilha-as a partir de uma livre

decisão de interação com aquele universo, simplesmente pela possibilidade de realizá-lo, ou

melhor, de sentir prazer, de se divertir/festejar.

Mas a finalidade desta pesquisa não é a de validar a importância da inserção do jogo

na ordem social. A pretensão que se tem é de constatar a inundação de um imaginário através

da insistência deste em pungir o cotidiano ao longo da existência humana. Esta constância do

imaginário leva a crer “[...] que a categoria de jogo [é] fosse suscetível de ser considerada um

dos elementos espirituais básicos da vida” (HUIZINGA, 1993, p.34), pois tem-se que levar

em conta que “A atitude lúdica já estava presente antes da existência da cultura ou da

linguagem humana, portanto, o terreno no qual se inscrevem a personificação e a imaginação

também já estava presente desde o passado mais remoto” (1993, p.156). O jogo, então, é um

engenho lúdico que aporta genes imaginais, elementos de um “nível pré-histórico da

atividade espiritual” (1993, p.154). Por estas características e observações, vê-se as

manifestações espetaculares populares que integram esta pesquisa como atividades lúdicas

que pungem a realidade objetiva e esta condição primária de “ser jogo” é que as une num

mesmo espaço imaterial e que permite a conexão das mesmas, extrapolando os limites

culturais, que conforme afirmação de Huizinga, na citação anterior, é uma característica

específica do jogo.

Para esta pesquisa, as asserções de Johan Huizinga em relação ao jogo, as

45

considerações de Mikhaïl Bakhtin em relação à festa e a um sistema de imagem criado por

Rabelais, as afirmações de Erico José Souza de Oliveira sobre a noção de uma ancestralidade

festiva e o corpo prazenteiro que comporta e emana a festa, vêm reafirmar a pertinência de um

espaço como o Fundo Comum dos Sonhos (Gaston Bachelard) e da dinâmica deste com o

Fundo Poético Comum (Jacques Lecoq) - formando um “sistema de imaginação”.

Esta dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum também

pode ser considerada como um “sistema de imaginação”. Claro que não se trata de um sistema

de imagem, como o sistema criado por Rabelais, pois ele criou princípios e firmou um modo

de compreender, ver e viver o mundo. Este “sistema de imaginação26” surge sem grandes

aspirações, ele vem nominar o ciclo desta dinâmica recíproca e contínua entre o Fundo

Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum.

Cada manifestação lúdica engendrada pode ser considerada fruto de um devaneio de

um imaginário que se realiza, que se efetiva na dinâmica recíproca entre memória e

imaginação. Assim, no jogo/festa, o corpo prazenteiro se instaura e exala-se em partículas

submoleculares de elementos arcaicos da alma, os quais agem dinamicamente no indivíduo

que a realiza efetivamente num corpo e desse para a atmosfera, como também naquele que,

através da observação, se predispõe a sensivelmente se comover e se afetar com as ações

destes genes imaginais, porém, partindo da atmosfera e da imagem para, em certo grau, sua

sensibilidade, percepções e o seu corpo.

Quando um corpo exala (se em) festa, a dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e

Fundo Poético Comum não acontece somente naquele que joga/festeja mas também naquele

que o observa, basta haver a predisposição do indivíduo para que ela também se instaure nele.

Porém, é certo que, em grau muito diferente daquele que acontece no sujeito que age e se

exala, o observador é muito mais passivo que o sujeito da ação. Durante o jogo, os corpos em

imaginação também provocam no espectador, através da emanação (atmosfera), o contato

com a ancestralidade festiva, é que a imaginação do corpo prazenteiro encontra, naquele que o

observa, genes imaginais, provocando nele uma retumbância, uma espécie de eco – a

emanação do sujeito em festa afeta e convoca o observador a habitar com ele as imagens, isso

26 Faço um destaque na palavra “imaginação” para utilizá-la como uma palavra-valise, a qual, segundo Deleuze, está na qualidade das palavras exotéricas, aquelas que trazem em si uma síntese disjuntiva, “[...] que operam uma ramificação infinita das séries coexistentes e recaem, ao meso tempo sobre as palavras e os sentidos, os elementos silábicos e semiológicos (‘disjunção’)” ( DELEUZE, 2007, p.50). Nesta condição de palavra-valise, para nominar o sistema estabelecido pela dinâmica recíproca entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum, a imaginação traz a compreensão necessária do funcionamento das imagens, para esta pesquisa, podendo ser uma imagem em ação, no indivíduo e na atmosfera e, também, ser a ação da imagem, no indivíduo e na atmosfera, dando a entender uma cíclica contínua, a qual não se sabe o início ou o “provocador” – mesmo mecanismo imaginário/imagem/transformação/ação/imagem... - citado anteriormente.

46

é possível porque o Fundo Comum dos Sonhos faz parte de todo ser humano e é neste espaço

imaterial que acontecem as emanações e vibrações.

A imagem encontra correspondência (eco, retumbo) no imaginário do observador.

Através de elementos sensíveis, mencionados anteriormente, vindos de outra esfera, de uma

dimensão abstrata, de um espaço imaterial e de um sistema de imaginação (imagem/

imaginário/ imaginação/ transformação/ ação/ imagem/ imaginário/ imaginação/

transformação/ ação/...), o espectador entra em contato com os aspectos ancestrais da sua alma

e do cosmos e também se dispõe a uma atitude lúdica, a (sua) imaginação o invoca.

O jogo/festa e, portanto, o imaginário, tocam àqueles que o realizam e o assistem,

efetuando uma comunhão com a ancestralidade festiva presente em cada indivíduo e assim a

tríade (jogo-festa-ritual) se renova e se atualiza.

Com tamanha inundação, impossível não ver o imaginário como um espaço universal,

o qual constitui um meio de relações de coletividade. Porém, como esta conexão de genes

imaginais acontece em cada indivíduo, também o coloca como um espaço de individualidade.

Com isso, o imaginário também contribui para a dialética da dualidade individuo/coletivo -

muito necessária ao homem, segundo Michel Maffesoli. Para o ser humano, é importante que

ele se veja como indivíduo e coletivo. Contudo, a partir das colocações sobre o imaginário,

fica claro que, na liquidez em que este se alastra e inunda, não há uma total individualidade,

somente o compartilhamento o compõe, uma vez que se entende que, nas diversas graduações

de células e partículas imaginárias que constituem um todo, o sujeito encontre a sua

“individualidade”.

As manifestações espetaculares populares, estas resultantes da atitude lúdica, são

vindouras destes espaços de compartilhamento e individualidade. É nas diferenças graduais

(células, partículas, moléculas e submoléculas) que a atualização do passado e o

compartilhamento da história adicionada à imaginação se efetiva e se valida. Nas

manifestações espetaculares populares o prazer resultante da pungência do imaginário

comove o corpo do jogador e do espectador. O corpo que emana (-se em) festa transporta o

homem a uma união cósmica, adjacência na qual o sujeito é levado pela sua cíclica vital

prazerosa27.

27 Esta “cíclica vital prazerosa” que nomino, está ligada à busca incessante do prazer e pode ser relacionada ao que Maffesoli chama de orgiásmo e mítica erótica e Oliveira de religiosidade orgiástica e ancestralidade festiva. Estas compreensões da presença de elementos ancestrais na atmosfera festiva e nos corpos que fazem festa se coligam com o Fundo Comum dos Sonhos, o Fundo Poético Comum e com a tríade de Huizinga jogo-festa-ritual. Apesar de Maffesoli e Oliveira se dedicarem a questões culturais, antropológicas e sociais e este estudo ao trabalho do ator, os caminhos possuem identificações, porém, mais uma vez, se deve renunciar a um encaminhamento secundário (não menos interessante), para enfatizar questões que dizem respeito, diretamente, a

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Esta cíclica vital prazerosa tem a ver com a busca incessante e contínua do prazer e

está ligada à tríade jogo-festa-ritual de Huizinga, pelas considerações sobre jogo e festa já

realizadas e, consequentemente, às manifestações espetaculares populares que pungem a

realidade objetiva e integram esta pesquisa. Deste modo, pode-se considerar a tríade de

Huizinga como um forte e vigoroso elo conectivo desta pesquisa, pois cada um dos três

elementos que a forma constrói múltiplos elos de conexões com elementos vindouros de outra

esfera e os três juntos ganham força ainda maior - de alastramento e de conexão. A tríade e

suas conexões com os outros elementos vêm fortalecer a constatação da dinâmica do Fundo

Comum dos Sonhos e do Fundo Poético Comum e confirmam as conexões rizomáticas desta

pesquisa.

Neste discurso em que tento explicar as conexões rizomáticas que formam o

pensamento que integra esta pesquisa, não se pode deixar de sublinhar a subjetividade, pois

ela é o agente maior deste trabalho, ela ocupa o lugar do inexplicável, preenche os silêncios

entre os conceitos e as técnicas, não porque estes faltam, mas porque ela e o empirismo estão

neste lugar do “indizível”. Segundo Deleuze, os vínculos subjetivos é que fazem o sujeito se

ultrapassar, isto é avançar. Este avanço ou ultrapassagem acontece quando o sujeito “afirma

mais do que sabe”, isto porque a subjetividade possui uma dupla potência: a de crer e a de

inventar - “Crer é inferir de uma parte da natureza uma outra parte que não está dada. E

inventar é distinguir poderes, é constituir totalidades funcionais, totalidades que tampouco

estão dadas na natureza” (DELEUZE, 2008, p. 94). Ainda sob a crença, segundo David

Hume, citado por Deleuze, esta “[...] é um sentimento, uma maneira particular de sentir a

ideia. A crença é a ideia “sentida mais do que concebida [...]” (2008, p. 95).

Com estas duas potências, a de crer e a de inventar, uma com poder de inferência e

outra com poder de criar totalidades, a subjetividade e o empirismo avançam e neste

progresso a ultrapassagem acontece, quando, através de uma sucessão de dados, nos quais o

sujeito crê, ele conclui (inventa) outros - ainda aqui é preciso dizer que, segundo o filósofo

David Hume, o dado não faz parte do plano concreto, ele é “[...] o fluxo do sensível, uma

coleção de impressões e de imagens, um conjunto de percepções” (apud DELEUZE, 2008, p.

104).

Então, num indivíduo, o dado constitui uma espécie de reservatório ou de acervo, a

crença é a percepção deste dado e a invenção é a comoção do dado. A partir das potências do

próprio dado, da crença e da invenção, um novo dado se forma.

esta pesquisa.

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Foi exatamente dessa maneira que a subjetividade foi impulsionando o avanço desta

pesquisa. Os dados eram e são as experiências (fisicidades e corporeidades) dentro das

manifestações espetaculares populares (coco, ciranda, maracatu, xaxado, caboclinho, samba,

capoeira, frevo, maculelê, cavalo marinho e dança dos Orixás – máscaras do Zanni,

Arlecchino, Brighella, Pantalone, Capitano, Servetta, Cortigiana e Nobile), todos eram e são

do fluxo do sensível e faziam e fazem parte das minhas crenças, a potência em crer e inventar

é que me fazia ultrapassar os dados, comunicando-os entre eles e concluindo que através de

um dado poderia chegar a outros.

Este sistema subjetivo funciona porque, segundo Deleuze, o sujeito se constitui no

próprio dado, isto é, ele se vê como parte do dado, é afetado pelo mesmo, passando a se

constituir nele. Foi o que aconteceu com esta pesquisatriz que se envolveu nas percepções

sensíveis do seu corpo, deixando que o conjunto de impressões, imagens e percepções

tomassem conta do seu organismo e inventasse a possibilidade de acessar as máscaras da

commedia dell’arte através do conhecimento prévio que sua musculatura já possuía. Nessa

pesquisa, a conexão se dá de um modo ainda mais complexo, esta pesquisatriz possuía (e

possui) dados A (manifestações espetaculares populares brasileiras) e dados B (manifestações

espetaculares populares italianas – máscaras da commedia dell’arte), sendo assim, todas as

manifestações espetaculares populares que integram esta pesquisa são dados, mas as conexões

destes dados conhecidos constituem outros, o caminho conectivo entre todos os dados que

constituem esta pesquisa é o “novo dado” – o resultante da dupla potência crer e inventar.

Tento explicar ainda mais, pois a conexão é muito complexa, podendo se ramificar em

direções múltiplas: cada dado A e B são constituídos de outros [cada manifestação espetacular

popular (danças, lutas, máscaras)], cada um destes outros dados são constituídos de outros

(passos, golpes, partituras) e cada um destes outros dados são constituídos de outros dados

(cada movimento que constitui o passo, o golpe ou a partitura), e assim pode-se seguir a

divisão ramificada, chegando a graus que se constituem em células e micro-células de A e B.

São conexões que acontecem dentro de uma imaterialidade, mas que estão longe de

serem superficiais, pelo contrário, a cada nova vivência no dado são novos vislumbres que se

entreveem e que colocam esta pesquisatriz em desassossego, são novas imergências neste

universo imaginário incomensurável, transbordante e rizomático, o qual inunda toda a

humanidade desde a sua concepção de mundo (e quiçá antes dela), o qual serve de

reservatório/motor para as atitudes lúdicas que pungem, acontecem e agem na realidade

objetiva, as quais comportam e se conectam com a tríade “jogo-festa-ritual” e são resultantes

da dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum.

49

Conforme visto, a tríade de Huizinga também vadia por este universo imaterial e

compõe um forte elo conectivo entre as manifestações espetaculares populares, brasileiras e

italianas, que formam o conjunto de dados desta pesquisa, pois todas se conectam diretamente

com, ao menos, um dos elementos formadores e, consequentemente, com os outros.

A tríade “jogo-festa-ritual” está presente tanto nas máscaras da commedia dell’arte

como no frevo, na capoeira, no maculelê, no maracatu, no coco, na ciranda, no caboclinho, na

dança dos Orixás, no cavalo-marinho e no samba, comunicando-se com as instâncias

pertinentes ao imaginário. Durante os eventos em que as manifestações espetaculares

populares se realizam, a tríade “jogo-festa-ritual” se revigora, o jogo/corpo/festa/ritual aporta

lembranças, memórias, pensamentos e afetos que transcendem o espaço/tempo e fazem o

DNA imaginal retumbar, ecoar nos corpos prazenteiros e no cosmos.

Na verdade, na tríade de Huizinga, tem-se outra cíclica. Conforme visto, todos os seus

elementos transcendem a cultura e o tempo/espaço e constituem categorias que pairam em

outra esfera que não a da realidade objetiva.

A festa/jogo/ritual e o jogo/festa/ritual ou a festa, o jogo e o ritual, portam e trazem

elementos arcaicos da alma. Desde os primórdios, o ser humano tem ligação com uma

instância “divina”, mítica, mística e ritualística. O ritual o acompanha desde o nascimento da

humanidade até os dias de hoje. Muitos foram os rituais inventados para explicar o

inexplicável, para celebrar ou desejar uma boa caça ou colheita, para a morte e para vida, para

lamentar ou festejar, para a passagem de uma etapa da vida à outra ou, ainda, ritos envolvidos

nas tradições orais da cultura de um povo, fazendo parte da “transmissão do patrimônio

mítico-cultural” através de representações, como nas culturas indiana, japonesa, balinesa e

chinesa, nas quais a tradição oral possui uma forte conexão com o teatro, em que é o ponto

culminante de eventos de pequeno, médio e grande porte.

Também entre os índios das Américas, a tradição oral mistura costumes, história,

saberes místicos e crenças míticas. Como, por exemplo, em algumas tribos indígenas

brasileiras ainda são realizados rituais de passagem da fase infantil para a fase adulta, de

iniciação à caça, de cura, comemorativos e outros28.

Desde a Antiga Grécia que os rituais a Dionísio ou os rituais de fertilidade misturam-

28Para saber mais sobre alguns destes rituais indígenas, ler: “Antropologia Indígena. Uma Introdução” de Carmen Junqueira.“Body art dei primordi: Lezioni di trucco e pittura corpórea”, “ Viaggio di Arlecchino in Mato Grosso. Comunicati dai confini di guerra tra foresta e deserto” e “Nhits’ina = insieme: per un’ecologia dei rapporti umani. Festa teatrale conclusiva dedicata alle tribú Xavante del Mato Grosso”,in Progetto Sciamano 2004. Teatro interetnico e teatro Sociale, Org. Claudia Contin.

50

-se com encenações29. Vem desta “tendência” humana de representar o mito, a forte conexão

do rito com o teatro e destes dois com a Máscara. O ritual, para Barthes, está coligado ao

mito, ele é a “ferramenta” que auxilia o sujeito a “incorporar” o mito. Barthes qualifica o mito

como uma fala e o rito como a ação desta fala30, ou seja, o mito é a memória, a lembrança e o

rito é a atualização, a repetição desta memória no evento imediato, realizando neste, uma

transcendência. Esta transcendência acontece porque o rito está ligado às “origens” da vida

humana, presente nas suas crenças e hábitos. O rito porta e comporta o mito que a cada

invocação se renova e se reinventa e, nesta repetição, tanto um quanto outro se fortalece.

Ligada ao ritual está a máscara, ela está presente não só nos antigos rituais à Dionísio

mas também nos de fertilidade, nos saturnais, nos carnavalescos e muito outros da Grécia e

Roma antiga. A máscara é um objeto que contém intrinsecamente o sentido de incorporação

(do mito), de transcendência, de ligação a uma instância superior - se adentrará

tranquilamente nas questões concernentes à máscara.

Esta transcendência, segundo Linn Mario Menezes de Souza31, acontece, também,

porque o ritual comporta genes de uma origem primitiva e pode ser instaurado dentro de

qualquer atividade ou ação, pois é algo que depende muito do indivíduo, podendo ser

realizado individualmente (cada um cria os seus rituais, grandes ou pequenos32) ou ser uma

manifestação de um grupo - da mesma forma que a festa, o ritual se instaura no corpo e na

atmosfera.

Para que o rito aconteça, não é preciso uma necessidade aparente ou coerência, ele em

si, a sua realização é a própria justificativa – tal como o jogo e a festa. A cada repetição do

ritual, ele se reafirma como rito e através dos genes imaginais que comporta, o ser humano

retorna ao primitivo atualizando o passado e, a cada renovação, transgredindo o

espaço/tempo.

O ritual funciona, segundo o antropólogo social Victor Turner (1986), como um

elemento de integração social e cultural, reforçando os valores comuns e superando conflitos.

Porém, mesmo que sejam valores comuns a um povo ou superação de conflitos sociais, eles

também podem ser referentes ao indivíduo (relação com o imaginário). Turner faz uma

análise do rito de uma forma ampla, dentro do tecido social e do tecido cultural, constatando

29 Para saber mais, ler: La maschera teatrale nel mondo greco e roman.( Giovanni Calendoli). In : “Arte della Maschera nella Commedia dell’Arte”de Donato Sartori e Teatro Grego. Tragédia e Comédia, de Junito de Souza Brandão. 30 Vê-se a fala como um discurso, um significado, podendo ser uma imagem (BARTHES, 1982). 31 Mestre indiano que acompanhava Renato Cohen, aqui no Brasil, nas suas pesquisas entre teatro e xamanismo, o qual tive a oportunidade de conhecer e realizar pequeno estágio com ele, no Ecun 2002. 32 Afirmação de Linn, em conversa pessoal, durante um ritual de cura, realizado durante o estágio.

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que o ritual faz parte das estruturas que o ser humano engendra para viver33, coligando-se ao

jogo e a festa, também por esta característica e tanto quanto eles, não está dentro das

necessidades básicas para a sobrevivência do ser humano, mas está entre as necessidades

sociais e culturais deste.

Para esta pesquisadora, na função “sócio-cultural” do ritual e na sua qualidade como

elo conectivo entre passado e presente, é possível sentir/perceber que a cada

realização/atualização de uma sambada de coco, de samba de roda, de samba, de cavalo

marinho, de uma roda de capoeira ou maculelê, de uma dança de Orixá executada num

terreiro ou pelos integrantes do cortejo de maracatu, de uma ciranda, de um xaxado, de uma

dança de caboclinho, de uma frevada, a cada apresentação de teatro, a cada aparição e a cada

feitura34 de uma máscara dell’arte, de uma roupa, figurino, da própria preparação do espaço

ou ainda da elaboração do que é necessário para o rito/dado/manifestação espetacular popular

se realizar o ritual se instaura. No caso, tudo pode se tornar parte do ritual – vai depender,

como afirma Linn Mario Menezes de Souza, do indivíduo e da ação deste no evento. Na

verdade, entendo o discurso do mestre indiano da seguinte forma: apesar do ritual ser

caracterizado como um evento, ele permeia as pequenas ações objetivas do ser humano, ele,

mais do que nenhum outro elemento da tríade, aparece subjetivamente dentro da realidade

objetiva - o que Gilbert Durand nominou de “trajeto antropológico”, que é a capacidade de

comportar nas ações da vida quotidiana, de modo subjetivo, as pulsões mais antigas da alma

do ser humano. Em alguma instância, dentro dessas pulsões antigas, está o retorno aos

primórdios: ao mito, a Dionísio, à religiosidade.

Segundo Tessari (1984, p.88), o ritual e o ator que trabalha com a máscara possuem

uma forte relação, pois “Na verdade, não deve ser menosprezado que, na vestição do cômico,

o elemento que confere um valor de iniciação ao ato é a máscara, a qual, mais do que o

figurino, re-invoca um gesto tão antigo cujo limiar é o extra-temporal, reconduzindo, não

somente ao teatro Grego, mas ao fascinante mundo do mito” 35.

Grotowsky sempre buscou no seu trabalho esta ação ritual, a qual comporta elementos

33 Para saber mais sobre o mito, ler: Dal rito al teatro de Victor Turner.

34 Do dicionário virtual Houaiss versão 1.0: substantivo feminino. 1 Ato, processo ou efeito de fazer(-se); elaboração 2 O que se fez; obra, trabalho, produção, produto 3 Configuração física; forma, formato, feitio 4 Criatura, pessoa ensinada ou formada por outrem para seu serviço 5 Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil. 6-6- 6 Processo de iniciação, no candomblé e em seitas afins dele derivadas ou por ele influenciadas. - Por todas estas possibilidades de compreensão e explicação, a palavra feitura, para esta pesquisatriz, vem contemplar o discurso sobre a ação ritualística. 35 Tradução da autora: “In vero, non va sottovalutato che, nella vestizione del comico, l’elemento che conferisce un valore di iniziazione all’atto è la maschera, la quale più del costume rievoca un gesto talmente antico da confinare con l’extratemporale, da ricondurci non soltanto al teatro Greco, bensì ancora nel fascinoso mondo del mito”.

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arcaicos da alma. Quando ele dizia aos atores que no teatro a ação devia ser uma “ação ritual”,

entende-se que estava se referindo a esta qualidade de ação que transgride o tempo/espaço

comportando genes imaginais. Assim, quando Grotowski (1971, p. 22) falava do ator santo e

pedia o sacrifício e a doação “[...] uma mobilização de todas as forças físicas e espirituais do

ator”, ele aludia ao corpo que emana elementos vindouros desta outra esfera, que possui

conexão com as questões primordiais da existência humana, para encontrar as ações rituais

desejadas, através de práticas como “A autopenetração, o transe, o excesso, a disciplina

formal [...]” (1971, p. 23) – todos, elementos do ritual. Ainda, quando Grotowski pedia ao

ator que expressasse “[...] através do som e do movimento, aqueles impulsos que estão no

limite do sonho e da realidade” (1971, p. 20), para esta pesquisa, ele estava pedindo que

“sonhasse acordado”, que devaneasse, que fosse buscar no limiar do sonho com a realidade

estas ações antigas que se renovam e têm esta pulsão de pungir a realidade e, então, nesse

espaço imaterial e extra-temporal, os elementos arcaicos da alma afetam o sujeito e a

imaginação acontece no sujeito.

A tríade festa-jogo-ritual se instaura no corpo e no cosmos, nas palavras do

pesquisador Erico José Souza de Oliveira (2007), no corpo prazenteiro que comporta uma

ancestralidade festiva emanando (-se).

Destas diversas formas e graduações, o ritual faz-se presente em todas as

manifestações espetaculares populares que integram esta pesquisa, por ligações

consequenciais da própria estrutura da tríade ou por conexões diretas e variadas que dizem

respeito à natureza de cada manifestação, italiana ou brasileira.

As considerações sobre imagem e imaginário como universos transbordantes e

perpetuantes, o sistema de imaginação gerado pela dinâmica recíproca entre o Fundo Comum

dos Sonhos e o Fundo Poético Comum e as considerações sobre jogo-festa-ritual foram

necessárias para que se compreendesse o nascedouro das conexões entre a Commedia

dell’Arte e as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras.

Por todos os vínculos conectivos e considerações levantadas, pode-se também pensar

na commedia dell’arte como uma manifestação espetacular popular resultante de uma atitude

lúdica de um povo. Conforme visto, esta colocação não é uma simplificação, pelo contrário, é

uma conclusão resultante de um complexo universo imaterial que transborda e punge a

realidade objetiva.

A Commedia dell’Arte está entre os dados que fazem parte desta pesquisa, mas este

gênero teatral é formado por muitos elementos (também dados) –

canovacci/zibaldoni/roteiros, lazzi/números/gags, máscaras, música – e cada um contém

53

características próprias. Por este motivo, o objetivo desta pesquisa não é dar conta de todos os

elementos que constituem a commedia dell’arte, o que interessa, o qual é o elo de conexão

enfocado, são as máscaras que a integram. As máscaras se ramificam, podem ser consideradas

como parte deste imaginário popular que inunda, se atualiza e se perpetua de maneira

fracionada, individual e compartilhada.

Já foi mencionado que cada manifestação espetacular popular é um dado que contém

outros dados, que contém outros e, sucessivamente, se desdobram - a cada vivência outros

novos dados se formam. No caso do dado “commedia dell’arte”, a qual contém as máscaras

dell’arte, as quais contêm outros dados - as partituras, por sua vez, contêm movimentos, que

contêm micromovimentos e, assim, no macrouniverso do imaginário, as conexões são

realizadas, primeiro, nos micromovimentos e nas subjetividades das ações, para avançar e

realizar conexões mais largas, como em movimentos completos.

Na variedade e multiplicidade das máscaras dell’arte, estão as diferenças graduais

deste imaginário coletivo e individual, trazendo traços semelhantes e outros diversos – refiro-

me, aqui, às várias máscaras de Arlecchini, Capitani, Pantaloni, Dottori, Brighelli, Servette,

Nobili, Cortigiani, Zanni e Pulcinelli, todas vindouras deste imaginário coletivo e individual.

A máscara é um “objeto” que interroga e suscita interrogações. Muitas vezes servindo

como um portal, ícone ou elemento de rituais religiosos, de caça, de festa, de morte, de vida

ou de cura, ela possui uma história tão antiga quanto a da aparição do ser humano na face da

terra. Segundo o pesquisador Alfonso Renzo Degano36, estudando o período Paleolítico,

encontram-se pinturas e desenhos rupestres de homens que se vestiam/mascaravam com peles

e penas de animais ou folhas para rituais xamânicos ou de caça. No que diz respeito ao rito, de

certa forma, Degano entra em acordo com Turner e afirma que, nas civilizações em que a

máscara aparece como ritual ou elemento ritualístico, ela acaba possuindo uma função moral,

ética, cultural e social insubstituível. Muito além de um objeto, em muitas culturas, as

máscaras “[...] representam as concessões do mundo sobrenatural e as relações estabelecidas

do homem com as potências superiores” (DEGANO, 2005, p.193)37.

Esta coligação da máscara com as “potências superiores”, segundo Degano, acaba

trazendo com ela uma “consciência” de uma “viagem metafísica”, estabelecendo a máscara

objeto como um “trâmite” entre dois mundos (nesta pesquisa, este “trâmite” foi chamado de

36 Dr. Alfonso Renzo Degano é colecionador de máscaras de diversas culturas do mundo, com as quais realiza mostras e conferências “Maschere dal Mondo”. É historiador e professor nas Áreas de História e Geográfica na UTLE – Università della Terza e delle Libere Età di Fiume Veneto – Pordenone – Itália. 37 Tradução da autora: “[...] rappresentano le concessioni del mondo soprannaturale e le relazioni stabilite dall’uomo con le potenze superiori”.

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“link”). Porém, tanto historiadores como Degano, quanto estudiosos do teatro como Taviani e

sociólogos como Turner afirmam que toda essa capacidade ritualística icônica, de tramitação

e link da máscara é o indivíduo que a concerne: reconhecendo-a como portal/ícone/link;

habitando as imagens que se formam no seu espírito e deixando-se transformar/habitar por

elas num sistema de imaginação.

Para Giovanni Calendoli (SARTORI; LANATA 1984, p. 13):

A máscara é, desde as suas mais remotas aparições, a refiguração de um vulto divino, humano ou animalesco, heróico, aterrorizante ou cômico, que um indivíduo pode impor ao próprio vulto apagando-o e assumindo os caracteres da máscara. Esta operação de transformação exterior, mas, também, interior, tem um conteúdo mágico e por isso se coloca originariamente no âmbito religioso, mesmo se as razões que determinam esta transformação possam ser muitas outras. A máscara, como objeto em si, aparece dotada de um poder mágico e religioso, porque é o instrumento que torna possível a metamorfose de um indivíduo, tornando-o diverso dele mesmo e concedendo-lhe outros poderes. A máscara contém a força necessária para produzir a metamorfose: é, sim, um objeto, mas um objeto carregado de uma energia secreta e obscura. 38

Quando Calendoli comenta que a máscara é um “objeto carregado de uma energia

secreta e obscura”, compreende-se que ele está falando sobre as suas conexões imaginais, isto

é, das conexões subjetivas, imateriais, míticas, religiosas, trata-se das forças que não possuem

uma concretude, mas que podem ser percebidas e constatadas a partir dos resultados que

provocam e pungem a realidade objetiva, como as máscaras, os jogos, os rituais, as festas, as

transformações e metamorfoses provocadas no corpo que tem contato com estas forças.

Calendoli também aponta para a relação, no caso da máscara dentro do teatro, com

Dionísio, afirmando que esta é uma coligação impossível de não ser feita, pois na Grécia e na

Roma Antiga, tanto a máscara da comédia quanto a da tragédia eram relacionadas com os

rituais a este Deus e, com isso, a máscara no teatro sempre representará este mito, pois “a

mesma duplicação da máscara em uma expressão trágica e outra cômica, corresponde, antes

de tudo, à duplicidade deste deus que governa a vida e a morte, como também, o riso e o

pranto” (SARTORI; LANATA 1984, p.13)39.

38 Tradução da autora: “La maschera é, fin dalle più remote apparizioni, la raffigurazione di un volto divino, umano o animalesco, eroico, terrificante o comico che un individuo può imporre al proprio volto, cancellandolo ed assumendone i caratteri. Questa operazione di trasformazione esteriore, ma anche interiore, ha un contenuto magico e perciò si colloca originariamente nell’ambito religioso, anche se le ragioni che determinano questa trasformazione possono essere assai varie. La maschera, considerata come oggetto in sé, appare dotata di una valenza magica e religiosa, perché é lo strumento che rende possibile la metamorfosi di un individuo, facendolo diverso da sé e conferendogli altri poteri. La maschera racchiude la forza necessaria a produrre la metamorfosi: è, si, un oggetto, ma un oggetto carico di un energia segreta e oscura.” 39 Tradução da autora: “Lo stesso sdoppiarsi della maschera in un’espressione tragica ed in un’espressione comica corrisponde anzitutto alla duplicità del dio, che governa la vita e la morte e perciò il riso e il pianto”.

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Dionísio era um deus que se metamorfoseava e, de certo modo, deu forma à sua

existência por intermédio da máscara e “consequentemente se tornou, também, o senhor da

máscara” (SARTORI; LANATA, 1984, p.13) 40. Tendo relação com os rituais de fertilidade e

solstícios, Dionísio era comemorado, também, como o deus das estações do ano, das

metamorfoses da terra e da natureza e a máscara, elemento essencial ao culto e ritual

dionisíaco, traz esta ideia de incorporação, duplicidade, metamorfose e transformação.

Muitos são os olhares sobre a relação das máscaras e o ser humano, como também são

muitas as relações entre a máscara e o teatro, umas mais céticas, outras mais fantasiosas e

outras, ainda, religiosas.

Claudia Contin possui uma relação ritualística, respeitosa e afetuosa com as máscaras

da commedia dell’arte, relação esta que procura passar às suas alunas. Posso dizer que,

através da convivência, percebi que, para ela, a máscara tem esta função de objeto/link, um

ícone, um portal e sinônimo de metamorfose. Totalmente conectada à máscara que a escolheu,

Claudia Contin leva Arlecchino pelo mundo e a máscara a faz conhecer outras dimensões das

realidades objetiva e subjetiva. Quem vê l’Arlecchino Claudia Contin” (como se faz conhecer

no meio artístico italiano) no palco, não vê uma mulher com roupas de homem, vê e sente a

presença da máscara de Arlecchino 41.

No decorrer da convivência, percebe-se que Claudia vê a máscara dell’arte como este

objeto “mágico”. Mas, o que se percebe, também, é que, para que a mágica da metamorfose

aconteça, para que a atmosfera e o público sejam afetados, o ator deve ter um corpo

disponível e apto para servir como uma espécie de conector/canalizador deste espaço mágico

imaterial com a realidade objetiva. Apesar de Contin e Merisi colocarem a máscara dell’arte

como elemento “mágico” dentro da commedia dell’arte, eles não a colocam como objeto

principal/único, pois ela se caracteriza pelo conjunto de elementos (canto, dança, música,

lazzi: poesias, discursos eloquentes, canovacci – roteiros e improvisação).

Nesta mesma linha de pensamento cujo tema é a complexidade da commedia dell’arte,

não delegando a supremacia à máscara dell’arte, Taviani (SARTORI; LANATA, 1984,

p.105) chama a atenção para a principal característica destas, dizendo que “[...] na Commedia

dell’Arte, a máscara serve para delimitar sem definir”42. Isto é, na commedia dell’arte a

máscara possui diretrizes de ação, porém, não são diretrizes castradoras e limitantes, elas

permitem a integração de alguns traços individuais de cada ator, improvisações ou modo

40 Tradução da autora: “[...] conseguentemente divenuto anche il signhore della maschera”. 41 É possível saber mais sobre as mudanças físicas e conceituais que Claudia Contin atravessou, nos artigos “Perseguindo Arlecchino” e em “Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte” . 42 Tradução da autora: “[...] nella Commedia dell’Arte, la maschera serve a delimitare senza definire”.

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particular de estar dentro destas diretrizes. É uma representação de um arquétipo que faz parte

de um universo imaginário coletivo e, também, individual. Posso dar como exemplo, muito

atual, dessa “delimitação sem definição”: os Arlecchini, Marcello Moretti, Ferruccio Soleri e

Claudia Contin, três dos mais importantes e reconhecidos Arlecchini da Itália, todos

delimitados dentro do que é Arlecchino, mas sem uma definição de como deve ser,

exatamente, um mais elegante e distinto, outro mais acrobático e ágil e outro mais grotesco e

selvagem.

O principal responsável por esta delimitação sem definição é o imaginário, este espaço

imaterial coletivo e individual.

Taviani fala das tentativas falidas do teatro moderno em criar novas máscaras a partir

das antigas máscaras dell’arte, afirmando que o falimento deste mecanismo é inevitável, pois

os cômicos dell’arte não criaram as suas máscaras a partir de uma observação da vida

cotidiana para identificar os tipos que a sociedade continha e daí criar as máscaras – elas não

observavam a vida cotidiana, faziam parte daquela vida. Tudo indica que um

encaminhamento baseado na observação e criação racional não funciona para as máscaras,

pois como falado anteriormente, elas fazem parte dos engenhos lúdicos deste universo

imaterial que punge a realidade e que o fazem de maneira subjetiva - a máscara como

categoria, não se institui de modo racional.

As máscaras dell’arte não foram criações para o teatro “institucional”, elas eram, antes

de mais nada, carnavalescas, ritualísticas e festivas, tinham e têm vida antes do teatro requerê-

las para a cena. No evento teatral, as máscaras dell’arte encontraram mais um nicho para se

repetirem e se fortalecerem, uma vez que o seu uso na vida cotidiana, cada vez mais, na Itália

medieval vinha sendo proibido, principalmente em Veneza43, região na qual a commedia

dell’arte e as suas máscaras tiveram interferência intensa na vida cotidiana e, quando se

institucionalizou como “teatro”, eram das principais atrações das ruas, feiras, praças e festas.

Apesar de muitos estudiosos afirmarem sobre a participação das máscaras dell’arte nos

festejos populares, é preciso dizer que Taviani chama a atenção para o fato de que pode existir

um pequeno qui-pro-quò. O Zanni, o Arlecchino e o Pulcinella possuem ligações diretas com

rituais populares44 que preexistiam à commedia dell’arte, já as outras máscaras como a do

Pantalone e Dottore não possuem uma ligação tão profunda e intensa com o ritual, se não

43Danilo Reato, no livro “Le maschere Veneziane” (1988) traz um roteiro histórico dos decretos e leis de proibição do uso da máscara na vida cotidiana, em Veneza, desde 1339, até 1789, posterior a esta data, o segundo governo austríaco permitiu o uso de máscaras, somente no carnaval. Após a reintegração da região de Friuli e Vêneto à República Italiana, as máscaras já estavam sendo usadas, somente no período carnavalesco. 44Italo Sordi, no artigo “Commedia dell’Arte e ritualità popolare. I personaggi” (SARTORI; LANATA, 1984) fala mais detalhadamente sobre estas ligações.

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aquela inerente à máscara, estando mais ligadas ao evento teatral. As máscaras do Zanni,

Arlecchino e Pulcinella possuem conexões ritualísticas carnavalescas. Conforme Italo Sordi,

algumas tradições medievais carnavalescas e ritualísticas que estes faziam parte: um grupo de

Zanni, vestidos de branco, em cortejos pelas ruas de Trento, dançando e arrastando um arado

e o “incentivando” a trabalhar com pauladas; Hellequin que conduzia o cortejo dos Charivari,

carregando as almas de crianças não nascidas ou mortas após o parto – tradição presente na

França, Itália e Alemanha; em Trentino, Arlecchino era uma espécie de guardião do grupo de

mascarados, mantendo o público longe do cortejo, de modo jocoso e brincalhão; também em

Trentino, um grupo de máscaras guiado por um “Zannon” sai em cortejo carnavalesco para

“conquistar” a cidade vizinha; esta mesma tradição acontece na região sul da Itália e é

Pulcinella que comanda o pelotão das máscaras – posteriormente, serão vistas outras

conexões ritualísticas destas máscaras. Além de cortejos ritualísticos carnavalescos, Zanni,

Arlecchino e Pulcinella possueam conexões originárias, também, no teatro pré-commedia

dell’arte – na fabula atellana, existe possíveis ascendências das máscaras dell’arte.

A fabula atellana era um espetáculo farsesco da Roma Antiga, segundo Giovanni

Calendoli, se trata de uma cultura tipicamente itálica com grande influência grega e também

latina45, osca46 e etrusca47. Para Calendoli, a fabula atellana deu à máscara teatral uma nova

função e estrutura dentro do espetáculo cômico profano, pois era muito diferente da função e

estrutura que tinha dentro da tradição grega.

A fabula atellana tinha como base quatro máscaras com nomes sem variáveis: Maccus

(o faminto – o qual tende a ter conexões com Zanni e Arlecchino); Bucco (o falador, que

poderia ter conexões com o Dottore); Pappus (o velho, que tende a ter conexões com

Pantalone) e Dossennus (o corcunda malicioso, o qual tende a ter conexões com Pulcinella).

Estas quatro máscaras, hipoteticamente, teriam servido de núcleo para o desenvolvimento da

commedia dell’arte (dramaturgicamente e como estilo). Por um caminho evolutivo, a

commedia dell’arte foi-se estruturando com 1º e 2ª Zanni, Pantalone, Capittano, Dottore,

Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Pulcinella, Nobili e todas as outras máscaras que se

desenvolveram, como Matamorros, Brighella...

Nesse caminho evolutivo ao longo dos tempos, a “commedia dell’arte” foi adotando e

sendo divulgada por muitos nomes como: commedia dei Zanni, commedia all’improviso,

45 Relativo à cultura do Lácio, antigo país da Itália, que pertencia à parte central da costa ocidental do mar Tirreno. 46 Relativo à cultura de Osca, a qual, posteriormente, passou a ser Huesca, cidade da Tarragona, antiga província a nordeste da Espanha. 47 Relativo à cultura da Etrúria, antiga província italiana, onde atualmente é a Toscana.

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commedia mascherata, maschere all’italiana, commedia all’italiana e, depois de muito

tempo, commedia dell’arte - cujo nome, após as companhias dell’arte se institucionalizarem,

não foi mais trocado.

Conforme comentários anteriores de Turner, Degano, Tessari e Taviani, a máscara traz

sempre uma ritualidade inerente a ela e isto, consequentemente, faz com que a própria

conecte-se com os outros dois elementos da tríade de Huizinga. A tríade tem ramificações

carnavalescas e as máscaras dell’arte, como se viu, também têm esta conectividade com o

carnaval, de um certo ponto de vista, poderia ser dito que as máscaras do Zanni, Arlecchino e

Pulcinella possuem uma coligação maior e mais potente, por fazerem parte de rituais antigos.

Contudo, não está se buscando uma hierarquia, está se procurando a constatação das

conectividades. O mais importante é que, quando as máscaras dell’arte encontraram o

carnaval, o adotaram como reinado, nicho e propulsor.

Ainda sobre os caminhos percorridos pelas máscaras dell’arte, sabe-se que estas

chegaram a uma grande fama, a partir de conhecidas companhias, como Gelosi, que se

apresentavam nas cortes e grandes teatros, com peças de Gozzi, Goldoni e Moliére. Mesmo

com grandes companhias que viajavam de um palácio a outro, de um país a outro para

apresentarem às cortes os espetáculos de commedia dell’arte, as pequenas companhias e os

giullari , buffoni, Zanni, Pulcinelli e Arlecchini solitários continuavam fazendo os cortejos

carnavalescos, as improvisações em meio ao povo, nas ruas, festas, feiras e praças, vivendo e

sobrevivendo neste universo imaginário e pungindo a realidade objetiva.

A vida inter/entre teatro e ritual das máscaras as colocam em uma categoria de ícone.

Elas são “objetos síntese”, pois a máscara objeto é uma realização concreta de um imaginário,

de certa forma, ela é uma “sintaxe” do imaginário que a engendrou – é um arquétipo que

encontra uma manifestação/representação concreta (objeto) e física (corpo do pesquisator).

A máscara está ligada ao teatro, ao imaginário, ao ritual, à Dionísio, à festa, ao

travestimento, ao jogo, à duplicidade, à incorporação ao carnaval e a muitas outras instâncias,

mas o mais importante da máscara é que, mesmo tendo uma relação de anulação do vulto do

ator ou do sujeito que a porta, ela, como diz Tessari, jamais esconde: revela. Mesmo dentro da

burla, do carnaval e do travestimento, a máscara sempre tem, em alguma instância, a intenção

de revelar.

Na história da humanidade, o carnaval sempre constituiu um evento no qual ocorrem

grandes realizações da atitude lúdica. A ação de travestir-se traz, também, o mascaramento e a

máscara, principalmente quando esta ação está ligada ao carnaval - festa que pré-existia à

commedia dell’arte, divulgada pelas companhias e estruturada como gênero de teatro. Se

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seguirmos a coligação da commedia dell’arte com os rituais a Dionísio, então, chega-se a

conclusiva que o carnaval sempre acompanhou as máscaras dell’arte.

A commedia dell’arte, divulgada pelas companhias nas praças, teatros e cortes, levava

a público máscaras mais refinadas, menos grotescas e selvagens do que aquelas que viviam

nas ruas, montanhas e festas populares da primeira metade da Idade Média e dos rituais da

Roma Antiga. Tudo indica que a mudança foi ocorrendo num processo crescente e,

certamente, nem mesmo a commedia dell’arte feita pela companhia que serviu de base para a

sua constituição como trabalho profissional era igual àquela realizada pelos “Gelosi” e outras

companhias nas cortes reais da França, Itália e outros. Desde que a commedia dell’arte se

profissionalizou e se tornou um gênero teatral, ela foi sofrendo modificações, de um século a

outro, de uma companhia a outra, de um espetáculo a outro, de um diretor a outro, de um

dramaturgo a outro.

Para se ter uma ideia do que eram essas evoluções e variedades de estilos de

commedia dell’arte, basta dar uma rápida olhada nas companhias e escolas presentes na Itália

e França atualmente. Vendo espetáculos com direção de Strehler, Patrick Pezin, Ferruccio

Merisi, Gianfranco di Bosio, Adriano Iurissevich, Jacques Lecoq e outros, ou ainda

espetáculos com atuação e/ou direção de Franca Rame, Claudia Contin ou Dario Fo. Todos se

afirmam como profissionais de commedia dell’arte e penso que é uma questão similar à dos

grupos de manifestações espetaculares populares brasileiras: existe o Cavalo Marinho do

Mestre Biu Alexandre, do Mestre Grimário e outros; na capoeira existe, primeiro, a

subdivisão Angola e Regional, depois vem os estilos, a capoeira do Mestre Alabama, do

Mestre João Grande, do Mestre King Kong e outros; existe o Coco da Selma do Coco, de

Arco Verde e outros; existem tantos grupos de Bumba-meu-Boi (ou Boi-Bumbá) no

Maranhão, no Amazonas e em outros estados ou até mesmo dentro de um mesmo estado; ou

ainda, o exemplo das danças dos Orixás que estão vinculadas ao Candomblé, o qual tem

subdivisões (Ketu, Nagô, Cruzada, Angola) que por sua vez se subdividem em vários

terreiros, cada qual com suas regras, encaminhamentos ou festas. As danças realizadas pelos

Orixás mudam, consideravelmente, de um terreiro para outro e de um seguimento para o

outro. Outro exemplo bem abrangente deste fenômeno de “delimitação sem definição” é o

Samba, que tem em cada estado brasileiro um estilo totalmente diverso e, mesmo dentro de

um só estado como a Bahia, ele ganha diversas “ondulações”, porém, não deixa de ser samba.

As máscaras dell’arte e a própria commedia dell’arte fazem parte deste espaço com

delimitações, mas sem definições. Nem mesmo os italianos, dentro da própria cultura,

elegeram um estilo como “a commedia dell’arte”, deste modo, resta a quem pesquisar, eleger

60

entre os estilos/grupos que a Itália (e França) oferece (oferecem) aquele que mais lhe

convence e agrada. A meu ver, muitas das manifestações espetaculares populares brasileiras,

conforme exemplos citados anteriormente, estão neste mesmo espaço de delimitação sem

definição - é mar aberto, são territórios aquáticos.

Penso que, para entender um pouco dos percursos evolutivos da commedia dell’arte, é

preciso vê-la com um olhar menos focado em um só estilo e pensar que, tal como a dançados

Orixás, o Samba, a Capoeira, o Cavalo Marinho e outras manifestações espetaculares

populares brasileiras, ela também se desdobrou em várias versões de si mesma. Foi

justamente por essas versões, que se tornam repetições, que ela se firmou como gênero, como

“mito” e como tradição – é a repetição e a renovação que fortalece o mito, que ritualiza o

mito, é a repetição/renovação que dá a oportunidade da “continuidade” do DNA imaginal.

Com certeza estes impulsos de repetição do DNA imaginal nas atitudes lúdicas que

pungem a realidade objetiva é que fizeram com que as máscaras dell’arte se propagassem

pelas festas ritualísticas, carnavalescas e no teatro. Ao que tudo indica, “Todos parecem

concordar com o fato de que as máscaras pré-existiam à commedia dell’arte: os comicos as

haviam transferido para o palco, tolhendo-as do mundo diverso, colorido e multiforme do

carnaval (...)”(MOLINARI,1985, p.16)48. Esta transferência de um meio para o outro já

constituiu uma “versão” diversa daquelas máscaras que viviam nas montanhas, ruas, feiras e

festas carnavalescas. A retirada delas do meio carnavalesco e passagem destas para os palcos

fez com que fossem se modificando e perdendo algumas características da vida nas

montanhas e ruas, dentro da festa e do ritual. Mas nem todos os atores, bufões e giullari

tinham a sorte de conseguir um mecenas, patrocinador ou protetor e algumas pequenas

companhias dell’arte continuaram a fazer as máscaras ao modo mais tradicional dos mercados

públicos e pequenas cidades. Foram através destas pequenas companhias que as conexões

destas com o ritual/jogo/festa não se afastaram. Para pesquisadores, este é um fato que não

surpreende, pois muitas manifestações espetaculares populares brasileiras se mantiveram

vivificadas graças a pequenos grupos que seguiram as tradições, mesmo em condições

precárias de manutenção, ou graças a uma pessoa que a(s) manteve sozinha e o incentivo aos

mais jovens na feitura da manifestação - como é o caso do Cavalo Marinho, de alguns

terreiros, do samba de roda, do “Nêgo Fugido” (a qual não entra no grupo das manifestações

que integram esta pesquisa, mas que é um bom exemplo dessa resistência, ou melhor, da

48 Tradução da autora: “Tutti sembrano concordare sul fatto che le maschere preesistevano alla commedia dell’arte: i comici le avrebbero trasferite sulla scena togliendole dal mondo variopinto e multiforme del carnevale”.

61

insistência das manifestações espetaculares populares em se manterem ativas).

Este é um pouco o caso da commedia dell’arte feita pela Scuola Sperimentale

dell’Attore, cuja idealização é de Claudia Contin. Pesquisadora detalhista, para estruturar seu

trabalho prático, foi atrás das reincidências das máscaras da commedia dell’arte mais grotesca

e é neste ambiente (ritualístico festivo e carnavalesco) que Contin acredita nas máscaras

dell’arte. Da mesma forma, é através da festa e do carnaval que a conexão destas máscaras

com as manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa se

realiza, se fortalece e cria dinâmicas.

Ao adentrar mais nas questões concernentes à máscara, lembro que, desde o início dos

discursos que tentam desvelar os encaminhamentos desta pesquisa, se afirma que a máscara

constitui uma categoria, podendo ser vista como unidade e totalidade, como um objeto, ícone

e link, indo além da questão estética. Mas esta conclusão de reconhecimento da máscara como

categoria, teve haver com uma colocação de Cesare Molinari, a qual diz que as máscaras

dell’arte sempre suscitaram interesse no que diz respeito ao seu conteúdo, ao que ele

representa e a sua nomenclatura. Isso fez com que, ao longo da história da própria commedia

dell’arte, as máscaras fossem argumento para muita discussão e, segundo Molinari, tudo

indica que os estudos mais prósperos, como também, aventureiros “[...] vêm abandonando o

conceito de personagem e, ainda mais, o de “tipo”, para se referirem às máscaras muito mais

como categorias capazes de sustentar ou de reassumir as diversas realizações concretas”

(MOLINARI, 1985, p.16)49. Apesar de que, para Molinari, esta ainda não é a mais completa

concepção do que é a máscara: seu conteúdo, representação e nomenclatura.

Para esta pesquisa, ver a máscara como categoria reúne nela as qualidades necessárias

para que ela funcione como objeto/link, ícone e portal, pois essa capacidade de reassumir

realizações concretas tem a ver com a metamorfose que a máscara provoca no corpo do ator,

com a conexão deste com uma outra esfera do cosmos, com a tomada do corpo por uma

energia vindoura de uma outra dimensão, mas que também faz parte do ser humano, tem a ver

com o Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum – conforme o filósofo alemão

Immanuel Kant, a “categoria” reúne nela conceitos fundamentais do entendimento puro

(unidade, pluralidade, totalidade), ela legitima as potencialidades cognitivas da razão, é capaz

de representar formas a priori e de constituir os “objetos” do conhecimento, ela aponta

49 Tradução da autora: “[...]sono venuti abbandonando il concetto di personaggio e ancor più di “tipo” per riferirsi alle maschere piuttosto come categorie capaci di sottenere o di riassumere le diverse realizzazioni concrete.”.

62

condições de possibilidade apriorísticas50 do conhecimento e da legislação moral, inerentes à

constituição universal do espírito humano. Por tudo isso, a concepção da máscara como

categoria, vem ao encontro daquilo que é o “arquétipo” dentro da commedia dell’arte,

tornando-se termos que auxiliam na compreensão do que é a máscara dentro do universo em

que elas foram engendradas, do universo da commedia dell’arte e como se perpetuam dentro

de uma tradição que é sempre renovada dentro da contemporaneidade51.

Para continuar a desenvolver os transcursos conectivos entre manifestações

espetaculares populares brasileiras e manifestações espetaculares populares italianas, é

preciso conhecer um pouco da história destas máscaras antes de serem transportadas para a

cena.

Como dito, dentro do percurso de avanço na história e evolução das máscaras, o

carnaval é evento de grande importância e, conectado intimamente a ele, está uma máscara

muito integrada a esta festa/filosofia, como também ao ritual e ao jogo, a qual pode até ser

considerada como um ícone do carnaval: o bufão – uma verdadeira concretização dos

princípios material e corporal do carnaval.

Além de permear o carnaval em todas as suas contingências, o bufão possui intensa

conexão com as máscaras dell’arte, principalmente com o Zanni, Arlechinno e Pulccinela.

50 Doutrina (de tendência racionalista, criticista ou fenomenológica) que atribui um papel fundamental a conceitos e raciocínios a priori. Pode ser vista como uma convicção intelectual a respeito da existência de conhecimentos, princípios e ideias de natureza a priori.

51 Não convém, aqui, fazer um desvio para entrar nos aspectos estéticos da máscara no teatro, por não ser este o enfoque escolhido para seguir as conexões rizomáticas da máscara. Toda a “estética” que envolve a máscara e o teatro não está sendo desconsiderada, contudo, não está no centro do estudo. Certamente que, quando se fala nos aspectos grotescos, carnavalescos e da transformação/metamorfose do pesquisator pelo objeto/link que é a máscara, as conexões “tocam” os aspectos estéticos da máscara no teatro, mas tem-se a preferência pela abordagem “categórica”. E, a meu ver, a categoria, em sua totalidade, engloba a questão de estética da máscara, mas não a anuncia como instância primeira, mantendo-a presente como mais uma possibilidade de abordagem e ramificação.

63

2.3. CONEXÕES INUNDADAS: MÁSCARAS, CARNAVAIS E BUFÕES

“Se lembrarmos que, na mitologia, Dionísio é uma divindade arbustiva, pode-se falar, nesse sentido, de um saber dionisíaco, isto é, um saber enraizado [...] Ele põe em jogo, de modo global, os cinco sentidos do humano, sem hierarquizá-los [...] Saber orgânico, ou saber corporal, considerando-se que o corpo era parte integrante do ato de conhecer e que isso era, igualmente, causa e efeito da constituição do corpo social em seu conjunto.”

Michel Maffesoli (2008, p.162)

Se o imaginário inunda, devo chamar a atenção para a dificuldade de se encontrar terra

firme e de se obter certezas, mas como já mencionado, esta pesquisa não se move através de

certezas e sim de dúvidas.

Em certos momentos, durante o mergulho, têm-se a impressão de se encontrar

“Venezas”, “Recifes” e, num mergulho mais profundo, até mesmo “Atlântidas”. No meio do

oceano, se descobre que, neste universo líquido, nem mesmo o continente é terra firme: é

miragem, uma imagem criada e projetada, idealizada em convicções – porém, se o ser

humano só existe a partir do imaginário, então, este espaço idealizado em certezas também é

nascente líquida, transborda e escorre igualmente.

Embora remarcado tantas vezes, repete-se mais uma vez: considera-se o Fundo

Comum dos Sonhos como uma condição inerente à existência humana, uma condição que na

verdade é uma aluvião, a qual se mostra impossível a uma verificação fiel dos caminhos

traçados e percorridos. Com isso, esta pesquisa não tentará reduzir tamanha inundação em um

“caminho histórico cronológico” das máscaras à italiana ou das manifestações espetaculares

populares brasileiras (coco, ciranda, maracatu, frevo, caboclinho, xaxado, dança dos Orixás,

cavalo marinho, capoeira, maculelê e samba) e, sim, encontrar um caminho que contenha tais

cronologias ou históricos, deixando em primeiro plano as conexões rizomáticas e líquidas que

constituem a instância primeira desta pesquisa - a “personificação” e materialidade da ação

dinâmica e recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. Com isso,

seria difícil traçar um caminho cronológico histórico, pois rastrear um DNA imaginal que se

ramifica rizomaticamente, engendrando-se nas mais diversas direções e originando

incontáveis atividades lúdicas, se tornaria a construção de um labirinto inapropriado. Assim, é

preferível vislumbrar um dos possíveis traços deste DNA, sem se preocupar demasiadamente

com a cronologia histórica. É claro que as manifestações espetaculares populares, italianas e

brasileiras, foram se materializando ao longo de um caminho cronológico, mas está se dando

prioridade aos genes imaginais, os quais possuem a característica de transgredir o

64

espaço/tempo.

Neste momento, será dedicada atenção às máscaras dell’arte, e o caminho que será

realizado é de uma possibilidade de compreensão das possíveis ramificações de uma ínfima

parte da teia formadora deste imaginário que engendrou as máscaras italianas, a qual foge de

um raciocínio esquemático exato, mas deixa uma possibilidade de vínculo através de uma

“lógica da percepção”, ou seja, guiada pela subjetividade.

A busca de um caminho possível que atravesse a história desde os primórdios, como

assinala Molinari e Taviani, pode ser uma necessidade própria do ser humano em estabelecer

um caminho “mais concreto” dentro do espaço/tempo, de buscar uma “herança” ou uma

referência. A busca para situar-se dentro da imensidão temporal por meio de datas é resultado

do desconforto que representa ficar suspenso num universo sem parâmetros e tais referências

temporais servem, então, para medir a situação/momento em que o ser humano se encontrava

naquele instante da história, como também no momento contemporâneo à investigação. Os

dados históricos, hipoteticamente, marcam períodos de uma jornada, dessa forma, estudando

tais períodos, obtêm-se hipóteses de um passado longínquo e de um possível futuro - o que

ajuda a vislumbrar uma possível perpetuação. É compreensível a ansiedade e curiosidade

pelas datas, mas tentar-se-á fazer este “passeio” nos caminhos flutuantes da subjetividade e

imaginação, nos quais, as datas se tornam “notas” e não texto principal.

Antes de levantar considerações mais pontuais sobre máscaras, carnavais e bufões,

lembro que a máscara, para esta pesquisa, é uma categoria. Ainda a respeito da máscara, não

se trata de um simples objeto, é um objeto/link atuante sobre o ator através da imaginação.

Agindo dentro dessa dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, a

máscara não é um simples elemento do travestimento do ator, ele age em seu corpo inteiro–

característica que, para Taviani, Sérge Martin, Cesare Molinare, Jacques Lecoq, Meyerhold e

Pierre Louis Duchartre, é, sem dúvida, o diferencial da commedia dell’arte.

Esta ação da máscara sobre o corpo, transformando-o, faz com que ele também se

torne uma máscara, porque a máscara/objeto necessita de um corpo diferente do cotidiano

para portá-la, necessita de uma gesticulação e energia em comunhão com ela - é o que Claudia

Contin desenvolveu e trabalha para cada máscara/objeto um corpo e uma gesticulação muito

específicos. Não se trata de cristalizar o corpo em uma postura, mas de habituá-lo a uma nova

“realidade física” a qual é compatível, em termos de caráter e qualidade de movimento, com a

máscara objeto. Quando Contin trabalha a máscara do Pantalone, ela começa ensinando a

máscara física do velho avaro e libidinoso, cuja estrutura corporal apresenta uma corcunda,

com uma tensão para cima, não para trás, quadril levemente projetado para frente, joelhos

65

dobrados e direcionados para fora e pés para fora. Apesar de ser a máscara de um velho,

Pantalone não é um velho frágil e decrépito, pelo contrário, possui uma energia forte e muito

dinâmica, ele é ágil, capaz de dar um salto mortal para pegar uma moeda, antes que ela toque

o chão, mas pode desmaiar e ter um ataque do coração quando alguém lhe cobrar alguma

dívida. A partir deste comentário, mas, principalmente, da prática que tive com essa máscara,

pode-se perceber que a máscara física não impede o ator de realizar nenhum movimento ou

ação, o ator que faz Pantalone deve redescobrir as possibilidades do seu corpo dentro daquela

máscara física: como sentar, como correr, como saltar, fazer acrobacia, tendo a imagem de um

corpo elástico, com uma forma e não com uma “deficiência”, deve fazer tudo como qualquer

outro corpo, sem esquecer-se de manter a forma da máscara física, entre uma acrobacia e

outra e entre (ou durante) uma ação e outra, quando estas lhe permite. Fica muito claro que,

na máscara física, o ator deve desenvolver ainda mais as suas capacidades, não fazendo dela

uma limitação e sim uma possibilidade de exploração.

Todas as pertinências da máscara física ou de corpo todo, como chama Taviani, das

máscaras dell’arte também são concernentes ao bufão. Sérge Martin e Jacques Lecoq afirmam

que ela é uma máscara que comove todos os sistemas orgânicos do corpo. Molinare, Tavani e

Fo também concordam com a visão do bufão como máscara, por tudo o que é pertinente à

máscara, pela ligação com o ritual, com Dionísio, com o travestimento e metamorfose, com a

duplicidade, por tudo aquilo que já foi comentado e que diz respeito à máscara como

categoria e objeto/link. Na medida em que se avança nos discursos, o entendimento do

bufão/máscara será desenvolvido.

Como se deve começar de um ponto, então se investe sobre um nó da rede que se

prolifera incrivelmente – os caminhos da commedia dell’arte, através das suas máscaras,

desde as suas mais remotas procedências. As teorias mais difundidas sobre as possíveis

origens da commedia dell’arte traçam um “fio” desde a Grécia Antiga até o apogeu deste

gênero no Renascimento e daí para o que se tem conhecimento nos dias de hoje. Deve-se

dizer que estas representações trágicas e cômicas que aparecem no séc.V a.C. em Atenas,

Grécia, nas quais está a “base histórica da tradição ocidental” se tratam de formas já maduras

da representação, ou seja, é preciso ir mais além e considerar elos muito mais antigos de

conexões.

Molinari faz um estudo iconográfico embasado em documentos e imagens de vasos e

estampas, confrontando tais fontes e validando as imagens como fontes riquíssimas de

documentação – o mesmo método que posteriormente utilizará para a commedia dell’arte.

Neste estudo, Molinari mostra que, muito antes do evento teatral maduro do séc.V a.C., já

66

existia o elemento teatral (travestimento/mascaramento) nos rituais de cortejo a Dionísio dos

ditos “povos primitivos” (MOLINARI, 2007, p. 03 -18).

Desde os povos mais antigos da Grécia, existia um “personagem”, o Sátiro, que trazia

consigo o principal elemento do teatro: o travestimento. Segundo Molinari, os Sátiros são

máscaras de corpo inteiro, uma forma meio animal, meio gente, criaturas animalescas que

“representam” os antigos espíritos da natureza e faziam parte dos cortejos à Dionisio.

Segundo John Gassner, “Dionísio, criado à imagem do homem, tornou-se o protagonista de

diversas funções da mente primitiva. Era conhecido sob diversos nomes como: o Espírito da

Primavera, o Deus do Renascimento (“O Divino Rapaz” e “Brômio, Aquele do forte grito”), o

Deus Touro ou o Deus Bode e o poder intoxicador da procriação em todas as coisas. Como

deus do vinho, o mais comum de seus títulos, apenas exprimia um aspecto simbólico de sua

divindade energética” (GASSNER, 1974, p.13). O ditirambo era o rito à Dionísio, conforme

Pavis, composto por um coro cujo canto continha características líricas. Lígia Militz da Costa

e Maria Luiza Ritzel Remédios afirmam que, inicialmente, este coro era cantado, somente

com vozes (grupo de coreutas) e depois foi se desenvolvendo com a dança e a música (flauta).

Segundo Gassner, quando o ditirambo evoluiu para além do canto, a dança não era um

simples bailado, era uma espécie de “dança de abandono” ou ainda, como chama Junito de

Souza Brandão, uma “dança vertiginosa” e os realizadores da mesma chegavam ao êxtase e ao

transe. Gassner fala ainda que muitos dos coreutas se travestiam em peles de bode,

representando os Sátiros e ofereciam ao deus Dionísio o sacrifício de um animal (geralmente

o bode). Foi a partir do ditirambo que os primeiros elementos da tragédia se desenvolveram,

quando no séc.VI a.C., segundo Pavis, Simonide de Céos (556-468 a. C.) apresentou não

somente o coro mas também um solista (o corifeu) que dialogava com o coro. Mais tarde,

com Téspis, grande diretor de ditirambos e com as edições de festivais, que teve início com

Pisístrato em 535 a.C., o ditirambo evoluiu ainda mais e passou a contar, não somente sobre

Dionísio, mas também a história de outros deuses e mitos e, posteriormente, temas

“profanos”52 – era a tragédia e a comédia estruturando-se.

Como afirma Gassner, “Tal como seus companheiros no Egito e na Síria, o povo

grego primitivo estava mergulhado na magia e no ritual” (GASSNER, 1974, p.12) e aqueles

que se travestiam em pele de animais representavam outros seres, tão mitológicas quanto

Dionísio, porém, não se trata de deuses, as criaturas meio gente, meio animal, que dançavam

52 Para saber mais, ler: A Tragédia. Estrutura e História, de Lígia Militz da.Costa & Maria Luiza Ritzel Remédios. O Teatro Grego – Origem e Evolução e Teatro Grego: Tragédia e Comédia, de Junito de Souza Brandão. Mestres do Teatro, de John Gassner.

67

em “transe”, em contato com uma outra esfera, eram, como já dito, a “representação” dos

Sátiros. Os Sátiros possuem uma forte ligação com Dionísio, segundo uma das variantes do

mito, foram eles que, juntamente com as Ninfas, cuidaram do deua seguindo as ordens de

Zeus.

Segundo J. S. Brandão, os adeptos “[...] do deus do vinho disfarçavam-se em sátiros,

que eram concebidos pela imaginação popular como “homens-bodes” (BRANDÃO, 2007, p.

10). Estes “homens-bodes”, que faziam parte dos coreutas e representavam os Sátiros, foram

seguindo a evolução do coro, na tragédia, nos dramas satíricos, na comédia, tanto nos rituais

religiosos quanto nos teatrais, a imagem dos Sátiros foi pintada às vezes como mitológica,

outras como atores e/ou adoradores do deus do vinho travestidos (MOLINARI, 2007, p.19;

24).

Para esta pesquisa, tanto a vertente mitológica quanto a do travestimento são

possibilidades compatíveis, pois a instância ritualística, da qual as máscaras fazem parte,

comporta todas as duas versões. Tais conexões ritualísticas e miméticas não possuem o

objetivo de descobrir a “origem” de tais manifestações espetaculares, mas sim de considerar

hipóteses sobre um transcurso destas - nada exclui tudo pode ser adicionado e considerado

como possibilidade. Contudo, essa adição e tentativa de compreensão das ramificações e

coligações subjetivas do Fundo Comum dos Sonhos nas “personificações” das máscaras

dell’arte e ligação com as Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras pode ser um

bom exercício para a imaginação...

2.3.1 O bufão e algumas conexões

“(...) che le anime nostre tornino in tutte le cose del mondo (...)”53

(GINZBURG, 1976, p.80)

A Grécia Antiga foi, então, a grande “mãe fecunda” da civilização ocidental e suas

engendradas atitudes lúdicas e imaginárias. William Willeford lembra, citando Thelma

Niklaus, que “Em cada probabilidade, todos os mimos, os clowns, os guitti e os comediantes

conhecidos na Europa derivam do Sátiro da antiga comédia grega, gênero que, por sua vez,

provém dos ritos fálicos e das cerimônias em honra a Dionísio” (WILLEFORD, 1998, p.58)54.

53 Tradução da autora: “(...) que as nossas retornem em todas as coisas do mundo.” 54 Tradução da autora: “Con ogni probalilità tutti i mimi, i clown, i guitti e i commedianti conosciuti in Europa derivano dal Sátiro dell’antica commedia greca, genere che, a sua volta, risale ai riti fallici e alle cerimonie in

68

Nos antigos rituais a Dionísio estariam, então, as “sementes” de várias outras manifestações

espetaculares que fazem parte destas civilizações. Entre elas, as do bufão, uma “máscara” que

em suas vertentes pode desaguar nas máscaras dell’arte, em diversas graduações, como

também, na do clown, conforme assinala Dario Fo (198[-]. p. 15):

Posso remontar a origem do clown, encontrar referência ou reclames, em tempos antigos na Grécia. No oitavo século antes de Cristo, descobrimos o primeiro exemplo daquilo que, com bastante fantasia, podemos aceitar como possível ancestral do clown. Trata-se do “bufão”, que em cima das carroças rodava pela Grécia Antiga [...] Uma corja de cômicos errantes, cujos descendentes podem talvez reencontrar-se em certos atores nômades da Magna Grécia e depois nos menestréis e nos jograis Medievais e ainda nos comici dell’arte do final do Renascimento [...]55.

Com tal afirmação, pode-se considerar que Dario Fo apresenta o bufão como uma

força engendradora, a qual traz em si embriões de muitas outras manifestações e linguagens

cênicas e as quais alimenta, digere e se transforma, ao longo dos tempos.

Como é que o bufão surge, de onde ele se metamorfoseia, qual é a sua possível

“ascendência”? Com tudo o que foi falado sobre as questões que transpassam a máscara, fica

subjetivamente implícito que o bufão também tem muitas conexões com o mito do Dionísio,

com o ditirambo e com os sátiros – a imagem destes homens meio gente, meio animal que

constituíam o ditirambo, fortalece a imaginação do coro de bufões.

Dionísio, esse mito da metamorfose e transformação da terra e do tempo, da semente

em planta e alimento, da morte e da ressurreição, é intensamente conectado com o Bufão, pois

este incorpora tudo o que é pertinente ao mito do deus. O Bufão parece ser a continuidade da

ação dos homens do ditirambo que se travestiam e incorporavam o mito. Porém, conforme a

evolução e com tamanha força criativa, as transformações dentro da parte lúdica e de

travestimento do coro foi acontecendo e não mais somente “homens-bodes” faziam parte dele,

mas outros animais como o touro e o asno e, mais tarde, juntamente com a força carnavalesca,

muitos outros tipos de travestidos faziam parte do cortejo.

Para esta pesquisa, a afirmação de Fo pode ser muito pertinente, já que, o bufão é um

ser em transformação, ou melhor, em metamorfose, o qual poderia se desdobrar em tantos

outros personagens e Máscaras da história do teatro ou multiplicar-se incontavelmente – um

onore di Dioniso”. 55 Tradução da autora: “Le origini del clown possono risalire, trovare riferimento o richiamo, in tempi lontanissimi nell’antica Grecia. Nell’ottavo secolo avanti Cristo, scopriamo il primo esempio di quello che, con apprezzabile fantasia, possiamo accettare come possibile progenitore del clown. Si tratta del “buffone” che su dei carri girava per l’antica Grécia. [...]Una genia di comici erranti, i cui epigioni potranno forse ritrovarsi in certi attori nomadi della Magna Grecia e poi nei menestrelli e nei giullari del Medioevo e ancora nei comici dell’arte dell’ultimo Rinascimento [...]”.

69

verdadeiro convite a exercícios imaginais.

Retomando a citação de Dario Fo, na Grécia Antiga, os “cômicos errantes” tinham

como palco de suas manifestações artísticas/lúdicas/ritualísticas: as ruas, feiras e campos

religiosos. Entre estas manifestações ritualísticas estavam os coros de sátiros, os quais,

conforme dito, possuem conexões largas com o bufão e, então, com a commedia dell’arte

através do banquete, do bacanal, do carnaval e do corpo em mutação.

Aqueles que “se faziam” sátiros tinham suas vestes confeccionadas de peles de

animais, chifres e outros adereços, tudo para melhor personificarem estes seres fantásticos –

com estas características, é claro que aquele que se fazia Sátiro era um ser em metamorfose ou

metamorfoseado, travestido e mascarado. Na história, mais adiante, mais especificamente nos

carnavais antigos das montanhas das regiões de Piemonte, Friule e Vêneto, existiu uma

máscara que pode ser conectada, de alguma maneira, ao Sátiro, é a do “uomo selvaggio” - o

primeiro registro desta máscara, que se tem notícia atualmente, foi em 1208, em Padova

(REATO, 1988). No artigo “Arlecchino e L’uomo Selvatico. Rapporto Uomo–Natura in

Antiche Tradizioni Carnavalesche”, Claudia Contin e Ferruccio Merisi (2002) descrevem um

suposto e possível caminho e conexão entre o Arlecchino e as tradições antigas dos carnavais,

passando pelos Sátiros, Sabba, Uomo Selvaggio, Charivari, os bufões e as lendas de

Hellequin – aquele que conduzia as almas dos mortos errantes - até desaguar na Máscara do

Arlecchino.

Lembre-se que a ligação do Sátiro ao Uomo Selvatico e daí para o Bufão e para as

máscaras dell’arte é apenas uma das tantas ramificações e desdobramentos deste universo

imaginário. Segundo a descrição e as imagens desenhadas, os carnavalescos uomini selvaggi

se desdobravam em várias versões, segundo época e região, mas sempre havia uma relação

muito forte com a natureza, às vezes tinham vestes de pele de animais, coroa de loro, bastão

de madeira, se apresentavam com um comportamento que oscilava entre ingênuo e hostil e

tocavam docemente seus instrumentos (a lira ou a flauta) pelas ruas e palcos da cidade.

A coligação entre Dionísio, o coro dos Sátiros, o ditirambo, o coro das tragédias, o

qual, evoluindo juntamente com o teatro, se tornou também parte importante da comédia.

Segundo Brandão, a Comédia Antiga é feita de dois elementos: o “kômos” e a farsa, sendo

que o kômos pode ser profano ou dionisíaco (religioso). O kômos profano deriva de um hábito

das cidades e aldeias de Hélade, em que um grupo de pessoas saía pelas ruas e casas pedindo

doações e zombando dos moradores, para não serem reconhecidos se travestiam em peles de

animais, dessa forma, eles constituíam uma imitação, paródia e sátira dos kômos religioso, o

qual era um ritual em que um falo era carregado pelas ruas em procissão – o falo significava a

70

fertilidade.

Aristóteles afirma que a Comédia Antiga continha muita improvisação e era oriunda

dos cantos fálicos, afirmação esta que não vai contra o kômos e a evolução dos coros dos

Sátiros e a Dionísio, pois os cantos fálicos faziam parte dos rituais de semeadura, de

fertilidade e fertilização da terra. Não obstante, o deus da primavera e da fertilidade é

Dionísio.

Conforme observações realizadas, pode-se perceber que o kômos profano é muito

próximo da farsa e é muito provável que o coro da comédia e, principalmente, o coro dos

bufões sejam oriundos desta via dupla do kômos.

A farsa une os dois kômos, o falo, o ritual, a zombaria, a paródia, a sátira e a

extrapolação da realidade - muito interessante notar que um dos elementos mais obscenos dos

coros da comédia (e, como conseqüência, também dos cortejos carnavalescos), o falo, advém

da parte religiosa do kômos. Esta via dupla entre religioso dionisíaco e profano, zombaria que

o Bufão porta com ele, é o que o torna tão ambivalente, inquietante, metamorfoseante,

transformador, divino e diabólico. A farsa é, sem dúvida, um bom “ambiente” para o bufão se

manifestar. Segundo Pavis, “Graças à farsa, o espectador vai à forra contra as opressões da

realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam sobre a inibição e a

angústia trágica, sob a máscara e a bufonaria e a “licença poética” (PAVIS, 2005, p.164) -

será dada mais atenção à farsa quando se adentrar no espetáculo “FATO(S) DO BRASIL”.

Continuando na busca de uma possível estrada conectiva entre o teatro na Grécia

Antiga e o medieval, encontra-se o estudo de Sandra Chacra (1983, p.28), que sinaliza uma

possível via de coligação entre os gêneros trágicos e cômicos e suas respectivas

representações, as quais se moveram da Grécia Antiga em direção a Roma Antiga. A partir da

construção deste caminho, Chacra localiza um pouco mais o possível nicho da commedia

dell’arte, indicando as comédias mascaradas da Roma Antiga, especificamente a comédia

atellana, proveniente do coro grego, como um embrião deste gênero de teatro – esta conexão

já foi assinalada anteriormente, mas se refaz este caminho de modo a procurar mais detalhes

ou possibilidades de compreensão destas ramificações.

Molinari realiza o mesmo caminho, porém, mais detalhado, especificando inclusive a

movimentação e a caracterização dos coros satíricos, a evolução deste coro no ditirambo, na

tragédia e nas três fases da comédia: grega antiga, do meio e nova; até chegar na celebração

dos estilos populares: atellana, fescenino e o mimo. Molinari faz ainda a ligação da comédia

atellana, a qual tinha como núcleo a trama entre as máscaras de um velho (Papus) e de um

servo (Maccus), lembrando as máscaras do servo e do velho da commedia dell’arte (Zanni e

71

Pantallone) e a ligação do mimo com o estilo satírico e com o giullari , conhecido também

como buffone - bufão.

Fazendo um caminho muito interessante para esta pesquisa, Taviani apresenta uma

tradição que era dos bufões e que passou a ser usada pelos comicos dell’arte, a fixação dos

papéis. Deve-se lembrar que se fala da “fixação dos papéis” como nome adotado pelos atores

para serem reconhecidos pelo público, ou seja, eles passavam a adotar na vida quotidiana o

nome da máscara que utilizava na cena, mas, ao que tudo indica, era o próprio público que o

nomeava pelo nome de sua máscara:

A fixação do papel não caracterizava os atores dell’Arte: isso tinha caracterizado e continuava a caracterizar os bufões, para os quais não existia outro nome, senão aquele fictício. O nome duplo representa (como a máscara que os comicos tinham nas mãos) o caráter do ator de profissão, a distância entre a especialização cênica e a sua personalidade fora da cena (TAVIANI; SCHINO, 2007, p.31).56

A relação entre bufões e comicos dell’arte é bem detalhada e tratada por Tavian. Num

caminho longo, ele mostra que, no decorrer da história teatral, muitos bufões se dirigiram à

Commedia dell’Arte e passaram a endossar uma das máscaras deste teatro e até a integrar

companhias.

É muito difícil compreender e acompanhar as conexões dos coros dos Sátiros até a

Idade Média, pois se trata de uma evolução rizomática que se prolifera em dimensões

variadas. Com esforço pode-se vislumbrar um possível percurso destas atitudes lúdicas e

ritualísticas. Molinari é outro estudioso que relata alguns acontecimentos desta natureza de

relações entre Bufão e Commedia dell’Art (MOLINARI, 2007), levando o leitor através de

um caminho evolutivo das vertentes teatrais.

Tessari, Contin e Merisi, também realizam um caminho de relações e conexões entre

Sátiros, Bufões, Zanni, Charivari, Hellequin e (outras) máscaras dell’Arte. Estes

pesquisadores, porém, fazem o leitor percorrer um caminho mais místico, mágico e

ritualístico.

Certamente que todos os caminhos se conectam ao longo de um percurso, seja de

modo direto e de tradição ou subjetivo e rizomático.

Como assinalado anteriormente, se formos buscar os “antepassados” das máscaras do

Zanni (Maccus) e Pantalone (Pappus), as informações dadas por Dario Fo, Sandra Chacra e

56 Tradução da autora: La fissità del ruolo non caratterizzava gli attori dell’Arte: essa piuttosto aveva caratterizzato e continuava a caratterizzare i buffoni, per il quale non esisteva altro nome che quello finto. Il doppio nome rappresenta, cioè, (come la maschera che i comici tengono in mano) il carattere dell’attore di professione, la distanza tra la sua specializzazione scenica e la sua personalità fuori scena.

72

Molinari são de que, considerando o desenvolvimento evolutivo da commedia dell’arte a

partir destas máscaras, elas seriam tão antigas quanto o próprio teatro (e, consequentemente, a

civilização ocidental), pois células de sua composição já se mostravam nas manifestações

artísticas/lúdicas/ritualísticas da Antiguidade, não somente nas máscaras de Maccus e Pappus,

Bucco e Dossennus, mas também em canovacci que continham o embrião do que seriam os

roteiros da commedia dell’arte.

É claro que, de acordo com documentos, a Commedia dell’Arte só teve registro oficial,

segundo Mário da Silva (1978), Cesare Molinari (1985/2007) e Danilo Reato(1988), no

século XVI, “na data simbólica de 1545” conforme diz Molinari - mas as companhias já

existiam muito tempo antes desta formalidade, e as máscaras já viviam nas ruas, praças e

festas populares. A data do registro é extraída de um documento oficializado em cartório, por

atores que se uniram para constituírem um contrato profissional e assim promoverem a

certeza (oficializada) da existência da primeira companhia de commedia dell’arte. Mas tal

documento é válido como modo de certificação oficializada da história, como algo necessário

para a posteridade. Porém, conforme afirma Molinari (1985, p.10) em suas análises

documentais, a commedia dell’arte possui uma grande riqueza documental que não é literária:

A commedia dell’arte é, talvez, um dos episódios melhor documentados da história do teatro ocidental, ao contrário do que acreditavam os antigos historiadores, ligados a um conceito literário do teatro. Para eles, a ausência dos textos escritos tinha, como consequência inevitável, a impossibilidade de ler ou de reinvocar o fenômeno teatral, teatro este, do qual o texto não é mais que um elemento e, frequentemente, nem mesmo o mais importante. Possui imagens: um corpus iconográfico excepcional, rico e extenso cujo valor documental deve ser, naturalmente, interpretado e validado singularmente, mas não é, por isso, menos significativo57.

Realmente, o corpus iconográfico da commedia dell’arte é amplo e muito rico.

Observando quadros, vasos e estampas que retratam carnavais e representações mais antigas

que a documentação escrita, em documentos ou textos literários, principalmente da região de

Vêneto, é possível reconhecer as máscaras que integram o núcleo da commedia (Zanni e

Pantalone) e muitas outras variações e derivações destas.

Para esta pesquisa, levando em conta o caminho percorrido pelos sátiros, pode-se

considerar, com toda a certeza, que os coros satíricos, trágicos e cômicos fortaleceram a festa

57 Tradução da Autora: “La commedia dell’arte è forse uno degli episodi meglio documentati della storia del teatro occidentale, al contrario di quanto credevano i vecchi storici, legati a un concetto letterario del teatro. Per loro l’assenza di testi scritti comportava, come necessaria conseguenza, l’impossibilità di leggere o di rievocare il fenomeno teatrale, di cui invece il testo non è che un elemento, spesso neppure il più importante. Ci sono le immagini: un corpus iconografico eccezionale ricco ed esteso, il cui valore documentario va naturalmente interpretato e valutato singolarmente, ma non è per questo meno significativo”.

73

carnavalesca e se perpetuaram nela – o mesmo coro que na tragédia acompanha, narra e até

compartilha da experiência trágica, também se oferece num banquete carnavalesco em meio a

gargalhadas e orgias. O drama satírico era apresentado logo após a tragédia, continha o caráter

farsesco e fazia a paródia dos heróis trágicos em situações ridículas e risíveis. O drama

satírico se desenvolveu do ditirambo, misturando o religioso e o profano, como comentado

anteriormente sobre a Comédia Antiga (agón e revista). O drama satírico, nos festivais de

teatro da Antiguidade grega, era a quarta parte do conjunto de peças (as outras três eram

tragédias) que um autor apresentava, onde a comédia era parte obrigatória dos festivais, rir da

tragédia através de uma versão cômica era necessário.

Segundo as narrativas de Molinari, ao descrever a evolução dos coros dos sátiros, da

tragédia e da comédia, percebe-se que os princípios carnavalescos ditados por Bakhtin, como

a grande força do popular, também eram fortes componentes do coro dos sátiros. Muitos são

os documentos iconográficos e, até mesmo, considerados oficiais, que mostram os sátiros com

características grotescas, como numa festa carnavalesca, com grandes ancas, ventres, falos ou

como personagens que se apoderavam da caricatura humana, ou seja, um sátiro que tomava o

homem como personagem a ser feito com grande teor caricatural, tudo muito próximo do coro

dos bufões.

É claro que fica mais acessível realizar a conexão entre sátiros, bufões e as máscaras

dell’arte, se considerarmos o universo da tríade de Huizinga como primeiro espaço abstrato

de conexões entre tais realidades lúdicas. A festa e o carnaval (cortejos festivos) são

ambientes que propiciam e fermentam a atividade lúdica. Na festa carnavalesca, um caldeirão

efervescente do Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, o coro satírico com a

força popular se desdobra em mimos, giullares/bufões e máscaras dell’arte.

Entretanto, para realizar estas conexões é preciso considerar, sem sombra de dúvida, a

existência de duas instâncias, sejam elas dinâmicas e “estados” que se instauram: a primeira é

a dinâmica entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo Poético Comum; e a segunda é a

festa carnavalesca, a qual aporta a tríade de Huizinga. Somente considerando estas instâncias,

será possível vislumbrar as conexões rizomáticas entre os sátiros, os bufões e as máscaras da

commedia dell’arte.

A partir da constatação da existência destas duas instâncias, leva-se em conta que a

festa carnavalesca foi o grande “fermento” das máscaras à italiana, pode até mesmo não ter

sido o berço, se forem reputados os rituais religiosos como tal. Embora até nestes rituais,

como vimos, pode-se encontrar a festa carnavalesca, já que não se está falando do carnaval tal

como o conhecemos hoje e, sim, de uma força transformadora, um estado de festa/carnaval.

74

Esta força foi o ninho acolhedor e fértil para a propagação imaginal das manifestações lúdicas

personificadas em máscaras.

Sabe-se que, com o passar dos tempos, as estruturas sociais modificam-se, assim

aconteceu com as representações e rituais da Roma Antiga. Os coros ritualísticos dos cortejos

religiosos também se transformaram, como vimos anteriormente, e pode-se, certamente,

encontrar nos “blocos” carnavalescos de hoje uma possível herança ou resistência da

lembrança dos coros bufonescos antigos. É muito importante que fique claro que o coro

bufonesco tem como ascendente o coro satírico, aquele que pertencia ao drama satírico, que

vinha do ditirambo, onde se uniam o religioso e o profano. As características do coro do

drama satírico são as mesmas do coro de bufões, mas ao invés de sátiros, bufões – seus

descendentes.

Através destas possibilidades de conexões, veem-se mais claramente as ramificações

das máscaras dell’arte, não só como meros fenômenos deste gênero de teatro, mas como

síntese de um imaginário que transborda o palco cênico e inunda muito mais além. Durante

algum tempo:

O estudo da commedia dell’arte foi afirmado como distinto ao da máscara (Tessari 1969), e é verdade, mas, somente em se tratando, especificamente, do fenômeno puramente teatral e, mesmo assim, tendo sempre a certeza que, de certo modo, as máscaras que permeiam o carnaval, as quais têm seus compostamentos contados nos livretos populares, são as mesmas da commedia dell’arte e não [somente] personagens do folclore italiano (MOLINARI,1985, p. 20).58

O que percebo que Molinare está afirmando é que estas máscaras que viviam nos

carnavais não eram um simples folclore, e suas redes conectivas eram coligações muito

antigas, por isso é necessário considerá-las antecedentes ao fenômeno da “commedia

dell’arte” profissional e até mesmo medieval. Como resultante da atividade lúdica de um

imaginário, as máscaras dell’arte não podem ser vistas apenas como personagens do folclore

italiano, pois elas são a síntese de um imaginário, algo muito mais complexo e profundo. A

máscara, como afirma Reato (1988, p. 07), é a:

[...] mistura de verdade e mentira, de sinceridade e ilusão, das origens dificilmente rastreadas, à sua estréia privilegiada exclusivamente ritualística e, mantém na sua procedência histórica, o conceito transgressivo que está na base de qualquer forma

58 Tradução da autora: “Si è sostenuto lo studio della commedia dell’arte va tenuto distinto da quello delle maschere (Tessari 1969), ed è vero, ma solo se si precisa che è del fenomeno puramente teatrale che ci si sta occupando, e sempre tenendo presente che comunque le maschere che girano per le strade di carnevale, e di cui si raccontano le gesta negli opuscoli popolari come quelli citati sono proprio quelle della commedia dell’arte, e non personaggi del folclore italiano”.

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de mascaramento [...] Ligado à máscara, está o travestimento, elemento obrigatório da festa popular, o qual celebra nesta forma de renovação das vestes, como observa Bakhtin, a necessidade do povo de renovar a própria imagem [...]59.

Nestas observações, quando Reato fala da união entre mentira e verdade, ilusão e

sinceridade, ele está reafirmando a função que a imaginação tem de potencializar/valorizar a

realidade - já remarcada por Bachelard. Reato também chama a atenção para o fato de que o

carnaval é um momento de renovação de um povo, uma renovação que se dá através do

travestimento, que também é uma união entre verdade e mentira, realidade/imaginação. É

através da renovação/atualização, que se percebe a necessidade de perpetuação do DNA

imaginal e este encontra, na necessidade de atitude lúdica do ser humano, um campo propício.

Nesta ação de travestir-se, de mascarar-se (dado que a máscara é um travestimento), a

qual Bakhtin aponta como necessidade de um povo de se renovar, é que as máscaras dell’arte

afirmam a sua tradição, uma tradição tão antiga que sempre se renovou e se perpetuou. Nesta

renovação/evolução/perpetuação, após os coros ritualísticos da antiguidade, encontra-se um

herdeiro tão metamorfoseado quanto o coro dos sátiros, o coro de bufões.

É importante reafirmar que a máscara a que se faz referência não se trata somente de

um objeto, mas de todo um corpo, adereços e comportamentos que a mesma suscita, isto é, ela

representa a síntese de uma compreensão de mundo e comportamento, ela aporta outro

universo, quem a veste, deve vestir, também, o seu universo.

Numa visão mais ritualística, a máscara pode ser vista como uma espécie de “portal”

para outra visão de mundo; ela seria o elo que permite a “chegança” do “elemento a mais,

vindo de uma outra esfera da vida corrente”.

Nestes domínios do mascaramento, da imaginação, o bufão é um ser em metamorfose,

em transformação e renovação. Talvez seja por este motivo que haja dificuldade em

vislumbrar o caminho percorrido por esta máscara. Porém, é muito perceptível a “herança”

que ele carrega dos sátiros e do próprio Dionísio, o deus das transformações da terra e do

tempo, da metamorfose, da fertilidade, da vida e da morte. O Bufão traz consigo todos estes

genes através de um DNA imaginal que se manifesta e atua (imaginação) no seu corpo.

A transposição do período anterior ao Medieval para a Idade Média é muito obscura.

Tem-se muito claro o que era a Idade Média, contudo, existem muitos espaços entre estes dois

períodos em que se mantêm uma mestiçagem e uma comunhão. Tanto a Idade Média quanto o 59 Tradução da autora: “[...] mélange di verità e menzogna, di sincerità ed illusione, dalle origini difficilmente rintracciabili, ha al suo esordio prerogative esclusivamente rituali e mantiene nel suo divenire storico quel concetto trasgressivo che sta alla base di ogni forma di mascheramento [...] Accanto alla maschera il travestimento, elemento obbligatorio della festa popolare, celebra in questa forma di rinnovamento dei vestiti, come osserva Bakhtin, il bisogno del popolo di rinnovare la propria immagine [...].

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período anterior a esta são períodos muito extensos do tempo de nossa história e muito férteis

em manifestações dos seus pensamentos e modo de viver a vida. Enquanto que o período

anterior ao Medieval é visto como intensamente ligado ao ritual e ao mito, a Idade Média foi

o período em que o misticismo primitivo foi suprimido e os rituais dedicados aos mitos foram

sendo substituídos pelas festas cristãs. Como dito, não é de interesse deste estudo esboçar um

caminho cronológico, mas sim uma possível segmentação e perpetuação de um imaginário

que transborda.

Nestes espaços abscônditos à caminho da Idade Média, os coros, os coreutas e

corifeus se transformaram e se desdobraram, os mimos, os giullari , os bufões, os menestréis e

ciarlatani se desenvolveram, a história foi evoluindo, as atitudes lúdicas foram pungindo a

realidade, o imaginário se alimentando e o DNA imaginal se perpetuando nas mais variadas

formas de manifestações.

Em combinação com os sátiros, desdobrou-se numa outra especialidade, o mimo.

Segundo Molinari, enquanto o sátiro se travestia parecendo um animal, o mimo se

apresentava sem máscara, porém, os dois se utilizavam de todas as capacidades de seu corpo

para se relacionarem com o público que os cercavam. Mas o sátiro também não portava “uma

máscara”, todo o seu travestimento era a sua máscara, como o bufão. Posteriormente, na Idade

Média, todos os atores que não utilizavam máscaras eram reconhecidos como herdeiros

diretos do mimo e chamados de histrioni/histriões, embora essa fosse uma maneira

generalizada de chamar os atores da época. Nos meios mais populares onde as fronteiras

conceituais não existem, os atores que percorriam as ruas, bares e feiras fazendo suas

representações eram chamados de giullari / bufões, menestréis e trovadores, dependendo das

suas especificidades. E é neste meio efervescente e transbordante da Idade Média que é

possível reconhecer a união do mimo e do sátiro.

Segundo Molinari (2007, p.57), o modo de atuação mais difuso no período Medieval

era o giullare, que se tratava de um ator que tinha em si um complexo de funções e possuía

grande jogo com o público:

[...] o giullare não prepara o espetáculo em lugar pré-estabelecido, mas o oferece [...] Mais ainda, ele entra nas casas, preferencialmente naquelas dos ricos, nas quais, sobretudo, alegra os banquetes, mas simplesmente, também, a vida quotidiana, se torna o scurra [palavra que possui a mesma raiz de scurrile: obsceno, vulgar], o bufão; e até na vida dos burgueses e mesmo dos camponêses, nas ocasiões de celebrações domesticas, como os matrimônios, batismos ou todos os acontecimentos, mesmo os fúnebres.60

60 Tradução da autora:“[...]il giullare non allestisce lo spettacolo in luogo determinato, ma lo offre [...] Di più, egli penetra nelle case, in quelle dei ricchi prevalentemente, di cui soprattutto allieta i banchetti, ma spesso

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Nestas observações de Cesare Molinari sobre o modo como o giullare se apresentava,

é fácil de perceber que esta figura a que ele se refere tem muita similaridade com o bufão,

como ele mesmo esclarece - “ele se tornava o scurra, o bufão” - mais adiante ele fala um

pouco mais sobre o jogo do giullare (giocco del giullare):

E o ator, o giullare é aquele cuja atividade profissional consiste na distorção da forma humana e não somente porque ele se traveste de animal ou mulher, mas porque isso, por si só, comporta a corrupção moral, quer dizer, a hipocrisia e a bajulação, mas, também, porque ele usa o seu corpo, exibindo-o contra as normas naturais e sociais (2007, p.58).61

Nesta segunda observação, ficam mais claras as semelhanças do giullare com o coro

satírico e os bufões e o jogo comum dos três com a zombaria, a obscenidade e o

travestimento. A confusão do que é o giullare = jogral, é que se tem a lembrança daquele

jogral após século X, próximo aos trovadores, cujas características eram a declamação de

poesias, canções e músicas. Tal jogral após séc. X é uma das versões da evolução do giullare

= bufão, entretanto, o bufão é um corpo em metamorfose, é a procriação e a fertilidade, ele se

desdobra em muitas manifestações espetaculares populares, ele é a incorporação dos valores

de Dionísio, em todas as suas possibilidades.

Uma outra citação que diz respeito ao Bufão, mas que traz referências da conexão

deste com o Sátiro e do coro satírico, por ter uma visão do corpo máscara e do jogo com a

zombaria, a festa e o divino, é de Martin (2003, p.27):

[...] os corpos são verdadeiras máscaras, a materialização das forças que portamos em cada um de nós, força das paixões, da violência, dos excessos aos quais somos capazes. Seres cômicos, primitivos, de natureza divina e animal, divertidos e fascinantes, mágicos.62

Nesta observação, Sérge Martin descreve um coro de bufões, mas, sem dúvida,

poderia ser a descrição de um coro de sátiros, pois as semelhanças entre a sua descrição e as

de Molinari em relação ao coro de sátiros são perceptíveis. São estas conexões, as quais

anche semplicemente la vita quotidiana, diventa lo scurra, il buffone; e anche in quelle dei borghesi e addirittura dei contadini, in occasione di celebrazioni domestiche, come matrimoni, i battesimi, o tutti gli avvenimenti comunque fausti.” 61 Tradução da autora: “E l’attore, il giullare é proprio colui la cui attività professionale consiste nello stravolgimento della forma umana, e non solo perché esso si traveste da animale o da donna, ciò che di per sé comporta corruzione morale, cioè ipocrisia e adulazione, ma anche perché egli usa del suo corpo, esibendolo, contro la norma naturale e sociale.” 62 Tradução da autora: “[...] les corps sont de véritable masques de jeu devirent la matérialisation des forces que nous portons tous en chacun de nous, des passions, de la violence, de la démesure dont nous sommes capables. Êtres cosmiques, primitifs, de nature divine et animale, amusants fascinants, magiques.”

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parecem frágeis e de ínfimas proporções que, ao considerar a tríade de Huizinga e a dinâmica

entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum como situações indispensáveis e

inegáveis, tornam-se intensas e com muita força propulsora, como um reservatório/motor de

uma série de atitudes lúdicas que pungem a realidade objetiva, um DNA imaginal que se

perpetua, se repete e se fortalece.

Molinari chama a atenção para uma característica, que não era uma regra geral, mas

era muito comum. Segundo documentos, era mais costumeiro o giullare fazer seu jogo

sozinho, do que em bando, raramente ele o estava. Sendo que os bufões se desdobraram dos

coros satíricos, pode ser estranho considerar que os coros se desfizeram, que “coreutas” e

“corifeus” se afastaram. Mas se pensarmos que tudo evolui, tal como o corifeu foi uma

separação/evolução dos coreutas, a separação de cada integrante do coro de bufões também

foi uma evolução necessária. Pode-se considerar ainda que esta separação não constitua uma

divisão definitiva, isto é, trata-se de uma estratégia de sobrevivência do bufão. Se parar e

analisar a situação do ponto de vista do bufão, chega-se à conclusão de que sua tática foi

muito sagaz (como é de seu costume). Vindo da classe popular e portador da “cultura da

classe popular” (CAMPORESI,1991), o Bufão sobrevivia da sua arte, ou melhor, ele dependia

de alguém que o mantivesse, uma espécie de mecenas particular, de patrocinador e protetor.

Desse modo, é muito mais difícil alguém se responsabilizar por alimentar, dar moradia e ter

cuidados políticos sobre as ações de um grupo que de uma só pessoa. Era muito difícil para

um rei, duque, conde, príncipe ou quem quer que fosse responsabilizar-se por um grupo de

bufões, os gastos e as preocupações seriam multiplicados, então se chega à conclusão de que,

quando o objetivo era “ser adotado”, a melhor estratégia era apresentar-se só. Porém, quando

o objetivo era ganhar força aliada à diversão, os bufões se juntavam e o bando se formava,

fazendo as festas de loucos, os carnavais, os cortejos macabros.

Por mais que o Bufão se apresentasse só, ele não deixava de articular com a zombaria,

a festa, o escárnio, a escatologia, o grotesco, a sexualidade, o religioso e o profano advindo do

drama satírico e todas as forças que envolvem este universo bufonesco. A solidão do Bufão

dentro da corte era o que protegia os nobres e clérigos de sua força carnavalesca e

antropofágica, certamente, uma corte não poderia arcar com um bando deles sem se

corromper e isso causava um certo desconforto e um medo cauteloso de se deixar levar e ser

alvo da força bufonesca. Por este motivo era muito estratégico da parte do Bufão andar só

para ser “adotado”, ele é o mestre da inversão, da corrupção e da loucura libertadora, quando

um bando ganha espaço, a “folie” do carnaval se estabelece, é como a peste que se instaura, é

impossível segurar ou limitar esta ação, por isso, também era muito estratégico da parte dos

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mecenas adotar somente um Bufão.

Onde está o coro de bufões, está a festa instaurada, o carnaval acontece, como visto,

neles não se tem a máscara-objeto, pois ela está em todo o corpo, o imaginário o toma para si

e o transforma/metamorfoseia completamente e intensamente. Desta maneira, o

mascaramento do bufão é muito mais visceral e intenso, pois o corpo todo deve ser totalmente

tomado pelo Fundo Poético Comum e assim também deve ser seu contato com o público.

Segundo Molinari (2007, p.59), os giullari tinham três distintas formas de jogo com o

público:

[...] aqueles que transformam e transfiguram seus corpos com gestos e evidências imorais, desnudando-se ou vestindo máscaras horríveis; aqueles que seguem a corte dos grandes poderosos dizendo a desonra dos ausentes; e aqueles que cantam para celebrar os comportamentos dos príncipes e dos santos.63

A partir daí, é possível perceber porque a história dos bufões está tão ligada à da

igreja. Considerando a sua ligação com os sátiros, é possível compreender a que tem com o

divino, com o ritual. Mas há momentos em que, na sociedade, o único refúgio do divino se

torna a religião, assim, nada mais natural que o bufão se infiltre nas instituições religiosas

para tentar manter seu vínculo com o divino. Molinari afirma que “A história dos giullari e

dos atores em geral é, aliás, por todo o medievo e mais além, a história de suas condenações”

(2007, p.56). 64

No baixo Medievo, a igreja católica conseguiu afastar da população os rituais ditos

“primitivos”, substituindo-os por celebrações católicas que, ao longo dos tempos, apagaram

qualquer lembrança de conexão com estes. Também, foi na Idade Média que a igreja se

estruturou como grande instituição e se fortaleceu como um dos pilares do poder social. Os

bufões e toda a sorte de desdobramentos dos coros dos sátiros mantinham as conexões

inerentes a eles com o religioso primitivo e o profano primitivo, mas, sobretudo, como o

bufão é corrosivo às instituições de poder, pela sátira, pela inversão, pela corrupção, ele

aportava prioritariamente o profano em relação à religião institucional. Foram exatamente

estas características que fizeram com que as instituições eclesiásticas se interessassem e se

empenhassem em dizimar estes artistas.

Todavia, para se manterem informados e tornarem a ação dos Bufões e a reação dos

63 Tradução da autora: “[...] quelli che trasformano e trasfigurano i loro corpi con gesti e salti turpi, denudandosi o vestendo maschere orribili; quelli che seguono le corti dei grandi dicendo cose obbrobriose degli assenti; e quelli infine che cantano per celebrare le gesta dei principi e dei santi.” 64 Tradução da autora: “La storia dei giullari e degli attori in genere è del resto, per tutto il medievo ed oltre, la storia della loro condanna.”

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clérigos conhecidas por toda a instituição eclesiástica e ascortes, fortalecendo a posição

clerical, foram registrados documentos, enviados de uma cidade, região ou país para o outro,

como forma de justificar e proliferar a ação católica de rejeição e dizimação destes artistas.

Dessa maneira, as próprias instituições que os condenaram produziram muitos documentos

sobre a presença de bufões em seu meio. Pode-se fazer uma comparação - muito desigual, é

verdade, mas que permite vislumbrar a preocupação e ação clerical em relação aos bufões -

dizendo que foi uma espécie de “inquisição” dos bufões. Contudo, mais importante que a

presença destes artistas no meio clerical e nobre, tais documentos mostram a força e o

impacto que o jogo bufonesco/grotesco tinha sobre o público. Por tudo isso, é impossível falar

nos bufões e não citar de suas condenações por parte das instituições vigentes na Idade Média.

Se tomar o seu lema de vida “Dormir, comer e deixar o mundo rodar. E isto representa

a honra do bufão” (MOLINARI, 1985, p.111) 65, já se pode ter uma breve ideia do “por que”

que os bufões eram uma ameaça para as instituições religiosas: para eles a vida era saciar seus

desejos vitais, descansar, comer em todos os sentidos, não só o alimento mas também o sexo,

o vinho, o banquete, a orgia. Para os bufões, o mundo corre como num bloco carnavalesco

que festeja a vida – posteriormente, veremos que “comer, dormir e festejar” também faz parte

do “bem viver” dos Zanni, Arlecchino, Pulccinella e outras máscaras da commedia dell’arte.

Agora é necessário dedicar mais atenção ao Bufão, esta máscara tão instigante que desperta

naqueles que o veem a repulsão, a repugna, o medo, a paixão e a compaixão, o bufão é uma

completa contraposição de sentimentos.

Consequentemente, neste seu lema de vida já encontramos muitos quesitos que

contradizem os das instituições religiosas: falta penitência, trabalho, temor a deus, moralidade

e deveres sociais para com as instituições, por outro lado, sobra prazer.

Segundo Sérge Martin, as principais características do bufão são: um “fiel servidor”,

divertido, imprevisível, malicioso, irônico, sábio, conselheiro, revelador e provocador, cujas

palavras e presença tocam a realidade como um “portal” da verdade, revelando toda e

qualquer “falsa intenção” e desvelando a frágil estrutura da sociedade. Como visto

anteriormente, Molinari assinala um estilo de bufão que se instalou nas instituições religiosas,

era aquele que cantava “para celebrar os comportamentos dos príncipes e dos santos”. Porém,

ao que tudo indica, pelos documentos e citações da presença dos bufões dentro da instituição

clerical, ele não mudou seu aspecto, seu corpo-máscara e hábitos e, assim, com suas

características, seria impossível haver a união da igreja católica e da bufonaria, uma das duas

65 Tradução da autora: “Dormire, magnare e lasciar correre il mondo. E questo rappresenta l’onore del buffone.”

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partes teria que sucumbir... Com certeza, não seria o bufão, pois como se sabe “[...] o bufão

nunca cai: ninguém jamais conseguirá culpá-lo ou fazer dele um bode expiatório, pois ele é o

princípio vital e corporal por excelência, um animal que se recusa a pagar pela coletividade

[...]”(PAVIS, 2005, p.35). Nem mesmo a igreja conseguiu exterminar com o Bufão, ela se

tornou, ao longo de sua estruturação, uma instituição de poder baseada no medo, na castração

do prazer e na penitência, porém, ela era conduzida por seres humanos - corruptíveis seres

humanos! Mas, apesar de tudo, a igreja ainda era e é uma forte instituição de poder, então, o

melhor para a sobrevivência de ambos foi o afastamento do Bufão do meio eclesiástico.

Se através da zombaria o bufão revela as “verdadeiras intenções” das convenções e

normas sociais, expondo a fragilidade das mesmas, para aquele que é alvo desta zombaria, o

riso provocador traz consigo a crueldade, pois desnuda o “alvo” e denuncia a verdade oculta.

No caso da igreja, não seria aconselhável para a sua reputação ter um Bufão transitando

livremente em meio aos seus interesses financeiros, vendo os tantos “pecados condenáveis”,

cometidos dentro da própria instituições e declarados como “caça às bruxas”, dízimos, temor

a deus e tantos outros modos de camuflagem dos seus verdadeiros interesses em se “proteger”

e se fortalecer como imagem do poder e de instituição. Os comentários desveladores dos

Bufões seriam “verdade em demasia” para a instituição religiosa.

Um exemplo deste desconforto causado na igreja pela presença de um Bufão é o caso

de Domenico Scandella, conhecido como Menocchio, queimado pelo Santo Ofício em 1601,

na região de Friuli, na Itália. Preciso explicar que estou me referindo a Menocchio como um

Bufão a partir de minha leitura do livro “Il formaggio e i vermo. Il cosmo di un Mugnaio del

‘500”, de Carlo Ginzburg. Ginzburg não nomina Menocchio como Bufão, a única referência a

Bufão que o autor traz está no item “10. Un mugnaio, un pittore, un buffone”. Neste item, o

autor faz referência ao contato que Domenico Scandella teve com o pintor Nicola da Porcia

que, ao que tudo indica, emprestou a Menocchio o livro “Decameron”, do qual este

aproveitou muitos pensamentos e histórias. Segundo Ginzburg, do livro que lhe foi

emprestado, Menocchio se nutriu de temas e assimilou expressões do Bufão Zanpollo,

participante das intrigas do livro, incorporando estas características em seus discursos

(GINZBURG, 1976, p.28). Para esta pesquisadora, ao se apropriar de temas e expressões

bufonescas, Menocchio coloca-se em um posto muito próximo ao do bufão. Tendo uma visão

de toda a sua história, discurso, modo de agir e de como se apropriou das ideias e palavras de

Zampollo, considero que Menocchio pode ter-se servido do jogo bufonesco e, em alguns

momentos, até mesmo, ser visto como um Bufão.

Menocchio foi acusado pela igreja de bruxaria e os populares da região o viam como

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uma espécie de bufão - até hoje ainda é assim, pois, na região de Friuli, quando visitei a

cidade, as pessoas se referiam a ele como visionário e sábio popular.

Menocchio criou e “proliferou” toda uma visão do universo e do homem, sua alma e

sua relação com o divino. Com uma linguagem simplória, ele afirmava que o corpo do

homem é feito de terra, água, ar e fogo e que todos fazem parte de uma mesma instância

divina, a qual se apresenta em todos. Na morte, o homem retorna para sua origem e, após,

vem ao mundo novamente com outra forma66. Tal qual Menocchio, muitos bufões que

viviam, não nas grandes cidades onde, através da subversão e da sagacidade, conseguiam a

proteção de algum nobre, mas nos pequenos povoados onde ficavam à mercê de uma opressão

maior, de uma justiça que era manipulada pelos clérigos, muitos foram condenados e de

muitos deles não se tem notícias, pois tendencialmente eram propagadores de suas ideias

através da oralidade.

É difícil chegar a linhas definitivas do que foi a Idade Média, segundo Margot

Berthold (2001, p.185), o que a torna tão difícil de ser estudada é a sua dinâmica e a sua

exuberância, definindo-a com certa poesia, afirmando que foi um período que:

Dialoga com Deus e o Diabo, apóia seu paraíso sobre quatro singelos pilares e move todo o universo com um simples molinete. Carrega a herança da Antigüidade na bagagem como viático, tem o mimo como companheiro e traz nos pés um rebrilho do ouro bizantino. Provocou e ignorou as proibições da Igreja e atingiu seu esplendor sob os arcos abobadados dessa mesma Igreja. [...] Sua dinâmica desafiou a disciplina das proporções harmoniosas e preferiu a exuberância completa.

Fazer uma moldura do período Medieval implica em um estudo detalhado e longo,

então, na medida em que se adentra o universo bufonesco e das máscaras dell’arte, vai-se

esclarecendo os meandros deste período.

O bufão, apesar de sua condenação, seja por sua aparente loucura, seja pelo esconjuro

religioso, ainda exercia o fascínio nas pessoas. Ele era visto como portador da verdade, já que

tinha a “licença” de falar tudo a todos, sem ser alvo das leis hierárquicas - seu posto de figura

incrédula permitia isto. Com sua aparência metamorfoseada e metamorfoseante, visualmente

moribunda e agonizante, entre vida e morte, o bufão provoca sentimentos de compaixão, pois

o veem como um pobre ser deformado, cujas deformações causam a repugnância. Um ser

inacabado que traz na boca palavras lascivas e provocações amorais, num corpo que

gangrena, mas que pulsa sexualmente. Um corpo deformado, aparentando estar em

66 Este tipo de pensamento em que se vislumbra um espaço onde tudo se encontra e de um retorna sempre à realidade objetiva, porém renovado, se assemelha muito ao conceito do Fundo Comum dos Sonhos e do DNA imaginal.

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putrefação, ou gestação, pênis, seios e ventres inchados, um corpo que vibra sexualmente –

morte e vida, passagens de mundos diversos unidos em metamorfose. Esse é o bufão que

interessa para esta pesquisa, essa é a conexão do DNA imaginal vindouro dos sátiros e da via

dupla dos coros satíricos que se vislumbra.

O poder do discurso do bufão é perceptível, quando um bufão fala é como se o

universo virasse ao avesso, ele herdou a maestria da retórica de sua união com o mimo. Mas a

sua força não estava somente nas palavras, mas também nos afetos que ele comovia com seu

corpo e que acompanhavam, disseminavam-se com estas palavras, como era da tradição do

mimo e do sátiro, um corpo-máscara que se empenha num discurso. Para o Bufão, uma

palavra não é apenas uma palavra, mas é uma comoção de afetos e emanação destes na

atmosfera.

Segundo Molinari (2007, p.59), “[...] a narrativa giullaresca/bufonesca é uma

narrativa com fortes acentuações mímicas, ou melhor, é muito provável que o narrador se

transformasse em “verdadeiro ator” [aspas da autora] a cada vez que o texto proporcionava

isso” 67. Com tal poder de retórica, de teatro e meta-teatro, o bufão coloca o mundo ao avesso

invertendo a ordem estabelecida. Para se lembrar do poder de retórica do bufão, basta se

remeter às tantas peças teatrais que contêm troca de papéis entre bufões e reis. Se o Bufão

percebe que pode tirar proveito da situação, ele subverte a ordem e se coloca na posição do

rei, do duque, enfim, do patrão, daquele que o favorece e, assim, faz promessas de tratar

muito bem seu “empregado”. Taviani e Schino relatam alguns casos desta natureza no livro

“ Il segreto della Commedia dell’Arte”, são acontecimentos que sucederam, não somente com

bufões, mas, em sua maioria, com cômicos dell’arte, fatos que não pertenciam às cenas, mas à

vida real.

A utilização perspicaz da retórica era uma grande habilidade dos bufões, dentro e fora

da cena. O uso da mímica, da ironia, da metáfora e do duplo sentido sempre convém aos

discursos dos bufões, pois, com estas estratégias, ele traz tudo aquilo que é cerebral para o

plano físico, de preferência, para o plano do “baixo ventre”, seu reino por excelência.

Os bufões são agressivos por natureza - e chamo a atenção para o fato de que não se

esta falando de uma agressividade no plano físico de combate, mas sim de uma agressividade

moral, no sentido que eles burlam todas as normas da sociedade – eles não são seres imorais,

mas amorais. Com seus grandes órgãos genitais, com seus intestinos e feridas à mostra,

palavrões e obscenidades que se misturam a discursos filosóficos, existenciais e proféticos,

67 Tradução da autora: “[...] la narrazione giullaresca è una narrazione con forti accentuazioni mimiche, ed è anzi, probabilissimo che il narratore si trasformasse in vero attore ogni qualvolta il testo suggeriva.”

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suscitam uma reflexão sobre as relações humanas e toda a sociedade.

Segundo Balandier (1980), o bufão zomba e ri de tudo: do poder, da guerra, da fome,

da riqueza, da pobreza, da morte, do Diabo, de Deus e do próprio Homem. Com sua

gargalhada, o bufão exorciza tudo o que lhe poderia amedrontar e assim ele sobrevive a uma

sociedade que lhe rejeita, repele e, ao mesmo tempo, se fascina com tamanha liberdade -

“Quem ri do inferno pode rir de tudo” (MINOIS, 2000, p. 249) 68.

Com sua gargalhada estarrecedora, com a sua língua lasciva e sua fome de vida, o

bufão não necessita de autorização ou aprovação, ele é “o provocador supremo”, o qual,

segundo Martin, não permite psicologias e mantém interditada a presença de “psicólogos e

psiquiatras”, ele traz a “impunidade da loucura suprema, da loucura universal, da rainha do

mundo” (MARTIN; PEZIN, 2003) 69. É com a força desta loucura universal que o discurso do

bufão acontece - e chama--se a atenção para o fato de que esta também vai de encontro a este

espaço abstrato que é o Fundo Comum dos Sonhos, pois se trata de um lugar onde tudo

acontece sem hierarquia ou peso.

O bufão é um complexo de dinâmicas entre o Fundo Comum dos Sonhos e o Fundo

Poético Comum, realizadas nas instâncias da tríade jogo-festa-ritual e seu discurso é

impregnado desta loucura universal vociferante e profética, intermediada pela maestria da

retórica herdada do mimo da antiguidade. Este é o bufão que interessa para esta pesquisa, uma

máscara que é a imaginação, que constitui uma grande realização da atitude lúdica. Uma

máscara que contém conexões com o primitivo e o divino, com o que o ser humano tem de

mais elevado e mais grotesco.

No discurso e comportamento do bufão, percebe-se claramente seu estilo de vida

(dormir, comer e deixar o mundo girar) e a filosofia que a festa e o carnaval comportam –

filosofia tão ressaltada por Rabelais como a grande força popular, uma força transformadora e

renovadora, que permite a sobrevivência deste “popular”.

O bufão festeja a vida no sentido mais ritualístico da festa, apesar das feridas,

deformações e “deficiências”, ele apresenta ao público o seu corpo dilacerado, aberto e

exposto para mostrar-se ao ser humano, servindo-lhe de imagem e semelhança, tal como

Dionísio. Um corpo metamorfoseado e prazenteiro que emana e exala (-se em) festa. A sua

presença invoca uma percepção da dualidade do mundo e da vida humana (vida e morte), ele

traz nas suas entranhas e entranças o “princípio da vida material e corporal”, pode-se

considerar até que o bufão foi o grande “gladiador” da força popular. Nele e através dele, a

68 Tradução de Christine Nicole Zonzon: “Qui rit de l’enfer peut rire de tout.” 69 Tradução de Christine Nicole Zonzon .

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festa se fazia presente, emanava-se e exalava-se, provocando sensação similar, também,

naqueles que o assistiam e se permitiam tal comoção.

O corpo do bufão é corpo travestido e mascarado, no sentido mais ritualístico do

mascaramento, ele é, na verdade, um corpo metamorfoseado pelo Fundo Poético Comum -

um caminho transcorrido pelo Fundo Comum dos Sonhos para se concretizar em corpo e

perpetuar-se em imagem e energia. É natural que um ser com tamanha conexão com este

espaço abstrato da ação do imaginário, do mundo dos ideais e dos fins superiores da

existência humana, porte para aqueles que o veem algumas ínfimas partículas deste outro

universo. Sendo o bufão tão próximo deste mundo ancestral e em profunda dinâmica com

elementos arcaicos da alma, com seu corpo esfacelado e prazenteiro, ele comove a todos com

uma ancestralidade festiva, seu elo ritualístico.

É preciso dizer que, para o ator que se fizer bufão, a tríade de Huizinga “jogo-festa-

ritual” é condição primordial, tanto quanto a imaginação. Os bufões instauram a festa,

invocam o ritual e jogam com a realidade. Através de sua força, liberam outra consciência – é

a força popular rabelaisiana. Como filosofia, o carnaval e o riso vêm ajudar a decifrar a

realidade e o bufão como instaurador do carnaval e provocador do riso é, na verdade, o grande

sábio da realidade. Com toda sua lascívia, liberdade e festa, o bufão incita todos a lhe

seguirem no seu “bloco carnavalesco”.

O bufão é um complexo de ações internas e externas, grande expoente da força

popular, o qual desenvolveu e fortificou a força cômica e do riso, que “[...] passou a ser a

característica essencial [do popular] [...] que evoluiu fora da esfera oficial, [...] e se distinguiu

pelo seu radicalismo e liberdade excepcionais e pela sua implacável lucidez” (MINOIS, 2000,

p.136)70. Este ser age com maestria também com o riso – uma manifestação que por si só já é

complexa – que é apenas uma das “armas” que o bufão utiliza para vociferar ao mundo, sua

gargalhada de gozo, prazer e loucura ataca e fere aqueles que se põem como seu inimigo ou

opressor.

O riso é uma ação física a qual provoca uma sensação sensível que atravessa a esfera

daquele momento em que acontece, ele também realiza conexões com outras dimensões

abstratas. Tantas são as culturas em que o riso faz parte de rituais de transição, sejam festivos,

fúnebres ou de passagens etárias.

Por tudo isso, na figura do bufão, encontramos uma gama de conexões com estas

70 Tradução de Christine Nicole Zonzon: “[...] et devenu la caractéristique essentielle de la culture populaire, qui a évolué dehors de la sphère officielle [...]e s’est distinguée par son radicalisme et sa liberté exceptionnels, par son impitoyable lucidité’.”

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esferas das instâncias superiores da existência humana, que não se pode contestar

radicalmente àqueles que o associam a um Trickster – uma espécie de xamã ou feiticeiro –

pois, de algum modo, ele pode ser reconhecido nesta linhagem de espécies de magos, já que

fazem estas conexões entre universos diferentes e mais uma vez se constata a sua conexão

com o ritual e o divino...71.

Foram por todas estas conexões que o bufão instigou esta pesquisa em sua direção,

impulsionada por um corpo/máscara que transborda e exala-se em jogo-festa-ritual, este

estudo escorregou pelas entranhas/entranças bufonescas e viu-se o quanto era importante para

o caminho prático desta pesquisa, o trabalho com a máscara do bufão.

A partir de tal constatação, começaram os engenhos/engendros em direção à

estruturação de uma técnica para se chegar a um corpo prazenteiro que exala (-se em) festa.

Um corpo que comporta uma ancestralidade festiva e os princípios vital e corporal do

carnaval.

A procura prática para descobrir quais seriam os passos para criar um sistema de

imaginação e “deixar-se habitar” por um bufão foi a questão norteadora deste primeiro

exercício da atitude lúdica que envolve esta pesquisa. Porque, dentro da minha compreensão e

diante da minha necessidade da experiência sensível como princípio ativador da estruturação

do processo criativo, tanto no campo teórico (literal), como na ação para a construção da cena,

percebia a necessidade de um corpo prazenteiro para as máscaras dell’arte. Muitos

espetáculos de commedia dell’arte que assisti, eram corpos que usavam máscaras, mas não

eram corpos travestidos/incorporados pela máscara/mito, e, na minha imaginação, as máscaras

dell’arte necessitavam/necessitam deste lado mítico. Porém, as escolas de commedia dell’arte

não passavam esta “técnica” ritualística, porque, na verdade, o mito se instaura através do rito,

não da técnica. Para o mito se instaurar, ele precisa do rito e da crença, entretanto, a minha

crença cênica necessitava de uma experiência sensível e, como não encontrei isso nas escolas

de commedia dell’arte, fui buscar nas vertentes ritualísticas de minha cultura/convivência. Foi

nas manifestações espetaculares populares que encontrei este corpo prazenteiro, foi na

ritualidade brasileira que encontrei a ancestralidade festiva, e necessitava entender, na

musculatura, como levar isso para as máscaras dell'arte. O bufão era a resposta, sabendo que

ele é um trickster e que tinha conexões diretas com as máscaras dell’arte e vendo os Exús e 71 Aqui, sente-se a necessidade de colocar algumas questões que não serão respondidas nesta tese, pois se trata de outro desdobramento, mas que serve para alimentar especulações e outras possíveis conexões: Quanto à ligação com o ritual, o divino, a ancestralidade festiva, não seria esta, também, a função do “ator santo”? Emanar-se em jogo-festa-ritual até alcançar o público, porém, com muito mais ritual que festa? Não seria esta a grande questão do “teatro peste”? Provocar no público a febre festiva do transe carnavalesco?

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Pombogiras como tricksters72, precisava, para alcançar o que queria nas máscaras dell’arte,

passar pelo caminho das pedrinhas miudinhas traçadas pelo bufão. A partir desta constatação

e da consciência de que nas escolas de commedia dell’arte, estas características não eram

trabalhadas, pois é um caminho individual de cada ator, cheguei à conclusão de que eu

deveria acessar as máscaras dell’arte, já com esta carga, pois elas herdam isso do uomo

selvático, dos rituais de fertilidade, dos cortejos macábros, dos Sabba, conforme afirma

Contin (1999) quando fala destas características dentro das máscaras dell’arte. Assim, fez-se

necessário percorrer tal caminho, deixar-se habitar pelo Bufão, para portar sua “aura”

ritualística, xamânica, telúrica e de trickster às máscaras dell’arte. A partir desta constatação,

o transcurso para a técnica do Bufão foi sendo construído, ou melhor, foi sendo descoberto e

deixando-se descobrir.

72 Monique Augras é doutora em psicologia pela Sourbone e professora da PUC-Rio. Autora do livro “Imaginário da Magia. Magia do Imaginário” (2009), cujo tema interessa a esta pesquisa, nas páginas 45 e 46 chega a conclusiva de que os Exus e Pombogiras, entre os Orixás ou Entidades, assumem, claramente, os papéis de Tricksters. O Trickster é marginal, possui característias xamânicas, divinas, mas também, festivas, brincalhonas, enganativas e vingativas. No seu estudo sobre o bufão, Sergè Martin (2003) chega à constatação de que Bufões e Tricksters são sinônimos, adicionando nesta mesma categoria o Xamã.

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3. ATITUDES LÚDICAS

“A imaginação constitui um reino autônomo, irredutível a outros modos de conhecimento. Mais ainda: Ao abrir a via imaginal de percepção do mundo e de nós mesmos, o reino das imagens nos cria.”

Monique Augras (2009, p. 218)

Após ter realizado o caminho teórico, apresentado as razões pelas quais se considera o

Bufão, não como um personagem, mas como máscara (no seu sentido ritualístico e de

possessão), e porque este se apresenta como parte importantíssima desta tese (pela sua relação

com o ritual dionisíaco e com a commedia dell’arte, que será visto posteriormente) inicia-se o

relato da experiência vivificada em relação à “possessão” do ator pelo Bufão – fazendo

alegoria ao grande teor ritualístico e místico desta Máscara.

Posteriormente, adentrar-se-á nos labirintos traçados pelo Bufão até chegar à

commedia dell’arte, pois tal percurso faz parte do caminho realizado. Porém, primeiro

daremos conta dos encaminhamentos realizados para a construção de um processo de

descoberta, fixação e desenvolvimento do Bufão.

3. 1. O BUFÃO: CORPO-MÁSCARA – UMA DESCOBERTA

“A partir do movimento de um bufão o mundo fica ao inverso. A partir de sua fala, começa uma grande reflexão. Desde que ele vive, clama pelo riso ou pelo silêncio. Um bufão come, dorme, respira, simplesmente pulsa, denuncia, transgride, solta flatos flamejantes, rápidos e certeiros. [...] Seus corpos deformados, estufados de conhecimentos instintivos nos impõem a lucidez. Talvez a revelação de um mundo sem deus nem diabo.”

Serge Martin (2003, p. 27)

Sobre a máscara do bufão, num primeiro momento, devo dizer que esta me seduziu,

pois o Bufão não estabelecia nenhum diálogo sensível comigo, isto é, não me atraía como

linguagem, como Máscara ou como poética. Ao longo do tempo em que fui tendo contato

com esta máscara: através do estudo e da prática de outra máscara, a do clown, o Bufão

começou a trabalhar em mim, movendo meus afetos e instigando-me, cada vez mais, a andar

em sua direção e, neste trânsito, me mostrou o caminho para as Máscaras dell’Arte.

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O bufão agiu em mim da mesma maneira como age naquele espectador que arrisca um

olhar sobre ele, com toda a maestria, fascínio e malícia, revelando sua liberdade, amoralidade

e gama de conexões.

As imagens que se formavam em meus pensamentos, devaneios a partir das leituras

sobre o bufão, o grotesco, o carnaval e todo o complexo cognitivo e conectivo que

compreende o universo bufonesco me comoveram a uma tentativa de descoberta de acesso a

esta máscara.

O imaginário que se constituiu em conexões me incitava a ir de encontro a esta

máscara capaz de suscitar percepções tão dialéticas. Primeiro, vieram as tentativas de

“abocanhar” as imagens, simplesmente pegá-las e colocá-las no meu corpo, uma experiência

que resultou num bufão vazio, ou melhor, não era um bufão, era um corpo carregado de

acessórios, sem força e pleno de pudores – verdadeiramente, não se tratava de um bufão.

A partir das minhas dificuldades, comecei a construir minhas incertezas acerca de uma

técnica e possível acesso ao bufão. De acordo com minhas primeiras tentativas fracassadas,

tinha a certeza de que não conseguiria acessar esta máscara através de um corpo com

enchimentos e falas plenas de palavrões gritados ao vento. Precisava de um impulso interno,

de uma vivência mais marcante e não apenas de uma proposta estética vazia. Necessitava de

uma experiência física, as imagens que se formavam em minha mente deveriam se tornar

imaginação, agindo em meu corpo. E, para tanto, primeiro, eu teria que “habitar” tais

imagens, sentir-me totalmente integrada a elas e depois fazer com que viessem a “habitar”

meu corpo, transformando-o, travestindo-o e metamorfoseando-o, deveria tomar posse e

deixar-me apossar destas imagens.

Com base nestas constatações, a busca pela Máscara do Bufão teve início e uma

prática foi sendo encaminhada. Num primeiro momento, este percurso prático ou

“treinamento” fez parte de uma busca solitária, todo o processo foi experimentado em mim,

em dias e dias de prática individual e isolada e, apesar de ter sido um trabalho difícil, permitiu

uma observação detalhada de mim mesma, fazendo-me compreender que a percepção física é

uma necessidade para meu processo criativo. É como se as energias colocadas em movimento

através dos sistemas muscular, respiratório e nervoso, auxiliassem meu cérebro a processar o

material teórico absorvido através das leituras, como também, a seguir um caminho intuitivo e

sensível.

A imaginação fazia-me devanear e o Fundo Poético Comum fazia a conexão entre

corpo e Fundo Comum dos Sonhos. Esse caminho percorrido solitariamente possibilitou a

90

compreensão das vias sensíveis que poderiam ser utilizadas com maior eficácia num trabalho

posterior, com outros atores.

Neste processo de descoberta da máscara do bufão, o impulso para a transformação e

metamorfose do corpo se dá através da dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e

o Fundo Poético Comum, da mesma forma circular, espiralada e ramificada mencionada

anteriormente. É preciso dizer que tal dinâmica, num processo de descoberta do bufão, é

muito intensa, pois somos um conjunto de “coisas” (órgãos e fluídos), as quais também fazem

parte deste Fundo Poético Comum.

Partindo da dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum, para

construir o corpo imaginativo do ator e sabendo que o Bufão também faz uso do

travestimento, utiliza-se, como apoio para este se tornar o corpo do pesquisator, um método

de Jacques Lecoq (1997, p.55), o:

Méthode des transferts, que consiste em se apoiar nas dinâmicas da natureza, nos gestos de ações dos animais, da matéria, para atingir uma finalidade expressiva, a fim de jogar melhor com a natureza humana. O objetivo é tocar um nível de transposição teatral, fora do jogo realista1.

Para Lecoq, o Méthode des transferts possui duas possibilidades de encaminhamentos:

a primeira é através de um caminho direcionado a uma “humanização das coisas”, isto é,

humanizar animais, objetos, árvores, água, enfim, tudo que for da natureza, o ator deve chegar

ao ponto de descobrir na dinâmica do fogo, a voz que vem dele, os sons e as palavras; a

segunda, ao contrário, é deixar “entrar as coisas” no corpo, seja de natureza animal (chifres,

patas, peles, etc), vegetal (galhos, folhas, etc), objetos (cadeiras, panelas...) ou formas

abstratas (enchimentos). A primeira opção parece a descoberta dos elementos e da natureza,

bem como suas dinâmicas, no corpo do pesquisator. Enquanto que a segunda opção é a

integração de “acessórios” (chifres, patas, peles, galhos, folhas, cadeiras, panelas, etc e

enchimentos) ao corpo. Entretanto, para esta pesquisa, a associação ao corpo de seios, falos,

orelhas de burro, asas, barrigas, corcundas e outras deformidades, é realizada de maneira

sensível, na verdade, são acessórios que vêm sublinhar as deformidades realizadas pelo Fundo

Poético Comum, extrapolando a realidade. Tais disformias não são simples materiais e

enchimentos acrescentados ao corpo, são exageros das deformidades já transformadas pela

dinâmica Fundo Comum dos Sonhos/Fundo Poético Comum que, em um processo de

1Tradução da autora: Méthode des transferts, qui consiste à prendre appui sur les dynamiques de la nature, des gestes d’action, des animaux, des matières, pour s’en servir à des fins expressives afin de mieux jouer la nature humaine. L’objective est d’atteindre un niveau de transposition théâtrale, hors du jeu realiste.

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transformação/metamorfose do corpo, todo o material adicionado ao corpo real torna-se parte

do corpo imaginativo do pesquisator.

Os dois encaminhamentos do Méthode des transferts são eficientes para a criação de

figuras fantásticas, alegóricas e carnavalescas - categoria na qual a máscara do bufão, no

aspecto visual, pode ser identificada.

Para Lecoq, este impulso vindouro da transferência das “coisas” para o corpo traz

consigo uma “emoção dinâmica” e esta, por sua vez, promove percepções sensíveis, as quais

possibilitam a transformação do corpo do pesquisator de um modo não racional. Lecoq (1997,

p.57) chama toda esta dinamização de impressões sensoriais de “emoções dinâmicas” e

explica:

Mas existem coisas que não se movem e, no entanto, podemos, da mesma forma, reconhecer suas dinâmicas. São as cores, as palavras, as arquiteturas. Nós não podemos ver a forma ou movimento de uma cor, mas a emoção que nos causa pode nos colocar em movimento, em movimentação, em comoção [...]. A demanda mimodinâmica coloca em jogo os ritmos, os espaços e as forças dos objetos imóveis [...]. Mais que uma tradução, é uma emoção. O termo emoção etimologicamente significa “colocar em movimento” 2.

Com certeza, o sentido de emoção sublinhado por Lecoq é o mesmo levado em conta

para o trabalho desenvolvido nesta pesquisa, não se tratando de sentimentalismo ou

psicologismo e sim de afetos que movem um corpo, deixando claro que a emoção é da

atmosfera do sensível, chegando a agir de modo subjetivo.

Todo este trabalho de comoção de afetos e transformação do corpo permite a

constituição de alguns circuitos de sistemas de sensações, os quais imprimem seus traços

característicos no próprio corpo transformado. Estes circuitos que se formam na (e com) a

musculatura criam uma espécie de musculatura afetiva, a qual, segundo Artaud, é a

correspondência física dos sentimentos3, carregando nas suas fibras os afetos e comoções que

as transformaram. No caso desta pesquisa, a possibilidade da imagem de formação de

circuitos traz a possibilidade de trabalhar com “correntes de energia”, com ponto de produção,

sustentação e distribuição de energia pelo corpo. Também, uma corrente de energia pode ter

seu percurso modificado - fator importante para a transformação e a composição física do

2 Tradução da autora : Mais il existe des choses qui ne bougent pas e dont nous pouvons cependent reconnâitre également les dynamiques. Ce sont des couleurs, les mots, les architectures. Nous ne pouvons voir ni la forme, ni le mouvement d’une couleur, cependent l’emotion qu’elle nous procure peut nous mettre en mouvement, en mouvance, voire en émouvance! [...] La démarche mimodynamique met em jeu les rythmes, les espaces et les forces des objets immobiles. [...] Plus que une traduction, c’est une émotion. Le terme émotion signifie étymologiquement: “mettre em mouvement. 3 Para saber mais sobre musculatura afetiva, ler: O teatro e seu duplo, de Antonin Artaud.

92

corpo do bufão e, posteriormente, para a modificação de células de Manifestações

Espetaculares Populares Brasileiras em máscara física da commedia dell’arte.

Por haver esta possibilidade de deslocamento de pontos de tensão, o princípio de

formação de circuitos também se tornou um dos pressupostos desta pesquisa. Tal processo

auxilia o corpo a encontrar as conexões físicas e energéticas entre as diversas imagens/ações

que se utiliza, sobrepondo circuitos e deslocando alguns pontos específicos, para que seja

realizada a transformação do corpo do pesquisator, mantendo, circulando e misturando a

energia descoberta em cada circuito. A técnica criada para a descoberta da Máscara do Bufão

utiliza a formação e sobreposição de circuitos, para, posteriormente, através das

transformações dos mesmos, o corpo do pesquisator vá se metamorfoseando no corpo-

máscara do Bufão.

Mas como é a descoberta do corpo do bufão? Como é realizada a construção de

circuitos e como fazer a sobreposições dos mesmos? A descrição a seguir é um relato do

encaminhamento e da técnica construída, não se trata de um diário da prática realizada ou de

ensaios datados, mas sim dos encaminhamentos e avanços em direção à estruturação da

técnica.

Antes de realizar o relato da técnica, é necessário fazer uma observação sobre as

expressões xamã e xamânico, as quais utilizo para fazer referências ao Bufão. Já foram

realizadas reflexões e comentários sobre a ligação do Bufão com o ritual, com a máscara e

com Dionísio e como, através destas conexões, acontece a transferência de características

entre eles. É importante explicar que não se está fazendo alusão ao xamanismo como religião,

as expressões xamã e xamânico são utilizadas para sublinhar a ligação com os fenômenos e

formas da natureza de maneira mítica e mística. Para esta pesquisa, o xamânico é referenciado

como manifestações, ritos e práticas ligadas à natureza e ao plano espiritual, sobrenatural,

energético e místico; e o xamã é o intermediário entre a realidade objetiva e toda esta

dimensão abstrata4. Tomando esta compreensão do xamânico e do xamã, é possível ver os

rituais dionisíacos - com o transe, os travestimentos em animais, as festas rituais relacionadas

às transformações da terra e do tempo - como rituais xamânicos, onde, através destas

conexões, o bufão se torna um Trickster5, um Exu e aquele que o incorpora, como um Xamã

4 Para saber mais sobre a conexão dos xamãs com a natureza e realidades, ler: Passes Mágicos. A sabedoria dos xamãs do antigo México, de Carlos Castañeda. ; A travessia das Feiticeiras. A jornada iniciática de uma mulher, de Taisha Abelar; Manual de Antropologia Cultural, de Angel-B Barrio. 5 Estudos específicos sobre Trickster (xamãs das aldeias indígenas da América do Norte e da África) e outros Xamãs (em Serge Martin e George Balandier com os Pajés, indígenas das aldeias da América do Sul) e a conexão destes com o Bufão, podem ser encontrados nas obras de Serge Martin em Le Fou Roi des théâtres

93

ou um Pajé. São muitos os estudos sobre o Bufão, nos quais este é referenciado como

demônio, xamã/feiticeiro e/ou trickster6. Como esta tese, de modo subjetivo, tem referências

sensíveis e compreensíveis nas manifestações espetaculares populares brasileiras, para

mergulhar mais profundamente no universo de Dionísio, nas ligações e “personificação” deste

mito na “representação” dos sátiros no ditirambo e nos coros da tragédia, comédia, sátira e,

por fim, nos bufões, esta pesquisatriz buscou, ou melhor, foi levada pelas águas subterrâneas

de Exu - um orixá tão múltiplo e polissêmico quanto o próprio deus Dionísio.

O mergulho desta pesquisatriz nas leituras do universo dionisíaco e a convivência com

os rituais de Candomblé7 e Umbanda8 fez com que os mitos de Dionísio e Exu se

conectassem. Todos estes dados tiveram, ainda, como adicional a este impulso conectivo

imagético, a prática sensível da técnica do Bufão - o que, pelos encaminhamentos escolhidos,

geravam uma conectividade entre os universos de Dionísio, do Bufão e do Exu muito

dinâmica.

Na crença do Candomblé e da Umbanda, o mito do Orixá se faz presente pela

incorporação e o “filho de santo” que o incorpora se torna, naquele momento ritualístico,

parte integrante desta divindade, mas também a própria divindade. Uma relação muito (2003), Georges Balandier em Le pouvoir sur scènes (2006) e de William Willeford em Il Fool e il suo scettro. Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni e dei giullari (2005). 6 Alguns destes estudos específicos ou com temas relacionados: Le Fou Roi des théâtre, de Serge Martin ; Le pouvoir sur scènes de George Balandier ; Il Fool e il suo scettro. Viaggio nel mondo dei clown, dei buffoni e dei giullari, de William Willeford; Il formaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del’500, de Carlo Ginzburg; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti; Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesche, de Claudia Contin e Ferruccio Merisi; Rustici e buffoni. Cultura popolare e cultura d’élite fra Medioevo ed età moderna, de Piero Camporesi; La maschera di Bertoldo. Le metamorfosi dell villano mostruoso e sapiente. Aspetti e forme del Carnevale ai tempi di Giulio Cesare Croce. La performance dei Mamuthones: tra rito e teatro. Ricerche e documentazione su una delle più misteriosa tradizione sarde, de Paola Pala; L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo de Daniele Vianello; Il Mondo Secondo Fo. Conversazione con Giuseppina Manin,de Dario Fo; Il MonDologo di Arlecchino. Spetaccolo comico grotesco per anime perse. Materiali e Riti per la preparazione e l’uso delle Maschere. Storie tra Commedia dell’Arte e Maschere dell mondo de Claudia Contin; La danza e l’estasi: il corpo sciamanico, de Eugenia Casini Ropa; I nomi del mondo. Santi demoni, folletti e le parole perdute, de Gian Luigi Beccaria. 7 O Candomblé, segundo o pesquisador Dr. José Carlos Pereira, é uma religião afro-brasileira que cultua deuses/orixás, os quais possuem sentimentos humanos (raiva, ciúme, vaidade, orgulho...) [características também dos deuses gregos e romanos] e tem seu ritual embalado por tambores (atabaques) e canções em língua africana (nagô, ioruba). O candomblé chegou ao Brasil junto com os escravos africanos e sofreu muita represália dos colonizadores portugueses, que os impediam de praticar sua crença, o que os forçou a desenvolver uma associação entre os santos católicos e os orixás – e foi desse movimento que surgiu o sincretismo religioso brasileiro. 8 A Umbanda, segundo o Dr. José Carlos Pereira, é uma crença brasileira nascida no Rio de Janeiro em 1920, resultado da mistura entre os rituais africanos e o espiritismo europeu. Para esta crença, o universo é povoado por entidades espirituais, as quais se comunicam com os homens através dos médiuns: “iniciados” no ritual umbandista, que incorporam estas entidades. Na umbanda de Candomblé, as entidades seguem três linhas: Preto Velho; Caboclo e Exu/Pombajira e a realização dos rituais destas entidades é semanal, já o “batuque”, festa aos orixás africanos, no qual o ritual segue os encaminhamentos do candomblé, são mais esporádicos e, na Umbanda espírita, o Caboclo é a entidade que coordena e impera nos rituais.

94

próxima da incorporação do mito nos rituais de Dionísio. Nestes, o mito de Dionísio era

incorporado pelos Sátiros que se tornavam representantes do mito, mas também parte dele,

incorporados por ele.

Dionísio, através desse modo integrativo/interativo/geminativo entre deus e ser

humano, estabelece uma comunicação, ele não é apenas um mensageiro, é o próprio elo

comunicativo destes universos. Segundo a pesquisadora de História e Antiguidade, Maria

Christina de Caldas Freire Rocha (UFRJ e UGF), Dionísio sempre fora um Deus estranho ao

mundo dos deuses olímpicos tradicionais, ele fazia parte dos deuses populares, do campo, da

agricultura e seu culto era praticado fora da cidade, somente mais tarde fora incorporado aos

ritos praticados em Atenas9.

Nos rituais a Dionísio, através da ingestão do vinho, os adeptos chegavam ao estado de

entusiasmo e êxtase e, neste estado, entravam em comunhão com o deus e, consequentemente,

também com sua imortalidade. Segundo Brandão, o homo dionysiacus (integrado em Dioniso)

acreditava, através do processo de ékstasis/êxtase, “sair de si”, o que significa uma superação

da condição humana e implica num mergulho em Dionísio e este no seu adorador: “O homem

simples mortal, [...] “ánthropos”, em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade

[...]” (BRANDÃO, 2007, p. 11).

É nesta comunhão de imortalidade/mortalidade que está a principal comunicação

estabelecida por Dionísio entre os seres humanos e os deuses. Trata-se de uma comunicação

entre a esfera do mortal com a esfera do divino, do imortal.

Conforme assinala o antropólogo Jean-Marie Gibbal, Dionísio, deus da videira, do

êxtase, da embriaguês, da alegria e da comunhão fusional, permitia a

aproximação/comunicação entre deuses e homens e um conhecimento do divino pela

participação. Essa fusão e conhecimento/comunicação aconteciam porque, durante o transe

“báquico” (êxtase e entusiasmo), o possuído se identifica com a personalidade mítica do deus

(GIBBAL apud FÉLIX; GOETTEMS, 1989). Mas, acredita-se que o movimento contrário

também acontece; não sei se seria um conhecimento pela participação, mas sim, um prazer na

ação, pois tanto Gibbal quanto Torrano, Brandão e Rocha sublinham a preferência de Dionísio

pelos prazeres mortais: a festa, o sexo, a comida e o carnaval.

Segundo Jaa Torrano, estudioso da Língua e Literatura Grega (USP) Dionísio sempre

esteve situado nesta zona de “transmutação da forma sensível”, faz parte de sua natureza, pois

se trata de um deus que nasceu duas vezes e teve sua gestação, tanto no ventre da mãe mortal

9 Para saber mais, ler: O Discurso Político no Édipo-Rei de Sófocles, de Maria Christina de Caldas Rocha In Cultura Grega Clássica.

95

[Sêmele: (segundo nascimento)] como na coxa de seu pai imortal (Zeus). Para o autor, nos

rituais dionisíacos, a imagem sensível da dança “báquica” é a forma fundante e fundada do

deus como unidade do ser divino e do ser humano (TORRANO apud FÉLIX; GOETTEMS,

1989).

Segundo Lígia Militz da Costa e Maria Luiza Ritzel Remédios, Dionísio, nos seus

rituais, é deus, como objeto de sacrifício é homem, sujeito do sacrifício (1988) e, neste ato de

comunhão e comunicação entre deuses e mortais possibilitado por ele, está também o

princípio do carnaval. No ritual dionisíaco, “[...] o homem se sente como deus ao rejeitar

qualquer barreira e inverter os valores tradicionais” (PAVIS, 2005, p.22).

É certo que entre os Orixás, não é somente Exu que possui este tipo de comunicação

com o ser humano fazendo com que este participe da esfera do divino (e vice-versa), porém, é

Exu quem incorpora os prazeres tão caros a Dionísio.

Tanto quanto Dionísio é o deus da ritualidade festiva e do transe, Exu é o Orixá

inebrioso da festa. Dionísio e Exu são vinho e cachaça em ritualidades festivas. Evoé10 e

Laroiê11, saudações de evocações poderosas dentro das mitologias das quais fazem parte,

deuses/orixás da fertilidade e da procriação, ambos possuem o falo como ícone de seu poder e

personificação. Deuses/orixás/divindades próximas, semelhantes aos homens, em alguns de

seus rituais pedem o sacrifício animal, na maioria das vezes, de um bode, figura na qual

ambos possuem muitas representações no imaginário popular que punge a realidade. Tanto

quanto Dionísio, Exu é o “deus” da ambiguidade, ele pode ser vingativo, apaziguador,

sedutor, sensual, sexual, festivo e guerreiro, sombrio e solar, extremamente sério, mas

também brincalhão, irônico e mentiroso.

Como Orixá festivo, pode-se, sem adentrar profundamente às questões das conexões

entre Dionísio e Exu, o que mereceria um estudo à parte, perceber que o Exu possui, até

mesmo por extensão da festa, relações estreitas com o carnaval e, através dos domínios

carnavalescos, uma conectividade ativa e dinâmica com a inversão da ordem e do poder. Isto

o colocaria em conexão direta com o Bufão, tanto quanto com Dionísio, e esta conexão corre

pelos lençóis subterrâneos que interessam à presente pesquisa.

Nos ritos iniciais das festas de Candomblé, na ordem das oferendas, Exu é o primeiro.

Como também, na ordem dos cantos de saudação aos orixás, a música do Exu é a primeira a

ser tocada. Nos rituais festivos dos outros orixás, no candomblé Nagô, o Exu dificilmente

participa, ou melhor, é incorporado. Porém, no terreiro, ele tem a sua representação, o seu

10 Saudação a Baco – deus da mitologia Romana, correspondente a Dionísio na mitologia grega. 11 Saudação ao Orixá Exu.

96

“altar” e todos os filhos de Santo devem saudar o tambor e fazer reverência a ele, isto porque

Exu é o orixá responsável pela comunicação entre os deuses e os homens, tal qual Dionísio,

na mitologia grega. Exu é o “deus” que abre e fecha os caminhos do homem e as ruas,

encruzilhadas e cemitérios fazem parte de seus domínios12. Como dito anteriormente, as

relações entre Dionísio, Sátiro e Exu Orixá e Exu dos terreiros é muito semelhante. Os Sátiros

que faziam parte do ditirambo eram os “herdeiros” diretos e, ao mesmo tempo, representantes

de Dionísio, eram seres travestidos com o mito. Assim, os Exus que “descem” nos terreiros

são os representantes de Exu, seres travestidos com o orixá/mito; por conseguinte, tanto os

sátiros do ditirambo quanto os Exus dos terreiros possuem a conexão intensa com a tríade de

Huizinga jogo-festa-ritual e muitos ainda trazem elementos imagéticos (quando representados

em imagens desenhadas ou em esculturas) em imaginação do mundo animal, carnavalesco e

festivo.

É importante dizer que não se trata de uma correspondência entre Dionísio e Exu. O

que aconteceu é que, para compreender melhor o mundo de Dionísio (representações,

incorporações, mito e as heranças em um DNA imaginal), adentrei em uma experiência mais

próxima da minha vivência - um ritual vivaz que continua a se desenvolver. Certamente que o

universo do Candomblé e do Exu são estudos à parte e as considerações levantadas aqui são

bastante resumidas, embora isso não queira dizer que sejam superficiais. Aqui estão expostas

apenas as conexões mais rápidas de se estabelecer, mas pode-se perceber que há outras

extensas e penetrantes, as quais fazem parte de uma imensa rede conectiva que se alastra em

muitas direções. Como dito anteriormente, este é um modo de mostrar um vislumbre de uma

das ramificações do imenso rizoma formador desta pesquisa, o qual se conecta através de

dados subjetivos e de um sistema de imaginação. No momento, por tudo o que já foi

comentado sobre o deslocamento do foco central desta pesquisa, deixa-se aberturas para

outros novos e intensos estudos e relatam-se apenas as conexões primordiais, aquelas que, em

uma primeira instância, comoveram esta pesquisatriz, como dado e imaginação.

Foi muito importante para a compreensão das ambiguidades que fazem parte de

Dionísio e que descendem ao Bufão através dos Sátiros, a observação e a frequência nos

terreiros de Candomblé e Umbanda, nas festas dos Orixás, inclusive as de Exu. Através da

12 Para saber mais sobre Candomblé, ler: Irê Ayó. Mitos Afro-brasileiros, de Carlos Petrovich e Vanda Machado; Òrun Àiyé. O encontro de dois mundos: o sistema de relacionamento nagô-yoruba entre o céu e a terra, de José Beniste; Sincretismo Religioso & Ritos Sacrificiais. Influências das religiões afro no catolicismo popular brasileiro, de José Carlos Pereira.

97

leitura de estudos sobre o universo dionisíaco, bufonesco e das religiões afro-brasileiras e,

principalmente, da prática do Bufão através da técnica criada, da frequência nestes rituais e

visitas a médiuns, filhos e pais de santo, bem como a visita a “curandeiros” ou xamãs, é que

foi possível perceber, mais profundamente e sensivelmente, as transformações do corpo a

partir das relações com os elementos da natureza e com a atmosfera espiritual e transcendente

do ser humano.

O conjunto informativo da prática, da teoria e da frequência nos rituais de candomblé

e umbanda propiciou a percepção sensorial e teórica das conectividades entre Dionísio e Exu,

seus respectivos rituais e relações com aqueles que os incorporam, um de maneira imaginária

e outro de modo vivencial – experiências que, nesta pesquisatriz, mantêm um diálogo

recíproco e dinâmico.

O Bufão conecta-se ao Exu (sob o olhar desta pesquisatriz) através dos mesmos

sistemas que o ligam a Dionísio – são conectividades que extrapolam o espaço/tempo, as

relações culturais e as barreiras territoriais. Além disso, são conexões, incorporações

realizadas através de um DNA imaginal, onde a conectividade incorporativa acontece de

maneira singular e plural, ele é o mito incorporado e faz parte do mito que incorpora – o

indivíduo é ele mesmo, é ele no mito e é ele com o mito (ambiguidade inerente, também, à

máscara). O mergulho nos universos de ambos os mitos, deus e orixá, serviu não só para a

compreensão dos universos conectados, mas para melhorar os encaminhamentos da prática da

técnica criada, pois a experiência de vivenciar, presenciar e compreender sensivelmente as

transformações do corpo quando este entra em contato com a esfera espiritual, energética ou

elementar, agiu de forma adicional e complementar.

Devo dizer, ainda, que a maioria das considerações desenvolvidas até agora dizem

respeito à questão “espiritual”, no sentido ritualístico e xamânico e se debruça sobre o lado

mítico e místico da máscara bufonesca, zanesca e outras máscaras dell’arte. Mas, ainda assim,

buscando a compreensão através da dinâmica entre a tríade de Huizinga, DNA imaginal e

sistema de imaginação entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético Comum. Com isso,

convém dizer que não se está fazendo afirmação de um caminho desenvolvido pelo ator

profissional, aqui se está buscando entender como um imaginário, insistentemente, punge a

realidade objetiva e vai-se perpetuando, mesmo se modificado, ou melhor, renovado. Esta

insistência rizomática das atitudes lúdicas em pungir a realidade fez com que alguns de seus

tubérculos fossem para o ritual, outros para os jogos, outros para um caminho mercadológico.

O caminho das máscaras que povoavam os rituais de fertilidade ou bacanais pela Antiguidade

e Idade Média e que, posteriormente, continuaram a viver nas montanhas, nas festas e danças

98

macabras13, nos carnavais, também se desdobraram em um caminho “mercadológico”.

Segundo Testaverde (2003), o caminho das máscaras dell’arte é nebuloso e se subdivide em

profissional e ritualístico. Em alguns momentos, o profissional e o ritualístico chegam a se

cruzar, em outros, figuram tão longe um do outro que parecem compreender caminhos

totalmente diversos. Mas esta dificuldade em descobrir como estes caminhos se encontram e

codividem um mesmo contexto, faz parte do grande fascínio da commedia dell’arte.

Pode-se tentar entender como uma estratégia da atitude lúdica, na qual o DNA

imaginal insistentemente punge a realidade com uma necessidade de perpetuar-se e tornar-se

representante deste imaginário. Num primeiro momento como imaginário e depois se

fortalecendo e tornando-se mito, como artigo mercadológico, mais uma vez citando

Testaverde, o Zanni arquétipo mostrou-se um grande empresário de si mesmo. Com o tempo,

o ator começou a profissionalizar-se e tornou-se comico de profissão, posteriormente, não

permaneceu somente como profissional da cena, mas, também, como profissionalizante - as

companhias se formaram dando continuidade às máscaras, ensinando o ofício cômico e as

máscaras dell’arte. Considero a hipótese de que a máscara dell’arte inseriu-se no mercado e

este se aproveitou desta manifestação da atitude lúdica, a qual agradava e divertia e criou as

suas estratégias de desenvolvimento e sobrevivência (modo como tantos outros mercados e

manifestações da atitude lúdica se relacionam/funcionam). A organização pelo viés

mercadológico não renuncia ao lado mítico e místico da máscara, mas também não o coloca à

frente de tudo. Certamente que, depois que subiram aos palcos, as máscaras não eram (e nem

são) mais as mesmas. Porém, o que se está tentando entender é como esta máscara feita por

um comico profissional pode trazer consigo uma forte emanação energética festiva-ritualística

através de uma compreensão de suas conexões com este universo imaterial e sensorial e da

busca desta através de circuitos musculares. Para este estudo, a profissionalização do ator faz

parte do caminho realizado pela máscara e pelo DNA imaginal para perpetuar-se e será

desenvolvida na medida em que avançarmos no discurso.

Dadas as observações e explicações realizadas, retorno aos encaminhamentos da

técnica desenvolvida para a Máscara do Bufão.

13 Nas iconografias estudadas e pesquisas sobre commedia dell’arte, as danças macabras não possuem nomes diferenciais, elas são intituladas “danze macabre”. Algumas dessas iconografias e seus respectivos títulos podem ser vistos em: La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti; Zanni Mercenario della Piazza Europe, de Anna Maria Testaverde; La Commedia dell’Arte au XVI siècle, en 1601... et en 1981. Le Recueil Fossard. Compositions de Rhétorique , de Pierre-Louis Duchartre.

99

A atenção ao trabalho sensível de descoberta do Bufão começa durante o aquecimento,

o qual é direcionado para a autopercepção e produção de imagens internas a partir desta

percepção. O alongamento não possui nenhum exercício diferente daqueles que se fazem

habitualmente para alongar a musculatura: uma série de movimentos cujo objetivo é preparar

o corpo, deixando-o pronto para exercícios mais dinâmicos ou que requeiram maior

desenvoltura e empenho da musculatura. O que constitui a diferença significativa deste

momento da prática é o modo como este alongamento é realizado.

A necessidade de concentração é indiscutível, aproveitando o momento para trazer a

percepção para o corpo, especificamente para os ossos e para a musculatura. Cada movimento

deve conter uma compreensão imagética da sua organização enquanto esqueleto e enquanto

musculatura, sentindo a união do osso com o músculo, cartilagens, fluídos, o esforço

empenhado e o movimento. Porém, neste momento, a percepção ainda é técnica, busca a

execução correta dos movimentos, pois é importante que o corpo seja bem preparado.

Em seguida, passa-se à execução de movimentos mais livres, isto é, sem a atenção

específica ao alongamento, mas aos ossos, cartilagens e fibras musculares, percebendo como

se contraem e distendem-se na realização do movimento. Como se o ator adentrasse no

universo/imagem de sua musculatura e estrutura óssea - neste momento, o corpo deve ser

explorado, buscando sempre novas constatações de dinâmicas intramusculares. A partir daí, o

corpo atinge uma dinâmica corporal de movimentos sem racionalizar, o corpo comove-se com

a percepção e a imagem desta musculatura e estrutura em movimento.

Tendo como base a movimentação da “estrutura” corporal, inicia-se a exploração e o

adentrar das imagens/dinâmicas dos quatro elementos: terra, água, ar e fogo - trazendo as

imagens/força/energia destes para habitar a musculatura e estrutura do corpo do pesquisator.

Essa etapa é muito importante, pois como os bufões têm forte elo com a ritualidade, esta

interação e integração com os quatro elementos são de extrema importância para,

posteriormente, após passar por todas as outras etapas, retornar a esta força ritualística

elementar e xamânica.

Após a etapa do alongamento e a movimentação da “estrutura” corporal, exploração e

“habitação” das imagens/dinâmicas da terra, água, ar e fogo, é imprescindível que o

pesquisator traga para seu corpo os quatro elementos, com todas as suas dinâmicas, força,

sons e densidades. Após passar pelos quatro elementos, sempre partindo da estrutura corporal

e pensando fisicamente, a partir da dinâmica recíproca dos fatores, começa-se a exploração

conjunta das imagens dos sistemas que constituem o corpo. Num primeiro momento, são

explorados somente os sistemas respiratório e sanguíneo. O pesquisator explora as imagens

100

de um corpo muscular cujas fibras são permeadas por tais sistemas e eles, por si só, já

possuem uma movimentação própria. Este processo de imagem, percepção e ação acontece de

maneira dinâmica e recíproca, em que tais fatores se alimentam e se desenvolvem comovendo

e transformando o corpo de modo sensível, físico e energético.

Após a exploração sensível da musculatura com os sistemas respiratório e sanguíneo,

passa-se à adição dos sistemas digestivo e intestinal. Como o corpo já passou pela dinâmica

intramuscular anterior, agora a percepção volta-se para os volumes internos do corpo e

metabolismo. É a percepção/imagem deste conjunto de órgãos, tecidos, “massas” e “fluídos”

em movimento, que, nesta etapa, comovem o corpo.

A percepção destes volumes internos em movimento adiciona uma nova dinâmica ao

corpo e, também nesta fase, este continua a transformar-se.

O que me levou para este caminho de observação e percepção sensível destes

movimentos e volumes internos foi uma tentativa de entender o “baixo ventre”, tão citado por

Backthin como valor pertencente à “filosofia carnavalesca”, através de uma compreensão

física, de uma percepção dilatada desta parte do corpo e buscando a imagem e ação desta

sobre o corpo, como impulso de transformação deste, bem como, da impulsão da ação deste

no espaço e, posteriormente, em relação com o outro.

A imagem e percepção de minhas vísceras - dos sistemas sanguíneo, respiratório,

nervoso e todo o metabolismo digestivo - forneceram um bom material para o início do

processo. Mas é necessário dizer que não basta somente a imagem destes volumes internos e

sistemas como se vê nos livros, ou seja, como fotografias, sem movimentos, é preciso que a

imaginação trabalhe a partir das sensações, percepções e da imagem destes sistemas em pleno

funcionamento – também aqui o corpo é transformado e a musculatura começa descobrir a

constituição dos circuitos.

Passando por todas estas dinâmicas de constituição do corpo, vamos à etapa de

incorporação de mais dinâmicas, buscando outros apoios imagéticos, físicos e energéticos

para a transformação do corpo. Passa-se a uma metamorfose do corpo através de imagens de

animais, dos mais belos e delicados aos mais grosseiros, asquerosos e nojentos. É preciso

experenciar uma gama de imagens e transformações do corpo de modo que este seja inundado

pelo mundo animal e seus instintos – o pesquisator trabalha transformando o seu corpo em

vários animais: mamífero, ave, anfíbio, roedor, réptil, inseto e verme – os animais são

escolhidos no ato do laboratório, sem pré-concepção. É importante dizer que, nesta pesquisa,

não se tem o intuito de fazer a mímesis perfeita dos animais, o que interessa é a capacidade do

pesquisator de se deixar habitar pelo instinto, energia, corpo e voz do animal. Para tanto, nos

101

laboratórios, se explora todas as situações de sobrevivência como a fome, a caça, a

proliferação, o medo, ele como predador, ele como presa, passando pelas experiências físicas

instintivas sem se preocupar com a mímesis, mas sim com a veracidade das ações, energias e

situações. Também é muito importante que o pesquisator tenha consciência do circuito

muscular/energético que se forma a cada transformação do seu corpo em um novo animal.

Posterior à etapa dos circuitos corporais individuais dos animais, começa-se, então, a

sobreposição de circuitos, buscando realizar a combinação de partes diversas dos circuitos dos

animais e das dinâmicas dos sistemas. Este processo é demorado, pois é o próprio corpo que,

num processo que busca não racionalizar, realiza várias combinações até que, através das

inúmeras tentativas e encontros, compõe um único corpo e um único grande circuito, feito da

conjunção e das transformações de pontos de tensões para aquele eleito.

Esta descoberta-composição se dá de maneira crescente. Inicia-se com a sobreposição

de apenas dois circuitos animais e a cada dia se adiciona outro, até que todos estejam no

corpo, é a dinâmica de combinações, alternâncias e sobreposições, através da repetição casual

das mesmas combinações de circuitos, que compõem, assim, o corpo do Bufão. Quando este

corpo já está firmemente transformado, passa-se outra vez pelas dinâmicas dos elementos e

sistemas, para sentir, com este novo corpo, as sensações dos sistemas em funcionamento, os

fluídos e movimentos das vísceras e órgãos/hormônios/instintos sexuais e as dinâmicas do

fogo, do ar, da água e da terra.

O resultado do reencontro com este novo corpo latente é de uma intensidade grotesca

e vital, infinitamente maior daquela encontrada antes, pois vem acrescido dos instintos, da

dinâmica de movimentação dos sistemas que permitem a nutrição, digestão, deglutição e

sobrevivência do ser humano e está somada à ligação com o mundo animal. Com tudo isso, a

conexão com os quatro elementos ganha a força e dimensão destes.

Com este corpo e energia, passa-se ao trabalho com o Carnaval, a festa e o ritual.

Fazendo com que o corpo grotesco seja portador das partículas grotescas-festivas-ritualísticas

de um Carnaval além tempo e espaço atuais. É através da vivência carnavalesca que os

“princípios moral e vital” intensificam-se e disseminam-se, não só no corpo e voz do bufão,

mas também através destes, pelo espaço, como a ancestralidade festiva.

Após a construção corpórea energética do bufão, começa-se, então, a intensificação

das deformidades físicas que surgiram durante a descoberta. Através do Méthode des

transferts, adiciona-se ao corpo do pesquisator alguns apoios concretos para intensificar os

aspectos grotescos que já foram adquiridos no processo de metamorfose anterior. Trata-se da

adição de “aparelhos cênicos” que possam auxiliar no travestimento, como corcundas,

102

barrigas, falos, patas, peles, cascas de árvore, peitos, maquiagens, trapos e roupas. Tudo deve

ter sido sugerido pelo próprio corpo metamorfoseado, nada pode ser colocado por simples

função estética, para que não se torne uma espécie de prótese, um acessório acoplado ao corpo

do ator e não uma parte do corpo bufonesco do ator. O corpo bufonesco, apesar de ter

acessórios como falos, seios, intestinos, elementos animais e vegetais, deve ter uma unidade,

isto é, tudo forma um só conjunto, nada pode parecer um objeto colocado na roupa. O

pesquisator deve saber movimentar-se como se tudo fosse seu corpo e manipular qualquer

acessório como parte dele, como faz com seus braços, pernas, dedos, cabeça, seios, etc.

Após a transformação, o resultado obtido com esta técnica são bufões que se

assemelham aos personagens pintados por Hieronymus Bosh, uma mescla entre humano,

animal e vegetal.

A indumentária completa do bufão cobre quase todo o corpo do pesquisator, é

composta de acessórios, vestimentas e maquiagem que jamais exploram a sensualidade, mas o

obsceno, a sexualidade, o instinto, a sátira e o farsesco. Com sua aparência grotesca, o bufão

incita no público instintos contraditórios, tanto sexuais, por invadir o espaço com sua própria

energia sexual, quanto de piedade, temor, medo, alegria e asco.

Deve-se sublinhar que todo o trabalho de “metamorfose” do corpo traz consigo a voz,

pois há um encaminhamento conjunto, de maneira uníssona. Da mesma forma que a

percepção e a movimentação dos afetos internos (imagens, sensações e dinâmicas destas)

transformam o externo (corpo), a voz também sofre alteração, sendo ela também um reflexo e

resultado da ação da comoção destes fatores.

O impulso trazido pelo Fundo Poético Comum concede um grande poder à palavra,

pois esta vem carregada de uma potência concreta. A palavra não é somente a ação de falar,

mas uma reação e extensão de toda a movimentação e comoção interna. A palavra, tal qual o

corpo, emerge da ação da dinâmica entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético

Comum, portando consigo ondas propagadoras dessa dinâmica que, carregada de sentimentos

afetados, causa assim uma afetação ao chegar ao ouvinte/espectador.

Depois da descoberta e da prática para uma “fixação” na musculatura das dinâmicas

do Bufão, é iniciado o trabalho com o manejo das linguagens que se fundem a esta Máscara -

paródia, derrisão, crueldade, injúria, loucura, desmedida, escárnio, simulacro, sátira,

gratuidade, deboche, chiste, carnaval, banquete, escatologia, sexualidade e a relação com o

poder, tudo isto através do jogo cômico e do riso. Sérge Martin afirma que, para o

desenvolvimento do manuseio de tais linguagens, é preciso considerar como ponto de partida

103

uma complexa rede de conexões que se baseiam na ideia de que o jogo do bufão traz uma

equivalência entre Jogo e Sagrado.

Para melhor compreensão do universo bufonesco, Martin criou uma série de imagens

gráficas, em que mostra os diversos vetores que dinamizam tal universo, partindo da premissa

de que existem duas instâncias de primeiro grau em sua complexidade: o Jogo e o Sagrado14.

A partir do Jogo e do Sagrado, Martin desenvolve reflexões sobre tal complexidade de

conexões. Mostrando que estas duas instâncias superiores desenvolvem-se como se fossem

opostas e equivalentes. Como se caminhassem de modo unificado e, ao mesmo tempo,

independente, onde cada qual tem seu conjunto de valores e fatores, que convive como

“oposto complementar de equivalência”.

Também, a partir do Jogo e do Sagrado, outras linguagens se desdobram: “O Jogo se

divide em duas capacidades: capacidade de imitação e capacidade de gratuidade - numa

relação horizontal. Com o Sagrado é a mesma coisa: capacidade de violência e capacidade de

seriedade – numa relação vertical, em direção ao céu ou às profundezas da terra”15. Estes

vetores conectam- se e desdobram- se em outros vetores - Jogo: Imitação; Gratuidade; Paródia

e Metáfora; Sagrado: Violência; Seriedade (a Seriedade pode ser compreendida como Razão);

Desmedida e Sabedoria.

Cada fator trabalha com sua oposição horizontal e em espelho à correspondência

vertical de sua própria natureza. Para melhor compreensão, ver imagens gráficas em ANEXO

A16.

Desta experiência solitária de construção da técnica de descoberta do bufão e de

desenvolvimento das dinâmicas sensíveis e das linguagens deste “universo”, surgiram

algumas cenas, das quais se falará mais adiante, pois não se concretizaram em um espetáculo,

14 Vale grifar que estas duas instâncias instituídas por Martin estão intimamente ligadas à tríade de Huizinga. Também vale lembrar que o Jogo, no caso do Bufão, faz parte da realidade em que ele vive, não da realidade como compartilhamento social e o Sagrado é, na verdade, o ritualístico, o Divino em Dionísio, não é o sagrado em relação a igreja. Para esta pesquisatriz, o Sagrado chama um contrário, que é o Profano, colocando-se assim num âmbito de religião, enquanto que o Divino, não trazendo uma oposição direta, pode ser carregado de uma ligação com o ritual ou com a religiosidade, não com uma religião. Mas isto é uma questão de nomenclatura, não interfere no funcionamento do mecanismo imagético criado por Martin. 15 Texto contido nas imagens gráficas do ANEXO A - tradução da autora (MARTIN; PEZIN, 2003, p. 59). 16 As imagens gráficas criadas por Martin, as quais estão contidas no “ANEXO A” desta tese, podem ser compreendidas em suas dinâmicas, para tanto, pode-se utilizar a imaginação e entender o Bufão como um ponto de encontro de vários vértices de linguagens, sendo que estas correm em sua direção estabelecendo uma dinâmica de oposição, espelho e correspondência e equivalência. Ainda, pode-se imaginar um Bufão que equilibra na sua cabeça uma enorme pirâmide, de cabeça para baixo. Para fazer a pirâmide em 3D é necessário transformar a imagem do mapa (ANEXO A), fazendo as dobraduras necessárias para transformá-la em uma pirâmide – mas os fatores devem permanecer no interior da pirâmide, não no exterior, porque senão não acontece o jogo de espelhos entre os vetores. Fazendo tais dobras e sempre levando em consideração as movimentações de intercâmbio das forças internas, é possível descobrir um pouco da complexidade da dinâmica que envolve as linguagens do universo bufonesco.

104

porque a necessidade de uma nova tentativa de apropriação definitiva desta técnica apareceu

de forma desafiadora e intensa – a de aplicá-la a outros atores.

3. 2. O BUFÃO: UM ESPETÁCULO E OUTRAS EXPERIÊNCIAS

“A eterna questão sempre sem resposta: Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos? Eu respondo: Ao que me diz respeito, eu sou eu mesmo, venho de minha casa e retornarei a ela!” 17

Les bouffons – Texto e Direção de Sérge Martin (1983).

A partir da vontade de enfrentar o desafio que irrompeu da curiosidade de saber como

esta técnica agiria quando empregada em outrem, iniciou-se uma nova experiência e a técnica

foi aplicada num grupo de nove atores18.

Os laboratórios com o grupo de atores seguiram os mesmos encaminhamentos da

construção da técnica relatada anteriormente.

Levando em conta que estava trabalhando com um grupo e não mais com uma

experiência solitária e por se tratar de um universo muito livre, no qual os instintos afloram –

o que é censurado no convívio social – foi necessário que o grupo tivesse uma espécie de

confiança cega, um pacto e uma licença entre todos, para poder se livrar das castrações e

pudores cotidianos. No grupo, todos se conheciam e a maioria tinha trabalhado na minha

pesquisa de mestrado (BRONDANI, 2006) e nos espetáculos que faziam parte desta, sendo

assim, as pessoas já tinham entrosamento e confiança entre si e o pacto foi facilmente

estabelecido, o que facilitou no encaminhamento do processo.

A prática do acesso à máscara do Bufão com um grupo requer um desnudamento

maior, um despojamento das fraquezas, temores, vaidades e outras barreiras psicológicas,

geralmente relacionadas ao baixo ventre, à fome, em todos os seus expoentes. Livrar-se destas

barreiras em laboratórios individuais, muitas vezes, é mais fácil que com outros agentes.

Quando se trabalha o bufão em grupo, significa não só ultrapassar os próprios limites de

castrações e barreiras de ação sobre si mesmo, mas também ultrapassar as concessões sociais

17Tradução da autora : A l’eternele question toujours demeurée sans réponse: “Qui sommes-nous? D’où venons-nous? Où Allons-nous?” Je reponds: “En ce qui me concerne personnnellement, je suis moi, je viens de chez moi et j’y retourne! In (MARTIN, 2003, p.24) 18 Atores da Cia. Buffa de Teatro (Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fernando Lopes, Jorge Baia e Simone Araújo) e alunos da Escola de Teatro da UFBA que participaram do processo (Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio e Maryvonne Coutrot).

105

de contato com o outro, isto é, quebrar as barreiras de reação/proteção ao instinto do outro. É

muito importante os atores trabalharem dentro de um espaço amoral19.

No processo com o grupo, as etapas se tornaram mais lentas, pois as interligações

entre os imaginários e imaginações de cada ator sobre si mesmo e com os outros se tornaram,

ao mesmo tempo, mais complexas e muito mais Belas e, novamente, o Bufão me seduzia e me

envolvia em seu universo.

Ao longo dos laboratórios e vivências com este corpo deformado/transformado e em

metamorfose, o pesquisator passa a gerir o turbilhão de forças e comoções que circulam em si

de maneira muito consciente, como um atleta, ele está pronto para enfrentar o público num

espetáculo e esta nova experiência resultou em um espetáculo: “Fato(s) do Brasil”.

3. 2. 1. Fato(s) do Brasil – um espetáculo satírico

“Fato(s) do Brasil” foi o espetáculo resultante da aplicação da técnica de Bufão

construída em um grupo. Para a criação do espetáculo, após o trabalho desenvolvido com a

técnica, jogos e improvisações serviam como base para a construção das cenas, nas quais

texto e ação foram inventados e construídos em conjunto.

No palco, um coro de sete bufões20 surge em meio a gargalhadas e, valendo-se de sua

arte, narram e vivem a saga do povo brasileiro, apresentando uma versão resumida desta

história plena de castrações e orgias.

A história do “descobrimento” do Brasil e a invasão deste pelos povos ditos

“civilizados” serviram de enredo para os Bufões mostrarem a sua versão e visão desta

“fábula”, explorando nuances e graduações do jogo cômico através do grotesco, do escárnio,

do deboche, do sarcasmo, da ironia, da sátira, da burla, do chiste, do jogo de frases com duplo

sentido, da carnavalização, do banquete, da escatologia e da sexualidade, originando um

discurso insultuoso que subverte a própria cena. A dramaturgia, tanto do espetáculo quanto do

texto, apresenta em seu conteúdo uma mistura de agressividade satírica, liberdade

imaginativa, amoralidade, absurdo e licenciosidade.

19 É necessário sublinhar que o bufão age num contexto amoral, ou seja, moralmente neutro, que se mantém exterior ao julgamento ou qualificação moral, o que é diferente do caráter consciente daquele que é imoral. 20 No espetáculo, somente sete atores trabalharam: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot.

106

.

Foto: Felipe Botelho Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Estabelecimento do Im/pacto com o público.

Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot.

Data: setembro/2006

Em meio a orgias e escatologias, os bufões “discutem” os valores éticos e morais

daqueles que chegaram ao Brasil para colonizar, “explorar... deflorar... estuprar” - citando a

fala dos próprios bufões no momento em que narram e vivem a chegada das naus portuguesas

em território brasileiro.

Logo no início do espetáculo, os bufões estabelecem um pacto com o público. No

primeiro contato entre estes, o coro, de costas para o público, emite sons e grunhidos não

humanos, depois, virando-se repentinamente gargalham de uma maneira desinibida,

estabelecendo assim, num primeiro momento, um impacto, então, um pacto com o público,

que ao ver tais figuras disformes e grotescas gargalhando, também se entregam ao riso. Este

riso coletivo e sem motivo aparente colocava o público em uma predisposição para a proposta

estética do espetáculo - totalmente fantasiosa – e criava a atmosfera necessária para este se

desenvolver. A partir deste primeiro impacto, os bufões estabeleciam seus parâmetros e o

público começava a compreender e compartilhar destes referenciais. Deste modo, os bufões

podiam debochar dos “vícios sociais” sabendo que a platéia condizia com seus impulsos e

também se permitia a fantasiar.

107

Foto: Léo Azevedo. Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Os portugueses avistam terra firme. Elenco: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu,

Flávia Gaudêncio, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot. Data: setembro/2006.

Em muitos momentos, os bufões utilizavam mecanismos conhecidos do jogo cômico e

da sátira: o “transporte de termos da área semântica físico-corporal para designar atividades

intelectuais”21; a “inversão tradicional dos termos”22 e o “deslocamento da palavra” –

mecanismo este que, segundo Cleise Mendes, consiste na utilização da palavra, não em seu

sentido metafórico [ou “moral” p/ Bergson(1980)], mas sim, em seu sentido literal ou físico –

para Mendes o deslocamento da palavra passa a representar um espaço no qual é representada

como “coisa concreta”. Essa característica constitui o contraponto lúdico da sátira, o que é

muito importante, pois a ludicidade impede que a sátira se reduza a puro xingamento ou lição

moral, porque trabalha com um imaginário fantasioso e relativo23.

21 Como, por exemplo: digerir uma ideia, ruminar um pensamento, mastigar um discurso, engolir a palavra, mascar a resposta, etc. 22 Como, por exemplo: usando um remédio que mata, um veneno que cura, trabalhar para repousar, descansar trabalhando, etc. 23Para outras informações, ler “A Gargalhada de Ulysses. Um Estudo da Catarse na Comédia”, de Cleise Mendes, Doutora, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.

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Foto 3: Felipe Botelho. Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Dom Pedro I Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu e Maryvonne Coutrot. Data: setembro/2006.

Todas estas convenções, para Mendes, acabam por estabelecer uma “grande

convenção satírica”, a qual abarca um repertório de temas, motivos e procedimentos que

expõem ao ridículo certos comportamentos para atacar personagens da vida pública e privada.

Nesta grande convenção, todo o prazer vem submetido às regras do jogo cômico, do qual

participam a fantasia, o exagero, o paradoxo, a incongruência e o contraste, além de que, o

espectador passa a aceitar o vocabulário obsceno, os intuitos agressivos, o furor do escárnio, o

deleite no baixo ventre e no grotesco e as formas de burlas e de chacotas, como elementos de

uma criação artística.

Em “Fato(s) do Brasil”, a utilização de tais recursos satíricos era muito recorrente24, os

bufões se apoderaram de uma história conhecida por qualquer público e assim, ganhavam a

cumplicidade dos espectadores rapidamente.

Durante o espetáculo, os Bufões se revezavam na “incorporação” dos personagens e

executavam uma ação e uma narração plena de ambiguidades e chacotas, propiciando no

espectador a possibilidade do riso.

24 Pode-se citar o momento em que os bufões simulam um ato sexual em grupo e falam sobre as invasões dos franceses, espanhóis, holandeses, portugueses e a vinda dos africanos para o território brasileiro.

109

Foto 4: Léo Azevedo Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae

Cena: Chegada do Bispo Sardinha Atores: Andréa Rabello, Jorge Baia e Maryvonne Coutrot

Data: setembro/2006.

Os bufões reviviam os acontecimentos delatando comportamentos que o espectador,

inconsciente ou conscientemente, julga censurável no plano moral. Este ato de rir daquilo que

é censurável pode ser considerado uma espécie de “vingança-social”, porém, para Mendes, a

catarse cômica, em especial a do tipo satírico, não acontece somente pela explicação da

“vingança-social” ou da interpretação psicológica do prazer inconsciente, ela acontece,

também, pela necessidade de liberar e desbloquear - função própria da catarse. Para a catarse

cômica acontecer, o espectador deve se envolver com o espetáculo e este envolvimento

dependerá, segundo Mendes, em grande parte, das estratégias lúdicas da manipulação do

discurso insultuoso, domínio do Bufão, por excelência.

“Fato(s) do Brasil” tem um texto dramatúrgico totalmente firmado num vocabulário

obsceno, agressivo e sarcástico e, na cena, as figuras dos bufões aguçavam o imaginário do

espectador, o qual passava a perceber as burlas, ímpetos sexuais e críticas, num conjunto que

ocasionava o deleite, o riso e o “gozo”.

Numa sátira, como em “Fato(s) do Brasil”, o alvo é o “poder”, em qualquer grau que

seja - utilizando o conflito crítico-social dos valores e das estruturas governamentais e

institucionais como argumento e motivo do riso - o bufão é totalmente livre, ele não tem

medo de deus, nem do diabo, quanto menos dos homens. Mestre irônico, o bufão arranca risos

do público utilizando todos os recursos físicos e linguísticos. Como afirma Cesare Molinare

(2007), ele herdou tais qualidades dos sátiros e mimos.

110

Foto 5: Felipe Botelho. Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Bispo Sardinha é cercado pelos índios Canibais. Atores: Andréa Rabello, Jorge Baia, Fabiana Monçalu e Maryvonne Coutrot Data: setembro/2006.

A técnica de deslocamento da palavra ou “representação indireta pelo oposto” (como

denomina Freud25) é muito utilizada pelo Bufão e obriga o ouvinte a aguçar sua percepção e a

manter ágil seu raciocínio, pois, para o Bufão, é interessante que o público mantenha sua

atenção e energia voltadas para a sua ação. Apesar de estar presente, quando chamado para

participar da ação dramática, o espectador jamais deve tentar colocar o Bufão em má situação,

pois se tentar zombar dele, acabará sendo a vítima do próprio chiste – transformando-se em

“desvio cômico” - como Bergson (1980) nomina este mecanismo de retorno do chiste para

aquele que o lançou.

Foto: Léo Azevedo Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: Dom Pedro II narra as mudanças que aconteceram no seu mandato. Atores: Andréa Rabello, Diana Ramos, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu, Flávia Gaudêncio e Maryvonne Coutrot. Data: setembro/2006.

25 Para saber mais sobre o chiste e o cômico em Freud, ler: Os motivos dos chistes: os chistes como processo social. In Obras Completas: Os chistes e sua relação com o inconsciente.

111

O bufão é mestre no jogo da inversão do poder e o espectador não tem a percepção

da própria situação, de seu discurso e de sua vulnerabilidade, ele mesmo fornece o material

para o desvio da zombaria. Quando alguém tenta zombar do bufão, a ironia, arrogância e

pedantismo retornam com mais força ainda para essa pessoa. Quando um locutor faz um

chiste, cria-se uma expectativa em direção ao alvo e quando não o alcança, porque sofre o

desvio cômico, o bufão consegue inverter o sentido do chiste, a expectativa do público retorna

ao primeiro locutor com força zombeteira redobrada.

Em Mistero Buffo, Dario Fo conta uma história cujo personagem é o Papa Bonifácio

III. Uma vez ele mandou pregar, pela língua, na porta da igreja, sete bufões, como símbolo e

lembrança para os demais, do que pode acontecer com quem caçoa da “santa madre igreja”

(FO, 1997). Mas nem mesmo esta fábula foi capaz de calar os bufões ao longo da história. O

bufão sempre teve e tem a “língua solta”, ele utiliza todas as “vertentes” do cômico e do riso,

mas a sátira faz parte das mais elaboradas fontes de expressão desta Máscara.

Foto 7: Felipe Botelho. Espetáculo “Fato(s) do Brasil”. Dir. Joice Aglae Cena: encerramento com o público Atores: Andréa Rabello, Érico José Souza de Oliveira, Fabiana Monçalu e Flávia Gaudêncio.

Data: setembro/2006.

A história do Brasil, seus momentos e personagens históricos, serviram como base de

compartilhamento para as anedotas, ironias e deboches.

[...] é muito revelador constatar que: desde o início, a tentação cômica está presente; percebe-se que basta pouquíssima coisa para que uma face nobre vire ridícula; a

112

máscara da dignidade de cada homem é extremamente fina e; atrás, sempre perceptível ao olhar especialista, transparece a face grotesca. Ninguém escapa disso: cada um de nós tem seu aspecto ridículo e todo homem sério tem seu revés cômico (MINOIS, 2000, p. 271). 26

Mas o pacto entre os bufões e o público começava sutilmente, no próprio título da

peça. A palavra “fato” tem muitos significados27, ela pode ser compreendida como: “roupa”,

“vísceras de gado”, “pequeno rebanho, especialmente de cabras”, “coisa ou ação feita”,

“acontecimento, sucesso”, “aquilo de que se trata” ou “o que é real” na situação – e todas

estas possibilidades de compreensão se encaixavam na proposta satírica da história do Brasil

contada pelos Bufões

Foto 8: Felipe Botelho Espetáculo “Fato(s) do Brasil. Dir. Joice Aglae Cena: encerramento com o público Atores: Érico José Souza de Oliveira e Fabiana Monçalu Data: setembro/2006.

No espetáculo, os acontecimentos enfocados davam uma noção dos períodos

evolutivos da história brasileira, dando saltos cronológicos e chegando até a atualidade

(considerando a data da estréia e permanência do espetáculo – setembro e outubro 2006). O

propósito do espetáculo era de utilizar-se de uma história comum a todos para fazer valer os

princípios da comédia, do carnaval, do banquete, do riso, da bufonaria e, principalmente,

validar a técnica criada. Pela assiduidade do público e reações durante o espetáculo, parece

26 Tradução da autora : [...] il est très révélateur de constater que, dès le départ, la tentation comique est présente; on s’aperçoit qu’il suffit de très peu de chose pour faire basculer un visage noble dans le ridicule, que le masque de dignité de chaque homme est d’une extrême minceur et que derrière, toujours perceptible à l’œil exercé, transparaît le visage grotesque. Personne n’y échappe: chacun de nous a son aspect ridicule, et tout homme sérieux a un envers comique. 27 Significados extraídos do “Moderno Dicionário da Língua Portuguesa – Michaelis, 109ª Edição” e compreensões populares do termo.

113

que “Fato(s) do Brasil”28, aos olhos do grupo que fazia parte do mesmo e desta pesquisatriz,

cumpriu com seus objetivos, sendo um espetáculo satírico e validando uma experiência de

desenvolvimento de uma técnica.

3. 2. 2. “A Prece”, “A Oração” e “Arlecchino e la Valle dell’Omo”

“[...] haja feiticeiras em nosso sangue ou não, o encanto permanece”

Monique Augras (2009, p.14)

O bufão faz valer o princípio do riso relativo. Se Bérgson coloca o riso como uma

ação que pode intimidar e até humilhar, o bufão só o utiliza, nesses termos, se provocado.

Como já mencionado, muitas vezes a ironia faz com que o comentário risível se volte contra o

próprio locutor, porém, no caso do Bufão isso não acontece, pois a ironia só se volta contra o

autor quando este compartilha dos mesmos valores, da moral, da índole ou atos de quem

critica. O bufão não compartilha da índole humana e isso lhe dá a permissão para caçoar de

todos sem ser alvo do retorno da zombaria. Reforçando sua maestria em inverter situações, se

alguém tentar atingi-lo com deboches, certamente se tornará um alvo a ser destruído, um bode

expiatório apedrejado por sarcasmos cuspidos que, segundo Balandier (2006), somente um

Bufão, especialista do desvelamento das complexas relações sociais e cuja ação é a

regulamentação dos processos da coletividade, pode ser capaz de realizar.

A figura de um Bufão suscita reações orgânicas, diante de um estamos sempre em

expectativa, têm-se calafrios na alma e um turbilhão de emoções percorre o corpo: “Um

suspiro quando ele passa. Um arrepio se ele nos olha. Ele [o Bufão] zomba. E, geralmente,

sem que a gente saiba o porquê. Ele parece ser mestre da sátira. E manuseia muito bem a

ironia, conforme sinaliza a definição de bufão” (MARTIN, 2003, p.32).29

O bufão utiliza todos os tipos de riso, não é somente mestre no manuseio da ironia,

mas também grande sábio em utilizar o terror e o humor pueril. O Bufão, com seus contrastes

de comoção de afetos, chega até a despertar sentimentos de piedade, para logo após despertar

o horror. O Bufão sabe envolver o público e, se necessário for, faz uso também do humor

pueril (do absurdo, de jogos de palavras inocentes – como faziam os Bobos da Corte), como

28 Ver fragmentos do texto em APÊNDICE A e o clipe do espetáculo no DVD que acompanha a Tese. MENU: 1. BUFÃO: 1.1 - BUFÕES: FATO(S) DO BRASIL – Clipe. 29 Tradução da autora : «Un souffle passe dês qu’il bouge. Um frisson s’il nous regarde. Il raille. Et bien souvent sans qu’on puisse déterminer comment. Il semble être mâitre de la satire. Mais il manie tout aussi bien l’ironie comme le dit la definition de bouffon».

114

contraponto da ironia e de sua imagem horrenda. Dessa forma, ele passeia pelas afetividades

do espectador, o Bufão é capaz de apedrejar e acariciar o seu alvo em uma só fala.

Outro contraponto que faz parte do Bufão é o do divino, do sacro e do profano,

advindos do ditirambo e acentuados no drama satírico, como falado anteriormente, a tríade

jogo-festa-ritual, no Bufão, é intensa e sem fronteiras. Esta zona sem limites foi muito

explorada na experiência solo, intitulada “A Oração”. Esta experiência foi apresentada para

um seleto grupo, no segundo semestre de 200630. Posteriormente, em 2008 e 2009 este

esquete foi apresentado em ensaios abertos no Brasil e Itália31 e em festivais da Europa32.

Foto 9: Léo Azevedo Espetáculo: A Oração Direção/Atuação: Joice Aglae Data: Agosto/2009

A cena “A Oração” apresenta um grande teor ritualístico e certo grau de ironia,

sarcasmo e “humor”. O humor faz parte de um bem-estar psicológico e o bufão sabe disso. O

riso produz a capacidade saudável de rirmos de nós mesmos, uma ação necessária ao ser

humano e que, segundo Freud33, faz parte do mais importante processo defensivo da vida

psíquica. Numa situação de dor e aflição, se desviarmos e pouparmos a energia afetiva da

autocomiseração para um comentário humorístico, o riso se torna possível e nos beneficia.

Para o bufão, não há autocomiseração e por isso ele sempre se serve de tal benefício, pois ele

ri de si próprio e dos outros. Ele ri de si mesmo porque sabe que não se deve ver como figura

30 Na disciplina “DAN 508 - Processos de Encenação”, com a professora Dr.ª Sônia Lúcia Rangel, “Uma prece” foi apresentada no final do semestre para a turma que cumpria a disciplina, como parte resultante do meu processo criativo. 31 Na Escola de Teatro da UFBA (BR) e Scuola Sperimentale dell’Attore – Pordenone (IT). 32 “Luxembourg street festival « clown streeta(rt)nimation” e “Clown in the House Festival”, ambos em Luxembourg/ 2009. 33 Para saber mais sobre o cômico em Freud, ler: O Humor (1927) In Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud - Vol.XXI; Os motivos dos chistes: os chistes como processo social In Obras Completas: Os chistes e sua relação com o inconsciente..

115

séria, pois aquele que se vê dessa forma, torna-se frágil, um alvo muito fácil de ser

desmontado. Ele ri dos outros e não tem medo do riso.

Enquanto os seres humanos se levam a sério e se afastam daquilo que é

verdadeiramente importante nas suas vidas, o Bufão ri e retorna às suas ligações com o divino

(Dionísio), com o ritual, com o mito. Mas o Bufão sabe que o Jogo e o Sacro são partes de um

todo. No seu Jogo, invoca o ritual, retoma seu lado xamânico e, através de profecias,

verdades, falsidades e invenções, ele amedronta e até acha engraçado os Homens apavorados

ao ver aquele ser grotesco escarrar possibilidades de um futuro obscuro ou decodificar um

passado e/ou presente.

Em “A Oração”, Murcia - meu Bufão34 - entra em uma espécie de círculo ritual feito

com velas e faz um discurso carregado de imagens, ironias sutis e leves obscenidades. O texto

foi escrito a partir de poemas de Antonin Artaud, encontrados após sua morte35, e de Augusto

dos Anjos, tendo, ainda, como inspiração os rituais indígenas e de candomblé. A cena tem

como argumento um apelo ao ser humano, a sua inteligência e a sua fraqueza diante de um ser

como o Bufão36.

Foto 10: Léo Azevedo Espetáculo: A Oração

Direção/Atuação: Joice Aglae Data: agosto/2009.

“A Oração” serviu como base para que eu desenvolvesse outra experiência. Durante

meu estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore, precisamente no final do mês de maio/2008,

34 Por tudo o que foi falado sobre o Fundo Comum dos Sonhos, o imaginário, as atitudes lúdicas e a imaginação - espaços coletivos, mas também individuais, espaços delimitados, mas sem definições – posso me referir ao Bufão como “meu”, pois estou falando deste lugar que me permite falar como plural e como singular, prefiro até usar “meu Bufão” para poder falar de características que podem não ser plurais e estarem dentro daquilo que é somente “meu”, sendo assim, não coloco como geral uma característica que é pessoal. 35 A maioria destes cadernos de Antonin Artaud se encontra na Bibliothèque Nationale de France. Segundo Serge Malausséna (revista Licences 2002/2003, nº2), estes cadernos (ao todo 406) tinham desaparecidos do quarto de Artaud no dia 06 de março de 1948, dia da sua morte, aos poucos foram sendo encontrados e catalogados. 36 Ver o texto em APÊNDICE B e clip do scketch no DVD que acompanha a Tese. MENU: 1. BUFÃO: 1.3 – BUFÃO: A PRECE\Murcia – clip.

116

o diretor Ferruccio Merisi convidou-me para fazer parte de um espetáculo e pediu que eu

fizesse uma cena sobre o argumento “Valle”, o trabalho entraria no espetáculo “Arlecchino e

la Valle dell’Omo”37, um espetáculo cujo argumento seria os caminhos da Humanidade.

Fazendo a pesquisa sobre as várias possibilidades de interpretação da palavra “vale”,

encontrei muitas expressões religiosas: vale de lágrimas, vale de ossos, vale da morte, vale de

sangue, vale de almas, vale de espinhos, etc. Vendo estas interpretações de passagens bíblicas

e frases proféticas, pensei que seria um bom tema para ser desenvolvido por um Bufão e

comecei a trabalhar, em laboratórios individuais, na construção do texto e da cena, a partir de

“A Oração”. A cada ensaio a cena crescia e intensificava o jogo ritualístico do Bufão,

fortificando sua união com o Divino, com o Uomo Selvaggio e com Dionísio, retornando as

suas ligações com o lado mítico e místico do universo e retomando seu posto de trickster.

Quando a cena foi mostrada a Merisi, ele aprovou e pediu que eu inserisse uma dança

na cena e alargasse os círculos que fazia com velas, sal e ervas, pois o ritual tinha que

envolver o público, que deveria ficar fora do círculo das velas e dentro dos círculos de sal e do

de ervas. Pediu, também, uma canção de despedida e que eu dominasse totalmente a cena,

pois ela seria entrecortada por várias outras e não poderia perder-se ou diluir-se dentro delas.

Os ensaios do espetáculo começaram e o espetáculo foi sendo estruturado: Arlecchino

(sem a máscara de couro) e o Bufão tinham cenas que serviam como base evolutiva do

espetáculo, enquanto que os outros personagens intervinham contando e vivendo passagens da

História.

O Bufão estava em cena desde o início do espetáculo, dormindo com um maço de

ervas em uma das mãos (alecrim, arruda e louro) e na outra uma vela. Na peça, ele era um

personagem que transcendia ao tempo real, vendo toda a evolução do Homem e tentando,

através de rituais, protegê-lo dos próprios atos e ensinando-o a ser mais “humano” – uma

espécie de sábio viajante dos tempos, perdido na loucura da humanidade.

O espetáculo começava com o “filósofo” arlecchinesco, em meio a crânios, ossos de

animais, carcaças, pedaços de antenas, balanças de ferro e um barril. O filósofo comentava e

refletia sobre os caminhos da Humanidade. Em um determinado momento, o Bufão acordava-

se com uma oração e depois uma canção, dava um “passe/benção” com ervas no

palco/mundo. Então, fazia um brinde à divisão das trevas da luz e, usando a vela, cuspia fogo.

Colocava a vela no centro do palco, acendia outras velas [uma para cada espécie da evolução

do homem (Australopitecos, Parantropos, Neandertal, Homo Sapiens)] e as distribuía pelo

37 Ver fragmentos do texto do Bufão Murcia no espetáculo “Arlecchino e la Valle dell’Omo”, em ANEXO B e publicidade do espetáculo em ANEXO G – evento do dia 26 de junho/2008.

117

palco, desenhando um círculo que passava diante dos pés do público, chegando até quase o

fundo do palco, sem abranger Arlecchino e os dois Zanni.

Toda a ação era acompanhada por um texto, com muitas pausas para que

acontecessem as outras cenas. Após o círculo de velas pronto, o Bufão retornava a ação

urinando sal em um vaso. Ele utilizava este sal para fazer um círculo ao redor da vela central

e, depois, um círculo maior que passava pelo lado de fora do círculo feito com as velas e por

trás do público, mas sem abranger Arlecchino e os Zanni.

Posterior a uma série de intervenções, com uma vasilha cheia de água, pegava as

ervas, tirava algumas folhas, jogava na água, mexia como se visse imagens do passado e do

futuro ali dentro. Permanecia vendo as imagens, enquanto aconteciam outras cenas, até que

reiniciava a ação com uma dança “xamânica” das ervas, ao redor do público, seguindo o

círculo de sal e falando em italiano macarrônico38.

Em seguida ao ritual com as ervas, o Bufão se dirigia ao fundo da sala e como se

olhasse a Terra de longe, cantava a imagem que via (trechos da música Asa Branca, de Luiz

Gonzaga, traduzida para uma linguagem bufonesca macarrônica, misturando português,

italiano e dialetos itálicos). Depois, fazia um discurso e, num gesto de despedida, mas também

de condenação, fazia o número de “engolir fogo” com a vela do centro do círculo e se dirigia

até onde estava Arlecchino, que não o via.

Arlecchino filosofava sobre as pulsões Humanas e os caminhos escolhidos pelos

homens, terminando por dormir. O Bufão acompanhava as reflexões olhando para o

firmamento e, quando Arlecchino dormia, ele se virava para o público começava a bailar e a

pedir aos espectadores os seus cérebros (texto de “Uma Prece” transformado). Após, percebia

que não havia mais nada a fazer naquele resto de mundo, que não adiantaria tentar novamente

e decidia voltar para seu universo – que não se sabia qual – num salto no espaço, desaparecia

(caía num fosso).

Após o desaparecimento do Bufão, o filósofo acordava e recomeçava sua reflexão,

chegando à conclusão de que não havia mais nenhum Homo Sapiens no mundo e, em meio a

38 O modo de falar macarrônico (ou do italiano - maccheronico) é um modo particular de se fazer entender sem falar corretamente a língua na qual se está exprimindo e era uma técnica muito usada pelos cômicos dell’arte que percorriam cidades e países com língua e dialetos diversos. Ainda no teatro, segundo Tinhorão, tornou-se uma linguagem que busca um efeito burlesco, extravagante, cômico, muitas vezes falado ou escrito de forma errada e imprópria, com uma mistura de palavras vulgares, dialetais ou “pseudolatinas”, isto é, flexionadas à maneira do latim. No Brasil, a linguagem macarrônica teve uma versão, segundo Tinhorão, na imprensa carnavalesca de 1880. Para saber mais, ler: “A Imprensa carnavalesca no Brasil. Um panorama da linguagem cômica”, de José Ramos Tinhorão.

118

uma movimentação giratória, entoando uma espécie de “mantra” feito com jogos de palavras

“rovescio, rovesciar / inverso, reverso”, transformava-se em Arlecchino (Claudia Contin),

colocando máscara, chapéu e retirando a capa que escondia a casaca de Arlecchino.

Transformado, Arlecchino se refugiava dentro do barril e pedia para que as almas ali

presentes voltassem às suas tumbas, porque o espetáculo da humanidade havia terminado.

Durante o espetáculo, as atrizes e professoras da Scuola Sperimentale dell’Attore,

Veronica Risatti e Lucia Zaghet tinham cenas em que representavam e viviam muitos trechos

da evolução da humanidade, muitos como Zanni.

“Arlecchino e la Valle dell’Omo” foi uma bonita experiência, a direção de Ferruccio

Merisi havia criado um caminho do nascimento até a destruição total da humanidade, de

forma poética e intensa – Bufão, Zanni, macacos, Homo Sapiens, poetas, filósofos e

Arlecchino – todos envolvidos na “contação da fábula Humana”.

Foto 11: Verônica Risatti Laboratório individual Atuação: Joice Aglae Data: fevereiro/2009.

Além deste percurso reflexivo sobre a Humanidade, Merisi propiciou a mim,

especialmente, um vislumbre de como Bufão e Máscaras dell’Arte conviviam como

companheiros de palco e, além disso, proporcionou-me a compreensão de como o DNA

Imaginal presente no Bufão proliferou-se e propagou-se nas Máscaras da commedia dell’arte

Italiana. Vendo e vivendo as Máscaras dell’Arte e o Bufão no mesmo espaço físico e artístico

(palco e cena), foi possível compreender e identificar características que se repetiam nas

máscaras do Bufão, Zanni e Arlecchino, como uma repetição/renovação.

119

3.3. UNIVERSOS CONECTIVOS: O BUFÃO; O ZANNI E ...

“Os bufões dominam incontestavelmente os territórios da licença, da obscenidade,

da contravenção, do travestimento físico bestial. Quem é, então, esta figura diferente, portador de uma bagagem técnica específica, que goza de uma especial imunidade da terra dos confins? Quem são estes personagens ambíguos ao limite entre a desordem e a norma, entre o sacro e o profano, entre o inferno e o paraíso? Trata-se do progenitor do cômico profissional, ou de uma figura autônoma que continua presente paralelamente aos comicos profissionais?” (VIANELLO, 2005, p.49) 39

A ligação entre os bufões e os comicos dell’arte aconteceram de várias maneiras e os

instintos que regem os bufões passaram a fazer parte e a reger, também, as Máscaras dos

servos da commedia dell’arte.

Em “ I Fratelli Buffoni”, Molinari faz observações sobre a ligação de alguns bufões e a

Máscara de Arlecchino, mostrando que o desdobramento do Bufão em Zanni e, daí, para os

outros servos da commedia dell’arte, não se deu somente pelas vias ritualísticas e

carnavalescas, aconteceu, ainda, através dos próprios atores, de uma via, também,

mercadológica. Muitos dos melhores atores que adotaram a máscara de Arlecchino e Capitano

faziam, anteriormente ou paralelamente, o Bufão ou adotavam o Jogo Buffonesco como

estratégia para viver.

Tristano Martinelli fazia, certamente, o bufão, pois aproveitava de todas as ocasiões para fazer o próximo rir, sobretudo se este próximo fosse rei e duques. Não esperava subir em cena - mas não sei até que ponto houve confusão nos papéis: as suas cartas bufonescas não eram sempre arlequinescas, no sentido que nem sempre continham quiprocó, grandes piadas ou espirituosidades e, sobretudo, aquela demonstração de estupidez que deveria ser própria do segundo Zanni. Além de tudo, devia se tratar de um estranho Arlecchino, irônico, agressivo, capaz de temperar o espírito com qualquer absurdo vagamente metafísico. De qualquer maneira, se fazia o bufão, não estava, certamente, disposto a renunciar a ser homem: a máscara do Arlecchino servia para continuar a interpretação fora de cena, mas, antes de tudo, para dar a medida exata para não correr muitos riscos a sua arrogância natural. Em suma, fazer o bufão não é uma humilhação, mas uma defesa, ou melhor, uma arma, um truque que lhe permite tratar de igual para igual com os príncipes da terra e, também, um pouco com o rei do céu [...] (MOLINARI, 1985, p.110).40

39 Tradução da autora: I buffoni dominano incontrastati i territori della licenza, dell’oscenità, della contraffazione, del travestimento físico e bestiale. Chi è, dunque questa figura diversa, depositaria di uno specifico bagaglio tecnico, che gode di una speciale immunità da terra di confine? Chi sono questi personaggi ambigui al limite tra il disordine e la norma, tra il sacro e il profano, tra l’inferno e il paradiso? Si tratta del progenitore del comico professionista, oppure di una figura autonoma che continua ad essere presente parallelamente ai comici di mestiere? 40 Tradução da autora: Tristano Martinelli certamente faceva il buffone poiché approfittava di tutte le ocasioni per far ridere il prossimo, soprattutto se questo prossimo era costituito da re e duchi. Non aspettava di salire in scena, ma non so fino a che punto ci fosse confusione di ruoli: le sue lettere buffonesche non sono sempre arlecchinesche, nel senso che non sempre contengono quiproquo, battute grosse o grossolane e soprattutto quell’esibizione di stupidità che dovrebbe essere propria del secondo Zanni. Altrimenti doveva trattarsi di uno strano Arlecchino, ironico e aggressivo, capace di condire il suo spirito con qualche assurdo vagamente metafisico. Comunque, se faceva il buffone non era certamente disposto a rinunciare a essere uomo: la

120

Chamo a atenção para o fato que, quando Molinari afirma que Tristano Martinelli

“fazia, certamente, o bufão, pois aproveitava de todas as ocasiões para fazer o próximo rir,

sobretudo se este próximo fosse rei e duques”, ele está referindo-se a uma técnica que era

própria do bufão e que requeria uma sagacidade muito grande, a qual somente um bufão

poderia ter. Dessa forma, ele não está afirmando que Tristano Martinelli, conhecido como

Arlecchino, era um bufão, quando ele diz “fazia o Bufão”, entende-se que Molinari está

fazendo referência ao Jogo Bufonesco.

Segundo Molinari, fazer o jogo bufonesco possibilitava ao ator um jogo muito mais

ágil e astuto em relação ao poder e, certamente, era este jogo que possibilitava a sobrevivência

das companhias e dos atores. O Bufão sempre inverte o poder, ele toma conta da ação, pois

pode “tratar de igual para igual com os príncipes da terra”, agindo num espaço e no outro,

transgredindo aquele que o observa e nunca se colocando como alvo do jogo. Ele até pode

fazer um discurso dirigindo-se a si próprio, levantando questionamentos sobre a própria

conduta e se “autopunindo” por alguma ação, mas na verdade as sua palavras são direcionadas

a segundos e terceiros. Ele coloca-se como um espelho e faz questões sobre si mesmo, para

que estas cheguem aos verdadeiros receptores. Esta sagacidade e subversão, própria do Jogo

do Bufão, em certo grau, se propagou pelas Máscaras da commedia dell’arte.

Inicialmente, nos cortejos dionisíacos, na comédia atellana e na commedia dell’arte

feita nas praças e ruas da Idade Média, todos os servos, zanni e bufões eram esfomeados e

subversivos. Quando o Bufão e o Zanni saíram dos rituais e misturaram- -se aos

carnavalescos, eles sofreram adaptações (ou desterritorialização) de comportamento, de

linguagem e características físicas. Posteriormente, no decorrer do movimento teatral,

desenvolvimento e refinamento das máscaras, as máscaras dos servos foram desenvolvendo

características individuais, uns mais gentis, outros mais estúpidos, uns trabalhadores, outros

nem tanto e assim outros imaginários concretizaram-se em Máscaras, mas a fome continuou

como uma das características principal desta classe servil, mesmo de modo refinado.

A herança passada do Bufão para os servos da commedia dell’arte, pode ter

acontecido, como observa Molinari e Tessari, através dos próprios atores e do jogo bufonesco,

mas também aconteceu através da intrínseca ligação xamânica destas máscaras41. Como

maschera di Arlecchino gli serviva per continuare la recita fuori scena, ma prima di tutto per velare di quel tanto che bastava, per non correre troppi rischi, la sua naturale arroganza. Fare il buffone insomma non é un’umiliazione, ma una difesa, o addirittura un’arma, un trucco che gli permette di fatto di trattare da pari a pari con i principi della terra, e un poco anche con il re del cielo [...]. 41 Para saber mais, ler: Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia Dell’Arte, de Allardyce Nicoll; Storia del Teatro, de Cesare Molinari; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti; LO SCAFFALE RACOLTA DE TEATRO. Il Paese di Pulcinella. Miti, Magie, Misteri e Morte.”;

121

comentado anteriormente, as Máscaras possuem estreita ligação com o ritual, com o divino e

com a natureza e relacionam-se com deuses do céu ou da terra. Este vínculo é muito

perceptível no Bufão e estende-se às Máscaras da commedia dell’arte, principalmente na do

Zanni, pois é uma das primeiras máscaras dell’arte da categoria dos servos e, justamente por

estar em suas origens, herdou muito do Jogo do Bufão.

A Máscara do Zanni foi o primeiro imaginário e atitude lúdica que se concretizou em

forma de máscara objeto e máscara física e, também, durante muito tempo, foi a máscara mais

divulgada e conhecida.

Das muitas expressões usadas entre o fim de quinhentos e o final de seiscentos para designar aquilo que hoje chamamos de commedia dell’arte, a mais próxima à comédia das máscaras e talvez a mais antiga, é “commedia degli Zanni”. Zanni, como veremos, era uma das máscaras da commedia, cujo nome passou a designar toda uma classe de personagens. (MOLINARI, 1985, p.13).42

É importante ressaltar que Molinari usa “para designar aquilo que hoje chamamos de

commedia dell’arte”, cooperando para a compreensão de que a commedia dell’arte não é um

estilo cristalizado, uma vez que foi sofrendo modificações e já foi conhecida por muitos

nomes, inclusive, com o nome de sua principal máscara - na época em que esta era assim

considerada. Posterior ao Zanni, veio Arlecchino, Brighella, Pulcinella e todos os outros

servos da commedia dell’arte:

Certamente, hoje o Zanni não é muito conhecido do grande público, porque não entrou no folclore dos nossos carnavais, mas é muito importante, porque é uma das máscaras mais antigas da commedia dell’arte, juntamente com a do Capitano. É a figura base quinhentista do “carregador”, do “trabalhador-braçal”, da qual, mais tarde, derivam servos mais famosos como Arlecchino e Brighella (CONTIN, 1999, p.44).43

O Zanni é o “[...] carro de frente de um arquétipo-popular-sertanejo que cada um de nós, no fundo, sabe ainda distinguir” (CONTIN, 1999, p.44) 44. Ele herdou muito do bufão, porém, é menos selvático em sua imagem e, até mesmo, menos grotesco. Também, é menos

“Pulcinella. La maschera nella tradizione teatrale, de Carmine Coppola; Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesch, de Claudia e Ferruccio Merisi.7 42 Tradução da autora: Tra le tante espressioni usate fra la fine del Cinquecento e la fine del Seicento per designare ciò che noi oggi usiamo chiamare la commedia dell’arte, la più vicina a commedia delle maschere, e forse la più antica, é “commedia degli Zanni”. Zanni era, come vedremo, una delle maschere della commedia, il cui nome passa poi a designare un’intera categoria di personaggi. 43 Tradução da autora: Certo oggi lo Zanni non è molto conosciuto al grande pubblico, perché non è entrato nel folclore dei nostri carnevali, ma è molto importante perché è una delle maschere più antiche assieme ai Capitani della Commedia dell'Arte. E' la figura base cinquecentesca del "servitore-facchino", dell’"uomo-di-fatica", da cui più tardi deriveranno servitori più famosi, come Arlecchino e Brighella. 44 Tradução da autora: [...] fa capo ad un archetipo-popolare-contadino che ognuno di noi - in fondo - sa ancora individuare.

122

agressivo ou lascivo em direção ao público, seu principal “foco” é saciar sua fome descomunal e se livrar das bastonadas dos patrões. Quando sobe ao palco, o seu alvo está na trama e na cena. Trabalhador braçal, com grande afinidade com os trabalhos ligados a terra, ele está sempre envolvido em tramas para saciar sua fome milenar. Segundo Claudia Contin (1999, p.45):

Zanni é uma máscara de origem bergamasca [...] A ocupação típica do Zanni é aquela dos roceiros, habituados a trabalhos pesados: cortar lenha, cavar e colher nabos da terra [...] Zanni tem as mãos cheias de calos enormes, grandes e duros [...] Sendo um tipo do interior, certamente Zanni não é um estúpido, mas também não é muito culto [...]Uma outra característica do Zanni é a sua pobreza crônica: ele é o ponto mais baixo da escala social proposta aos Caracteres da Commedia dell’Arte. Esta pobreza se manifesta, não somente nas roupas modestas e rasgadas, mas, sobretudo, no apetite do Zanni. A voracidade do Zanni é famosa: ele possui uma enorme fome, que não é somente uma fome biológica, mas uma fome atávica, profunda, de “gerações”, uma fome que provém da carência alimentar dos seus antepassados, uma fome que (pode-se dizer) lhe foi passada com o leite materno, uma fome “cromossômica”... e, consequentemente, insaciável.45

O Zanni não tem uma fome somente biológica é, também, cromossônica e instintiva,

passada através do DNA imaginal e potencializada nos banquetes carnavalescos. Mas

certamente toda essa carga, cromossômica e imaginal, passa pelo biológico, pois se reaviva

em um corpo. Quando este DNA imaginal se dinamiza em imaginação, os músculos revivem

esta fome e o corpo a sente biologicamente, instintivamente, sensivelmente.

Para esta tese, a questão biológica dos sistemas formadores do corpo humano e a

comoção dos afetos através da musculatura e dos fluidos, como foi visto na preparação da

técnica do Bufão, é muito importante, uma vez que é, a partir da dinamização deste corpo e

espaço abstrato, do sistema de imaginação, que o Bufão se constrói. Assim, para entender o

universo carnavalesco (rabelaisiano, pantagruelano, bertoldiano) é preciso que o ator tenha

muita consciência da parte biológica de seu corpo, para que possa controlá-lo e explorá-lo.

As Máscaras são originárias de um imaginário, vindouras de um Fundo Comum dos

Sonhos, portadoras de genes de um a priori onírico inerente à condição humana. Este lugar

impalpável, mas sensível e, daí então, concreto, é também um elo xamânico entre Bufão,

Zanni e as outras máscaras dell’arte. Este espaço sem fronteiras temporais ou espaciais, este

45 Tradução da autora: “Zanni è una maschera di origine bergamasca [...] Il mestiere originario di Zanni è quello del contadino, abituato a lavori pesanti: a spaccare la legna, a scavare e a zappare, a cavare le rape dalla terra. [...] Zanni ha le mani piene di calli esagerati, grossi e duri [...] Nel mostrare questi calli da lavoro, Zanni è molto orgoglioso [...] Essendo un tipo campagnolo, Zanni non è certamente uno stupido, ma non è neppure molto colto: [...] Un'altra caratteristica dello Zanni è la sua povertà cronica: egli è al punto più basso della scala sociale proposta dai Caratteri della Commedia dell'Arte. Questa povertà si manifesta non solo nel vestiario dimesso e stracciato, ma anche e soprattutto nell'appetito dello Zanni. La voracità di Zanni è famosa: egli possiede una fame enorme, che non è solo una fame biologica, bensì una fame atavica, profonda, "generazionale", una fame che gli arriva dalle carenze alimentari dei suoi stessi antenati, una fame che - potremmo dire - gli è stata trasmessa col latte materno, una fame "cromosomica"... e dunque insaziabile”.

123

lugar onde tudo se encontra, somente alguém que possui em si as mesmas características,

alguns genes em comum com este espaço e, consequentemente, em constante dinâmica com o

mesmo, é capaz de compreender e inteirar-se com o funcionamento dele, da terra, dele com a

terra, com o universo, com o cosmos, com o Homem e com tudo aquilo que faz parte do

Homem, com o seu lado místico, mítico e selvagem e sua conexão com os animais, a

vegetação, o sol e a lua.

Nas mais variadas tradições, as feiticeiras, bruxos, pajés, curandeiros, tricksters e

filhos de santos possuem uma relação com o tempo muito especial, viajam pelo passado,

presente e futuro como se não houvesse barreiras temporais e são sempre ligados à natureza e

a este espaço chamado, pela maioria das crenças religiosas, de “espiritual”. Como já

mencionado, não interessa a esta pesquisa entrar em questões que dizem respeito à religião, o

importante é a relação que estes “xamãs” possuem com os universos concreto e sensível. O

xamã é o elo entre o mundo da realidade e o espaço sensível, imaterial e energético. Estes dois

mundos também são tocados pelo ator cada vez que ele se deixa habitar pelos dados sensíveis

que fazem parte de sua arte/profissão. No ator que faz uso da máscara, esta integração de

dinâmicas é ainda maior, por tudo o que a máscara significa dentro do teatro46, toda esta

conexão é potencializada ainda mais quando o ator que encarna as máscaras do Bufão, do

Zanni, Pulcinella, Capitano, Arlecchino e outras máscaras dell’arte invoca delas este lado

xamânico, abrindo os espaços conectivos entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético

Comum.

O Bufão e o Zanni, pela própria trajetória destas máscaras, as quais já foram

comentadas, fazem parte desta categoria de máscaras xamãs, desta integração dos mundos e

46 Para saber mais, ler: Tracce di teatro sciamanico tra Africa e Mediterraneo. Le maschere e la danza come contatto con stati di coscienza ‘divers’ In Progetto Sciamano 2005, de Giovanni Azzaroni; Pulcinella, de Anton Giulio Bragalia; O Teatro Grego – Origem e Evolução, de Junito de Souza Brandão; Les jeux et les hommes – Le masque et le vertige , de Roger Callois ; As máscaras de Deus – Mitologias Primitivas, de Joseph Campbell; Materiali e Riti per la preparazione e l’uso delle Maschere. Storie tra Commedia dell’Arte e Maschere dell mondo In Progetto Sciamano 2005, de Claudia Contin; Pulcinella. La maschera nella tradizione teatrale, de Carmine Coppola. L’Uomo e la Maschera. In Progetto Sciamano 2005!, de Alfonso Renzo Degano; La maschera più piccola del mondo. Aspetti psicologici della clownerie, de Alessandra Farneti; .Le corps Poétique, de Jacques Lecoq; LO SCAFFALE RACOLTA DE TEATRO. Il Paese di Pulcinella. Miti, Magie, Misteri e Morte. “L’ombre de Dionysos. Contribution a une sociologie de l’orgie , de Michel Maffesoli; Pulcinella. Il filosofo che fu chiamato pazzo, de Romeo de Maio; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni’, de Alessandra Mignatti; Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia Dell’Arte, de Allardyce Niccol; La performance dei Mamuthones: tra rito e teatro. Ricerche e documentazione su una delle più misteriosa tradizione sarde In Progetto Sciamano 2005, de Paola Pala; La danza e l’estasi: il corpo sciamanico In Progetto Sciamano 20, de Eugenia Casini Ropa; Arte della Maschera nella Commedia dell’Art , de Donato Sartori e BrunoLanata (org); Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra, de Roberto Tessari; Zani Mercenario della Piazza Europe, Anna Maria Testaverde (org.); Dal rito al teatro, de Victor Turner; L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo, de Daniele Vianello.

124

compreensão das transformações da Terra, do cosmos e do Homem, de modo intenso. Muitos

foram os Bufões e os Zanni perseguidos pela igreja e acusados pela inquisição. Um exemplo

muito conhecido, e já comentado anteriormente, cujo destino foi a fogueira da inquisição, é

Domenico Scandella, o Menocchio - imortalizado por Carlo Ginzburg no livro “Il formaggio

e i vermi”. Ao longo do livro, Ginzburg refere-se a Menocchio como uma espécie de Bufão,

por toda sua história, modo de enfrentar a Igreja, de falar a verdade através de metáforas e de

expor sua visão de mundo sem receio. Menocchio era um simplório morador do interior da

região de Friuli, norte da Itália, contudo, um visionário, alguém com uma sabedoria telúrica,

com uma compreensão enorme e profunda das metamorfoses do mundo, por viver ligado às

transformações da terra, das plantações, da “química” realizada na cozinha para preparar

alimentos e por saber conhecer o ser Humano. Para Ginzburg, Domenico Scandella era um

sertanejo que possuía uma inteligência instintiva e emocional, própria de um Bufão.

Mas há também quem o coloca na categoria de Zanni, como Ambrosio Artoni no seu

artigo “Le radici medievale e folcloriche della maschera zannesca. Percorsi testuali e

iconografici” integrante do livro “Zanni Mercenario della Piazza Europea”, de organização

de Testaverde. O mesmo aconte no livro “La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni”,

no qual Alessandra Mignatti cita Menocchio usando-o como exemplo da relação que o Zanni

tem com a terra, com a lua, com a natureza do subsolo, com os vermes e toda a variação de

vegetação que cresce sob a terra. Para Mignatti, Menocchio era um Zanni, um homem

sertanejo curioso da vida e do mundo, não tinha uma aparência grotesca, nem era lascivo no

discurso como o Bufão, nas suas palavras, percebia-se mais uma curiosidade que um

enfrentamento, uma simplicidade, não necessariamente agressiva no tratamento com as

pessoas - um padre, um médico e uma pessoa comum, eram tratados da mesma forma - e,

principalmente, Menocchio não se travestia, e essa ausência do travestimento bestial, penso

que possa ser a principal razão pela qual Mignatti o vê como Zanni e não como Bufão. O que

esta pesquisatriz acredita, a partir das leituras e reflexões, é que Menocchio foi, então, um

Zanni da realidade objetiva que ajuda a fixar o arquétipo e o mito da “máscara zannesca”.

Verdadeiramente, para esta tese, tendo em vista a questão do travestimento bestial,

Menocchio é considerado um Zanni, mas a sua inteligência e ação de enfrentar a igreja –

poder institucional maior na época em que viveu - é típica de um Bufão, tanto é, que esta o

condenou à fogueira da inquisição. A única resolução a que se pode chegar é que talvez a

observação de Molinari sobre Tristano Martinelli sirva, também, para o caso de Menocchio:

quem sabe ele também seria “um Bufão que não queria abrir mão da forma humana, da

125

aparência do homem” e, para tanto, permaneceu como humano, mas da forma mais próxima

possível da sua natureza, como um verdadeiro Zanni.

Para esta tese, o Zanni é como se fosse uma metamorfose a mais do Sátiro em direção

à forma humana: de Dionísio ao Sátiro, ao Bufão, ao Uomo Selvático, ao Zanni e daí para as

outras máscaras dell’arte. Talvez este pensamento seja reflexo de uma compreensão do

comentário de Molinari - aquele em que afirma que Tristano Martinelle “se fazia o bufão,

certamente não estava disposto a renunciar de ser homem” – o qual acabou sendo de grande

importância para os encaminhamentos desta tese, pois reafirma a concepção imaginativa de

que os bufões eram seres deformados, animalescos e bestiais e que os Zanni eram grotescos,

das máscaras dell’arte, a mais próxima dos bufões, mas mantinham a forma humana, mesmo

que com algumas deformações. A aproximação de Menocchio, tanto do Bufão como do

Zanni, fez com que a imagem trabalhasse em um caminho estético evolutivo. Mesmo que se

possam encontrar iconografias de Zanni deformados e grotescos47, ainda assim, eles estão

muito mais próximos da forma humana que as iconografias de Bufões48. Apesar de terem a

forma humana, os Zanni continuam tendo a relação com o divino, com o mítico, com o

místico e com todo este universo trazido pelo Bufão das suas ancestralidades, fazendo dos

aspectos xamânico, grotesco e carnavalesco seus principais pontos conectivos.

São muitas as relações e os caminhos de interligação entre o Bufão e o Zanni. Um

deles é a exploração do próprio nome da máscara “Zanni”, pois esse nome traz consigo uma

série de ritos sagrados e profanos e do submundo da terra que se conectam íntima e

intensamente ao universo do Bufão.

Alessandra Mignatti, em La Maschera e il viaggio, faz um estudo aprofundado e

detalhado das várias nascentes do nome Zanni, o qual encontra eco em muitas manifestações

populares da Itália, antes mesmo da antiguidade pré Idade Média. Sabe- -se que o Zanni,

como Máscara e imaginário, é nato em Bergamo. Esta máscara é um arquétipo dos

interioranos bergamascos, que desciam das montanhas para trabalharem nas cidades como

carregadores, e este êxodo é um fato verídico, pois existem muitos documentos que

confirmam a informação migratória daquela região. Mas o Zanni, como Máscara, é muito

mais complexo que uma sátira de uma situação econômica. Segundo Anna Maria Testaverde

47 Pode-se citar como exemplo as iconografias de Jacques Callot, na Bibliothèque National de Paris. Algumas delas podem ser vistas nos livros: La Commedia dell’Arte au XVI siècle, en 1601... et en 1981. Le Recueil Fossard. Compositions de Rhétorique (1981) com apresentação de Pierre-Louis Duchartre; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni (2007) de Alessandra Mignatti e Zani Mercenario della Piazza Europea (2003) com a organização de Anna Maria Testaverde. 48 Pode-se citar como exemplo as iconografias que estão no livro Serge Martin (2003): “ Le Fou Roi des théâtres”.

126

(2003, p.11), a Máscara zannesca e suas características são interpretadas como uma

“ rifunzionalizzazione in proiezione rappresentativa”, isto é, uma “refuncionalização em

projeção representativa” ao interno de um processo que sinaliza a passagem do ritual ao

teatro.

Alessandra Mignatti (2007) enumera muitas manifestações populares italianas

relacionadas ao Zanni49, algumas trazem esta relação de modo evidente e, em outras, de modo

indireto e até mesmo quase invisível no contexto atual.

A origem do nome Zanni sempre despertou muita curiosidade e um dos estudos com

maior repercussão foi o de Riccoboni (1730)50, o qual faz uma coligação do nome Zanni com

a palavra latina Sanniones - Sanniones ... Sannio ... Zanni. Segundo Riccoboni a palavra

Sannione, é sinônimo de “Bufão”, e estes Sanniones estavam presentes tanto na comédia

Attelana quanto entre os Mimos da Antiguidade (Sannio). Sandra Chacra (1983), no seu

estudo sobre a improvisação, também cita as fábulas Atellanas como possível nicho das

Máscaras dell’arte. Porém, Luigi Riccoboni faz um estudo mais detalhado deste possível

entrelaçamento e seu percurso.

Muitos outros estudos, como o da própria Alessandra Mignatti, afirmam que Zanni é

uma corruptela dialetal de Giovanni (Giovanni – Gianni – Zanni). Carlo Dati51, nos seus

estudos, traz um dado no qual afirma que na Espanha, em léxico antigo, os bufões das farsas

eram chamados de Giovanni, informação que, para esta pesquisa, é muito importante, porque

re-encaminha o pensamento para o vínculo entre Bufão e Zanni.

Como se pode perceber, a Máscara do Zanni contém muitos segredos e labirintos. Essa

figura de um servo vestido em trajes brancos, espada na mão e grande nariz adunco, de modos

rústicos, rudes, em alguns momentos, até mesmo animalescos, pouco civilizados, mas

também ingênuo e ignorante, no sentido de ignorar a vida citadina, tem conexões com a

história da humanidade desde a Antiguidade – considerando os rituais a Dionísio e todo o

percurso já mencionado.

A ligação do Zani com o universo dionisíaco, bufonesco e subterrâneo ou demoníaco

(aos olhos das religiões cristãs) pode ser vista de modo muito interessante e cheio de

entrelaçamentos e desdobramentos. Beccaria (1995) faz um grande panorama das transições 49 Por causa dos vários dialetos italianos, pode-se encontrar, também, Zani, Zan, Zane, Zoán, Cian, Gian, Duan, Juvanne/Zuanne. 50 Este livro poce ser consultado na Bibliothèque National de Paris ou na Biblioteca Nazionale Centrale de Firenze. 51 Carlo Roberto Dati trabalhou no Antico Archivio Storico della Accademia della Crusca (Firenze-IT) durante muitos anos, nesta função realizou uma importante compilação de documentos e cartas de descrições contextuais históricas, intitulada “Smarrito” (1667), a qual pode ser consultada na Collezione Magliabechiana da Biblioteca Nazionale Centrale de Firenze.

127

dos nomes e palavras perdidas ou transformadas pelo tempo ao longo do percurso da

humanidade, buscando principalmente aqueles cujos significados originais foram sendo

esquecidos ou omitidos por imposições clericais.

Mignatti (2007) propõe ainda este caminho da busca por explicações e coligações em

tempos remotos e línguas diversas, fazendo um passeio em outros idiomas, dando a

importante percepção de que o nome Giovanni é popular e, em muitas línguas, é o nome mais

comum entre as pessoas. Não é preciso ir tão longe para se certificar disso, basta observar na

cultura brasileira: Giovanni é João.

Continuando nas pesquisas de Mignatti, em alemão, entre outras etimologias,

Giovanni é Hans e Hans pode ser um modo de dizer “indivíduo, pessoa, alguém” (um “João

qualquer”, um “Fulano”). Quando o nome Hans vem coligado a um outro ou a um adjetivo,

tornando-se composto, pode ganhar outros significados. Desde o séc.XV, nas terças-feiras

gordas de carnaval, na Alemanha, o personagem Hans aparece fazendo par com Gütel, e os

dois formam o casal de bufões das festas carnavalescas. Os irmãos Grimm, em seus contos,

utilizam muitas composições deste nome: Hans Hagel – Zandiluvio; na versão francesa deste

mesmo nome (Giovanni - Jean – Jan), Janhagel é uma espécie de diabo que está sempre

procurando algo para beber, mas também é usado para falar de alguém que não pensa ou que

é um pouco louco. Este mesmo nome faz referência à tempestade, ao granizo e à saraivada, o

que tem muito a ver com a natureza e os rituais de fertilidade dos campos. Outro nome

alemão é Hans-narr-wurst, cujo significado é de loucura e de louco. Ou ainda, Hanswurst,

personagem que corre pelas ruas durante o carnaval batendo uma salsicha, tem uma conotação

vulgar e também pode ser coonhecido como Hanswort – Zansalsiccio. Existe ainda Jan Posset

ou Johan Bouset, que é usado para indicar uma pessoa qualquer, em alguns casos se refere,

especificamente, a um “corno”, por outro lado, “bouse”, em francês, é excremento bovino, o

que, por conseguinte, dá outro significado ao nome. Jean-fesse / Hans Arsch, nome com

referências vulgares, pois fesse é nádega em francês, mas aqui é usado para designar a parte

que fica muito próxima às nádegas, o ânus. Sem falar em Hans Ulrich, que é a

“personificação” do vômito.

Mignatti traz tantas nominações de personagens com cunho vulgar que utilizam o

nome Hans, Jean, Johan, João, Giovanni, Zanni ou Zan, que não caberia a esta tese enumerá-

las, mas se pode encontrá-las nos estudos de Mignatti, Beccaria, Tiraboschi, Testaverde, entre

outros.

Entre os exemplos realizados por Mignatti, vale ressaltar uma relação muito peculiar e

que, posteriormente, será muito importante. Mignatti vai buscar no Deutshes Wörterbuch,

128

importante dicionário diacrônico iniciado pelos irmãos Grimm (1877), onde se encontra Hans

Knochenreich, uma espécie de demônio, relativo à morte, ou ainda na Nave dei folli, de Brant,

Hans é alguém que ajusta a onda, de acordo com a idade e a força de quem deve arrastar,

parecendo ser a “própria” Morte. Aproveita-se esta ligação com a loucura para citar

rapidamente outra cadeia relacional: Zanni – Hans - Nave dei folli - loucos – Bufões – Sátiros

– Dionísio – mundo subterrâneo – demônios – inferno. Como dito, as relações do Bufão e do

Zanni com o universo “infernal” são bastante estreitas, e entrelaçam-se através de vários

caminhos.

O nome Giovanni, na Itália, sempre foi muito popular, pois foi muito divulgado pelo

cristianismo na figura de San Giovanni, que na forma dialetal bergamasca, transforma-se em

Zanni.

Os compostos com o nome Zanni viraram, inclusive, sobrenomes. No séc. XIII, os

sobrenomes Zambellus, Zambonus, Zambenedetti e outros deste tipo eram muito difusos. A

desconfiança, segundo Mignatti, é de que estes sobrenomes foram sendo fixados pelas

próprias famílias de commicos. Giovanni/Zanni, também na Itália, ganha adjetivos bastante

vulgares ou terríveis e é utilizado para nominar alguém ou alguma coisa por uma

característica específica.

Em torno do nome Zanni, encontram-se muitas curiosidades interessantes, que

auxiliam, em algum grau, a compreender o universo desta Máscara. Em muitas partes da

Itália, o nome Giovanni é dado ao verme que vive na fruta. Algumas regiões como Emilia

Romagna, Toscana, Piemonte e Verona possuem muitos ditos populares52 do tipo “Em São

João, cada cereja tem o seu Joãzinho” e, em algumas regiões, como a do interior de Verona, a

cereja (mora) tem também o sentido de “moça” e Joãzinho pode ser interpretado como o feto

ou o caruncho; todas estas duas possibilidades são interessantes, uma é um ser em formação e

a outra é a maculação da imagem. Estes ditados populares também trazem a recordação de

que, na Itália, a festa de San Giovanni se interliga a antigos rituais, entre eles, os de

fertilidade. Estas festas não acontecem somente na Itália, muitas são as realizadas no Brasil no

período de junho e julho (festas de São João), vindouras de uma tradição antiga de festejos ao

solstício e à fertilidade.

52 Muitos provérbios populares se utilizam desta nominação. Em piemontese “A San Giuvan ogni ciresa a l’a l’so Giuanin”; na campanha veronese “A San Doan ogni mora ga’l so Doanin”.

129

Antônio Tiraboschi53, grande estudioso das tradições orais, principalmente, dos

dialetos italiano, catalogando canções, histórias e superstições e a estudiosa das tradições

dell’arte, Alessandra Mignatti, a qual cita os estudos de Tiraboscchi, trazem a informação de

que em uma parte da região bergamasca, acreditava-se que era exatamente na noite de San

Giovan que os vermes entravam nas frutas, para torná-las não comestíveis. Mas de onde vem

essa crença popular? Como São João se iguala a vermes? Como “San Zanni” se relaciona com

este mundo verminoso?

Para esta tese, este labirinto é muito valioso, pois se coliga com a técnica criada para o

Bufão, a qual busca muitos impulsos no mundo subterrâneo, na terra e nas imagens de

vermes.

Muito interessante, também, é muitas formas dialetais derivadas de Giovanni – Zanni

– Zan – Cian – Gian se relacionam com o mundo verminoso e subterrâneo do Bufão. Por

exemplo, o nome dado à sanguessuga em dialeto ladino-moenese é Zangheta.

Em dialeto genovese, Zänello é o nome dado ao verme da castanha, enquanto que

Zambèl significa situação enganosa. Ainda em genovese, Zanzugol é uma pessoa sem caráter

e “zanella dei fossi” significa cova ou valeta dos mortos, uma conexão interessante para a

Máscara em questão, já que Zanni tem muitos ligames com o mundo dos mortos.

No dialeto de Abruzzo e Molise (Zan = Cian ou Gia), o verme dos legumes se chama

ciambene, enquanto que giammichiellu é o nome do vaga-lume, também uma conexão

interessante, pois mesmo este é um inseto que produz luz. É conveniente ressaltar que São

João Batista, veremos mais tarde, tem uma relação muito estreita com os insetos. Nesta

mesma região, ciambrone é “minchione”, um modo vulgar de nomear o pênis e ciambambele

é o nome dado ao pênis do porco – conexões com a grande fome e com a sexualidade do

Zanni.

Na região toscana, a palavra “zana” é empregada no sentido de brincadeira, chacota,

divertimento, mas também para nomear uma espécie de cesta de forma oval, feita de vime,

que se transforma em berço, uma espécie de moisés, o que também é uma boa versão para o

Zanni, uma vez que, em muitas iconografias, Arlecchino aparece com uma gerla (espécie de

cesto corniforme que se carrega nas costas) cheia de crianças. Em outras pinturas, o próprio

Zanni utiliza a zana para carregar coisas e, como já dito, ele tem a fome sexual exacerbada,

53 Os estudos de Antonio Tiraboschi (1838 – 1883), tais como “L'anno festivo Bergamasco”, “Canti popolari bergamaschi”, “Il gergo dei pastori bergamaschi” , “Vocabolario bergamasco”, “Il Vocabolario dei dialetti bergamaschi antichi e moderni”, “Raccolta dei Proverbi Bergamaschi”, “ Gli usi di Natale e di Pasqua nel bergamasco” e “Fiabe bergamasche” - podem ser consultados no Archivio della cultura di base no Sistema Bibliotecario Urbano, de Bergamo.

130

uma fome carnavalesca, que, consequentemente, tem muito a ver com a fertilidade. Outra

ligação que não se pode esquecer é que, nos cortejos dos Charivari, o cortejo da noite dos

mortos dos carnavais medievais, os Bufões e o próprio Hellequin guiavam uma grande zana

cheia de espíritos de crianças mortas54.

Na região calábria, “zanna” ganha sentido de troça e zammara é o nome de um

instrumento que os Zanni aparecem tocando em muitas iconografias, é uma espécie de flauta

feita de bambu, tradicional das regiões campeiras e com uma melodia “encantatória” – o que

re-encaminha ao poder fascinante das flautas dos Sátiros.

Tiraboscchi, entre as várias utilizações da palavra Zanni e de derivações desta,

encontrou zana como fome ou meretriz e zanàt como esfomeado – estas três derivações se

integram muito bem ao caráter do Zanni. Em suas pesquisas de campo, na região bergamasca,

Tiraboschi também encontrou o nome de “zannóne” para um viajante vagabundo ou, quando

utilizado no feminino, para se referir a uma moça namoradeira e assanhada.

As derivações da palavra Zanni são muitas e variadas (podendo citar, novamente, os

estudos de Tiraboscchi, Mignatti e Beccaria), algumas com relações muito interessantes para

esta pesquisa. Contudo, deixa-se um pouco de lado estas curiosidades e faz-se um salto para a

poesia de Dante Alighieri (1265-1321). Na sua obra mais famosa: a “Divina Comédia”, traz

um personagem muito conhecido, o qual protagoniza o canto XXII do inferno. Nesta

passagem, o diabo Alichino aceita o desafio de Ciampolo que, para se salvar, desafia-o em

uma corrida e o vence. Alichinio, enraivecido, começa uma discussão e, depois, uma briga

corpo a corpo com outro diabo e terminam caindo no lamaçal do inferno. Enquanto os diabos

se debatem no lamaçal sem conseguirem sair dali, Ciampolo fica feliz, pois conseguiu

escapar, mais uma vez, do caldeirão. Mas quem é Ciampolo? Quem é este personagem que

engana o diabo Alichino? Ciampolo é um personagem que vem de outra história, ainda mais

antiga que a “Divina Comédia” e não tão conhecida, mas que Menocchio a guardou na

memória: trata-se da história de dois buffões – Zampolo/Ciampolo e Taiacalze/Tagliacalze.

Zampolo, depois de morto e de ter estado no paraíso, conversado com São Pedro, vai até o

inferno procurar seu amigo, Taiacalze, e o reencontra. Taiacalze, antes do reencontro, para

fugir dos caldeirões da cozinha infernal, faz uso de todas as suas técnicas bufonescas e de

ator, obtendo sucesso nas suas expectativas e escapando dos caldeirões infernais. Ao se

encontrarem no inferno, em frente a Belzebu, os dois dançam, fazem evoluções bufonescas e

54Algumas iconografias dos Charivaris podem ser vistas em: Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesche In Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mon, de Claudia Contin & Ferruccio Merisi. La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni , de Alessandra Mignatti.

131

acabam ganhando, também, a amizade do Demônio. Mais uma vez a imaginação trabalhou

unindo duas histórias distantes, detalhes contados por Menocchio enriqueciam a história do

Bufão ou Zanni em visita ao inferno.

Muitas são as derivações da palavra zanni e muitas são as versões e histórias que

contam as idas e vindas dos servos da commedia dell’arte ao inferno e ao céu. Muitas das

relações de Zanni com os deuses celestiais fazem parte da herança deixada por San Giovanni

e as relações do santo com os vermes e o mundo subterrâneo.

San Giovanni é festejado em junho, a comemoração de seu nascimento coincide, na

Europa, com o dia do solstício de verão - para nós, o solstício de inverno com as festas

juninas (pipoca, pau-de-sebo, balão, fogueira...). Esta ligação do santo com o verão europeu é

muito importante, pois, antigamente, era quando se iniciavam os ciclos de fertilidade. Apesar

da origem católica cristã, San Giovanni tem muitas ligações com crenças populares da Itália

que, por sua vez, possuem fortes relações com os rituais pagãos de fertilidade.

É difícil de desvencilhar São João Batista da imagem do santo católico, mas até

mesmo este santo tem conexões com a Máscara do Zanni. Dentro das figuras santas, São João

Batista foi um mensageiro, um profeta, um visionário - um xamã. Para quem quiser

acompanhar o percurso detalhado de São João Batista, basta se dirigir à Bíblia, no Novo

Testamento, no capítulo dedicado ao “último profeta e primeiro apóstolo”, como São João

Batista é lembrado em muitos rituais católicos, mas para quem deseja ter uma leitura mais

dinâmica e relacional com a máscara do Zanni da vida de San Zeovan, Mignatti (2007) a faz

de forma interessante e incitante.

Na história, São João se exilou no deserto, sofreu tentações, foi posto a prova, um

exemplo perfeito de guerreiro que vive entre o Bem e o Mal, entre as trevas e a luz, sozinho

no deserto como um “Uomo selvaggio”, vestido com peles e vivendo fora dos domínios da

cidade, comia gafanhotos e mel (este comportamento de João Batista também é citado no

texto teatral de Oscar Wilde “Salomé”).

Se pararmos para pensar em uma relação muito especial, o mel é uma substância

muito utilizada em rituais pagãos. E não precisa nem ir até a Europa para lembrar disso, na

própria cultura indígena brasileira, o mel tem propriedades curativas e xamânicas e, no

candomblé e na umbanda, é muito utilizado para atrair boas energias. Já na Europa, na Idade

Média, quando os reis se enraiveciam com os seus bufões, como castigo, estes eram banhados

em mel, depois cobertos de penas e expostos em praça pública para serem linchados pelo

povo, que cuspiam em suas faces, jogavam coisas e os insultavam (WILLEFORD, 2005).

Sem falar que, na Itália, na região das montanhas, principalmente em Piemonte, o urso, cujo

132

alimento é o mel, é um símbolo do carnaval (ARTONI apud TESTAVERDE, 2003). Assim,

mais uma vez, nesta pesquisadora, as informações levam a uma conexão deste San Giovanni

com o carnaval.

O gafanhoto também tem uma forte significação e aumenta a crença em “San Zanni”.

Um inseto que integra as sete pragas do Egito. Imagina a crença que o povo tinha no poder

sobrenatural de um homem que se alimenta de uma praga, de uma força destrutiva, “San

Zanni” a deglutia e digeria, fazia dela seu alimento, isto é, transformava a destruição em vida.

Este processo digestivo é uma inversão de força (ou poder) típica dos bufões e, mais uma vez,

a imaginação trabalha nas conexões subterrâneas.

Mignatti e Tiraboscchi citam, ainda, uma outra ligação de San Giovanni com insetos,

na região de Bérgamo existe uma crença que envolve o santo e as formigas. Esta manifestação

de “entrelaçamento” vai do dia 15 de agosto (ferragosto - é a festa de “assunção de Maria”)

até 29 do mesmo mês – dia do martírio de San Giovanni. São formigas voadoras que, a partir

do dia de ferragosto, começam a se dirigir ao Monte San Giovanni, no Valle Caleppia, para

fazerem seus últimos vôos de invasão da igreja no dia 29, tomando-a por dentro e por fora e

ali morrerem. Não se sabe como esta lenda nasceu, nem porque estas formigas vão até esta

igreja neste período do ano. Há muitos documentos, como notícias de jornais, cartas e livros,

dedicados aos costumes bergamascos que falam dessa lenda55. Para esta pesquisa, esta ligação

de insetos e vermes com “San Zanni” é bastante significativa, por todos os ligames com o

mundo subterrâneo que já foram mencionados, também no estudo e processo da técnica criada

do Bufão e que se estendem em um DNA imaginal ao Zanni.

Outra crença interessante que faz a ligação de Zanni com o mundo subterrâneo, citado

por Mignatti, vem de uma espécie de tratado, de cunho católico, feito no séc. XI por Michele

Psello, no qual este faz uma espécie de apanhado das formas que o Diabo pode se manifestar.

No seu período de estudo, Michele encontra um monge que relata sobre a multiplicação dos

demônios através do próprio sêmen que, caindo por terra, transforma-se em vermes, e estes

mesmos vermes originais também saem nos excrementos. Esta pesquisa sobre as formas que o

demônio pode se apresentar ou tomar, também é realizado por Beccaria (1995) e a forma de

verme, também nos seus estudos, é comum estar ligada ao demônio.

Mais uma vez, os vermes tornam-se equivalentes ao demônio (e a imaginação age

nesta pesquisatriz, ainda mais), e, num pensamento lógico, os insetos gerados destas larvas

55 Alguns destes documentos podem ser lidos no Archivio della cultura di base no Sistema Bibliotecario Urbano, de Bergamo, juntamente com os escritos de Tiraboscchi.

133

devem ser vistos como herdeiros desta carga originária e, outra vez, o Zanni toma esta

igualdade infernal. Lembrando, ainda, que Giovanni é o termo dialetal utilizado para não

dizer o nome do diabo.

Existe outra história, relatada por Mignatti, ligada ao mundo subterrâneo, na qual o

agente é uma árvore de nozes. Esta árvore parece morta durante todo o ano e, de uma hora

para outra, na época das festas juninas, se enche de folhas, flores e depois frutos – o mais

curioso é que o verme da castanha e da noz é chamado de Giovanni, como também o são, os

vermes das outras frutas, conforme os ditados populares citados anteriormente.

Na crença popular bergamasca, as nogueiras são tidas como árvores do diabo, pois é

aquela que, nos rituais de sabá, as feiticeiras dançam em torno, inclusive, aparece no centro de

algumas iconografias encontradas nas paredes das casas de Bergamo, cujas datas são do

séc.XV e possuem como tema, o ritual de feitiçaria e danças macabras56.

Como já foi dito, o período das festas juninas é um período que assumia, na

antiguidade, um significado muito especial, já que era uma temporada de muitos ritos e, na

maioria destes, existia uma forte relação de comunhão entre seres humanos e plantas

(BECCARIA, 1995). Tais rituais e crenças tinham forte influência sobre os moradores das

montanhas, em cujo âmbito, segundo Piero Camporesi (1993), o feijão e a fava tomam uma

dimensão ritualística, eles são grãos ícones da fertilidade. O feijão possui uma forte ligação

com o mundo popular, tanto da festa, quanto da morte. Ele é um dos principais alimentos dos

populares e não só na Itália antiga.

Feijão, comumente, é um alimento popular e, no Brasil, é forte presença entre as

classes mais baixas, trabalhadores rurais ou braçais. Ele é um alimento rico em ferro, o que

fortalece o organismo, e toda esta força é retirado do solo, das profundezas da terra. O Feijão,

na feijoada, conquistou o “senhorio”, é uma comida rústica que acabou conquistando

“estômagos requintados”, ganhou a conotação de festa e a importância de patrimônio cultural

– exemplo de inversão carnavalesca. Na Itália, também, o feijão e o nabo, os dois juntos

simbolizam o órgão genital masculino:

[...] fruto de raiz sem medida, da polpa branca e leitosa, fincada como um falo rico em sêmen, na quente, negra e úmida terra, devia ser semeado de acordo com a liturgia pré-cristã, com o corpo nu e acompanhando a semeadura com preces e

56 As pinturas não trazem nomes específicos para os rituais e danças e nos arquivos bibliotecários da cidade de Bergamo, são citadas apenas como “Danze Macabre” ou “Saba”. Algumas destas pinturas podem ser vistas em: Zani Mercenario della Piazza Europea, organização de Anna Maria Testaverde; L’Arte del Buffone. Maschera e Spettacolo tra Itália e Baviera nel XVI secolo, de Daniele Vianello; La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignatti.

134

fórmulas propícias para que a raiz cresça bonita e grande. Rito de religião telúrica, inferior e genital, coligado magicamente à geração (CAMPORESI, 1993, p. 19). 57

Piero Camporesi é um grande estudioso da cultura popular italiana primitiva e

medieval, principalmente da obra de Giulio Cesare Croce, criador de Bertoldo, um

personagem, ou como ele chama uma máscara grotesca e carnavalesca da mesma época de

Gargantua e Pantagruel. Bertoldo, tanto quanto os personagens de Rabelais, reúne em si os

princípios vital e moral do carnaval. Bertholdo tornou-se tão concreto que atingiu o patamar

de Máscara, trata-se de um Zanni ou de um Bufão, ele está neste mesmo lugar de Menocchio -

entre o Bufão e o Zanni. Porém, Menocchio foi uma pessoa da realidade objetiva que

intensificou o arquétipo do Zanni, enquanto Bertholdo foi mais uma atividade lúdica que

pungiu a realidade objetiva, perpetuando um DNA imaginal. Bertoldo é extremamente ligado

aos rituais telúricos conectados à terra e ao cultivo desta e dos legumes “símbolo da

continuidade fecunda da vida além da morte, em uma civilização ligada à terra”

(CAMPORESI, 1993, p.21) .58

Estes legumes que se nutrem da terra e nutrem o homem de modo visceral e

“espiritual” fazem parte de apenas um dos ligames da relação do Bufão e do Zanni com a terra

e com todo este universo subterrâneo, como também com esta religiosidade telúrica na qual a

vida e a morte do homem conectam-se com a dos animais e plantas.

Este telurismo pode ser visto em iconografias, nas quais o Zanni aparece em danças

macabras de rituais mágicos ou então marcado pela presença da lua, que é um símbolo muito

importante do telurismo, pois com suas fases ela simboliza nascimento e morte em um ciclo

contínuo e tem grande influência na fecundação da terra. Uma das imagens mais estudadas e

que ilustra esta conexão telúrica do Zanni é a xilogravura intitulada “Frota d’um padre, e

d’um servo. Intitolata Zannin da Bologna” que pode ser vista na Biblioteca Alessandrina em

Roma. Trata-se de uma imagem muito simples, mas se estudada cuidadosamente, como o fez

Mignatti, e levando em conta a época e o contexto em que foi criada (séc.XIV), pode-se

perceber nitidamente as características da ligação telúrica do Zanni com o universo: do lado

esquerdo está o patrão com seu campo seco e sobre o patrão, o sol; do outro lado, o Zanni,

57 Tradução da autora: [...] frutto dalla radice smisurata, dalla polpa bianca e lattescente, conficcata come un fallo ricco di seme nella calda, nera e úmida terra, doveva essere seminato secondo la liturgia agraria pre-cristiana a corpo nudo, accompagnando l’interramento con preghiere e formule propiziatorie perché la radice cresce bella e grande. Rito di religione tellurica, inferica e genitale, collegato magicamente alla generazione [...] . 58 Tradução da autora: “Simbolo della continuitá feconda della vita oltre la morte in una civiltá legata alla terra.” .

135

com plantas e sobre ele a lua, com todas as suas fases e entre os dois, no solo, uma planta com

a palavra “inveja” escrita sobre ela.

Para esta tese, é muito interessante a ligação que as religiões telúricas têm com a lua,

um símbolo de fecundidade, mas também de morte e de todo este sistema metamórfico e

dialético de vida e morte, o qual representa através de suas fases que se repetem infinitamente.

Muitas pinturas mostram a ligação entre vida, morte e natureza com o Zanni. Em

Cassiglio, cidade nos domínios de Bergamo59, podem ser vistas muitas pinturas com este

argumento. Por exemplo, nas paredes de uma casa do séc. XVIII, pode-se ver a pintura

intitulada Danza Macabra: um urso, um macaco e outro animal não identificado, o qual

lembra um bode ou um leão ou, para esta tese, um Bufão com seu travestimento bestial, cada

qual ao lado de uma árvore (Seriam nogueiras? É difícil de identificar). No fundo, estão duas

velhas acorrentadas a um esqueleto - a Morte. Ela ferirá com uma flecha um cavaleiro, ao

lado deste está um Zanni, um Brighella, que dança ao som de um alaúde e sem medo da

presença da Morte.

Pinturas similares a esta, com Zanni, Bufão, Morte e animais, são vistas por toda a

cidade de Cassiglio, em casas e igrejas. Mas não se consegue identificar qual dança

ritualística o Zanni destas pinturas está fazendo, se a de San Giovanni, de San Vito, do

Tarantismo ou qualquer outra.

As danças rituais, geralmente, têm como característica o transe, o distanciamento da

realidade, o deixar-se levar para outra dimensão. É por esta característica xamânica que, em

pinturas cujo tema é a commedia dell’arte e danças macabras ou ritualísticas sejam o

argumento, sempre são os Zanni ou outros servos que estão a dançar.

Mas o transe e a Máscara estão presentes em muitas culturas - lembrando que não se

está falando da máscara somente como objeto, mas também de uma máscara física, pois cada

Máscara dell’Arte tem um corpo específico, tal qual o Bufão - mas isso será visto mais

adiante. Um exemplo disso na cultura brasileira é o Candomblé, ritualidade em que as

entidades e orixás possuem uma dança, uma gesticulação, um corpo e uma energia específica.

Neste patamar de corpo Máscara, depois de todas as explicações da ligação do Bufão e do

Zanni com as religiões telúricas e com o carnaval - como visão de mundo – fica mais simples

realizar a conexão do Bufão, do Zanni, da Servetta, enfim das Máscaras dell’Arte com as

Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras.

59 Esta mesma pintura pode ser vista em: La maschera e il viaggio. Sull’origine dello Zanni, de Alessandra Mignati.

136

Retornando um pouco, nesta conexão entre Homem, animal, vegetal, mundo real e

mundo subterrâneo, muitas são as conexões que podem ser feitas entre o Bufão e o Exu –

algumas delas foram mencionadas anteriormente. O Exu, Orixá do submundo, no sentido de

estar sob a terra, pode auxiliar na compreensão desta ligação mítica da máscara com aqueles

que a faziam, primeiro como ritual ou como escolha de vida e, depois, mais tarde, como

profissão, onde mesmo na cena ainda possui uma conexão com o seu lado mítico e místico.

Ainda que, para o ator, seja necessário acioná-lo com veemência.

Dionísio, Exu, Bufão e Zanni possuem conexões com este universo de inversão de

poder, de mundo, de carnaval, todos estão ligados à sobrevivência instintiva, à fertilidade, às

várias fomes, ao subterrâneo e, também, são seres resultantes de uma comunhão entre os

mundos animal, vegetal e humano, seres metamorfoseados e metamorfoseantes. O Brasil não

teve o Uomo Selvaggio ou o Sátiro, mas possui outras representações deste universo telúrico

xamânico, e esta pesquisa escolheu e foi escolhida pela conexão de um DNA imaginal que

atravessa o tempo e as fronteiras territoriais, conectando-se ao Exu. É preciso chamar a

atenção para o fato de que o Exu sofre uma grande rejeição principalmente pela sua relação

com as religiões católicas que realizam sua correspondência, no sincretismo, como o

demônio, porém, mais ainda, como a personificação do mal, pois para o catolicismo ou

cristianismo, essa é a usa imagem. Porém, na técnica do Bufão criada, os corpos são

grotescos, podendo, até mesmo, serem demoníacos, pois adquirem forças nas ligações

telúricas, metamorfoseantes, instintivas e animalescas, mas não relacionadas com um suposto

Mal.

Reafirma-se, então, a posição adquirida para esta pesquisa, pois não se pode deixar de

falar sobre a ligação do Bufão e do Zanni com o universo infernal. Não é somente através da

lua e da conexão com a terra que a Morte relaciona-se com estas Máscaras, ela também se

conecta através da figura do próprio Diabo, como mencionado muitas vezes neste percurso.

Muitas são as histórias que envolvem Zanni e/ou Arlecchino e diabos, são histórias que

contam as aventuras destes Ciampolo, Taliacalze, Arlecchino, Arlequin, Alichino, Hellequin,

Herlequin no mundo infernal.

Como comentado, Zanni e Arlecchino aparecem na literatura de Dante. Também

aparecem em Danças Macabras e em rituais selvagens de fertilidade. Arlecchino/Hellequin

participava da noite dos mortos dos carnavais, guiava os carros-berços dos Charivari e torna-

se uma figura importantíssima dentro destes cortejos. Os cortejos fúnebres carnavalescos

eram eventos comuns nas festas carnavalescas, as quais aconteciam durante todo o ano,

porém, eram mais intensificadas em fevereiro. No decorrer da história, o carnaval foi sendo

137

restrito ao seu período mais intenso – fevereiro. Mas mesmo assim, inconscientemente, as

expectativas carnavalescas e o seu espírito têm início no mês de dezembro, na expectação do

reinício do ano e, com isso, de uma nova vida. O carnaval acaba sendo a “continuação” do

“Ano Novo”, o qual também tem toda uma significação muito interessante. O “Ano Novo” é

o início de um novo ciclo de vida, é uma reinauguração do tempo e renovação da vida (data

que o cristianismo e catolicismo deram uma nova interpretação, através do nascimento de

Jesus). Um ano morre, para nascer um outro. Em Nápole, ainda existe a tradição de, ao som

dos fogos de fim de ano, jogar pela janela velharias, como símbolo de desfazer-se do passado

e promover o recomeço de uma nova vida.

A perspectiva de uma nova vida, em dezembro, dá início ao movimento de instauração

do caos, para depois estabelecer uma nova ordem... crença da Antiguidade. Este movimento

de caos tinha o auge em fevereiro, no carnaval e depois da noite dos mortos, quando a

inversão da ordem era suprema, recomeçava-se o ciclo da organização (quarta-feira de cinzas

e quaresma). Faz parte das tradições antigas acreditar que a ordem só poderia ter o seu

renascimento depois de sua total destruição.

Na evolução deste ciclo de renovação da vida e reorganização do cosmos, em Etrúria

(IT), o Ano Novo era o início das comemorações do Carnaval, de Februus, divindade etrusca,

cujo ritual começava no final de dezembro e finalizava na metade de fevereiro e significava a

purificação dos vivos e o retorno dos mortos. Destas antigas comemorações é que surgiram os

cortejos dos Charivaris, da noite dos mortos no carnaval – os Charivaris também possuíam

vertentes na Alemanha e na França.

Muitas festividades fúnebres traziam a “presença” dos mortos através da utilização de

máscaras. Na região de Bergamo, em Valverde, antigamente, existia a tradição de que, nos

cortejos fúnebres, os familiares travestiam-se com as roupas dos mortos, simbolizando o

próprio defunto ali presente – vida e morte unidas no cortejo. Em alguns cortejos, além das

roupas, os entes também endossavam a máscara mortuária do defunto sublinhando a sua

presença “vida” no seu próprio funeral.

Em alguns lugares, sempre nas redondezas de Bérgamo, esses cortejos repetiam-se na

noite dos mortos do Carnaval, que coincidia com o fim do Tríduo dos Mortos, feito pela igreja

católica, que, ao que tudo indica, tem origem nesta celebração a Februus. Fazia parte desta

celebração, a romaria com velas acesas, o costume era de fazer o cortejo pelas ruas da cidade,

em favor das almas dos mortos, “limpando-a” e iluminando-a para que a vitória sobre os

inimigos acontecesse. Mas está é uma das conexões, o cortejo dos Charivari possui várias

coligações com vários outros rituais dedicados a Marte, a Februus e outros deuses. Mais tarde,

138

a igreja adestrou, catequizou e deu novo nome a este rito, é a “Purificação de Maria”,

comemorada pelo calendário católico no dia 02 de fevereiro. As conexões rizomáticas dos

rituais pagãos e católicos esparramam-se como ervas daninhas e o tapete gramíneo é imenso...

Conforme visto, o Zanni possui muitas conexões com as festas Juninas, e ainda

incorpora o Carnaval e a Morte, é considerado o xamã das plantas e animais, um representante

do mundo subterrâneo, é “[...] aquele mágico paralelo que une a fertilidade humana, animal e

vegetal [...]” (MIGNATTI, 2007, p.94)60. O Zanni é, como o clown, herdeiro de um DNA

imaginal vindouro além Bufão.

Toda esta ligação entre o Bufão, o Zanni e o reino dos mortos, da terra, da semeadura,

das plantas, da fertilidade, durante o carnaval ganham mais força. O Bufão ganha a liberdade

da obscenidade através dos caminhos ritualísticos, quando o corpo nu e a fertilização da terra

com o sêmen humano faziam parte do ciclo de fevereiro.

Através deste rizoma é que a obscenidade se fortalece como instrumento do Bufão, do

Zanni e de outras Máscaras dell’Arte. A obscenidade também se foi tornando instrumento da

inversão da ordem através desta ligação com a terra, não porque o obsceno é transgressor da

moralidade, mas porque o ato de fertilizar a terra, vindouro dos rituais antigos, faz parte de

uma força telúrica que integra homem, animal e vegetal. A sexualidade faz parte da

fertilização do cosmos e na festa carnavalesca potencializa-se e transforma-se em uma das

principais forças do popular, conforme indica Backthin.

No caleidoscópio das Máscaras dell’Arte, Manifestações Espetaculares Populares

Brasileiras e diversos Rituais, torna-se difícil fazer um caminho em linha reta. É preciso

constatar algumas das diversas conexões de uma Máscara para justificar os caminhos

escolhidos para criar uma técnica como a dos Bufões, totalmente ligada ao telurismo e ao

jogo-festa-ritual. Como, também, para esclarecer os procedimentos de apropriação de um

gênero de teatro específico, no caso, a commedia dell’arte, através de células de

Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras. Utilizando estas como ponto de partida

para a compreensão de universos e, daí então, a criação de uma técnica de Bufão e de uma

possibilidade de acesso às máscaras dell’arte.

Após o relato da técnica criada para o Bufão, da compreensão do seu universo e do

desdobramento deste no Zanni, começa-se a relatar o caminho percorrido para a apropriação

das máscaras dell’arte. Para tanto, a ordem que se seguirá será a do conhecimento prático

adquirido ao longo do estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore e de outras experiências

60 Tradução da autora: [...] quel magico parallelo che unisce la fertilità umana, animale e vegetale [...]”.

139

solos realizadas e não uma cronologia histórica das Máscaras dell’Arte ou das Manifestações

Espetaculares Populares Brasileiras.

  140

4. FESTAROLAS E TRANSDUÇÕES1 - TRANSCURSOS PARA A COMMEDIA

DELL’ARTE

“Toda investigação do imaginário social-histórico redunda em fascínio”

Monique Augras (2009, p.13)

Tentar rastrear os transcursos rizomáticos engendrados pela imensidão líquida do

imaginário é muito complicado. Principalmente, porque este é constituído de forma não

hierárquica, o que coloca todos os seus elementos formadores (afluentes) numa mesma

situação. Tentar organizar uma apresentação destes “afluentes” implica em colocá-los numa

ordem o que, se faz necessário lembrar, não tem a ver com hierarquia. Estarei fazendo, neste

primeiro momento, uma apresentação das práticas espetaculares populares brasileiras que

integram esta pesquisa, deixando as máscaras dell’arte (Zanni, Servetta, Cortigiana,

Pantalone, Capitano, Nobile, Arlecchino e Brighella) para o momento posterior. Contudo, as

máscaras poderão ser citadas para marcar algumas de suas relações com as práticas

espetaculares populares brasileiras apresentadas. É conveniente ainda lembrar que uma

relação mais detalhada da relação dos códigos será mostrada no capítulo seguinte.

O modo como percebi que poderia acessar as máscaras dell’arte foi através de uma

percepção sensível, um caminho subjetivo que minha musculatura descobriu antes que eu

racionalizasse sobre esta possibilidade. Foi quando cursava a graduação em teatro na

Universidade Federal de Santa Maria, numa aula prática de commedia dell’arte com a Drª.

Inês Marocco, em que estávamos aprendendo a movimentação da máscara do Arlecchino e

onde seguia todas as suas indicações. Em determinado momento, quando estava praticando a

caminhada desta máscara (cujo passo é duplo, avançando com dois passos seguidos com cada

perna, mantendo os joelhos semiflexionados e o baricentro baixo), minha musculatura acessou

o mesmo circuito muscular que utilizava para realizar o “avanço” da capoeira regional, e para

a forma da movimentação (ângulos dos joelhos, cotovelos e quadril) e postura que o corpo

permanecia quando parava, minha musculatura foi buscar suporte nos circuitos da dança do

frevo.

                                                       1 Transdução, na física, é um processo pelo qual uma energia transforma-se em outra de natureza diferente e na genética é a transferência de ADN (Ácido Desoxirribonucléico - ou DNA, como é conhecido) entre bactérias - tomo emprestado esta nominação de um mecanismo da física e da genética, utilizando, mais uma vez, a força da metáfora, defendida por Bachelard e Maffesoli como grande potência para o aprendizado e compreensão. Utilizo o termo, justamente, para tentar compreender e explicar o mecanismo imaginativo que se realiza neste trabalho. 

  141

Na minha imaginação, parecia que a máscara de Arlecchino, ao invés de caminhar

seguindo a partitura dada, caminhava/dançando um passo que misturava frevo e capoeira e

tudo indicava que aquela mistura funcionava, pois a máscara, aos olhos da professora e da

turma, tinha ganhado vida. Foi assim que, posteriormente, devido ao envolvimento com o

universo da máscara e os desdobramentos deste trabalho, reaproximei-me das máscaras

dell’arte e fui compreendendo o que tinha acontecido naquele momento – minha musculatura

acessava experiências vivificadas para, antropofagicamente, fazer o novo que lhe era

proposto. Isto é, para fazer a movimentação da máscara do Arlecchino (o novo), minha

musculatura convocava os circuitos musculares que já conhecia (a capoeira e o frevo) e que se

aproximavam ou se igualavam, em alguma instância, daquilo que “o novo” lhe exigia.

Olhando pelo lado da praticidade, não tem nada de novo ou absurdo neste processo, pois a

musculatura realiza, uma certa “economia”, utilizando-se daquilo que já é inerente a ela e que

tem controle para alcançar o “novo” que lhe está sendo proposto.

A partir do momento em que compreendi o processo pelo qual passei quando estava

aprendendo a máscara do Arlecchino e misturei a esta frevo e capoeira, tracei como objetivo a

aprendizagem de outras práticas espetaculares populares brasileiras. Não pensei quantas, nem

quais, mas sabia que o caminho para me apropriar das máscaras dell’arte era me apropriando,

primeiro, das práticas espetaculares populares brasileiras – da minha própria cultura popular.

Este caminho foi sendo realizado tranquilamente: aprendendo vivências cirandeiras,

conhecendo cavalo-marinho, saudando caboclinho, maracatuando em lança, sambando em

terreiros, frevando em coco, xaxando capoeira e maculelê. Cada experiência ao seu tempo,

com o prazer de fazer festarolas, mas com a seriedade de um explorador curioso e apreensivo

em compreender as transduções conectivas de um espaço abstrato e sensível que trabalha em

uma memória muscular comovida por afetos.

A primeira das manifestações espetaculares, com a qual tive contato foi o frevo. Ainda

cedo, antes mesmo de começar a fazer teatro, num curso de danças populares. Esta dança,

posso assim dizer, foi o primeiro eco das vibrações dos elementos arcaicos da alma, que se

pronunciou conectando-se, de modo subterrâneo, mas intenso, com as máscaras dell’arte e foi

a primeira das práticas espetaculares populares brasileiras apreendidas, daquelas que formam

o conjunto que integram esta pesquisa.

O frevo foi criado em Recife e trata-se de uma dança ágil e que requer muito vigor

físico do dançarino. Segundo a pesquisadora Ana Valéria Ramos Vicente (2008), o termo

“frevo” foi publicado pela primeira vez em 1907, e sua consolidação como expressão – no

âmbito da dança – deu-se paralelamente à emergência de uma nova classe social advinda do

  142

final do sistema escravista e composta por diferentes representantes das classes menos

favorecidas (antigos escravos, capoeiristas, trabalhadores de canaviais, empregados, etc.).

Vicente comenta que a música do frevo é uma resultante da mistura entre polcas2,

dobrados3, quadrilha4 e maxixe5, tocado em compasso binário ou quaternário e andamento

rápido. Já a dança do frevo, continua Valéria Vicente, surgiu do diálogo desta música bem

misturada e o jogo dos capoeiristas, no final do séc.XIX, na cidade de Recife⁄Pernambuco. Na

sua pesquisa sobre o frevo, Ana Valéria Ramos Vicente faz um panorama do desdobramento

da capoeira até o frevo, elencando e ilustrando os passos da dança (PP. 82 - 84). A

pesquisadora ressalta que, mais tarde, com a criação de Escolas de frevo, a dança acabou

recebendo influências do ballet e danças cossacas6, o que causou variações de passos com

ponta de pé e agachamentos.

Segundo Valéria Vicente, Recife sempre teve tradição de desfile de bandas durante os

carnavais - para a pesquisadora, esta é uma tradição muito influenciada pelo movimento

social da mestiçagem das classes subalternas do período pós-escravismo. Foi nesta

movimentação de desenvolvimento das classes sociais que a diversão carnavalesca das ruas,

possuindo um trajeto peculiar, aos poucos se foi tornando uma grande manifestação popular

brasileira. Foi neste percurso de desenvolvimento e fortalecimento do carnaval (meados do

séc. XIX) que, segundo Vicente, as disputas entre as bandas que desfilavam ficaram mais

“calorosas” e, então, grupos de capoeiristas passaram a acompanhá-las para fazer a segurança

e defesa destas. A consequência era que, sempre que duas ou mais bandas encontravam-se, as

brigas eram inevitáveis. Devido a estes encontros e disputas físicas, a presença de capoeiristas

junto às bandas foi proibida, desse modo, eles acompanhavam-nas, disfarçando seus golpes

em uma dança muito vigorosa e cheia de vitalidade.

                                                       2 Dança e música em compasso binário, originária da Boêmia, país celta da Europa Central (região da República Tcheca), no séc. XIX foi difundida por toda a Europa e Brasil, cuja parição influenciou algumas danças, como o vanerão, no Rio Grande do Sul e o frevo em Pernambuco. Para saber mais sobre as polcas e a relação com o frevo, ler: Entre a ponta dos pés e o calcanhar: Reflexões sobre o frevo na criação coreográfica do Recife, na década de 1990: cultura subalternidade e produção Artística, de Ana Valéria Ramos Vicente. Samba de Gafieira: Corpos em contato na cena social carioca, de Ana Maria de São José. 3 O dobrado é uma marcha militar em ritmo rápido, tanto a marcha como a própria música que serve de fundo e ritmo cadencial para esta marcha, chama-se dobrado (VICENTE, 2008). 4 Dança popular realizada em festejos juninos, é dançada em pares e possui influência das danças das cortes francesas - esta dança possui uma relação com o samba de gafieira (SÃO JOSÉ, 2005). 5 O maxixe, de acordo com São José, é considerado a primeira dança social brasileira. Resultante da mistura de polca e do lundu, com sons de percussão típico do lundu, o maxixe é dançado em par, com passos muito sensuais. Foi muito popular no Rio de Janeiro, no final do séc. XIX (SÃO JOSÉ, 2005). 6 Os cossacos eram um povo com características nômades ou seminômades, que habitava o Sul da Rússia, Ucrânia e Sibéria, cuja dança exige bastante vigor e bom preparo nas pernas por parte dos dançarinos, pois possui muitos passos de agachamento e joelhos flexionados, muitos deles incorporados ao frevo (VICENTE, 2008) 

  143

Com o passar do tempo, o disfarce da capoeira deixou de ser a “válvula

impulsionadora” para a execução desta dança, que acabou firmando-se como estilo próprio.

Com a passagem dos carnavais, o frevo foi ganhando algumas variações e, na década de

trinta, já se desdobrava em Frevo de Rua (frevo feito somente com orquestra), Frevo-Canção

(frevo com voz e orquestra) e Frevo de Bloco (apresenta, também, uma orquestra de madeiras

e cordas e é conhecido, também, como marcha de bloco).

Alguns dos acessórios do frevo, como a sombrinha, também é uma adaptação advinda

dos tempos em que o frevo firmou-se como expressão. Quando os capoeiristas

acompanhavam os desfiles das bandas, por causa do sol forte, alguns deles usavam guarda-

chuvas e aproveitavam-nos, também, como objeto para executar evoluções individuais dentro

da dança. Com o passar dos carnavais e com a legitimidade do frevo como dança, o guarda-

chuva virou uma sombrinha colorida, utilizada como um acessório da dança7.

Mas foi sem acessório e sem música que o frevo agiu em minha musculatura para dar

vida à máscara do Arlecchino, a dança emergiu e realizou-se como tal. Mais adiante,

desenvolvendo o trabalho com as máscaras dell’arte, percebi que o frevo não é conectado

somente com a máscara de Arlecchino, mas também possui relações conectivas com a

máscara do Zanni, da Servetta e da Cortigiana, servindo, ainda, para ações do Pantalone,

Capitano, Brighella, enfim, com quase todas as máscaras dell’arte.

As máscaras sempre me fascinaram, e a commedia dell’arte era mais um universo

destas máscaras. Meu primeiro interesse era habitar e deixar-me habitar por esse universo e,

para tanto, deveria encontrar um meio de comunicar-me, conectar-me com ele. No momento

em que a máscara do Arlecchino encontrou a força do frevo, a sensação da máscara ganhando

vida através do meu corpo e este se transformando a partir do contato com um universo

abstrato imaginário e sem fronteira constituem uma lembrança/dado/afeto presente, até hoje,

na minha musculatura. Foi este primeiro dado que me impulsionou em busca deste acesso

através de experiências mais próximas à minha con/vivência.

Esta transdução entre células das manifestações espetaculares populares brasileiras e

máscaras dell’arte é resultante de um percurso muito específico, cujo período mais intenso e

de estruturação foi o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

Universidade Federal da Bahia e intercâmbio com a Università di Roma Tre e Scuola

Sperimentale dell’Attore. O que deve ficar muito claro é que esta técnica, a qual chamo de

                                                       7 Para saber mais sobre Frevo, ler: Do Frevo ao Manguebeat, de José Telles; Entre a ponta dos pés e o calcanhar: Reflexões sobre o frevo na criação coreográfica do Recife, na década de 1990: cultura subalternidade e produção Artística, de Ana Maria Vicente. 

  144

“transdução caleidoscópica” não é uma técnica de commedia dell’arte, mas um possível

acesso às máscaras da commedia dell’arte, em específico, as de Claudia Contin8.

Nas minhas buscas em diversos mares, conheci a commedia dell’arte desenvolvida por

muitos profissionais e escolas diversas. A commedia dell’arte de Claudia Contin é aquela que

me fascina, por portar, mais que as outras, um pouco do universo grotesco e carnavalesco das

máscaras dell’arte e, principalmente, por conservar um ligame com o lado xamânico das

máscaras. Nesta commedia dell’arte era (é) onde minha musculatura trabalhava (trabalha)

junto com a imaginação. Quando tive a experiência mais intensa com a Scuola Sperimentale

dell’Attore e fui desenvolvendo minhas dúvidas e aprofundando meus mergulhos no universo

das máscaras dell’arte, comecei a perceber que o acesso criado para me apropriar das

máscaras à italiana alargava-se cada vez mais, os dados geravam novos dados e assim se

proliferavam de modo espiralado e torrencial.

Com o “mestre” Arlecchino Claudia Contin, em sala de aula, apreendi a

movimentação, corporeidade e fisicidade das máscaras dell’arte de modo “puro”, isto é,

segundo a técnica criada por ela, sem intervenção de movimentos das praticas espetaculares

populares brasileiras. Com Ferruccio Merisi, aprendi a encontrar a voz e ação vocal destas

máscaras. Mas meu trabalho de acesso as máscaras dell’arte através das práticas espetaculares

populares brasileiras seguia numa corrente subterrânea. Enquanto apreendia as partituras e

movimentos codificados das máscaras dell’arte com Claudia Contin e Ferruccio Merisi e

exercitava-me com a professora Verônica Risatti9, minha musculatura e, principalmente, meu

querer, identificavam nos movimentos das máscaras as semelhanças energéticas e musculares

com movimentos das manifestações espetaculares populares brasileiras. Não era um “querer

racional”, mas sim sensível, enquanto executava os movimentos codificados das máscaras da

commedia dell’arte, minha musculatura lembrava-me que aquele movimento era similar a um

outro movimento do samba, do coco, da ciranda e assim por diante – da mesma forma que

aconteceu quando fiz a máscara do Arlecchino com Marocco, não era um raciocínio sobre o

movimento, mas uma atividade muscular e imaginativa.

Depois de ter absorvido as corporeidades e fisicidades das máscaras dell’arte e de

receber continuamente a ação dos dados na minha musculatura, através do processo de                                                        8 Faz-se necessário lembrar que tive experiências com a commedia dell’arte difundida por Lecoq, Scuola Pantakin (Venezia), Renzo Sindoca (Venezia) e de Carlo Bosso (Paris), porém, prefiro fazer referência à commedia dell’arte de Contin, com a qual tenho maior afinidade e tive uma experiência na Scuola Sperimentale dell’Attore, mais longa e intensa. 9 Verônica Risatti fez parte da Scuola Sperimentale dell’Attore de 2003 a 2009, trabalhando como professora e atriz do grupo da Scuola. Formada em Teatro pela Universidade de Bologna, ela era a responsável por me exercitar e fixar o material trabalhado por Contin e Merisi, de forma que a movimentação se tornasse autômata e, ao mesmo tempo, orgânica.  

  145

imaginação, comecei o trabalho de transposição dos circuitos das máscaras físicas e da

movimentação destas, com células de movimentos deslocados das manifestações

espetaculares populares brasileiras, de modo mais lógico e racional. Porém, chegou um

momento em que, conhecendo a máscara dell’arte, seu caráter e seu modo de agir e

conhecendo as possíveis combinações das codificações recriadas a partir de células de

movimentos extraídos das práticas espetaculares populares brasileiras, minha musculatura e

imaginação, com estes dados, agiam numa combinação caleidoscópica.

Mas este ritmo dinâmico de combinações de dados foi possível, somente, porque

desenvolvi uma habilidade em trabalhar com os códigos extraídos das práticas espetaculares

populares brasileiras. Tal habilidade desenvolvida também passou por um processo, cuja

importância, para a técnica de transdução caleidoscópica de acesso às máscaras dell’arte, é de

primeira magnitude – tão essencial quanto o processo de Bufão.

Se o processo de Bufão auxiliou à compreensão do lado xamânico da máscara, a

convivência e prática das manifestações espetaculares populares brasileiras (dentro de seus

contextos), auxiliam (dentro de uma realidade mais próxima) a compreender o corpo que se

emana em festa, a entender a ancestralidade festiva, a sensibilizar-se com as atmosferas e

energias abstratas de uma força além tempo e fronteiras territoriais. Já a prática da codificação

e decodificação dos movimentos das manifestações espetaculares populares brasileiras dá a

possibilidade de criar uma exatidão muscular e de conhecer uma conexão entre o lado festivo

e xamânico e o lado técnico do teatro e das máscaras.

4.1. TRANSLOCAÇÃO10: TÉCNICA MOTRIZ PARA A TRANSDUÇÃO

“Claude Lévi-Strauss foi um dos primeiros a chamar a nossa atenção sobre a multiplicidade dos “códigos sensoriais”, através dos quais a informação pode ser transmitida e sobre como estes podem se combinar e “traduzir” um no outro.”11

Victor Turner (1986, p. 30)

                                                       10 A translocação, na genética, é um tipo de mutação cromossômica na qual ocorre a relocação de um fragmento de cromossomo em outra posição no mesmo genoma – mais uma vez, tomo emprestado uma nominação de um mecanismo da genética, utilizando a força da metáfora (Bachelard e Maffesoli) para tentar a compreensão e explicação do mecanismo imaginativo deste trabalho.  11 Tradução da autora: “Claude Lévi-Strauss fu uno dei primi a richiamare la nostra attenzione sulla molteplicità dei “codici sensoriali” attraverso i quali l’informazione può essere trasmessa, e su come essi si possono combinare e “tradurre” l’uno nell’altro.”  

  146

Na verdade, tal como o processo e técnica criada para o Bufão, a própria habilidade

em geminar as células das práticas espetaculares populares brasileiras, constitui, em si, uma

técnica: translocação caleidoscópica.

A técnica de translocação caleidoscópica é constituída, somente, dos (dados)

movimentos das práticas espetaculares populares brasileiras, e a técnica de transdução

caleidoscópica constitui-se da técnica de translocação mais os dados das máscaras dell’arte.

Esta primeira técnica de translocação caleidoscópica com as células deslocadas das práticas

espetaculares populares brasileiras tem a finalidade de servir de base e força motriz para a

técnica de transdução caleidoscópica.

Como a translocação caleidoscópica é o próximo processo para a técnica de acesso às

máscaras dell’arte, relatarei, primeiro, os encaminhamentos desta, fazendo algumas

interferências, quando necessário, sobre as práticas espetaculares populares brasileiras em

questão. Chamo a atenção, que, conforme foi feito com a técnica do bufão, os relatos

porvindouros não constituem um diário de ensaio, mas os encaminhamentos desta técnica.

Primeiro, por período indeterminado, teve o período de conhecimento vivificado de

algumas Manifestações Espetaculares Populares Brasileiras, daquelas que me interessavam,

instigavam-me e que estavam ao meu alcance a possibilidade de conhecê-las e praticá-las.

Como aconteceu com o frevo, cujo primeiro contato foi em um curso de dança e,

posteriormente, fui conhecê-lo nas ruas de Recife durante o carnaval, aconteceu, também,

com algumas outras práticas espetaculares populares brasileiras, como o Cavalo-Marinho, o

Xaxado, o Maracatu e o Caboclinho.

Para fazer o reconhecimento do Frevo, Maracatu, Caboclinho e Cavalo Marinho, em

campo, em terras pernambucanas, tive um excelente mestre de cerimônias, o Doutor Érico

José Souza de Oliveira, eterno apaixonado por sua terra e com uma incrível capacidade em

mostrar as coisas belas de sua cultura, com um olhar crítico, mas, ao mesmo tempo, passional.

Foi ele quem me levou para frevar nas ruas, acompanhar cortejos de Maracatu e Caboclinho e

apresentou-me Mestre Biu Alexandre e seu Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado

(PE).

Para a Capoeira Regional, Maculelê e noções da Capoeira Angola, segui os passos do

Mestre Alabama de Salvador/BA. Na Capoeira de Angola, também tive contato com o

professor Marquinho (Marcos André Alves de Albuquerque) de Recife – atualmente,

responsável pelo Centro Capoeira Angola Itália de Sacile, seguindo sempre os passos de seu

mestre João Grande. Para o Samba de Roda e Sambas diversos, não tive nenhum mestre, nem

mesmo de cerimônia, fui apreendendo participando das rodas de samba no final das rodas de

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capoeira, nas festas e festejos populares e com as ressonâncias de minha alma. Desta mesma

forma espontânea e ao sabor de festas, foram apreendidos o Coco e a Ciranda.

Como mestre de cerimônias das Danças dos Orixás, contei com a apresentação

calorosa da querida colega Silvia Rita. A continuação desta apreensão foi nas pacientes tardes

em companhia da Ekedy Sinha (Gersonice Azevedo Brandão) e nas noites no Ilê Axé Iyá

Nassô Oka, Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho/BA, além das diversas mães e filhas

de santo deste mesmo terreiro e de outros terreiros de Candomblé; Candomblé de Angola e do

terreiro Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá, de Santa Maria/RS. Este último

terreiro no qual convivi por muito tempo participando dos rituais de Caboclos, Exus e

Pombogiras12, Pretos Velhos e Êres, intitula-se Terreiro de Linha Cruzada13 e, apesar de ter

ligações com a Umbanda, não possui práticas comuns ao espiritismo, sua relação com a

religiosidade e ritos é com o Candomblé. Muito dos termos utilizados no terreiro, os cultos, as

festas e a presença dos Orixás são advindos do Candomblé, porém, a Linha Cruzada tem,

também, a presença das entidades - seres espirituais da Umbanda que não fazem parte do

Candomblé, a não ser no Candomblé de Angola, cujo culto ao Caboclo é acentuado. Neste

terreiro de Santa Maria/RS, as festas dos Orixás são chamadas de Batuque e são realizadas

eventualmente, enquanto que o culto às “Entidades”, Caboclo, Preto-Velho, Exu e Pombogira,

são semanais. Os Caboclos e Pretos-velhos falam numa mistura de Iorubá com português, já

os Exus e Pombogiras (também chamadas de Exu-mulher) falam em uma linguagem bem

específica e própria, a qual não é iorubá. Este tipo de rito religioso que encontrei em Santa

Maria/RS possui muitas similaridades com os ritos do Candomblé de Angola. Mas estas

questões concernentes às religiosidades afro-brasileiras, denominações e diferenças, não

dizem respeito ao núcleo desta pesquisa, portanto, encaminho aqueles que anseiam por mais

informações sobre diferenças entre religiões afro-brasileiras, para os estudos de René Ribeiro

(1982), José Carlos Pereira (2004), Raul Giovanni Lody (1977) e Deolindo Amorim (1993).

Dessa forma, em campo, seguindo mestres de cerimônias e mestres da prática, fui

apreendendo as práticas espetaculares populares brasileiras, que estavam ao meu alcance:

Frevo, Maracatu, Capoeira, Maculelê, Dança dos Orixás, Coco, Ciranda, Xaxado, Cavalo

Marinho, Caboclinho e Samba.

                                                       12 Também é encontrado a nominação “Pombagira”, esta variação acontece, a depender do terreiro.  13 A Linha Cruzada, segundo o Ilê de Cultos Afros e Umbanda Caboclo Tupinambá, de Santa Maria\RS, surgiu por volta de 1950 e está entre os ritos afro-brasileiros mais jovens do Rio Grande do Sul. O nome “Linha Cruzada” foi dado, devido à mistura de entidades da Umbanda - Caboclos, Pretos-Velhos, Pombogiras - Orixás do Batuque (como o Candomblé é chamado no Rio Grande do Sul) e a Jurema. Ao entrar num terreiro de Linha Cruzada, tive a sensação de estar num encontro de várias manifestações ritualísticas brasileiras, pois além das imagens da Jurema, entidades e Orixás, também é possível encontrar imagens de santos do cristianismo. 

  148

A partir das convivências comecei um exercício destas, não somente indo a campo

(festas, festejos e rituais) e seguindo cursos, mas com uma disciplina própria, fazendo uma

prática esquematizada em sala de trabalho.

Como um bailarino ou um músico que, para dominar uma dança ou um instrumento

deve exercitar-se, eu tinha que dominar os movimentos das danças e golpes que integram o

conjunto das práticas espetaculares populares brasileiras desta pesquisa. Para desenvolver

uma possível agilidade dentro dos movimentos de tais manifestações espetaculares, somente

praticando-as, era necessário criar uma rotina de trabalho, exercitar-me, orquestrar-me, treinar

ou ensaiar – qualquer um destes nomes quer dizer, para esta pesquisa, uma prática assídua

esquematizada e uma organização desta prática de modo objetivo e⁄ou subjetivo.

O circuito energético forma-se a partir do circuito muscular - Artaud já assinalava esta

capacidade de formação e conexão de tais circuitos quando fazia referência ao ator como

“atleta afetivo” (conforme mencionado anteriormente) – é como se a musculatura trouxesse,

impressa nela, energias. Por consequência da dinâmica entre o circuito muscular e o

energético, são comovidos afetos que tocam uma “experiência ancestral” (MAFFESOLI,

2008)14 e emanam certa “ancestralidade festiva” record/ativa das práticas espetaculares

populares brasileiras.

Para esta pesquisa, é muito importante ter a experiência em campo, pois estas

emanações ancestrais, a cada renovação ganham mais força e multiplicam-se de maneira

facetada e, certamente, a atmosfera em que estas manifestações são habituadas a se realizarem

já está impregnada destas partículas, as quais agem, também, naquele que se está iniciando

nas práticas espetaculares populares em questão, como sujeito da ação ou como público.

Posso dizer, também, que a presença frequente ou em massa destas pessoas que habitualmente

se emanam em festa e ritualidade e que produzem e reproduzem nelas estes circuitos

musculares e energéticos ajudam, de alguma forma, em diferentes instâncias, através da

convivência e, então, do dado sensível, a fazer com que a musculatura conheça, compreenda e

apreenda tais possibilidades. Estando em campo, penso que a intuição e a subjetividade agem

em lençóis subterrâneos, com maior eficiência.

Com a intuição coloca-se em jogo uma “visão central” que, justamente, não indireta, mas, antes, enraíza-se profundamente na própria coisa, dela se nutre e, portanto, dela frui [...] É preciso, com efeito, lembrar que o conhecimento remete, em parte, para o “nascer com” (cum-nascere) e que, portanto, implica uma forma de convivência (MAFFESOLI, 2008, p. 133).

                                                       14 Termo utilizado por Maffesoli para fazer referência à atuação da intuição dentro do pensamento/ação intelectual.  

  149

Para esta pesquisatriz, o convívio com aquilo que se procura conhecer é fato

necessário e nenhum outro modo de conhecimento é tão eficiente quanto o da convivência.

Uma experiência que tenho muito clara sobre os afetos que esta convivência move ou

os genes imaginários que se comovem com a imaginação foi a primeira vez em que estive

jogando em uma roda de capoeira. Durante muito tempo pratiquei os golpes e jogo em dupla,

sob os olhos e comandos do mestre (Mestre Alabama), mas quando este me mandou jogar na

roda é que senti os dados sensíveis se comoverem em imaginação. Num momento, estava na

roda de capoeira e, num outro momento, percebi naquele espaço algo que ultrapassava a sala e

até mesmo as pessoas ali presentes. Os dois capoeiristas no meio da roda se assemelhavam,

em alguma instância da tríade “jogo-festa-ritual”, com dois gladiadores ou dois

conquistadores de tribos diferentes - seres com ressonâncias energéticas de elementos

vindouros de outro espaço/tempo, as quais se reconheciam nas vibrações dos corpos que se

emanavam em festa-jogo-ritual.

A própria capoeira possui intensa ligação com as três instâncias da tríade de Huizinga.

Atualmente, a capoeira é difundida pelo mundo como luta, dança e jogo, tendo como estilos

principais a Angola e a Regional. A meu ver, a capoeira pode ser considerada uma arte

marcial15 com um diferencial em relação às outras: o acompanhamento musical – atabaques,

pandeiro, berimbau, agogô, palmas e voz (atualmente, percorrendo diversas rodas de capoeira,

encontrei incorporados à música outros instrumentos, como o bumbo, a caixa e outros).

Segundo Evani Tavares Lima, não há uma opinião em comum sobre a origem da capoeira,

sabe-se que era praticada nas senzalas e quilombos, porém, nos tempos do missionário jesuíta,

José de Anchieta (1534-1597), tinha-se notícias de uma prática que se aproximava muito à da

capoeira, entre os indígenas e, segundo a pesquisadora, tal informação traz imprecisões e

dúvidas sobre a origem e miscigenação desta. Desde o século XVI que Portugal enviava

escravos vindos da África para o Brasil e, dentro das senzalas, as primeiras notícias da

presença da capoeira no Brasil acorreram no século XVII, quando aconteceram os primeiros

movimentos de fuga de escravos, entretanto, não existe documentoção destes movimentos de

rebeldia por parte dos escravos.

Os capoeiristas, na grande maioria dos golpes de ataque e de defesa, utilizam pernas,

pés, cabeça e, ocasionalmente, braços e mãos. A capoeira de angola é caracterizada por um

jogo denominado “baixo”, “lento”, matreiro, cheio de malícias, disfarces, malandragem e

ludibriações. Segundo Lima, a capoeira angola trabalha no corpo-espírito, pela caracterização

                                                       15 Conforme assinala o anteprojeto de regulamentação da capoeira, de 1980 “Capoeira: arte marcial brasileira”, o qual pode ser encontrado na biblioteca de música da UFBA. 

  150

do não enfrentamento direto e pelo grande teor ritualístico. A capoeira angola traz com ela a

forte presença da “mandinga” - expressão que pode fazer referência ao jogo difícil, mas

também traz a ligação ancestral e mítica entre os capoeiristas e com a própria capoeira. A

capoeira também se conecta ao samba de roda, samba-duro e samba de caboclo, os quais,

nesta arte, são tipos de ritmos para embalar o jogo. Mas estes tipos de samba também são

cantados ao final da roda de capoeira regional, como forma de saudar e comemorar a

capoeiragem. A capoeira regional, estruturada por Mestre Bimba, o qual introduziu um

treinamento sistemático e criou uma metodologia de cordas para as graduações dos

capoeiristas, possui golpes baixos e altos, o tempo de execução dos golpes é mais rápido, em

relação à angola, e sua principal característica é o enfrentamento direto e o elemento

acrobático16. A capoeira regional traz com ela um teor ritualístico, em menor grau que a

angola, mas que se pode perceber nas ladainhas17 e na presença dos sambas – conforme

comentado anteriormente. Apesar das duas modalidades de capoeira possuírem golpes em

comum, os nomes e alguns detalhes de movimentação destes podem variar de um grupo para

outro18. Dentro da minha prática de acesso das máscaras dell’arte, a capoeira é conectada,

intensamente, com as Máscaras do Zanni, Arlecchino, Cortigiana e Capitano, mas participa,

também, das ações de outras máscaras dell’arte.

Este efeito de transposição de atmosfera que aconteceu quando estive no centro de

uma roda de capoeira, por exemplo, não aconteceu quando joguei maculelê. Conforme Popó

do Maculelê19 (Paulino Aloísio Andrade) em entrevista dada a Maria Mutti (1978, p. 9) o

“maculelê é dança e luta ao mesmo tempo, defesa e ataque misturado ao ritmo nego

(definição de Popó, sempre que falava no ritmo do maculelê)”.

Feito com bastões, chamados de grimas, o maculelê possui três possibilidades de

surgimento. As duas primeiras versões, ouvi de dançadores/lutadores de maculelê, com quem

                                                       16 Para saber mais sobre Capoeira, Capoeira Angola e Capoeira Regional, ler: Capoeira Angola como treinamento para o ator, de Evani Tavares Lima; Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo; A arte da resistência: atividade que mistura luta e dança busca independência In Problemas Brasileiros, de Telma Egle; A capoeiragem baiana na corte imperial (1863-1890) In Afro-Ásia, de Carlos Eugênio Líbano Soares; Capoeiras e intelectuais: a construção coletiva da capoeira ‘autêntica’. In Estudos Históricos, de Simone Pondé. 17 A ladainha, segundo Evani T. Lima, é o momento de maior introspecção e teor ritualístico da capoeira (2008, p. 31). 18 Alguns dos principais golpes da regional, alguns deles se repetem na angola, são eles: aú (conhecido comumente como roda ou estrela), armada de costas, ponteira, benção, cabeçada, chapa, martelo, martelo cruzado, queixada, chibata, macaco, meia-lua, meia-lua de compasso, gancho, rasteira, vingativa, cruz, esquiva, rabo-de-arraia, queda de rins, rolamento, passo a frente, semipulo e tantos outros. Grande parte destes golpes pode ser vista nas ilustrações ao longo do livro de Evani Tavares Lima “Capoeira Angola como treinamento para o ator” (2008). 19 Popó do Maculelê nasceu em Santo Amaro/BA e foi quem, segundo Maria Mutti e Zilda Paim, difundiu e deu fama ao maculelê.  

  151

praticava capoeira nas aulas do Mestre Alabama. A primeira delas possui uma característica

mais mitológica: diz a lenda que Maculelê era um negro fugido, o qual foi acolhido e curado

de todos os ferimentos da fuga por uma tribo indígena. Como Maculelê não era da tribo, ele

não tinha permissão para acompanhar os índios em todas as suas atividades. Um dia, uma

tribo rival atacou a tribo em que Maculelê estava e, não havendo índios para defender a tribo,

Maculelê, lutando com bastões e facões, venceu heroicamente os guerreiros da tribo invasora.

Desde então, a dança/luta/jogo que ganhou seu nome é realizada como um modo de honrar e

contar o feito de Maculelê.

A segunda versão possui uma característica mais simbólica. A versão diz que o

jogo/dança/luta maculelê teve origem como um ato de resistência dos negros, simbolizando a

luta destes com os feitores das grandes propriedades escravocratas.

A terceira versão está no livro de Maria Mutti intitulado “Maculelê”, no qual a

pesquisadora e jogadora/dançadora/lutadora de maculelê, entrevista Vavá de Popó (Valfrido

Vieira de Jesus, filho de Popó) e deixa esta versão documentada. Vavá diz que o maculelê era

feito nas senzalas, durante a noite, servindo como treinamento para os escravos rebeldes,

porém, a luta era disfarçada em dança e, como cantavam e comemoravam em língua africana,

os senhores pensavam que aquele era o modo dos escravos saudarem os deuses africanos. Na

entrevista a Maria Mutti, Vavá deixa claro que o maculelê tradicional é feito com grimas, não

com facão e que o maculelê com facão é uma recriação recente.

O maculelê é realizado em quatro tempos e se caracteriza pela exigência de

vigorosidade dos jogadores. Cada jogador possui uma grima em cada mão e se enfrentam num

jogo de golpes de bastões que se cruzam, batendo no alto em um dos tempos e executando

movimentos ágeis nos outros três tempos20. Quando os jogadores/lutadores/dançadores fazem

o maculelê com facões no lugar das grimas, exige muito mais habilidade destes21.

Quando joguei maculelê pela primeira vez, tive dificuldade em me deixar habitar pela

prática e na medida em que fui aprendendo, a imaginação trabalhava e esta dança/jogo/luta foi

ganhando força. Ainda não sabia como utilizaria esta prática espetacular popular brasileira na

minha pesquisa, mas sabia que, se ela estava apresentando-se, deveria apreendê-la.

Posteriormente, a imaginação trabalhou e o maculelê foi utilizado em cenas com as máscaras

do Pantalone, Zanni e Capitano.

                                                       20 Maria Mutti, ao longo do livro “Maculelê”, traz fotografias do jogo\luta de maculelê, feito nas ruas de Santo Amaro/BA. 21 Para saber mais sobre o Maculelê, ler: Maculelê, de Maria Mutti; Relicário Popular e Isto é Santo Amaro, de Zilda Paim; Olelê maculelê, de Emília Biancardi Ferreira. 

  152

Enquanto aprendia algumas práticas espetaculares populares brasileiras com mestres,

outras eram apreendidas em festas e festejos populares, seguindo mestres anônimos, como foi

o caso do coco e da ciranda, cujas práticas estão, respectivamente nesta ordem, nas bases das

máscaras do Pantalone e da Nobile ou Enamorada (como também é conhecida).

O Coco, também conhecido como Coco de Roda ou Samba de Coco (apresentando,

ainda, outras variações de nomes), é uma dança que possui origenes contraditórias. Feita em

três tempos, a sua maior dificuldade está no próprio ato de executá-la por horas, exigindo dos

dançadores certa resistência física. A dança pode ser feita em roda, em fila, em pares ou soltos

pelo salão ou pátio, relacionando-se livremente. Os dançadores executam um sapateado

específico e relativamente “simples”, batem palma marcando o ritmo, trocam “umbigadas”

com os dançadores vizinhos e respondem ao coco cantado pelo “coquero”22 – mestre cantador

que canta o verso improvisado ou decorado. Mesmo tendo uma “pisada” marcante, o coco não

exige nenhum tipo de veste ou sapatos específicos, podendo ser dançado com sapatos,

chinelos ou descalços.

Segundo o pesquisador Leonardo Dantas Silva, no livro “Alguns documentos para a

história da escravidão” (Recife: Massangana,1988), o Coco é originário das cidades litorâneas

do Brasil. Primeiro surgiu como um canto executado pelos colhedores de coco e, aos poucos,

foi desenvolvendo-se, também, como ritmo dançado. Já a pesquisadora Mariana Cunha

Mesquita do Nascimento (2005), afirma que o Coco é uma das danças mais tradicionais do

nordeste brasileiro, trazendo a informação de seu surgimento, ao citar Evandro Rabello, nos

quilombos, especificamente no Quilombo dos Palmares, por volta do séc. XVII. Nascimento

afirma que os negros deste quilombo, para quebrar a casca do coco, apoiava-o no chão e

depois batiam neste com um outro e, como eram muitos a quebrar cocos, uma batida foi-se

sobrepondo a outra e o ritmo foi sendo construído. Quando o ritmo foi levado para a senzala,

as batidas dos cocos foram substituídas por palmas e uma “pisada” especial. Sendo uma dança

não muito complicada, ela une canto, palmas, pisadas e umbigadas, todos, segundo

Nascimento, elementos advindos das tradições africanas.

Baptista Siqueira (1978) também fala da presença do coco de roda entre os

descendentes africanos, seguindo os caminhos do samba, o autor fala deste encontro do samba

com o coco e comenta rapidamente a influência ameríndia contida neste último.

A pesquisadora Mariana Nascimento chama a atenção para o fato de que, no século

XX, o coco tornou-se muito popular e tinha-se por costume, entre as pessoas mais simples,

                                                       22 Baptista Siqueira, no livro Origem do termo samba (1978), traz algumas fotografias do samba de coco. 

  153

chamar os moradores das redondezas para “pisar o coco” depois da construção de uma casa,

com a finalidade de aplainar o terreno de terra batida - festejando a moradia e aplainando o

terreno. Apesar de ter tido grande popularidade, no decorrer do séc. XX, com o processo de

urbanização e industrialização, gradativamente, o coco foi perdendo força e se tornando

menos popular. Atualmente, restam poucos grupos de coco no litoral brasileiro. Mas a autora

sublinha um outro componente que contribuiu para o declínio da popularidade do coco, ela

afirma que o prestígio do coco foi terminando, não somente pelo processo de urbanização,

mas para abrir espaço para outro ritmo que estava crescendo na época: a ciranda23.

Apesar de a ciranda ter tido seu apogeu após o coco, ela também teve o mesmo destino

dele. Mesmo sendo uma dança praieira e comum de ser realizada nas festas populares, são

poucos os grupos específicos de ciranda. Segundo Mariana Nascimento, diferente do coco, a

ciranda não possui suas possíveis “origens” nas danças africanas e, sim, nas danças européias.

Afirmação compartilhada por Maria de Souza (2008), mas que, ainda assim, traz a lembrança

de danças célticas e indígenas que possuem características semelhantes à ciranda.

Tanto quanto o coco, a ciranda não tem uma data específica de festejos, ela é realizada

durante todo o ano e sem limites de idade ou de participantes para realizá-la, quando uma roda

de ciranda se torna muito grande, os cirandeiros fazem outra menor no seu interior. Maria

Souza conta que, na ilha de Itamaracá, em Pernambuco, a ciranda tem início sempre para o

sentido anti-horário.

Para a realização de uma roda de ciranda, necessita-se da presença do mestre

cirandeiro, cuja responsabilidade é a entoação do canto das cirandas que embalam a festa, seja

improvisando ou fazendo cantigas decoradas.

A ciranda não possui grande variação instrumental, são quase sempre os mesmos

(tanto em Pernambuco quanto no Ceará ou na Bahia), sendo os mais comuns o bombo ou

zabumba, o mineiro ou ganzá, uma espécie de chocalho (chamado de maracá ou maracaxá) e

a caixa ou tarol.

A pesquisadora Maria de Souza traz a explicação da possível origem do nome ciranda,

citando Evandro Rabello (apud SOUZA, 2008, p.59-60):

A origem do nome ciranda se assemelha com a forma de união dos participantes como descreve Rabello, pois do árabe çarand (tecer) para o espanhol zaranda

                                                       23 Para saber mais sobre Coco, Samba de Coco, Coco de roda, ler: O coco praieiro: uma dança de umbigada., de Altimar de Alencar Pimentel; Alguns documentos para a história da escravidão e Pernambuco Preservado, Leonardo Dantas Silva; João Manoel, Maciel Salustiano. Três gerações de artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco, de Mariana Cunha Mesquita do Nascimento; Origem do termo Samba, de Baptista Siqueira. 

  154

(peneira) pareceu assumir a forma que hoje conhecemos. Uma outra procedência do nome teria sido associada ao fato de as mulheres trabalharem em serões o que daria, por extensão, seranda e, aí, ciranda.

Mas, além das considerações sobre a possível origem do nome desta prática

espetacular popular brasileira que a pesquisadora Maria Aparecida de Souza (2008, p.53) vai

buscar com dedicação, está o destaque que a pesquisadora dá a um aspecto da ciranda que,

para esta pesquisa, é muito interessante:

A partir do momento em que o canto é iniciado o tempo corre e o que foi narrado deixa de estar numa posição estática e assume sua natureza dinâmica, mobilizadora. Numa roda de ciranda o ambiente do dançador redimensiona tempo e espaço e, aí também, o cirandeiro refaz um movimento que o ancestral desconhecido lhe legou: a tarefa de perpetuar o prazer de bailar com a comunidade.

Mais adiante, a pesquisadora ressalta, dentro da ciranda, a questão da extensão

histórica e da transmissão que remete a uma memória de longa duração, indicando, ainda, um

caminho de continuidade da sociedade envolvida em um espírito coletivo. Além da questão

coletiva que permeia esta dança, encontra-se, no discurso de Maria Souza, o aspecto ancestral

e cósmico da dança, o que, para esta pesquisa, é um dos fatos que fazem a conexão rizomática

com as máscaras dell’arte. Este mesmo aspecto ancestral citado por Souza não diz respeito

somente à ciranda, mas a todas as práticas espetaculares populares que integram esta

pesquisa24.

Conforme dito, o Coco e a Ciranda, na minha prática, estão na base das máscaras do

Pantalone e da Nobile, como a Capoeira e o Frevo estão na base das máscaras do Zanni e do

Arlecchino. Esta última possui, ainda, uma forte ligação com a Dança dos Orixás – mais

adiante falarei da composição desta máscara dell’arte. Apesar de cada máscara dell’arte

possuir maior intensidade de conexão com uma, duas ou três, das práticas espetaculares

populares brasileiras, na medida em que uma máscara ganha vida através de ações, outras

práticas espetaculares populares brasileiras são requeridas para a realização de ações.

O interessante é que, em algum momento, muito dos estudos já realizados sobre as

manifestações espetaculares populares brasileiras que integram esta pesquisa tocam neste

aspecto ancestral de tais práticas – é o DNA imaginal que percorre a história sem fronteiras ou

                                                       24 Para saber mais sobre a Ciranda, ler: Ciranda na Ilha: Um rito espetacular, herança de Mestre Baracho e Lia de Itamaracá, de Maria Aparecida de Souza; Antologia pernambucana de folclore 1, de Mário Soutomaior e Waldemar Valente(Org.); Danças folclóricas, de Américo Pellegrini Filho; João Manoel, Maciel Salustiano. Três gerações de artistas populares recriando os folguedos de Pernambuco, de Mariana Cunha Mesquita do Nascimento. 

  155

limiares e se faz presente, pungindo insistentemente a realidade e se fortalecendo na

renovação.

Outro exemplo da presença desta ancestralidade cósmica e festiva está no maracatu,

prática espetacular que faz parte da base da máscara do Brighella e serve a ações das máscaras

da Cortigiana, Servetta e Capitano. Complexo, o Maracatu possui duas variantes: Maracatu de

Baque Solto ou Rural e Maracatu de Baque Virado ou Nação. Na minha prática, o Maracatu

de Baque Virado é muito mais utilizado, porém, não posso deixar de sublinhar a figura do

Caboclo de Lança do Maracatu Rural, a qual, sem dúvida, merece um estudo conectivo mais

aprofundado e detalhista num momento posterior a esta tese.

O Maracatu é uma prática espetacular popular tipicamente pernambucana e, conforme

anunciado ao citar o Caboclo de Lança, tanto o Rural quanto o Nação possuem estreitas

ligações com o rito religioso (o Nação com o Candomblé e o Rural com o Culto da Jurema).

Apesar do maracatu Nação ter a ligação maior com o Candomblé, todos os dois maracatus

trazem a fusão com elementos indígenas, principalmente, na presença da figura do Caboclo:

no maracatu nação, o Caboclo de Pena e no maracatu rural, o Caboclo de Lança.

Segundo a pesquisadora Roseana Borges de Medeiros (2005), os maracatus Nação são

mais antigos que os maracatus rurais. Alguns deles possuem aparições datadas e

documentadas em 1863, todavia, segundo Leonardo Dantas Silva (2002), como se trata de

uma prática advinda de escravos, os quais mantinham os costumes da tradição oral e não

escrita, é possível que os Maracatus sejam muito mais antigos do que seus registros.

No século XIX, os Maracatus não eram bem vistos e, somente no decorrer do século

XX, conquistaram prestígio (foi, também, no século XX, segundo Medeiros, que os maracatus

rurais foram criados).

Segundo Medeiros, o maracatu Nação possui forte ligação com os terreiros de Xangô

(como o Candomblé é chamado em Pernambuco, principalmente em Recife), tendo nos

babalorixás dos terreiros nagô, os representantes dos reis negros vindos da África. O Maracatu

Nação é formado pelas figuras do Rei e da Rainha, uma Dama de Honra, que acompanha a

Rainha e outra que acompanha o Rei, um Príncipe e uma Princesa, um Duque e a Duquesa,

um Ministro, um Embaixador, um Conde e uma Condessa, Damas de Paço25 (são elas que

levam a Calunga – divindade espiritual ligada ao Candomblé), Vassalos, Porta-Estandarte,

Escravo (é ele quem carrega o guarda-sol do casal real), Caboclo de Penas, Baianas e outras

                                                       25 Segundo o Dicionário Virtual Houaiss 1.0: Paço: substantivo masculino; 1- habitação suntuosa para a realeza ou o episcopado; palácio; 2- Derivação: por metonímia - conjunto de pessoas que habitam esse palácio; 3- edifício onde se reúne o conselho ou a câmara municipal.  

  156

figuras como os corneteiros e animais. São as danças destas figuras representadas no cortejo

do Maracatu Nação, suas fisicidades e corporeidades que fazem parte da constituição do

grande reservatório/motor que possibilita o acesso às máscaras dell’arte através das técnicas

de translocação e transdução - ambas as técnicas serão explicadas mais adiante, aqui, faz-se

necessário esclarecer quais as práticas espetaculares populares brasileiras que incorporam

estas duas técnicas.

Seria um discurso muito prolongado descrever a dança de cada uma destas figuras,

então remeto o leitor interessado por estas, aos estudos de Maria Alice Amorim e Roberto

Benjamin (2002). Ainda, aos leitores que desejam mais informações sobre o maracatu Nação

e seus cortejos, remeto-os, sobretudo, aos estudos específicos do maracatu rural de Roseana

Borges de Medeiros (2005), Ana Valéria Vicente (2005), Mariana Cunha Mesquita do

Nascimento (2005) e Severino Vicente da Silva (2005). Também, faz-se importante

mencionar o acervo do Museu do Homem, no centro da cidade de Recife e a importância de

visitar e ver os desfiles dos maracatus26.

As danças das figuras do Maracatu são utilizadas como força motriz da técnica de

transdução. Por exemplo, a dança da figura do Porta-Estandarte geminada com a do rei e da

rainha é utilizada na composição da máscara física do Brighella. Já em um momento de

locomoção específica desta mesma máscara (quando está bêbado), emprega-se a dança do rei

e da rainha. Outro exemplo é a dança dos escravos e das baianas, utilizadas em ações das

máscaras da Servetta, Cortigiana e, também, Brighella, enquanto o passo do cavaleiro é

utilizado para ações da máscara do Capitano.

Esta mesma relação é estabelecida com o Cavalo Marinho. Formado por muitas

figuras, com momentos de interação com o público, outros de total entrosamento técnico,

improvisação e descontração somente entre os brincantes, é uma prática espetacular que

mereceria um estudo muito específico. Porém, mais uma vez, adentrar tal universo seria

perder-se nele e fazer uma pausa ou desvio demasiado longo no processo de compreensão dos

encaminhamentos das técnicas que compõem esta pesquisa.

Em linhas gerais, segundo o pesquisador Erico José Souza de Oliveira (2007), o

Cavalo Marinho é uma prática espetacular que abarca figuras e fragmentos advindas de outras

manifestações espetaculares populares da região Nordeste do Brasil. Como é o caso dos

Galantes, figuras muito próximas do folguedo da Marujada e, também, dos Reisados, ou da

                                                       26 Não poderia deixar de indicar a apreciação e visitação aos próprios cortejos desta pratica espetacular - a melhor das possibilidades para uma compreensão mais detalhada, não só das danças e figuras do Maracatu de Baque Virado, mas também da estrutura e identidade dos grupos que fazem esta prática espetacular popular brasileira. 

  157

figura do Boi e toda a trama que o envolve, um trecho claramente ligado ao folguedo do

Bumba meu boi. Somente por estes dois exemplos já se pode vislumbrar a vastidão de

conexões que o Cavalo Marinho desencadeia. Para esta pesquisa e, principalmente, para este

momento desta pesquisa, detenho-me em ocupar as danças dos Galantes e do margüio,

momento em que o público pode interagir na brincadeira, juntamente com os brincadores27.

Os Galantes fazem parte, segundo Oliveira, de um momento religioso da brincadeira do

Cavalo Marinho, com suas danças e cantos de louvação, eles saúdam os Reis do Oriente.

Algumas das danças dos Galantes são realizadas com arcos enfeitados com fitas – no caso da

utilização destas danças nas técnicas de translocação e transdução, os arcos são substituídos

por objetos da cena ou a evolução é feita sem nada nas mãos. Também aqui para os leitores

que anseiam por mais informações sobre os Galantes, a estrutura das suas danças e sobre o

próprio Cavalo Marinho, vejo a necessidade de reencaminhá-los para estudos mais

específicos, como os realizados pelos pesquisadores Erico José Souza de Oliveira (2007),

John Murfhy (1994), Mariana Cunha Mesquita do Nascimento (2005) e Alício do Amaral

Mello Júnior e Juliana Teles Pardo (2004).

A dança dos Galantes com todas as suas evoluções, na minha prática, é muito propícia

às ações da máscara de Pantalone e, também, para ações com a máscara dos Nobili e Capitano

– todas as três máscaras utilizam a dança e evoluções realizadas pelos Galantes, cada qual

dentro do seu caráter. O “margüio”, nesta pesquisatriz, além de servir às ações das máscaras

do Pantalone, Capitano, Nóbili, serve às máscaras de Arlecchino e Zanni.

Conforme já anunciado, o Cavalo Marinho não faz parte da composição de nenhuma

estrutura das máscaras físicas da commedia dell’arte, mas da composição de ações de muitas

delas, mesmo caso do Caboclinho, do Xaxado e do, já comentado, Maculelê.

O Caboclinho é também uma manifestação espetacular popular pernambucana, cuja

dança carrega o mesmo nome da manifestação. Segundo Ana Valéria Vicente (2005), o

Caboclinho comporta e representa a herança indígena do povo brasileiro. Durante o carnaval

de Recife, os Caboclinhos desfilam ao som de uma percussão feita por eles, com arcos e

flechas e flautas. Porém, com o desenvolvimento do carnaval e a vontade de renovação e de

ser mais vistoso aos olhos da alteridade, movimento natural da competição entre grupos, fez

com que os grupos de Caboclinhos adicionassem à música que acompanha os desfiles, gaitas,

surdos e ganzás.

                                                       27 O pesquisador Erico José Souza de Oliveira, nas páginas 251 e 252 do livro “A roda do mundo gira: Um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado – PE)” explica mais detalhadamente o momento do margüio na brincadeira do Cavalo-Marinho.  

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Segundo Valéria Vicente, as danças do Caboclinho estão ligadas às danças indígenas

das tribos da região da Paraíba e Pernambuco, nelas também está a ligação com os cultos de

pajelança, chamado pelos seguidores de Catimbó, e possui relações estreitas com o

Candomblé de Angola e com o samba de Caboclo (LODY, 1977), onde o culto da Jurema,

entidade indígena, é muito forte.

O caboclinho, na minha prática da técnica de transdução, é utilizado nas ações das

máscaras do Zanni, Capitano e Cortigiana.

Também o xaxado faz parte de ações de algumas máscaras dell’arte, sem fazer parte

da base de nenhuma delas. Na verdade, o xaxado é uma dança pouco utilizada, por não

possuir grande variedade de ritmos e passos. Segundo Câmara Cascudo (1972), o nome

Xaxado vem do som das alpargatas de couro que os cangaceiros arrastavam no chão no ato da

dança. Sendo uma dança que se expandiu por todo o nordeste através dos cangaceiros, o

xaxado possui um ritmo cadenciado pelo som das alpargatas e pancadas de rifles no chão e é

uma dança tipicamente masculina. Esta dança, na técnica de transdução, serve muito às ações

das máscaras do Zanni, Brighella, Capitano e Pantalone.

Seguindo as referências das manifestações espetaculares populares brasileiras que

utilizo neste momento da pesquisa, introduzo, também, o samba - outro imenso universo, com

tantas variantes, que se torna difícil vislumbrar os limiares do discurso. Para as máscaras

dell’arte, utiliza-se muitas variações do samba: samba de roda; samba dançado por passistas

das escolas de samba, também chamado de samba de quadra; outros passos que vêm do

samba que se dança em par, também conhecido por samba de gafieira e muitos outros.

Com tamanha inundação, vejo como melhor possibilidade de organização e

compreensão, na medida em que avançar nas explicações, reencaminhar o leitor a estudos

mais específicos do samba.

Indiscutivelmente, o samba está ligado ao ritual e à festa. Baptista Siqueira (1978) faz

um estudo sobre o samba, perseguindo a origem do termo. Em documentos da fase de

catequisação dos índios28, encontram-se referências deste termo entre os índios Cariri,

Tapuias e de língua tupi, descobrindo que este sempre teve relação com a festa ou com

reunião de pessoas. Diz ainda que, o termo “samba” é a junção de três outras palavras: S igual

a “sua”, amb igual a paga (troca) e a igual a “gente” – o que resulta nua espécie de “troca

entre pessoas”. Seguindo seu estudo, Siqueira lembra que, entre os índios de língua tupis, as

danças em grupo sempre tinham relação com rituais ou cerimônias relacionados às práticas

                                                       28 Estes documentos se encontram na seção de livros raros da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 

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herdadas de seus ancestrais, com isso, a conexão do samba com o ritual e a festa se faz real.

Seguindo esta mesma linha conectiva, vale lembrar que Ana Maria de São José chama a

atenção para a pesquisa do Dr. José Adriano Fenerik (Depto de História da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), lembrando que existem depoimentos que

afirmam a origem do samba dentro dos terreiros de macumba.

São José assinala, ainda, que a palavra samba, advém da relação com semba, palavra

de origem angolana que faz referência a um movimento específico da dança, a umbigada,

muito presente no samba de coco (ou coco) e no samba de roda. Ainda no seu estudo sobre o

samba de Gafieira, São José (2005, p. 113) adentra o samba de roda, fazendo a relação e a

descrição dos passos desse samba29 que possui forte interação com o Batuque, a capoeira e o

ritual – o samba de roda é realizado no final da roda de capoeira como modo de

agradecimento, louvor e de festejar os feitos dos antepassados – e, nesse ponto, o samba

reencontra o ritual e a ancestralidade.

Tanto Baptista Siqueira quanto São José fazem um rápido panorama das várias

influências que o samba recebeu de cada região do Brasil, o que cooperou para o

desenvolvimento de vários estilos de samba, tanto na música quanto na dança.

A ligação do samba com o ritual e a festa (e, portanto, com o jogo) vem desde a sua

ligação com a cultura indígena e também com a cultura afro-brasileira, no samba de coco, no

samba de caboclo, no samba de roda, no samba duro e nas várias outras misturas ocorridas no

transcurso desta manifestação espetacular popular brasileira, conforme assinalam

Siqueira(1978), Leopoldi (1977) e São José.

A palavra samba também tem conexões dentro do candomblé, conforme assinala René

Ribeiro(1982) quando comenta sobre os Xangôs de Recife (como são chamados os

Candomblés) e fala do culto afro denominado Ketu, dizendo que estes são aqueles que se

intitulam Shamba. Esta mesma afirmação sobre os cultos Ketu e o Shamba é mencionada

quando Ribeiro fala das festas de Ibejis30, ou melhor, do Shamba de Ibejis.

Na técnica de transdução, o samba de roda é muito utilizado em ações do Pantalone e

Brighella, mas serve às ações da Servetta, Cortigiana e Capitano.

Outro tipo de samba que utilizo muito é o samba dançado nos desfiles de carnaval nas

regiões do Rio de Janeiro e São Paulo, também conhecido popularmente como samba de                                                        29 Não está, entre os objetivos deste estudo, elencar os movimentos que fazem parte do samba de roda, samba de gafieira ou samba de quadra, para os que anseiam mais informações, como nomenclaturas e explicações dos passos, reencaminho para: Samba de Gafieira: Corpos em contato na cena social carioca, de Ana Maria de São José. 30 Segundo René Ribeiro (1982, p. 140-144), a festa de Ibejis, no Candomblé Ketu, é referente ao culto dos gêmeos, crianças, Ibeji e Hojo, seres da floresta e grandes conhecedores de magia. 

  160

quadra ou, conforme assinala São José, samba no pé. Este tipo de samba é totalmente ligado

ao carnaval e caracteriza-se por uma dança ágil e sensual. Segundo Leopoldi, que analisa os

encaminhamentos tomados pelas escolas de samba ao longo de cada ano para a preparação do

desfile e festa do carnaval, este samba possui uma ligação muito específica com o ritual, ele

vê os procedimentos das escolas de samba, antropologicamente, como rituais de uma

sociedade e reafirma o carnaval como evento ritualístico31.

O samba de quadra possui movimentos muito mais expansivos que o samba de roda e

está na base da máscara física da Servetta e da Cortigiana, mas também pode servir a ações

das máscaras da Nobile, Capitano, Zanni e Arlecchino.

O samba é utilizado em vários dos seus desdobramentos, principalmente, o samba de

roda e o samba de quadra, a não escolha por apenas um estilo de samba se dá porque esta

pesquisa não fixa ou refuta um estilo, ela segue um fluxo subjetivo de dados que utiliza o

reservatório inerente para acessar as máscaras dell’arte sem realizar uma seleção racional32.

Outra prática espetacular popular brasileira que também possui uma imensidão de

desdobramentos e que segue os mesmos mecanismos de “não seleção”, são as danças dos

Orixás33. O Candomblé é tão complexo dentro de seus desdobramentos que devo dizer que

aqui, mais do que em todas as outras práticas espetaculares populares que integram esta

pesquisa, o princípio da “não seleção” é quase condição para que a técnica de transdução

aconteça. Isso porque, durante muito tempo, visitei terreiros de diversos segmentos do

Candomblé: Terreiro de Linha Cruzada, Batuque, Umbanda, Candomblé de Angola, Xangô,

Nagô e Ketu. Em determinado momento da técnica de translocação, as danças oriundas de

mais de um terreiro se misturaram. Devido aos desdobramentos e conectividades

diversificadas do Candomblé, prefiro falar nas danças dos Orixás sem especificar de que

terreiro ou linha estou falando. Não é um modo de generalizar, mas de não se deter em

questões sobre espaços e territórios entre linhas e terreiros diversos, uma discussão que não

faz parte do nosso objeto de estudo.

Cada Orixá possui sua dança e uma gama de passos diversos, podendo, ainda,

diferenciar-se e de terreiro para terreiro. Apreendi muitas danças diferentes, desde as

                                                       31 Para saber mais sobre Escola de samba e ritual, ler: Escola de Samba, ritual e sociedade, de José Sávio Leopoldi.  32 Certamente que, neste momento da pesquisa e da produção da tese, foi necessário um recorte, pois continuo e continuarei apreendendo outras práticas espetaculares populares brasileiras e sempre que solicitadas, integrá-las-ei às máscaras dell’arte, através da técnica de translocação e transdução. Como afirmei anteriormente, não jogo uma âncora, o processo de pesquisa e apropriação das máscaras dell’arte através de células de práticas espetaculares populares brasileiras continuará vadeando em muitos mares.  33 Os Orixás mais importantes, segundo a tradição Ketu de Candomblé, são 16: Exu, Ogum, Oxóssi, Xangô, Omolú, Ewá, Logum Edé, Oxumaré, Ossain, Oxalá, Êres/Ibejis, Iansã, Oxum, Iemanjá, Obá e Nanã. 

  161

estilizadas (utilizado por grupos folclóricos e ligados à dança contemporânea) até os mais

ritualísticos, realizados dentro dos próprios terreiros de Candomblé, com quem não tem a

dança como profissão, mas a devoção ao Candomblé, à Linha Cruzada, ao Xangô, ao

Batuque, ao Candomblé de Angola, à Jurema – para esta pesquisa, todo o acervo apreendido

no decorrer de anos, serve de reservatório e motor para as técnicas de translocação

caleidoscópica e transdução caleidoscópica.

Conforme explicado, não utilizo somente as danças dos Orixás de um determinado

terreiro. Fazem parte de meu reservatório e motor danças apreendidas em terreiros de Linha

Cruzada, Candomblé de Angola e Ketu, sem nenhum tipo de resistência ou preferência, aquilo

que a máscara dell’arte requer energética ou fisicamente, a imaginação vai buscar no acervo

muscular incorporado. Como exemplo deste mecanismo, posso citar a máscara do Arlecchino,

enquanto que, para as pernas e pés, esta máscara requer frevo e capoeira, para o tórax, ombros

e braços, os quais possuem posturas bem específicas, ela requer uma movimentação advinda

de uma dança de Iansã da Linha Cruzada - também conhecida nesta linha como Pombogira34.

As danças dos Orixás são muito utilizadas por mim, para as máscaras dell’arte e,

também, para a técnica de translocação caleidoscópica, pois possuem uma variedade de

corporeidades e fisicidades muito grande, com gestos expressivos e cheios de uma

comunicação “além da razão”. Tais danças, segundo a pesquisadora Suzana Martins, possuem

uma forte ligação com outra esfera da realidade, por se relacionarem de modo incomum com

o tempo. É na dança e no ritual que passado, presente e futuro relacionam-se, é como se

codividissem o espaço/corpo/atmosfera do local e daqueles que estão ali presentes – em

diferentes graus, a depender da capacidade de disponibilidade de cada um. Nos festejos em

homenagem ao Orixá, ritual e festa codividem o mesmo espaço fisico e imaterial. No ritual e

nas próprias danças, é possível perceber o dado sensível que se perpetua e se renova - é o

DNA imaginal transgredindo as leis comuns de tempo e espaço:

Seguindo a sequência de gestos que correspondem às qualidades e características de cada um deles [dos Orixás], os religiosos (“nós, rodantes” Janail Peixoto, 1992) continuam a se locomover, em sentido anti-horário, o que significa “voltar ao passado”, aos ancestrais. “A música, o ritmo, a dança são extensões dessa expressão.

                                                       34 Na Linha Cruzada, a Pombogira também é chamada de Exu Mulher, pois é o feminino da força de Exu. Esta relação entre a Pombogira e Iansã é comum em algumas linhas, no Candomblé Nagô, por exemplo, Iansã é muito próxima aos Exus. Considerada a senhora dos Eguns (ou Eguguns espíritos perdidos) é ela quem guia tais espíritos. Tal como os Exus, ela também atua como mensageira entre as almas e os homens - e outra vez, através de Iansã ou Pombogira, as conexões podem se enredar ao infinito... Arlecchino – Pombogira – Exu... e daí para o Zanni, Bufão e Dionísio. Para saber mais sobre a relação de Iansã e Eguns, ler: Iansã do Balé Senhora dos Eguns, de Sebastião Guilhermin; Oya: Um louvor à Deusa Africana, de Judith Gleason; A dança do vento e da tempestade, de Rosa Maria Susanna Bárbara. 

  162

Suprimiram as fronteiras territoriais, contrariaram o sentido do tempo cronológico; o tempo deles não gira no sentido do relógio, mas, como roda ritual, busca um contato mais profundo com a ancestralidade” (LIGÉRIO apud MARTINS, 2008, p.43)

Gilbert Durand (1963) também ressalta esta relação com o tempo dentro das estruturas

ritualísticas, afirmando que a necessidade de “pará-lo” e celebrá-lo faz parte da sua formação

ritual. Segundo Durand, a dança, nestes rituais, ganha um caráter ambíguo: além de

representar o antepassado, ela também ganha a força de uma dança da vitória sobre o tempo,

pois através da supressão deste, ela possibilita a sua perpetuação e, dentro dela, acontece o

encontro com o antepassado e o ancestral.

A pesquisadora em sociologia Rosa Maria Susanna Bárbara (1995) fala que as danças

dos Orixás expressam o equilíbrio dinâmico do universo, pois os Orixás possuem relações

com o universo e todos os seus elementos, dessa forma, suas danças “[...] simbolizam as

energias da natureza [e], expressam esse eterno e alterno ritmo, que continua em ciclos

infinitos [...] As danças das divindades tornam-se, assim, a síntese do ritmo humano, do

nascimento, da morte e dos ciclos cósmicos da criação e da destruição” (BÁRBARA, 1995, p.

72-73).

Bárbara (1995, p.73) toca num ponto muito importante para esta pesquisa, o que talvez

tenha sido o início do processo de imaginação caleidoscópica do interesse por esta prática

espetacular popular brasileira e as máscaras dell’arte:

Através da dança, o corpo sai da sua própria individualidade física e insere-se num movimento mais amplo que interessa à coletividade, à natureza, à divindade e ao cosmo todo. Distante da dança sagrada é um modo de fundir-se num único corpo vivente com as energias da natureza.

Penso que foi esta qualidade de movimentos que abrangem a coletividade, os quais,

como já comentado anteriormente, possuem genes/partículas vindouros do Fundo Comum dos

Sonhos, de um universo imaginário líquido que transborda e punge a realidade objetiva, que

foram os agentes conectivos destas danças ritualísticas e as máscaras dell’arte.

É nesta gestualidade ancestral que atua com uma transgressão ou supressão de

quaisquer fronteiras temporais e territoriais, que percebi sensivelmente a atuação do processo

de imaginação, sentindo a possibilidade de utilizar tal gesticulação ancestral para o acesso das

máscaras dell’arte. Para esta pesquisatriz, mais que conseguir acessar as máscaras dell’arte, o

interesse está em conseguir uma qualidade específica de movimentação para as máscaras

acessadas. Procura-se uma qualidade inerente à máscara, intenta-se reencontrar o aspecto

ancestral dionisíaco destas, em outras palavras, o aspecto xamânico que toda máscara deve

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portar e que Claudia Contin tanto sublinha dentro de sua visão e prática das máscaras

dell’arte. Para esta pesquisa, estes genes que se repetem, renovam-se, transformam-se e

propagam-se rizomaticamente, que se emanam nos movimentos que integram as

manifestações espetaculares populares brasileiras sem controle, nem limiares, podem ser um

dos principais agentes do acesso às máscaras dell’arte que proponho. São movimentos que

possuem uma capacidade de identificação fasciculada ou, até, de uma conexão submolecular

de desdobramentos de um DNA imaginal, reunindo características novas e ancestrais.

É necessário dizer que esta pesquisa não trata da atmosfera destas manifestações

espetaculares populares ou sensações provocadas por estas, mas busca compreender como um

processo imaginativo ocorre na musculatura de um corpo prazenteiro que (se) emana em

ancestralidade festiva (OLIVEIRA, 2007) a partir destes dados sensíveis.

Da mesma forma que nas danças ritualísticas dos cultos a Dionísio, os Sátiros

representavam e incorporavam o mito, o mesmo acontece nas danças do Candomblé, segundo

Roger Bastide (1978, p. 22), “[...] a dança constitui a evocação de alguns episódios da história

da divindade que são fragmentos do mito e o mito tem que ser representado ao mesmo tempo

em que contado para adquirir todo o poder evocador” e este mito é contado e incorporado nos

elementos do ritual: movimentação, música, canto, travestimento, ser travestido e toda a

estrutura que comporta o ritual.

Mas a utilização das danças dos Orixás não está na busca da incorporação do mito do

Orixá, para esta pesquisa, a movimentação das danças é válida pela conexão com o Fundo

Comum dos Sonhos e, então, pelo processo de imaginação e Fundo Poético Comum. As

danças dos Orixás estão dentro das práticas espetaculares populares brasileiras que possuem a

conectividade com uma atmosfera cósmica que ultrapassa limiares comuns à realidade

objetiva, como espaço/tempo/cultura.

Algumas imagens das danças dos Orixás que utilizo podem ser vistas nos estudos de

Suzana Martins (2008) - dança de Iemanjá; de Rosa Maria Bárbara (1995) - dança de Iansã-

do vento, da guerra, do afastamento dos Eguns, da borboleta, no xirê; de Karliane Macedo

Nunes (2008) - imagens do gestual dos Exus e de Marlene de Oliveira Cunha (1986) -

imagens da gestualidade dos Orixás no Candomblé de Angola. Ainda mais adiante, serão

inseridas no corpo textual desta tese, imagens dos movimentos deslocados das manifestações

espetaculares populares brasileiras e entre elas estarão alguns códigos das danças dos Orixás.

As danças dos Orixás, na técnica da transdução, são utilizadas de modo muito

específico e, como dito, interagem, em graduações diferentes com todas as máscaras dell’arte.

As danças de Ogum, Xangô, Oxóssi e Omolú são muito utilizadas nas ações das máscaras do

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Capitano e do Zanni. As danças de Ogum, Xangô, Iansã, Iemanjá e Oxum servem muito às

máscaras da Cortegiana e da Servetta. Pantalone utiliza a movimentos de Oxalá e Nanã e,

dessa maneira, quando necessário, as máscaras requerem os movimentos deslocados das

danças dos Orixás.

Os exemplos acima são conexões que podem ser estabelecidas mais rapidamente

dentro deste pensamento gramíneo que se ramifica torrencialmente e incontrolavelmente. Mas

foi deste prévio conhecimento que as técnicas de translocação e transdução foram

engendradas, seguindo uma torrente de dados, deixando-os agirem em minha subjetividade

para, então, tentar apreendê-los35 e compreender o mecanismo do processo de imaginação

pelo qual os dados estavam passando.

Realizado um rápido panorama das manifestações espetaculares populares brasileiras

que integram o grupo das práticas espetaculares desta tese, sem adentrá-las em detalhes, pois,

como já afirmado diversas vezes, não se trata de relações comparativas e, além disso, adentrar

nos pormenores de cada prática espetacular popular brasileira seria uma suspensão no

pensamento dos encaminhamentos que compõem esta pesquisa, prossigo no intento de

explicar o funcionamento das técnicas de translocação e transdução.

Primeiro intento tornar inteligível a técnica de translocação, força motriz da técnica de

transdução. Todas as três técnicas que compõem o acesso às máscaras da commedia dell’arte

(bufão, translocação e transdução) funcionam pela comoção de dados sensíveis, através de um

sistema de imaginação e dinâmica recíproca entre Fundo Comum dos Sonhos e Fundo Poético

Comum.

Dentro deste processo fluvial, torrencial e aluvial de aprendizado pela dúvida e

incerteza, apreensão e comoção de dados, pouco a pouco, fui esquematizando uma prática

para deixar os movimentos deslocados das práticas espetaculares populares brasileiras com

formas bem definidas, realizando um trabalho detalhista, voltado para as questões plásticas e

estéticas dos movimentos, mas sem perder os circuitos energéticos que cada movimento cria -

tentando trazer com os circuitos musculares, os circuitos energéticos inerentes ao movimento

de cada manifestação espetacular popular.

A técnica de translocação, a qual é a força motriz da transdução, requer uma prática

sistemática dos dados apreendidos, conforme dito, não somente na presença e convivência em

                                                       35 Para saber mais sobre as danças dos Orixás, ler: Em busca de um espaço: a linguagem gestual no Candomblé de Angola, de Marlene de Oliveira Cunha; A dança do vento e da tempestade, de Rosa Maria Suzana Bárbara; A dança de Yemanjá Ogunté sob a perspectiva estética do corpo, de Suzana Maria Coelho Martins; Xetro, marrombaxetro, caboclo! A construção do corpo caboclo nos candomblés da cidade de Cachoeira – BA, de Sérgio José de Oliveira. 

  165

campo, a qual se deve sempre revolver, mas em laboratórios individuais, em sala de ensaio.

Neste sistema de trabalho em sala, com o tempo, cada movimento deixa de ser uma dança ou

um golpe e torna-se parte de uma partitura esquematizada e desenhada. Através deste

trabalho, os movimentos começam a ser pensados/conhecidos como possibilidades de

representação e ação - criando uma “linguagem” muito específica. Esta “linguagem” corporal

proporciona-me um modo muito particular de contar/viver uma história, possuindo uma

presença de corpo com desenhos/formas definidos e uma linha de ação muito “colorida” em

termos de ritmos e energias, através da ideia da formação de circuitos musculares e

energéticos. Isto é, quando codifico um golpe de capoeira, mantenho na musculatura a energia

com que este golpe é dado quando se está jogando capoeira. Ou, ainda, um passo de frevo

deve manter o circuito muscular e energético das pernas, mesmo quando geminado com uma

movimentação dos braços da ciranda que, por sua vez, também manterá seu circuito muscular

e energético. O que acontecerá é uma geminação dos circuitos, em algumas instâncias, estes

dois circuitos complementar-se-ão, compartilharão e comungarão de pontos energéticos e

musculares, formando um novo circuito resultante de tal enredamento.

Repito que a escolha pelas manifestações espetaculares populares brasileiras que

integram esta pesquisa não segue nenhum critério se não o de já assimilar, na musculatura

desta pesquisatriz, o que torna a técnica criada para possibilitar o acesso às máscaras dell’arte

muito mais específica. Ainda, as danças, golpes e movimentos deslocados não são utilizados

tal qual acontecem durante os eventos em questão, mas passam por um processo de

apreensão, codificação e decomposição/decodificação, para serem relocadas em partituras de

ação.

A codificação é a transformação de cada movimento ou passo das danças ou golpe das

lutas em uma sequência de movimentos muito bem organizados fisicamente e a

decomposição/decodificação consiste em esfacelar este código ainda mais, transformando-o

em células, cada célula se torna uma peça que formará as imagens criadas pelo sistema

caleidoscópico. Por exemplo, o golpe de capoeira cujo nome é “queixada” pode ser um

código, porém, para ser realizado, é necessária uma série de movimentos, assim, o golpe é

decomposto em códigos ainda menores (movimento da perna esquerda e direita, braço

esquerdo e direito, pé esquerdo e direito, quadril, mão esquerda e direita, cabeça), desse

modo, cada movimento executado por uma parte do corpo para a execução do golpe constitui

uma célula/componente do código.

O momento de codificação é de dedicação e paciência por parte do pesquisator, que

deve, primeiro, exercitar-se por um período significativo, ao menos até obter certa autonomia

  166

dentro destes códigos, misturando-os em uma sequência a ponto de executá-los sem

raciocinar, deixando-se levar pela lógica dos movimentos e fluxo das energias (ex.: um passo

de maracatu é seguido de um passo de frevo, que é seguido de um passo de ciranda, depois

por um golpe de capoeira...). Dessa forma, o corpo vai aprendendo a associar ritmos e

movimentos de dinâmicas diversas e os circuitos vão-se coligando em uma linha contínua de

ação, realizando o transpassamento de um circuito para outro e criando as imagens

caleidoscópicas.

O exercício contínuo desta prática faz com que o pesquisator adquira uma capacidade

na execução dos diversos ritmos e agilidade na realização dos códigos e na ação de geminá-

los. Quando o pesquisator chega à habilidade de geminar tais códigos, é porque os dados

estão começando a agir de modo autônomo. Da codificação para a realização da

decodificação, é uma questão de tempo, pois a própria musculatura, na prática do esforço nas

questões de fisicidade e corporeidade de cada movimento que compõem um passo ou golpe,

começa a realizar a decodificação dos mesmos. Porém, as duas etapas não podem ser

realizadas ao mesmo tempo, pois na codificação o “foco” é aberto, isto é, a atenção é

direcionada para o código completo, como um todo e, na decodificação, o foco é direcionado

para cada movimento que forma o código.

Também é importante que, num primeiro momento de apreensão e demarcação dos

códigos, os exercícios das danças e golpes que compõem as práticas espetaculares populares

brasileiras que integram o grupo que serve como força motriz para a transdução, sejam

realizados dentro dos seus contextos rítmicos e musicais: frevo com frevo, caboclinho com

caboclinho, cada dança de Orixá com o seu toque. Posteriormente, quando os códigos já

estiverem fixados e bem definidos, aí então, faz-se o exercício de conjugação dos circuitos

utilizando um só ritmo musical.

O ritmo utilizado por esta pesquisatriz é o samba, pois dentro dele é possível encontrar

a noção de base de todos os outros ritmos das manifestações espetaculares populares

brasileiras que fazem parte desta pesquisa36. Já no momento de transpassamento e geminação

dos circuitos, da mistura de passos de práticas diferentes (pernas do “margüio” do cavalo-

marinho e braços do caboclinho), nem sempre utilizo o samba, às vezes, utilizo batuque de

Candomblé e, outras vezes, o trabalho é realizado sem música – tudo depende da ação dos

dados, não há uma receita para a ação da subjetividade.

                                                       36 Faço esta observação, partindo da minha experiência de pesquisatriz, sem afirmar o samba como ritmo contentor de outros ritmos, foi uma escolha pessoal. 

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Devo fazer uma importante observação, mesmo que as manifestações espetaculares

populares brasileiras utilizadas nesta pesquisa, inicialmente, sejam embaladas, cada qual por

seus ritmos e músicas e, numa segunda fase, seja utilizado um único ritmo para embalar a

coligação dos circuitos, não se trata, em nenhum momento, da estruturação de coreografias de

dança. Trata-se de um exercício de contínua produção e transição entre os vários tipos de

energias produzidas pelas práticas espetaculares populares brasileiras sem racionalizar,

mantendo o grau de improvisação e subjetividade, muitas vezes inerentes às próprias

escolhidas.

Também é necessário esclarecer que o uso de um único ritmo musical não é para

simplificar o trabalho, ele serve como “argamassa”, como impulsionador e ligame dos fluxos

de energias e circuitos musculares, deixando que tais circuitos hajam num processo de não

racionalização. Neste momento de laboratório individual e exercício em sala, a música

representa um retorno à festa e ao ritual37, servindo como elemento recordativo do processo

de instauração de ambos no corpo do pesquisator. Além de representar esta record/ativa ao

ritual e à festa como eventos que se instauram, a música serve, também, para a transformação

destes dois eventos em “material técnico”. Conforme Angel-B Espina Barrio (2005), nos

capítulos dedicados a “Antropologia Social. Sistemas Religiosos” e “Etnografia”, é preciso

considerar a música e a dança como aspectos que sempre acompanharam o ser humano, nem

sempre as duas estão presentes conjuntamente, mas ambas estão relacionadas ao ritual, à festa

e, em muitas culturas, a uma alteração de estado de consciência, sem contar no aspecto lúdico

(do jogo) que todas as duas apresentam.

Tornando ainda mais nebulosa a tentativa de explicação do funcionamento das

técnicas de translocação e transdução, é preciso considerar dentro dos mecanismos que as

compõem, espaços como “terras de ninguém”, são os “espaços entre-circuitos”, cuja gerência

é de total subjetividade – ali, onde a memória falha, a imaginação trabalha. Muitas vezes, um

circuito necessita realizar algumas pequenas modificações para se conectar ao outro, como

por exemplo, para transpassar de um passo de coco para um golpe de maculelê, é preciso

mexer nos circuitos que se formam no final do passo de coco e no início do golpe de

maculelê. O mesmo acontece com códigos que já foram decodificados, sempre que se

geminam dois circuitos diferentes é preciso fazer algumas pequenas modificações nestes, por

exemplo: para conectar as pernas do margüio do cavalo marinho, com braços e tronco de uma

                                                       37 Certamente que a música ao vivo é muito mais ritualística, com as vibrações dos instrumentos e/ou vozes, mas não se pode negar que a música, mesmo eletrônica, possui seus meios de manter o ritual e portar a estados de consciência diversos, ainda mais quando existe já a predisposição a esta transposição de atmosfera, adquirida em campo e auxiliada pela imaginação.  

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das danças de Omolu, é necessário que haja uma modificação nas extremidades de cada um

dos circuitos, no das pernas do cavalo-marinho que, ao invés de se conectar ao tronco e braços

habituais, vai se coligar com uma nova estrutura muscular e energética de tronco e braços.

Esta etapa de translocar os códigos/células das práticas espetaculares populares

brasileiras, deslocando-os para se relacionarem com outros códigos/células de manifestações

espetaculares populares brasileiras, que não os de costume, requer uma dedicação e prática

sistemática.

O processo de decodificação exige que o pesquisator trabalhe no detalhe de cada

código. Quando a decodificação dos passos e golpes estiver definida na musculatura, começa-

se a realizar a translocação das células. Este processo segue o mesmo encaminhamento do

trabalhado realizado nas combinações das corporeidades e fisicidades dos animais na

formação do corpo do bufão - num processo aleatório, sem pensar, mas deixando que as

combinações aconteçam seguindo um fluxo dinâmico de energias que se movem e comovem

o pesquisator: pés e pernas de caboclinho e tronco, braços, mãos e cabeça de uma dança do

orixá Oxóssi; pernas e pés de cavalo-marinho, tronco, braços e mão de dança do orixá

Ogum... Assim, as células vão sendo conjugadas, geminadas = translocadas.

No processo de translocação, a intenção é chegar numa dinâmica orgânica de

combinações caleidoscópica, de modo que, através da prática sistemática, o próprio fluxo da

prática estabeleça sequências, as quais podem servir como partituras.

Na translocação caleidoscópica, as imagens que se formam são compostas por células

oriundas de diferentes manifestações espetaculares populares brasileiras (conforme tentativa

de explicação realizada) e constitui a chave para o possível acesso às máscaras dell’arte que

proponho nesta tese. Somente passando pelo processo de translocação é que o pesquisator

chegará ao processo de transdução. Somente com os códigos muito precisos e notadamente

decodificados é que ele poderá formar as imagens caleidoscópicas, que se movem e recriam

na musculatura as máscaras físicas da commedia dell’arte.

O trabalho que o pesquisator realiza, de certa forma, neste tipo de acesso às máscaras

dell’arte, é a de um montador de um grande quebra-cabeça, utilizando e reproduzindo as

peças no seu próprio corpo. São as pequenas modificações nos circuitos - trabalho realizado

pelo sistema de imaginação - que permitem que os códigos/células se geminem compondo um

corpo harmonioso.

Certamente que, nestas minúsculas ou pequenas modificações na rede dos circuitos

musculares, acabam modificando, também, um pouco do circuito energético dos códigos.

Contudo, estas modificações estão em níveis secundários, o que acontece, em nome desta

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comunhão, é uma adequação em ambos os circuitos, para a passagem do fluxo energético de

um código a outro. Mesmo com estas modificações, os genes primordiais vindouros de uma

outra esfera devem estar contidos e latentes no cerne de cada célula que compõem o código.

Através da musculatura, o pesquisator tem as ferramentas necessárias para manter pontos

energéticos e emanantes de cada código/célula, de modo a formar um único e novo circuito,

tão potente energeticamente quanto aqueles que o originam. Os novos circuitos possuem uma

riqueza em possibilidades de modulações energéticas, pois abarcam células de manifestações

espetaculares populares diversas que se conectam reinventando o “novo”.

No final do processo de translocação (e também no de transdução), percebe-se que as

pequenas modificações realizadas nos circuitos resultam em ondulações, graduações e

modulações energéticas que indicam ainda mais riqueza e possibilidades para as imagens

caleidoscópicas.

O processo caleidoscópico não é estático, os circuitos agem de modo contínuo, muitas

vezes se sobrepondo parcialmente ou deixando os “espaços entre-circuitos”, para a realização

das pequenas modificações e transformação dos diferentes circuitos em um só. Sabe-se que é

delicado relatar uma ação que “é” constante transformação e metamorfose, mas este modo de

conexão é a base prática para o acesso das máscaras dell’arte – também, por isso, é

importante para o pesquisator passar pela técnica do bufão, outra base prática desta pesquisa,

pois, como visto, ele também é transformação e metamorfose.

A prática sistemática da translocação, além de ser chave para as máscaras dell’arte,

constitui, ela própria, uma técnica que pode ser levada à cena. Ela pode ser encaminhada de

modo racionalizado ou de modo improvisado.

Para a criação de ações e cenas, dá-se continuidade ao exercício de trasnlocação de

células deslocadas das várias manifestações espetaculares populares brasileiras de modo

improvisado, deixando-se levar pelo fluxo dos movimentos, embalados pela música.

Posteriormente, acrescenta-se o texto, já contido na memória ou improvisado, o importante é

que o argumento esteja muito claro para que não seja necessário parar para pensar durante o

processo. O texto deve ser mais uma peça a formar as imagens caleidoscópicas, talvez não

chegue a ser uma peça, mas um fluido a mais, adicionado às imagens que transpassa e

trabalha junto com elas.

Também aqui, a prática com o mesmo texto falado é realizada muitas vezes, deixando,

num primeiro momento, a música embalar os códigos que deslizam no fluído literal que é o

texto. A repetição acaba por, algumas vezes, fixando algumas das geminações realizadas, e

estas insistências podem ser tomadas como uma parte da cena já estruturada, servindo-se a

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cena. Pode-se, ainda, deixar partes do monólogo para serem improvisadas no ato da

apresentação, ou a coligação das células e códigos podem ser estabelecidas de modo racional.

Neste último caso, o fluxo natural da movimentação deve ser estabelecido posteriormente,

com a repetição exaustiva da série das ações recriadas, buscando a pulsação energética e de

emanação através da musculatura, acionando os circuitos de modo a comover as energias e

forças oriundas de cada código.

É muito importante a coligação dos circuitos das células vindouras de diferentes

manifestações espetaculares populares brasileiras seguindo um impulso e fluxo natural,

mantendo em cada código e célula a sua pulsação e energia originária, pois este combustível

permitirá ao público, diante da cena, perceber os dados sensíveis que se movimentam sob as

ações desta. É exatamente neste vislumbramento de “dança das energias” que começa a

translocação caleidoscópica da cena intitulada “Alla ricerca di um Zanni”.

Penso que os encaminhamentos acerca de ambas as técnicas possam ser mais

esclarecedores se seguirem o transcurso através do processo de translocação caleidoscópica

para, depois, relatar nova navegação na cena de transdução caleidoscópica, mostrando como a

terceira técnica é quase uma consequência da segunda.

4.2. DE FESTAROLAS A TRANSDUÇÕES: ZANN PIEDINI38

“[...] O diálogo é reduzido ao mínimo funcional e deixa livre trânsito à fantasia gestual do ator [...] O Ator aqui se torna o narrador de uma ação, encarnando, ao mesmo tempo, seus personagens.”

Jean-Jaques Roubine (2002, p. 30)

A cena “Alla ricerca de um Zanni” é nata num processo metamorfoseante, passando

da experiência e técnica do Bufão à técnica de translocação, até chegar à técnica de

transdução e, então, à cena estruturada com a Máscara do Zanni. Zanni foi a máscara que

acompanhou o processo de endossamento de todas as outras que me foram ensinadas e,

algumas delas, confiadas pelos mestres Contin e Merisi. Um fato curioso é que, enquanto

estive na Scuola Sperimentale dell’Attore, eles confiaram a mim muitas outras máscaras,

menos Zanni e Arlecchino – aquelas que sempre afirmei serem as mais importantes dentro da

minha pesquisa. No seu livro e espetáculo “Gli Abitanti di Arlecchinia”, Claudia Contin fala

da necessidade de paciência para chegar às máscaras dell’arte, de como elas trabalham em                                                        38 Nome da minha máscara do Zanni, sugerido por Ferruccio Merisi, devido a uma série de pequenos acidentes que tive envolvendo meus pés - “João Pezinhos”. 

  171

você e que, nem sempre, os bons mestres dão ao aluno aquilo que ele quer no momento. E foi

nestes muitos mergulhos, passando pelas máscaras da Servetta, Cortigiana, Nobile, Pantalone,

Brighella e Capitano, que Zanni e Arlecchino foram ganhando força e estruturando suas cenas

de transdução, num processo pleno de modulações.

Através deste processo de passagem de translocação à transdução e de Zanni à

Arlecchino, obtive uma compreensão dos transcursos das máscaras dell’arte, principalmente,

de como a máscara do Zanni abre os caminhos para as outras máscaras e de como estas

máscaras conectam-se com o universo bufonesco e carnavalesco.

A cena “Alla ricerca di un Zanni” teve como primeiro elemento, o texto. Na verdade,

o texto não foi escolhido, ele que se escolheu, pois sua presença entre a prática das máscaras

dell’arte era insistente.

Trata-se de um texto totalmente inserido na cultura popular brasileira, reescrito das

histórias de Chicó, personagem da peça “O Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna. Na

cena com a técnica de translocação, utilizo uma compilação e livre adaptação do texto de

Suassuna, traduzido em italiano por L. Lotti: Guaraldi, 1992. Primeiro foi realizada uma

adaptação, depois, com o tempo, o texto de Suassuna foi servindo de guia, ao serem

acrescentadas expressões de dialetos italianos e também do português.

Em novembro de 2007, a Dr.ª Maria de Lourdes Rabetti convidou-me para fazer uma

participação em um seminário que seria apresentado no dia 12 de dezembro de 2007. O

seminário faria parte do Curso “Drammaturgia Teatrale”, desenvolvido pelo Dr. Roberto

Tessari no DAMS di Torino (UNITO), durante o acadêmico 2007/08 e dedicado às

“problemáticas histórico-críticas da Commedia dell’arte”. O seminário oferecido pela referida

doutora se intitulava “Semminario Temi della storia del teatro brasiliano: la commedia e

l’invenzione della tradizione” e minha participação seria uma “Demonstração prática de

trabalho de pesquisa sobre o personagem–tipo na peça ‘Auto da Compadecida’ de Ariano

Suassuna”, cujo personagem-tipo escolhido foi Chicó. Foi este primeiro estudo do

personagem Chicó que originou a cena intitulada “Alla ricerca di un Zanni”.

Estava trabalhando na cena para apresentar no referido seminário, quando fui fazer o

primeiro curso de commedia dell’arte com Contin e Merisi (no Teatro Ostia, província de

Roma/IT) exercitando-me com a técnica de translocação, apropriação das máscaras dell’arte

continianas e estruturação da técnica de transdução, durante esses processos, foi nascendo o

desejo de trabalhar o texto nessas técnicas. Enquanto tudo acontecia, o texto ecoava em meus

pensamentos e imaginação.

  172

Em janeiro de 2008, retomei as atividades de commedia dell’arte com Claudia Contin,

Ferruccio Merisi e Veronica Risatti, na sede da Scuola Sperimentale dell’Attore, em

Pordenone/IT. Durante o trabalho prático em grupo e em laboratórios individuais com a

professora Veronica Risatti, passando pelas máscaras dell’arte, o texto das histórias de Chicó

trabalhava em mim, de forma sutil e continuada. Estranhamente, perpendicularmente ao

trabalho com a commedia dell’arte, aquele texto continuava a pedir-me que fosse trabalhado,

que continuasse explorando suas possibilidades, pois a narração das histórias “vividas” por

Chicó assemelha-se muito aos monólogos dos Zannis: conversas e sonhos mirabolantes,

plenos de fantasia.

Então decidi escutar aquele impulso da atitude lúdica e transformar o texto das

histórias de Chicó em um monólogo da técnica de translocação, para depois transformá-lo em

um monólogo de Zann Piedini. Foi assim que surgiu a cena Alla ricerca di un Zanni com a

técnica de translocação, a qual ganhou este nome, por que foi (e é) um mergulho de

exploração da técnica de translocação e do caminho a ser percorrido para a realização de uma

cena do Zanni, a partir de códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras.

Os laboratórios foram realizados de forma individual, trabalhando só em sala de aula.

O primeiro passo foi trabalhar a cena a partir da improvisação com as células das

manifestações espetaculares populares brasileiras - técnica de translocação. Desse modo, a

história foi criando pulsação, expressa através de uma movimentação que se autogerenciava e

se autofixava de acordo com a lógica que o corpo criava utilizando tais códigos. Com uma

prática sistemática da técnica de translocação, a cena foi-se estruturando e (em algumas

partes) fixando-se, de forma espontânea e precisa.

Foto: Veronica Risatti “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: 23\junho\2008

A primeira vez que a cena “Alla ricerca di un Zanni” foi apresentada em público foi

no evento “Arreia”, em junho de 2008, produzido pela Scuola Sperimentale dell’Attore, na

sua própria sede, em Pordenone (ver texto integral e publicidade do evento no APÊNDICE C

E ANEXO C). Foi após esta apresentação que Contin e Merisi demonstraram interesse em

  173

dirigir um espetáculo dentro da minha proposta de mistura entre máscaras dell’arte italianas e

práticas espetaculares populares brasileiras – foi o início dos trabalhos para o espetáculo

“Papaietta Poliglota”.

Após esta primeira apresentação, Alla ricerca di um Zanni foi apresentada outras

vezes, na Itália, em Luxemburgo e no Brasil.

Intento, através da inserção de algumas imagens do referido monólogo, auxiliar na

compreensão da técnica de translocação. Faz-se necessário dizer que, em qualquer lugar que

seja apresentado o espetáculo, o texto é em italiano macarrônico39 (misturando português,

expressões de dialetos italianos e italiano clássico). Desde o início, esta cena foi trabalhada

desta maneira e, por este motivo, a tradução literal da cena é uma tarefa difícil. Também, a

meu ver, a tradução perde o sentido, uma vez que a apresentação deste trabalho é com esta

linguagem e é desse modo que a cena está no espetáculo e no DVD40:

“Eccomi qua! In questo mondo ci sono di storie... credi che uma moglie vuol benedire il suo

can per veder se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non so com’è questa gente,

ãh? Ma non c’è niente di stragno. Io stesso ho avuto um cavallo benedetto.”

De costas para o público, em um passo da dança de Oxaguiã – “Eccomi qua”.

Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubrro\2010.  

 

 

 

 

 

                                                       39 Forma de comunicação muito utilizada pelos bufões e cômicos dell’arte, cuja explicação mais detalhada, já foi dada anteriormente (no segundo capítulo).  40 Com isso, faço um breve resumo da situação da cena, cujo texto serve como exemplo - Nesta frase, o personagem comenta como o mundo é cheio de histórias. Após, conta que uma senhora quer benzer seu cachorro, para ver se ele não morre, afirmando que não vê nada de estranho nessa atitude, pois ele mesmo já teve um “cavalo abençoado”.  

  174

Girando de frente com um passo de samba; braços com a postura da ciranda – “in questo

mondo ci sono di storie”.

Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009.

Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni”

Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009.

Passo do margüião do cavalo-marinho, aproximando-se do

público – “credi”.

Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009.

Passo de ciranda e mãos da dança dos Orixás (Ogum) -

“che una donna” - “vuole benedire il suo cane”.

Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni”

Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009

“Passo à frente” da Capoeira regional, braços e mãos da dança dos Orixás (Iemanjá)

(cabeça faz o golpe de máscara) – “per vedere se l’animale non muore”.

Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009

  175

Parada sobre os calcanhares do samba ou da dança do

Exu (Zé Pilintra) - “Beh!”.

Foto: Léo Azevedo

“Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae

Data: outubro\2009

Passo de frevo – “dico cosí perché non

so come è questa gente”.

Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009

Passo de frevo com mãos de dança dos Orixás (Oxumaré) –

“Éh!?”.

Foto: Léo Azevedo “Alla ricerca di un Zanni”

Atuação/Direção: Joice Aglae Data: outubro\2009

Ginga da capoeira com mãos da dança de Oxumaré – “ma non c’è niente di strano” –

Foto: Léo Azevedo

“Alla ricerca di un Zanni” Atuação/Direção: Joice Aglae

Data: outubro\2009

  176

E, dessa maneira, em um caleidoscópio de células/códigos advindos das práticas

espetaculares populares brasileiras, toda a sequência foi sendo engendrada, sendo que a sua

estrutura é constituída de uma porção rígida e outra flexível (OLIVERA, 2007), isto é, partes

bem recodificadas e fixadas e outras com espaço para improvisações com os códigos.

Um exemplo da estrutura rígida que constitui esta cena é a “presença” de um preto

velho41 e de um Exu da Calunga42. Na medida em que praticava a técnica de translocação,

minha memória muscular trouxe, insistentemente, a mímesis corpórea43 de um trabalho

desenvolvido durante muito tempo em um terreiro de Linha Cruzada em Santa Maria⁄RS,

incluindo, na sequência, a mímesis de um Preto Velho e de um Exu. Estas inclusões não

estavam previstas no elenco das manifestações espetaculares populares brasileiras que

integram esta pesquisa, mas como, muitas vezes, durante a prática da improvisação com os

códigos/células das manifestações espetaculares populares brasileiras, estas memórias

musculares se faziam presentes, decidi deixá-las na cena, não me preocupando em afastá-las

ou negá-las, pois, de alguma maneira, como trabalhava com danças advindas do Candomblé,

era natural que estas memórias vindouras de um terreiro de Linha Cruzada “aproveitassem” a

torrente e emergissem no trabalho – Ver cena ou clip da cena construída com a técnica de

translocação caleidoscópica “Alla ricerca di um Zanni” no DVD: MENU: 2 -

TRANSLOCAÇÃO CALEIDOSCÓPICA : 2.2 - ALLA RICERCA DI UM ZANNI – clip.

2.3 – ALLA RICERCA DI UN ZANNI – cena.

Após ter realizado todo o percurso de codificação e decodificação com as células das

práticas espetaculares populares brasileiras e recodificação em uma estrutura de cena,

comecei a trabalhar para transformar aquela cena em commedia dell’arte, utilizando a

máscara física do Zanni. Tal processo gerou uma experiência ímpar, pois a máscara física do

Zanni é muito grotesca e como toda máscara dell’arte continiana, sua movimentação é muito

específica e codificada. Fazer este trabalho de ajuste de circuitos musculares e energético na

máscara do Zanni com as células das práticas espetaculares populares brasileiras foi um

trabalho “artesanal”, pois era preciso dedicar-me a detalhes mínimos desta “transdução”.

                                                       41 Entidade Espiritual (integrante da Umbanda e Linha Cruzada) que possui relação com os antigos escravos. 42 O Exu também faz parte das entidades da Umbanda e o termo “Calunga” indica os meios com o qual ele se relaciona, no caso, as almas e o cemitério.  43 A mímesis corpórea é uma técnica estruturada por Luís Otávio Burnier, cuja habilidade está na observação e imitação, porém, em uma “observação profissional”, calcada no detalhe, na fisicidade e na corporeidade. Trata- -se de uma “capacidade mimética” que tenta abranger não somente a forma mas também as energias, ritmo, élan e impulsos que fazem parte daquele que é observado. Para saber mais sobre mímesis corpórea, ler: A Arte de Ator: da Técnica à Representação. Elaboração, codificação e sistematização de técnicas corpóreas e vocais para o ator, de Luis Otávio Burnier. 

  177

Apesar de, anteriormente, a Máscara do Zanni ter sido muito citada e comentada, foi

falado mais em termos de mito ou daquilo que ela representa para a Commedia dell’arte, por

isso, precisa-se falar um pouco da transformação do corpo do ator em Máscara física do

Zanni, tal como ela era em 1500 e tentar entender a metamorfose que esse corpo deve passar

para transformar-se em um Zanni.

Tornemos a lembrar as características do Zanni, não só de caráter, mas de como seu

corpo porta este arquétipo desde o período em que estas subiram aos palcos e alcançaram o

sucesso (1800), além de quando nem mesmo faziam parte da cena teatral (1400). Claudia

Contin, a meu ver, é quem melhor relaciona Máscara-corpo-caráter e a passagem desta

máscara do “mundo popular e mítico” para os palcos das ruas e praças e, posteriormente, para

os teatros e palácios.

Como já remarcado, Zanni é uma máscara de origem camponesa, especificamente, do

interior de Bérgamo. Segundo Claudia Contin (1999, p. 44), os trabalhadores rurais

bergamascos tinham um corpo muito peculiar:

Zanni é uma máscara de origem bergamasca e os bergamascos – por algum estranho orgulho antropológico – gostam de se autodefinirem “traccagnotti” [parrudos], isto é “baixinhos” de estatura, sólidos e bem plantados na terra. Para tanto, o ator deve baixar muito o baricentro do próprio corpo. Porém, o termo “traccagnotto” [parrudo] não significa somente “baixo de estatura”, quer dizer, também: forçudo, musculoso, “pequeno touro”. Então, o ator deve botar para fora toda a musculatura lateral da caixa torácica – as chamadas “asas” – e adotar para o dorso uma curvatura, desenhando a forma de costas forte e habituada a suportar muito peso. 44

A partir destas características, começa-se a imaginar a máscara física do Zanni e pode-

se, até mesmo, em meio à penumbra, imaginar o corpo de um capoeirista “traccagnotto”, com

grande força e agilidade.

Ao lado deste corpo parrudo, há outras características muito específicas que auxiliam

na composição, absorção, compreensão, metamorfose e imaginação desta máscara física:

[...] Zanni tem as mãos cheias de calos, grandes e duros “como batatas”, que o impede de fechar ou relaxar os dedos. Porém, Zanni é muito orgulhoso em mostrar seus calos de trabalho e, por isso, as mãos parecem grandes flores coriáceas, nas quais os dedos “brotam” bem alargados e se movem com gestos secos, lenhosos e decididos (CONTIN, 1999, p. 45).

                                                       44 Tradução da autora: Zanni è una maschera di origine bergamasca e i bergamaschi - per qualche strano tipo di orgoglio antropologico - amano definirsi "traccagnotti", cioè "bassotti" di statura, solidi e ben piantati per terra. Perciò l'attore deve abbassare molto il baricentro del proprio corpo. Il termine "traccagnotto" - però - non significa solo "basso di statura", vuol dire anche: forzuto, muscolosetto, "torello". L'attore deve spingere in fuori la muscolatura laterale della cassa toracica - le cosiddette "ali" - ed assumere una posizione incurvata del dorso, disegnando la forma di una schiena forte ed abituata a sopportare grandi pesi.). 

  178

O desenho das mãos do Zanni, pelo trabalho que é habituado a fazer, é muito preciso,

porém, isso não acarreta um tipo de rigidez, seu desenho é definido e permanece quando as

mãos não estão envolvidas em ações, senão ela move-se normalmente, sem perder a tensão

habitual e necessária.

Continuando a descrição da máscara física do Zanni, Contin (1999, p. 45) fala:

Sendo um tipo do interior, certamente Zanni não é um estúpido, mas, também, não é muito culto: não pôde estudar, mas – em cada caso – não quer ser enganado por advogados e comerciantes [...]. Por isso, Zanni é atento a tudo, principalmente àquilo que não conhece, é curiosíssimo e empurra a cabeça para frente como uma mula enxerida que quer meter o nariz em todas as coisas, até mesmo naquelas que não entende. Neste seu comportamento simplório, Zanni não é somente curioso de tudo, mas também tem a característica de se admirar de tudo: a sua boca é sempre aberta, escancarada pelo estupor, como um “O” alongado em direção ao solo, com os lábios para fora e o maxilar completamente abaixado. Esta posição da boca é uma característica típica do Zanni, a parte inferior do rosto, abaixo da meia máscara de couro, é sempre exageradamente alongada em direção a terra.45

Pode-se perceber que Claudia Contin reconhece as características arquétipas da

Máscara na composição física desta, desse modo, elas tornam-se ainda mais destacadas e

confirmadas. O mesmo acontece com a fome atávica do Zanni, e a relação desta com a região

do púbis, que, segundo Contin, como representa todas as fomes (comida e sexo), dever ser tão

direcionada para frente quanto o nariz.

A primeira fome, a instintiva, coloca a púbis bem à frente, o intestino acompanha esta

fome, já que é o lugar de transformação de alimento em energia e o estomago é sempre vazio.

A modulação do corpo nesta posição mostra as características citadas: a cabeça vai para

frente, como se quisesse conhecer tudo, a boca mostra a admiração com o mundo, as costas e

os braços robustos se alargam mostrando a sua capacidade e potência para o trabalho, o

estomago, permanecendo para dentro, parece um buraco e a púbis, tenta saciar a sua fome.

Com este corpo, jamais será possível um Zanni comportar-se como um nobre, a sua forma

grotesca já o exclui de certos “papéis” ou interpretações e declara traços muito marcantes de

sua personalidade.

                                                       45Tradução da autora: Essendo un tipo campagnolo, Zanni non è certamente uno stupido, ma non è neppure molto colto: non ha potuto studiare, ma - in ogni caso - non vuole lasciarsi imbrogliare da avvocati e commercianti [...]. Per questo Zanni è attento a tutto, a tutto ciò che non conosce, è curiosissimo ed innesta la testa in avanti come un mulo testardo che vuole ficcare il naso in ogni cosa, anche quelle che non capisce. In questo suo comportamento da sempliciotto Zanni non solo è curioso di tutto, ma ha anche la caratteristica di sorprendersi di ogni cosa: la sua bocca è sempre spalancata dallo stupore, in una sorta di "O" allungata verso il basso, con le labbra sporgenti e la mascella completamente abbassata. Questa posizione della bocca è una tipica caratteristica dello Zanni: la parte inferiore del volto, al di sotto della mezza maschera di cuoio, è sempre esasperatamente allungata verso terra.  

  179

Mas além destas, existem outras características específicas e significativas que

compõem o corpo e o comportamento do Zanni:

Este camponês robusto – nos vales bergamascos, com os tamancos de madeira nos pés – devia caminhar com passos grandes e pesados, nos quais toda a perna se eleva mantendo numa curva aberta e larga e o pé bate por terra com potência, enquanto que o quadril permanece solidamente em avanço e os braços desenham amplos arcos ao lado do corpo (CONTIN, 1999, p. 46).46

Tratando-se de uma pesquisadora que não permanece na superfície das descobertas,

ainda havia, nas iconografias do período de 1600, características que tinham sofrido algumas

mudanças, o que a fez ir mais além e descobrir a passagem do Zanni de Bergamo até o Zanni

das ruas e praças de Veneza e da Commedia dell’arte. Era muito lógico que o arquétipo

bronco, parrudo e simplório daquele Zanni de Bergamo, com seus pés apontados, não

condissesse, em tudo, com aquele das iconografias e testemunhos da Commedia de 1600,

então, era preciso saber o que aconteceu como mudança na sua vida cotidiana, para

transformar, também, as características físicas. E Contin, através de uma exaustiva pesquisa

em documentos, livros e imaginação, descobriu que as mudanças do corpo do Zanni

aconteceram devido a uma passagem, não da rua para o palco, mas de trabalho e do meio em

que vivia.

Tal passagem se deu, principalmente, por uma questão econômica, um êxodo rural dos

Zanni, fazendo com que estes saíssem do interior e fossem procurar emprego nas cidades

desenvolvidas.

Em 1500/1600 as regiões próximas à Veneto, incluindo a zona bergamasca e a região

de Friuli, não eram terras livres, mas sim províncias submetidas à República de Veneza, a

qual se enriquecia cada vez mais, através das transações mercantis com o Oriente e pela

exploração agrícola das terras que pertenciam aos seus domínios. Como em toda relação de

exploração de território, o espaço geográfico acabava transformando-se em cidades e regiões

muito pobres, porque, embora possuíssem meios naturais de se manterem, não tinham como

explorarem os próprios recursos ou sobreviverem da produção local, o que forçava os

habitantes ao êxodo, saindo em busca de lugares mais propícios. Foi por causa deste

mecanismo, que os Zannis foram obrigados a sair de Bergamo, rumo à cidade das

oportunidades da época: Veneza. São muitos os documentos de igrejas e instituições

                                                       46Tradução da autora: “Più o meno questo contadinotto tarchiato - nelle sue valli bergamasche, con gli zoccoloni di legno ai piedi - doveva camminare più o meno con dei grandi passi pesanti, in cui tutta la gamba si solleva mantenendo una curva aperta e divaricata, ed il piede sbatte poi a terra con potenza, mentre il bacino rimane solidamente innestato in avanti e le braccia compiono ampi archi di cerchio a fianco del corpo".  

  180

governamentais da época que testemunham este fenômeno de emigração de Bergamo à

Veneza, conforme comenta Alessandra Mignatti. Outro ponto interessante é que nestes

documentos, cartas trocadas entre mercantes e manuscritos da Igreja, segundo Contin, é

remarcado que os trabalhadores que chegavam da região bergamasca eram aqueles que

trabalhavam como carpinteiros, pedreiros, carregadores e outros trabalhos do gênero, isto é,

os bergamascos eram aqueles que faziam o “trabalho braçal”, mudando de ambiente (campo-

cidade), mas não de “papel social”.

Naquele período Veneza era a cidade das oportunidades, até por que, conforme um

imaginário, se Veneza se enriquecia com toda a riqueza que as suas províncias produziam, era

compreensível que a população das “colônias” se dirigisse para o local da concentração

monetária. Foi com este pensamento de ter um trabalho bem remunerado, que, segundo

Contin, Zanni chega à Veneza.

Diferentemente dos mercantes, para os Zanni, Veneza não foi a terra das boas

oportunidades. Aliás, possibilidade de fazer fortuna, não tiveram nenhuma, pois eram

explorados da mesma forma que em Bergamo. O Zanni migrado de Bergamo é um

trabalhador nato, ele está sempre disposto a trabalhar (quando pode não, ele não trabalha, mas

se deve, então o faz bem), porém, por não ter tanto estudo, o único trabalho que encontrava

era como servo ou operário:

Em Veneza, estes Zannis forçudos, parrudos e poucos civilizados podiam encontrar trabalho, exclusivamente, como servos dos ricos mercantes venezianos ou como carregadores e transportadores das mercadorias dos barcos. Enfim, trabalhador braçal (CONTIN, 1999, p. 47).47

Porém, esse tipo de trabalho, apesar de fazer uso de “força bruta”, fez com que o

Zanni não lidasse mais com animais, plantações e outros camponeses habituados a relações

agrestes, como era no interior e montanhas de Bérgamo. Segundo Contin, essa relação

citadina estabeleceu um relacionamento muito mais próximo do seu patrão e, a partir desta

aproximação, surgiu a oportunidade de trabalhar dentro da casa do patrão, fazendo o servidor

e empregado da casa, aquele que era chamado para fazer serviços braçais mais domésticos,

como cortar lenha, carregar malas, carregar as compras da feira, mudar os móveis de lugar e

outras atividades do gênero.

                                                       47 Tradução da autora: “In Venezia questi Zanni forzuti, traccagnotti e poco civilizzati potevano trovare lavoro esclusivamente come servi dei ricchi mercanti veneziani o come facchini per lo scarico delle navi e il trasporto delle merci. Uomini di fatica insomma.”. 

  181

Por ser chamado pelo patrão para fazer parte dos domínios mais pessoais e

domésticos, Zanni foi se adaptando, também, fisicamente e a sua natureza rude e simplória,

foi sofrendo algumas pequenas transformações que o deixaram mais elegante e leve na

gestualidade, pois não poderia ter o mesmo modo de caminhar e de se comportar que tinha no

campo, com o chão de terra firme sob seus pés. Também, não podia falar com os patrões

como falava com seus companheiros Zanni, precisava deixar seus gestos e caminhada mais

elegantes e a fala mais doce.

Contin (1999, p. 48-9) conta resumidamente este pequeno percurso do Zanni

Bergamasco ao Zanni da Commedia dell’arte e a transformação física que ocorreu desta

adaptação do campo à cidade.

Ele [Zanni] não se encontra mais no campo entre os seus parreirais ou os campos de feno, mas se encontra diante de coisas que nunca tinha visto antes: palácios refinados com fachadas riquíssimas, portais bífores e trífores e rosáceas de mármores coloridos, senhores elegantes que passeiam pelos jardins e perfumes de especiarias e incensos. A sua admiração aumenta desmedidamente, a sua cabeça começa a levitar como massa de pão, torna-se leve como um balão, enquanto que Zanni olha em torno com uma boca tão aberta e alongada que poderia cair o maxilar. Antes a curiosidade do Zanni era obstinada e incisivamente à frente, a partir daí qualquer admirável maravilha faz a cabeça levantar vôo, tornando o pescoço flexível e alongado como o de um ganso. Ainda, tem-se a sorte de encontrar trabalho como empregado de um mercante rico, Zanni se vê diante da situação de entrar, pela primeira vez, em uma casa que supera a imaginação: com aqueles famosos pavimentos venezianos, cuidados e lustrados, com aqueles tapetes orientais delicados e preciosos, com aqueles salões construídos sobre pavimentos de madeira flexíveis, os quais, quando se caminha pesadamente, todos os móveis balançam e os cristais caem, quebrando-se. Zanni não pode, então, permitir-se usar – na casa do novo patrão – a sua caminhada camponesa e “rudimentar”, com grandes e pesados passos, ele adquire, então, um pensamento de respeito e circunspecção, dessa forma, coloca-se à meia-ponta e assume uma nova caminhada – sempre muito grotesca e bruta – mas que tem, também, alguma coisa de elegante e leve [...].48

Estas pequenas modificações são muito importantes para entendermos porque, em

algumas iconografias que retratavam a Commedia dell’arte em questão, como as de Calloi, os

                                                       48 Tradução da autora: “Egli non si trova più in campagna tra i suoi filari di vite o i campi di fieno, ma si trova di fronte a cose che non ha mai visto prima: palazzi raffinatissimi con ricche facciate, bifore e trifore e rosoni di marmi colorati, signore eleganti che passeggiano per i campielli, profumi di spezie e incensi. Il suo stupore aumenta a dismisura, la sua testa comincia a lievitare come il pane, diventa leggera come un palloncino, mentre lo Zanni si guarda intorno con una bocca aperta talmente allungata che potrebbe quasi cadergli la mascella. Mentre prima la curiosità di Zanni era caparbiamente e rigidamente innestata in avanti, ora una stuporosa meraviglia gli fa quasi levitare la testa, rendendo il collo flessibile ed allungato come quello d'un oca. Poi, se ha la fortuna di trovare lavoro come servitore presso un ricco mercante, Zanni si trova ad entrare per la prima volta in una casa che supera ogni immaginazione: con quei famosi pavimenti alla veneziana lucidi e curati, con quei tappeti orientali delicatissimi e preziosi, con quei saloni costruiti su elastici solai di legno che se ci cammini sopra troppo pesantemente tutti i mobili rimbalzano e le cristallerie si frantumano. Zanni non può dunque permettersi di usare - nella casa del nuovo padrone - la sua camminata campagnola e "zoccoluta", con le grandi falcate pesanti; egli viene preso da un senso di rispetto e circospezione, così si mette sulle mezze-punte dei piedi ed assume una nuova camminata - sempre molto grottesca e grezza - ma che contiene anche qualcosa di elegante e leggero [...].” 

  182

Zanni possuem, às vezes, os pés bem plantados no chão e outras, os pés em meia-ponta, como

se dançassem. Esta mudança, de um ponto de vista, parece sutil, de outro aparece como uma

grande força e característica vital, pois foi o modo que o Zanni encontrou para se adaptar e

sobreviver à nova realidade - amortecendo seus grandes e pesados passos rurais - conforme

explicação de Contin. A partir desta aparente pequena adaptação, vieram as outras mudanças

e, daí, para se transformar em um servidor de hotel ou restaurante (Brighella), empregado de

loja (Trufaldino) ou servo de companhia (Arlecchino), é muito mais compreensível tais

desdobramentos de uma máscara em outras. São estas pequenas, mas importantes

modificações que nos fazem entender as transformações da Máscara ao longo da história e

seus traços arquétipos.

A Máscara do Zanni e qualquer derivante desta fazem parte da classe de pobres,

broncos, esfomeados emigrantes, camponeses deslumbrados com a cidade, desajeitados

deselegantes, mas muito astutos e ágeis no seu trabalho. Segundo Contin, são estas

características que formam o conjunto dos aspectos cômico-grotescos dos Zanni retratados na

commedia dell’arte.

A partir da cena “Alla ricerca di um Zanni”, pensando na corporeidade retratada do

Zanni, começaram os trabalhos com Zann Piedini, e a primeira imagem que se formou, como

uma possível conexão, conforme já foi comentado, foi a de um capoeirista. Não somente pelo

corpo parrudo e ágil, o que lembra muito o corpo de um capoeirista, mas também pela ligação

com a mandinga, com a situação de fome, seja ela qual for, com a agilidade, esperteza e

malandragem com que conseguiam levar a vida e as situações em que se encontravam, cada

qual em sua realidade.

Apesar de ter o capoeirista e a capoeira em mente como forte ponto conectivo, não

foram negadas outras possibilidades de conexões e dentro dessas possibilidades encontrou-se

o côco, mais especificamente a umbigada, e o gincado da dança dos Orixás49. A partir da

construção\sustentação da máscara física do Zanni com os códigos das práticas espetaculares

populares brasileiras, foi-se estabelecendo uma prática com outros códigos provenientes

destas manifestações, deixando que estes se conectassem, se transformassem, se

translocassem, se metamorfoseassem e se transduzissem na máscara do Zanni e na ação da

cena.

                                                       49 Ver os códigos que auxiliam na construção da máscara física do Zanni, no DVD que acompanha a Tese. MENU: 4.1 – ZANNI: 4.1.2 – ZANNI - dança.  

  183

Apesar dos Zannis serem camponeses rústicos, eles são tão espertos quanto os

capoeiristas e, buscando descobrir uma forma de satisfazer sua situação de fome insaciável e

constante, sempre tentam enganar os seus patrões, tirando um pouco de proveito da situação -

já que são poucas as situações que lhe são favoráveis ao desfrute de qualquer pequena regalia,

conforme se pode ver em tantos canovacci (roteiros) da commedia dell’arte50. Relacionando

canovacci de commedia dell’arte e as histórias de Chicó e João Grilo, percebi que a

imaginação que o autor impregnou àqueles personagenes cabia perfeitamente numa fala de

um Zanni, todas as mirabolâncias e peripécias criadas e que certificam a todos como fato

vivido e/ou testemunhado. Tudo isso é comum à dupla de Zanni, as histórias tem as mesmas

características dos “sonhos maravilhosos” destes. Era normal, então, que através destes

caminhos subterrâneos, a máscara continuasse a ecoar e requerer um trabalho mais detalhado.

Para uma pequena amostra da máscara do Zanni, com a técnica de transdução, foi

criada a cena “Le avventure di Zann Piedini”, que se trata do seguinte argumento: Zanni vem

para o Brasil acompanhando seu Patrão (Padrum) e acaba perdendo-se deste. Enquanto o está

procurando, percebe que tem muita gente em volta e, então, pensa que pode ter comida

também. Permanece na dúvida entre procurar o patrão ou a dispensa em que está guardada

toda a comida daquelas pessoas e, após muito se perguntar, decide procurar o patrão.51

Para a pequena cena de Zann Piedini, utiliza-se células de maracatu, cavalo-marinho,

samba, coco, ciranda, dança dos orixás, xaxado, caboclinho, frevo e capoeira, tudo muito

mesclado e conjugado com a fisicidade e corporeidade do Zanni. Dessa maneira, a máscara

torna-se muito mais rica em movimentação e modulação de energias, bem como potencializa

as ações e movimentos que já fazem parte das “clássicas” partituras que integram a Máscara

do Zanni52.

Como exemplo, pode-se utilizar algumas frases da cena criada:

De fora da cena se houve um grito: - Zanni!!!!!

E, depois, ouve-se a resposta (ainda fora da cena): Arrivo Padrum!

Entra Zanni correndo e, depois, coloca-se no meio da sala fazendo sua saudação

pernas de base com a posição da “ponteira” da capoeira; tronco e braços da dança dos Orixás

(Omolú) (igual à postura da reverência do Zanni) – “Eccomi qua, Padrum!”

                                                       50 Para saber mais, ler: Tutti i lazzi della Commedia dell’arte. Un catalogo ragionato del patrimonio dei Comici, de Nicoletta Capozza; I Canovacci della Commedia dell’arte, organização de Annamaria Testaverde.  51 Ver clipe da cena ou a cena integral, no DVD que acompanha a Tese. MENU: 4.1 – ZANNI: 4.1.3 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – clip; 4.1.4 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – cena. 52 Contin possui um elenco de partituras para cada máscara. Para o Zanni, a mais utilizada é a reverência do Zanni – a qual inicia a cena “Le avventure di Zann Piedini”. 

  184

“Le avventure di Zann Piedini” Foto: Léo Azevedo

Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010ߎ.

Percebendo que ninguém responde, ele pergunta:

Salto de Oxumaré, com tronco baixo: – Pota!

Depois, com postura base da capoeira e golpe de máscara

pergunta novamente:

- Padrum!? Padrum!?

Salto de Oxumaré com tronco baixo e, em seguida, passo de ciranda – Ma, dov’é mi

Padrum?

“Le avventure di Zann Piedini”

Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010ߎ.

“Le avventure di Zann Piedini”

Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae

Data: janeiro2010ߎ.

Dando um passo com o golpe ponteira (movimento da capoeira

regional) e passo da dança do Orixá Xangô: – Ma varda quanta gente.

“Le avventure di Zann Piedini” Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010ߎ.

Depois, golpe “benção” da Capoeira regional: - Ma varda dove mi son caipat!

Passo da dança do Orixá Iansã, seguido de passo do maculelê e, depois, frevo:

- Immagina te la mesura della dispensa per tutti quanti qui!

  185

Início da “benção” e desce para a “negativa” (ambos

da capoeira regional) – Mi tocca scovèlzer!

“Le avventure di Zann Piedini” Foto: Léo Azevedo Atuação/Direção: Joice Aglae Data: janeiro2010ߎ.

E, dessa maneira, como um caleidoscópio de células de manifestações espetaculares

populares, a sequência foi sendo trabalhada. Tal como na Commedia dell’arte, primeiro

estruturei uma sequência muito rígida, para depois deixar espaço para a improvisação, pois o

corpo já tinha assimilado tantos códigos que se organizava mais velozmente, podendo assim

arriscar espaços de total improvisação e outros de partitura fixa.

O primeiro contato que tive com a commedia dell’arte foi num estilo mais

oitocentesco, seguindo o estilo francês e, já naquele período de aprendizagem deste gênero,

ela fazia parte de um universo que me instigava. O que me estimulava, todavia, na commedia

dell’arte eram os seus aspectos grotescos, carnavalescos, lúdicos, sua ligação com os instintos

e com o mundo primitivo e ritualístico.

No decorrer do descortinamento da commedia dell’arte, na história social e teatral,

esta faceta não tão divulgada das máscaras dell’arte começou a ser vislumbrada e, então, a me

seduzir cada vez mais. As máscaras que se fizeram descobrir eram parte de uma Commedia

dell’arte mais antiga que aquela de 1800, tão antiga que ainda não era conhecida como tal e,

nem mesmo, possuía os mesmos padrões estéticos da commedia dell’arte de Goldoni ou

Molière. A commedia dell’arte que me interessa é aquela que, segundo Bragaglia (1981,

p.15), contém seus primeiros testemunhos muito antes de 1500, um teatro que “[...] os

contemporâneos fazem alusões, porém, denominando-a “commedia all’improviso”,

“commedia improvisa” [...]53.

Este gênero chamado há “pouco tempo” de commedia dell’arte, ao longo de seu

percurso histórico, estrutural e profissionalizante, recebeu muitos nomes. Conforme Tessari,

Taviani, Mignatti, Testaverde e Contin assinalam, ela foi chamada de “commedia dei Zanni”,

“Maschere del teatro italiano”, “Maschere all’italiana” ou simplesmente Maschere. É esta

commedia dell’arte mais grotesca que me interessava, interessa-me e é com ela que toda esta

                                                       53 Tradução da autora: “[...] alla quale i contemporanei fanno allusione perlopiú denominandola “commedia all’improviso”, “commedia improvisa” [...].” 

  186

pesquisa se relaciona e submerge e, também, é dentro da perspectiva de suas máscaras, que o

próximo capítulo desenvolve-se.

Neste transcurso de apreensão e apropriação, a prática das manifestações espetaculares

populares brasileiras que integram esta pesquisa é continua, e o trabalho com as máscaras

físicas da commedia dell’arte, também. Com o estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore,

com Claudia Contin, Ferruccio Merisi e toda sua equipe, a laboração que vinha

desenvolvendo com as máscaras dell’arte foi enriquecida e fortalecida.

O trabalho realizado por Contin e Merisi vinha ao encontro daquilo que procurava

como Commediante dell’Arte e foi a experiência com eles que propiciou meu mergulho mais

profundo no universo das Máscaras dell’Arte - num período primordial destas máscaras, o

qual, para esta pesquisatriz, constitui uma importante fase deste gênero de teatro - aquele das

ruas, das praças e carnavais de 1400 e 1500. Foi através deste intenso mergulho que a

imaginação trabalhou e trabalha arduamente. As imagens das práticas espetaculares populares

que já trabalhavam e agiam em mim fisicamente, com a aquisição das máscaras físicas da

commedia dell’arte de Claudia Contin e todos os códigos corporais pertencentes a cada uma

destas máscaras criavam novos circuitos, e as conexões realizavam-se de modo dinâmico.

Com todo o acervo de movimentos adquiridos, codificados e recodificados das

manifestações espetaculares populares brasileiras e das máscaras físicas da commedia

dell’arte, a conexão entre os circuitos energéticos e musculares que se assemelhavam

aconteciam num processo quase “natural”. Enquanto me exercitava nas máscaras dell’arte nos

ensaios e trabalhos com os atores da Scuola Sperimentale dell’Attore, a musculatura

recordava tais circuitos - como aconteceu quando fiz a máscara do Arlecchino.

A primeira verificação destes circuitos com pontos em comum era rápida, mas

constituía o início de uma série de averiguações e constatações mais penetrantes, chegando

até a comoção dos pontos que formam os circuitos, aproximando-os e obtendo o resultado

desejado para geminar máscaras dell’arte com práticas espetaculares populares brasileiras.

Investigando mais profundamente os circuitos, através da prática insistente, o corpo

desenvolve uma capacidade de aproximação dos circuitos musculares e energéticos de ambas

as práticas espetaculares populares (commedia dell’arte e manifestações espetaculares

populares brasileiras) e, dessa forma, recria as gesticulações e ações para as máscaras

dell’arte – seguindo a “lógica corporal, física e arquétipa” das mesmas – porém, tendo como

reservatório/motor as células codificadas das manifestações espetaculares populares

brasileiras.

  187

Para melhor explicar: cada máscara continiana possui uma gama de ações codificadas,

as quais fazem parte de sua movimentação (caminhar, saltar, sentar, dançar, dormir) e, a partir

destas, desdobram-se todas as ações que constituem a movimentação total da máscara para

um espetáculo, improvisação ou, simplesmente, uma prática assídua. Para dar um exemplo,

tem-se a partitura de como a máscara de Pantalone senta, corre, caminha, dança valsa, conta

dinheiro (entre outras), então, conhecendo as tensões do corpo e qualidades destas ações,

podem-se criar outras, como tomar sopa, pular num banco, pensar, jogar carta, entre outras.

A partir dos códigos que já se conhece (aqueles estruturados por Contin), pode-se criar

outros. A sequência de códigos é que compõe a ação da cena. Os códigos são compostos de

qualidades de energias, qualidades de movimentos e tensões musculares. Para introduzir

alguma movimentação nova em uma máscara, deve-se saber que tipo de movimento, tensão e

qualidade de energia tal máscara dell’arte requer. Um dos trabalhos que fazem parte das

razões desta pesquisa está na capacidade de manter as máscaras físicas dell’arte continianas,

graças ao potencial que a musculatura desenvolveu através da prática das manifestações

espetaculares populares brasileiras. Mais ainda, além de darem o suporte físico e energético

necessário para manter as máscaras dell’arte continianas, as práticas espetaculares populares

brasileiras permitem-me, através da codificação e decodificação destas, chegar a novos

movimentos e ações que se assemelham aos das máscaras, em tensão e qualidade. Durante

meu estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore, criava minhas partituras para as cenas a

partir da geminação de códigos advindos das manifestações espetaculares populares

brasileiras que integram esta pesquisa. Sempre, para obter a boa combinação dos códigos,

fazia muita atenção aos circuitos musculares e energéticos de tais códigos, bem como, às

tensões e qualidades com que empregava estes. Com esse encaminamento cauteloso, os

movimentos e ações que desenvolvia para as cenas com as máscaras dell’arte obtinham a

aceitação e aprovação de meus “maestri italiani”.

A harmonia que a geminação entre as Máscaras dell’Arte e os códigos das

manifestações espetaculares populares brasileiras pode chegar é de uma semelhança e

equilíbrio tão grande, a ponto de tornar impossível a diferenciação da origem de tais códigos,

pois a amálgama que se forma dá a impressão de ser uma coisa só, de ter uma só fonte, de ter

somente um reservatório\motor54.

O estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore rendeu alguns espetáculos e cenas,

trabalhos que me são muito caros, porém, tem um pelo qual alimento um sentimento mais

                                                       54 Na verdade, a ideia de um espaço como o Fundo Comum dos Sonhos é de ter uma “fonte única” que se ramifica através de um DNA imaginal.  

  188

especial. O espetáculo “Papaietta Poliglota”55, cuja direção é de Claudia Contin e supervisão

de Ferruccio Merisi, foi construído visando esta união entre a commedia dell’arte e as

manifestações espetaculares populares brasileiras. Em agosto de 2008, ao final da primeira

apresentação do espetáculo, realizado somente para convidados da Scuola Sperimentale

dell’Attore, Merisi falou, reflexivo, que, nas cenas, não era mais possível distinguir quais

movimentos “pertenciam” à commedia dell’arte e quais eram advindos das práticas

espetaculares populares brasileiras.

Por tudo o que já foi expresso a respeito da imaginação, do Fundo Comum dos Sonhos

e Fundo Poético Comum, da formação dos circuitos e metamorfose destes, pode-se

compreender porque as ações e movimentos em “Papaietta Poliglota” eram tidos por Contin e

Merisi como “giusti” (justos, corretos) dentro da perspectiva das máscaras dell’arte. Pois, tais

movimentos portavam genes imaginais advindos das práticas espetaculares populares

brasileiras, embora fossem compartilhados, também, pelas máscaras dell’arte – ou, na visão

deles, o contrário: eram genes que faziam parte das máscaras dell’arte e, também, das práticas

espetaculares populares brasileiras.

Claro que se trata de proporções de micropartículas imagéticas e energéticas que

integram a parcela do imaginário que atravessa o tempo e o espaço, que transborda e inunda a

pluralidade. Mas são nestas ínfimas, porém, grandiosas, frações de comunhão, que as ações e

a cena obtêm a homogeneidade de natureza, é onde acontece a transdução dos movimentos.

Continuando com a apresentação dos “afluentes” deste imenso mar, introduzirei as

máscaras dell’arte continianas, algumas considerações a respeito destas e das experiências

mais intensas que tive com elas na cena.

 

                                                       55 Meu espetáculo solo, dirigido por Claudia Contin e com supervisão de Ferruccio Merisi. O nome do espetáculo vem de nome da minha Servetta – Papaietta - e do fato que, no espetáculo, falo em português, italiano oficial, dialetos do italiano, italiano macarrônico e espanhol. Posteriormente será falado especificamente deste espetáculo.  

189  

5. IMAGIN AÇÃO E FESTIVIDADES TRANSDUZIDAS

“O estudo sistemático das produções do imaginário efetivo propicia o acesso a aspectos mais profundos dessa realidade, disfarçados pela roupagem colorida do fantástico.”

Monique Augras (2009, p.10)

Se o Bufão permitiu-me vislumbrar o lado carnavalesco e ritualístico das máscaras

dell’arte, o Zanni fez-me perceber os desdobramentos destas, suas conexões, as correntes em

galerias fluviais subterrâneas que deságuam em atitudes lúdicas.

Como já comentado, as máscaras do Zanni e do Arlecchino acompanharam todo meu

processo de aprendizagem e apropriação das outras máscaras dell’arte. Zanni é a primeira

máscara ensinada por Claudia Contin. Segundo ela, Zanni é uma espécie de “carro abre-alas”,

isso “[...] porque é uma das máscaras mais antigas da Commedia dell’Arte, juntamente com os

Capitani” (CONTIN, 1999, p.44) 1 e então ela, de certa forma, apresenta o fantástico universo

destas máscaras. Antes mesmo de aprender esta e as outras máscaras com Claudia Contin

(Roma, 2007, fui apresentada ao Zanni continiano pelo professor Dr. Giuliano Campo (Paris,

2005). Quando fui para a Scuola Sperimentale dell’Attore (Pordenone/2008) como

atriz/aluna/estagiária e colaboradora/professora desta, fui realizando mergulhos mais

profundos no mundo de cada máscara dell’arte, através de laboratórios com o grupo (Claudia

Contin, Ferruccio Merisi, Lucia Zaghet, Veronica Risatti e Xu Xuan) , com a professora

Veronica Risatti, em laboratórios e trabalho individual em sala de aula e espetáculos.

Os primeiros laboratórios do estágio foram dedicados à investigação das máscaras

femininas da commedia dell’arte. De manhã, trabalhava em laboratórios individuais com a

professora Veronica Risatti e a noite com o grupo. Foi um mergulho intenso e penetrante,

conhecendo o funcionamento destas máscaras e sendo “batizada” na primeira Máscara

dell’Arte.

Este costume de receber um nome e assumi-lo, sempre que vestir a máscara, é uma

tradição deste gênero de teatro – porém, pessoalmente, acredito que isto é uma característica

de todo teatro que trabalha com a máscara e o travestimento. Segundo Tessari (1981, p.85), a

commedia dell’arte teve a “generosidade” de deixar (como uma espécie de herança ou marca)

para os atores que se dedicavam a este gênero de teatro, o nome da máscara a que se

destinavam:

                                                            1 Tradução da autora: “[...] perché è una delle maschere più antiche assieme ai Capitani della Commedia dell’Arte”.  

190  

Aqui, a fisicidade do tipo escolhido pelo intérprete – herdado de uma tradição e replasmado por uma vida inteira de arte (ou, ao menos, por uma ampla porção desta) - encontra o seu símbolo mais claro e inquietante na atitude que induz o comico a acrescentar, ao próprio nome, aquele da máscara que sempre interpretou: quase em um processo de osmose e de confusão entre individualidade social e papel cênico, o que sintetiza na forma mais jocosa e mais cruel o nexo de construção e de “liberdade” criativa sobre o qual se edifica a tarefa “tão belíssima, quão difícil e perigosa” da improvisação.2

O nome da máscara ligado ao nome do ator funciona como uma espécie de

identificador e, também, de neutralizador da identidade do ator (singular e plural). Um

identificador, porque destaca o ator dentro da arte da máscara, como os vários casos citados

por Taviani e Schino ao longo do livro “Il segreto della Commedial dell’Arte. La memoria

delle compagnie italiane del XVI, XVII, XVIII secolo” (1982). Neste estudo, os autores

trazem a publicação de cartas (pessoais e documentos institucionais), nas quais, em muitas

delas, o ator assina e, ao lado de seu nome, acrescenta o da máscara ou firma somente com o

nome da máscara. Um exemplo deste caso é o de Zan Ganassa, famoso ator de commedia

dell’arte, conhecido pelo seu nome de arte, mas que se chamava, na realidade, Alberto

Naselli. Quando endereçava suas cartas à autoridade da realeza, assinava, também, como Zan

Ganassa (TAVIANI; SCHINO, 1982, p. 90).

Assinar com o nome de arte dava uma dupla identidade ao ator. A duplicidade poderia

destacá-lo entre os comicos dell’arte e, também, dentro da sociedade. Por outro lado, o nome

de arte o coloca dentro de um espaço comum a todas as máscaras (no caso de Naselli, do

Zanni), pulverizando-o dentro deste outro universo e, certamente, protegendo-o porque, sob o

caráter da máscara, o ator tinha licença para agir fora das normas sociais e fazer exigências ao

seu público.

Nas cartas divulgadas por Taviani e Schino (1982), muitos são aquelas em que,

utilizando-se do nome de arte, o ator pede favores, pagamentos e presentes aos barões, duques

e reis3.

Utilizando o nome de arte, o ator/atriz possuía, muitas vezes, permissão para

frequentar a corte ou, até mesmo, era convidado por seus membros para frequentá-la. Ainda,

                                                            2 Tradução da autora: Qui, la fissità del tipo scelto dall’interprete – ereditato da uma tradizione e riplasmato per una intera vita d’arte (o almeno, per amplissime porzione di questa) – trova il suo simbolo più chiaro e inquietante nell’atteggiamento che induce il comico ad aggiungere al proprio nome quello della maschera sempre interpretata: quasi in un processo di osmosi e di confusioni tra individualità sociale e ruolo scenico, che sintetizza nella forma più giocosa e più crudele il nesso di costruzione e di “libertà” creativa su cui si fonda l’impresa “bellissima, quanto difficile e pericolosa” dell’improvvisazione.  3 No segundo capítulo desta tese, foi citada uma observação de Cesare Molinari, sobre tal artimanha dos comicos dell’arte (o autor se referia à Tristano Martinelli), chamando tal estratagema de “fazer o bufão” ou “jogo bufonesco” (MOLINARI, 1985, p.110).  

191  

em alguns casos, o ator tornava-se mais conhecido pelo seu nome de arte que pelo seu nome

de batismo, como aconteceu com o já citado Zan Ganassa.

Claudia Contin, atualizando e seguindo a tradição dos “nomes de arte”, assina

“Arlecchino Claudia Contin” e “batiza” os atores do grupo com o nome das máscaras que

estes assumem.

A primeira máscara com a qual fui “batizada” foi a de Servetta/Cortigiana Papaietta.

Quando me refiro “a primeira” é que a teoria desenvolvida por Contin prevê que o ator deve

passar por todas as principais máscaras dell’arte. Para Contin, uma máscara “seguirá” o ator e

ele irá assumi-la inteiramente, para tanto, ele deve conhecer o mundo de cada uma delas, uma

vez que somente conhecendo os mundos destas é que ele, em cena, poderá jogar livremente.

O jogo da improvisação dell’arte depende de uma série de fatores: do total conhecimento do

mundo da máscara que se endossa, do conhecimento do mundo das máscaras com que se

dialoga, do conhecimento das possibilidades de construção de cena dentro das perspectivas

destas máscaras e do conhecimento das possibilidades, dentro da cena, de cada ator e da

comunicação em cena entre os atores. Dentro destes encaminhamentos, endossei algumas

máscaras com mais intensidade e afinidade e recebi, para estas, nomes que me identificavam.

Para cada máscara dell’arte que apresentar, revelarei os códigos utilizados na técnica

de transdução, farei também um relato resumido das experiências resultantes do acesso a ela,

realizado na Scuola Sperimentale dell’Attore. Tal procedimento é necessário visto que penso

que tais espetáculos e participações podem servir como uma espécie de comprovação ou

validação da técnica que proponho, pois exercitei a transdução entre aqueles que são

considerados, pelo próprio público e academia italiana e francesa, como “profissionais”4 e

experts da commedia dell’arte.

                                                            4 Foi meu orientador, Dr. Raimondo Guarino da Universitá di Roma Tre, que me “encaminhou” para o trabalho de Claudia Contin, afirmando que ela é, atualmente, a principal profissional ligada à prática da commedia dell’arte. O mesmo me foi dito pelo Dr. Giuliano Campo, especialista em Commedia dell’Arte e pela Drª. Beatrice Picon-Valin, da Sourbone (FR), grande estudiosa de Meyerhold. Ouvi muitos outros comentários do mesmo gênero, não é o caso enumerá-los, penso que é suficiente dizer que Claudia Contin é muito respeitada entre os pesquisadores da Commedia dell’Arte e encaminhar os leitores para a bibliografia desta tese, para que possam ter acesso às indicações de seus livros e artigos . 

192  

5.1. SERVETTA “PAPAIETTA”, A CORTIGIANA ENAMORADA: MÁSCARAS

FEMININAS DA COMMEDIA DELL’ARTE

“O poder de Eva é apenas uma parte do poder masculino, enquanto que o poder de Lilith é o poder feminino em toda a sua plenitude [...] é necessário seguir os caminhos do imaginário que, ao longo dos séculos, asseguram a permanência de antigas representações.”

Monique Augras (2009, p. 40-41)

Antes de qualquer colocação, deve-se relembrar e readirmar que a Commedia dell’Arte

é um gênero de teatro que utiliza a máscara. Inicialmente foi falado que a máscara, para esta

pesquisa, não é somente um objeto, é uma complexa categoria, dentro da qual estão situadas,

entre outras, o clown, o bufão e as máscaras dell’arte. Quanto às máscaras que integram a

commedia dell’arte, nem todas utilizam a máscara de couro, porém, todas possuem uma

máscara física. É o caso das máscaras femininas e dos enamorados ou nobres, os quais não

utilizam o objeto máscara, mas são constituídos de uma máscara física. Tal qual o bufão, as

máscaras dell’arte tomam o corpo inteiro.

Como primeira máscara dell’arte, assumi a Servetta/Cortigiana, e foi com este

“batismo” e convivência no grupo que entendi que o nome que me foi dado, coloca-me em

um grupo ou coletivo e, paralelamente, num espaço singular. No grupo, éramos quatro

Servette (Servetta Caipirinha/Veronica Risatti, Servetta Polentina/Lucia Zaghet, Servetta

Mandarina/Xu Xuan e Servetta Papaietta/Joice Aglae Brondani), onde tal nome identificava

meu lugar no coletivo e meu espaço pessoal dentro deste – com tudo que era comum às

máscaras da Servetta e aquilo que era especificamente meu5.

O primeiro estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore foi um mergulho nas máscaras

femininas, um trabalho destinado à criação do espetáculo “Né serva, Né Padrona” - direção de

Claudia Contin e Ferruccio Merisi (Ver Anexo B).

A máscara da Servetta é uma máscara de origem tão popular quanto à do Zanni. Na

verdade, ela é a companheira do Zanni e, tanto quanto a máscara de seu companheiro, ela

também se desdobrou em muitas outras. Quando as companhias dell’arte “invadiram” a

                                                            5 O nome Papaietta surgiu de um discurso que fiz. Gosto muito de mamão (seja papaia, formosa ou qualquer outro tipo) e, depois de alguns meses na Itália, tinha muita vontade de comer esta fruta. Então, procurei por todos os mercados e feiras de Pordenone e encontrei-a em uma pequena loja de frutas exóticas. Eram caríssimos, pequenos e estavam verdes, mesmo assim, tamanha era a minha vontade, que comprei uma embalagem com três papaias. Chegando à Scuola, coloquei-os para amadurecer próximos à janela da cozinha. Um dia, depois do ensaio, fui “saborear” a fruta, quase sem aroma e com um gosto horrivelmente amargo, para mim, um desastre. Então fiz um longo discurso sobre a dificuldade de encontrar papaia, o sabor diferente que a fruta tinha na Europa, o preço absurdo por um pequeno exemplar da fruta e todos riam da minha “fúria” contra os mercantes e a natureza que não proporcionava papaias mais saborosas na Itália. Desde então, passaram a me chamar de Papaietta.  

193  

França, a máscara da Servetta já chegou com seus desdobramentos e tornou-se mais

conhecida pelo seu segundo nome, pode-se citar como exemplo a Colombina e outros como

Riciulina e Franceschina (CLAVILIER; DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.57). Foi o mesmo

processo de desdobramentos da máscara que aconteceu com o Zanni.

Apesar de ser a companheira do Zanni, enquanto que este tem origem bergamasca, a

Servetta, segundo Contin (1999, p. 134), é de origem veneziana:

[A Servetta] É geralmente identificada como máscara de origem veneziana – mesmo se existiam Servettas de várias proveniências – talvez por causa de uma certa fama de maior desinibição social das mulheres venezianas, em relação àquelas de outras regiões.6

Conforme especificado por Contin, existiam Servettas de toda parte da Itália. Clavier e

Duchefdelaville (1994, p.58), por exemplo, não falam da origem da Servetta, dizem apenas

que ela foi seduzida por Arlequin, em Veneza e que, depois do fato consumado, tornou-se

uma comediante.

Outro exemplo de sua múltipla origem está em um texto intitulado “Il saluto di uma

Servetta”, contido em R. Tessari (1981, p.159), cujo trecho é extraído de outro texto,

nomeado “Saluto di serva toscana” de A. Perrucci, contido no livro “Dell’Arte

rappresentativa premeditata e all’improviso” (1699). Neste texto, a Servetta conta histórias,

tão fantasiosas como as histórias de um Zanni, que envolvem mitos como Netuno, Baco,

Adonis e Marte, são causos que interpõem o absurdo, o cômico e a esperteza destas máscaras

dos servos.

Segundo Tessari (1981, p.20), não existe um documento que possa dizer, com

exatidão, a data da aparição da mulher na cena - não se sabe, também, se a Servetta foi a

primeira máscara feminina a aparecer na cena (ou se foi a Cortigiana ou Nóbile). Mas,

conforme a observação do autor, sabe-se que a presença da mulher nos palcos está ligada, sem

sombra de dúvidas, à commedia dell’arte. Pois, anterior ao fenômeno das companhias

dell’arte, tradicionalmente, eram os homens que faziam os papéis femininos. Foi, certamente,

na commedia dell’arte que a mulher assumiu seu papel na cena.

As máscaras femininas da commedia dell’arte foram parte de um movimento que

ecoou, não somente no mercado, mas na sociedade em todos os sentidos. Conforme Tessari

(1981, p.20) assinala, a escolha de colocar mulheres em cena foi, também, mercadológica e                                                             

6 Tradução da autora: “Viene spesso identificata come maschera di origine Veneziana – anche se si ebbero Servette di svariata provenienza – forse a causa di una certa fama di maggiore disinibizione sociale delle donne Veneziane rispetto a quelle di altre regioni.”  

194  

econômica, pois como não era um costume ter mulheres “expostas” com todas as suas

capacidades de tramas e encantos, a presença feminina chamava a atenção do público em

geral, mas, principalmente, do masculino. A presença da mulher em cena, em uma época em

que as mesmas não podiam expor-se, foi muito impactante, principalmente, porque a máscara

feminina na commedia dell’arte tem como base mais importante, segundo Contin, a

exuberância, a beleza e o fascínio da feminilidade.

Em “Commedia dell’arte: la Maschera e l’ombra” (1981), Tessari traz muitas

observações sobre este incrível fascínio que as mulheres exerciam na cena. Ele cita

documentos clericais que “denunciam” as companhias dell’arte que usavam mulheres em

cena “desvirtuando” os jovens, os pais de família e as jovens que se encantavam com aquele

universo e dedicavam-se à arte de interpretar. Enfim, para a igreja, as compagnias dell’arte

eram consideradas engenhos de desvirtuação e tentação aos bons costumes e à sociedade.

Muitos documentos que contêm tais observações também são encontrados em La Commedia

dell’Arte e la Società Barocca. La fascinazione del teatro, de Ferdinando Taviani (1991).

Certamente, que a commedia dell’arte contribuiu, mesmo se pensasse de forma

mercadológica, para um movimento importantíssimo: a presença da mulher dentro do

universo das artes e, daí, para um engajamento desta, até mesmo, na sociedade. É impossível

não pensar que muitas conquistas femininas tiveram, como passo inicial, o ato da mulher estar

em cena, enfrentando rejeições e acusações. Contudo, esta tese não se dedica a estas

implicações.

Na commedia dell’arte, as mulheres não usam máscaras. Isso porque, na época, a

companhia desejava mostrar que o papel feminino estava sendo realizado por uma mulher e

não por um homem vestido de mulher. Segundo Contin (1999: 133), se a compagnia dell’arte

colocasse uma máscara sobre o rosto da mulher, estaria cometendo um grave erro, pois estaria

desfigurando a “poderosa arma de chamar público” - que era a presença da mulher no palco -

com um pedaço de couro que, com certeza, não seria tão belo quanto o rosto da atriz.

Não se pode esquecer que mesmo a beleza apolínea da Servetta possui um ligame com

o universo subterrâneo. Como serva, ela contém a mesma fome característica do Zanni, porém

é travestida na sua esperteza, capacidade de duplo sentido, independência e “liberdade”

(CLAVILIER; DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.58).

195  

Foto: Veronica Risatti Espetáculo: Papaietta Poliglota Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

Nas máscaras dell’arte continianas, a exuberância feminina explora seu lado

dionisíaco, e seus aspectos carnavalescos e grotescos também são convocados, exatamente, no

exagero desta feminilidade. A máscara da Servetta une a beleza, o grotesco e o absurdo. Seus

discursos podem ser tão absurdos quanto os do Zanni. Cito como exemplo um belíssimo

trabalho que assisti, depois apreendi, e tornou-se uma das cenas de meu espetáculo dirigido

por Contin e Merisi, intitulado “La scorza di melone”7. Trata-se de uma cena reconstruída por

Contin, de um discurso e jogo típico da Servetta. Cena em que uma jovem conta como um

escorregão em uma casca de melão a fez engravidar de um Capitano que, querendo ajudá-la a

levantar-se do tombo, descuidadamente, escorregou na mesma casca e caiu no seu colo. Dessa

queda, então, ela engravidou, restando a ela o destino de ser comediante e construindo com

todos os seus filhos uma compagnia dell’arte. Trata-se de uma história totalmente fantasiosa,

cheia de duplos sentidos, a qual mostra o lado sensual, “ingênuo”, esperto e grotesco da

Servetta.

Segundo Contin, Servetta é tão alegre quanto o Zanni e tão jovial e rebelde quanto

Arlecchino - ela é uma explosão de energia. Sua risada lembra um relincho, um grande

sorriso, que mostra quase todos os seus dentes. Leve e saltitante como se fosse uma pipoca

estourando, ela é radiante e provocativa (CONTIN, 1999, p.132). Estas mesmas

características são assinaladas por Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.58).

                                                            7 “La scorza di melone” teve seu texto reconstruído por Claudia Contin e faz parte do acervo da Scuola Sperimentale dell’Attore. 

196  

Foto: Veronica Risatti Espetáculo: Papaietta Poliglota Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

Na codificação de Claudia Contin, a Servetta possui uma

gama de movimentos e partituras (quadril, braços, saudações,

caminhares) bem específicos. Parto da sua principal caminhada: o

passo duplo. Isto é, ela caminha dando dois passos com a mesma

perna, alternadamente. Porém, não são passos “secos” e “duros”,

ela acrescenta a esse modo de caminhar, uma espécie de pequenos

saltos com certa “maciez”, como se fosse um gingado, fazendo com que o seu caminhar

pareça quase uma dança.

Máscara física continiana da Servetta Desenho de Alice Mosanghini

A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2008 ߎ

Com este passo duplo, cuja movimentação a deixa ainda mais jovial, a Servetta

locomove-se pelo espaço e seus braços repousam de forma graciosa na cintura, salientando o

peito, os quadris ou ventre (partes do corpo feminino que, naquela época, eram muito

importantes, pois tinham relação com a maternidade) e com a movimentação das mãos que

também ajudava a salientar os atributos femininos. Quando caminha com este passo duplo, as

pontas dos pés são lançadas para cima, um modo sutil de levantar um pouco a saia, fazendo

com que os tornozelos fiquem sutilmente à mostra (muito audacioso para uma época em que

as mulheres eram altamente reprimidas).

Conforme afirma Contin (1999, p.135), as companhias dell’arte apresentavam-se nos

palcos das praças, estes palcos eram colocados, mais ou menos, a um metro ou metro e meio

de altura, deixando os tornozelos levemente desnudos na altura dos olhares do público. Outro

197  

ponto que Contin ressalta sobre as mulheres e o modo de estarem em cena, é o exagero em

enfeites nos cabelos e decotes, estes acessórios funcionavam como uma espécie de “moldura”

para o rosto maquiado cuidadosa e elegantemente, ressaltando olhos e boca. Os decotes

também eram enfeitados com fitas e babados em torno do colo, mantendo o mesmo efeito de

“emolduramento” e “enquadramento”, puxando o foco dos olhares do público para aquela

parte do corpo e chamando a atenção através da sensualidade. Dessa forma, trabalhando com

detalhes e truques, as atrizes tornavam-se mulheres exuberantíssimas, quase mágicas, ou

melhor, feiticeiras que encantavam o público, dentro e fora da cena – e foi com estes

pequenos sortilégios da cena que a fama de feiticeiras das atrizes da commedia dell’arte foi

sendo construída.

Tessari e Taviani trazem um discurso de cunho religioso, feito em 1631, por Pedro

Hurtado de Mendonza contra as companhias dell’arte, afirmando que estas eram, na verdade,

um grupo de pessoas imorais. Nelas, os jovens pensavam somente no amor, a ponto de

aprenderem fervorosas e apaixonadas poesias. Sublinhando que ainda mais imoral era a

situação de coabitação entre homens e mulheres, nas quais viviam de forma promíscua, todos

juntos, sem que as mulheres tivessem um quarto somente para elas. Para Mendonza, nas

companhias, as mulheres eram sempre, ou quase sempre, despudoradas, pois os homens viam-

nas meio nuas e até chegavam a ajudá-las a despir-se e vestir-se rapidamente para entrarem

em cena. Mendonza (apud TESSARI, 1981, p.21), continuando o discurso, vai mais além,

alertando que nada se igualava ao pior dos pecados, à tentação que estas mulheres

representavam:

Para as mulheres, acrescenta-se outro perigo, nem um pouco mais leve: com freqüência, são extraordinariamente belas, elegantes no comportamento e no modo de vestir, com palavras suaves, hábeis na dança e no canto, experts na arte de recitar. E tudo isso arrasta os espectadores à libido.8

A partir destas palavras, pode-se entender o fascínio que as mulheres, que até então

não apareciam nos palcos, exerciam sobre o público. Este fascínio acabou chamando a

atenção e desencadeando, por vários motivos, a cólera da Igreja sobre as companhias de

commedia dell’arte. Alguns documentos trazidos por Tessari (1981) e Taviani (1969) são de

acusação de clérigos contra as companhias dell’arte. Os motivos eram muitos, falavam do

fato que o público dava dinheiro para as companhias e poderiam, assim, deixar de cumprir os

                                                            8 Tradução da autora: Per le donne si aggiunge un altro pericolo per niente più lieve: spesso sono straordinariamente belle, eleganti nel comportamento e nelle vesti, di facile parola, abili nella danza e nel canto, esperte nell’arte della recitazione. E tutto ciò trascina gli spettatori alla libidine. 

198  

deveres sociais. Afirmavam que muitas famílias esperavam (a semana, o mês) e preparavam-

se para ir até a praça assistir às companhias dell’arte (isso quer dizer que as peças de teatro

foram ganhando importância na vida da sociedade).

Em Taviani (1969, p.356) e Tessari (1981, p.22-23), pode-se ler uma carta do jesuíta

Domenico Ottonelli, de 1652 (ambos os autores divulgam este documento), a qual é plena de

graves acusações contra as companhias dell’arte. Em tal documento, o jesuíta chega a afirmar

que os meretrícios e as meretrizes eram permitidos e aceitos pela igreja, pois evitavam

pecados mais sérios como o adultério, o incesto e outros, mas as comédias (referindo-se às

peças das companhias dell’arte), ao contrário, instigavam o público em direção à ação destes

graves pecados.

Lendo tais documentos, a partir dos comentários ali escritos, pode-se ter uma ideia de

como as máscaras femininas da commedia dell’arte foram alvos de discursos contrários a sua

presença em cena. As atrizes, por parte das instituições religiosas, acabaram sofrendo algumas

“condenações”. Por esta “demonização” da figura feminina, em algumas iconografias, as fitas

e enfeites dos cabelos das Servettas acabavam desenhando duas pequenas guampas, mas não

se sabe se este detalhe do ornamento das cabeças faz parte do grupo das causas ou das

consequências dos comentários tecidos pela igreja.

Foto: Veronica Risatti Espetáculo: Papaietta Poliglota

Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore

Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

Segundo Contin, estes ornamentos colocados de forma a lembrar pequenos cornos, é

um modo de reafirmar a ligação desta máscara com o universo infernal e subterrâneo.

Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.58) também chamam a atenção destes recursos

“demoníacos” da Servetta, no uso da maquiagem e ornamentos.

Mas esta ligação da Servetta com o universo xamânico e demoníaco vai muito além de

uma condenação eclesiástica, ela passa por toda a relação que é inerente ao Zanni, seu

companheiro. Como uma “zanna”9, ela também possui as mesmas conexões telúricas que ele

                                                            9 Nome que também é chamado a Servetta companheira do Pulcinella, em Napoli. 

199  

tem com o universo subterrâneo, dionisíaco, xamânico e infernal (este último, muito

relacionado a Arlecchino, como será visto mais adiante).

Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Né Serva, Né Padrona Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atrizes: Joice Aglae e VeronicaRizatti Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 18 2008 ߎ 01 ߎ

Estudando as máscaras femininas e as conexões xamânicas destas, percebi que a

Servetta não recebe somente as conexões xamânicas e telúricas do Zanni, ela possui uma

conectividade específica dela que se reafirma a cada vez que ela se move, está no seu

caminhar em passo duplo. Apesar de Arlecchino caminhar deste mesmo modo, com o passo

duplo e Contin (1999, p.133) falar desta ligação entre Servetta e Arlecchino, este passo duplo

da Servetta vem, também, de outra conectividade. A Servetta tem, com este duplo passo

saltitante, doce e leve, uma conexão com um ritual antigo da região mediterrânea italiana. Ela

se locomove com o mesmo passo base da tarantella – dança xamânica (tida como curativa e

de transe) do sul da Itália, realizada por mulheres (especificamente em Puglia, tinha\tem uma

grande concentração de tarantatte – eventos\rituais em que tocam e dançam a tarantella –

tanto a música, como a dança que fazem parte da tarantatta são chamadas de tarantella).

Antigamente, acreditava-se que esta dança tinha o poder de curar as mulheres que tinham sido

vítimas de uma “picada de aranha” (taranta). Então, quando as mulheres apresentavam os

sintomas da “picada da taranta”, os músicos iam até a casa da hipotética doente e, com violino

e tamorra, tocavam tarantella. A “doente”, como em uma espécie de transe, levantava-se e

dançava até que todo o “veneno” saísse do corpo. A tarantatta não tinha/tem hora para

terminar, dura o tempo necessário que a “doente” precisa para “expulsar o veneno” através da

dança, então, para que os músicos dessem conta da demanda, muitas vezes, eram reunidas

mais de uma “doente” e, nessa reunião de “doentes” em transe, dançando freneticamente, o

ritual de cura pela dança, parece uma festa. Com o tempo, este ritual foi se tornando, também,

um evento festivo, foram surgindo aqueles que se contagiavam pelo ritmo e entravam para

dançar e festejar, sem uma intenção curativa – festa e ritual – e hoje, na Itália, a tarantella é

uma das fontes de inspiração para a dança contemporânea.

200  

Hoje, através de estudos, sabe-se que não se tratava de uma picada de aranha, mas sim,

de um fenômeno psicológico, o qual, com o transe causado pela dança e música era, de forma

catártica, “exorcizado”10.

A tarantatta, este ritual de cura pela dança, ainda existe nos dias de hoje. Em Puglia, é

possível encontrar rituais muito próximos daqueles que se faziam antigamente, mas é preciso

ir além da época dos festivais que transformaram o ritual em evento turístico ou dança

contemporânea. Os grandes festivais acontecem em junho e a maioria dos rituais também,

pois a festa de São João (San Giovanni – San Gianni) é o ponto alto destes rituais (ligação da

tarantatta com Zanni). Muitas vezes, é necessário procurar as tarantattas nos arredores da

cidade, longe do centro e assim, encontrar aquelas que ainda mantêm algumas características

originárias do evento.

Para esta pesquisa, este duplo passo advindo da tarantatta é mais um fio que vem

fortalecer as ramificações rizomáticas desta pesquisa com o universo ritualístico, com a festa

e com as máscaras dell’arte. A tarantella, então, é um dos elementos que serve de

reservatório/motor para a Servetta. Esta sua caminhada advinda da tarantella, com uma

pequena modificação do circuito, transformou-se em um caminhar suave, doce, arredondado,

mas também vigoroso, marcante e vivaz.

Estas mesmas características de suavidade e vitalidade podem aplicar-se a uma dança

brasileira, a qual possui, também, conexões com o ritual e a festa: o samba. No acesso através

da técnica de transdução caleidoscópica, a máscara da Servetta, seu caminhar e toda a

movimentação do quadril, pernas e pés, têm como base células/códigos advindos do samba.

Esta conexão precisa de uma pequena modificação no circuito muscular e no acento rítmico

do passo. Com estas pequenas mudanças, a tarantella transduz-se em samba e, vice-versa.

Além do samba, na técnica de transdução caleidoscópica, na parte superior, o tronco

acompanha o samba e os braços e as mãos ganham a fluidez da água e a força do vento, com

os movimentos das danças dos Orixás, principalmente, das de Oxum, Iemanjá e Iansã.

Ver a “construção” da máscara física da Servetta através das práticas espetaculares

populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO

CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA - 4.2.1 – SERVETTA –

fotos e dança.

                                                            10 Para saber mais sobre a tarantatta, ler: Tracce di teatro sciamanico tra Africa e Mediterraneo. Le maschere e la danza come contatto con stati di coscienza “diversi”. In Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontr, de Giovanni Azzaroni; Il Paese di Pulcinella. Miti, Magie, Misteri e Morte, Lo Scaffale Racolta De Teatro; Antropologia delle anime in pena. Teatralità e malattia nella cultura napoletana “underground napoletano”. In Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontr, de Marino Niola; La danza e l’estasi: il corpo sciamanico. In Progetto Sciamano 2000. Esperienze di Teatro-ed-Handicap, Eugenia Casini Ropa. 

201  

Foto: Léo Azevedo Aula-Demosntração: Transduções e Imaginações Caleidoscópicas

Direção/Atuação: Joice Aglae Data: Outubro 2009 ߎ

Outra máscara feminina muito presente nas tramas e canovacci é a da Cortigiana11.

Segundo Contin (1999, p.144-145), a Cortigiana é uma máscara dupla, pois reúne nela

as corporeidades e fisicidades da Servetta e da Nobile (ou Enamorada). Sua natureza alterna-

se entre populacha, agressiva, requintada e dengosa. Nas tramas, a Cortigiana é quem assume

os papéis de dançarina, cantora, cigana e coisas do gênero. Ela não é uma serva e nem mesmo

uma patroa, mas pode comportar-se das duas maneiras e, por isso, permear estes dois

universos. Por estar neste lugar que lhe propicia o diálogo com ambos os universos, ela é uma

máscara que contém traços misteriosos e exóticos, servindo, inclusive, para os papéis de

estrangeira e feiticeira.

Esta dupla natureza da Cortigiana se manifesta numa interseção contínua de duas precisas máscaras físicas: a primeira é aquela de uma jovem popularesca rude e com gestualidade mais grosseira e musculosa que a de uma Servetta normal; a segunda é aquela de uma nobre amorosa, refinadíssima e muito arredondada, com a gestualidade rica em elementos de dança e de sedução [...] A comicidade da Cortigiana depende, exatamente, do efeito que estas suas repentinas mudanças de comportamento agem sobre todos os personagens que a rodeiam. Geralmente a voz é extremamente móvel e pode passar, repentinamente, de um gorjeio lírico a um rugido profundo de uma leoa (CONTIN, 1999, p.145).12

                                                            11 Esta máscara pode ser confundida com a máscara da “La strega” ou em francês, “La sorcière” (CLAVILIER; DUCHEFDELAVILLE, 1994, p.60), que seria “A feiticeira”, uma espécie de herbolária, cujo papel, dentro da trama é ligado à feitiçaria. Esta função, originalmente, era desenvolvida pelo Dottore, Capitano, Ciarlatano e Cortigiana. A Cortigiana pode trabalhar com poções mágicas e feitiços, mas seus domínios não se resumem a este universo da “feitiçaria”. 12 Tradução da autora: Questa doppia natura della Cortigiana si manifesta nell’intersecarsi continuo di due precise maschere fisiche: la prima è quella di una popolana rude e dalla gestualità più pesante e muscolosa di quella d’una normale Servetta; la seconda è quella di una nobile amorosa, raffinatissima e molto flessuosa, dalla gestualità ricca di elementi di danza e di seduzione [...] La comicità della Cortigiana dipende proprio dall’effetto che questi suoi repentini cambi di comportamento ottengono su tutti i personaggi che la circondano. Persino la voce è estremamente mobile e può passare improvvisamente dai gorgheggi lirici al ruggito profondo di una leonessa.  

202  

A Cortigiana possui uma conexão grande com o bufão, não somente pela “aura” de

mistério que circula esta máscara, mas, também pela retórica, ela é muito hábil com a ironia e

a sedução, como arma de manipulação. A Cortigiana incorpora a inversão do poder, porém,

faz isso de maneira graciosa e leviana – ela possui a malandragem e o “jogo de cintura” do

capoeirista e do sambista.

Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópicas Direção/Atuação: Joice Aglae Data: outubro 2009 ߎ

Com sua rebeldia e traquejo, a máscara da

Cortigiana, na técnica de transdução, ganha vida através de

células do samba, da capoeira, da ciranda, do maculelê e das

danças dos Orixás (principalmente, Iansã, Oxum, Iemanjá,

Xangô, Ogum, Oxumaré e Exu).

Numa dinâmica caleidoscópica da imaginação, conforme caminhos líquidos já

mencionados, a geminação de códigos, circuitos musculares e energéticos destas práticas

espetaculares populares brasileiras dá vida e forma a base de sustentação da máscara da

Cortigiana. Ver a construção da máscara física da Cortigiana através das práticas

espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4.

TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.3 –

CORTIGIANA – fotos e dança.

Como dito, a primeira máscara que incorporei foi a da Servetta, porém, a primeira

cena solo de commedia dell’arte, dentro da Scuola Sperimentale dell’Attore, foi de uma

Cortigiana, no espetáculo “Né serva, Né Padrona”, dirigido por Claudia Contin e Ferruccio

Merisi. Para fazê-la, tive de aprender, primeiro, as máscaras da Servetta e da Nobile.

Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Né Serva, Né Padrona Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atriz: Joice Aglae Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 18 2008 ߎ 01 ߎ

203  

Prosseguindo, então, na descrição das máscaras femininas que incorporei, devo falar

da outra faceta, cuja fisicidade integra a máscara da Cortigiana: a Nobile.

Os Nobili, tanto femininos como masculinos, também não usavam/usam

máscaras/objeto, mas possuem a máscara física.

Segundo Contin (1999, p.109), as companhias de commedia dell’arte seguiam o

preceito de que os “nobres de coração”, ou seja, aqueles que representavam/representam o

amor (e outros sentimentos nobres) nas tramas, não deveriam/devem esconder-se atrás de

máscaras. Contin ainda ressalta outro aspecto estético da cena que contribuía para a visão

“poética” destas máscaras, cuja visível pele pálida daqueles que sofriam/sofrem por amor

sobressaía ao obscuro mundo das máscaras de couros escurecidos e grosseiros.

Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica Direção/Atuação: Joice Aglae Data: outubro 2009 ߎ

A máscara física continiana de um Nobile (maculino e

feminino) é bastante complexa, plena de tensões e torções, pois nela

se contradizem os instintos e os sentimentos e, segundo Contin, é

nessa total contradição que estão as suas características cômicas e

grotescas.

Segundo as máscaras continianas, a Nobile (lê-se ambos os

sexos), quando parada, possui uma postura quase de bailarina, esguia e elegante, a aparentar

uma “educação clássica”. Os seus pés possuem uma abertura de 90 graus, os tornozelos

aproximam-se elevando levemente as extremidades externas dos pés, como se fossem levantar

vôo. Apesar dos pés serem levemente abertos, as pernas são tesas e bem fechadas, com uma

certa tensão nas coxas. Mesmo que a parte inferior do corpo seja tensa, numa tentativa de

bloquear os instintos, seu corpo é muito leve. O quadril apresenta uma característica torção,

constituindo uma negação desta região instintiva, ele é girado na direção oposta à do peito,

onde está o coração e seu sentimento nobre. O peito é alongado, direcionado para o alto, como

quem deseja desgrudar-se do quadril para fazer o coração voar junto com as suas aspirações

românticas. Então, na máscara física da Nobile, os pés e o peito são voltados para o lado

oposto ao do quadril:

204  

Portanto, o Nobile na tentativa de separar as próprias pulsões, acrescenta uma torção deste tipo: o quadril permanece voltado para um lado, ao centro do ângulo formado pelos pés, enquanto o busto gira em outra direção, procurando dar-se vida e existência própria, independentemente da parte inferior (CONTIN, 1999, p.111).13

Máscara física continiana dos Nobili Desenho de AliceMosanghini

A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2010 ߎ

O rosto do Nobile é voltado para o alto, como se fosse puxado pelo nariz, que cheira

suavemente o perfume das “sferi celesti”, “esferas celestes”. Os braços são elevados seguindo

a linha dos ombros, uma forma de negar e de manter as mãos longe da zona instintiva do

quadril – diferente da Servetta e da Cortigiana que os apoiam nesta região com muito

desembaraço. Os cotovelos e pulsos são semiflexionados, dando a impressão de que os braços

são asas e as mãos passeiam pelo ar desenhando as ondas emocionais (CONTIN, 1999, p.109-

114).

Todas estas tensões e formas específicas da máscara da Nobile são encontradas nas

práticas espetaculares populares brasileiras. A postura esguia e elegante pode ser encontrada

no maracatu, na postura do rei e da rainha ou na coluna ereta típica do xaxado. Os pés, com

abertura de 90 graus, têm a mesma posição de um dos códigos que fazem parte do golpe de

capoeira chamado “armada de costas”. A tensão nas extremidades externas dos pés é possível

encontrar entre os códigos de uma das danças de Xangô e, também, está presente no

maracatu, entre as células da dança do Porta-estandarte (ou dança do vassalo do Porta-

estandarte). É ainda na dança desta figura do maracatu que se encontra uma tensão nas pernas

semelhante às tensões das pernas dos Nobili. Já a leveza do corpo, o seu modo de caminhar e

as posições dos braços são parecidos com os códigos advindos da ciranda. Então, a máscara

física da Nobile, na técnica de transdução caleidoscópica, conecta-se e recebe energia da

                                                            13 Tradução da Autora: Pertanto il Nobile, nel tentativo di separare le proprie pulsioni, aggiunge una torsione di questo tipo: il bacino rimane rivolto da un lato, al centro della squadra formata dai piedi, mentre tutto il busto ruota in un altra direzione cercando di darsi vita ed esistenza propria, indipendentemente dalla parte inferiore. 

205  

ciranda, da capoeira, do maracatu e da dança dos Orixás. Ver a construção da máscara física

da Nobile através das práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha

esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.2 -

SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.2. – NOBILE – fotos e dança.

Reafirmo que não é simples falar de uma dinâmica caleidoscópica da imaginação,

pois se, conforme Bachelard, uma imagem só pode ser explicada por outra, então, sabe-se que

as tentativas de explicação destes engendros são usualmente falhas. O relato de algumas

experiências dos espetáculos de commedia dell’arte que participei na Scuola Sperimentale

dell’Attore, pode ajudar não a explicar, mas a entender que o acesso às máscaras dell’arte

construído através das práticas espetaculares populares brasileiras é possível.

5.1.1. “Né Serva, né Padrona”

“Né serva, né Padrona” foi um espetáculo preparado para o início das comemorações

do carnaval italiano de 2008, na região de Pordenone.

Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Né Serva, né Padrona Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Joice Aglae, Lucia Zaghet, Veronica Risatti e Xu Xuan Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 10 2008 ߎ 01 ߎ  

 

Para a construção do espetáculo e para que eu tivesse

acesso a todas as informações sobre as máscaras femininas, a

Scuola Sperimentale dell’Attore realizou um laboratório de

pesquisa prático-teórico interno, isto é, somente para os atores da Scuola Sperimentale

dell’Attore, em cujo grupo fui engajada. O laboratório intitulado “Carattere Femminili della

Commedia dell’Arte” aconteceu de 08 a 18/01/2008 (60 H/A), dirigido por Claudia Contin e

Ferruccio Merisi, contando, ainda, com o auxílio da professora Veronica Risatti. Os assuntos

desenvolvidos dentro do laboratório foram: “Le Servette, Le Amorose, Le Cortigiane, Prime e

Seconda Donne di Compagnia, Amor Sacro e Amor Profano, Cantatrici, Danzatrici,

Suonatrici, Mezzane, Ruffiane e Curatrici, L’Amor nel Gioco e nella Poesia”; sendo divididos

em 30 horas de laboratório prático; 20 horas de ensaios e dramaturgia cênica; 10 horas de

206  

treinamento e atividades de divulgação pública. O laboratório seguiu conforme indicado:

primeiro foi trabalhada a máscara da Servetta (como máscara feminina companheira de

Arlecchino), depois foi a Nobile (como máscara que representa o amor) e, por fim, a

Cortigiana (a máscara dupla, serva e nobre). Aprender detalhadamente as máscaras femininas

serviu para aprofundar em detalhes o diálogo com as manifestações espetaculares populares

brasileiras, descobrindo novas conexões e confirmando aquelas já vislumbradas.

Nas cenas em que entrava como Servetta, aos olhos dos mestres, estava fazendo “à

italiana”, mas internamente utilizava a técnica de transdução de forma sutil, trabalhando os

circuitos energéticos, buscando a ancestralidade festiva do samba e das danças dos Orixás.

A utilização deliberada das práticas espetaculares populares brasileiras foi permitida,

pelos mestres, quando entrava para fazer a cena do monólogo da Cortigiana, com texto

adaptado de um dos discursos de Ottonelli, cujas palavras eram de julgamento e observação

do comportamento das comicas dell’arte e do comportamento social para com elas. Nesta

cena, a pedido de Merisi, a capoeira servia como base, como reservatório/motor para a

máscara física (juntamente com a ciranda, o maracatu, o samba e a dança dos Orixás), mas

também para a movimentação dentro da cena. Construída com uma sequência de movimentos

da capoeira, a Cortigiana Papaietta percorria todo o palco. Mais tarde, a sequência de golpes

foi sendo trabalhada e transformada, tornando-se menos identificável como capoeira e mais

adequada às ações que a cena requeria.

Apresento abaixo o texto da cena da Cortigina Papaietta (adaptado por Claudia Contin

e Ferruccio Merisi, extraído de uma carta de A. D. Ottonelli). Na cena, o discurso é feito pela

própria Cortigiana, que conta como é bom, para uma mulher, ser chamada de “Senhora” e ir a

grandes cidades encontrar-se com nobres cavalheiros, com suas carruagens, depois, ser

conduzida a um quarto bem preparado, ser recebida com presentes, banquetes, grandes honras

e, finalmente, esperar pela noite, por uma nobre consumação. Acredita-se que não seria o caso

de colocar uma tradução, uma vez que a cena é apresentada, originalmente, em italiano e por

se tratar de uma adaptação, há uma mistura de italiano antigo e atual. Então, fez-se um

panorâma da situação para colocar o leitor a par da ação da cena.

Para ler o texto integral e sem adaptações, reencaminho o leitor para “Commedia

dell’Arte: La Maschera e l’Ombra”, de Roberto Tessari (1981, p.22):

O che gusto per uma donna che si possa preggiare del grazioso titolo di Signora. O che gusto per uma donna, si è. Andar ad una grand città, et esser tal volta incontrata da nobil cavalcate, et anche da carrozze da 4 o da 6 posti. E vedersi condotta a preparate stanze, et ivi ricever subito regali di rinfreschi per far lauti pasti e deliziosi. O che bella, anzi bellissima cosa, ricevere onori grandi e grand

207  

presenti e alla fine sperare per la notte d’aver l’onore di una nobilissima consumazione.

A sequência da cena da Cortigiana resultou na seguinte forma:

O che gusto [passo de maculelê com mãos e braços das danças dos Orixás (Oxum)].

Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica Direção/Atuação: Joice Aglae Outubro 2009 ߎ

Per una donna (passo de ciranda)

Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica

Direção/Atuação: Joice Aglae Outubro 2009 ߎ

Che si possa preggiare del (rasteira do cavalo marinho ou da capoeira).

Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica Direção/Atuação: Joice Aglae Outubro2009ߎ.

Grazioso titolo di Signora (passo da ciranda).

E, dessa forma, a cena foi tomando forrma. Primeiro, ela fez parte da conferência-

espetáculo intitulada “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte – Né serva,

né Padrona” e foi a público pela primeira vez, no Auditorium Comunale di Roveredo in

Piano, nos dias 18/01/08 e 20/01/08, na Sala Arlecchino da Scuola Sperimentale dell’Attore

(PN-IT).

Neste mesmo espetáculo, outra colaboração da cultura popular brasileira: uma canção

de ninar brasileira, cantada em português e em italiano e que se tornou uma cena do

espetáculo, na qual Arlecchino escolhia um espectador e entregava-o às Servette (éramos

quatro) para que estas o fizessem dormir.

208  

Foto: Alessio Prosser Espetáculo: “Né Serva, Né Padrona”

Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet, Veronica

Risatti e Xu Xuan (e público) Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 18/012008ߎ

Os códigos da cultura popular brasileira e da commedia dell’arte geminaram-se de

forma bem equilibrada e as cenas conectaram-se tão bem que acabaram fazendo parte,

também, do espetáculo “Arlecchino e le sue colombine”, apresentado meses mais tarde,

especificamente, no dia 16/05/08, no Agriturismo La' Di Fantin, em Pordenone (IT).

5.1.2. Preparação do espetáculo para Papaietta

A criação de um “espetáculo dell’arte” realizado com códigos advindos das práticas

espetaculares populares brasileiras, sempre foi um dos propósitos desta tese. Porém, após o

primeiro curso de dança popular brasileira que ministrei na Scuola Sperimentale dell’Attore

(16 a 22/06/2008) e da primeira aula-espetáculo mostrada ao público italiano (“Tracciati

Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone – Commedia dell’Arte e le Manifestazioni

Spettacolari Popolari Brasiliane” - Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale

dell”Attore – PN-IT, em 23/06/2008), cujo tema central foi a técnica de translocação e o

vislumbramento da técnica de transdução, Contin e Merisi mostraram interesse pela direção

de tal espetáculo. Então, no dia 30 de junho de 2008, começaram os ensaios de “Papaietta

Poliglota”.

De 30 de junho a 23 de julho de 2008, uma rotina de trabalho foi estabelecida para a

criação de um espetáculo com uma parceria colaborativa harmoniosa, cujo texto é de

organização e criação de Claudia Contin. O trabalho ganhou a seguinte dinâmica: pela parte

da manhã, eu entrava em sala de aula sozinha e trabalhava utilizando o texto escrito por

Contin e as máscaras físicas da commedia dell’arte, porém, já usando a técnica de transdução.

Dentro do trabalho matinal que realizava só, colocava na movimentação das cenas, códigos e

movimentações que advinham das práticas espetaculares populares brasileiras (e que fossem

coerentes com o perfil da máscara dentro da ação da cena). As tardes eram reservadas para os

cursos que ministrava dentro da Scuola (“danças populares e o trabalho do ator”, “clown” e

209  

“capoeira e o trabalho do ator”) e cursos nos quais era aluna (laboratórios individuais das

máscaras dell’arte com a professora Veronica Risatti). À noite, entrava em sala com Claudia

Contin. Ela via o material que tinha trabalhado, só, pela parte da manhã e organizava-os,

dirigindo as cenas dentro da perspectiva da commedia dell’arte. Com esse mecanismo, o

espetáculo foi sendo criado. No dia 24 de julho de 2008, o processo do laboratório “La

Servetta, Cortigiana e Damma Enamoratta – Papaietta – Rapporto tra Commedia dell’Arte e

Manifestazioni Spettacolari, Popolari Brasiliane” foi apresentado aos integrantes da Scuola

Sperimentale dell’Attore e a um pequeno grupo de convidados.

Foto: Veronica Risatti Espetáculo: Né Serva, Né Padrona Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Joice Aglae Data: 24 2008 ߎ07 ߎ Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore

De 25 de julho a 10 de agosto, tivemos ensaios e apresentação do espetáculo

“Arlecchino e la vale dell’uomo” e de 11 a 23 de agosto/2008, as atividades laboratoriais para

“Papaietta Poliglota” foram retomadas, desta vez, baseadas na máscara de Pantalone, para a

composição da segunda parte do espetáculo. Mais tarde, falar-se-á da participação de

Pantalone em “Papaietta Poliglota” - como também, do próprio espetáculo.

5.2. PANTALONE, IL VECCHIETO PICANTIN / O VELHINHO PICANTEZINHO

Depois das máscaras femininas, é necessário falar de uma máscara que tem muita

relação com elas: Pantalone.

Pantalone é uma máscara que usa a máscara objeto e possui grande parte de suas

tramas ligadas às máscaras femininas e ao Zanni, pois como afirma Contin, ele é o seu patrão

por excelência.

Pantalone é de origem veneziana. Trata-se de um velho mercante de Veneza, o mais

avaro deles, deve-se especificar. Como Veneza era a região mercantil da Itália, por causa de

sua posição e zona portuária, Pantalone é um típico homem de negócios, trabalha com

210  

dinheiro (compra e venda) e tem como principal característica a avareza. Ele é totalmente

libidinoso, o que economiza nos mercados, gasta em presentes para mulheres, principalmente

para as Coritigianas.

Apesar de fazer parte do grupo dos patrões, Pantalone não é um nobre: “Pantalone

representa uma figura de mercador veneziano que enriquecceu com a florescência comercial

da “Serennissima”: é avaríssimo, senhorial, mas não nobre, aliás, ele é de claríssima origem

popular” (CONTIN, 1999, p.62).14

Conforme Contin, Pantalone é muito velho, é como se fosse o arquétipo da velhice,

não basta dar-lhe 90 anos, mas 290 anos que lhe pesam sobre as costas, fazendo com que os

ombros caiam para frente e a coluna ganhe uma pequena curvatura, na altura das escápulas,

como se equilibrasse este peso da idade nesta pequena corcunda. É importante ressaltar que

esta curvatura das costas do Pantalone não é igual àquela do Zanni, que possui a tensão

empurrando o estômago para trás. No Pantalone, tem uma tensão em direção ao alto [é a

mesma que se forma nos ombros e na coluna no gincado da dança dos Orixás (Exu), porém,

quando, na técnica de transdução, os códigos são adaptados e os circuitos sofrem pequenos

ajustes, aproveita-se para tornar os movimentos mais evidenciados e dilatados que quando

feito nos rituais de candomblé]. Esta curvatura vista de costas parece ser o ponto pelo qual

Pantalone se mantém “pendurado” no firmamento e que o mantém em pé. Vista de frente,

observa-se um espaço côncavo que se forma entre os ombros pendidos para frente, que se

transforma em uma pequena “área de proteção”, um lugar para contar o dinheiro dos

negócios.

As características de Pantalone são bem definidas, como todas as máscaras dell’arte

continianas. Pantalone envelheceu de forma peculiar, apesar da idade avançada, ele não

perdeu a sanidade e, quando o assunto é “negócios”, ele está sempre alerta e esperto. Além

disso, Pantalone não envelheceu alargando as medidas, ele permaneceu magro, aliás, Contin

compara-o com uma árvore que envelheceu secando. Apesar desta comparação com a árvore

seca, no que diz respeito ao seu corpo, não é nem um pouco decrépito, ao contrário, tem muita

energia, principalmente se for para ganhar dinheiro, escapar de uma dívida ou cortejar uma

jovem.

Para conseguir passar todas estas informações, o corpo do ator que incorpora a

máscara do Pantalone está sempre dentro de uma luta de tensões. Por causa da sua idade, o

                                                            14 Tradução da autora: Pantalone rappresenta una figura di mercante veneziano che si è arricchito con i fiorenti commerci della “Serenissima”: é avarissimo, signorile ma non nobile, anzi egli è di chiarissima origine popolare.  

211  

peso do corpo age no sentido da gravidade e suas pernas lutam para deixar o corpo em pé.

Nesta luta de gravidade versus vitalidade, os pés permanecem unidos, mas giram para fora, o

mesmo acontece com os joelhos, que se alargam e, devido ao peso, flexionam-se, dessa

forma, Pantalone ganha uma boa base de sustentação. Essa construção acaba deixando, no

meio das pernas, a forma de losango, onde agem outras forças. Como a do seu órgão genital,

que deve dar a impressão de um peso pendurado em meio a este losango. Claudia Contin

(1999, p.68) cita que, em alguns figurinos vistos em iconografias antigas, Pantalone tem preso

na cintura um saco de dinheiro, o qual fica pendurado, exatamente, neste losango, fazendo

uma alusão ao seu órgão e ao seu recurso com as mulheres. Este “imaginário” órgão genital

pesado em meio às pernas puxa-o para baixo, evidenciando, ainda mais, a sua idade, ao

mesmo tempo, que o puxa para frente, mostrando seu desejo libidinoso com as mulheres. É

necessário lembrar que Pantalone mantém sua libido ligada à vontade e não à ação. Segundo

Contin, é nesta fome sexual que a origem popular de Pantalone se revela e, nas cartas de

amor, revela-se a sua tentativa de ascensão à nobreza.

Máscara física continiana de Pantalone Desenho de Alice Mosanghini

A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro/2010

A sua hipotética virilidade não funciona, mas, em sua fogosa imaginação, Pantalone

realmente acredita que realizará seus desejos sexuais com as Servettas e Cortigianas que

galanteia. Estas, por sua vez, sabem que ele não oferece nenhum tipo de “perigo” e

aproveitam para ganhar agrados do Pantalone, que possui como única realização de sua libido,

presentes, mimos e cartas de amor. Muitos canovacci trabalham com o enredo em que

Pantalone envia, por Zanni, uma carta de amor a sua amada (geralmente uma Cortigiana),

como exemplo desse tipo de intriga, pode-se citar o texto de Goldoni, intitulado Bancarrota.

Tessari (1981, p.144) traz algumas observações de A. Perrucci quanto à distribuição

de papéis nas companhias e às características das máscaras em cena e, no que diz respeito a

Pantalone, os comentários e acusações são bem incisivos. Deste mesmo teor são as

212  

observações de P.M. Cecchini, também divulgadas por Tessari (1981, p.125). Cecchini fala da

presença de Pantalone como um velho engenhoso que, por ser um idoso, deveria impor

respeito, mas se mostra ridículo em suas vestes, linguagem (pois se diz “nobre”, mas fala em

dialeto), voluptuosidade em direção às jovens e tramas com os servos, chegando até a

desvirtuar a classe nobre, já que se apresenta como mercador, diz-se nobre, contudo, age de

forma vergonhosa15.

Quando se lê discursos com tais conteúdos, pode-se perceber que Pantalone chegava a

causar alguma indignação e desconforto na sociedade, por suas características e modo de agir,

já que, dizendo-se mercador, permanecia entre os nobres, mas se comportava como servo,

tratando com eles como se fossem da mesma classe, deixando-se levar pelos impulsos sexuais

e falando em dialeto - característica da classe subalterna.

Toda a voluptuosa sexualidade, avareza e origem populacha de Pantalone são

identificáveis na máscara física continiana. Com tanta fome sexual, o quadril de Pantalone

também é projetado para frente, como o do Zanni. Porém, ao contrário do último, Pantalone

não age sexualmente e sua volúpia acaba manifestando-se em cartas de amor e presentes.

Como dito anteriormente, quem sabe aproveitar esta situação é a Cortigiana, que recebe

muitos agrados e mimos de Pantalone, mas se relaciona com o Zanni ou Nobile.

Quanto à máscara física, Pantalone possui três forças que agem: a gravidade que o

puxa para baixo e as pernas que o empurram para cima, tendo como aliada a corcunda (que o

prende ao firmamento), e o quadril que o puxa para frente. Na sua caminhada, ainda possui

um pequeno impulso nos calcanhares, que também o ajudam a avançar. Dentro da técnica de

transdução, a postura do Pantalone é sustentada com códigos advindos do coco, cavalo

marinho, samba e dança dos Orixás.

Para ter a força e tensão necessária nas pernas, pegam-se códigos do passo marcante

do coco, daquele que caracteriza a “pisada” e, no quadril, mantém-se a força e o movimento

da umbigada, também, do coco. Para as coxas, encontra-se a mesma tensão nas coxas e

panturrilhas da perna quando se faz o passo “margüio” do cavalo marinho. Para a tensão das

costas, como já dito, utilizam-se os códigos da dança dos Orixás (Exu). Para caminhar,

utiliza-se uma partícula de um código advindo do samba e, assim, tem-se o pequeno impulso

no calcanhar. Para os braços, na sua postura de base, que são para trás, pode-se utilizar a

postura dos braços do xaxado ou das danças dos Orixás (código de uma postura de Oxóssi) e,

para as mãos, pede-se emprestado uma partícula da dança dos Orixás (Oxumaré), que mantém

                                                            15 Por se tratar de uma escrita em italiano antigo, pensa-se que seja melhor não fazer uma tradução, então, para aqueles que desejam ler o discurso, aconselhamos buscá-lo na própria fonte (TESSARI, 1981, p.125). 

213  

uma “energia frenética” como a de um guiso de cobra. Nas mãos do Pantalone, há uma

agilidade de quem conta dinheiro e a qualidade destas ações são fortes, “secas” e leves - como

o guiso da cobra (ou, como Contin fala, são como antenas de um inseto). Ver a construção da

máscara física do Pantalone no DVD que acompanha esta tese. MENU: 4. TRANSDUÇÃO

CALEIDOSCÓPICA: 4.4 - PANTALONE: 4.4.2 – PANTALONE – dança.

A máscara do Pantalone foi meu segundo profundo mergulho dentro do universo das

máscaras dell’arte e constituiu a continuação do trabalho para os festejos carnavalescos de

2008, realizados pela Scuola Sperimentale dell’Attore em Pordenone (Ver publicidade no

Anexo E).

A preparação do cortejo carnavalesco que passaria pelos restaurantes e bares de

Pordenone seguiu o mesmo esquema do trabalho com a máscara da Servetta. Tivemos (o

grupo da Scuola Sperimentale dell’Attore, eu e Luciana Basilicò) um laboratório de pesquisa

(prático-teórico) intitulado “Carattere di Pantalone”, ministrado por Claudia Contin e

Ferruccio Merisi, auxiliados por Veronica Risatti, de 26/01/2008 a 02/02/2008. Foram oito

dias de intenso trabalho dentro do universo da máscara de Pantalone, passando por todos os

assuntos e características que dizem respeito a esta máscara: Il Vecchio Avaro, L’Amor Senza

Età, L’a Figura dell’Ebreo Errante, Senilità, Fecondità, Caparbietà, Saggezza, Richezza,

Sublimazione e Rapporti com le Parate degli Antichi Carnevali Montani Europei.

Sempre dentro do mesmo esquema de produção, pela parte da manhã, trabalhávamos

em um treinamento com a professora Veronica Risatti, à tarde, tínhamos laboratório com

Claudia Contin e, à noite, a construção do cannovacio com Ferruccio Merisi, em uma

distribuição de 21h/a de laboratório prático, 21h/a de trainning do personagem, 14h/a de

ensaios e dramaturgia cênica e 5h/a de preparação e atividades de divulgação pública,

totalizando 61h/a, incluindo o trabalho com capoeira, maculelê e samba de roda.

No trabalho com Contin, passávamos a máscara física e a incorporação desta no seu

universo e sua conexão com o carnaval. À noite, com Merisi, trabalhávamos jogo e

improvisações e, pela manhã, trabalhávamos a fixação e a organicidade da máscara física com

Veronica Risatti.

Este trabalho para o carnaval foi idealizado por Merisi e tinha como fio inspirador a

peça “Arlecchino servitore di due Padroni”, de Goldoni. Porém, neste caso, éramos cinco

Pantaloni para um Arlecchino e o cortejo/scorribanda, por conseguinte, chamou-se

“Arlecchino servitore di... quatre Padrone” (no início, havia quatro e, depois, foi incorporada

ao grupo uma atriz de Pordenone, passsando, então, a cinco Pantalones no cortejo). (Ver

publicidade no Anexo F)

214  

Neste trabalho, foram utilizadas muitas práticas espetaculares populares brasileiras,

inclusive, incorporadas ao laboratório de grupo de preparação do cortejo e das cenas. Para os

atores e mestres da Scuola Sperimentale dell’Attore, as práticas espetaculares populares

brasileiras não trabalhavam na máscara física, como para mim, mas serviam para a

movimentação dos Pantalones durante o cortejo.

Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Scorribanda di Carnevale Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet, Luciana Basilicò,Veronica Risatti, Xu Xuan Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 022008/ ߎ02 ߎ

O cortejo foi criado com uma estrutura fixa e outra flexível [como a estrutura do

cavalo marinho (OLIVEIRA, 2007) e como a estrutura das peças dell’arte, segundo Contin

(1999, p.200)]. A partir de cenas estruturadas, improvisávamos. Um exemplo desta

combinação era: conforme o sinal de Arlecchino (realizado com um apito, ou chocalho), os

Pantaloni se reuniam próximos a ele e giravam em torno, chamando-o para realizar esta

“pequena cena”, nesse caso, era utilizado o passo base do samba de roda. Estes mesmos

passos eram utilizados quando os Pantalones, depois de fecharem o cerco em torno de

Arlecchino, viravam de costas para ele e iam em direção ao público, “blasfemando” contra ele

que escapava.

Ou ainda, com Arlecchino ao centro e Pantalones ao redor, o cortejo seguia pela rua e,

para avançar na caminhada (a depender do chamado de Arlecchino), era utilizada a ginga ou o

avanço com a troca de negativa, ambos da capoeira.

Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Scorribanda di Carnevale

Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Claudia Contin, Joice Aglae, Lucia Zaghet,

Luciana Baslicò, Veronica Risatti, Xu Xuan Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore

Data: 022008 ߎ02 ߎ

215  

Também foi preparado o canovacci de duas cenas, em que ambas eram de desafio: em

determinado momento, dois Pantalones apaixonavam-se pela mesma mulher (uma freguesa do

restaurante, que era escolhida na hora através de jogo de cena), então, Arlecchino preparava o

desafio, um era um “jogo” de capoeira e outro de maculelê e, assim, quem vencia (não era

combinado dependia do jogo e da música) tinha “o direito sobre a donzela”, porém, quem a

galanteava diretamente e saia com ela nos braços era Arlecchino, fazendo com que todos os

Pantalones corressem atrás dele, que saía do restaurante.

Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Scorribanda di Carnevale Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Atores: Joice Aglae e Lucia Zaghet Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore Data: 022008 ߎ02 ߎ

Vale lembrar que, apesar das máscaras físicas serem bem codificadas, Contin, sempre

que preparávamos uma cena, lembrava que as máscaras físicas não são formas cristalizadas,

mas deformações do corpo a partir do próprio universo que as engendraram. Então, a máscara

física deve funcionar como um elástico: estender-se para realizar a ação e retornar a sua forma

e tensão. Porém, nesta “ação do elástico”, o ator não pode relaxar e desfazer todo o trabalho

de construção da máscara física, para tanto, ele deve ter o conhecimento do universo da

máscara, para saber que tipo de qualidade de tensão reflete no movimento que ele irá fazer.

Devido à atenção com as qualidades de tensões, Pantalone pode jogar capoeira, maculelê,

dançar ciranda e muitas outras práticas espetaculares populares brasileiras16. Com isso, pode

utilizar as práticas espetaculares populares brasileiras para a construção da máscara física,

dentro da trama, como subsídio para a estruturação da cena e para a movimentação das

máscaras dentro desta.

                                                            16 Devido ao conhecimento dos universos das máscaras dell’arte e do repertório de qualidades de tensões e energias de cada uma delas, acaba-se percebendo que algumas ações podem ser feitas por determinadas máscaras, outras não. Por exemplo: Pantalone pode jogar capoeira, maculelê e dançar ciranda (e muitas outras práticas) e, certamente, será diferente da ciranda dançada por um Nobile, porém, com certeza, este não jogaria capoeira, nem maculelê, embora pudesse usar a movimentação destas práticas para a cena. Isso porque Pantalone tem uma variação de energias que o permite jogar com a diversidade, enquanto que o Nobile possui uma gama mais homogênea, o que não exclui certas atividades, mas pedem uma adaptação maior dos circuitos. Poder-se-ia dizer que com as máscaras dell’arte, tudo é muito relativo, podendo requerer grandes ou quase nenhuma adaptação de circuitos musculares e energéticos. Mas muito mais que relativo, o que age/comove é o dado sensível e tudo passa a ser mutável e re-combinável, nada é excluído (como é típico dos engendros do imaginário).  

216  

A scorribanda passou pelos restaurantes e bares de Pordenone e, em quase todos, os

donos ofereciam taças de vinho (como manda a tradição) e o ator não pode não aceitar, por

que o vinho é oferecido para a máscara, não para o ator.

Foto: Alessio Prosser Espetáculo: Scorribanda di Carnevale

Data: 022008 ߎ02 ߎ Direção: Claudia Contin e Ferruccio Merisi

Atores: Joice Aglae e Lucia Zaghet Arquivo da Scuola Sperimentale dell’Attore

Contin decidiu colocar em cena a máscara do Pantalone para “contracenar” com as

máscaras femininas, porque foi com esta máscara que dei meu segundo intenso mergulho no

universo das máscaras dell’arte - mas, esta experiência será comentada posteriormente.

Como já dito, o processo com Pantalone foi de 11 a 23 de agosto/2008. O sistema

para a montagem das cenas com Pantalone foi o mesmo adotado para as cenas da Servetta e

Cortigiana: durante a manhã trabalhava sozinha e, à noite, trabalhava com Claudia Cotin.

Desse modo, a trama do espetáculo foi sendo montada e ganhando a unidade.

Contudo, conforme dito, “Papaietta Poliglota” é de propriedade da Scuola

Sperimentale dell’Attore, assim, da parte de Pantalone não possuo, nem mesmo, fotografias.

Então, também, para Pantalone criei uma nova cena, a qual faz parte do espetáculo

“Transduções Caleidoscópicas e Imaginações: Máscaras dell’Arte e Cultura Popular

Brasileira” – que será comentado posteriormente.

5.3. THE HOLY FOOL: CAPITANO E BRIGHELLA

Depois do período de trabalho para a scorribanda, começaram os trabalhos para o

Progetto Sciamano. Um projeto social que tem como objetivo a criação de uma relação entre

o universo das máscaras dell’arte e portadores de necessidades especiais17. Este projeto

                                                            17O Progetto Sciamano trabalha com portadores de necessidades especiais do Centro ANFFAS “G. Locatelli”, de Pordenone. O projeto acontece desde 1999 e apresenta, sempre, ao final do processo, um espetáculo, o qual tem a intenção de levar a público a relação dos frequentadores deste centro contracenando com o universo das máscaras17. O espetáculo final intitulado “Sherwood delle Danze”, com direção de Ferruccio Merisi e Claudia

217  

ocupou a maioria dos dias de abril e maio, sendo que também tivemos os ensaios de

preparação e apresentação do espetáculo “Arlecchino e le sue Colombine”.

Do dia 31de maio a 11 de junho de 2008, foi realizado o laboratório “Carattere di

Zanni”, para mim e outra aluna vinda de Roma. O laboratório foi ministrado por Verônica

Risatti, sob a coordenação de Ferruccio Merisi e Claudia Contin, e teve a duração de 26h/a.

Durante o trabalho, foi explorada a máscara física do Zanni, sua movimentação e temas

pertinentes a esta: Carnavale, Servitù, Amore e Fame. Tal laboratório não tinha a finalidade

de uma apresentação, somente de adentrar mais profundamente esta importante máscara

dell’arte. Mas, para esta pesquisadora e para a técnica de transdução, foi um laboratório

imprescindível e de importância impar, pois foi a partir dele que Zann Piedini ganhou força -

conforme mencionado anteriormente.

Posterior ao laboratório da máscara do Zanni, aconteceu o curso de danças populares

brasileiras que, juntamente com o professor Dr. Erico José Souza de Oliveira, ministrei na

Scuola Sperimentale dell’Attore18. O encerramento do curso foi com a aula-espetáculo em que

apresentei a técnica de translocação caleidoscópica e indicava o caminho para a técnica de

transdução caleidoscópica, dando início, então, ao processo de construção de “Papaieta

Poliglota”19.

Então, após uma sequência20 de atividades desenvolvidas, chegou a época do festival

L’Arlecchino Errante - Ano XII. Este festival caracteriza-se particularmente pelo fato de, a

cada edição, estabelecer o diálogo da commedia dell’arte com uma prática espetacular ou

cultura diversa. No ano de 2008, o tema escolhido para trabalhar dialogando com a commedia

                                                                                                                                                                                    Contin, teve três apresentações. Duas foram realizadas na Sala Arlecchino Teatro Studio da Scuola Sperimental dell’Attore nos dias 26 e 27/05/08 e outro no Auditorium Concordia de Pordenone, no dia 28\05\2008 (Ver publicidade do evento em Anexo G – evento do dia 28 de maio\2008). Mesmo nesta experiência que não tem relação com minha tese, mas que participei, por estar na Scuola Sperimentale dell’Attore, a cultura popular brasileira esteve presente, em uma cena, Arlecchino chama alguns dos frequentadores do ANFFAS e joga maculelê com eles, que acabam dando uma “surra” em Arlecchino. Foi uma bela experiência, mas que não está entre as mais importantes desta tese, pois participei como assistente de todo o processo, mas não usava nenhuma máscara dell’arte. Aqueles que desejam saber mais sobre o Progetto Sciamano, de Claudia Contin, devem ler as revistas específicas do projeto: Progetto Sciamano 1999. Proposte Didattiche per le attività di Drammatizazione e Teatrali; Progetto Sciamano 2000. Esperienze di Teatro-ed-Handicap; Progetto Sciamano 2001. Incoltro col Teatro Cinese. Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mondo; Progetto Sciamano 2004. Teatro interetnico e teatro Social; Progetto Sciamano 2005. Riti d’incontri. Todas com Org. de Claudia Contin e Scene Senza Barriere. Um’ocasione di dibattito sulle iniziative per il teatro della differenza, com Org. Claudia Contin e Ferruccio Merisi.  18 A publicidade do curso está contida no Anexo C. 19 Perpendicular ao processo de montagem do espetáculo “Papaietta Poliglota”, teve a montagem do espetáculo, já comentado, “Arlecchino e la valle dell’uomo”, no qual participava com meu Bufão: Murcia (Publicidade no Anexo G – evento do dia 26 de junho/2008). 20 Durante o período que estive na Scuola Sperimentale dell’Attore, ministrei cursos de clown, dança e capoeira, alguns, para os atores da mesma e outros abertos ao público (ver relação das atividades realizadas com a Scuola Sperimentale dell’Attore, no Apêndice D). 

218  

foi a arte do bufão. No conjunto das atividades durante o festival, todos os professores da

Scuola Sperimentale dell’Attore entram em sala com os alunos: Contin ensina, trabalha as

máscaras dell’arte, improvisações com elas e dirige o espetáculo final; Veronica Risatti fixa e

exercita as máscaras dell’arte; Lucia Zaghet trabalha acrobacias e danças populares para a

cena de commedia dell’arte; Alice Mosanghini trabalha canto para a cena de commedia

dell’arte; Ferruccio Merisi trabalha com a voz para a máscara e dirige o espetáculo final; no

caso deste ano, em que o diálogo era com a arte da bufonaria, o mestre convidado foi Léo

Bassi e este trabalhava na sua área. O festival aconteceu de 31 de agosto/2008 a 21 de

setembro/2008, formando, ao todo, 200h/a. No festival, através do conjunto das atividades

desenvolvidas, trabalharam-se as máscaras dell’arte e todo o universo que as circunda.

Além do curso com as atividades práticas relacionadas às máscaras dell’arte, o festival

reúne muitos espetáculos da Itália e de outros países, bem como, realiza simpósios com temas

que dialogam com a natureza do Festival.21

Durante o festival, todos os alunos passam por todas as máscaras dell’arte de forma

intensa, pois se tem uma grande carga de atividades com todas elas. Para mim, aproveitei para

apreender e mergulhar nas máscaras que não tinha trabalhado ainda em laboratórios com a

professora Veronica Risatti, somente em trabalhos e laboratórios individuais: Dottore,

Arlecchino, Pulcinella, Brighella e Capitano, sendo que as últimas duas, Merisi e Contin

confiaram-me para o espetáculo final intitulado “The Holy Fool”, apresentado no dia 21 de

setembro de 2008 – espetáculo em que Contin pediu, também, a participação do meu bufão22.

5.3.1. Brighella, o zanni trabalhador

Brighela, então, foi uma das máscaras que tive de “defender” no espetáculo final do

festival Arlecchino Errante 2008.

Esta máscara também é da linhagem dos servos contendo todas as conexões telúricas e

xamânicas inerentes às máscaras de Zanni. Segundo Contin (1999, p.102), Brighella também

é de origem bergamasca, ainda que, muitas vezes, apareça na tradição lombarda e nas cidades

de Milano e Brescia. Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.46) também assinalam a origem

bergamasca de Brighella e acrescentam outras informações: a de que Bergamo seria uma

                                                            21 Para ver a programação, resumida, do festival ANO XII, ver Anexo H.  22 Ver publicidade do espetáculo no Anexo I. 

219  

cidade dividida em cidade baixa e cidade alta, e que Brighella seria da parte alta, enquanto

que Arlechino seria da parte baixa.

Brighella é um grande amigo de Arlecchino, conforme se vê em muitos canovacci (e

cita-se novamente como exemplo a peça de Goldoni “Arlecchino Servitore di due Padroni”).

Segundo Contin (1999, p.104), tal como Arlecchino, Brighella é um Zanni que se desdobrou

em uma máscara autônoma. Ao contrário de Arlecchino, que não gosta de trabalhar,

Brighella, mesmo sendo um servo de idade avançada, é muito trabalhador, característica

herdada do Zanni.

Segundo Contin (1999, p.104), o nome “Brighella” possui duas conotações: uma é a

de furbo, que significa astuto, malandro e a outra é a de sbrigare, que quer dizer resolver,

despachar, encaminhar, finalizar23. Para Contin, a segunda versão é mais significativa que a

primeira, levando em conta informações trazidas em roteiros tradicionais de commedia

dell’arte, em que Brighella é um serviçal exemplar. Trata-se de um servo que gosta muito do

que faz e procura fazer da melhor forma possível, sbrigando-si/se esforçando ao máximo.

Sempre pronto a servir, seu espaço de trabalho é a cozinha e coisas que dizem respeito

à “arrumação”. Se ele trabalha para alguém (Pantalone, Dottore ou Nobile), é uma espécie de

“mordomo maior” ou “chef” da cozinha, ele não é da mesma condição do Zanni, que é um

serviçal normal.

Algumas vezes, em alguns canovacci24, Brighella é dono de uma pensão ou

restaurante, porém, nada de luxuoso, um estabelecimento modesto voltado para o “mercado”

dos servos. Também, neste caso, percebe-se, pelo seu modo servil de agir, que se trata de

alguém que não tem inclinações para patrão.

A máscara física brighellesca de Contin, como todas as outras, traz todas as

características do seu universo para o corpo, no caso desta, são as deformações do próprio

trabalho (CONTIN, 1999, p.104). Como sempre trabalhou muito, Brighella, como grande

mordomo, mantém sua postura ereta. Seus braços, de tanto se manterem dobrados acima da

altura da cintura (quase no peito), com a toalha de mesa ou pano de copa pendurado, como é

hábito de todo o bom criado de mesa, acostumaram-se naquela posição.

                                                            23 Brighella é uma máscara que possui algumas contradições, entre os estudiosos: Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.50-52) falam da amizade entre Arlecchino e Brighella e, também, do nome Brighella derivar de “briga” e que seu caráter é de alguém que cria confusões. Afirmam ainda que, Brighella é tão preguiçoso quanto Arlecchino e comentam sobre a capacidade que este tem de manipular Arlecchino – uma visão bastante contrária àquela de Contin. Como está se trabalhando com as máscaras continianas, não se adentrará nestas discussões. 24 Para aqueles que desejam ler alguns destes canovacci, procurar em: Tutti i lazzi della Commedia dell’Arte, de Nicoletta Capozza; I Canovacci della Commedia dell’Arte, de Anna Maria Testaverde (organização). 

220  

Como todo bom serviçal, Brighella permenece grande parte do tempo em pé, pronto

para atender e sbrigare/resolver qualquer pedido feito por seus clientes ou patrão, o mais

rápido possível. Por causa desta prontidão e grande número de tarefas que sempre teve de

cumprir, pois como tem um estabelecimento modesto, não possui empregados, com isso, ele é

quem organiza e faz tudo. Com isso, suas maiores dores, como na maioria dos serviçais de

prontidão, localizam-se nos pés. Tais ferimentos o levaram a desenvolver uma caminhada

muito específica, com a qual procura aliviar seu sofrimento:

O maior problema dos criados é localizado nos pés [...] Cada vez que Brighella apoia o pé no chão é um sofrimento, qualquer que seja o sapato ou pantufo que coloque, jamais encontra alívio. O que é que acontece no corpo de uma pessoa que caminha com tanta dor nos pés? Os ombros erguem-se num impulso, contraídos e altos até as orelhas, como se um arrepio doloroso percorresse continuamente a espinha dorsal. As pernas se enrijecem e permanecem retas, porque senão, uma forte flexão dos joelhos, colocaria em tensão, automaticamente, também, a estrutura dos pés, ao passo que, com a perna reta pode deixar a planta relaxada [...] Desse modo, Brighella tende a caminhar sem dobrar muito os joelhos, movimentando, ao invés, exageradamente as ancas, de modo a descolar os pés da terra, graças à elevação alternada dos glúteos [...] Por isso, todos os acentos da caminhada brighellesca são em direção ao alto (CONTIN, 1999, p.104-105).25

Toda a máscara física de Brighella é advinda de seu trabalho, que constitui o maior

argumento de seu jogo na cena da commedia dell’arte.

Outra característica sublinhada por Contin (1999, p.105) é que, as mãos também

auxiliam nesta perspectiva de tirar o peso do corpo dos pés, numa tentativa de aliviar o

sofrimento causado pelas dores. Como os braços permanecem na postura de mordomo que

carrega a toalha, as mãos, ao invés de permanecerem fechadas como de costume, abrem-se e

tentam “ensinar” os pés a pisar de maneira doce e leve, elas vão pisando suavemente o ar

como se, dessa forma, suspendessem o peso do corpo.

Tradicionalmente, Brighella é gago, característica que possui e que faz parte de sua

comicidade. Mas, segundo Contin (1999, p.106), não é uma gagueira resultante de um

problema congênito, a sua tem relação com suas características de servidor nato e da

exigência de perfeição, típica de quem gosta de seu trabalho – como é o seu caso. A

                                                            25 Tradução da autora: Il problema più grosso dei camerieri è localizzato nei piedi [...] Ogni volta che Brighella appoggia il piedi a terra è una sofferenza, qualunque scarpa o pantofola metta ormai non trova più sollievo. Cosa succede al corpo di una persona che cammina con cosí tanto “mal di piedi”? Le spalle si sollevano con un scatto, contratte e alte fino alle orecchie, come se un brivido doloroso percorresse continuamente la spina dorsale. Le gambe si irrigidiscono e rimangono dritte, perché altrimenti una forte piegatura del ginocchio metterebbe automaticamente in tensione, anche la struttura del piede, mentre la gamba dritta può lasciare la pianta rilassata [...] Cosí Brighella tende a camminare senza piegare troppo le ginocchia, muovendo invece esageratamente le anche in modo da staccare i piedi da terra grazie al sollevamento alternato dei glutei [...] Perciò tutti gli accenti della camminata Brighellesca sono verso l’alto [...].  

221  

pesquisadora explica que, como deve servir imediatamente, Brighella ganha uma ansiedade

que o faz gaguejar, isto faz com que a sua fala ganhe ritmos diversos. São tantas tarefas a

fazer que enquanto está cumprindo uma, já está pensando em como irá realizar a outra e,

como bom serviçal, ele é simpático e solícito com todos.

Máscara física continiana: Brighella Desenho de Alice Mosanghini

A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2010 ߎ

Para compor a máscara física do Brighella e dar vida a esta através da técnica de

transdução, o ator deve saber maracatu, especificamente, a dança/caminhar do Porta-

estandarte (ou dança do vassalo do Porta-estandarte), pois ele possui um caminhar, durante o

cortejo, que “imita” uma marcha de um cavalo, cujos joelhos são levemente flexionados e o

movimento, por não utilizar muito os joelhos, parte das ancas. Por segurar o estandarte à

frente do corpo, os braços e ombros do vassalo adquirem as mesmas qualidades que Contin

ressalta como brighellescas e as mãos espalmadas, cuja intenção é a de manter uma leveza,

tais traços encontram-se na dança dos Orixás, em um código de uma das danças de Iemanjá.

O espetáculo “The Holy Fool”, direção de Claudia Contin e Ferruccio Merisi, era

composto por uma trama de cenas que continham todo o material apreendido durante o curso

(acrobacias, danças, argumentos, músicas, improvisação, tudo dento do contexto da commedia

dell’arte). Uma das tramas tinha como centro Brighellino, como Contin chamava a minha

máscara de Brighella. Ele era dono de um restaurante, cuja lista de devedores era imensa,

entre eles, Pulcinella - o maior de todos.

Brighellino entra em cena e faz um discurso contando sobre seus devedores e decide ir

cobrar as dívidas. No caminho, encontra Pulcinella dormindo, acorda-o e cobra a dívida, este,

por sua vez, ri de Brighellino e o paga em “pauladas”. Brighellino sai correndo e depois

retorna, num pequeno solilóquio diz que sabe o que fazer com os maus pagadores e tira do

bolso um rato morto.

222  

Na Itália, principalmente na região das montanhas de Piemonte, o rato morto é

símbolo da peste e da loucura, bater com um rato morto em alguém é como se desejasse a

peste ou a loucura para essa pessoa. Porém, quem o porta, tem-no como uma espécie de

amuleto contra as energias negativas. O rato morto, então, é como um desconjuro.

Esta crença foi-me “revelada” em uma conferência organizada pela Scuola

Sperimentale dell’Attore, em Pordenone (18/02/2009), para marcar o início das festividades

carnavalescas/2009, cujo convidado e conferencista foi o antropólogo e pesquisador da

Facoltà di Lettere e Filosofia dell’Università degli Studi del Piemonte Orientale “Amedeo

Avogadro”, Dr. Davide Porporato. Porporato possui um vasto estudo sobre os carnavais

antigos e tradições que se perpetuam nas montanhas de Piemonte. O pesquisador não se

detém, somente, em escrever artigos ou livros, ele trabalha, também, com vídeos e projetos

multimídias. Projetos como o “Bestie Santi Divinità, Maschere animale dell’Europa

tradizionale”, o qual pode ser encontrado no Museo Nazionale della Montagna – CAI Torino

(IT), que mostra um pouco desta tradição26. Além da importante conferência que realizou a

Pordenone, Davide Porporato mostrou-se muito interessado na relação entre as culturas

populares da Itália e do Brasil e colaborou cedendo material de sua pesquisa para que eu

pudesse ter uma noção das tradições carnavalescas das montanhas de Piemonte.

Com esta crença do rato morto, Brighellino partia outra vez para cobrar as dívidas. Ao

encontrar Pulcinella, pedia o pagamento e quando este se negava, ele tirava do bolso o rato

morto e, gargalhando, corria atrás do devedor que escapava amedrontado. Posterior a esta

cena e em meio a cenas de outras máscaras, Brighellino atravessava o palco, mostrando o rato

e gargalhando, como se ele mesmo estivesse possuído pela loucura portada pelo rato morto.

Mais uma vez, o espetáculo de encerramento do Festivale Arlecchino Errante é de

direito da Scuola Sperimentale dell’Attore e, portanto, não possuo nenhuma imagem deste,

seja em fotografia ou filme. A própria direção da Scuola S.A., por ocasião do Festival, no

momento em que pediu aos alunos que assinassem o termo de concessão de imagem, disse-

lhes que seríamos presenteados com um CD com algumas das imagens do Festival e do

“Saggio Finale”, mas já se passou mais de um ano, já aconteceu outra edição do festival e

nenhum dos alunos recebeu tais imagens, permanecemos na espera e torcendo para que elas

cheguem em breve, pois é uma boa lembrança da experiência vivida.

                                                            26 Outras obras do antropólogo e pesquisador que possuem relação com as festividades e tradições italianas são: Bestie Santi Divinità. Maschere animali dell’Europa tradizional, de D. Porporato (Multimidia); Oggetti e immagini. Esperienze di ricerca etnoantropologici, D. Porporato, F. Tamarozzi (a cura di); “Il carnevale delle olimpiadi. Il ritorno “Du grand Carnaval” de Champlas du Col”; “ Il Rosario dell’albero del maggio. Sacro e profano a Costamagna di Lequio Tanaro”; “Le Parlate. Il venerdì santo a Entraque”, D. Porporato, André Carénini, Piercarlo Grimaldi, Luca Percivalle (Vídeos).  

223  

É preciso dizer que Brighella não é uma das máscaras integrantes do espetáculo

“Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”. Foi uma difícil escolha, mas, por questões

práticas dramatúrgicas, Brighella, juntamente com Dottore e Pulcinella ficaram para um

próximo espetáculo. Dottore Ballanzone e Pulcinella porque foram máscaras que não

“incorporei” em espetáculos na Itália e Brighella, porque se trata de mais um servo e já estão

no espetáculo Zanni e Arlecchino. Então, optei em deixá-lo de fora da Aula-Demonstração27.

5.3.2. Capitano: o “grande” guerreador

Capitano foi outra máscara que incorporei no espetáculo “The Holy Fool” e devo

confessar que ela seduz, intriga e comove forças. Contin apresenta a máscara do Capitano

como uma das mais antigas e complexas da commedia dell’arte, pois se trata de uma máscara

dupla - como a Cortigiana. Porém, a Cortigiana, como foi relatado, é sedutora, forte, atrevida,

esconde o seu lado perverso, ela é perspicaz no jogo de manipular as situações e as pessoas.

Em algumas situações, ela pode ser velhaca, principalmente, tratando- -se de Pantalone,

Ballanzone e, até mesmo, do Capitano.

Ao contrário, Capitano é dono de um discurso falacioso. Narra as maiores guerras que

o mundo poderia viver, como se as tivesse vivido e vencido. Segundo seu discurso, possui

técnicas de ataque e defesa, conhece e luta com armas brancas (como a espada) muito bem,

luta todos os tipos de artes marciais e se pronuncia como o maior lutador e herói de todos os

tempos. Mas tudo isso é para disfarçar sua outra faceta: a de covarde (CONTIN, 1999, p.115).

O Capitano, na verdade, é uma máscara que porta para cena uma grande eloquência e

o absurdo, a sua cena “[...] é uma parte pomposa de palavras e gestos, que se vangloria de sua

beleza, de graças e de riqueza, quando, na verdade, é um monstro, um pateta, um covarde, um

pobre coitado e louco de amarrar” ( PERRUCCI apud TESSARI,1981, p.14).28

Típico falastrão, nas mãos da Cortigiana, vê-se em apuros, pois ela, como é uma

máscara dupla, também reconhece alguém com duas facetas e sabe muito bem quais são as

que fazem parte do Capitano, jogando com isso o tempo todo. Mas a porção covarde do

Capitano pode aparecer a qualquer momento, qualquer rumor, um estouro ou livro que cai,

                                                            27 No Anexo J, pode ser visto algumas fotografias que dizem respeito a momentos da cena “Alla ricerca di un Zanni”, nas quais as geminações dos códigos das manifestações espetaculares populares brasileiras criaram circuítos que se assemelham à máscara física do Brighella. 28 Tradução da Autora: “[...] uma parte ampollosa di parole e di gesti, che si vanta di belezza, di grazie e di recchezza, quando per altro è um mostro di natura, un balordo, un codardo, un poveruomo e matto da catena.”  

224  

pode fazer as suas máscaras se alternarem e, num lapso, passar de uma grande encenação de

guerra e heroísmo a um coelho que se esconde do predador.

Não é possível determinar com certeza as origens da máscara do Capitano, uma vez

que não há clareza nos dados de seu surgimento, nem mesmo em relação à região e data29.

Segundo Contin (1999, p.44), o Capitano é uma máscara tão antiga quanto a do Zanni, porém,

rastrear a região ou cidade da Itália em que este arquétipo concretizou-se como

objeto/máscara é muito difícil. Contin (1999, p.120) afirma que dentro da commedia dell’arte,

ele é reconhecido como estrangeiro, geralmente, usa sotaque espanhol, mas, também, alemão

ou, ainda, siciliano (pois quando a Itália de hoje ainda não existia como um único país, a

Sicilia era terra estrangeira). Clavilier e Duchefdelaville (1994, p.61) são categóricos em

afirmar que o Capitano fala com uma característica espanhola. Tessari traz as observações de

P.M. Cecchini (apud TESSARI,1981, p.126) e A. Perrucci (apud TESSARI,1981, p.145) em

que, ambos, em cartas, afirmam que a máscara do Capitano “combina” mais com o sotaque

espanhol. Perrucci, inclusive, afirma que os “bravos capitães de antigamente” (citando Miles

gloriosus de Plauto e o Trasone de Terencio em Eunuco), naquele momento (1699), eram

feitos em diversas línguas (citando: toscano, napolitano, romanesco, calabrese, siciliano e

espanhol), ratificando a diversidade de sotaque e idiomas desta máscara.

Lendo tantas observações a respeito da fala do Capitano, é possível perceber que a fala

era uma característica muito marcante desta máscara dell’arte e não passava despercebida

pelo público, fosse ele contra ou a favor deste gênero de teatro.

Segundo Molinari (1996, p.106), a fala do Capitano é fundamental, também, para o

desenvolvimento de outra característica muito marcante desta máscara: o discurso

hiperbólico.

Analisando as várias línguas com que o Capitano faz seus discursos, Molinari (1972,

p.106) traz à tona a questão de sua origem e observa que a máscara do Capitano, não pode ser

vista como uma, mas como uma classe de máscaras, pois tanto quanto o Zanni, a máscara do

Capitano desdobrou-se em uma grande variedade de capitães. Nesse sentido, Contin (1999,

p.158) acrescenta, ainda, que alguns Capitanos, inclusive, são desdobramentos de Zanni,

alguns deles seriam Zanni que, querendo ter “origem” mais nobre, passavam-se por capitães,

citando como exemplo o calabrese Giangurgolo ou Scaramuccia, que era napolitano.

                                                            29 Quanto a estes dados, Clavilier e Duchefdelaville (1994:60) afirmam que a máscara do Capitano nasceu no momento das invasões espanholas e alemãs, tendo seu grande sucesso em toda a Europa, durante o séc.XVI e início do séc.XVII – também não se adentrará em uma discussão sobre estas discordâncias.  

225  

Molinari (1996, p.106) chama a atenção para o fato de que, dentro desta classe dos

Capitani, por possuir muitas variações, as máscaras, muitas vezes, nem possuem o elo dialetal

como regra, podendo falar em italiano, espanhol e tantos outros. Os Zannis possuem o dialeto

bergamasco como uma característica própria, já o Capitano pode falar dialetos de diversas

partes da Itália e até idiomas diferentes. Então, pensando na língua/idioma/dialeto de cada

máscara dell’arte como uma característica própria e de identificação entre elas (Zanni:

bergamasco; Pantalone: veneziano; Brighella: bergamasco; Servetta: veneziano; Dottore:

bolognese...), o Capitano não a possui. Todavia, pensando por outro viés, esta ausência de um

dialeto e/ou idioma de unificação passa a constituir uma das características do Capitano

(embora não se possa esquecer que o espanhol é aquele que melhor representa a máscara,

segundo as opiniões já citadas).

Sempre na perspectiva de Contin (1999, p.120), esta característica de não ter um

dialeto/idioma específico, vem, também, do próprio perfil da máscara. Nas narrativas das

guerras, batalhas e conquistas que diz ter vivido, Capitano conta e revive suas peripécias e

proezas realizadas pelo mundo, caracterizando-se como um viajante. Esta “áurea” de

andarilho reforça a possibilidade dos diversos dialetos/idiomas para uma mesma máscara, sem

que isto cause estranhamentos. Mas, Contin concorda com os outros estudiosos de que o

espanhol ajusta-se muito bem à máscara do Capitano.

Outras características são destacadas por Molinari (1996, p.106) a respeito do

Capitano. Para este autor, trata-se de uma máscara verbosa e redundante e que seus discursos

são sempre eloquentes, cheios de “vantagens” e falsas glórias que ele conta como verdades

absolutas.

Contin fala que esta eloquência verbal com todo o tipo de hipérbole e excessos é uma

forte característica da máscara do Capitano, mas que toda esta pomposidade oral é

acompanhada de uma hábil gesticulação. A cada guerra que conta, Capitano a ilustra com

exagerada ênfase em cada fato, deixando seu discurso ainda mais suntuoso e alegórico.

Este lado falastrão do Capitano faz parte, segundo Contin (1999, p.115), de sua segunda

máscara, a que “ele criou para se mostrar ao mundo”:

Na realidade, o Capitano é um grande covarde, um coelho que tem medo de tudo: teme, até mesmo, a sua sombra. A sua verdadeira máscara física caracterizadora representa uma postura angulosa, com as pernas dobradas e trêmulas, os joelhos são voltados para dentro, se tocam e se batem um contra o outro, o corpo é retraído da covardia, os braços contorcidos ou pendurados, vibrantes de medo e o pescoço é encolhido pelo temor de uma desgraça que possa cair do céu. Mas sobre esta miserável estrutura, o Capitano é capaz de construir uma segunda máscara física,

226  

com a qual se apresenta em sociedade, uma máscara fictícia que lhe permite suportar – ao menos diante de si mesmo – os exageros que conta.30

Apesar da primeira máscara do Capitano ser a do “pobre coitado\covarde”, a técnica

continiana não a tem como referência, o trabalho maior é a partir da segunda, daquela que ele

criou para se mostrar – a do falso valente. Esta porção pomposa, exuberante, ágil e plena de

recursos do Capitano advém, então, de sua segunda máscara. É com esta que ele convive. A

primeira aparece, somente, em momentos de descontrole, causado por sustos e surpresas. Por

conseguinte, no processo de apreensão da máscara do Capitano, chega-se a sua faceta covarde

a partir da sua segunda porção, pois ela é, na verdade, a desconstrução da faceta falastrona,

daquela que ele mostra. Por isso, primeiro apreende-se como ele se vê, o que ele quer mostrar

de si mesmo, para depois desmontar esta imagem criada. Então, de fato, a porção

“vangloriante” da máscara do Capitano, dentro do processo de apreensão da sua

complexidade, é a primeira a ser apreendida e trabalhada, uma vez que esta se sobrepõe à

outra, à porção covarde. É claro que estas duas porções, a covarde e a falastrona, compõem a

complexa máscara do Capitano, mas, por ser aquela com que ele apresenta-se, é com a porção

valente que a técnica de transdução caleidoscópica trabalha. Sendo a parte covarde, a

desconstrução da valente, do que se conclui que tendo a faceta vangloriosa bem estruturada,

chega-se à medrosa.

Sobre esta dupla personalidade e sua presença nas peças dell’arte, A. Perrucci (apud

TESSARI,1981, p.145) acrescenta ao seu comentário, citado anteriormente, que a máscara do

Capitano “[...] quer viver com a fama daquilo que não é [...]”31 e, continuando as suas

observações, ele é incisivo em advertir a influência negativa desta máscara na conduta de

jovens, pois estes aprenderiam, com o Capitano, a se passarem por pessoas dignas de respeito,

a se vangloriarem de “[...] nobreza e riqueza, sendo plebeus, velhacos e paupérrimos

[...]”(apud TESSARI,1981, p.145). 32

Mas os cômicos dell’arte, apesar de tantas manifestações contra o seu ofício,

continuavam a representar as suas peças nas praças e ruas e a máscara do Capitano, conforme

sublinhado, agradava muito ao público. Este fator cômico, segundo Contin (1999, p.132), vem

                                                            30 Tradução da Autora: In realtà il Capitano è un grande vigliacco, un coniglio che ha paura di tutto: teme persino la sua ombra. La sua vera maschera fisica caratteriale presenta una postura nodosa, con le gambe piegate e tremanti, le ginocchia rivolte verso l’interno che si toccano e sbattono l’una contro l’altra, il corpo rattrappito dalla vigliaccheria, le braccia contorte, oppure penzolanti, vibranti di paura, il collo incassato nel timore di una disgrazia che possa cadere dal cielo. Ma sopra questa misera struttura il Capitano è in grado di costruire una seconda maschera fisica con cui presentarsi in società, una maschera fittizia che gli consenta di supportare – almeno di fronte a sé stesso –le esagerazioni che racconta.  31 Tradução da autora: [...] vuol vivere col credito d’esser tenuto quello che non è [...]. 32 Tradução da autora: “[...] nobiltà e ricchezze essendo plebei, forfanti e poverissimi”.  

227  

exatamente da contraposição das suas duas naturezas, dos dois pólos que constituem a

complexa máscara do Capitano: uma porção pomposa e exuberante e outra covarde e velhaca.

Esta dinâmica de troca entre as suas duas porções e toda a capacidade elocubrante do

Capitano, deixam esta máscara interessantíssima, intrigante e cômica, beirando o absurdo e o

surreal. Isto porque o Capitano não economiza nas demonstrações de seus dotes físicos, para

mostrar como é capaz de sozinho derrotar inteiros batalhões. Essas demonstrações acabam

criando certo dualismo, pois seu vigor físico em mostrar os golpes e lutas travadas durante a

“guerra” poderia convencer de sua capacidade, mas se depara com um discurso hiperbólico.

Então, se por um lado vê-se que ele é, verdadeiramente, ágil e entende de lutas, por outro, o

seu exagero nos detalhes da guerra, em querer reconhecimento e glória por parte dos

“ouvintes” o condena ao inverossímil.

O Capitano é uma máscara que necessita de um corpo ágil e bem trabalhado, porém,

não pode ser parrudo como o de um trabalhador como o Zanni, pois ele se diz nobre, então,

mesmo sendo um “guerreiro”, ele deve ser “elegante”:

Mesmo estando, quase sempre, em más condições o Capitano deseja sempre se passar por um Nobre Cavaleiro/Nobile Cavaliere, mesmo tendo, comumente, origens populares ou ambíguas, revelando-se, então, um Falso Nobre/Falso Nobile ou, no máximo, um Nobre Decadente/Nobile Decaduto. Mas não se dá, jamais, por vencido e procura redesenhar o seu corpo segundo uma educação cavaleirosa: copia dos Nobili a posição em ângulo dos pés, as pernas esticadas - mesmo se estas lhe desmoronem sempre em alguns ataques de tremores e transforma a postura de bailarino em uma postura marcial de soldado em “Atenção”. O Capitano copia dos Nobili, também, o alongamento do busto em direção à esquerda, em respeito ao quadril, porém a transforma em uma atitude de alerta, para estar mais preparado a pegar a espada em caso de perigo. Não imita a elevação nobre do nariz que, no seu caso, permanece ameaçadoramente muito abaixado, enquanto o gira em torno continuamente, procurando admiradores e admiradoras. Os ombros, enfim, são elevados até as orelhas e deslocados pra frente, numa tentativa vã de mostrar a força e a virilidade da própria musculatura (CONTIN, 1999, p.120-121).33

                                                            33 Tradução da autora: Pur essendo spesso in povere condizioni, il Capitano desidera comunque farsi sempre passare per un Nobile Cavaliere, anche se solitamente egli ha origini popolari o ambigue e si rivela dunque un Falso Nobile, oppure può farsi passare al massimo per un Nobile Decaduto. Ma non si da mai per vinto e cerca di ridisegnare il suo corpo secondo un galateo cavalleresco: copia dai Nobili la posizione a squadra dei piedi, la drittezza composta delle gambe – anche se spesso gli sfuggono in qualche cedimento di tremore – e trasforma la postura da ballerino in una postura marziale di soldato sull’“Attenti”. Il Capitano copia ai Nobili anche l’allungamento del busto verso sinistra rispetto al bacino, però la trasforma in un atteggiamento di allerta, per essere più pronto ad afferrare la spada in caso di pericolo. Non imita invece l’elevazione nobile del naso che, nel suo caso, rimane minacciosamente molto abbassato mentre ruota continuamente tutt’intorno alla ricerca di ammiratori e ammiratrici. Le spalle infine sono sollevate fino all’orecchio ed esposte in avanti nel tentativo vanno di mostrare la forza e la virilità della propria muscolatura.  

228  

Como o Capitano imita com seu corpo o corpo do Nobile, na técnica de transdução,

também são utilizados quase os mesmos códigos das práticas espetaculares populares

brasileiras que se utiliza para a máscara imitada.

Máscara física continiana do Capitano Desenho de Alice Mosanghini A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2010 ߎ

A postura esguia e elegante a que Contin refere-se “como de bailarino” encontra-se no

maracatu, como dito anteriormente, na postura do rei e da rainha ou na coluna ereta típica do

xaxado. Os pés com abertura de 90 graus ou em ângulo, como diz a pesquisadora, faz parte,

também, de um dos códigos que constituem o golpe de capoeira regional (Mestre Alabama)

chamado “armada de costas” ou “queixada”. Só que o Capitano não possui a tensão nas

extremidades externas dos pés (típica dos Nobili), seus pés são bem plantados no chão, pois

ele se diz um homem de lutas, como os pés do xaxado. A tensão necessária para as pernas da

máscara física do Capitano e do Nobile encontra-se entre os códigos da dança do vassalo do

maracatu, no seu passo que imita a marcha de um cavalo. A torção do busto e do quadril

encontra-se na “armada de costas” da capoeira regional e os ombros e braços pode-se

encontrar nos códigos da dança dos Orixás, no gincado comum a todos os Orixás e na postura

de braços de Iansã. Ver a construção da máscara física do Capitano através de códigos das

práticas espetaculares populares brasileiras no DVD que acompanha esta tese. MENU. 4.

TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.5 – CAPITANO: 4.5.2 – CAPITANO – dança34.

Como sempre, cada máscara física é composta pela combinação de códigos

específicos, mas se conectam e recebem energias de muitas outras. Com a do Capitano

acontece o mesmo mecanismo, conectando-se com a capoeira, o maracatu, danças de Orixás,

frevo, maculelê e todas as outras práticas espetaculares populares brasileiras.

                                                            34 O DVD apresenta um engano na edição da imagem que compõe o fundo do ítem “CAPITANO – dança”, subdivisão do menu relativo ao CAPITANO: 4.5.2 . A imagem que ficou como “papel de parede” é de uma máscara de Arlecchino e não do Capitano, como deveria ser. 

229  

Foto: Léo Azevedo Espetáculo: Transduções e Imaginações Caleidoscópica

Direção/Atuação: Joice Aglae Data: outubro 2009 ߎ

Uma das cenas do Festivale Arlecchino Errante/2008, em que incorporava a máscara

do Capitano, tinha como enredo um duelo entre dois Capitani. Meu Capitano (chamado por

Contin de Cocodrilo), cuja estatura é pequena (1,52cm), e um outro muito mais alto (1,90cm)

fazíamos um duelo, simulando uma luta de espadas que, na verdade, era maculelê misturado

com muitas acrobacias. No final, revelava-se que meu Capitano era aprendiz do outro

Capitano (mais velho) e este lhe estava ensinando golpes durante o falso duelo, assim, não

havia um vencedor. Por se tratar da apresentação final do Festival Arlecchino Errante,

integrante do arquivo de imagens da Scuola Sperimentale dell’Attore, e também pelas razões

já relatadas, não possuo imagens da apresentação.

Em janeiro de 2009, a Scuola Sperimentale dell’Attore promoveu o 1º Arlecchino

Errante Invernale, uma versão condensada do Arlecchino Errante, cuja finalidade era de

aprofundamento em uma das máscaras que tinham sido confiadas ao aluno durante o festival

Arlecchino Errante. Para mim, neste estágio aprofundado, foi destinada a máscara do

Capitano. Neste período de uma semana de pesquisa sobre a máscara do Capitano, trabalhei

seguindo todas as indicações de Merisi, mas empregava a técnica de transdução. Durante o

trabalho, apresentávamos as cenas que estavam sendo construídas e estes mestres, ao verem a

cena do Capitano, afirmavam que os movimentos eram “giusti” (justos), como costumava

dizer Merisi. Um dia, apresentei meu monólogo à turma e Merisi, com seu olhar analítico e

pontual, deu-me uma grande satisfação, quando olhou para a turma e disse aos outros alunos:

“Bene... Tutti devono arrivare a questo! \Muito bem... Todos devem chegar neste ponto!”.

230  

Para a confirmação da técnica de transdução, ouvir que os movimentos eram exatos,

dentro da perspectiva da commedia dell’arte, foi muito importante, pois eu estava trabalhando

com códigos e, até, movimentações da cena, advindos da cultura popular brasileira, mas

“vistos” por olhos especializados em commedia dell’arte. Esta nova experiência deu-me ainda

mais certeza de que o caminho de acesso e apropriação para dar vida às máscaras dell’arte

continianas a partir das práticas espetaculares populares brasileiras, as quais faziam parte de

meu reservatório/motor, era sólido.

Desta experiência no 1º Arlecchino Errante Invernale, construí o discurso de auto-

apresentação do Capitano, que mescla italiano espanhol e português e faz parte da Aula-

Demonstração “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações” – porém, com uma livre

adaptação, pois se trata de um longo discurso.

5.4. ARLECCHINO, O ZANNI ESPERTO

A última máscara deste capítulo está relacionada, diretamente, com o Zanni – para, de

certa forma, “retornar” à primeira máscara dell’arte. Na verdade, trata-se de um Zanni que se

tornou tão famoso, a ponto de alcançar status próprio, sendo, talvez, uma máscara mais

conhecida que a própria commedia dell’arte: é a mascara do Arlecchino.

Arlecchino é uma máscara plena de lendas e suas torrentes são tão (ou mais)

rizomáticas quanto às do Zanni, pois, sendo ele um desdobramento deste servo, já contém as

conexões advindas dele e mais as que se ramificaram através das suas próprias conexões.

A máscara do Zanni foi desaparecendo da cena e deu lugar aos Zanni que se

destacavam, sendo nomeados, não mais por primeiro e segundo Zanni, mas por seus “nomes

próprios”, como é o caso do Brighella, Arlecchino e outros servos. Neste movimento dos

papéis das máscaras dentro da trama e do processo de fama destas, Arlecchino alcançou

sucesso, não somente na Itália, mas na França e em outros países da Europa e fora dela. Dessa

forma, a máscara do Arlecchino foi-se tornando uma espécie de ícone da commedia dell’arte

e ganhando, cada vez mais, espaço e proporções internacionais.

Neste caminho pelo mundo, a máscara do Arlecchino, Arlequim, Herlequin ou

Hellequin também foi sendo rodeada de lendas e misticismos. Se de um lado, Arlecchino é

um Zanni, de outro, é uma máscara emblemática por si só. Fausto Nicolini (1993, p.3), no

livro “Vita di Arlecchino”, faz um estudo aprofundado desta máscara, comentando, inclusive,

231  

sobre alguns atores que se dedicaram a ela e reafirmando que se trata de um desdobramento

do Zanni:

Arlecchino (e do mesmo modo Pulcinella) não é, como se acredita normalmente, um nome genérico originário de um tipo cômico fundamental, mas um dos tantos nomes específicos indicador das muitas variedades do quarto, entre os quatro tipos cômicos fundamentais ou máscaras da Commedia dell’arte: o Magnifico (Pantalone), o Dottore (chamado primeiro de Graziano, depois Baloard ou Balouard, enfim Balanzón), o primeiro zanni e – habitualmente também o chefe da compagnia – o segundo zanni.35

Mais adiante, Nicolini mais uma vez comenta da ligação entre Arlecchino e Zanni.

Porém, enfocando o ator que teria incorporado a primeira máscara de Arlecchino, na França, e

que antes, na Itália, era o famoso Zan Ganassa. Trata-se de uma transformação que se realizou

através de uma atitude muito consciente, quanto à troca de nome do ator:

O nome de arte do mais famoso entre os zanni cinquecentista, isto é, do primeiro que teria assumido na França, com justa discussão da opinião tradicional, nome e máscara de Arlecchino, foi Zan Ganassa [...], cujo nome de batismo era Alberto Naselli (NICOLINI,1993, p. 13).36

Naselli já foi citado outras vezes nesta tese. Faz-se necessário dizer que não se está

pretendendo investigar os caminhos do ator, o importante das palavras de Nicolini é a

compreensão de que existiu esta outra possibilidade de desdobramento do Zanni em

Arlecchino. Uma transformação muito consciente de um ator que incorporava a máscara de

Zan Ganassa e, ao chegar à França, queria um nome fácil de ser divulgado e, como já

comentado, os cortejos carnavalescos dos Charivaris eram muito conhecidos, Alberto Naselli,

adotou o famoso nome de Herllequin – uma observação diferente daquelas em que se afirma

que o tempo teria sido “responsável” pelo desaparecimento do nome “Zan”, pois deixa a

entender que a escolha de abstrair o primeiro nome da máscara teria sido um ato totalmente

consciente.

Contin também reafirma o desdobramento de Zanni para Arlecchino, juntamente com

Merisi, no artigo “Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni

                                                            35 Tradução da autora: “Arlecchino (e, al modo medésimo, Pulcinella) non é già, come si crede comunemente, un nome generico originario d’un tipo comico fondamentale, bensì uno dei tanti nomi specifici indicanti una delle tante varietà del quarto tra i quattro tipi comici fondamentali o maschere della Commedia dell’arte: il Magnifico (Pantalone), il Dottore (chiamato prima Graziano, poi Baloard o Balouard, infine Balanzón), il primo zani e – abitualmente anche capocomico – il secondo zani.”  36 Tradução da autora: Il nome d’arte del più famoso tra gli zani cinquecenteschi, cioè del primo che, giusta la discutibile opinione tradizionale, avrebbe assunto in Francia nome e maschera di Arlecchino, era Zan Ganassa [...] il suo nome di battesimo era Alberto Naselli.  

232  

carnevalesche” (In Progetto Sciamano 2002), mas se detém às relações das máscaras, não

adentrando as questões que dizem respeito aos atores. No referido artigo, os autores

relacionam Zanni e Arlecchino (principalmente o segundo) com tradições de antigos

carnavais, não somente da Europa. Na verdade, os pesquisadores tentam fazer um esboço do

complexo emaranhado de crenças, lendas e vertentes da história que se relacionam com a

máscara do Arlecchino.

Na commedia dell’arte, segundo Contin (1999, p.89), a máscara do Arlecchino é mais

seiscentista, apareceu posteriormente à do Zanni - sendo ele um “desdobramento” desta.

Apesar de ser uma derivação do Zanni, Arlecchino o superou, tornando-se uma das máscaras

dell’arte mais conhecidas pelo mundo (juntamente com a do Pulcinella).

Isto porque ele possui uma segunda natureza que é anterior a sua existência na

commedia dell’arte, podendo ser a máscara que tem mais “mistérios” a sua volta. Como visto

anteriormente, Zanni possui conexões diretas com os bufões e Sátiros - todos os servos da

commedia dell’arte carregam, em proporções diversas, estas características. Além disso, foi

visto que a Servetta possui conexões com a tarantatta e Brighella com a “alquimia” da

cozinha, Arlecchino também possui suas próprias conexões:

Arlecchino é um personagem complexo porque não tem somente características humanas ou grotesco-humanas como vimos para os caracteres precedentes; ele conserva, também, aspectos de animal, de boneco, de pequeno diabo ou de servidor do diabo em pessoa (CONTIN, 1999. p.89).37

Esta conexão entre Arlecchino e o mundo das almas vem de uma “raiz literária”,

segundo Beccaria, está registrado nos escritos do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321):

No inferno dantesco, nos deparamos com diabos mais que simpáticos. São diabos em cena que se comportam como em um tablado de uma representação sacra. Diabos rumorosos que gritam, berra Minosse, Cerbero urra. São grosseiros e vulgares. O canto XXI termina com uma prazerosa brincadeira populacha, comum entre os diabos europeus do medievo; no canto sucessivo os diabos são enganados (segundo a tradição) por Ciampolo [...] [Os diabos] Têm, mais que nomes, sobrenomes engraçados que revelam a sua natureza má (Malacoda, Graffiacane), ou seus aspectos rosnantes e animalescos (Cagnazzo, Draghinazzo) e também cômico, de máscara ou de duende, come Barbarica, Scarmiglione, Farfarello4 e Alicchino (que tem a mesma raiz da máscara Arlecchino, cuja origem demoníaca faz jus à máscara negra, os saltos e os movimentos repentinos que lhe são específicos e o distingue. Talvez, o bastão [que Arlecchino carrega] seja o mesmo do duende que anda nos bosques das Tre Venezie (cfr.cap.IV, §7), ou uma variação do bastão, característico daquele uomo selatico/homem selvagem que, uma vez, víamos guiar aquele cortejo dos mortos, o qual Tacito faz alusão na Alemanha: uma procissão

                                                            37 Tradução da autora: Arlecchino è un personaggio complesso perché non possiede solo caratteristiche umane o grotesco-umane come abbiamo visto per i precedenti Caratteri; egli conserva anche delle aspetti di animale, di burattino, di diavoletto o di servitore del diavolo in persona.  

233  

itinerante de malditos que depois Mille [do ano 1.000] toma um caráter diabólico, a “família Herlechini” da qual Oderico Vitale fala na sua Storia Eclesiastica, a.1140).38

O pesquisador Gian Luigi Beccaria tem um profundo estudo sobre nomes, suas

origens e transformações dentro da cultura popular. Na citação acima, faz-se outra visita à

obra de Dante, mas desta vez o foco não está em Ciampolo (como quando a visitamos através

da máscara do Zanni), mas na a aparição de Arlecchino como um dos diabos que foi enganado

por ele. Ainda, Beccaria não só lembra que Arlecchino estava presente na obra de Dante,

como também cita outras duas conexões desta máscara entre as crenças populares: entre os

duendes (região de Veneza) e nos cortejos macabros da Alemanha.

Estes cortejos das almas dos mortos são muito estudados por Contin e Merisi (2002,

p.204). Os dois pesquisadores levam o leitor a um passeio pelas conexões que Arlecchino

possui:

Hellequin pode-se considerar como um dos misteriosos nomes antigos do Arlecchino, quer dizer, uma das raízes medievais da qual a máscara cinquescentesca tardia do primeiro Arlecchino teatral extraiu a sua potência misteriosa e, ao mesmo tempo, a sua persistente renovada atualidade no imaginário coletivo dos séculos sucessivos.39

Contin e Merisi fazem um resumo das referências mais antigas sobre a Máscara do

Arlecchino passando pelas “bataglie noturne”, “caccia selvaggia”, os cortejos das almas

errantes, as relações com o “Sabba”, citando o profundo estudo "Storia notturna: Una

decifrazione del Sabba” de Carlo Ghinzburg (1989), os escritos de Alessandro Veselofskij,

“Alichino e Aredolesa” (in Giornale Storico della letteratura italiana – XI – anno 1888, p.

325-343), dando destaque, ainda, ao estudo “Storia Ecclesiastica” de Orderico Vitale (1091),                                                             

38 Tradução da autora: Nell’inferno dantesco c’imbattiamo in diavolacci tutt’altro che antipatici. Sono diavoli in scena, che si comportano come sul tavolato d’una sacra reppresentazione. Diavoli rumorosi, che gridano, urla Minosse, Cerbero sbraita. Sono grossolani e volgari. Il canto XXI si chiudi con una loro compiaciuta manollata sconcia, consueta tra i diavoli europei del Medioevo; nel canto successivo i diavoli si lasciano ingannare (secondo tradizione) da Ciampolo [...] Hanno, più che nomi, buffi soprannomi, che rivelano la loro mala natura (Malacoda, Graffiacane), il loro aspetto digrignante e ferino (Cagnazzo, Draghignazzo) e anche comico, da maschera o foletto, come Barbarica, Scarmiglione, Farfarello4 e Alichino (che ha la stessa radice della maschera Arlecchino, della cui origine demoniaca fanno fede la maschera nera, i salti e i movimenti improvvisi che lo contraddistinguono, e forse il mazzuolo è lo stesso del folletto che si aggira nei boschi delle Tre Venezie (cfr.cap.IV, §7), o modificazione della clava, prerogativa di quell’uomo selvatico che talvolta vediamo guidare quel corteo dei morti cui già allude Tacito nella Germania una torma itinerante di maledetti che doppo il Mille prende un carattere diabolico, la “familia Herlechini” di cui parla Oderico Vitale nella sua Storia Eclesiastica, a,1140).  39Tradução da autora: Hellequin si può ormai considerare come uno dei misteriosi nomi antichi di Arlecchino, ovvero una delle radici medievali da cui poi la maschera tardo-cinquecentesca del primo Arlecchino teatrale ha tratto la sua potenza misteriosa e al contempo la sua persistente rinnovata atualità nell’immaginario collettivo dei secoli successivi.  

234  

também reverenciado por Beccaria, como um dos mais antigos e importantes testemunhos do

trânsito desta máscara. Os estudiosos passeiam pelas diversas variantes que a “famiglia

Herlechini” sofreu, apontando um caminho de desenvolvimento e passagem da máscara do

carnaval ao teatro:

Daquele momento, os testemunhos de vislumbramento de diversas variantes da familia Herlechini se seguiram pelos séculos sucessivos sofrendo contínuas mutações: da manada de mortos condenados ao mítico exército de cavaleiros errantes imortais, ao exército dos diabos e espíritos irreverentes, até as aproximações trecentistas nas tradições de teatro de praça e arrebatadores cortejos carnavalescos, dos quais é exemplo típico, o Charivari francês [...] No famoso Roman du Fauvel, do século XIV141, é descrito um Charivari com um texto acompanhado de interessantes imagens miniaturas142. Trata-se de uma espécie de violento cortejo, de sarabanda endiabrada, de festa mascarada e descontrolada que corre pela estrada em ocasião das contestadas núpcias do terrível Fauvel com Vaine Gloire. Uma espécie de cortejo nupcial ao inverso, à frente do qual encontramos o próprio Hellequin em pessoa143. Além das evidentes afinidades com o desenvolvimento das festividades carnavalescas, o texto descritivo deste Charivari foi muitas vezes analisado e identificado, também, como ponto de passagem entre os antigos mitos e crenças populares, nas quais se insere aquelas técnicas teatrais coletivas que, no medievo, estavam se definindo; técnicas cênicas que teriam portado a gradual formação daquela “profissão de ator” que a Commedia dell’Arte cinquecentesca, por assim dizer, consagrou (CONTIN, MERISI, 2002, p.205).40

O texto “Roman du Fauvel” a que Contin e Merisi fazem referência está na

Bibliothèque National de Paris, cuja descrição literária do Charivari e as imagens são muito

interessantes. Nelas, é possível reconhecer Hellequin com um chapéu de asas (como o de

Hermes), guiando o cortejo das almas perdidas. Todas as imagens, segundo os estudiosos, são

interessantes, mas duas delas merecem um olhar diferenciado: na primeira, Hellequin guia

uma charrete que é uma espécie de berço, na qual estão almas de crianças mortas e, na

segunda, ele aparece no meio do cortejo, não mais guiando, mas junto com outras máscaras

demoníacas41.

Estas duas imagens são muito significativas, por que, posterior a este texto, quando

                                                            40Tradução da autora: Da quel momento le testimonianze di avvistamento di diverse varianti della famiglia Herlechini si susseguono nei secoli successivi subendo continue mutazioni: da masnada di morti dannati, a mitico esercito di cavalieri erranti oltre il tempo, a orda di diavoli e spiriti irriverenti, fino agli approcci trecenteschi nele tradizioni di teatro di piazza e di irruenti cortei carnevaleschi di cui è tipico exempio lo Charivari francese [...] Nel famoso Roman du Fauvel, del XIV secolo141, è descrito uno Charivari con un testo accompagnat]o da interessanti immagini miniate142. Si trata di una sorta di violento corteo, di sarabanda indiavolata, di festa mascherata e scatenata che si snoda per le strade in occasione de contestate nozze del terribile Fauvel con Vaine Gloire. Una sorta di corteo nuziale alla rovescia, a capo del qualle incontriamo proprio Hellequin in persona143. Oltre alle evidenti affinità con lo sviluppo delle festività carnevalesche, il testo descrittivo di questo Charivari é stato più volte analizzato e identificato anche come punto di passagio tra gli antichi miti e credenze popolari, cui si è accenato, e quelle tecniche teatrali collettive che nel medioevo si andavano definendo; tecniche sceniche che avvrebbero portato alla graduale formazione di quella “professione d’attore” che la Commedia dell’Arte cinquecentesca ha, per così dire, consacrato.  41 Todas as imagens podem ser vistas, também, no artigo: Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni carnevalesche. In Progetto Sciamano 2002. Maschere e Marionette dal Mondo, de Claudia Contin e Ferruccio Merisi.  

235  

Arlecchino já tinha se fixado como máscara dell’arte, encontra-se muitas iconografias em que

ele aparece carregando uma cesta cheia de crianças – ideia que está ligada, também, à

fertilidade e à perpetuação da vida, característica própria dos Zanni. Na segunda imagem,

conforme Contin e Merisi, Arlecchino retoma a sua origem selvática, de fauno, de uomo

selvaggio.

Esta ligação de Arlecchino com o mundo dos mortos e dos infernos é muito latente e

toda a ligação com o mundo subterrâneo, própria de qualquer Zanni potencializa-se com as

lendas de Hellequin. Neste sentido, os escritos de Oderico Vitale têm um grande valor para a

construção do imaginário, pois, como afirma Contin, talvez estes escritos sejam a ponte entre

as festividades carnavalescas e a tomada destas pelo teatro, especificamente, pela Commedia

dell’Arte.

Estes festejos guiados por Hellequin têm muita importância, não somente para estudos

teatrais, mas sociológicos e antropológicos. Em determinado momento, segundo Monique

Augras (2009, p.10), quando se trata de uma “bacia semântica” como a cultura (a autora cita

Gilbert Durand), os fatos, sejam eles históricos ou imaginados, acabam por tocar o campo do

sagrado e, então, igualam-se, porque aquilo que é histórico sempre é reinventado e o

imaginado, com o tempo, acaba ganhando contornos reais. O antropólogo brasileiro Ordep

Serra, no seu inquietante estudo “Veredas: Antropologia Infernal” (2002), sobre o imaginário

que circula a atmosfera “infernal”, vai até os cortejos fúnebres dos Charivaris e traz a figura

de Hellequin como protagonista destes cortejos. O autor faz esta busca, também, através os

escritos “Storia Eclesiastica” (1091) de Oderico Vitale. Outros estudos antropológicos e

sociológicos, que não vem ao caso enumerá-los, vão buscar no mito e no sagrado, a resposta e

compreensão de muitos fenômenos.

Fausto Nicolini (1993) pesquisa incessantemente a origem do nome Arlecchino,

contrapondo dados e datas, fazendo um percurso pela obra de Dante, pelas lendas da

Alemanha, Inglaterra, passando por variações dialetais italianas, pela literatura de Giulio

Cesare Croce, pelos cortejos dos Charivaris e pelos escritos de Orderico Vitale. Segundo

Nicolini (1993, p.69), foi através destes cortejos que Herlequin/Hellequin, já na metade de

Duzentos, na França, alcançou o perfil de um tipo de diabo cômico, porém, foi na Itália,

muitos anos depois (mais de 200), que Arlecchino transformou-se em máscara do teatro. Para

Nicolini, é incontestável a ligação destes cortejos fúnebre dos Charivaris franceses, com o

Arlecchino da Commedia dell’Arte. Muitas destas relações fortaleceram-se nas conexões do

Zanni com o universo telúrico e muito também se deve ao fato que na região de Veneto, entre

as suas lendas, já existia um duende com o nome Alichino. Conforme comentário anterior,

236  

Nicolini levanta a hipótese do ator que incorporava Zanni (Alberto Naselli, o Zan Ganassa)

ter-se aproveitado da difusão do nome Alecchino/Hellequin/Herlequin, para dar uma forma a

este, uma máscara. Como muitas companhias dell’arte dirigiam-se à França, Arlecchino seria

um nome fácil de ser lembrado em terras francesas e italianas. Nicolini (1993) levanta muitas

considerações até chegar a esta hipótese, terminando por lembrar ao leitor que, mais

importante que o fato, é o mito.

Contin (2008) possui muitos artigos dedicados a esta máscara que a acompanha. No

artigo Perseguindo Arlecchino, traduzido por esta autora, ela conta como a máscara de

Arlecchino lhe foi confiada e como teve que trabalhar, transformando o seu corpo, para

conquistá-la. Nesta transformação, Contin (1999, p.90) foi descobrindo algumas

características desta máscara, como “[...] quando salta é muito leve e “aeroso”, quando retorna

ao chão, ao contrário, é como se fosse esculpido em uma madeira sólida e pesada”42. Através

de pesquisas e seguindo seus mestres, Contin (1999, p.91-93) foi compreendendo e

redesenhando a máscara física do Arlecchino:

Arlecchino é um dos maiores “boas-vidas” da história: se pudesse não fazer nada, nunca, ele seria muito contente: odeia o trabalho com todas as suas forças e todo o seu corpo o está dizendo. O calcanhar plantado na frente, não é uma simples mania, mas uma espécie de “freio” [...] Os dois joelhos não são retos, mas bem dobrados e dão uma impressão de força e de ser seguro de si [...] a postura base prevê o baricentro do corpo muito abaixado com as duas pernas posicionadas de modo a formar uma espécie de losango. As mãos flexionadas para trás e apoiadas com o pulso contra o quadril [...] testemunham, mais ainda, a atitude de uma pessoa que não tem nada para fazer [...] os ombros são recuados e abertos, mas os cotovelos são empurrados para frente, quase protegendo as mãos de qualquer tentação de trabalho. Segundo um dito popular vêneto-friulano diz-se que quem não tem vontade de fazer nada “puxa a bunda para trás” [...] Arlecchino já tem o quadril emperrado no ato de “retirada”.43

De acordo com a descrição, a pesquisadora realça algumas características demoníacas

que, de modo sutil, outras bem visíveis, continuam fazendo parte desta Máscara. Uma delas é

o sorriso que Arlecchino sempre tem estampado no rosto, até mesmo quando tem um acesso                                                             

42 Tradução da autora: [...] quando viene tirato verso il l’alto risulta leggero ed “arioso”, quando ricade al suolo è invece scolpito in un legno secco e pesante. 43 Tradução da autora: Arlecchino è uno dei più grandi “scansafatiche” della storia: se potessi non fare mai niente lui sarebbe davvero molto contento; odia il lavoro con tutto sé stesso e tutto il suo corpo lo sta indicare. Il tallone piantato in avanti non è un semplice vezzo, ma una sorte di “freno” [...] Entrambe le ginocchia non sono diriti, ma bien piegate e danno un’impressione di forza e di capàrbia [...] la postura base prevede il baricentro del corpo molto abbassato, con le due gambe posizionate in modo da formare una sorta di “losanga”. Le mani flessi in dietro ed appoggiate con i polsi contro i fianchi [...] testimoniano piuttosto l’atteggiamento di una persona che non ha nulla da fare [...] le spalle sono arretrate e aperte, ma i gomiti sono spinti molto in avanti, quasi a proteggere anch’essi le mani da qualunque “tentazione” di lavoro. Secondo un gergo popolare veneto-friulano si dice che chi non ha voglia di fare niente “tira il sedere in dietro” [...] Arlecchino ha il sedere ormai incastrato all’indietro nell’atto della “ritirata.  

237  

de raiva, porém, neste momento, este sorriso transforma-se em uma espécie de relincho ou

grito de ave de rapina, um resquício de sua ligação com o mundo infernal e suas risadas

diabólicas. Outra característica, diz Contin (1999:94), está no movimento do quadril, que é

encaixado para trás, também, porque nele, deve-se imaginar um rabo, que num processo de

civilização lhe foi cortado, mas que se move como um prolongamento da coluna e que é, na

verdade, a lembrança da sua porção animalesca. Neste mesmo processo de civilização, foi-

-lhe cortadas as guampas. Em algumas máscaras pode-se ver a marca desta castração, o que

pode parecer uma pequena marca arredondada, como se fosse uma verruga, logo acima de um

dos olhos da máscara é, na verdade, o que restou de um corno podado. Em outras, ainda,

pode-se ver uma pontinha de um pequeno corno que insiste em “brotar” -

como é o caso da máscara do meu Arlecchino.

Máscara física continiana: Capitano Desenho de Alice Mosanghini A partir da imagem da atriz Veronica Risatti Data: janeiro 2010 ߎ

Algumas máscaras cujo modelo é “cinquecentesco”, como é o caso da máscara do

Arlecchino Claudia Contin, apresentam, na parte lateral da testa, duas protuberâncias, que são

dois pequenos cornos. Contin sinaliza que, mesmo que lhe tenham cortado suas guampas,

Arlecchino mantém na movimentação da cabeça a lembrança delas, preservando pequenos

“golpes de máscara”, como ela chama (1999, p.96), os quais consistem em movimentos secos

laterais ou curvos em direção ao alto, como se movimentasse os cornos de modo a atacar ou

cutucar, com as suas guampas, o companheiro de cena ou o público.

Então, Arlecchino é um desdobramento do Zanni que contém conexões próprias com o

mundo subterrâneo. Sobre isso, poder-se-ia fazer um longo discurso como foi realizado com a

máscara do Zanni, mas, como diz Contin, este abre a porta do universo das máscaras dell’arte

e compreendendo ele, compreende-se muito de seus desdobramentos. Com isso, para o leitor

que deseja saber mais sobre esta máscara e suas conexões com o mundo infernal, aconselha-se

as leituras específicas de: Il MonDologo di Arlecchino. Spetaccolo comico grotesco per anime

perse (2001), Gli Abitanti di Arlecchinia. Favole didattiche sull’arte dell’attore (1999),

Viaggio d’un attore nella Commedia dell’Arte (1995) e Perseguindo Arlecchino.(2008) de

238  

Claudia Contin; Arlecchino e l’uomo selvatico: rapporto uomo-natura in antiche tradizioni

carnevalesche. De Claudia Contin e Ferruccio Merisi (2002); Vita di Arlecchino de Fausto

Nicolini (1993); Il Mondo di Arlecchino. Guida critica alla Commedia Dell’Arte de Allardyce

Nicoll (1980).

Na técnica de transdução, a máscara física do Arlecchino contém para as pernas,

joelhos e pés, uma mistura de capoeira e frevo; para o quadril, frevo; para os braços, cotovelos

e mãos, códigos da postura de Iansã. Ver a construção da máscara física da máscara do

Arlecchino através de códigos advindos das práticas espetaculares populares brasileiras no

DVD que acompanha esta tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.6 –

ARLECCHINO: 4.6.2 – ARLECCHINO – dança.

Como sempre, para a movimentação na cena e dar vida a esta máscara, várias outras

práticas espetaculares populares brasileiras são acessadas.

Na Scuola Sperimentale dell’Attore, não participei de nenhum espetáculo

incorporando a máscara de Arlecchino – já havia um Arlecchino no grupo: L’Arlecchino

Claudia Contin - mas a trabalhei com afinco em laboratórios individuais (só) e nos cursos da

Scuola S. A. abertos ao público (em Roma, no Arlecchino Errante, no Arlecchino Errante

Invernale. Os laboratórios individuais, os laboratórios com a professora Veronica Risatti e os

cursos com Claudia e Ferruccio foram muito importantes para entender, corporalmente as

transformações da máscara. Interessante que, com a Servetta, tive o desdobramento da

Cortigiana e, com Zanni, tive o desdobramento do Arlecchino. Ambos muito importantes para

minha aprendizagem dos transcursos fluviais que o imaginário engendra.

A máscara do Arlecchino está no espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e

Imaginações”, que será comentado no Apêndice E desta tese.

Com a máscara do Arlecchino, chega-se a um “nó” importante da rede conectiva que

se forma nesta tese. Pois as conexões entre as máscaras dell’arte e as práticas espetaculares

populares brasileiras começaram quando fiz, pela primeira vez, a máscara do Arlecchino com

a professora Dr.ª Inês Marocco. É significativo e importante que este ciclo da pesquisa (o qual

foi nominado doutorado) retorne, modificado e fortalecido pelas conjecturas realizadas, para o

nó que a impulsionou. Com este movimento, de certa forma espiralado, ganha força e nova

impulsão para recomeçar um novo ciclo e novas conexões.

 

239 

 

6. CONCLUSÃO

Desde o início desta tese, deixou-se claro que “Esta pesquisa flutua!” e, na medida em

que se foi estruturando o pensamento e revelando os encaminhamentos que constituem os

transcursos fluviais desta pesquisatriz, percebia-se que vadear era o destino a ser seguido.

Legitimada, principalmente, na ideia de imagem/imaginário em Gaston Bachelard e fundada

sobre o preceito de circulação de estados (pensamento estruturado no primeiro Capítulo desta

tese), Bachelard, Deleuze e Guatarri engendram--se, liquidificam-se, liquefazem-se e

ramificam-se, formando uma relação de profundas sutilezas e deixando a possibilidade de

seguir ramificando-se rizomaticamente, sem lançar âncora, mas atracando em portos e orlas

de diversas ilhas para, depois, continuar mar a fora, seguindo correntezas, torrentes e marés.

O Fundo Comum dos Sonhos que, numa dinâmica recíproca com o Fundo Poético

Comum, através de um processo de imaginação, metamorfoseia-se no corpo do ator em

máscaras físicas, foi o processo, aqui, desvelado. A ação processual mostrou uma pesquisatriz

que se deixa levar por impulsos criativos da atitude lúdica, buscando vivenciar o jogo-festa-

ritual em cada prática espetacular popular, seja italiana, ou brasileira, comportando genes

vindouros de uma outra esfera - de uma ancestralidade festiva.

Porém, para elucidar tais transcursos, foi necessário adotar critérios para definir as

práticas espetaculares que constituíram o corpo desta tese, pois, do contrário, uma imensa

torrente de conectividades apresentar-se-ia em desdobramentos múltiplos e, se a porção atriz

comovida pelo impulso criativo da atitude lúdica consegue dar conta de tais conectividades, a

parte que deve desdobrar-se na explicação e estruturação do pensamento formador de tais

conectividades não acompanharia tamanha a velocidade e as ramificações rizomáticas no

tempo que se fazia necessário.

Nesta tese, foram reveladas algumas destas conectividades, uma vez que, como dito, a

pesquisa poderia estender-se por muitas outras manifestações espetaculares populares

brasileiras e máscaras dell’arte. Todavia, devido ao esquema adotado, as práticas elencadas

foram a consequência de experiências adquiridas, tanto nas práticas espetaculares populares

brasileiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Caboclinho, Xaxado, Capoeira,

Maculelê, Cavalo Marinho e Dança dos Orixás) quanto nas Máscaras dell’arte (Zanni,

Brighella, Arlecchino, Servetta, Cortigiana, Nobile/Innamorata, Pantalone e Capitano). Foram

experiências vivificadas pela ação do imaginário no próprio corpo - em atitude lúdica e

240 

 

imaginação – onde as relações imagéticas possuem grande importância e suas inúmeras

articulações foram e são as fontes de comoção para o acesso às máscaras dell’arte.

As dinâmicas conectivas dialógicas entre a commedia dell’arte e as manifestações

espetaculares populares brasileiras foram estabelecendo-se na medida em que trabalhava as

máscaras dell’arte. Como dito muitas vezes, a musculatura requeria, nos circuitos musculares

conhecidos, a força propulsora e energética que necessitava para acessar e apropriar-se das

máscaras dell’arte, buscando, naquilo que já estava inerente, um caminho para “o novo”.

Sem elencar justificativas e valendo-se da prática realizada foi possível delinear os

campos de atuação e, se não foi possível adentrar todas as principais máscaras da commedia

dell’arte, muito menos um número maior de práticas espetaculares populares brasileiras,

procurou-se encaminhar o leitor às pesquisas mais específicas de tais campos e deixaram-se

muitas questões para vadiagens além desta tese e/ou como encaminhamentos para pesquisas

posteriores.

No transcurso realizado, na medida em que se avançou em direção às máscaras

dell’arte, o Bufão ganhou importante posição - um nó determinante dentro da rede conectiva.

Para compreender as máscaras dell’arte, seus universos e conexões com a tríade de Huizinga,

jogo-festa-ritual, fez-se necessário compreender, também, o universo carnavalesco, partindo

dos rituais de fertilidade até os cortejos carnavalescos: reino do Bufão por excelência. Seria

impossível apropriar-se de modo integral e intenso das máscaras dell’arte sem vadear e vadiar

no oceano bufonesco.

Assim, o Bufão auxiliou na compreensão da relação entre mito dionisíaco e máscaras

dell’arte como também da relação destas máscaras com a ancestralidade festiva, assinalada

por Oliveira, advinda do mito e que se emana em festa. Esta ancestralidade festiva foi

“perseguida” nas (e através das) práticas espetaculares populares brasileiras, intentando

translocar e transduzir tal emanação, através da conjunção e geminação de circuitos

musculares e energéticos para as máscaras dell’arte.

Porém, foi necessário, num primeiro momento, dar conta das teorias que poderiam

elucidar estes mecanismos imaginativos. Tal tentativa de esclarecimento mostrou-se um nó

importante, pois, a partir do entendimento do funcionamento de tais engendros, foi possível

passar e compreender o segundo momento da tese – o Bufão. Neste segundo passo a caminho

das máscaras dell’arte, a técnica de Bufão foi criada e, com a compreensão dos engendros

anteriores, foi possível entender a importância da imagem para esta técnica. Nas

241 

 

encruzilhadas do universo bufonesco, encontrou-se o carnaval e esta conexão do Bufão levou-

me ao encontro com a festa carnavalesca, as festividades e as práticas espetaculares populares

brasileiras. A partir desse encontro entre Bufão e Brasil, foi possível estabelecer a conexão

das máscaras dell’arte e as práticas espetaculares populares brasileiras. É como se o Bufão

fosse/é, de certa forma, o elo conectivo (ou cabo conector) das duas práticas. Pois, visto que o

Bufão é o grande representante e incorporador da força popular, assinalada por Backthin, ele

consegue, por sua grande capacidade de metamorfose, transformação e desdobramento,

estender- -se até as práticas espetaculares populares que integram esta pesquisa e alimentar-se

desta força ancestral e festiva.

Com a compreensão da intensa relação do bufão com o carnaval, a festa e as máscaras

dell’arte, fez-se um rápido passeio pelas manifestações espetaculares populares brasileiras

que integram a pesquisa, sinalizando algumas das possíveis conexões entre tais práticas

espetaculares e estas. A partir desta compreensão, adentrou--se o universo das máscaras

dell’arte.

Na construção do panorama das máscaras, a visão que predomina é a da técnica

continiana. No breve horizonte realizado, tentou-se mostrar os encaminhamentos de acesso e

apropriação destas máscaras, apontando a possibilidade destas ganharem vida através de

códigos advindos das manifestações espetaculares populares brasileiras, o que consiste nas

técnicas de translocação e transdução.

Percebendo que ainda se fazia necessária alguma atenção aos resultados práticos, foi

construído um apêndice no qual estão contidos os roteiros do espetáculo realizado na Scuola

Sperimentale dell’Attore, cuja direção é de Claudia Contin e Ferruccio Merisi, “Papaietta

Poliglota”, e da Aula-espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginação: Máscaras

dell’Arte e Cultura Popular Brasileira”. Com a mesma finalidade do Apêndice E, a tese

contém outro “apoio à compreensão dos transcursos realizados”, um DVD com imagens dos

espetáculos de Bufão, da técnica de translocação e das máscaras dell’arte com a técnica de

transdução. Não se trata dos espetáculos e aula-demonstração propriamente ditos, mas de

imagens destes.

Com o DVD, a tese tenta apresentar, de forma mais visível, algumas das resultantes

desta pesquisa, chegando a um ambívio nó que intenta ser probante das técnicas aqui expostas

e propostas como um possível acesso às máscaras dell’arte.

242 

 

Quando se diz que o DVD é uma apresentação das resultantes desta pesquisa, não se

está afirmando que é uma finalização da mesma, mas sim a representação do arremate de um

pensamento que intenta elucidá-la - um delineamento, não um limite. O DVD é um nó em

cruzado, que testemunha as técnicas constitutivas do corpo/transcurso desta tese e

pesquisatriz, uma tentativa de representação da vasta rede conectiva de um imaginário líquido

que transcende barreiras culturais, espaciais e temporais.

De certa forma, é este aluvião subjacente do imaginário que esta pesquisatriz intenta

emergir e, a partir dele, estruturar técnicas para a cena. Talvez os transcursos realizados

tenham ido, às vezes, por correntezas turbulentas e de difícil navegação, mas, de vez em

quando, concordando com Beccaria (1995, p.6), é necessário aventurar-se por caminhos que

não se conhece muito bem, agregando dados e deixando levar-se por estes:

É verdade que tanta dispersão pareceria desencorajar cada iniciativa, e nunca somos capazes de estabelecer comparações sincrônicas. [...] Mas em âmbitos de pesquisas como a nossa (âmbitos, frequentemente, cobertos daquele véu de mistério, que envolve caminhos não mais construíveis e percorríveis, que envolve as crenças que têm seguido as pegadas dos homens, as quais o tempo apagou e a poeira dispersa destas não permite avançar em hipóteses plausíveis relativas a nascimento, sorte e precisos trajetos de difusão), não resta mais que reunir os espaçados testemunhos convergentes, úteis para fixar núcleos de grandes latitudes e antiguidades que, com variantes e ampliamentos, permanecem inalterados ao longo dos séculos, com o objetivo de indicar conexões não vagas, mas concretíssimas, entre culturas diversas e longevas.1

Se foi difícil tentar explicar um processo que se move e, com isso, me comove,

também é difícil fazer considerações finais, sabendo que aqui não é a finalização. Acredito

que, para pesquisar, necessita-se de um espírito aventureiro e o desta pesquisatriz, conforme

anunciado muitas vezes anteriormente, afirma que este estudo ainda me levará a muitos

mares, a conhecer novos horizontes e universos - a viagem não terá fim com esta tese. A

pesquisa continuará a flutuar em outros mares, oceanos, redescobrir-se-á em possibilidades e

novos desdobramentos.

                                                            1  È vero che tanta dispersione sembrerebbe scoraggiare ogni iniziativa, e non si è mai in grado di stabilire comparazioni sincroniche. [...] Ma in ambiti di ricerca come la nostra (ambiti spesso coperti da quel velo di mistero, che avvolge cammini non piú costruibili e percorribili, che avvolge le credenze che hanno seguito le orme degli uomini che il tempo ha cancellato, e il polverio disperso di quelle non consente piú di avanzare ipotesi plausibili relative nascita, fortuna, e precisi tragitti di diffusione) non resta che adunare le sparse testimonianze convergenti utili a fissare dei nuclei di grande latitudine e antichità che. Con varianti e ampliamenti, perdurano inalterati nel corso dei secoli, allo scopo di indicare conessione non vaghe ma concretissime tra culture diversi e lontane.  

243 

 

Com isso, as declarações de finalização da tese, são, na verdade, de recomeço de um

novo lançar-se. Mais uma volta da espiral foi conhecida, mas ela continua a espiralar-se e,

sabe-se que flutuar, navegar, vaguear, vadiar e devanear, é preciso, é necessário e é

imprescindível. Esta pesquisatriz segue ao sabor do vento e das águas que carregam a sua

casa/jangada.

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262

APÊNDICE A – FATO(S) DO BRASIL FATO(S) DO BRASIL - UMA SÁTIRA DA HISTÓRIA DO BRASIL Texto e Direção: Joice Aglae Temporada do espetáculo: setembro e outubro \2006 – Teatro Gregório de Mattos – SSA\BA. Elenco:

Ator Bufão Andréa Rabello Da Banguela Diana Ramos Tumor de Feijão Érico José Chupa Culus Fabiana Monçalu Garrancho Flávia Gaudêncio Varicusseli Jorge Baia Rhala-Cu-Rei Maryvonne Coutrot Petitcagô O texto não está na sua íntegra, são apenas fragmentos das cenas citadas. ______________________________________________________________________ Cena da chegada da corte portuguesa no Brasil VARICUSSELI: (Gesto pedindo atenção) Olha a realeza aí gente! Chora cavaco! Hrala-Currei e Petitcagô tomam as posições de Rei e Rainha, desfilando, o Coro os acompanha cantando e fazendo as reverências. CORO: Ê Bahiana! Ê, Ê, Ê baiana. Baianinha.1 (dançam e sambam até chegarem à frente do palco). HRALA-CU-REI: Olha o breque! (Todos param). CORO: Um tempo, página infeliz da nossa história, paisagem desbotada na memória, de nossas novas gerações. Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída2... (Quando recitam “subtraída”, o coro para e somente a realeza continua). PETITCAGÔ e HRALA-CU-REI: “ (...) em tenebrosas transações”3. CORO: Subtraída???? (Se coloca em posição oposta a deles). CORO: Subtraída!? (Indagando à realeza). PETITCAGÔ: Ma terre a de palmiers où chant un oiseau, les oiseaux que chantent par ici, ne chantent pas comme là bà! HRALA-CU-REI: Fala direito! 1 Citação de um fragmento extraído da letra da música “Ê Bahiana” de autoria de Fabrício da Silva, Bahianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio. 2 Citação de um fragmento extraído da letra da música “Vai Passar” de autoria de Francis Hime e Chico Buarque. 3 Idem.

263

PETITCAGÔ: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá (...).4 CORO: Minha terra com palmeiras você veio me roubar! E sabes que aqui gotejam, minas de ouro pra levar!5 HRALA-CU-REI: Minha terra com palmeiras é o que vim pegar! O ouro que aqui roubo serve pra m’enricar!6 ______________________________________________________________________ Cena: chegada do Bispo Sardinha no Brasil HRALA-CU-REI E PETITCAGÔ: Vindo diretamente de Portugal! PETITCAGÔ: Para. HRALA-CU-REI: Redimir. PETITCAGÔ: Para. HRALA-CU-REI: Absolver. PETITCAGÔ: Para. HRALA-CU-REI: Catequizar. PETITCAGÔ: Para. HRALA-CU-REI: Ajudar a roubar. HRALA-CU-REI e PETITCAGÔ: Bispo Sardinha! Os dois fazem a figura “da capela”, Da Banguela fica no centro da “capela”, enquanto os outros prestam reverência. Depois, voltam o rosto para o público: cantam. HRALA-CU-REI: Como canta Gilberto Gil “Primeira missa, primeiro índio abatido também!”.7 CORO: Ah ah ah ah! Que deus deu! Ô ô ô ! Que Deus dá!8 A A Aaaméééém! (todos se ajoelham). Da Banguela dá um passo à frente cantando.

4 Citação de um fragmento extraído da poesia “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias. 5 Paródia de um fragmento extraído da poesia “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias (Fragmento: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá [...].). 6 Exílio” de Gonçalves Dias. (Fragmento: Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá [...].). 7 Citação de um fragmento da letra da música “Toda Menina Baiana” de autoria de Gilberto Gil. 8 Idem.

264

DA BANGUELA: Rompemus os culus que comemus! CORO: Também! ________________________________________________________________ Cena: Dom Pedro II narra as mudanças que foram realizadas no seu mandato. CHUPA CULUS: Dom Pedrinho II foi coroado! (Depois de coroá-lo, bate em Tumor e segue com o Coro). CORO: Hehehehehehehehe!!! (Como torcida de futebol, vão até o fundo da sala). TUMOR DE FEIJÃO: (Levantando e falando para o público) Em 1850, O Brasil teve progresso. CORO: (O coro percebe que Tumor está falando, param e seguem caminhando lentamente, em direção a Tumor – em tom de xingamento) Progresso? Vai tomar no seu café! TUMOR DE FEIJÃO: O tráfico negreiro foi proibido! CORO: Proibido? Vai tomar no seu café! (Se aproxima de Tumor - mais bravo). TUMOR DE FEIJÃO: O Paraguai declarou guerra contra o Brasil! CORO: Guerra! Vai tomar no seu café! (Se aproxima de Tumor - mais bravo). TUMOR DE FEIJÃO: Primeiro o Ventre livre... Depois, a abolição (encolhido de medo). CORO: Abolição? Vai tomar no seu... cú! (Saltam para cima de Tumor de Feijão, batem e seguram-no pela cintura, todos olham para frente e exclamam).

265

APÊNDICE B – A ORAÇÃO

CENA QUE ORIGINOU: A PRECE

Texto construído a partir de poemas de Antoin Artaud e Augusto dos Anjos. Texto da cena experimento que originou o atual scketch “A ORAÇÃO” Autoria: Joice Aglae. Direção e Interpretação: Joice Aglae – Bufão: Murcia.

Me dá o teu cérebro.

Me dá o teu crânio em chamas!

Me dá o teu crânio em brasa, em carbono.

No banquete em que me sirvo, me esbaldo.

No banquete em que me sirvo, me esvaio...

Escorro na tua boca e deixo fiapos de minha carne entre seus dentes.

E deslizo para me banhar nos ácidos do teu estômago.

Depois me alojo no âmago do teu ventre...

Nas paredes do teu intestino...

Nas pregas do teu cú...

No teu saco escrotal ou... entre os teus lábios...

E ali eu arranho... coço... e espero que,

Num peido flamejante ou num jato de gozo

Me lance outra vez no espaço... onde pairo outra vez no ar...

Infecto o espaço e penetro no teu pulmão...

No teu cérebro... no teu crânio...

Me dá o teu crânio em chamas, em brasa, em cinzas.

Queimado de tanto pensar... de tanto pensar que pensa.

Me dá o teu crânio em carvão, em carbono, em gás carbônico... em gás...

Em gases... gases cerebrais... peidos cerebrais...

Pensamentos produzidos pela tua merda cinzenta

Merda cinzenta... merda... merda e vermes...

Vermes e ser humano... ser humano é verme

Verme é ser humano... ser humano...

Ser... humano? Ser ou não ser? O que? Humano?

Ser humano... verme!

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No banquete em que me sirvo... eu me sirvo... de você!

SCKETCH TEATRAL

A ORAÇÃO

Texto construído a partir de poemas de Antoin Artaud e Augusto dos Anjos. Autoria: Joice Aglae. Direção e Interpretação: Joice Aglae – Bufão: Murcia.

Canto:

Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá

Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá

Eilá Eilá Eilá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá láá!

Bonjour mes enfants...

Je suis venu pour vouz racconté une histoire...

La vostra storia!

Allors... Je comence del debut... si percché l’inizio é proprio um bom começo

Je vous racconterait tout...

Non vi preocupate che vi parlerò tutto. Vou abrir a minha boca... vou por a boca no

trombone... (ir para a cesta para ascender a vela)

Je commence...

Au debut a été la nuite profonde... si ... Proprio all’inizio... sollo il buio... as trevas..

Et aprés... (tirar a vela acesa)

NO!!! Je n’aime pas comment cette stoire comença...

Non me piase per niente questo inizio

Ma não gosto mermo!

Je recomence... (pegar o copo com querosene)

Allors, toutt a comencé avec une grande explosion

A explosão foi enorme... Ma proprio grande la splosione

Grande très grand explosion.. (riso)... une très grand (fogo) explosion… (riso)...

Et comme ça la vie a commencé. (ir para a cesta e largar a vela e o copo, do lado da cesta)

Si. Semplice cosí la vita a cominciato.

BUM... e a vida se criou!

BUM e la vie... (riso)...

267

C’est plus poetique come ça... com mais poesia è molto più bello!... eu gosto dessa poética da

criação

(ir para a cesta e pegar os fogos de artifício)

Aprés, la explosion... BUM - une cellule (pegar um fogo de artifício), autre cellule (pegar um

fogo de artifício) et autre cellule (pegar um fogo de artifício) ... e comme ça ... avec c’est

rendevouz delle cellule... l’être humaine... (levantar os fogos de artifício) ... (riso)

C’est la qu’est plus drôle ... é che.. l’être humaine... lui pense... (riso e colocando os fogos de

artifício no lugar)

Um ser humano pensante... (riso) l’essere umano che pensa (riso)

C’est três dröle ça.... (riso)

Bien... après ... l’être humanie á grandit – cresceu vu... ma é cresciuto tanto.. ma tanto

que pendant sont percour dan sa propre stoire ... l’être humaine si è perdu...

perso nell buio... si é perdu dans la nuit... ... dans le tènebres... cel la d’autre debut....

... no no no no no autre fois les ténèbres e la stoire della luce... (pegar a vela e caxixis)

c’est pas possible... … toujours ont retour, sempre si ritorna sempre all tizio della luce... ma

NON... toujour on ce rejouiandre avec le Monsier della lumiére... le electricien du monde... ô

da luz... je t’appelle...

ô da luz... ô da, ô da, ô da da da da da (ascender os fogos)

ô da, ô da, ô da da da da da, da da da da da da da...

Ahhhhh divina... ai divina, ai ai divina; ai divina, ai ai divina

A nós descei divina luz ... A nós descei divina luz

A nós descei, A nós descei, A nós descei descei descei descei....

... (cantar e dançar até os fogos se apagarem)

Il ne decendre pas... ma non scendi perché... pour qua¿ (largar o caxixi e a vela do lado da

cesta.

Não desce porque sabe que aqui ta uma bagunça.... (pegar o pote para o sal)

Il sait que ici c’est la foole un casino enorme

E bien je vous farait une declaration très importante. (colocar o pote do sal no chão)

L’être humaine soufre... il sofre la poverità... (procurar sal) la peuvraité espirituale... e

quelques une aussi la peuvraité materiale... e ancor quelche foil’essere umano a une ame vide,

sans feu... una ânima vuota... fair l’argent - lavoro e sudore - travaille et souer, il sent le sel

della vie et plusier fois lui stesso é lo sel della vie... (deixar cair o sal dentro do pote)

lo sel et l’homme ... lo sel vien de la mére ... lo sel vien dell’homme aussi...

268

l’homme est la terra, l’homme é la mére... L’homme porte l’eau, terre, air e feu... lui é fait des

elements della nature... ma si est perdú... (finalizar a caída do sal)

e bien... j’essai de vouz aidé...

(rituaile du sel)

Sel: carrière de l’âme.

Dans la mère si crée

Su le soleil si fait in pierre

“pierre chant le destin!”

Destin si devvelope dans le temps – grand juge e consiglière

Destin\temps transformateur...

Sel: carrière de l’âme.

Que se seuleve in müre

Que rendre fort e est forteresse

Sel du munde: en corps, viand, sang, larme e sueur

Sel de la vie

La Vie en chemin dans cet nonde.

Ou trouve nid dans le coeur du château fort - salpêtre

(ir na direção do público com o sal)

Être de sel e vie...

Être de sel e force...

Protege de quelque mal prend viguer

Dans le rende-vous avec il vent

Rejouendre son chemin de aire e sable – saule.

Dans le rende-vouz avec la plui

Rejouendre sa liquefetion

Et en tempête (jogar o sal para o ar) de joi

Échape au son destin la mère

- saline du monde - (jogar o sal para chão nos pés do público)

Reprendre ta vie averse et

Recomence en nouveau cycle...

En nouveau cycle...

La ba au lo cerveaux ne va pas pour quoi il a peur de ne pas reucir

La ba au ce que est espirituel c’est plus importent que le materiale...

La ba ou la vie sempli il y a um valeur...

269

... vouz avez tout… seuf la notion della semplicitè (levar a tigela do sal para ofundo, do lado

da cesta)

Vous avez perdu le sens della simplicitè della vie... au tour de vouz seulment la tecnologie, la

comoditè e la solitude... Le monde... le monde même avec le grand population ça ressemble

un lieu inabité... mentenait vouz étes tout seule...

je vous dit que l’homme, est devenu un jeu de lui mêmme... et en plus il y quelques autrê

que s’amusent beacoup avec lês être humaine... ses tragedie e commedie

Je doit prendre ma responsabilité ... moi aussi, je trouve très amusent voir votre vie... vous etè

shouaite...

et pour ça, just par ce que vous éte shouait, haujourd’oui vous aussi peuvont essaye quelques

emotion diverses...

c’est la que vous verait ici sont des criature très speciaux, sont quelque chose de teuchent, de

comovent, ils ont la propriete de rentré dans l’ame e trouve pas seulement vaccum eux

treuvent le coeur, les sentiment eux soufflent la vie autre foi nelle ame.... allors que...

il feut se prepare car on arrive... et vous rirait, peu-t-ètre plurait, peu-t-ètre reflescirait e …

penserait nel sal, ne la vie ... nel être humaine.....

Profitez vouz... (coçar a cabeça)

Est trop tard... je doit partir... ma je voudrais porte quelque recordation de vouz

(procurar as minhocas)

Donne-moi votre cerveaux.... Donne-moi votre cerveaux (tirar algumas minhocas da cabeça)

Donne-moi votre cerveau brillant, en lumiére...

votre cerveaux en feu, en braise, in cendre...

donne-moi votre serveaux en feu, en carbone...

Donnez-moi votre cerveaux brûle

Donnez moi votre cerveux brûle de trop pense

De pensé que pense. (tirar algumas minhocas da cabeça)

Moi un peuvre bouffon, fils du soufre et du carbone

Moi que fait la digestion de ce la que est indigerible...

Je rentre dans ton corpos comme aire, je suis le envahisseur de tes viscère

Je me prommene dans ton corps (pegar o copo com querosene)...

Je rentre dans ton stomac et intestins,

Je fait la fête ...(riso)... feu pirotecnique... ...(riso)...

...gaze flatos flamejantes... ...(riso)... ( cuspir fogo)

Sens que vouz se rend conte je vouz connêtre dans le votre intimité... ton trü de cul (colocar vela e copo do lado da cesta)

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Je vouz conné jusqu’au fond, au contraire... (tirar algumas minhocas do corpo)

“antropofagique” en nature,

Je vouz mange pour rendre-moi fort... je vouz mangé pour vous rendre fort

Je vouz mange pour rendre-moi fort ... et vous jete pour vous rendre fort...

Aussi lês merdes servont de engrais...

Et du engrais ça peut revenir la vite... autre fois

Vie et mort que se rejoundrent atravers di moi...

tout se rejouendre en moi... cet la que est ètè, cet la que est et cet la que serait...

Moi fils du soufre et du carbone ...

Bessa me!

Crachat sur le lèvre que te fait des bisoux!!!

Des bisoux….. bisoux

Excusez-mois se j’ai parlait quelque chose que n’a pás été avec votre “d’accord”…

(guardar as coisas dentro da cesta)

mai... Moi… je suis un peuvre bouffon...

um peuvre bouffon que parte sens auqun recordation de vouz...

mai bien a éte très agreable vouz visité...

Merci de votre companie... vouz éte shouait... (colocar a cesta no pescoço)

Je vouz salut !!!! e Buon courage dans la vie.. (riso)

Vouz aurait besoain...

(Partir)

Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá

Eilá Eilá Eilá lá lá lá láá

Eilá Eilá Eilá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá láá!

Buon courage

(Partir)

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APÊNDICE C – “ALLA RICERCA DI UN ZANNI”

Livre adaptação da versão italiana (tradução: L. Lotti: Guaraldi, 1992) do texto dos personagens

João Grilo e Chicó, da peça “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna.

Eccomi qua, in questo mondo ci sono di storie sai... credi che una donna vuole

benedire il suo can per vedere se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non so

come è questa gente, hé! Ma non c’è niente di strano. Io stesso ho avuto un cavallo

benedetto.

Io ho avuto davvero un cavallo benedetto, cosa posso farci? Vuoi che menta? Vuoi

che dica che non l’ho avuto... Non ha fidúcia? Il signore Antonio Martino è qua? Lui può

provare quello che dico... è vero che il signore Antonio Martino è morto tre anni fa... Ma

era vivo quando ho avuto la bestia! ... Ho avuto la bestia è modo di dire, non è che io sono

stato a partorire il cavallo... no, io no. Ma dal modo in cui vanno le cose, oh..., io non mi

stupisco più di niente. Sì... nella settimana scorsa una Donna ne ha avuto uno nella sierra

di Araripe, dalle parti di Cearà...

Ma racconto come è andata con il mio cavallo. Ecco, è stata una vecchia (n’é) che

me l’ha venduto a basso prezzo (n’é mi figlio), sì, perché cambiava casa . Mi raccomandò

di avere molta cura di lui perché era un cavallo benedetto (n’é mi figlio). E doveva essere

davvero perché io un cavallo così buono non l’avevo mai visto.

Una volta abbiamo corso dietro una vitella dalle sei del mattino alle sei della sera

senza mai fermarci, io a cavalo lui a piedi. Sono riuscito a prendere la vitella che era già

notte e quando ho finito il lavoro mi sono guardato attorno... non conoscevo il luogo dove

eravamo. Allora ho preso una verga che era lì e via, per il sentiero, frustando il bue... Sì,

erano una vitella e un bue e io correvo dietro a tutte le due in una volta, e essi correvano

insieme per tempo senza separarsi.. come mai questo è successo, non lo so! So soltanto che

è stato così.

Io poi sono uscito da Paraíba spingendo bue e vitella .... improvvisamente ho

avvistato una città, ho chiesto ad un uomo dov’ero e lui mi disse che ero a Sergipe e ... Sì

io ero corso fin là con il mio cavallo, segno che era benedetto o no! Come ho attraversato

il rio San Francisco, non lo so! So soltanto che è stato così! Può darsi che in quello

momento il fiume fosse secco perché non mi ricordo di averlo attraversato... e in tutto

questo tempo il cavallo lì senza riclamare niente...

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Canne benedetto, cavallo benedetto sono tutte cose che ho già visto ... io non mi

stupisco più di niente....

Ma vedi... a questo punto credo che il cane della donna sia morto...Sì... è compiuto

il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del nostro

destino sulla terra, con quel fatto senza spiegazioni che uguaglia tutto ciò che vive in un

sol gruppo di condanati, perché tutto ciò che vive muore!

“Tutto ciò che vive muore!” Bello! Questo ho sentito dire da un parroco, nel

giorno in cui il mio Pirarucu è morto. Mio è un modo di dire, perché per dire la verità,

penso che ero io che ero suo... Fu quando ero in Amazzonia. Avevo legato una corda

all’arpione, la corda dell’arpione attorno al mio corpo tanto non poter muovere le

braccia. Quando ho afferrato il pesce, lui mi ha datto uno stattone così forte, che mi sono

cadutto nel fiume... è proprio così, il pesce mi ha pescato e, per farla corta, mi ha

trascinato lungo il fiume per tre giorni e tre notti... io non sentivo fame, no, ma una

dannata voglia di fumare...si! Quello che è più buffo è che lui mi ha lasciato prima di

morire, proprio all’entrata di un paesino, in modo che io mi potessi salvare. Il giorno dopo

ci fu il suo funerale e io non ho più dimenticato quello che il prete disse ai bordi della

fossa... Ma non me ricordo però come ho fatto per salvarmi... Ah sí, ho alzato un braccio,

finché una lavandaia mi ha avvistato e cosí sono corsi a liberarmi. Ecco! Si... è vero che

stavo con le braccia legate... ma, beh, nell’ora del bisogno c’è un rimedio per tutto. Come

sono stato salvo... Non lo so! So soltanto che è stato così!

E poi... Io non mi stupisco più di niente... Ad esempio di fantasmi di cane. Esistono,

esistono... io ne ho già incontrato uno. Là dove passa il Rio di Cosme Pinto, mi avevano

detto che là si vedono di fantasmi, ma non sapevo si trattasse di fantasmi di cane. Beh, se

sia posto di fantasmi non lo so, so che quando stavo attraversando il fiume mi è caduta

nell’acqua una moeda de dez. Io stavo lì con il mio cane e davo già persa la moneta,

quando ho visto che lui, il cane, stava confabulando con un altro. All’improvviso si tuffa e

mi raporta i soldi! Vado a verificare e trovo solo duas de cinco?! Beh, forse le alme

dell’aldilà hanno moedas trocadas? Non lo so! So soltanto che è stato così!

Ma queste cose dell’ aldilà poi... Una volta un grande amico... Povero João,

povero Giovanni, poreto Zanni! Così giallo, così svergognato... è stato morto... Ha

compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio

del nostro strano cammino sulla terra, quel fatto senza spiegazioni che eguaglia tutto ciò

che vive in un sol mazzo di condannati, perché tutto ciò che vive muore! ... É morto

davanti a me da un Cangaceiro... una morte tragica... Io, dopo piangere tantissimo, sono

273  

  273

stato in chiesa a pregare per l’anima di João, il Grilo più intelligente del mondo, e poi

l’ho portato in maca all cimiterio, per il funerale...lui però era venuto così pesante che mi

sono fermato per riposarmi un po’... in questo momento lui ha cominciato a parlare con

me... Madonna mia! Volevo scappare ma avevo l’impressione di aver perso le gambe, e

poi non era mica fantasma, era proprio lui...risuscitato grazie alla Madonna... Sì, proprio

lei... la Compassionevole...

Credo ... Credo, però... non lo so! So soltanto che è stato così!

E poi dal modo in cui vanno le cose ... io non mi stupisco più di niente...

  

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APÊNDICE D – RELATÓRIO DE ATIVIDADES

Relação (técnica) das atividades realizadas durante o estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore. Curso: Maschere fisiche della Commedia dell’Arte Ministrantes: Ferruccio Merisi e Claudia Contin Local: Teatro del Lido di Ostia (Roma) Período: 03 a 06/12/2007 - 24H/A Conteúdo: As Máscaras físicas da Commedia Dell’Arte: Zanni, Pantalone, Servetta, Capitano, Pulccinella, Nobili, Ballanzone e Arlecchino. Laboratório de Pesquisa (Prático e Teorico): “Carattere Femminili della Commedia dell’Arte”. Ministrantes: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Local: Scuola Sperimentale dell'Attore - Itália Período: 08 a 18/01/2008 Conteúdo: Le Servette, Le Amorose, Le Cortigiane, Prime e Seconda Donne di Compagnia, Amor Sacro e Amor Profano, Cantatrici, Danzatrici, Suonatrici, Mezzane, Ruffiane e Curatrici, L’Amor nel Gioco e nella Poesia. 60 H/A: 30 horas de laboratório prático;

20 horas de ensaios e dramaturgia cênica; 10 horas de treinamento e atividades de divulgação pública

Conferência Espetáculo “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte” Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Auditorium Comunale di Roveredo in Piano Data: 18/01/08 Conferência Espetáculo “Sull’Emancipazione delle Donne nella Commedia dell’Arte” Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Sala Arlecchino della Scuola Sperimentale dell’Attore - Pordenone (PN - IT) Data: 20/01/08 Laboratório de Pesquisa (Prático-Teórico) “Carattere di Pantalone” Ministrantes: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone Período: 26/01/2008 a 02/02/2008 Conteúdo: Il Vecchio Avaro, L’Amor Senza Età, L’a Figura dell’Ebreo Errante, Senilità, Fecondità, Caparbietà, Saggezza, Richezza, Sublimazione, Rapporti com le Parate degli Antichi Carnevali Montani Europei. Atividades: Atriz e Colaboradora Colaboradora: Encontros com Danças Populares Brasileiras - maculelê, frevo e capoeira. 61 H/A: 21 horas de laboratório prático

21 horas de training do personagem

  

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14 horas de ensaios e dramaturgia cênica; 05 horas de allestimento e atividades de divulgação pública

Ouvinte - “Cen-ferenza: Meditazione Conviviale sulla magia dei Carnevali Antichi: Hellequin – Dentro le maschere delle montagne venete” Conferencista: Gianluigi Secco Local: Osteria “Al Teston” – PD - IT Organização: Scuola Sperimentale dell’Attore – Pordenone Data: 30/01/2008 Cortejo Itinerante “Il Servitore di... Quattro Padroni” Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Centro Storico di Pordenone Data: 02/02/08 Tradutora do artigo “Inseguendo Arlecchino / Perseguindo Arlecchino” de Claudia Contin Revista “OUVIROUVER” Nº4, 2008 - Departamento de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Uberlândia – Minas Gerais – BR Progetto Sciamano – Rapporto tra Commedia dell’Arte e Desabili Coordenação: Claudia Contin & Ferruccio Merisi Atividade: Colaboradora Local: Scuola Sperimentale dell’Attore (PN-IT) Período: abril e maio/2008 Total: 71 H/A Espetáculo “Arlecchino e le sue Colombine” Direção: Ferruccio Merisi Atividade: Atriz e Colaboradora local: Agriturismo La' Di Fantin - Pordenone (IT) Data: 16/05/08 Espetáculo-demonstração “Sherwood delle Danze” Integrado ao “Progetto Sciamano” – Scuola Sperimentale dell’Attore Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Sala Arlecchino Teatro Studio – Scuola Sperimental dell’Attore – PN – IT Datas: 26 e 27/05/08 Espetáculo-demonstração “Sherwood delle Danze” Integrado ao “Progetto Sciamano” – Scuola Sperimentale dell’Attore Direção: Ferruccio Merisi & Claudia Contin Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Auditorium Concordia – PN - IT Datas: 28/05/08 Laboratório de Pesquisa (Prático-Teórico) “Carattere di Zanni” Ministrantes: Veronica Risatti

  

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Coordenação: Ferruccio Merisi e Claudia Contin Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone Período: 31/05/2008 a 11/06/2008 Conteúdo: Carnavale, Servitù, Amore e Fame Atividades: Atriz. 26 H/A - 10 horas de laboratório prático

12 horas de training do personagem 04 horas de dramaturgia cênica

“VIVA – Danzare per Vivere” Laboratório de Danças Populares Brasileiras: Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Afoxé e Cavalo Marinho. Ministrantes: Joice Aglae Brondani e Erico José Souza de Oliveira Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT Período: 16 a 22 / junho/ 2008 Total: 18 H/A “Arreia” - Conferência-Espetáculo sobre Teatro Popular Brasileiro Tradutora da conferência do Dr. Erico José Souza de Oliveira: “Il Cavalo-Marinho di Condado – Pernambuco - BR” Local: Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT Data: 23/06/2008 “Arreia” - Conferência-Espetáculo sobre Teatro Popular Brasileiro Conferencista e atriz: “Tracciati Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone – Commedia dell’Arte e le Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasiliane” Local: Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT Data: 23/06/2008 Espetáculo: “Arlecchino e la Valle dell’Omo” Direção: Ferruccio Merisi Atividade: Atriz e Colaboradora Local: Auditorium Concordia – PN - IT Data: 26/06/08 Laboratório individual para “La Servetta, Corteggiana e Damma Enamoratta – Papaietta” - Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni Spettacolari, Popolari Brasiliane Ministrante: Claudia Contin Local: Scuola Sperimentale dell’Attore Período: 30 de junho a 23de julho / 2008 Total: 60 H/A Apresentação interna à Scuola Sperimentale dell’Attore “La Servetta, Corteggiana e Damma Enamoratta – Papaietta” – Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni Spettacolari, Popolari Brasiliane

Direção: Claudia Contin Atividade: Atriz Pesquisadora

Local: Sala Arlecchino Data: 24/julho/2008

  

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Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore “Iniciação às Técnicas de Clown” Conteúdo: Metodologia Brasileira – Joice Aglae Brondani - Trabalho com os elementos (terra, água, fogo e ar) e a relação com a Máscara de Clown. Produção e canalização de Energia para a Máscara de Clown. Da energia à descoberta da lógica-corpórea do Clown. Período: Agosto 2008 Total: 24 H/A Laboratório individual para “Pantalone Picantin de’i Coleottori” Ministrante: Claudia Contin Local: Scuola Sperimentale dell’Attore Período: 11 agosto a 23 agosto/2008 Total: 20 H/A Workshop Internazional “L’Arlecchino Errante” Ministrantes: Claudia Contin Ferruccio Merisi Leo Bassi - Mestre Convidado Professores da Scuola: Alice Mosanghini Lucia Zaghet Veronica Risatti Local: Scuola Sperimentale dell’Attore Período: 31 agosto/2008 a 21 setembro/2008. Total: 200 H/A Ouvinte: Festival L’Arlecchino Errante – Simpósio: Omaggio alla Legge Basaglia: "OUTSIDER ART" (con Video, Musica e Performance) Data: 12 setembro/2008 Conferencistas: Alessandro Ciriani – Assessore alla Programmazione Sociale - Pordenone Giovanni Zanolin – Acessori alle Politiche Sociale - Pordenone Peppe dell’Aqcua – Direttore dell Dipartamento di Salute Mentale - Trieste Giulia Scabia – Drammaturgo Allessandro Garzella – Autore e Regista Teatrale Giorgio Pacorig – Musicista Claudia Contin – Scuola Sperimentale dell’Attore - Progetto Sciamano Ouvinte: Festival L’Arlecchino Errante – Simpósio: "THE SMARTY FOOL - Metodo e Follia nell'Arte dell'Attore " (con Video, Radio e Performance) Data: 13 setembro/2008 Conferencistas: Dottoressa Cristina Valenti - Università di Bologna Ambrogio Artoni – Uniersità di Torino Gustavo Giacosa e Carlo Rossi – Compagnia Pippo Delbono Claudia Contin – Scuola Sperimentale dell’Attore Spiro Scimone e Francesco Sframeli – Compagnia Omonima Ugo Giacomazzi e Luigi Di Gangi – Compagnia Teatri Alchemici

Paolo Billi – Compagnia del Carcere del Pratello di Bologna “The Holy Fool” - Apresentação Final do Masterclass do Festival L’Arlecchino Errante

  

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Direção: Ferruccio Merisi e Claudia Contin Local: Sala Arlecchino Teatro Studio – Scuola Sperimentale Dell’Attore Data: 21 setembro/2008. Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore de “Danças Populares Brasileiras: Coco, Ciranda, Maracatu, Samba, Frevo, Afoxé, Cavalo Marinho, Caboclinho e Xaxado”. Conteúdo: Le danze popolari brasiliane – una possibilità per il lavoro dell’attore. Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT Período: 24 de setembro a 04 de outubro / 2008 Total: 24 H/A Ministrante do Laboratório interno à Scuola Sperimentale dell’Attore – Capoeira

Conteúdo: Capoeira – una possibilità per il lavoro dell’attore Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT Período: fevereiro, agosto e outubro / 2008 Total: 24 H/A Laboratório individual - “Rapporto tra Commedia dell’Arte e Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasiliane – Maschere Femminile e Pantalone” Professores: Ferruccio Merisi e Claudia Contin Local: Scuola Sperimentale dell'Attore – Pordenone – IT Período: 01 a 10 / outubro/2008 Total: 10 H/A Workshop Internazionale “L’Arlecchino Errante Invernale” Condotto da: Claudia Contin Ferruccio Merisi Tutors della Scuola: Lucia Zaghet

Veronica Risatti Alice Mosanghini

Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009 Totale: 35 ore “L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” - Workshop “Giocoleria” Condotto da: Guido Nardin Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009 Totale: 10 ore “L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” - Workshop “Improvvisazione e dinamiche di gruppo” Condotto da: Marco Canuto Presso alla: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009 Totale: 10 ore Condottrice: “L’Arlecchino Errante Raduno Invernale” – Workshop “Danze Popolare Brasiliane e Capoeira”

  

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Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal 01 al 07 febbraio 2009 Totale: 10 ore Ouvinte: Cen-ferenza “Le carnevale antiche di Piemonte” Condotto da: Davide Porporato Presso il: “Cenacolo” – PN - IT Organizzazione: Scuola Sperimentale dell’Attore – PN - IT Data: 18/02/2000 Workshop “L’attore che canta ... e il cantante che sa interpretare” – corso intensivo di espressione vocale. Condotto da: Alice Mosanghini Presso la: Scuola Sperimentale dell’Attore Periodo: dal16 al 21 marzo/2009. Totale: 15 ore

 

 

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APÊNDICE E – SOBRE PAPAIETA E TRANSDUÇÕES

Reafirmo que não é o simples falar de uma dinâmica caleidoscópica da imaginação,

ainda mais, levando em conta a afirmação de Bachelard (1990), de que uma imagem só pode

ser explicada por outra imagem, então, sabe-se que as tentativas de explicação destes

engendros imaginativos de qualquer outro modo são falhas.

O que vem em seguida não é uma tentativa de explicação do processo de transdução

caleidoscópica, mas um breve panorama dos encaminhamentos realizados para as montagens

de “Papaietta Poliglota”, dirigido por Claudia Contin e supervisão geral de Ferruccio Merisi e

do espetáculo sucessor: “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”, cuja criação é de

minha autoria - desta pesquisatriz.

“PAPAIETTA POLIGLOTA”

A criação de um espetáculo cujos códigos adviessem das práticas espetaculares

populares brasileiras, mas que se confundissem, pela natureza de ambos, com os códigos das

máscaras dell’arte, sempre foi um dos propósitos desta tese. Como já foi comentado muitas

vezes, foi após o primeiro curso de danças populares brasileiras que ministrei1 e da primeira

aula-espetáculo mostrada ao público italiano2, cujo tema central foi a técnica de translocação

e vislumbramento da técnica de transdução, que Contin e Merisi mostraram interesse pela

direção do espetáculo que seria o ponto de amarrar um dos nós desta etapa da pesquisa.

No dia 30 de junho de 2008, começaram os ensaios de “Papaietta Poliglota”, os quais

se estenderam até outubro do mesmo ano, com alguns pequenos intervalos, para a realização

de outros espetáculos e eventos.

De 30 de junho a 23 de julho de 2008, uma rotina de trabalho foi estabelecida para a

criação de um espetáculo com uma parceria colaborativa harmoniosa. O texto é de

organização e criação de Claudia Contin e a supervisão da cena, de Ferruccio Merisi, com

minha colaboração, no que diz respeito à cultura popular brasileira.

De 25 de julho a 10 de agosto, tínhamos, também, os ensaios e a apresentação do

espetáculo “Arlecchino e la vale dell’uomo”, comentado anteriormente, cuja preparação

                                                            1 De 16 a 22 de junho, de 2008 – Publicidade no ANEXO E. 2“Tracciati Fluviale di un ricercattore: Clown – Buffone – Commedia dell’Arte e le Manifestazioni Spettacolari Popolari Brasiliane”, na Sala Arlecchino Teatro Studio - Scuola Sperimentale dell”Attore – PN-IT, em 23/06/2008 – Publicidade no ANEXO E. 

 

 

281

causou uma pausa nos ensaios de “Papaietta Poliglota”, mas que não interferiu em seu

crescimento e intensidade.

De 11 a 23 de agosto de 2008, as atividades laboratoriais foram retomadas, desta vez,

calcadas sobre a máscara de Pantalone, que iria compor a segunda parte do espetáculo.

De 24 a 30 de agosto, foram as preparações para o festival Arlecchino Errante, que

aconteceu do dia 31 de agosto a 21 de setembro de 2008, em Pordenone/IT. Após o festival

Arlecchino Errante, começaram os ensaios para a finalização do espetáculo “Papaietta

Poliglota”. Neste período de 01 a 10 de outubro de 2008, o qual constituiu a terceira etapa do

processo de montagem, éramos três trabalhando no espetáculo. Ferruccio Merisi, nesta etapa,

entrou em sala de aula para realizar a direção de voz e supervisão do espetáculo, trabalhando

sobre o material construído por mim e dirigido por Contin.

Dessa forma, o espetáculo “Papaietta Poliglota” foi construído e estava pronto para ir

a público.

No que diz respeito à metodologia ou processo e encaminhamentos para a montagem

do espetáculo, não houve um primeiro momento de montagem somente com as máscaras

físicas da commedia dell’arte para, num segundo momento, acrescentar os códigos advindos

das práticas espetaculares populares brasileiras. O espetáculo foi sendo criado já com a

experimentação e procura dos códigos que se encaixariam na ação do espetáculo.

Pela parte da manhã, eu entrava em sala de aula e trabalhava sozinha com a técnica de

transdução caleidoscópica, utilizando o texto criadoߎorganizado por Contin e as máscaras

físicas da commedia dell’arte continiana.

As tardes eram reservadas para os cursos que ministrava3 e seguia, sempre dentro da

Scuola Sperimentale dell’Attore4, conforme mencionado em outros momentos e elenco das

atividades realizadas na S.S.A. contidas no Apencide D.

À noite, entrava em sala de aula para trabalhar com Claudia Contin. Trabalhávamos

sem a interferência de nenhum outro aluno ou integrante do grupo de atores da S.S.A..

Primeiro, mostrava a ela o material que tinha trabalhado sozinha pela manhã e, então, ela os

organizava/dirigia dentro da perspectiva da commedia dell’arte e da máscara que estava

incorporando. Com esta dinâmica de trabalho, o espetáculo foi sendo criado.

Na etapa em que trabalhei com Merisi, o esquema era o mesmo: trabalhava sozinha

pela parte da manhã e, à noite, sem a interferência de outros interantes do gupo da S.S.A., em

sala de aula, com ele.

                                                            3 Danças populares Brasileiras e o trabalho do ator; Clown e Capoeira e o trabalho do ator. 4 Laboratórios das máscaras dell’arte, em grupo e individuais.  

 

 

282

A máscara de abertura do espetáculo é a da Servetta. Posteriormente, me transformo

em uma Cortigiana, depois em Nóbile, na “Strega” e no bufão (sem o figurino original, mas

utilizando a saia para me disfarçar). Para finalizar esta parte feminina, retorno à Cortigiana e

saúdo a todos, dançando Frevo e jogando pipoca no público, como se fossem confetes de

carnaval – como acontece na festa de lavagem do Senhor do Bonfim ߎ BA.

O espetáculo tem o nome de “Papaietta Poliglota”, porque é realizado em italiano

macarrônico5, uma mistura de dialetos italianos, italiano clássico, português e espanhol.

Contin preferiu realizá-lo desse modo, buscando os moldes dos cômicos dell’arte – com a

mistura de dialetos e línguas, não buscando uma língua gramaticalmente correta, mas

inteligível dentro da ação da cena.

O termo “poliglota”, contudo, diz respeito não somente ao idioma, mas também à

linguagem física, pois vou passando de uma máscara à outra - começo incorporando a

máscara da Servetta (que cita Arlecchino, Capitano, Zanni), depois, a máscara da Cortigiana,

posteriormente, incorporo a máscara da Nobile e, ainda, passo rapidamente pela Strega, pelo

Bufão e retorno para a Cortigiana. Para finalizar o espetáculo, incorporo a máscara de

Pantalone, que fala de seu amor e admiração pelas máscaras femininas da commedia dell’arte.

Também, o termo “poliglota” mantém relação com o diálogo que se estabeleceu no

processo de montagem e no espetáculo, com as práticas espetaculares populares italianas e

brasileiras.

Por conta da mescla de línguas e dialetos que acontece ao longo do espetáculo, pensa-

se que não vem ao caso uma tradução, pois seria impossível, já que se trata de uma maneira

muito específica de comunicação. Desse modo, para o leitor, realizo um resumo das situações

que dão forma ao espetáculo.

O espetáculo começa com a máscara da Servetta. Entro de costas para o público,

coloco-me no centro da sala, ao fundo, e grito como se fosse uma

feirante:

- Papaia, papaia, papaia! Olha a papaia... Papaietta!

“Papaietta Poliglota” Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi

Atação: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 ߎ julho 2008 ߎ

                                                            5 No capítulo II, foi explicado o que é o “italiano macarrônico”, que as máscaras dell’arte e, também, os bufões utilizavam para a cena. Rapidamente e, de forma resumida, “macarrônico” é um termo utilizado para designar uma fala burlesca. Mistura várias línguas ou falsas línguas como a inclusão de palavras com terminações do latim, para sublinhar o efeito burlesco.  

 

 

283

Virando-me de frente para o público, canto uma canção e ofereço a eles, em uma

pequena travessa, biscoitos de papaia. Na outra mão, carrego uma pequena xícara de café.

Depois de oferecer os biscoitos, dirijo-me até o centro da cena, equilibro a travessinha

na cabeça e tomo meu cafezinho.

“Papaietta Poliglota” Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

Depois, pego a travessa e, com todos os objetos seguros entre as mãos, cumprimento o

público (bom dia/boa noite) em italiano, português, francês, inglês, espanhol e alemão. Após

o cumprimento, uma risada e depositando a xícara e a travessinha no chão, no fundo do palco,

coloco-me, novamente, no centro do palco. Então, me apresento, falando meu nome e digo

que estou ali para contar a minha história.

Conto que sou “metade italiana”, mas baiana de coração. Afirmo que sei interpretar

uma serva rebelde, uma Cortigiana obediente, uma Nobile enamorada, enfim, que sei ser uma

comediante:

Intanto sappiate che son Comica per professione... e per amoroso servizio della Gran Tradizione del Teatro Italiano de la Commedia de l’Arte. Tradizione errante che girò per lo Mundo, deixando tanto signos e portando tanto signos de cada staniera cultura. Così anche mi, son Comica errabonda: meza italiana de horigini, ma bajana profonda, un poco francesa quando civetto, ma vera brasileira ne i sogni, quando che vago a letto! So far la serva ribelle, so far la cortigiana ubbidiente, so far la dama innamorata, so far la Comica con ogni parlata. E oggi son qui, per stringere una alleanza tra la mia anima italiana e la mia anima brasiliana. Posso, per esempio, favelàr per voi tuti li dialetti italici! Ostrega! Son venessiana de Venessia se ghe xé bisogno, oh gli son pure toschanella di Firenze a l’ochorrenza, mo vè che non ci ho probleeema a passar da bologneeesa, e nu puoco pure de nnapulitana tengo in t’o sangue mmio, o m’allargo a la romana, o – pota! – po’ ciapo sü e me svolto via a la bergamasca. E posso anche, per voi, danzar tuti i dialetti de la musica del Brasile! Perchè il mio corpo è un’Amazzonia! Son indie le mie ossa, son creole le mie giunture, son ispanici i miei peli,

 

 

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son portoghesi i miei occhi... ... ed è così africano il cuore mio.6

Nesta narrativa, conto que sou cômica, venho do Brasil e tenho, em mim, a mistura de

várias culturas. Passeando pelo mundo como uma “comica errabonda”, cheguei à Itália para

fazer a minha “metade brasileira” encontrar minha “metade italiana”. Mas isso só foi possível

porque sou uma comediante, e começo, assim, a contar a história de como me tornei uma.

Contin e Merisi foram generosos, cedendo a partitura da cena da “Scorza di melone”

para Papaietta, transformando-a em “Scorza di papaia”. E, então, revelo ao público como um

escorregão em uma casca de papaia fez com que me transformasse em uma comediante. Tudo

aconteceu quando era jovenzinha e um Capitano cortejava-me. Na ocasião do assédio,

querendo fugir do galanteador, fui correr e escorreguei na casca de papaia, caindo deitada, de

costas para o chão. O Capitano, mostrando-se um cavalheiro, correu para me ajudar a

levantar-me, mas, não vendo a casca de papaia, acabou escorregando e também caiu deitado,

porém, sobre mim. E foi desta brusca queda que engravidei e, por orgulho, fugi da cidade,

formando, com todos os meus filhos, uma Compagnia dell’Arte.

Após esta cena, canto uma tarantella (Che bella cosa far la commedian) e organizo o

palco para a próxima cena: coloco uma cadeira e uso, como objeto cênico, um espanador;

também, solto os cabelos, que antes estavam presos e trançados.

Com os cabelos soltos, coloco-me, então, na máscara da Cortigiana.

Começo um discurso que é, na verdade, uma adaptação de um texto de Domenico

Ottonelli, divulgado por Roberto Tessari em “Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra”

(1981), sobre o fascinante mundo da commedia dell’arte e da relação das atrizes com a cena e

a sociedade. Esta cena fez parte do espetáculo “Né serve, Né Padrona”, porém, aqui, Merisi e

Contin trabalharam outras entonações e ritmos.

Nesta cena, conto como é bom ser chamada de “Senhora”, ser esperada e recebida

com banquetes e presentes e depois, ter uma noite agradável e esperar a glória e honra

reservada às grandes cômicas.

Após esta cena, reorganizo o palco, coloco a cadeira no outro lado e vou para trás do

biombo, ascendo uma luz e, ao som de uma caixinha de música, canto, coloco a saia da

Nobile e, depois, com um pente e um espelho nas mãos, entro em cena.

                                                            6 O texto é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio da Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma.  

 

 

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“Papaietta Poliglota” (cena: troca de figurino) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

Penteando os cabelos, olhando-me no espelho e cantando, sigo

até o centro da cena. Depois, guardando o espelho e o pente dentro do figurino (no dorso),

recomeço a falar com o público, ao mesmo tempo, em que prendo, novamente, os cabelos.

Numa conversa informal com o público, comento que não se pode nem imaginar as coisas que

uma cômica deve saber fazer:

Non vi crediate che a far la Commediante non si apprenda anche a far la Gran Dama Ennamorada! (mentre s’acconcia i capelli) S’impara a suspirare, s’impara a poetizzare, s’impara ad arrossire... e a impallidire... ed anche a svenire quando serve et conviene. (mentre completa l’acconciatura) Così come faceva la famosissima Comica Isabella, che con le sue artistiche pazzie amorose, innamorava tutti i cuori... ed insieme li divertiva.7

Após estar com roupa e cabelos arrumados, coloco-me na máscara física da Nobile e

começo a cena com um poema intitulado “Memoria di Isabella Andreini e il Sonetto del Cuor

Duro - livremente inspirado no “Sonetto CXXV”, de Isabella Andreini, publicado por Luigi

Rasi em “I comici italiani” (edição/1897 - texto em italiano antigo):

E comunque... Io non t’amo crudel, perché me l’impedisce del mio cor selvaggio la natia durezza. Eppur, se vedo qualcun con tua bellezza tutta l’anima mia cinguetta e stupisce. E contro il mio voler nel cor mi scende un’affetto d’amara, empia dolcezza. E tant’è potente l’amorosa stranezza, ch’un estroso umidor in me riaccende.

                                                            7 O texto é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio da Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma. 

 

 

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Dura legge d’Amor!!! Dura legge d’Amor!!! Dura legge d’Amor!!! Dunque conviene amar questo in quest’altro? E l’altro invero farlo cagion insieme di gioie e pene! Ahi! Ben tronca é nel mezo ogni mia spene! Né pace più, né più salute spero se da cotanti “rivi” il mio dolòr viene. (Si scatena in una battaglia di calci acrobatici da Capoeira brasiliana, che si

conclude vittoriosamente ed elegantemente seduta sulla poltroncina)8

Após esta cena, retorno à máscara da Cortigiana, levanto-me da cadeira e,

agradecendo a todos, tiro de debaixo da mesma uma pequena cesta de vime cheia de confetes

brancos, jogo-os no público, cantando e abençoando a todos com a “benedizione del maestro

carnevale”/ benção do mestre carnaval. Terminando com os confetes, deixo a cesta na frente

do palco e vou até o fundo, pego uma gamela com pipocas e, jogando-as no público, canto,

deixando, desta vez, o “axé do mestre carnaval”. Após terminar com a benção das pipocas,

deixo a gamela ao lado da cesta e, girando de costas para o público, vou caminhado em

direção ao fundo do palco, transformando meu corpo na máscara física do bufão. Então,

utilizando a saia como manto, canto em “tom gregoriano” “Carnaval! Carnavalis!

Charivaris!”.

Girando–me em direção ao público:

Benedictus sia tuo pu-santo sudoris, danzante! (da monaco giullare) Benedicte tucte glandulis vostris, danzantis! Et preziozizzimus bulbus pilliferum... omnium: irtus et ricciulus, danzantis! Benedicti pés teus et patas tuas et omnia vescicula, danzante! Bendicte unhas et unghias, pestatus et consuntus, in plùrima noctis profundus, danzantis!(da monaca giullaressa) (Danza Frevo con la gonna “ombrellone”)

“Papaietta Poliglota” (cena: La Strega)

Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

                                                            

8 A adaptação é de Claudia Contin, o qual integra a dramaturgia do espetáculo “Papaietta Popliglota”, patrimônio da Scuola Sperimentale dell’Attore e, para qualquer modo de divulgação, deve-se ter a autorização da mesma. 

 

 

ダテヅ

“Papaietta Poliglota” (cena: Il Buffone) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi

Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti

Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

Após falar como público com a máscara do Bufão, recomeço a cantar, acelerando o

ritmo e transformando-o em frevo. A música de um frevo (instrumental) entra, a canção vai

sumindo, ao mesmo tempo, em que a dança do frevo ocupa todo o palco, utilizando a saia

como se fosse “uma sombrinha”. Dançando frevo, vou até o fundo e pego outra gamela cheia

de pipoca, entrego ao público, pedindo que me abençoe com as pipocas. Enquanto o público

joga pipocas, continuo dançando e, dessa forma, dirijo-me ao fundo do palco, saindo para trás

do biombo - o frevo só termina quando não estou mais em cena9.

“Papaietta Poliglota” (cena: frevo) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

Quando a música acaba, acendo, novamente, a luz e abro a caixinha de música. Sobre

o biombo, estendo o lenço que utilizo como Servetta, cheio de flores bordadas. Tiro as saias,

permanecendo com a bombachinha e a blusa. Pegando o figurino, maquiagem e máscara de

Pantalone, fecho a caixinha de música, desligo a luz e entro novamente.

“Papaietta Poliglota” (cena: frevo) Dir.: Claudia Contin e Ferruccio Merisi

Interp.: Joice Aglae Foto: Veronica Risatti

Data: 24 2008 ߎ 07 ߎ

                                                            9 No dia 24 de julho de 2008, este trecho do espetáculo foi apresentado aos integrantes da Scuola Sperimentale dell’Attore e a um pequeno grupo de convidados.  

 

 

288

Depois desta “mudança no figurino”, volto à cena, coloco a roupa do Pantalone no

chão, ao fundo, vou até a frente, falo para o público das características da máscara física de

Pantalone, transformando meu corpo nela na medida em que a explico e, por último, faço a

maquiagem que fica sob a máscara10.

Após fazer a maquiagem, vou até o fundo do palco. Primeiro coloco a máscara e o

chapéu, depois, começo a vestir o figurino do Pantalone – dizendo como é bom ver os “dotes”

de uma jovem. Como Pantalone, conto ao público como me enamoro pela

Servetta/Cortigiana, enumerando o desenho das curvas do seu corpo e como me encanta a sua

beleza. Reclamo para o público que ela, porém, não me dá atenção. Por mais que a persiga,

tente encontrar-me com ela ou permaneça esperando sob a sua sacada, ela não se importa

comigo. Finalmente, chego à conclusão de que as mulheres e o ouro possuem uma relação

única e descubro que, através do ouro, posso chegar no coração de qualquer mulher.

Por último, canto contente, pois encontrei a solução para conquistar a Cortigiana e,

cantando, vou para traz do biombo. Estendendo meu lenço cheio de corações, ao lado do da

Servetta – as luzes se apagam e o espetáculo termina.

Como dito anteriormente, da parte de Pantalone, não possuo nenhuma fotografia para

integrar a este relato.

Após o último dia de ensaio, Ferruccio Merisi entregou-me um documento para que eu

assinasse. Este documento dizia que sempre que houvesse a possibilidade de apresentar o

espetáculo “Papaieta Poliglota” deveria comunicar Contin e Merisi para obter a aprovação de

ambos. Desse modo, era claro para mim que estavam colocando o espetáculo “Papaietta

Poliglota” sob os domínios da Scuola Sperimentale dell’Attore, o que é totalmente cabível e

legal já que a direção do espetáculo pertence a Contin e a supervisão geral à Merisi.

Este seria o caminho a ser percorrido, e foi. Porém, quando surgiram duas

oportunidades de apresentar “Papaietta Poliglota” em Salvador (na sede da Dante Alighieri e

na Escola de Teatro da UFBA), duas vezes pedi autorização a Merisi, duas vezes me foi

negada a apresentação de “Papaieta Poliglota” e duas vezes apresentei, no lugar do referido

espetáculo, a cena “Alla ricerca di un Zanni”. Então, para mim, ficou claro que “Papaietta

                                                            10 Contin utiliza uma maquiagem sob a máscara por algumas razões, para tornar a máscara mais homogênea ao corpo do ator, para salientar características grotescas e animalescas e para lembrar/homenagear o teatro de bonecos, teatro que “salvaguardou” muito das características das máscaras e roteiros da commedia dell’arte, quando esta quase desapareceu, após seu apogeu no renascimento. Para outras informações sobre esta maquiagem, ler “CONTIN, Claudia. Gli Abitanti di Arlecchinia. Favole didattiche sull’arte dell’attore. Pasian di Prato (UD) /IT: Campanotto Editore. 1999. Pp.161-167. Esta maquiagem pode ser vista, também, no DVD que acompanha esta tese. MENU. 3 – TRUCO SOTTO MASCHERA – fotos. 

 

 

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Poliglota” fazia parte dos domínios da Scuola Sperimentale dell’Attore, o que é muito justo,

já que foi criado e ensaiado na Scuola e com uma parceria colaborativa do interesse dos três

maiores envolvidos no projeto de montagem do espetáculo (Claudia Contin, Ferrucio Merisi e

Joice Aglae Brondani).

Contin e Merisi cederam algumas fotografias do espetáculo “Papaietta Poliglota”,

porém, somente das máscaras femininas. Algumas delas podem ser vistas ao longo do corpo

do texto, as outras estão no DVD que acompanha esta tese; MENU. 4. TRANSDUÇÃO

CALEIDOSCÓPICA: 4.3 - PAPAIETTA POLIGLOTA – fotos.

Permanece o agradecimento incontestável à colaboração de Contin e Merisi, grandes

mestres na arte das máscaras dell’arte e inesquecíveis em sua qualidade, empenho e atenção.

Mas não poderia ficar na perspectiva de total submissão, sem autonomia para apresentar um

espetáculo que teve iniciativa dentro desta pesquisa de doutorado, tendo como dever primeiro

a lealdade aos objetivos desta e seu cumprimento perante os órgãos que primeiro acolheram e

subvencionaram (CNPQ – PPGAC\UFBA) tal estudo.

Por isso, quando estive na Scuola Sperimentale dell’Attore para um novo período de

relações, o espetáculo “Papaietta Poliglota” passou, efetivamente, a ser patrimônio da Scuola

Sperimentale dell’Attore. Para a tese, construí outro espetáculo solo, na verdade, trata-se de

uma Aula-Espetáculo, intitulada “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”.

“TRANSDUÇÕES CALEIDOSCÓPICAS E IMAGINAÇÕES”

Este espetáculo tem como objetivo ser uma das resultantes do processo de acesso e

apropriação das máscaras dell’arte – especificamente, as continianas - que apresento nesta

tese. É um processo muito específico, o qual se conecta com os Bufões e com as práticas

espetaculares populares brasileiras com uma liquidez subterrânea e rizomática.

Como este espetáculo sempre esteve nos objetivos desta tese, quando Contin e Merisi

começaram a trabalhar comigo “Papaietta Poliglota”, ele já estava sendo encaminhado por

conta das experiências que fui acumulando. Quando “atraquei” na Scuola Sperimentale

dell’Attore, os trabalhos com as técnicas de Bufão e de translocação caleidoscópica já tinham

acontecido e o vislumbre da técnica de transdução, também. O porto de Pordenone foi parada

obrigatória para a técnica de transdução ganhar força, consistência e maior riqueza, graças aos

respeitáveis mestres que ali encontrei.

 

 

290

O espetáculo “Transduções Caleidoscópicas e Imaginações”, mais do que um objetivo

a ser cumprido, mais que um resultado probatório e positivo deste possível acesso que

proponho, é um modo de agradecer a todos os mestres que descobri no decorrer deste

transcurso. Mestres, populares e acadêmicos, nominados e anônimos, que se mostraram

generosos na arte de ensinar o seu conhecimento.

“Transduções Caleidoscópicas e Imaginações” tem um roteiro simples, uma sucessão

de explicações sobre a máscaras dell’arte e de cenas com estas. As máscaras não possuem

uma relação entre si, pois foram organizadas de modo a auxiliar a dinâmica da aula-

espetáculo, principalmente, com a questão das trocas de figurinos. A compilação dos textos

que compõem as cenas das máscaras é bem abrangente. Textos que foram entregues aos

alunos do Arlecchino Errante Invernale (a todos os alunos, não somente a mim); textos de

autoria própria; adaptações de textos documentais trazidos por Tessari; textos de Goldoni;

textos e canções populares de domínio público. Também aqui, fala-se em italiano

macarrônico e a tradução não seria o recurso ideal. Então, segue-se apresentando o resumo da

situação das cenas que compõem o espetáculo.

No palco, estão, ao fundo, à esquerda, uma pequena mesa com as máscaras do

Arlecchino, Capitano, Pantalone, os objetos utilizados por estas e os da Cortigiana. Do lado

direito do palco, tem uma arara com os figurinos. Como sonoplastia de fundo, um samba

(instrumental).

Tudo escuro, eu me encontro fora de cena. Ouve-se uma voz chamando o Zanni e,

logo depois, a resposta. Entro como Zanni, correndo - a música baixa quando paro de correr.

Respondo ao chamado do meu “padrum” e percebendo que ninguém responde a minha

reverência, começo a procurar o “padrum”. Quando descubro que tem muita gente e muita

jovem bonita, deduzo, então, que meu “padrum” está correndo atrás de alguma jovenzinha.

Deduzo, também, que se tem gente, deve ter uma dispensa com comida para todos que estão

ali e tenho a ideia de procurá-la. Quando lembro que tenho que procurar meu “padrum”, então

a dúvida permanece, até que decido continuar procurando meu “padrum”.

- Zanni “Eccomi qua Padrum! Pota! Padrum? Padrum? Ma!? Dov’é mi padrum? Mi son venu con lui in carneval di Brasile e lui... sparisce!!! Ma varda quanta zente!!! E tante Jovenzin... Allora mi padrum é andato dietro a qualche jovensin. E si! E.... Ma varda te dove mi son capitat!!!.... Immagina voi la mesura xè la dispensa per tutti quanti qui! Mi tocca sgovelzer... mi toca cercare... mi toca procurar...

 

 

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Ma ... il padrun .. o la dispensa! Il padrun..... la dispensa... il padrun... la dispensa... il padrun..... la dispensa... il padrun! (trasformano in samba, maculelê ed altre danze) Il Padrun....sempre mi Padrum ! Poreto del Zanni!..Arrivo Padrun! (esce di scena)11.

Retorno à cena sem a máscara. Falo sobre a máscara do Zanni, mostro/falo como é

possível sustentar e dar vida à máscara através das práticas espetaculares populares

brasileiras.

Falo da técnica de translocação caleidoscópica e mostro a cena “Alla Ricerca di un

Zanni”:

Eccomi qua! In questo mondo ci sono di storie ... credi che una moglie vuol benedire il suo can, per veder se l’animale non muore.... Beh, dico cosi perché non so come è questa zente, ma non c’è niente di strano. Io stesso ho avuto un cavallo benedetto. Io ho avuto davvero un cavallo benedetto, cosa posso farci? Vuoi che menta? Vuoi che dica che non l’ho avuto... Non ha fidúcia? Beh! Il signore Antonio Martino è qua? Lui può provare quello che dico... È vero... il signore Antonio Martino è morto tre anni fa... Ma era vivo quando ho avuto la bestia! ... Ho avuto la bestia è modo di dire, è! Non è che io sono stato a partorire il cavallo... no, io no. Ma dal modo in cui vanno le cose, mmh... Io non mi stupisco più di niente. Nella settimana passadta una Donna ne ha avuto uno, nella sierra di Araripe, dalle parti di Cearà... Ma vi racconto come è andata con il mio cavallo. Ecco, è stata una vecchia che me l’ha venduto a basso prezzo, né mio figlio. Perché cambiava casa, né. Mi raccomandò di avere molta cura di lui... perché era un cavallo benedetto, né mio figlio!? E doveva essere davvero perché io un cavallo così buono non l’avevo mai visto. Una volta abbiamo corso dietro una vitella dalle sei del matuttino as seis della sera senza mai fermarci, io a cavalo lui a piedi. Sono riuscito a prendere la vitella che era già notte. Quando ho finito il lavoro mi sono guardato attorno... non conoscevo il posto dove eravamo. Allora ho preso una vara che era lì e via, per lo camino, frustando il bue... Sì, erano un bue e una vitella ed io correvo dietro a tutte le due in una volta e essi... essi correvano insieme per tempo senza separarsi.. come mai questo è successo, non lo so! So soltanto che è stato così. Io poi sono uscito da Paraíba spingendo bue e vitella .... improvvisamente ho avvistato una città, ho chiesto ad un ome dov’ero e lui... lui mi disse che ero a Sergipe... Sì... Io ero corso fin là con il mio cavallo! Segno che era benedetto o no! Mah, come ho attraversato il fiume San Francisco, non lo so! So soltanto che è stato così! Può darsi che in quello momento il rio fosse secco... Perché non mi ricordo di averlo attraversato... Cane benedetto, cavallo benedetto sono tutte cose che io ho già visto ... io non mi stupisco più di niente... Ma vedi... a questo punto, credo che il can della donna sia morto...Sì... è compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del nostro destino sulla terra, con quel fatto senza spiegazioni che uguaglia tutto ciò che vive in un sol gruppo di condanati, perché tutto ciò che vive muore! “Tutto ciò che vive muore!” Bello! Questo ho sentito dire da un parroco, nel giorno in cui il mio Pirarucu è morto. Mio è modo di dire, ãh!? Perché per dire la verità, penso che ero io che ero suo... Fu quando ero in Amazzonia. Avevo legato una

                                                            11 A dramaturgia foi criada a partir das improvisações e laboratórios em grupo, durante o Arlecchino Errante 2008, laboratórios individuais e trabalho com a professora Veronca Rizatti, durante estágio na Scuola Sperimentale dell’Attore. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. Localização: MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.1 – ZANNI: 4.1.3 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – clip. 4.1.4 – LE AVVENTURE DI ZAN PIEDINI – cena. 

 

 

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corda all’arpione, la corda dell’arpione attorno al mio corpo tanto non poter muovere le braccia. Quando ho afferrato il pesce, lui mi ha datto uno stattone così forte, che mi sono cadutto nel rio... È proprio così, il pesce mi ha pescato e, per farla corta, mi ha trascinato lungo il fiume per tre giorni e tre notti... e io... io non sentivo fame... no... ma una dannata voglia di fumare, si...! Quello che è più buffo è che lui mi ha lasciato prima di morire, proprio all’entrata di un citadina, in modo che io mi potessi salvare. Il giorno dopo ci fu il suo funerale e io non ho più dimenticato quello che il prete disse na bera da fossa... Ma, non me ricordo però come ho fatto per salvarmi... Ah sí, ho alzato un braccio, finché una lavandera mi ha avvistato e cosí son corsi a liberarmi. É é é... Si... è vero che stavo con le braccia legate... ma, nell’ora del bisogno c’è un rimedio per tutto. Come sono stato salvo... Non lo so! So soltanto che è stato così! E poi... Io non mi stupisco più di niente... Ad esempio di fantasmi di cane. Esistono, esistono... io ne ho già incontrato uno. Là dove passa il Rio Cosme Pinto. Mi avevano detto che là si vedono di fantasmi, ma non sapevo si trattasse di fantasmi di cane. Beh, se sia posto di fantasmi non lo so, so che quando stavo attraversando il fiume mi è caduta nell’acqua una moeda da diez. Io stavo lì con il mio cane ... e davo già persa a moneta. Quando ho visto che lui, il cane, stava confabulando con un altro. All’improvviso si tuffa e mi raporta i soldi! Vado a verificare e trovo solo duas de cinco. Ma, forse le alme do lado di lá hanno trocado? Non lo so! So soltanto che è stato così! Ma queste cose dell’ aldilà poi... Una volta un grande amico... Povero João, Povero Giovanni, Poreto Zanni... così giallo, così svergognato... è stato morto... Ha compiuto il suo destino e si è incontrato con l’unico male irrimediabile che è il marchio del nostro strano cammino sulla terra, quel fatto senza spiegazioni che uguaglia tutto ciò che vive in un sol mazzo di condannati, perché tutto ciò che vive muore! ... É morto davanti a me da un Cangaceiro... una morte tragica... Io, dopo piangere tantissimo, sono stato in chiesa a pregare per l’anima di João, il Zanni più intelligente del mondo, e poi l’ho portato in maca all cimiterio, per il funerale...lui però era venuto così pesante che mi sono fermato per riposarmi un po’... in questo momento lui ha cominciato a parlare con me... Madonna mia! Volevo scappare ma avevo l’impressione di aver perso le gambe, e poi non era mica fantasma, era proprio lui...risuscitato grazie alla Madonna... Sì, proprio lei... la Compassionevole... Credo ... però... non lo so! So soltanto che è stato così! E poi dal modo in cui vanno le cose ... io non mi stupisco più di niente... di niente!12

Após mostrar a cena com a técnica de translocação caleidoscópica, continuo a falar do

universo dos servos dentro da Commedia dell’Arte e realizo uma breve explanação do que é a

máscara do Arlecchino, mostrando a sua máscara física e falando das células das práticas

espetaculares populares brasileiras que utilizo para acessar e dar vida a esta. Passo então à

demonstração da máscara do Arlecchino.

A cena da máscara do Arlecchino é, na verdade, uma “adaptação resumida” da cena

“A Oração” de Murcia. Arlecchino fala com os homens sobre o rumo que o mundo tomou e,

rapidamente, comenta com Deus e com o Diabo sobre o Homem, mas acaba indo embora,

pois o Ser Humano não é um problema dele.

                                                            12 Como já foi dito anteriormente, a dramaturgia é uma livre adaptação da tradução de “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna, realizada por L. Lotti: Guaraldi, 1992. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 2 - TRANSLOCAÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 2.2 - ALLA RICERCA DI UM ZANNI – clip. 2.3 – ALLA RICERCA DI N ZANNI – cena.  

 

 

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Bom giorno a chi é di buon giorno, buona sera a chi é di buona sera, bom dia e boa noite, bonjour e bon soireé, good night... gothen narthene... bien - avete capito.. Mi hano inviato per favelare a voi di come siete arrivati in questo casino.. e beh... vediamo cosa quelli mi hanno combinato.... ..... ok – allora, tutto a cominciato cosí All’inio era solo il buio, as trevas profundas e doppo é stato creato la luce e..... mhmmmm non me piase proprio questo inizio.... leggiamo un può di più ... veddiamo... dia quatro... girno cinque.... giorno sei.... mmm... anoiante, da vero entediante... allora... ricomincio al mio modo... aaaahahahahah! Tutto ha cominciato con una grande splozione... CABRUM, ZIRIGUIDUM, PRACATUM PRACATUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, PRACATUM, PRACATUM, ZIRIGUIDUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, BUUUMMMMM! E doppo questa poetica splosione la vita ha cominciato e cosí si sono rincontrati una celula, altra celula e altra e altra e altre e é stato creato l’essere humano... é vero... mi dispiace, ma voi seres humanos, non são grande roba... un incontro di celule e basta.... Ha! Ma quello che é piu buffo é che é stato messo in voi, un cervello... CABRUM, ZIRIGUIDUM, PRACATUM PRACATUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, PRACATUM, PRACATUM, ZIRIGUIDUM, ZIRIGUIDUM BALACOBACO, BUUUMMMMM! gnagnagnagna gna Vi spiego... un cerebro é una macchina di ragionamento e raciocinio... .... E loro due hanno messo questa machiana in voi pensando che... eravate inteligente e cosí, il mondo sarebbe bien condoto da voi... e loro avrebbero le vacanze... férias per tutta l’eternitá.... gnagnagnagna gna.... hahahahaha.. che muoio da ridere... hahahahha.... Avete capito..... non... mmm ... scusatemi, ritorno súbito. Toc toc! Ma, voi due... avete visto, la macchina non funziona e... beh - non c’é niente da fare! Problema vostro... io me ne vado... Ha, siete ancora li... vi spiego il divertento é che loro non volevano più lavorare e voi date tanto da fare... che loro non hanno ne mesmo o domingo di pausa.. gnagnagnagna gna che merda hanno fato.... e che merda avete fato del mondo... loro... lavorano come bestie. Beh.... non é problema mio... io hehe, me ne vado... me ne vado, me ne vado, me ne vado.. FUI!!! 13

Após a cena do Arlecchino, começo a falar sobre a máscara do Capitano, um pouco de

seu caráter e ação. Mostro, então, os códigos das manifestações espetaculares populares

brasileiras que são necessários para se apropriar e dar vida a esta máscara.

A cena do Capitano é uma adaptação de um texto que trabalhei no Arlecchino Errante

Invernale (janeiro de 2009), este faz parte do acervo da Scuola Sperimentale dell’Attore,

porém, Ferruccio Merisi entregou a todos do workshop uma cópia dos textos trabalhados,

liberando o uso destes pelos alunos.

A ação da cena, contudo, teve adaptações, já que tive de reduzir o discurso do

Capitano, diminuindo suas elucubrações fantasiosas sobre sua valentia e poder, mas mantendo

um pouco de seu característico exagero na sua autodescrição.

                                                            13 O texto é de minha criação, inspirada na cena de Murcia e em improvisações realizadas em laboratórios individuais na Scuola Serimentale dell’Attore. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.6 – ARLECCHINO: 4.6.3 – ARLECCHINO – clip. 4.6.4 – ARLECCHINO – cena.  

 

 

294

Na cena, como Capitano, descrevo como sou valente, minhas relações com o universo

demoníaco, minha valentia e minha beleza. Comento sobre o sucesso que faço com as

mulheres. Porém, dentro de meu discurso e faceta vangloriosos, algumas vezes, a porção

covarde “escapa” de meu controle, aparecendo diante do público, embora sempre me

recomponha, mostrando-me mais glorioso ainda.

Sou eu sou eu, sou o Capitão sou eu.. son Jo, son Jo, son Jo il capitan son Jo.... Ãh…. Quanta gente!! Quanta gente!!!! Soy il Capitan della vale moribunda! - ai Il demonico principe de las ordens eqüestres, figlo del terremoto, pariente della muerte e muy amico e confidente del gran diavolo dell’inferno.... Jo il grandissimo toreador, banderilhador, matador, ressussitador, domador, dominador y dondolador dell’Universo! Quando Jo nasci, Marte me entro ne los ombros, Ercules nel brasso dereccio, Sansão nel sinistro, Atlas em lãs piernas, Mercurio en la cabeza, Vênus en los ojos, Cupido nel corazon e Jupiter em todo el cuerpo... E por isso me siento Muito, muito, muy... povoado por dentro! ( isso pode pegar mal) Quando camino ago tremar la Tierra, el céu si espanta, las plantas si secam, las mujeres desmaian e los hombres... solo al mirarmi escominciam a escavar las suas proprias sepulturas..... Ma vós, Señora, Patrona mia, non temais jamais destas meraviglas.... perche in vostra presenza Jo controleró tutta la mia folgorante terrabilita, tutta la mia terrible folgarantitá.... Jo, valente e animoso, si orrendo y spaventoso, pur caliente e sospiroso, me faró por vós pecheño, piccinino, morbidetto e agnellino .. come piace a te - mio tesor! Percché.. son jo.. son jo, son jo , son jo il Capitan son jo…14

Afirmo que com Capitano adentrou-se em um outro mundo, não mais dos servos ou

dos nobres, mas aquele das máscaras que querem ou conseguem aproximar-se dos nobres,

cujas origens populares continuam escapando nas suas ações. Como Pantalone, máscara que

dá continuação ao espetáculo. Falo sobre Pantalone, sua máscara física e características, para,

então, falar das células das práticas espetaculares populares brasileiras que utilizo para me

apropriar e dar vida a esta máscara.

O discurso de Pantalone segue o seu tema principal: o amor pelas jovens. Como

Pantalone, começo cantando que sou o “dono do espaço” (son il Patrun), mas, depois,

confesso que sou “o dono”, embora a “Clariceta” seja a minha dona. Falo um pouco de nosso

relacionamento, queixo-me da falta de atenção da minha amada e termino a cena

“encontrando” o caminho para o coração das “jovens”: o ouro!

                                                            14 A dramaturgia é uma livre adaptação do texto trabalhado no Arlecchino Errante Invernale\2009, cedido, por Merisi e Contin, aos alunos daquele workshop. A cena foi trabalhada por mim e supervisionada por Contin e Merisi durante o evento. É possível ver o clip da cena, ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.5 – CAPITANO: 4.5.3 – CAPITANO – clip. 4.5.4 – CAPITANO – cena. 

 

 

295

Aqui, utilizo um pedaço do poema que é utilizado no espetáculo “Papaietta Poliglota”,

de domínio popular.

Reafirmo, na minha saída, que o grande problema é que sou sempre “mal”

compreendido pelas mulheres.

Poreto Pantalon sfortunao. Oooohhhhh! Che bella cosa.... che bella cosa Poter mirar, le galanterie d’una bella zovina... E che comand é me che E che ghe la mi ca che O sa í che a e che e che O sa í che a e che e che E che comand é me che E che ghe la mi ca che O sa í che a e che e che Son il padrum... E sí.. mi son il padrum ma la Clariceta é la padrona del padrum... O poreto Pantalon sfortunao... Che la Clariceta no’ la me consola e no’ la me comprende, ma anzi, la se burletta de mi e la se difende. So bem parche la gha cosi tanta soperbia! Parche la xé bella e zovene, e mi son vecchio e debole, e de natura docile... La fa la serva a tutti, ma quando che passo mi la se sdrizza tutta Con brutt’occhio e naso alzao La fa cussi parche la sa che son innamorao Oh le done.... é si... ghe vo l’oro con le done Ostrega... ostrega!? L’oro xé dell’amor La necessaria scorta Con la chiave d’oro Si apri ogni porta Ma poi... l’amor si fa da tirano E grazie non fa che non ritornano in dano... le done e l’oro quanto ne combinano no no no ... no cussi non va il vecchio Pantalon é sempre ma cciapa... no no no ... no cussi non va il vecchio Pantalon ormai é sempre ma cciapa...15

Com a máscara do Pantalone, termino a parte das máscaras masculinas da aula-

espetáculo. Começo, então, a apresentação das máscaras femininas.

Começo falando da máscara da cena que será apresentada em seguida: a Cortigiana.

Para falar da Cortigiana devo mostrar as duas facetas que a constituem: uma nobre, Nobile; e

outra servil, a Servetta. Para que o público entenda a complexidade da máscara da Cortigiana,

apresento as características e máscaras físicas das duas facetas que a formam. Primeiro falo da

Servetta, suas características, sua máscara física e dos códigos das práticas espetaculares

populares que utilizo para dar vida e apropriar-me desta. Depois, falo da Nobile, seguindo a

                                                            15 O texto é uma livre adaptação, feita por mim, de um monólogo de Pantalone extraído da peça “Bancarrota” de Goldoni, com o acréscimo de músicas populares italianas, em dialeto bergamasco e friulano\veneto. É possível ver o clip da cena ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.4 - PANTALONE: 4.4.3 – PANTALONE – clip. 4.4.4 – PANTALONE – cena.  

 

 

296

mesma ordem explicativa. Após falar e mostrar as duas máscaras dell’arte que formam a

máscara da Cortigiana, mostro como elas se fundem através da cena.

O texto da cena que o público assiste foi criado a partir de cartas que comentam o

teatro que se apresentava como “commedia dell’arte” e como são as mulheres que realizam

este gênero de teatro. Os trechos foram extraídos do livro de Roberto Tessari “Commedia

dell’Arte: La Maschera e l’Ombra” (1981), que, para a cena, sofreram adaptações. A segunda

parte da cena é o texto que Contin e Merisi ocuparam, também, no espetáculo “Né Serva, Né

Padrona” e, posteriormente, integraram ao espetáculo “Papaietta Poliglota”. Como dito

anteriormente, é um texto extraído de um documento muito antigo, escrito por Perrucci e

divulgado por Tessari, desse modo, não faz parte do acervo da Scuola Sperimentale

dell’Attore e sim, já faz parte do domínio público. Por isso, decidi manter a cena nesta aula-

demonstração, porque é uma fala importante para o conhecimento da situação das atrizes da

commedia dell’arte.

Na cena, como Cortigiana, falo “Cos’é le donne e la Commedia dell’Arte”.

Si deve a storie come questa il fenômeno strano per cui la Commedia dell’Arte continua a vivere nell’immaginazione di oggi, senza appoggiarsi tanto a testi, né a una tradizione cosí vivente, ma solo a immagini e descrizioni. Il modo in cui essa soppravive nella tradizione del teatro moderno si intreccia e si sovvrappone alla sua storia. La Commedia dell’Arte , tradizione errante che girou pelo mundo é oscurta dalle leggende che si sono fissate e dai simboli che sono spuntati intorno ad essa. Dalla pura immagine, per exempio, di un teatro che nasconde e supera i suoi limiti, libero e chiuso dalla maschera. Perché pur essendone l’emblema la maschera spinge magia e religine nella commedia e, sul vulto dell’attore, una dimensione più ampia dell’umano16. Cosi com’é successo con il Zanni bergamasco, con l’Arlecchino diavoletto e .. le Donne...si le donne erano le streghe... oh le done.. le done. Oh, che gusto per una donna che si possa pregiare del grazioso titolo di Signora! Oh, che gusto per una donna... l’andar ad una gran città, si è, et esser tal volta incontrata da nobili cavalieri, con carruagens da 4 o da 6 posti. E vedersi condotta a preparate stanze, et ivi ricever subito regali, rinfreschi e petiscos per far banchetti lauti e deliziosi... Oh, che bella, anzi bellissima cosa, si è, ricevere onori grandi e gran presenti... e alla fine tenere speranza, per la notte, d’aver l’onore d’una nobilissima “consumazione”17. Come si favela della famosa Comica Isabella Andreini... e d’altre Comiche molto celebrate – come mi. Che bella cosa far la commediante, che bella cosa far la commediante, ma poi toca servire, ma poi toca servire, ma poi toca servire il mio padrone... (transformando a canção emsamba) MANDI... AXÉ A TUTTI!!! (fazendo um agradecimento e saíndo de cena)18

                                                            

16 Inspirado nos escritos de Tessari do livro Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra. Pp.15-61 17 Inspirado nas cartas do jesuíta Domenico Otteneli, do livro de Tessari Commedia dell’Arte: La Maschera e l’Ombra. P.22. 18 É possível ver o clip da cena ou a cena integral no DVD que acompanha a tese. MENU. 4. TRANSDUÇÃO CALEIDOSCÓPICA: 4.2 - SERVETTA\NOBILE\CORTIGIANA. 4.2.4 – COS’É “LE DONNE E LA COMMEDIA DELL’ARTE” – clip. 4.2.4 – COS’É “LE DONNE E LA COMMEDIA DELL’ARTE” – cena. 

 

 

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As luzes se apagam e saio de cena.

298

ANEXO A – IMAGENS GRÁFICAS

IMAGEM GRÁFICA nº1 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres. Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 59.

IMAGEM GRÁFICA nº2 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres. Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 63.

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IMAGEM GRÁFICA nº3 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres. Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 65.

IMAGEM GRÁFICA nº4 – extraída da obra: MARTIN, Serge. Le Fou Roi des théâtres. Saint-Jean-de-Védas : L’Entretemps éditions, 2003. p. 70.

 

300

ANEXO B – “ARLECCHINO E LA VALLE DELL’OMO ”

Fragmentos do Espetáculo “Arlecchino e la Valle dell’Omo”. Direção Geral: Ferruccio Merisi.

Texto e criação das Cenas do Bufão Murcia: Joice Aglae.

Data da apresentação do espetáculo: 26 � 06 � 2008

MURCIA E O VALE

Oração inicial (...)

Canto... inicial

All’ inizio era il buio... (cuspir fogo)

All’inizio era il Valle...

E il Valle fu il “Vale dell’Uomo”

(pegar a bandeja com as velas, tendo debaixo o pote com o sal)

4 miglioni d’anni fá.

Ascender 3 velas

Australopithecus…

Paranthropus…

Kenyanthropus…

Tutti e tre assai prolifici, padri di ben nove specie…

Acender 3 velas

Si dice oggi che eravate quasi scimmie

Eh, come se “scimmia” fosse “meno”…

Acender 2 velas

l’Uomo Abilis! e l’Uomo Rudolfensis

i primi a lavorare la pietra... grande passo avanti di civiltà...

(pegar a bacia com água)

due miglioni di anni fa!

E doppo,

Acender 2 velas

Homo Ergaster e Homo Erectus (duas pessoas sentadas juntas)

insieme, come allora: voi coabitavate

E tutto questa vita, ancora nel Vale dell’Omo, nella vostra Africa Orientale.

Pegar 2 velas

 

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Viva. (brinde)

I primi a dominare il fuocco (passar mãos sobre o fogo), Erectus e Ergaster,... e i primi a caminare

sopra due piedi (colocar velas no lugar) davvero grande passo avanti di civiltà !!!!!

Pegar 2 velas

Viva. (brinde)

Acender velas

Sempre voi. i primi a uscire dell’Africa... attraverso il Medio Oriente verso la vostra Europa e

poi l’Asia...

(pegar uma vela) Ed ecco l’Homo Sapiens”, beata gioventù, quindici o venti …centinaia di

migliaia di anni.

Ma dov’è Neandertal?! (olhar para as velas e para as pessoas) Neandertal!!!!... che dicono

giovane come voi. (pegar 3 velas e ascender – levar para os Zanni e Arlecchino)

Neandertal????!!!!

Si dice che Sapiens ha vinto…

Neandertal kaputt.

Neandertal era una specie diversa o era una tua sottospecie? (urinar o sal)

Cenas....

Sapiens (passe de cabeça com o sal), colui che ragiona, per questo ha vinto... dicono… (fazer

círculo pequeno ao redor da vela central)

Pegar as ervas - ma non è più così certo che sempre hanno vinto i migliori.

Così ormai in tutto l’Universo dei viventi, “evoluto” significa solo sopravvissuto alla sfida

con l’ambiente.... E il Caso e la Crudeltà spesso aiutano sopravvivere più del patrimonio

fisico, più della intelligenza, più della scienza.

E cosí dopo di tutti voi venne e fu Re il Sapiens.

Caminhada no círculo - Che ha ingrandito il Vale dell’Omo fino al Vale di Neander, fino a

tutta la Pianeta Terra e oltre.... Valle di sangue, Valle di lacrima…Ma, voi sapete cos’é un

vale? Un vale é un posto dove c’é vita… Dove c’è vita! Dov’è finita la vita?

Ritual do Sal - fazer o círculo com o sal, por trás do público

Sale: Petraia d’anime.

Nel maré si crea

Nel sole si fa in pietra

“Pietre, cantate i destini!”

Destino svilupasi nel tempo – grande giudice e consigliere

Destino/tempo trasformatore...

 

302

“Sale: petraia d’anime!”

Che alzasi in muri

Che fortifica e fa fortezza

Sale del mondo: in corpo, carne, sangue, lacrime e sudori

Sale della vita

Vita in camminata in questo mundo

dove trova nido nel cuore del roccaforte salina

Ritual das ervas

Essere di sale e vita...

Essere di sale e forza...

Proteto di qualsiasi male rinvigorasi

Nell’incontro con il vento

ritrova suo camino in aira e sabia – salnitro.

Nell’incontro con la pioggia

ritrova sua liquifazione

ed in tempesta di auguri

scapa al tuo destino mare

- salasso del mondo –

Riprende la tua vita acqua e

Ricomincia un nuovo ciclo...

(olhando a água) Sapiens Sapiens, dove tu sei?

Circundando a bacia com as ervas

All’inizio era il Valle... l’Uomo Sapiens Sapiens l’ha coperta, tutta, con il proprio sangue, il

proprio seme, le proprie creature, le proprie invenzioni… e anche con l’ombra di tutto

questo…

l’ombra…là dove il cervello non vuole andare, perché ha paura di non sopravvivere…

Olhando as imagens na água e girando com os dedos - L’ombra che ti fa egoista, che ti rende

schiavo del tuo oro, giallo o nero che sia, che ti rende schiavista verso i poveri, che ti fa usare

la religione come una assicurazione ben pagata, che ti fa usare il potere come una

religione…L’Ombra…L’ombra che come un’immondizia non riciclabile ha coperto tutto…

(olhando a água) Sapiens Sapiens, dove tu sei?

Nel Valle della Salvezza, dopo la morte?!?!? Davvero?

Hai fatto tutto quello che volevi e, nel Valle delle Ossa ti sei pentito in tempo e ora riposi

nella perfezione della Valle di Dio?!!!

 

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Scusate-mi... Scusate-mi... Scusate-mi... Scusate-mi

All’inizio era il Vale... adesso é il buio! (apaga a vela com a boca)

Canção –

PRIEGHERA

Donne-moi votre cerveau

Donne-moi votre cerveau brillant

en feu, en lumiére...

Dammi vostri cervelli

Dammi vostri cervelli luminosi

In luce, in fuoco, in brace, in cenere...

Dammi vostri cervelli in fuoco, in carbone...

Dammi vostri cervelli bruciato

In cenere e carbono

Dammi vostri cervelli bruciati di tanto pensare....

Di tanto pensare che pensa.

Io figlio del zolfo e del carbono, che digerisco l’indigesto ...

Senza renderti conto ti conosco all rovescio

“antropofagico” in natura,

Mangioti per fortificarmi... mangioti per fortificarti

Mangioti per fortificarmi... ti erutto per fortificarti...

Anche gli escrementi servono come concime...

E del concime puo revenire la vita... altra volta

Vita e morte - tutto si rincontra in me...

quello che é stato e quelo che sará...

Io, figlio del zolfo e del carbone...

Sputa in questa faccia che ti baccia!

(dançando)

Sputa in questa faccia che ti baccia!

Sputa in questa faccia che ti baccia!

Sputa in questa faccia che ti baccia!

Sputa in questa faccia che ti baccia!

(Parando de repente)

 

304

É sempre cosí... Ogni volte che vengo qui..

O é troppo presto o é troppo tardi...

oppure non parlo la lingua ...

(pega um celular)

Madre? Qui - terra, pronto al teletrasporto.

Salta no fosso.

  

305

ANEXO C – PUBLICIDADE 1

Publicidades (Web) do Curso “VIVA! Danzare per vivere” (de 16 a 22\junho\2008) e do Evento “ARREIA” (23\junho\2008), expedido pela Scuola Sperimentale dell’Attore.

  

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ANEXO D – PUBLICIDADE 2

Matérias de publicidade do espetáculo, divulgado nos jornais da região, na época.

  

 

 

 

 

308  

  308

ANEXO E – PUBLICIDADE 3

 

309

ANEXO F – CARTAZ 1

 

  

310

ANEXO G – PROGRAMA 1

  

311

ANEXO H- PROGRAMA 2

Toda a programação pode ser acessada, em detalhes, no site do festival: www.arlecchinoerrante.com

 

 

 

  www.arlecchinoerrante.com 

 

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ANEXO I – “L´ARLECCHINO ERRANTE”

Espetáculo: “The Holy Fool”

Data: 212008ߎ 009 ߎ

  

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ANEXO J – IMAGENS “ALLA RICERCA DI UN ZANNI”

Mascara física continiana do Brighella

Desenho de Alice Mosanghini, a partir da imagem da atriz

Veronica Risatti

As imagens abaixo são da cena “Alla ricerca di un Zanni”

(Adaptação DireçãoߎInterpretação: Joice Aglae), construída com

a técnica de translocação caleidoscópica. A partir do desenho ao

lado e da comparação deste com as imagens abaixo, pode-se

perceber semelhanças do mesmo com as imagens criadas a

partir da técnica citada, com isso, pode-se pensar que a técnica

de transdução caleidoscópica também pode ser utilizada para a máscara dell’arte do

Brighella.

Fotos: Léo Azevedo

Outubro2009ߎ

 

 

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ANEXO L – DVD

Foto: Verônica Rizatti