Jean-Pierre Vernant (Fronteiras do Mito) e Richard Hingley (Concepções de Roma)

72
1 Textos Didáticos IFCH/UNICAMP 2005 Segunda Edição revista e ampliada Fronteiras do Mito Jean-Pierre Vernant Concepções de Roma: uma perspectiva inglesa Richard Hingley As formas do discurso historiográfico Pedro Paulo A. Funari A morte heróica entre os gregos Jean-Pierre Vernant Apresentação Pedro Paulo A. Funari 1 O estudo da Antigüidade, no Brasil, tem sido facilitado, nos últimos anos, pela publicação, de forma cada mais intensa, de documentos antigos, assim como de livros e artigos científicos. Traduzem-se livros de autores estrangeiros e a produção nacional cresce de maneira notável, com compêndios e obras especializadas publicadas tanto em editoras comerciais como acadêmicas. Os alunos de graduação, portanto, nunca tiveram acesso a tanta bibliografia em vernáculo, o que atesta o amadurecimento dos 1 Professor Titular do Departamento de História, IFCH-UNICAMP, C.Postal 6110, Campinas, SP, 13081-970, [email protected].

Transcript of Jean-Pierre Vernant (Fronteiras do Mito) e Richard Hingley (Concepções de Roma)

1

Textos Didáticos IFCH/UNICAMP 2005

Segunda Edição revista e ampliada

Fronteiras do Mito

Jean-Pierre Vernant

Concepções de Roma: uma perspectiva inglesa

Richard Hingley

As formas do discurso historiográfico

Pedro Paulo A. Funari

A morte heróica entre os gregos

Jean-Pierre Vernant

Apresentação

Pedro Paulo A. Funari1

O estudo da Antigüidade, no Brasil, tem sido facilitado, nos últimos anos, pela

publicação, de forma cada mais intensa, de documentos antigos, assim como de livros

e artigos científicos. Traduzem-se livros de autores estrangeiros e a produção nacional

cresce de maneira notável, com compêndios e obras especializadas publicadas tanto

em editoras comerciais como acadêmicas. Os alunos de graduação, portanto, nunca

tiveram acesso a tanta bibliografia em vernáculo, o que atesta o amadurecimento dos

1 Professor Titular do Departamento de História, IFCH-UNICAMP, C.Postal 6110, Campinas, SP, 13081-970,

[email protected].

2

estudos sobre o mundo antigo em nosso país. Neste contexto, a História cultural,

em geral, e o estudo da História da própria ciência sobre o mundo antigo constituem

campos de particular interesse e florescimento no âmbito internacional e no Brasil. Não

são tão numerosos, contudo, os estudos específicos nesses campos publicados em

português, até porque essa é uma produção recente. A publicação dos dois textos

seminais de Vernant e Hingley, traduzidos ao português e para o uso na Graduação,

levou a que a primeira edição logo se esgotasse. O primeiro deles um texto, inédito em

vernáculo, do helenista Jean-Pierre Vernant, sobre um tema importante da Histórica

cultural, enquanto Richard Hingley, estudioso britânico, produziu, especialmente para

este volume, um texto sobre a construção historiográfica inglesa do mundo romano, em

uma análise original e crítica da historiografia sobre a Antigüidade romana. A

publicação deste volume permitiu, pois, aos alunos de graduação, um acesso

excepcional ao que de mais original se tem produzido sobre a Antigüidade. Para esta

segunda edição, por sugestão de alunos e colegas, incluímos dois novos estudos, a

começar por um ensaio sobre as formas do discurso historiográfico, resultado de aulas

ministradas sobre tema sugerido por Janice Theodoro da Silva. Trata-se, pois, de

anotações ou apontamentos que serviram de base para as reflexões desenvolvidas em

sala de aula e mantém, nesta publicação, o caráter ensaístico que está em sua origem.

Em seguida, apresentamos outro texto de Jean-Pierre Vernant, inédito em vernáculo,

sobre a morte heróica entre os gregos, estudo que condensa, de forma notável, as

reflexões do helenista francês sobre um dos aspectos mais debatidos da Antigüidade

grega, a morte.

3

Apresentação,

por Renata Cardoso Beleboni

Professor honorário do Collége de France, Jean-Pierre Vernant procurou, ao

longo de mais de cinqüenta anos de pesquisa, compreender a história interior do

homem grego. Uma de suas maiores contribuições ao estudo da Grécia Antiga foi seu

estudo sobre o mito. Para o autor, o lugar do mito está reservado na história mental e

social do homem grego, portanto, o mito, ou em seu conjunto, a mitologia, é

compreendida como um traço desta civilização. O que foi considerado absurdo, em

Vernant torna-se um desafio. O mito deixa de ser interpretado como um pensamento

irracional e passa a ser entendido como um modo de expressão ligado a uma forma

precisa de civilização, a um tipo de crença religiosa. O distanciamento entre mythos e

logos não é mais visto como necessidade inerente da língua, mas como resultado de

transformações mentais. As incoerências do mito não são criticadas por Vernant, mas

são compreendidas como uma forma particular de explicação dos fatos. Seus

argumentos acerca do mito e da cultura grega, em geral, podem ser encontrados nos

mais de vinte livros publicados por ele, alguns em parceria com Pierre Vidal-Naquet,

Marcel Detienne e com Françoise Frontisi-Ducroix. Dentre eles destacamos As

Origens do Pensamento Grego, Mito e Pensamento Entre os Gregos, Mito e

Religião na Grécia Antiga, Mito e Sociedade e Mito e Política, traduzido

recentemente. O texto que se segue abaixo é um belo estudo onde expõe as diferentes

interpretações a que foi submetido o mito no decorrer da História.

.

4

Fronteiras do Mito

Jean-Pierre Vernant – Collége de France2

Tradução: Renata Cardoso Beleboni*

Revisão: Pedro Paulo A. Funari

O que sentimos, exatamente, no espírito, quando nos falam hoje de mito

grego? A resposta não é simples nem fácil. Certamente a palavra "mito" da qual nos

servimos, é de boa cepa helênica. Mas no curso da Antigüidade, o sentido de muthos

teria variado muito sem que nenhum dentre eles, em nenhum momento, tenha

inteiramente coincidido com o que, no uso moderno, se designa correntemente por este

termo. Um mito, para nós, é um relato tradicional suficientemente importante para ser

conservado e transmitido de geração em geração no interior de uma cultura, e que

relata as ações de deuses, de heróis ou seres lendários cuja ação situa-se num outro

tempo que não nosso, no "tempo antigo", um passado diferente daquele que trata a

pesquisa histórica. Teríamos, portanto, relação com um tipo de narração cuja

especificidade tenderia para a dimensão mais humana dos personagens colocados em

cena e ao caráter sempre mais ou menos maravilhoso de aventuras que escapam, por

definição, às dificuldades da verossimilhança comum.

Pode-se, assim, aproximar o mundo das lendas gregas, de uma parte, aos

textos sagrados das grandes civilizações do Oriente-Próximo antigo e da Índia védica,

de outra parte, dos relatos tradicionais que os etnólogos recolhem entre os povos sem

escrita. Daí a estabelecer a existência de um "pensamento mítico" constituindo, na

história da humanidade, um estado primitivo, igualmente distante do espírito dos

2 Vernant, Jean-Pierre. "Frontières du Mythe". In. VERNANT, Jean-Pierre et GERGOUD, Stella (Dir.) Mythes

Grecs au Figuré de l'Antiquité au Baroque. Paris: Gallimard, coll. "Le Temps des Images", 1996, pp. 25-42. * Mestra, doutoranda do IFCH/UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari. Prof. do Programa de Estágio Docente - UNICAMP. Prof. de História Antiga - FESB - Bragança Paulista.

5

autênticos religiosos monoteístas e dos meios da razão científica, haveria uma

distância: os especialistas do século XIX superaram, felizmente, seguindo sobre este

ponto pela opinião comum. Este esquema evolucionista relega o mito ao fundo de seu

gueto, realizando uma etapa que é necessário superar, para entregar ao religioso, sua

verdadeira face, purificado do mágico, das superstições, da idolatria e para isentar o

pensamento da mentalidade pré-lógica na qual ele estaria inicialmente engajado. Esta

concepção foi vigorosamente atacada por toda uma série de abordagens novas que

conduziram a colocar, em outros termos, os problemas do mito. Comecemos pelos

historiadores das religiões. Eles mostraram que todo sistema religioso comporta

diversos aspectos, por vezes, distintos e interdependentes. Primeiramente, o que se

faz: os atos, os gestos rituais, o conjunto das práticas constitutivas do culto; em

seguida, o que se apresenta à vista: os fatos de figuração que conferem às divindades

um lugar, uma categoria, uma figura visível, quer se trate de imagens ou de formas

anicônicas; enfim, o que é dito: palavras pronunciadas, invocações, preces, hinos,

discursos sagrados relacionados às potências do além e exprimindo a natureza, as

funções, as transformações, os relacionamentos mútuos, as relações com os humanos

pelos meios de que dispõe a linguagem. O mito delineia-se, não mais como uma etapa

completa que deixaria somente aqui ou ali alguns vestígios, mas como uma das facetas

da experiência religiosa, sua parte verbal associada à suas dimensões rituais e

figuradas. A questão é, não definir por ausência e defeito: irracional, ilógico, irreal e

infantil. O problema é, ao contrário, de lhe encontrar um sentido ou antes, de tornar

possível reconhecer as significações às quais ele é autenticamente portador. Neste

sentido dois tipos de interpretação foram propostas. Primeiramente uma leitura

"alegórica" que os Gregos muito cedo praticaram. Trata-se de substituir tal texto como

se apresenta na sua literalidade, por uma tradução que faça desaparecer as

inverosimilhanças, as anomalias, o fantástico. Decifra-se o relato das aventuras divinas

ou heróicas transpondo os acontecimentos relatados do plano lendário onde se situam

para um registro de fatos diferentes dos quais seriam a expressão simbólica. Quando

coloca em cena Zeus, Hera, Hefaístos, Atena, Afrodite, Apolo, Héracles, Dioniso, o mito

falaria da realidade, envolvendo-os de segredo, de forças e da natureza, de noções

6

morais, de asserções filosóficas ou de acontecimentos pertencentes à vida de

personagens humanos de antigamente. Para restituir sua verdade, o mito deveria,

portanto, parar de ser ele mesmo e manifestar-se, sob seu disfarce fabuloso,

conhecimento da natureza, ética, filosofia, saber histórico.

É Schelling que, contrário a esta versão alegórica, o que ele chama o "caráter

tautegórigo" do mito, inaugurou uma abordagem nova que os especialistas modernos

explicaram. O mito não diz "outra coisa", ele não tem outro sentido que este que ele diz

e que não se poderia exprimir em outra linguagem que não a sua. Seu silêncio só

reside nele mesmo, na sua forma narrativa. É na sua composição interna, no

desenvolvimento do relato, na ordem articulada das seqüências, nas suas homologias

ou oposições, nas funções dos diversos atuantes, na natureza das ações onde estão

os iniciadores ou as vítimas, que é preciso pesquisá-lo.

Historiadores das religiões, antropólogos, lingüistas estão hoje de acordo

sobre a maneira de compreender os relatos, sobre os procedimentos de deciframento a

lhe aplicar. Mas, ainda deve-se distinguir duas orientações diferentes segundo a qual

segue Georges Dumézil que os trata como mensagens que transmitem senão um

ensinamento do meio, o que este autor entende por ideologia - um conjunto articulado

de conceitos -, ou com Claude Lévi-Strauss que quer decifrar um código, do qual

deve-se descobrir as chaves, sem que este código nada nos faça reconhecer de

diferente que seu próprio funcionamento, seu modo operatório, os mitos se significando

uns e outros, jogando à maneira de uma gramática, de uma lógica do concreto, pois

que eles não visam comunicar qualquer saber sobre o mundo e sobre o homem.

Este consenso, ao menos relativo, sobre os métodos entre os especialistas

que, por profissão, tratam este tipo de relato como um objeto de estudo todo positivo,

deixa abertas questões sobre a natureza e sobre as fronteiras do mito. Ao ponto que se

pode sustentar que no sentido que lhe foi comumente reconhecido, o mito não existe e

que se trata de uma construção em grande parte arbitrária dos antropólogos. Utilizando

7

um termo já cheio de ambigüidades por sua longa história desde a Grécia Antiga,

eles fabricaram um domínio de investigação cujos limites são sombrios e cujo objeto,

deixa de ser específico, escapa a toda definição precisa.

Os africanistas assim observaram que, no vasto tesouro de contos orais que

eles recolheram, nenhum tipo de relato apresenta os traços distintivos que permitiriam

diferenciar o mito de outros gêneros narrativos como o conto e a lenda. Não há, de um

lado, os relatos 'sagrados', histórias dos deuses, palavras dos ancestrais, gênese do

mundo, cuja narração estaria tomada tanto mais ao pé da letra quanto fosse submetida

a imperativos rituais - prescrições e interditos -, de outros contos aos quais ninguém

teria tentado, nem desejado acreditar e que constituem, por sua característica

claramente fictícia, uma forma de literatura, ou ainda de lendas que remetem a

acontecimentos reais. Pierre Smith distingue assim, num corpo de mais de mil contos

orais de Ruanda, oito gêneros ou sub-gêneros diferenciados, todos igualmente

marcados por seus traços literários, donde nenhum poderia ser incluído na categoria do

mito se o entende como um gênero específico. Aí onde existe ainda viva uma rica

tradição oral com, em aparência e essência, uma grande variedade de relatos, o mito,

no sentido que nós damos a este termo, não é encontrado. No meio de culturas orais

onde a narrativa não está ainda inserida nos textos escritos, a fronteira afasta-se entre

mito e literatura.

De seu lado, os historiadores da religião romana, após ter por muito tempo

oposto à Grécia dos mitos e lendas uma Roma que os teria seja ignorado, seja

descartado, uma Roma "desmitologizada", mostrou com Georges Dumézil que os

grandes quadros da mitologia indo-européia, seus mecanismos de fabulação,

encontravam-se nos anais dos primeiros tempos de Roma e nas tradições citadas por

aqueles que consideramos como historiadores. Os especialistas neste domínio deram,

hoje, um passo a mais. "Constatamos, escreve Philippe Borgeaud, que se esboça a

pertinência de uma oposição teórica que não teria razão de existir entre mito e História.

Isto num sentido ligeiramente novo em relação à lição duméziliana: antes de uma

8

"aterrissagem" do mito sobre a História (o que supõe a anterioridade do primeiro

sobre o segundo) observamos o jogo de suas interferências". É sem descontinuidade

que em certas circunstâncias a fabulação, que se poderia crer própria ao mito, insinua-

se na História. Desde que se abandona as categorias, a priori, para interrogar os textos

mais de perto, a fronteira entre mito e História deixa de oscilar ao ponto de parecer

impossível decidir.

Nos é preciso retornar aos Gregos de onde, à ocasião da palavra mito,

teríamos partido. Primeira constatação. Todos os mitos gregos que conhecemos nos

foram transmitidos incorporados aos textos literários, históricos, filosóficos. As versões

mais antigas apareceram na época - homérica ou de outros ciclos cujos fragmentos

nos chegaram -, e nas diversas formas de poesia sapiental, coral, lírica, trágica. Sua

ocorrência depende sempre do contexto das obras nas quais estes mitos estão

inseridos. E para estes períodos antigos onde a "Literatura" não é feita para ser lida

desacompanhadamente, mas musicalmente recitada perante tal ou tal auditório, em

ocasiões de festas comuns ou privadas, cívicas ou pan-helênicas, a mensagem poética

fica sob a dependência das condições que requer sua enunciação em público. Dito de

outra forma, a performance destes relatos míticos comporta sempre, ligadas uma à

outra, uma dimensão estética e uma dimensão social.

Segunda constatação. Na origem muthos não se opõe a logos. As duas

palavras significam igualmente "palavra", "relato", qual seja seu conteúdo. É somente

no curso do século V que, entre certos autores, seus campos de aplicação vão se

dissociar, muthos passando a designar, por razões diversas segundo se é poeta como

Píndaro, historiador como Heródoto e Tucídides, filósofo como Platão e Aristóteles, o

que se quer se definir e que se opõe, por isto fazer, aos domínios do demonstrado, do

verificado, do verossímil, do conveniente. Antes, como escreve Marcel Detienne,

"muthos e logos são termos permutáveis sem que um recorte um registro de palavras

cujo o outro seria excluído ou somente tomado à distância". Mas, mesmo assim, a

fronteira estabelece-se e o muthos aplica-se a assertivas que nos recusamos a admitir

9

como verdadeiras, considera-se no campo dessa definição todo um museu dito

tradicional, vindo do fundo das idades e transmitido de boca à orelha sem que se sonhe

submetê-los à critica. Nesta miscelânea veiculada por isto que Platão chama phèmè, o

sussurro, encontra-se, ao lado de lendas divinas e heróicas, tais como certos poetas os

teriam contado, outras formas de ditos e de relatos: genealogias, provérbios, ditados,

adivinhações, enigmas, máximas, fábulas de amas de leite. Este conjunto heteróclito

não define um tipo particular de narração, de valor sagrado, colocando em cena

potências do além, cuja ação se situaria num tempo primordial. Não há outra unidade

que esta do ostracismo, do qual ele é inteiro atingido. O que aproxima estas múltiplas

"maneiras de dizer" tradicionais é, no espírito destes que exigem de hoje em diante, no

estabelecimento da verdade, a administração da prova (quer trate de razão

demonstrativa ou de testemunho ocular direto), seu caráter, senão falso, ao menos não

fiável, contrário à verossimilhança.

Terceiro ponto. Se Píndaro, em seus poemas, denuncia como muthoi, falsos

os episódios da façanha divina, que lhe parece indignos dos Imortais, ele não aceita

menos, como os logoi válidos, todos os outros, por extraordinários que sejam. Se

Heródoto fustiga a credulidade dos Gregos consentindo fé aos muthoi absurdos, como

estes que fazem do Oceano, um rio correndo em círculo em volta da terra, isto não

impede de embelezar seus próprios logoi, quer se trate das Amazonas, dos Citas,

Etíopes, de uma história maçante.

Com Tucídides, as coisas mudam. É no interior de seu projeto de escrever a

Guerra do Peloponeso, na idéia que se faz de seu trabalho e de seu papel de

historiador, que se situa entre mito e História, uma fronteira nitidamente trançada. Para

as épocas antigas, para os tempos anteriores à Guerra de Tróia, em falta de

documentos e testemunhos diretos, não se poderia pretender um conhecimento

resoluto; o melhor que se pode propor, a partir de indícios, é qualquer verossimilhança

concernente a certos fatos: "Se crê menos de bom grado, escreve Tucídides, nos

poetas que celebraram estes fatos lhe emprestando beleza que os engrandecem ou

10

nos logógrafos que os contam, procurando o consentimento do ouvinte, mais que a

verdade, pois se trata de fatos incontroláveis e aos quais sua antigüidade há dado um

caráter mítico excluindo a crença". Se ao contrário, limita-se aos acontecimentos

contemporâneos, pode-se fazer um relato seguro, preciso, controlado, onde a

sucessão dos fatos, obtidos em uma ordem de razão, permitem não somente

compreender seu encadeamento mas obter para o futuro uma útil lição. O mito

pertence a um passado que seu afastamento consagra, sem recurso, à obscuridade; a

Historia, escrita no presente, comporta regras estritas que delimitam seu campo e

rejeitam, sem poder se aplicar, tudo o que reconstrói o passado longínquo,

abandonado às fantasias dos poetas e dos logógrafos cujos relatos, estranhos ao

verdadeiro, visam a aprovação e o prazer para os ouvintes de um momento, não o

saber e a utilidade para todas as gerações por vir.

Desta vez as coisas parecem regradas. Por oposição a um relato histórico,

controlado, verídico, útil, o mito foi devolvido ao tempo antigo. Escapando ao nosso

olhar, os acontecimentos deste passado projetam-se sobre a tela que nos apresenta os

poetas, magnificados, sublimados, embelezados no reflexo de um canto que visa a

encantar o público, não a lhe ensinar a verdade. Antigüidade, poesia, embelezamento,

prazer, inverossímil, tais são as marcas que têm o mito à parte da História. Mas

Tucídides, para separar o mito do verdadeiro e do crédulo, não coloca somente em

causa a longa cadeia de fabulação que cada poeta recebe de herança para a trançar

de novo à sua maneira. Utiliza-se do mesmo movimento e por razões análogas aos

logographoi, acusados de não mais preocupar-se com o verdadeiro que os poetas

relatam dos fatos extraordinários, passados definitivamente ao estado de mito (epi to

muthòdes eknenikékota). Dos logographoi: por conseqüência os homens confiam na

escrita, como Tucídides, no que estão a dizer e não declamando os cantos poéticos.

Em que estes logoi declarados nos textos escritos (graphein) podem informar dos

muthódes, do mítico? Quem são, portanto, estes logógrafos? Estes são os primeiros

"cronistas" que, desde a alvorada do século V, empreenderam estabelecer as tradições

locais ou regionais das cidades e populações gregas, remontando o mais longe, até às

11

origens, aos primeiros homens, heróis fundadores, nascidos do sol ou

descendentes de uniões entre mortais e divindades. Para narrar desde o início até os

tempos contemporâneos a implantação dos humanos sobre o seu território, Hecateu de

Mileto, Acussilao de Argos, Helanicos de Mitilene, Ferécide de Atenas e os outros

atidógrafos não se contentaram em utilizar os episódios que os poetas teriam já

mencionado. Eles coletaram e confrontaram as versões diversas; apelaram às

tradições locais que a oralidade conservou, àquelas que os exegetas transmitiram em

certos santuários ou que ficaram vivas nas grandes descendências nobres reclamando

ancestrais lendários. Pois organizam seu relato segundo uma ordem genealógica onde

cada geração, com as aventuras e as façanhas que lhe são próprias, vem tomar a

continuação desta que a precedeu, pois reúnem tudo e esforçam-se em mostrar a

continuidade de uma tradição de relatos cujos poetas não utilizaram, ao agrado de

suas necessidades, este ou aquele trecho, eles conferem aos muthoi um novo status

de existência, independente do uso que faria antes a Literatura. De hoje em diante, o

contexto de um mito não é mais a obra poética na qual ele está inserido mas os outros

relatos míticos que formam corpo com ele. Englobando a diversidade dos relatos

tradicionais, começa-se a desenhar uma mitologia. Deste ponto de vista, pode-se dizer

que, pelo projeto de ligar o passado, o mais recuado, ao presente, ao fio de um texto

escrito em prosa, os logógrafos são, por vezes, os primeiros historiadores e os

primeiros mitógrafos.

O que os separa de Tucídides é que, como não compreenderam as regras

estritas que exige a narrativa seguida e precisa das grandes linhas dos acontecimentos

contemporâneos, como a guerra do Peloponeso, não estabeleceram um corte entre o

passado "lendário" e o presente; eles não fizeram do mito um objeto sui generis

constituinte como tipo de relato e forma de pensamento, uma realidade à parte. Logo,

ainda é necessário precisar que, nem Tucídides nem, em geral, os homens da

Antigüidade entendiam mais desta maneira. Os mitos pertencem a acontecimentos e a

personagens muito antigos para que se possa dispor, sobre este assunto, de um

conhecimento resoluto. É seu afastamento que os torna opacos e que nos impede de

12

os abordar com instrumentos de pesquisa válidos. Mas neles mesmos, em sua

natureza de acontecimentos e de personagens, não diferem destes do presente. Não

são nem irreais, nem imaginários; escapam somente, na aproximação que fazemos, à

tomada de um saber positivo. Quando Plutarco, na alvorada do I e do II séculos de

nossa era, aborda a Vida de Teseu, observa na introdução: "Depois de ter escrito as

Vidas Paralelas, percorrido as épocas acessíveis à verossimilhança e o terreno sólido

da história que se apoia sobre os fatos, eu poderia, com razão, falar das idades mais

recuadas: o além é o país do prodígio e do trágico freqüentado pelos poetas e os

mitógrafos, e não se acha uma prova fiável', nem nada de certo". Depois que

empreendeu narrar a vida de Teseu, do nascimento à morte, o que faria de todo ser

humano que teria conhecido em carne e osso. Teseu não é, a seus olhos, um ser

mítico do qual o que narra revelaria a mais pura fabulação. Entre o tempo mítico dos

primeiros reis lendários de Atenas ao qual Teseu se prende e o tempo medido,

controlado, datado no qual se joga o destino das cidades, não haveria para os Antigos

esta diferença de plano que enuncia, para nós, sua incompatibilidade. Trata-se sempre,

segundo eles, do mesmo tempo. O tempo das origens não é pensado como um outro

tempo, aquele do mito; ele constitui somente um tempo mais obscuro, cujos contornos

estão misturados no longínquo e que tornou-se impossível de investigar com a precisão

e a exatidão do olhar histórico.

Estes narradores de um passado fabuloso que Tucídides compararia aos

poetas e que chamaria logógrafos, Plutarco, quinhentos anos mais tarde, os designa

pelo nome de mitógrafos. Neste meio tempo, mesmo se não é posto em causa a idéia

de que o mito é a forma tomada pela história quando é muito ou pouco antiga,

resgatando, através de uma série de obras específicas, o que se pode chamar uma

"mitologia grega", cujo aspecto é, de certo modo, mais próximo daquele que nos é

familiar. O esforço que se demanda nos primeiros séculos de nossa era tende a

recolher, juntar, ordenar, clarificar o corpus de todas as lendas - sem mais limitar-se,

como faziam os logógrafos do século V a.C., aos particularismos locais - e os narrar

desde a criação do mundo, a partir de Gaia e Urano, com a legião de deuses que são

13

descendentes, até o fim da guerra de Tróia, com o retorno dos heróis aqueus.

Concentrando em um texto único e seguindo deste até espalhar em fontes múltiplas,

apresentando no conjunto na língua comum, la koinè, sob uma forma acessível a um

grande público, substituindo a trama dos relatos freqüentemente complexo e ramificado

de uma cadeia linear de cenários reduzidos ao essencial, um repertório quase

exaustivo de nomes de pessoas e de lugares, o desenvolvimento de um texto seguindo

uma ordem genealógica estrita (à falta de cronologia), onde cada geração inscreve-se

em uma escala vertical depois daquela que a procedeu e se ajusta, sobre um plano

horizontal, àquela de outros heróis pertencentes a uma linhagem diferente, a um outro

ciclo lendário, mas ligados a um mesmo estrato de geração. A Biblioteca de Apolodoro,

que se pode situar por volta do ano 200 de nossa era, é, certamente, o melhor exemplo

de uma tal empresa, cuja ambição é de consagrar, em uma só obra (como uma

verdadeira biblioteca), a soma erudita de tudo que os Gregos poderiam e deveriam

conhecer referente aos relatos dos antigos tempos. A mitologia encontra-se, então, no

que diz respeito a isso, circunscrita e objetivada: ela emerge para formar um campo de

estudo, um domínio de saber específico e autônomo, ao lado e dentro de outros

setores da produção literária e científica, poesia, filosofia, história, ciências, medicina,

curiosidades da natureza (mirabilia), vida dos homens célebres... Em que o mito,

assim delimitado e reduzido a ele mesmo, difere, na sua natureza e suas funções,

daquilo que era na época clássica, quando filósofos e historiadores tomando, a seu

respeito, uma certa distância inicial, utilizando-o como distanciador para melhor marcar

a pertinência de sua marcha, na busca do verdadeiro. O mito, escreve Christian Jacob,

"não está integrado num quadro global de interpretação alegórica (as Alegoria de

Heráclito). Não há mais alibi estético e literário que acentuaria a dimensão artificial do

mito (poesia helenística e imperial, de Apolonio de Rodes à Nonos de Panopolis). O

alvo procurado não é mais o maravilhoso, nem o sobrenatural (coleção dos

paradoxógrafos ricos em histórias de fantasmas...). O mito perdeu assim sua eficácia

política e social: não está mais ao serviço da propaganda das cidades gregas ou das

grandes famílias aristocráticas que, no século V, reivindicavam os fundadores ou os

ancestrais míticos". Um mito desengajado portanto: desligado do literário, separado da

14

história, escapando aos jogos ideológicos e locais da Grécia das cidades. Qual lugar

então lhe dar, qual papel lhe reconhecer? A resposta mais plausível seria a seguinte: "à

organização geopolítica que faz de Roma a metrópole de um Império onde a Grécia

está reduzida à condição de província, o mitógrafo substitui um espaço cultural,

delimitado e organizado pela língua e a literatura gregas, onde os heróis e os deuses

atacam o mundo mediterrâneo (...). Trata-se de um verdadeiro golpe de força simbólico

pelo qual "a mitologia grega, na sua forma substancial, é dada como memória cultural à

todos os povos do Império". Se poderá juntar, para precisar, que para o estatuto que

lhe confere a obra dos mitógrafos o mito não constitui somente "uma prática

compensatória e complementar da dominação romana", mas também a procura num

passado muito antigo de um vínculo cultural e simbólico tanto mais necessário nas

regiões orientais do Império, de helenização recente, estando estabelecidos à parte

das tradições e da base social mais solidamente preservada na Grécia continental.

Paradoxo: é quando Roma lhe impõe sua dominação, quando a Grécia das

cidades não é mais a mesma dos relatos lendários de suas origens, enraizadas na

gênese do mundo, no nascimento dos deuses, nas façanhas de antanho, na sorte e

desdita dos heróis, que se fornece o saber comum, a memória partilhada suscetível de

unir os povos diferentes, de confirmar, por uma igual familiaridade, com um vasto

universo de contos tradicionais, a convicção de partilhar uma mesma identidade

cultural.

É necessário aqui, na falta de poder responder totalmente, ao menos colocar

uma última questão. Donde este conjunto de relatos tira seu impacto, sua empresa, sua

eficácia? A quem dirigir seu poder de sedução, qual forma de prazer ocasiona, quais

necessidades especialmente tem que satisfazer? Se notará, inicialmente, que o acesso

a estes textos, à informação que eles veiculam sobre o passado humano, que o mais

remoto funciona como uma marca de "distinção" no sentido que Pierre Bourdieu dá a

este termo. Eles autentificam, de qualquer maneira, o afastamento que isola do comum

- popular, rústico, bárbaro - uma elite urbanizada que assimila a cultura grega que

15

chegou a um estatuto de "civilidade", ao qual podem apenas pretender aqueles

que partilham este privilégio. De fato, a dominação do campo mitológico é uma

condição necessária para inteirar-se plenamente à civilização greco-romana do início

de nossa era. É preciso conhecer os personagens, os lugares, as aventuras que são o

objeto destes relatos para compreender o cenário da vida quotidiana, nas casas, as

cidades, os templos, para ler claramente as imagens figuradas sobre os vasos, as

taças, os muros, ou erigidas em alto relevo nos lugares públicos e privados, na cidade

e no campo. Mas ao lado do imaginário cujos lugares com as tradições lendárias são

de evidências estritas e reciprocas, as práticas religiosas, os hábitos políticos, as

condutas de linguagem, o gestual, as técnicas do corpo e as maneiras de ser, maneiras

de comer, de vestir-se, as formas de sociabilidade, enfim, todos os traços de

comportamento que dão a um grupo humano seu aspecto característico, empregam

sempre mais ou menos o mesmo universo simbólico que serve de base à organização

narrativa dos relatos. No momento onde o mito tomou sua forma própria de encenação

condensando, sob uma aparência despojada, uma seqüência de acontecimentos

relacionados a um passado longínquo, sua pertença a um espaço intelectual mais

vasto, que o transborda, mas do qual é um dos elementos constitutivos, afirma-se de

maneira brilhante. O mito relato supõe um horizonte mental ao qual ele apoia-se, de

onde tira seus planos múltiplos de significação e que reabilita, em razão de seu caráter

também não narrativo mas de quadro cognitivo, isto que se pode chamar o "mítico". O

mítico não depende como o mito da ordem da narração; ele não é mais, como a

mitologia, um conjunto coordenado de relatos. Ele concerne certos objetos que, pela

maneira que estão na nossa experiência percebidos e pensados, tem a propriedade de

"por em movimento a imaginação lendária", para retomar os termos que utilizaria Louis

Gernet no seu estudo sobre os Aspectos míticos do valor na Grécia. Estes "objetos"

podem ser de toda sorte: seja realidades naturais, vivas ou inanimadas, como pedras,

metais, plantas, animais, fenômenos físicos, seja produtos fabricados pela mão do

homem, como os agalmata gregos, seja condutas práticas, que se tratasse de

operações técnicas, de costumes sociais, de atos rituais, seja mesmo noções

"abstratas", como a rivalidade, éris, a amizade, philia, o pudor, aidôs, a justiça, diké. Se

16

estes objetos têm, no sentido de uma cultura, o privilégio de poder, mais que

outros, gerar seqüências de relatos, de séries de imagens, de seqüências gestuais, é

que neles vem reunir-se, para se concentrar, uma multiplicidade de planos e de

domínios que, de um ponto de vista puramente positivo, formam redes de significação

distintas e separadas. Eles constituem assim como pontos nodais, os cruzamentos, a

partir dos quais desenham-se as grandes articulações de um espaço mental "mítico",

com seu jogo de aproximação e de contrastes inesperados. John Scheid e Jesper

Svenbro, exploram, num livro recente, os itinerários que os mitos greco-latinos de

tecitura convidam a percorrer e que desdobram nas direções mais diversas, são assim

apresentados tecitura e tecido como exemplo de uma tal "concatenação de noções"

própria para desencadear, no papel de aparelho de embrear, assim como símbolos

figurados e práticas gestuais como performances narrativas.

Um segundo traço desta mitologia grega é sua distância, seu afastamento

face ao contemporâneo. O mito faz parte da cultura de uma época porém precisamente

como um "anacrônico" cujo deslocamento em relação à existência presente permite

jogar com o efeito de realidade visado por um relato pseudo-histórico para introduzir os

aspectos de estranheza, de insólito, de maravilhoso. A não atualidade dos

personagens, das ações acabadas, dos acontecimentos inesperados participa o

charme da leitura . O recuo a um passado lendário onde as criaturas humanas são, por

vezes, os parentes que nos precederam e seres diferentes de nós, de um outro calibre,

maiores, mais fortes, mais próximos dos deuses, opera um deslocamento do

verossímil. As regras que se impõem no curso da vida comum não podem mais

estritamente aplicar-se quando se trata do tempo de antanho.

A adesão do leitor, ao pé da letra, aos relatos oculta também traços

particulares. Ela não é mais obrigatória como aquela onde o fiel deve decorar as

palavras sagradas pronunciadas nos rituais religiosos, ou as fórmulas de seu credo. Ela

não é, entretanto, idêntica à atitude de afastamento que é a nossa concernente à

verdade de textos literários dos quais sabemos que se trata de puras ficções, produtos

17

da imaginação de um poeta ou de um romancista. Ela não se confunde mais com

a certeza que provoca a constatação de um fato confirmado nem com a confiança que

nos inspira uma demonstração rigorosa ou uma relação histórica solidamente

documentada. Contrariamente à fé religiosa, a crença que suscita o mito é livre de

todo constrangimento: contrariamente à fábula, ao conto, à poesia, ela pousa sobre os

seres e os fatos que não foram inventados mas que, supostamente, teriam

efetivamente existido antigamente; contrariamente aos diversos tipos de saberes, ela

não implica verdadeira certeza. Seu estatuto é equívoco, amplo, mal resolvido. O que

narra a mitologia não aparece como falso sem ser reconhecido plenamente como

verdadeiro. Se crê sem se crer. A facilidade da interpretação pessoal, a escolha de

certas versões de preferência à outras, a liberdade de tomar e de deixar fazem,

portanto, parte da regra do jogo e do prazer que o leitor encontra. Oscilando entre o

rigor de uma erudição sábia e a fantasia da criação literária, unem na mesma trama

narrativa personagens tomados como reais, acontecimentos fabulosos, presenças

sobrenaturais, encobrindo por um jogo de interferências entre a história, a poesia, a

religião, as fronteiras que desenham os traços de sua própria figura, misturando as

pistas, a mitologia, mesmo quando forma um domínio distinto, permanece sempre

aberta. Ela é, desde o início, bastante separada da sociedade e da cultura da qual é a

expressão, para emprestar, em outros tempos, especialmente a partir da Renascença,

às retomadas, às transformações e ressemantizações. Ela traz num contexto social

diferente do mundo greco-romano, o mesmo sentimento de pertencer a uma elite

letrada cujo horizonte intelectual, mais vasto que aquele do vulgar, traz consigo, pelo

olhar lançado em direção aos Antigos, até a origem longínqua, o fundamento último da

vida civilizada, do saber, da filosofia, da arte. A acentuação da distância, o

deslocamento acentuado em relação ao presente, reforça, ainda, o caráter de

gratuidade dos relatos. Ao não serem 'sérios', não têm peso social, não levam, nesse

caso, a nenhuma conseqüência. Oferecem, assim, a ocasião de exprimir o que

formulado em outras línguas, mais oficiais, seria indecente, incongruente, escandaloso,

sacrílego. Revisitados em textos ou imagens, os mitos consentem novas

metamorfoses; formam um dos terrenos privilegiados para exercer seu estilo, seu

18

trabalho, seu talento, para dar forma à experiências propriamente estéticas ou

para por em causa, sem parecer, as idéias mais comumente aceitas.

19

Apresentação,

por Renata Senna Garraffoni

Richard Hingley é professor do Departamento de Arqueologia da Universidade

de Durham, na Inglaterra. Sua área de atuação é diversificada, pois possui trabalhos

não só de historiografia e Arqueologia sobre populações romanas das províncias do

norte e oeste da Britânia e da Idade do Ferro, como também de teoria pós-colonial e

metodologia, incluindo aqui pesquisa de campo e fotografia aérea.

Dentre estes temas relacionados, destaca-se uma problemática específica:

como as populações nativas foram incorporadas ao Império Romano e as mudanças

ocorridas. Neste contexto, a História do desenvolvimento da Arqueologia romana e a

maneira que ela se constituiu na Europa em geral, e Grã-Bretanha em específico,

durante os séculos XIX e XX tem sido objeto central das pesquisas do estudioso nos

últimos anos.

O artigo que segue, “Concepções de Roma: uma perspectiva inglesa”, é

resultado deste trabalho. Nele, o autor propõe uma revisão crítica da utilização de

modelos desenvolvidos nos séculos XIX e XX por classicistas . Nota-se, claramente,

uma postura de questionamento de tais modelos, em particular a teoria de

romanização, a partir de um estudo aprofundado do contexto histórico em que as

concepções do Império romano foram criadas. Neste sentido, o texto de Hingley é uma

desconstrução de discursos imperialistas do início do século XX que constituíram parte

da visão de mundo dos ingleses do período e serviram de base para estabelecer

interpretações do mundo romano, tanto na Arqueologia como na História, que são

utilizados até o presente. Sua proposta é, portanto, instigante na medida em que

propõe uma crítica a idéias absolutas e aos discursos eurocêntricos dos séculos XIX e

XX.

20

Outras publicações do autor sobre o tema:

Hingley, R. 1991. “Past, present and future—the study of the Roman period in Britain”,

Scottish Archaeological Review, 8: 90–101.

Hingley, R. 1995. “Britannia, Origin Myths and the British Empire,” in S. Cottam, D.

Dungworth, S. Scott and J. Taylor (edd.), TRAC94. proceedings of the fourth

annual Roman Theoretical Archaeology Conference, Durham 1994 (Oxford): 11-

23.

Hingley, R. 1996. “The ‘legacy’ of Rome: the rise, decline and fall of the theory of

Romanization,” in J. Webster and N. Cooper (edd.), Roman Imperialism: post-

colonial perspectives (Leicester): 35-48.

Hingley, R., 1999. “The imperial context of Roman studies and a proposal toward a new

understanding of the process of social change”, in: P. Funari, M. Hall, S. Jones,

Historical Achaeology: Back from the Edge, Routledge, Londres.

Hingley, R. 2000. Roman Officers and English Gentlemen: imperialism and the origin of

archaeology (Londres).

21

Concepções de Roma: uma perspectiva inglesa

Richard Hingley3 – University of Durham, Inglaterra

Tradução: Renata Senna Garraffoni*

Revisão: Pedro Paulo A. Funari

1. Introdução

Este artigo versa sobre como as imagens proporcionadas pela Roma clássica

foram redesenhadas para ajudar a definir as idéias da origem inglesa e a justificativa do

império de 1880 até por volta de 19304. Era o auge do imperialismo britânico. Nesta

época, a “ideologia imperial” tornou-se parte da linguagem do patriotismo britânico5.

Também foi um período em que novas correntes intelectuais se desenvolveram para

definir e sustentar o controle britânico por extensas partes do mundo6. Trabalhos

acadêmicos, escritos políticos e literatura popular refletem esta necessidade imperial e

o passado imperial romano foi diretamente recrutado para ajudar a tornar conhecida a

“missão” imperial britânica.

A raiz das origens nacionais no final do século XIX e início do XX passou a

centralizar considerações imperiais relevantes na busca de uma definição útil de

anglicidade** que gerou a idéia de permanência na vida nacional britânica. Esta

3 Texto especialmente escrito pelo autor para publicação em versão portuguesa.

* Licenciada e Mestre em História, Doutoranda em História, IFCH/Unicamp, bolsista Fapesp.

4 Muitos destes argumentos foram desenvolvidos com mais detalhes em meu livro recentemente

publicado (Hingley 2000) e também em dois papers a sair na próxima edição do Journal of Roman Archaeology. Para um resumo atualizado sobre as atitudes dos séculos XVIII e XIX como relação a antiga Roma na Britânia, cf. Vance 1997. Uma imagem alternativa proporcionada pela Grécia também foi importante nos séculos XVIII e XIX na Britânia (cf. Jenkyns (ed.) 1980 e Turner 1981), mas não será discutida neste artigo. 5 Eldridge 1996, 2.

6 Koebner e Schmidt 1964; Baumgart 1982 e Judd 1996. Em Hingley 2000 textos datados do final do

século XIX e início do XX são analisados a partir do conceito de “discurso imperial”. ** Nota da tradutora: no original o termo empregado pelo autor é Englishness. Assim, por analogia ao

termo em português brasilidade, optamos por traduzir Englishness por Anglicidade em todo o texto.

22

definição de anglicidade baseou-se em uma variedade de fontes de informações,

incluindo as fontes históricas clássicas que descreveram a invasão romana na Britânia

no século primeiro d.C e as descrições de vestígios arqueológicos recolhidos por

antiquários e arqueólogos. Como resultado disto, a Arqueologia teve uma grande

participação na definição do propósito imperial da Inglaterra.

Concepções de Roma na Europa

Ao considerar o significado das maneiras como a imagem do romano foi usada

na Inglaterra é importante ter em mente o contexto europeu desta experiência inglesa.

O passado tem sido desdobrado por europeus, e povos do mundo ocidental em geral,

para esculpir identidades que se opõem, para construir o Ocidente e o não-Ocidente e

criar uma ascendência cultural7. Neste contexto, a construção do passado nunca foi

uma atividade imparcial8. Roma teve um lugar especial na definição da História e do

pensamento europeu9. Sua capacidade de prover imagens múltiplas, mutáveis e

conflituosas foi quase ilimitada; isto a tornou uma fonte rica para dar sentido – e para

desestabilizar – a História, a política, a identidade, a memória e o desejo10. Por

exemplo, Roma foi construída, em certas épocas e lugares, para representar

autoridade literária, governo republicano, unificação política, poder imperial e seu

declínio, proeza militar, eficiência administrativa, a idade de ouro do império, a Igreja

Católica e o prazer das ruínas. Há um grande corpo de trabalhos de variadas

associações historigráficas proporcionadas pela Roma clássica, incluindo diversas

pesquisas recentes que consideram os papéis da Arqueologia11.

7 Meskell 1999:3.

8 Smith 1986: 180-1.

9 Edwards 1999: 2-3; Wyke e Biddiss 1999; Farrell 2001.

10 Edwards 1999 2-3. A complexa variedade das imagens proporcionadas por Roma também era

percebida por autores clássicos (Hardie 1992). 11

Veja, por exemplo, Deletant 1998, Edwards (ed.) 1999, Galinsky 1992, Hingley (ed.) no prelo, Jenkyns (ed.) 1992, Moatti 1993, Pagden 1995, Vance 1997, Wyke 1997 e Wyke e Biddiss (edd.) 1999.

23

Uma dicotomia entre a imagem romana e aquelas munidas pelas idéias de

uma identidade nativa pode ser extraída das concepções de Roma12. A efígie do

império romano proporcionou um mito de origem para muitos povos da Europa e, em

particular, para História do Ocidente como um todo. A elite de várias nações ocidentais,

durante os séculos XVI ao XX, usaram a imagem de Roma para ordenar caminhos

para o desenvolvimento da educação, arte, arquitetura, literatura e política13. Em

relação à contrastante idéia de identidade nativa, as fontes escritas romanas serviram

para prover a idéia de “alteridade” que foi usada para ajudar a definir e unir povos

dentro de nações individuais na Europa Ocidental. Ao definir sua própria civilização em

oposição aos “outros” bárbaros14, autores clássicos proporcionaram um poderoso

instrumento interpretativo para aqueles, que ajudou a criar nações e impérios

modernos. Autores romanos, que escreveram durante o período de expansão no final

do primeiro milênio a. C. e início do primeiro milênio d. C., registraram os nomes e

feitos de vários grupos “étnicos” significativos no império ocidental ou em outros locais

(incluindo gauleses, batavos, germanos, bretões, dácios, entre outros). Alguns textos

romanos importantes se tornaram disponíveis a uma elite ilustrada na Europa Ocidental

do século XVI em diante. Tais textos continham informações sobre estes primeiros

povos, histórias sobre seus hábitos cotidianos e seus atos de resistência ante o

imperialismo romano. Ocasionalmente, os textos também indicavam uma localização

geográfica aproximada na qual estes povos teriam vivido.

Com a ascensão do antiquarismo e da Arqueologia a partir do século XVI,

evidências físicas derivadas do passado – artefatos e estruturas – puderam ser

utilizadas para localizar estes povos na paisagem contemporânea européia. Neste

contexto, a Arqueologia desenvolveu-se como uma disciplina útil que traduzia uma

imagem idealizada do passado étnico em realidades táteis usando cânones modernos

12

Hingley, no prelo a. 13

Stray 1998; Wyke and Biddiss 1999. 14

Para a definição clássica do “outro” como bárbaro veja Habinek 1998, 157; Hall 1989; Jones 1971; Patterson 1997: 30-32, Romm 1992; Shaw 1983 e Webster 1996, 1999.

24

de conhecimento15. No final do século XIX e início do XX, arqueólogos usavam

técnicas para localizar, datar, descrever e classificar vestígios materiais, mas eles

também proporcionaram “histórias” sobre a origem dos monumentos e artefatos que

auxiliaram no desenvolvimento de uma identidade nacional própria16. Nestas histórias,

os elementos físicos de uma cultura herdada – os artefatos, edifícios e paisagens –

propiciaram uma conexão tangível e particular com um passado étnico imaginado. O

sentido de pertencimento é vital para uma definição própria de identidade nacional e a

ligação de identidades étnicas a certos tipos de evidências arqueológicas tornou-se um

instrumento poderoso na Inglaterra como em vários outros países europeus.

Historiadores romanos produziram relatos nos quais um suposto poder

“civilizador”, representado por Roma, teria entrado em conflito com os “bárbaros” e

contos em que a resistência de vários povos nativos à expansão imperial romana eram

desenvolvidos sob um forte estilo anti-romano. Nacionalistas acharam isto útil em

algumas circunstâncias, no entanto, conceber grupos nativos sendo incorporados ao

império era, também, profundamente influenciado pela “civilização” dos romanos. Neste

contexto é significativo que a Roma imperial era freqüentemente vista executando um

papel especial – a transferência da “civilização” mediterrânea a vários povos do

ocidente europeu, que efetivamente permitiu que a distinção romana e as concepções

nativas fossem combinadas. As fontes clássicas confirmam a classificação de povos

pré-históricos na Gália, Alemanha, Ibéria, Britânia e, até mesmo, Itália – povos que, de

alguma maneira, pareciam mais semelhantes a populações nativas do Novo Mundo do

que com as populações contemporâneas da Europa Ocidental. Argumentava-se que

Roma teria civilizado todos estes povos.

Os romanos teriam introduzido a cultura da civilização – estradas, cidades,

banhos públicos, impostos e a língua latina – uma civilização que a Europa Ocidental

sentia ter herdado. A Europa cristã também se sentia herdeira desta tradição religiosa

15

Smith 1986: 180; veja também Trigger 1989: 174.

25

da Roma clássica. Autores romanos falaram em latim às aulas de uma elite

ilustrada européia dos séculos XIX e XX – uma língua que ajudou a definir sua

identidade e de qualquer um que eles pudessem entender. Como resultado, muitos

membros destas classes sentiram uma associação com os romanos clássicos como

uma herança de uma tradição, religião e civilização clássica em comum – uma

associação que foi de todas a mais influente devido ao domínio da língua latina na

educação da elite contemporânea17.

Os romanos e as imagens da origem dos nativos, no entanto, não foram sempre

desenvolvidas em oposição de uma a outra, como foram argumentadas em certas

ocasiões, poderiam ser combinadas para desenvolver uma concepção nacionalista da

grandeza contemporânea. Isto tinha um significado particular no contexto da Inglaterra

do final do século XIX e início do XX.

Concepções de Roma na Inglaterra durante o final do século XIX e início do XX.

A conquista e ocupação romana do sudeste da Britânia iniciou-se em 43 d.C. e

durou até o princípio do quinto século. Este evento lançou os antigos romanos na órbita

da história domestica inglesa18. Devido, em parte, ao impacto direto na história

doméstica do sudeste da Britânia, a efígie de Roma formou um conjunto útil de

referências históricas tanto para os ingleses como para outras nações. Os antigos

relatos históricos que confirmaram o caráter devastador da invasão Anglo-Saxônica na

Britânia pós-romana, no entanto, criaram um forte mito da origem racial teutônica para

os ingleses durante o século XIX19. Esta imagem teutônica, ou germânica, da origem

racial, que foi dominante por grande parte do século, se tornou menos poderosa diante

16

Para publicações recentes sobre Arqueologia e nacionalismo, veja Atkinson et al. (edd.) 1996; Díaz-Andreu e Champion (edd.) 1996; Kohl e Fawcett (edd.) 1995 e Meskell (ed.) 1999. 17

Stray 1998: 11; Wyke e Biddiss 1999; Farrell 2001. 18

Stobart 1912: 3; Vance 1997: 16. 19

A idéia da origem teutônica do inglês foi influente no início e meados do período vitoriano e sobreviveu durante o século XX (veja: Bowler 1989: 51; Colls 1986; Levine 1986: 4; MacDougall 1982; Robbins 1998: 29; Samuel 1998: 23; Smiles 1994: 113-28 e Stocking 1987: 62-3). Para uma história do contraste entre as escolas “germânica” e “romana” nos séculos XIX e XX, veja White 1971 and Jones 1996.

26

dos interesses imperiais próximos ao final do século. Uma nova representação, que

se desenvolveu neste período, argumentava que o espírito imperial inglês era derivado

de uma herança genética mista que incluía antigos bretões, romanos clássicos, anglo-

saxões e dinamarqueses. Neste contexto, a herança da civilização romana era sempre

considerada particularmente fundamental. A missão do Império Romano, em alguns

trabalhos de literatura (incluindo livros para crianças e trabalhos políticos), passaram a

retratar a transmissão da civilização clássica (e cristandade) para antigos bretões, que,

então, formavam uma parte importante da origem racial mista da população inglesa

moderna. A herança romana também serviu para retratar as classes inglesas educadas

como sucessoras da elite imperial romana.

Examinarei alguns dos caminhos nas quais as duas idéias, “romana” e “nativa”,

começaram a ser incorporadas como uma representação da anglicidade no final do

século XIX e início do XX e o papel da Arqueologia neste processo. Durante o final do

século XIX e início do XX, um grande número de trabalhos populares relacionados a

origem do inglês foram produzidos e alguns relatos serão levados em consideração a

seguir. Cientistas naturais, geógrafos e antropólogos procuravam usar as necessidades

do império para justificar a expansão do ensino e pesquisa em seus campos de

investigação neste período20. Assim como objetos que eram dominados por cavaleiros

amadores passaram a ter um caráter acadêmico crescente dado por estudiosos,

estruturas para carreira começaram a existir21. A Arqueologia Romana, sob influência

de Francis Haverfield, foi um dos objetos de estudos que conseguiram credibilidade

acadêmica22

Argumentarei que a relevância imperial da Arqueologia Romana foi resultado,

em parte, da visão de Haverfield sobre o valor da “Romanização” para a definição do

caráter inglês. A Romanização foi usada para ajudar a corrigir uma primeira imagem

20

Symonds 1986: 1. Veja também Stray (1998: 247, note 33) para a fundação de várias sociedades acadêmicas em diversos campos entre 1892 e 1907. 21

Stray 1998: 136. 22

Freeman 1997.

27

que sugeria que um pouco da civilização romana fora transmitida para os antigos

bretões. Esta idéia foi alcançada a partir do desenvolvimento de um significado no qual

civilização era tida como algo que poderia ser transferido. A Romanização estava

baseada em uma definição de oposição binária entre nativos bárbaros e romanos

civilizados – era o processo pelo qual o bretão (ou europeu) não civilizado alcançava a

civilização23.

A teoria da romanização se encaixa em um contexto no qual muitos de

escritores populares e políticos estavam buscando uma continuidade nas imagens da

vida nacional inglesa24. Alguns trabalhos populares vitorianos ou do início do século XX

sugeriam que os romanos clássicos passaram para os ingleses uma civilização que se

dirigiu quase que diretamente para os estado moderno inglês. Por meio deste processo

de civilização, Roma parecia, também, ter transmitido seu próprio espírito imperial para

os ingleses. A civilização, religião e habilidade imperial inglesa foram traçadas de

encontro ao passado romano de maneira que os nativos da Britânia romana sempre

foram vistos como tendo adotado a civilização romana e melhorado, em um grande

esforço para criar a moderna Inglaterra e o Império Britânico. Incorporado a esta

distinta mistura racial inglesa, havia o valente espírito dos antigos bretões que se

opuseram a Roma. Neste contexto, algumas pinturas da Britânia romana deram uma

visão nacionalista de uma província britânica distintamente civilizada – uma

sustentação linear para a moderna Inglaterra.

O interesse por linhas de continuidade na vida nacional da Inglaterra

estruturaram trabalhos acadêmicos e populares e a Arqueologia Romana veio a ter um

23

O trabalho de Haverfield proporcionou a base que irá ser chamada interpretação “progressiva” da romanização. A interpretação progressiva levou crenças sobre a civilização imperial além dos anos de 1970 (Hingley 1996, 2000). 24

Raphael Samuel sugeriu que, embora os historiadores estejam preocupados com a pesquisa empírica, eles incorporam, sem se darem inteiramente conta, as estruturas profundas do “pensamento mítico” (1998: 14). O pensamento mítico refere-se a visões mais amplas da sociedade como as representadas em grandes grupos de idéias e mídia como os trabalhos populares e os escritos políticos. Samuel atribui a adoção deste pensamento místico ao desejo dos estudiosos em estabelecer linhas de continuidade ou a importância simbólica ligada à permanência da vida nacional ou a uma teleologia não discutida e não explícita, mas que a tudo engloba.

28

valor distinto como parte da representação da anglicidade. Os tipos de analogias que

foram feitos entre Britânia e Roma, durante os séculos XIX e XX, influenciaram,

profundamente, o caráter dos estudos de Haverfield que, por sua vez, influenciou

aqueles que estavam por vir. Acadêmicos selecionaram imagens de uma história mítica

que projetaria a estabilidade da vida nacional e contribuíram para a representação da

anglicidade. Será argumentado que um dos resultados deste processo foi o

desenvolvimento da Arqueologia Romana na Britânia sob um caráter nacional distinto.

De fato, a teoria arqueológica durante o século XX serviu para projetar muitas visões

populares que substituíram os limites do estado nacional inglês pelo passado romano25.

Para examinar estes pontos em seguida, estabelecerei cinco tópicos que serão

produzidos para ilustrar a contribuição do romano clássico a representação da

anglicidade.

2. Cinco Tópicos:

Estes tópicos são: os antigos celtas como indianos; o inglês como romano

clássico; a resistência nativa aos romanos; a herança imperial da tocha da “civilização”

e anglicidade.

Os antigos celtas como indianos, os ingleses como os romanos clássicos

A presença dos romanos na Britânia é registrada pelo menos de duas maneiras

– fontes históricas e monumentos arqueológicos. Os relatos de historiadores clássicos

que escreveram sobre a invasão e ocupação da Britânia foram utilizados, com

freqüência, por vitorianos e eduardianos para ajudá-los a entender os primórdios da

história da Britânia26. Estas fontes proporcionaram um retrato de um povo bárbaro e

25

Veja Braund 1996: 179. 26

Por exemplo, Conybeare 1903, Green 1900 e Scarth 1883.

29

não civilizado – os antigos bretões. Muitos perceberam que os antigos bretões eram

mais semelhantes aos povos nativos das colônias do império Britânico moderno do que

a população da Inglaterra. A presença dos romanos também foi atestada por meio da

evidência física dos edifícios e estruturas construídas durante o período de ocupação.

As ruínas dos monumentais e impressionantes edifícios da época romana

sobreviveram ao período moderno (por exemplo, a muralha de Adriano, Wroxeter e

Pevensey)27.

Uma imagem claramente definida na Inglaterra do final do século XIX foi

colocada sobre o caráter da Britânia romana como um paralelo para a Índia britânica,

um paralelo que produziu uma série de lições históricas28. Romanos e bretões, sob

esta perspectiva, eram vistos como distintos, assim como os ingleses eram da

população nativa da Índia britânica29. A população romana da Britânia era sempre

percebida como sendo constituída por funcionários e oficiais imperiais que viviam em

cidades fortificadas, fortalezas e suntuosas villae; os antigos nativos bretões eram

pensados como amontoados ao redor deles, mas afastado. Estes celtas eram, de fato,

vistos como uma população inferior, sujeita à hegemonia da classe dirigente de oficiais

romanos.

O paralelo entre Índia Britânica e Britânia Romana não era sempre exata, mas

isto não parece ter afetado seu valor. Bertram Windle em seu Vida no início da Britânia

(1897), considerou o caráter essencialmente militar da ocupação romana na Britânia e

mencionou fortes, estradas militares, grandes cidades fortificadas, as muralhas

romanas e as “magníficas villae” que foram construídas por oficiais romanos30. A villa

em Vectis, no romance de A. J. Church de 1887 era propriedade do Conde da Costa

Saxônica, um oficial que retornou para Roma com o exército durante sua retirada.

Fletcher e Kipling, escrevendo em 1911, viram as villae da Britânia como as casa dos

27

Veja Johnson 1989. 28

Veja Haverfield 1912, Hingley 1995 e Majeed 1999. 29

Haverfield 1912: 19.

30

oficiais imperiais romanos que foram enviados a Britânia ou se estabeleceram

lá; outros autores e artistas também tiveram interpretações similares.

Considerando os oficiais romanos no contexto dos oficiais britânicos na Índia,

uma conexão foi feita entre a Inglaterra contemporânea e os romanos clássicos.

Mesmo que, às vezes, os ingleses eram percebidos como descendente de origem

teutônica, eles teriam aprendido as lições de civilização e organização imperial

proporcionadas pelos romanos clássicos. Em contraste com esta herança racial, a

população “céltica” do norte e oeste*** da Britânia teriam derivado sua herança das

populações pré-romanas das ilhas britânicas. Para alguns ingleses deste período, os

antigos bretões eram percebidos como parentes dos irlandeses, galeses e escoceses,

muitos estudiosos vitorianos afirmaram que “a partida dos romanos” no século V

deixaram os bretões quase como os “celtas” quando foram encontrados por eles31.

Considerou-se que os celtas não civilizados da Inglaterra foram derrotados e

massacrados, ou então foram expulsos para o norte e oeste pelos ancestrais dos

ingleses, os amantes da liberdade teutônicos. Por exemplo, o reverendo professor A. J.

Church em seu romance, acima citado, escreveu sobre a partida das legiões romanas

em 410 d.C. e os problemas subseqüentes quando os bretões voltaram aos seus

hábitos “celtas” pré-romanos. Quase no final do romance, depois da partida dos

romanos (inclusive o Conde), os bretões jogaram fora toda a cultura adquirida dos

romanos e “... todos os sinais daquela sujeição ...”32 Eles retornam aos hábitos e

vestuários bretões. Este era o sonho de Ambiorix, um de seus líderes, “... deixar a

Britânia como se os romanos nunca a tivessem conquistado”33. Os ingleses modernos

teriam aprendido a lição dos romanos mais por meio do acúmulo de experiência que

por uma forma direta de herança.

30

Windle 1897: 11. Para visões comparativas veja, por exemplo, Green, 1900: 4-5 e Rait e Parrott 1909: 11. ***

Nota do revisor da tradução: o norte e o oeste representam as duas áreas não inglesas da Grã-Bretanha, respectivamente a Escócia e o País de Gales. 31

Haverfield 1912: 19. 32

Church 1887: 286.

31

No contexto da imagem das origens teutônicas, muitas das atividades dos

antiquaristas deste período estavam diretamente relacionadas aos monumentos e

vestígios deixados pelos primeiros ingleses medievais – esta época ocupava o espírito

como resultado de sua “religiosidade” e o desejo de permanecer próximo a uma

identidade inglesa34. A Arqueologia dos antigos bretões e dos bretões-romanos

permaneceu relativamente sem desenvolvimento até o início do século XX. A

relevância de ambos, romanos e antigos bretões, para as origens raciais e o destino da

nação parece limitado a muitos vitorianos. Os monumentos de populações pré-

históricas sempre parecem ter tido relevância limitada, enquanto que os fortes

romanos, as villae e cidades, freqüentemente, foram interpretados como as casas e

postos de oficiais e outros colonos da própria Roma35. Eles eram percebidos, talvez,

para apresentar um paralelo histórico para o estilo de vida dos oficiais britânicos na

Índia, mas não tinham uma ligação direta a história nacional inglesa.

A resistência nativa

Muitos autores eduardianos produziram versões dramáticas da tragédia de

Boadicea36. Esta imagem de Boadicea faz parte de uma relação direta da idéia dos

celtas como indianos; aquela que simbolizou o espírito dos nativos britânicos em

resistência a Roma. Boadicea era a personagem principal desta história, mais outros

eram também considerados sob a mesma luz, por exemplo Caratacus e o fictício Beric

do romance Beric, o bretão de G. A. Henty (publicado em 1893). A representação das

ações destas figuras heróicas vão do século XVI até o princípio do XIX37, quando

Boadicea, em particular, foi adotada como símbolo de inspiração para os ingleses em

suas ações imperiais38. Um evento de importância particular no desenvolvimento da

33

Ibid. 34

Levine 1986: 98. Veja também Haverfield e Macdonald 1924: 84-7; Smiles 1994: 125 e Henig 1995: 186 35

Haverfield e MacDonald 1924: 84; Levine 1986: 79-84 e Hingley 2000. 36

Por exemplo Trevelyan 1900; Marshall 1905 e O’Neill 1912. 37

Ver Warner 1996, Macdonald 1987, Mikalachki 1998, Williams 1999 e Hingley 2000. 38

O uso de Boadicea como uma figura de inspiração imperial emerge em um poema do século XVIII de William Cowper (veja Hingley 2000).

32

imagem de Boadicea foi a confecção e levantamento de uma estátua sua por

Thornyscroft na ponte de Westminster em 190239. O desenvolvimento deste culto de

resistência nacional a Roma espelha acontecimentos similares em outros países

europeus durante a segunda metade do século XIX, como a criação de um “teatro

memória” a Vercingetorix por Napoleão III na Alesia40.

Não considerarei mais estes argumentos no desenvolvimento do artigo. É

relevante para minha argumentação o tema que Norman Vance discutiu em seu livro

recente Os vitorianos e os antigos romanos (1997) que, para os últimos vitorianos, a

humilhação dos bretões pelos romanos pode ser contada em pelo menos duas

maneiras; primeiramente pelas histórias de forte oposição dos nativos aos romanos

imperialistas e, em segundo lugar, com a imagem de que a própria Grã-Bretanha agora

se tornou colonizadora de uma parte do mundo maior do que a dominada por Roma41.

A herança da tocha imperial de “civilização”

A idéia da Grã-Bretanha como herdeira de Roma aparece em uma grande

variedade de fontes, incluindo a história romana das ilhas britânicas, a natureza da

educação clássica e a interpretação do progresso derivada de uma teoria evolucionária

darwiniana. Sob esta teoria evolucionária do progresso, a Grã-Bretanha poderia ser

considerada não só representante da herança de Roma, mas também sua

valorizadora. J. A. Cramb (professor de História Moderna no Queen’s College,

Londres), em uma aula apresentada em 1900 como reflexão sobre o significado da

guerra de Boer para os britânicos, por exemplo, argumentou que a Grã-Bretanha teria

herdado diretamente o espírito imperial de Roma, mas teria também particularmente o

valorizado42.

39

Thornyscoft 1932, Webster 1978: 2. 40

Dietler 1996; Smiles 1994 e MAN 1994. O conceito de “teatro memória” é derivado de Dietler. 41

Vance 1997: 198. 42

Cramb 1900.

33

No início do século XX escritores sempre expressaram visões semelhantes

ao projetar a Europa moderna e, em particular, a Britânia como herdeira de Roma. O

livro popular de J.C. Stobart A grandeza que era Roma foi publicado em 1912, quando

ele era professor no Trinity College, Cambridge, e o trabalho tem sido reimpresso até

os dias de hoje. Neste livro, o autor argumenta que Roma preencheu um “destino” ou

“função” na história mundial que foi “a criação da Europa”43. Além disso, a história

romana teve uma função. Roma era “a maior força civilizadora em toda a história da

Europa”. Patriotas britânicos sempre argumentaram que estariam exportando a mais

iluminada forma desta herança da civilização ocidental para diversas partes do globo.

Neste contexto, uma ligação histórica direta entre Roma e Bretanha fora criada.

Em muitos trabalhos eduardianos, o papel fundamental de Roma na civilização dos

bretões é recolocado. No livro popular infantil de H. E. Marshall, A História de nossa

Ilha (1905), o papel de Roma como aquela que trouxe paz e civilização depois da

conquista de 43 d. C. é considerado: os romanos introduziram boas casas, estradas, a

escrita e o cristianismo44. Desta maneira, a conquista romana de quase toda Britânia

tem sido sempre representada como a chave para a origem da História inglesa ou

britânica. A civilização foi introduzida; estradas, cidades e casas de campo foram

construídas. Na cabeça de alguns autores, uma perspectiva teleológica foi

desenvolvida na qual parece que os romanos teriam transferido sua própria civilização

para a Britânia e a Inglaterra, por sua vez, civilizava os povos de seu próprio império.

A dominação política e industrial que a Europa exerceu sobre o mundo no final

do século XIX e a teoria do progresso foram tomados como sustentação para a

reivindicação dos europeus como portadores de um direto moral para liderar outros

ramos da humanidade45. Muitos vitorianos tardios influentes reivindicaram que sua

sociedade estava no auge do desenvolvimento social, com todos os estágios

“anteriores” da humanidade colocados em uma progressão linear em direção a este

43

Stobart 1912: 5. 44

Marshall 1905: x.

34

estado ideal. Também era freqüentemente argumentado que estes povos iriam

progredir para um estado moderno através da influência do Império Britânico46. Esta

tradição redesenhou o passado romano e se tornou parte daquilo se tornou conhecido

como uma perspectiva “eurocêntrica” na qual Roma teria sustentado uma

particularidade singular uma vez que permitiu que a cultura grega clássica fosse

transmitida pelo Ocidente47.

Woolf48 discutiu a idéia de que o conceito romano de humanitas tornou-se uma

justificativa ideológica para a elite romana que sustentou a conquista e dominação e,

tais fontes clássicas, foram redesenhadas no final do século XIX e início do XX. Para

alguns autores romanos humanitas era originária na Grécia clássica e foi espalhada em

um mundo maior através da expansão imperial romana. Representando a cultura grega

como o primeiro estágio no processo universal, autores romanos puderam afirmar a

superioridade romana de maneira que serviu para contradizer a ansiedade cultural49.

Estas idéias romanas foram valiosas para a elite européia nos séculos XIX e XX e

produziram o imperialismo europeu. Esta concepção da superioridade ocidental teve

um grande papel no imperialismo. Roma era interpretada como aquela que trouxe a

civilização clássica aos povos bárbaros ao longo do império e, o ocidente moderno, por

sua vez, redesenhou estes conceitos clássicos imperiais ao definir seus próprios mitos

de origem e propósito imperial50. Neste contexto, os imperialistas ocidentais durante o

final do século XIX e início do XX poderiam argumentar que a transmissão de uma

civilização, importada de seu próprio país pelos romanos clássicos, ajudou a justificar

seus próprios atos imperiais como missões civilizadoras51. Dúvidas, freqüentemente,

eram expressadas sobre a habilidade de não-europeus absorverem este presente e

45

Bowler 1989; Bahrani 1999. 46

Bowler 1989: 19; veja também Levine 1986: 74. 47

Bernal 1985, 1994; Lefkowitz e MacLean Rogers (edd.) 1996. 48

1998, 54-60. 49

Ibid. 50

Bernal 1994: 119. Lefkowitz e Maclean Rogers (edd.) 1996 contém um número de respostas aos comentários levantados por Bernal. 51

Bernal 1994, 119.

35

uma permanente ajudar era tida como necessária52, mas na cabeça dos

colonizadores, isto não invalidava o valor de tal dádiva.

No entanto, havia um problema, na Inglaterra, com esta concepção linear de

civilização e progresso que relacionou a poderosas imagens da origem nacional

existentes na sociedade vitoriana britânica e que sobreviveu no século XX aos celtas

como indianos e às raízes teutônicas. A imagem céltica/indiana sugeria que muito

pouco da civilização romana fora transferida para os antigos bretões durante a

ocupação daqueles, enquanto que a imagem teutônica das origens raciais sugerem

que o inglês era, de qualquer forma, descendente dos teutônicos ou anglosaxões, que

teriam eliminado os antigos bretões. Qualquer tipo de herança da civilização romana

fora, portanto, resultado da educação clássica mais do que qualquer forma de herança

genética. Em última instância, qual era a relevância dos antigos bretões e romanos

clássicos para a história doméstica inglesa?

Anglicidade

A representação da anglicidade tem uma longa história de desenvolvimento,

surgindo a partir das linhagens políticas emergentes dos anos de 1880 e como

resultado, em parte, de uma crise geral da sociedade urbana53. Uma resposta cultural

iniciando nos anos de 1890 e 1900 espalhou rapidamente pela arte, literatura, música e

arquitetura inglesa por volta de 1914. Iniciando antes da I Guerra Mundial, mas

atingindo seu auge no período entre guerras, desenvolveu um novo movimento de

caçadas ao ar livre quando a vida no campo se tornou uma forma de lazer acessível54.

Esta representação da anglicidade era, freqüentemente, organizada a partir da

concepção de uma população unida vivendo em uma idílica área rural inglesa no

52

Hingley 2000: 51. 53

Howkins 1986; Stray 1998: 173-9. 54

Howkins 1986.

36

sudeste55. Sugeriu-se que esta era uma história coesiva, oficial e inerentemente

conservadora para ser contada diante da insegurança doméstica e imperial56. Nos anos

de 1920 desenvolveu-se mais como uma resposta da grande perda de vidas durante a

I Guerra Mundial. Uma grande quantidade de livros de histórias populares, romances e

livros para viagem foram publicados no período entre-guerras com “Inglaterra” em seus

títulos e muitos produziram imagens retrógradas ou passadistas57.

A representação de anglicidade em trabalhos de autores influentes focalizaram o

ideal de permanência de uma história nacional inglesa58. Um grande número de

autores no final do século XIX e início do XX começaram a desenvolver uma imagem

de anglicidade que trazia novas respostas as perguntas sobre a origem inglesa. Esta

representação de anglicidade definiu o inglês como uma raça misturada da ilha que

teve sua herança racial organizada a partir de diversos povos que viveram na Britânia

no passado. A herança racial derivava, agora, não só dos povos germânicos, mas

também dos antigos bretões, romanos, dinamarqueses e normandos59. Esta herança

incluía a inspiração dos valentes e antigos heróis bretões e também a transmissão da

civilização dos romanos clássicos.

Na cabeça de alguns autores do final das épocas vitorianas e eduardianas, a

imagem dos celtas como indianos começou a se fragmentar como também se

concebeu que a civilização clássica romana teria sido transmitida a população

britânica, ao menos em alguns segmentos. Entre todos estes fatos, dois elementos

ajudaram a desenvolver esta interpretação da origem nacional. Primeiramente, havia

um conceito que Roma transferiu a civilização de antigos povos aos ingleses do

presente e, em segundo lugar, ao menos alguns descendentes destes antigos bretões

55

Uma grande quantidade de livros importantes focalizava a região rural inglesa do sudeste e ignorava as do norte e oeste (Breese 1998). 56

Breese 1998. 57

Ibid. 58

Veja observações de Samuel sobre a permanência d vida nacional. 59

Para uma visão contrastante do século XX sobre as origens nacionais que continuaram a ser produzidas a partir de grupos germânicos veja White 1971.

37

civilizados sobreviveram à invasão anglo- saxã para trazer a civilização a mistura

racial que formou a moderna nação inglesa.

O professor J. Rhys, em seu livro Primórdios da Britânia – Britânia Céltica,

publicado em 1882, escreve sobre a influência romana nos bretões nativos. Notou a

disseminação do cristianismo, alguns conhecimentos da “instituição municipal” e

também o desenvolvimento da língua latina. Percebeu, no entanto, que boa parte desta

cultura estava restrita as “Fortalezas” das “partes latinizadas” em York, Lincoln,

Colchester e Londres60. H. M. Scarth publicou um livro no ano seguinte entitulado

Primóridos da Britânia – Britânia Romana61. Scarth sugere que os “colonizadores”

romanos casaram-se com os “nativos” e, como resultado, “o sangue romano misturou-

se com o da população e, desde então, flui nas veias inglesas...”62 Neste sentido, ao

implantar “colônias” romanas resultou em uma grande mudança “nos hábitos e

maneiras da população”63. Isto incluiu a introdução do cristianismo, que nos últimos

tempos foi “revisto e reacendido e, então, se tornou permanente”64. Outros autores

exploraram o tópico da contribuição romana para a civilização inglesa65.

Haverfield oferece uma solução clara e intelectualmente aceitável para este

problema de como a civilização romana se espalhou sobre os antigos bretões. Este

autor desenvolveu uma interpretação persuasiva da Romanização em seu livro A

romanização da Britânia romana, primeiramente publicado em 1905 e reeditado muitas

vezes durante os anos de 1910 e 192066. De fato, na visão de Haverfield, a antiga

Britânia realmente se tornou romana por meio de um processo conhecido como

“Romanização”. Alguns autores anteriores sugeriram que os habitantes das villae da

Britânia romana eram oficiais de Roma. No relato de Haverfield, no entanto, muito dos

habitantes da elite das fazendas eram tidos como aqueles que romanizaram os nativos

60

Rhys 1882: 100. 61

Scarth 1883: 220. 62

Ibid. 63

Ibid: 181. 64

Ibid: ix. 65

Alguns destes são explorados em Hingley 2000.

38

bretões. Haverfield também argumentou enfaticamente que a idéia de um grande

grupo de colonos romanos vivendo em cidades, fortes e villae entre uma imensa

população de nativos bretões era imprecisa; esta postura ajudou a erradicar a idéia do

celta como indiano67.

Como a civilização romana pode ser transmitida para aos ingleses modernos se

os anglo-saxões massacraram todos os bretões depois da retirada dos romanos? No

final das eras vitorianas e eduardianas, um grande número de autores argumentaram

que elementos da civilização dos romanos passaram para os britânicos modernos

devido à sobrevivência de algumas populações durante a invasão anglo-saxã68. A

existência do cristianismo na antiga Britânia e moderna Bretanha e a suposta

sobrevivência de uma para outra, proporcionou parte do contexto para este desejo de

encontrar a continuidade69.

As idéias de sobrevivência genética e herança romana vieram a ter papéis

distintos no discurso imperialista do século XX. Em seu livro O Império Britânico, Sir

Charles P. Lucas afirmou que, embora no século V todos os vestígios das regras

romanas desapareceram, as longínquas terras do norte nas terras altas da Escócia

Britânica se mantiveram mais ou menos unidas sob a administração romana. Neste

contexto, “sangue romano” foi “misturado com o dos nativos bretões”70. Lucas percebeu

que era difícil supor que a futura Inglaterra não se originaria da “força” deste “povo

maravilhoso” que forneceu “lei, estradas e governo para grande parte do mundo de

então”71. Lucas também sugeriu que “o espírito combativo... entrou no sangue inglês”.

66

Haverfield 1905, 1912 e 1915. 67

Mesmo depois da publicação deste importante trabalho de Haverfield, no entanto, muitas imagens da romanização persistiram, como a imagem do indiano/celta que persistiu em alguns segmentos da sociedade (veja Hingley 2000). 68

Por exemplo, J. Rhys afirmou que era provável que as populações antigas da Britânia sobreviveram a conquista anglo-saxã (1882), enquanto que H. M. Scarth argumenta que as “colônias” de Roma e a cultura se espalhou na Britânia sobreviveu a partida dos romanos e a invasão anglo-saxã (1883: ix). 69

Outros trabalhos desenvolveram idéias semelhantes sobre cristianismo e sobrevivência racial (veja Conybeare 1903 e Locke 1878). 70

1915: 6. 71

Ibid.

39

O autor afirmou que esta mistura produziu “um povo forte e de sucesso” e

argumentou que “as muitas e grandes diversidades ... no Império Britânico irá ... ser,

em última instância, uma fonte de força e não de fraqueza”72. Na visão de Lucas, esta

herança romana tem um papel imperial distinto para o inglês no mundo moderno73.

Idéias da sobrevivência racial e civilização tiveram um papel importante nas

imagens de anglicidade durante o princípio do século XX. Lucas adotou uma

aproximação quase religiosa na maneira como as sucessivas virtudes raciais dos

bretões, romanos, dinamarqueses, saxões e normandos se combinaram em uma

mistura para inventar os criadores do Império Britânico74. Mistura racial como fonte

para a forte raça inglesa evidentemente teve um papel distinto na ideologia do

propósito imperial. A idéia de que a população da Inglaterra e Britânia era

geneticamente misturada serviu para proporcionar um mito de origem mais aberto que

a imagem teutônica, uma idéia que poderia servir para criar um maior sentido de

unidade para o povo britânico. Fundamentalmente, a herança do espírito imperial dos

romanos clássicos também deu, é de se supor, ao inglês um papel distinto na direção

da política imperial em contraste com os galeses e escoceses. O trabalho de Haverfield

sobre romanização sugere que os romanos não civilizaram os galeses e escoceses até

o mesmo nível dos ingleses75. A Britânia romana, por isso, foi significativa na definição

do imperialismo e civilização moderna inglesa.

Depois da I Guerra Mundial, esta idéia da força racial derivada de uma mistura

étnica continuou a ser desenvolvida. Alguns relatos deste período consideram, com

grandes detalhes, as maneiras nas quais a Bretanha moderna estava relacionada a

Roma clássica. Neste sentido, eles redefiniram o caminho no qual a tocha da

civilização foi transferida entre os dois impérios tão distanciados pelo tempo. Como

72

Ibid. 73

Hingley 2000. 74

Symonds 1986: 51-3. 75

Os “distritos civis” da Britânia romana de Haverfield cobrem somente as terras baixas, o norte e oeste permaneceram como um “distrito militar” .

40

resultado, uma forte idéia teleológica das origens nacionais lineares inglesas

continuaram a se desenvolver mesmo depois do final da Primeira Guerra.

O livro Britânia Romana do arqueólogo e filósofo Robin G. Collingwood foi

publicado em 1923. Considerando a história pós-romana da Britânia, Collingwood

seguiu os autores anteriores ao argumentar que “uma grande massa de bretões” deve

ter sobrevivido à invasão anglo-saxã, quando cidades e fazendas foram destruídas76. A

raça britânica, neste contexto, de acordo com Collingwood, não era composta somente

do sangue saxão, normando e dinamarquês, mas também o dos antigos bretões.

Collingwood continuou especulando que o caráter expresso no trabalho de grandes

artistas ingleses era derivado diretamente da arte de natureza romano-britânica77. Por

meio deste esquema, criou uma concepção linear da história inglesa tendo como meio

o estilo da arte romano-britânica e inglesa moderna.

Stanley Baldwin78 apresentou duas comunicações em meados dos anos de 1920

que ajudaram a identificar o significado do Império Romano para a elite dirigente

inglesa do período. “Sobre a Inglaterra e o Oeste”, apresentado a Royal Society de St.

George em 1924, é a definição e celebração da anglicidade na qual Baldwin trabalha

sobre uma variedade de concepções, incluindo a da Roma clássica. Referindo-se a

Roma, argumenta que os ingleses herdaram um espírito imperial e a carga do império

dos romanos clássicos. Em sua comunicação presidencial para a Classical Association

em 1926, Baldwin desenvolveu uma idéia da herança racial romana dos ingleses com

muitos detalhes. Iniciou com o valor dos clássicos para o presente enfatizando a

conexão geográfica entre a Britânia e Roma79. O apelo de Baldwin para a

ancestralidade romana dos ingleses parece ter sido desenvolvido a partir das idéias

ressaltadas por Sir Charles Lucas, no entanto, ressalta a continuidade genética,

mesmo mais tarde ao definir o caráter dos ingleses.

76

Collingwood 1923: 100. 77

Ibid: 101. 78

Baldwin (1867-1947) foi educado no Harrow e Trinity College, Cambridge. Foi primeiro-ministro da Grã-Bretanha em várias ocasiões entre 1923 e 1936.

41

A idéia da ancestralidade romana dos ingleses parece ter se tornado um tópico

importante nos anos de 1920. Arthur Weigall, seu livro Errantes pela Britânia Romana

(1926) expressa um desejo de demonstrar uma conexão próxima dos britânicos “do

presente” e os romanos80. Os romanos trouxeram civilização para os britânicos, mas “...

o sangue dos romanos” somente passou por 45 pessoas para “atingir nossas

veias...”81. Aceitou que depois da queda de Roma, a chegada dos anglo-saxões e

normandos aumentaram a mistura; no entanto, considerou que o sangue de diversos

romanos está nas veias dos ingleses82. Observando a invasão romana, considerou que

ela “introduziu em nosso sangue algo da ‘grandeza que foi Roma’ que ajudou a enviar-

nos a aventura e conquista de toda a face da terra”83.

A popularidade do conceito de origem racial mista, nesta época, pode ser vista

em um contexto de desejo de encontrar uma ideologia que pudesse unir supostas

raças brancas da Inglaterra, Grã-Bretanha e o Império. Ao mesmo tempo, como

pudemos perceber, isto deu ao inglês um papel imperial diferenciado dentro do Reino

Unido, como herdeiros da civilização imperial romana. Isto pode também, no entanto,

refletir um consenso sobre a crescente ameaça política da Alemanha neste período e o

desejo de criar uma clara distinção racial entre ingleses e alemães.

Os comentários de Windle, Baldwin e outros84 desenvolveram uma série de

visões que foram expressadas, anteriormente, pelos autores eduardianos. A ênfase na

inclusão dos romanos em uma visão geral do caráter inglês, contudo, proporcionou um

novo discurso de anglicidade, como o apelo a uma herança racial romana parece ter se

tornado muito grande nos anos de 1920. Estes conceitos de anglicidade continuaram a

79

1926: x. 80

Weigall 1926: 16. 81

Ibid: 20. Também considerou uma certa mistura do sangue anglo-saxão e normando, mas desejou, evidentemente, enfatizar a conexão das populações britânicas modernas com os bretões/romanos civilizados. 82

Weigall, 1926: 20. 83

Ibid: 28. 84

Alguns outros relatos importantes são considerados em Hingley 2000.

42

se desenvolver muito bem ainda no século XX85. Por exemplo, Humfrey Grose-Hodge

publicou seu livro Panorama romano: a base para hoje em 1944, um pouco antes do

final da II Guerra Mundial. Grose-Hodge sugeriu que embora o povo romano tivesse

morrido há muito tempo, a Itália fascista não percebeu o fato. O caráter do povo

romano, no entanto, continuou como “ancestral direto” dos ingleses86. Afirmou que “...

em ações, somos romanos”87.

O apelo de Grose-Hodge por uma ancestralidade romana repete visões

anteriores, mas também pode ser vista no contexto do desenvolvimento do imaginário

romano imperial de Benito Mussolini. Mussolini mencionou diretamente a Roma

clássica ao desenvolver suas próprias ambições imperiais, algumas vezes inclinado em

oposição ao Império Britânico88. Grose-Hodge estava, talvez, procurando conter os

esforços de Mussolini trazendo a civilização clássica romana para perto da Inglaterra. A

civilização romana nos anos de 1940 pode ter sido atrativa para alguns, mas o

imperialismo romano era menos admirado. A luz destes acontecimentos na Itália,

muitos lembraram dos aspectos despóticos da natureza das regras romanas. Em

meados dos anos de 1930 e 1940, Roma passou a ser vista como modo de despotismo

estrangeiro – uma ameaça a segurança nacional – ao invés de uma grande civilização

que proporcionou morais imperiais.

85

A idéia de que a força da nação inglesa deriva mistura racial no estabelecimento da ilha ainda existe na sociedade contemporânea britânica (veja o comentário de Norman Tebbit, destacado por Wlash, 1997: 87). 86

1944: 10. 87

Ibid.

43

3. Resumo:

Embora o mito das origens teutônicas inglesas não tenha desaparecido de

repente no final do século XIX, a imagem de uma herança racial dos romanos parece

tornar-se mais popular durante os anos de 1890 e aumentando nos anos de 1920.

Sugeri que se tornou politicamente útil para a elite produzir, naquele momento, ambas

idéias, a herança da bravura dos antigos bretões e civilização dos bretões nativos pela

Roma imperial. Carregar a herança dos antigos bretões e dos romanos da Britânia para

o mundo moderno exigiu, ao menos, a sobrevivência de parte da população

romano/britânica durante a conquista anglo-saxã e, por isso, o declínio do mito

teutônico. A idéia da mistura racial também se tornou aceitável na interpretação

arqueológica da História da Bretanha durante o século XX89.

A idéia de herança da civilização romana pelos ingleses teve um impacto na

arqueologia britânica. A. L. F. Rivet, em 1959, comentou sobre um mito que se

desenvolveu no contexto britânico como resultado do trabalho de Haverfield.

Haverfield, por meio de seu trabalho sobre a romanização, corrigiu uma idéia

predominante na qual a Britânia era uma província habitada por “romanos ricos”

(freqüentemente generais) por um lado e “massas selvagens de bretões servis”90.

Conseguiu isto ao apontar que bretões e romanos não eram conceitos mutuamente

excludentes. Rivet sugeriu que o relato de Haverfield resultou, não por sua falta, em um

novo mito da Britânia como “... uma província tão verdadeiramente britânica que

nenhum agricultor estrangeiro ousaria mostrar sua face nela”91.

Rivet não menciona em partes específicas do trabalho que estava pensando

neste contexto, mas alguns escritos de outros autores, que foram revistos neste artigo,

88

Veja Clark 1939; Manacorda e Tamassia 1985; Moati 1993: 130-42; Quatermaine 1995; Stone 1999 e Terrenato 1998. 89

Por exemplo, Hawkes e Hawkes 1947. Jones discute uma idéia contrária ao mito germânico nos primórdios da arqueologia medieval (1996), mas a idéia de origem racial mista dominou muito o pensamento arqueológico, particularmente nos estudos de pré-história. 90

Rivet 1958: 29.

44

deveriam estar em sua cabeça92. Muitos textos de princípios do século XX possuem

uma visão linear e teleológica da história doméstica inglesa. Alguns relatos parecem

sugerir que os romanos transmitiram para os ingleses uma civilização romano/britânica

singular que conduziu diretamente a Inglaterra moderna. Como resultado, o espírito

inglês é traçado em direção ao passado romano de uma maneira na qual os nativos

puderam adotar a civilização romana e aperfeiçoá-la em um esforço ativo de criar a

Inglaterra moderna. O bravo espírito dos antigos bretões que se opuseram a Roma fora

incorporado a esta distinta mistura racial inglesa. Como Rivet enfatizou, algumas

gravuras populares da Britânia romana deu uma visão nacionalista de uma província

britânica civilizada – um conceito inerentemente excludente. O interesse sobre linhas

de continuidade na vida nacional da Inglaterra estruturou trabalhos acadêmicos e

populares e a Arqueologia romana teve um papel distinto. Teorias arqueológicas e

objetos recolhidos por meio da prática arqueológica ajudaram a justificar as imagens de

anglicidade.

David Braund argumentou que os estudos romano-britânicos não foram menos

insulares do que se objeto. Por todos os lados, a ilha formou uma proteção para um

grupo de estudiosos claramente definidos que conduziram trabalhos de um tipo

específico. Estes comentários ecoam os de Rivet. Imagens populares produziram uma

pintura da província tão britânica que nenhum romano ousaria pisar nela e a teoria

arqueológica se desenvolveu, talvez, sobre uma ampla base comparável. O auto

controle e exclusivo caráter dos estudos romano/britânicos foi construído, ao menos até

determinado nível, sobre o valor distinto da Arqueologia romana para os britânicos no

cotidiano do Império93. Acredito que ambos, a imagem popular e as interpretações

arqueológicas, refletem um caráter comum, um interesse com relação a origem

nacional inglesa.

91

Ibid. 92

Acrescenta-se ainda que neste artigo Rivet criticou a interpretação Britânia romana de Rudyard Kipling no livro Puck of Pook’s Hill pela interpretação nacionalista do passado e este trabalho deveria estar em sua cabeça quando escreveu os comentários de 1958 (Rivet 1976, Hingley 2000).

45

O trabalho de Haverfield teve a maior influência no desenvolvimento desta

ênfase nacionalista na Arqueologia romana sobre a Britânia. A teoria de Haverfield

sobre a Romanização serviu para sustentar uma tradição que se desenvolvia em seu

tempo. Proporcionou credibilidade acadêmica para a idéia que uma ligação racial direta

levava a civilização romana até a moderna Inglaterra. O trabalho de Haverfield foi

utilizado por outros estudiosos de uma maneira não pretendida por ele94; de fato, os

comentários de Rivet sugerem que este é o ponto. É provável, no entanto, que o

trabalho de Haverfield fora inspirado em um desejo inconsciente de estabelecer linha

de continuidade na história nacional por meio da herança da Inglaterra da civilização

européia. Isto pode ter gerado um caminho lógico para desenvolver uma idéia de

romanização no período eduardiano, mas argumentaria que tais interesses sobre a

herança da civilização ocidental criaram uma ênfase nacional particular na

aproximação da Britânia romana e a identidade ocidental95. Estudiosos modernos que

estudaram a Britânia romana herdaram esta ênfase nacional e gostariam, agora, de

reconsiderar tais aproximações ao passado romano. A reintegração dos estudos

romano/britânicos nos estudos clássicos mais amplos serve para questionar este

problema96, mas para procurar acabar com esta situação, é fundamental que aspectos

eurocêntricos da Arqueologia Clássica também sejam objeto de uma crítica adequada.

93

Hingley 2000. 94

Freeman indicou, claramente, os contatos europeus de Haverfield e o interesse sobre os estudos dos romanos no Continente e, portanto, sua sugestão que o interesse de Haverfield está focalizado na Europa Ocidental como um todo é apropriado (Freeman 1996. Veja também MacDonald 1924). 95

Veja os comentários da introdução como base para esta hipótese. 96

Veja Hingley 2000, 165.

46

Bibliografia citada:

Atkinson, J. A., Banks, I. e O’Sullivan, J. (edd.) 1996. Nationalism and Archaeology:

Scottish Archaeological Forum (Glasgow).

Bahrani, Z. 1999. “Conjuring Mesopotamia: imaginative geography and a world past,” in

L. Meskell (ed.) Archaeology under fire: nationalism, politics and heritage in the

Eastern Mediterranean and Middle East (London): 159-74.

Baldwin, S. 1924. “On England and the West: address at the annual dinner of the Royal

Society of St George at the Hotel Cecil, 6th May 1924,” in S. Baldwin On England

and Other Addresses (London): 1-9.

Baldwin, S. 1926. The Classics and the Plain Man. Presidential Address delivered to the

Classical Association in the Middle Temple Hall, 8th January, 1926 (London).

Baumgart, W. 1982. Imperialism: the idea and reality of British and French colonial

expansion, 1880-1914 (Oxford).

Bernal, M. 1985. Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilisation. Volume 1

The Fabrication of Ancient Greece 1785-1985 (London).

Bernal, M. 1994. “The Image of Ancient Greece as a tool for colonialism and European

Hegemony”, in G. C. Bond and A. Gilliam (edd.) Social Constructions of the Past:

representations as power (London): 119-28.

Bowler, P. J. 1989. The Invention of Progress: the Victorians and the past (Oxford).

Braund, D. 1996. Ruling Roman Britain: kings, queens, governors and emperors from

Julius Caesar to Agricola (London).

Breese, S. 1998. “In Search of Englishness; in search of votes,” in J. Arnold, K. Davies

and S. Ditchfield (edd.), History and Heritage: consuming the past in

contemporary culture (Shaftesbury, Dorset): 155-68.

Church, A. J. 1887. The Count of the Saxon Shore or the Villa in Vectis - a tale of the

departure of the Romans from Britain (London).

Clark, G. 1939. Archaeology and Society (London).

Collingwood, R. G. 1923. Roman Britain (London).

47

Colls, R. 1986. “Englishness and the Political Culture,” in R. Colls e P. Dodd

(edd.), Englishness: politics and culture 1880-1920 (London): 29-61.

Conybeare, E. 1903. Early Britain, Roman Britain. Society for Promoting Christian

Knowledge (London).

Cowper, W. 1782. “Boadicea: an ode,” in H. S. Milford (ed.) Cowper: poetical works (4th

edition, London): 310-311.

Cramb, J. A. 1900. Reflections on the Origins and Destiny of Imperial Britain (London).

Deletant, D. 1998. “Rewriting the Past: trends in contemporary Romanian

Historiography”, in D. Daletant e M. Pearton (edd.) Romania Observed: studies in

contemporary Romanian History (Bucharest): 276-303.

Díaz-Andreu, M. e Champion, T. (edd.) 1996.Nationalism and Archaeology in Europe

(London).

Dietler, M. 1998. “A tale of three sites: the monumentalization of Celtic oppida and the

politics of collective memory and identity,” World Archaeology 30: 72-89.

Edwards, C. 1999. “Introduction: shadows and fragments,” in C. Edwards (ed.), Roman

Presences: receptions of Rome in European Culture, 1789-1945 (Cambridge): 1-

18.

Edwards, C. (ed.) 1999. Roman Presences: receptions of Rome in European Culture,

1789-1945 (Cambridge).

Eldridge, C. 1996 The Imperial Experience from Carlyle to Forster (London).

Farrell, J. 2001. Latin Language and Latin Culture: from ancient to modern times

(Cambridge).

Freeman, P. W. M. 1996. “British imperialism and the Roman Empire,” in J. Webster

and N. Cooper (edd.), Roman Imperialism: post-colonial perspectives (Leicester):

19-33.

Freeman, P. W. M. 1997. “Mommsen through to Haverfield: the origins of Romanization

studies in late 19th-c. Britain,” in D. Mattingly, (ed.), Dialogues in Roman

imperialism: power, discourse, and discrepant experiences in the Roman Empire

(Journal of Roman Archaeology, Portsmouth. Rhode Island): 27-50.

48

Galinsky, K. 1992. Classical and Modern Interactions: postmodern architecture,

multiculturalism, decline and other issues (Austin).

Graves-Brown, P., Jones, S. e Gamble, C. (edd.) 1996. Cultural Identity and

Archaeology: the construction of European Communities (London).

Green, G. E. 1900. A Short History of the British Empire for the use of junior forms

(London).

Grose-Hodge, H. 1944. Roman panorama: a background for to-day (Cambridge).

Habinek, T. N. 1998 The Politics of Latin Literature: writing, identity, and empire in

ancient Rome (Princeton).

Hall, E. 1989. Inventing the Barbarian: Greek self-identification (Oxford).

Hardie, P. 1992. “Augustan Poets and the Mutability of Rome”, in Powell, A. (ed.)

Roman Poetry and Propaganda in the Age of Augustus (Bristol): 59-82.

Haverfield, F. 1905. “The Romanization of Roman Britain,” Proceedings of the British

Academy, 2: 185–217.

Haverfield, F. 1912. The Romanization of Roman Britain (2nd edition, Oxford).

Haverfield, F. 1915. The Romanization of Roman Britain (3rd edition, Oxford).

Haverfield, F. and Macdonald, G 1924. “The study of Roman Britain: a retrospect,” in F.

Haverfield and G. Macdonald, The Roman Occupation of Britain: being six Ford

Lectures delivered by F. Haverfield (Oxford): 59-88.

Hawkes, J. e Hawkes, C. 1947. “Land and People,” in E. Barker (ed.), The Character of

England (Oxford): 1-28.

Henig, M. 1995. The Art of Roman Britain (London).

Hingley, R. 1991. “Past, present and future—the study of the Roman period in Britain”,

Scottish Archaeological Review, 8: 90–101.

Hingley, R. 1995. “Britannia, Origin Myths and the British Empire,” in S. Cottam, D.

Dungworth, S. Scott and J. Taylor (edd.), TRAC94. proceedings of the fourth

annual Roman Theoretical Archaeology Conference, Durham 1994 (Oxford): 11-

23.

49

Hingley, R. 1996. “The ‘legacy’ of Rome: the rise, decline and fall of the theory of

Romanization,” in J. Webster and N. Cooper (edd.), Roman Imperialism: post-

colonial perspectives (Leicester): 35-48.

Hingley, R. 2000. Roman Officers and English Gentlemen: imperialism and the origin of

archaeology (London).

Hingley, R. No prelo a. ‘Images of Rome’, in R. Hingley (ed.) forthcoming Images of

Rome: Perceptions of Rome in Europe and the United States of America in the

Modern World (Journal of Roman Archaeology 2001).

Hingley, R. No prelo b. ‘An imperial legacy – the contribution of classical Rome to the

character of the English’, in R. Hingley (ed.) forthcoming Images of Rome:

Perceptions of Rome in Europe and the United States of America in the Modern

World (Journal of Roman Archaeology 2001).

Hingley, R. (ed.) No prelo. Images of Rome: Perceptions of Rome in Europe and the

United States of America in the Modern World (Journal of Roman Archaeology

2001).

Howkins, A. 1986. “The discovery of rural England,” in R. Colls and P. Dodd (edd.),

Englishness: politics and culture 1880-1920 (London): 62-88.

Hupchick, D.P. 1994. Culture and History in Eastern Europe (New York).

Jenkyns, R. (ed.) 1980. The Victorians and Ancient Greece (Oxford).

Jenkyns, R. (ed.) 1992. The Legacy of Rome: a new appraisal (Oxford).

Johnson, S. 1989. Rome and its Empire (London).

Jones, M 1996. The End of Roman Britain (London).

Jones, S. e Graves-Brown, P. 1996. “Introduction: archaeology and cultural identity in

Europe”, in P. Graves-Brown, S. Jones and C. Gamble (edd.) Cultural Identity

and Archaeology: the construction of European Communities (London): 1-24.

Jones, W. R. 1971. “The image of the barbarian in Medieval Europe”, Comparative

Studies in Society and History 13: 376-407.

Judd, D. 1996. Empire: the British imperial experience, from 1765 to the present

(London).

Kipling, R. 1906. Puck of Pook’s Hill. Reprinted 1989 (London).

50

Koebner, R. e Schmidt, H. Dan 1964. Imperialism: the story and significance of a

political word (Cambridge).

Kohl, P. C. e Fawcett, C. (edd.) 1995. Nationalism, Politics and the practice of

archaeology (Cambridge).

Lefkowitz, M. R. e MacLean Rogers, G. 1996. Black Athena Revisted (London).

Levine, P. 1986. The amateur and the professional: antiquarians, historians and

archaeologists in Victorian England, 1838-1883 (Cambridge).

Liverani, M 1996. “The Bathwater and the Baby”, in M. R. Lefkowitz. and G. MacLean

Rogers Black Athena Revisted (London): 421-27.

Locke, W. 1878. Stories of the Land we Live in: or England’s history in simple language

(London).

Lucas, C. P. 1915. The British Empire: six lectures (London).

Macdonald, G. 1924. “Bibliographical notice,” in F. Haverfield and G. Macdonald The

Roman Occupation of Britain: being six Ford Lectures delivered by F. Haverfield

(Oxford): 15-37.

Macdonald, S. 1987. “Boadicea: warrior, mother and myth,” in S. Macdonald, P. Holden

and S. Ardener (edd.), Images of Women in Peace and War (London): 40-62.

MacDougall, H. A. 1982. Racial Myths in English History: Trojans, Teutons and Anglo-

Saxons (London).

Majeed, J. 1999. “Comparativism and references to Rome in British imperial attitudes to

India,” in C. Edwards (ed.), Roman Presences: receptions of Rome in European

Culture, 1789-1945 (Cambridge): 88-109.

MAN 1994. (Musée des Antiquités nationales) Vercingetorix et Alesia (Paris).

Manacorda, D. and Tamassia, R. 1985. Il piccone del regime (Rome).

Marshall, H. E. 1905. Our Island Story: A history of Britain for boys and girls (London).

Mattingly, D. 1996. “From one colonialism to another: imperialism and the Maghreb”, in

J. Webster and N. Cooper (edd.) Roman Imperialism: post-colonial perspectives

(Leicester:): 49-70.

51

Meskell, L. 1999. “Introduction: archaeology matters”, in L. Meskell (ed.)

Archaeology under fire: nationalism, politics and heritage in the Eastern

Mediterranean and Middle East (London): 1-12.

Meskell, L. (ed.) 1999. Archaeology under fire: nationalism, politics and heritage in the

Eastern Mediterranean and Middle East (London).

Mikalachki, J. 1998. The Legacy of Boadicea: Gender and nation in early modern

England (London).

Moatti, C. 1993. The Search for Ancient Rome (London).

O’Neill, E. 1912. A Nursery History of England (London).

Pagden, A. 1995. Lords of all the world: ideologies of Empire in Spain, Britain and

France c 1500-c1800 (London).

Patterson, T. C. 1997. Inventing Western Civilization (New York).

Quartermaine, L 1995. “‘Slouching towards Rome’: Mussolini’s imperial vision,” in T.J.

Cornell and K. Lomas (edd.), Urban Society in Roman Italy (London): 203-216.

Rait, R. S. e Parrott, J. E. 1909. Finger-Posts to British History: a summary with notes,

of the historical events from the earliest time to the year 1908 (London).

Rhys, J. 1882. Early Britain – Celtic Britain (London).

Rivet, A. L. F. 1958. Town and Country in Roman Britain (London).

Rivet, A. L. F. 1976. Rudyard Kipling’s Roman Britain: fact or fiction (Keele).

Robbins, K. 1998. Great Britain: identities, institutions and the idea of Britishness

(London).

Romm, J.S. 1992. The Edges of the Earth in Ancient Thought: geography, exploration,

and fiction (Princeton).

Samuel, R. 1998. Island Stories: Unravelling Britain - Theatres of Memory, Volume II

(London).

Scarth, H. M. 1883. Early Britain, Roman Britain (London).

Shaw, B.D. 1983. “‘Eaters of Flesh, Drinkers of Milk’: the ancient Mediterranean

ideology of the pastoral nomad”, Ancient Society 13/14: 5-31.

Smiles, S. 1994. The Image of Antiquity: Ancient Britain and the romantic imagination

(London).

52

Smith, A. D. 1986. The Ethnic Origins of Nations (Oxford).

Stobart, J. C. 1912. The Grandeur that was Rome: A survey of Roman culture and

civilization (London).

Stocking, G. W. 1987. Victorian Anthropology (Oxford).

Stone, M. 1999. “A flexible Rome: Fascism and the cult of romanità,” in C. Edwards

(ed.), Roman Presences: receptions of Rome in European Culture, 1789-1945

(Cambridge): 205-220.

Stray, C. 1998. Classics Transformed: schools, universities, and society in England,

1830-1960 (Oxford).

Symonds, R. 1986. Oxford and Empire: the last lost cause? (London).

Terrenato, N. 1998. “The Romanization of Italy: global acculturation or cultural

bricolage?” in C. Forcey, J. Hawthorne, e R. Witcher (edd.), TRAC97:

Proceedings of the Seventh Annual Theoretical Roman Archaeology Conference

Nottingham 1997 (Oxford): 20-7.

Thornycroft. E. 1932. Bronze and Steel: the life of Thomas Thornycroft, sculptor and

engineer (Long Compton).

Trevelyan, M 1900. Britain’s Greatness Foretold: the story of Boadicea, the British

Warrior-Queen (London).

Trigger, B. G. 1984 “Alternative archaeologies: nationalist, colonialist, imperialist”, Man

19, 355-70.

Trigger, B. G. 1989. A History of Archaeological Thought (Cambridge)

Turner, F. M. 1981. The Greek Heritage in Victorian Britain (London).

Vance, N. 1997. The Victorians and Ancient Rome (Oxford).

Walsh, K. 1997. The Representation of the Past: museums and heritage in the post-

modern world (Reprint, London).

Warner, M. 1996. Monuments & Maidens: the allegory of the female form (Reprint,

London).

Webster, G. 1978. Boudica: the British Revolt against Rome AD 60 (London).

53

Webster, J. 1996. “Ethnographic barbarity: colonial discourse and ‘Celtic Warrior

Societies’”, in J. Webster and N. Cooper (edd.) Roman Imperialism: post-colonial

perspectives (Leicester): 111-124.

Webster, J. 1999. “Here be Dragons! The continuing influence of Roman attitudes to

northern Britain”, in B. Bevan (ed.) Northern Exposure: interpretative devolution

and the Iron Ages in Britain (Leicester): 21-32.

Webster, J. e Cooper, N. (edd.) 1996. Roman Imperialism: post-colonial perspectives

(Leicester).

Weigall, A. 1926. Wanderings in Roman Britain (London).

White, D. A. 1971. “Changing Views of the Adventus Saxonicum in Nineteenth and

Twentieth Century English Scholarship,” Journal of the History of Ideas, 32: 585-

94.

Williams, C. 1999. “‘This frantic woman’: Boadicea and English neo-classical

embarrassment,” in M. Wyke and M. Biddiss (edd.) The Uses and Abuses of

Antiquity (Bern): 19-36.

Windle, B. C. A. 1897. Life in early Britain: being an account of the early inhabitants of

the island and the memorials which they have left behind them (London).

Windle, B. C. A. 1923. The Romans in Britain (London).

Woolf, G. 1998. Becoming Roman: the origins of provincial civilisation in Gaul

(Cambridge).

Wyke, M. 1997. Projecting the past: ancient Rome, cinema and history (London).

Wyke, M. 1999. “Sawdust Caesar: Mussolini, Julius Caesar, and the drama of

dictatorship”, in M. Wyke and M. Biddiss (edd.) The Uses and Abuses of

Antiquity (Bern): 167-86.

Wyke, M. e Biddiss, M. 1999. “Introduction: using and abusing antiquity”, in M. Wyke

and M. Biddiss (edd.) The Uses and Abuses of Antiquity (Bern): 13-18.

Wyke, M. e Biddiss, M. (edd.) 1999 The Uses and Abuses of Antiquity (Bern).

As formas do discurso historiográfico

54

Pedro Paulo A. Funari97

A História é definida por sua forma, antes que por seu conteúdo. O quê é a História? Para que possamos

tratar disso, convém começar por diferenciar dois sentidos muito diferentes da palavra ‘História’. Com H maiúsculo,

é o nome de uma disciplina, que não se confunde com história, aquilo que ocorreu no passado. Em nossa língua,

assim com em diversas outras línguas de origem latina, história costuma designar, a um só tempo, aquilo que se

passou e o relato sobre o passado. Os dois termos, contudo, não se confundem. Em alemão, diferencia-se, de forma

clara, o passado, aquilo que se passou (die Geschichte) e o relato do passado (die Historie), usando o alemão o verbo

‘passar, acontecer’ (geschehen) para cunhar o termo Geschichte (literalmente, “o Passado”).

Notemos que a própria palavra História, hoje tão corriqueira, é uma adventícia, um termo erudito que não

possui sentido em nossa língua portuguesa ou em qualquer das outras línguas modernas ocidentais. Historie, history,

histoire, storia, História, nenhuma delas encontra explicação para seu sentido no alemão, inglês, françês, italiano ou

português. Historia é uma palavra do grego antigo, derivada de histor, “investigar, pesquisar” e significava, em sua

língua de origem, “pequisa” em geral. Este sentido lato da palavra, de certa forma, ainda persiste em português, por

exemplo na expressão “História Natural”.

Heródoto foi o primeiro a usar a expressão historia para designar uma pesquisa sobre as causas dos

conflitos entre gregos e persas, incluindo uma investigação sobre o passado, mas não restrito a ele. Heródoto

investigou os costumes dos povos, ouviu seus relatos sobre seu passado e redigiu um grande apanhado que trata, ao

mesmo, do presente de sua época e do passado. Heródoto, já na antigüidade foi, por isso, chamado de pai da

História, pois ele inventou uma nova forma literária, um novo gênero: o relato de pesquisa que inclui o passado. O

termo historia passou, assim, a designar uma forma de expressão literária, preocupada com a aisthesis, com a

percepção e com a impressão estética que este relato causa no leitor. História como gênero literário, iniciado por

97 Professor Titular, Departamento de História, IFCH-UNICAMP, C. Postal 6110, Campinas, SP, 13081-970,

[email protected], Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP.

55

Heródoto, continuará no Ocidente até o século XIX, quando da introdução de novos conceitos, como veremos

adiante.

Tucídides será o grande consolidador da nova forma literária História, com seu relato sobre a Guerra do

Peloponeso. Sua narrativa, assim como para Heródoto, parte do presente, da busca das causas (aitiai) da Guerra que

testemunhou entre os próprios gregos. Tucídides, testemunha ocular de muitos episódios que narra, recria, em sua

obra, inúmeros discursos de personagens, como no caso notável de Péricles. Os discursos foram escritos por

Tucídides e são verdadeiros exercícios de retórica e, em certo sentido, podemos dizer que a própria forma literária

História é filha direta da Retórica e esta da Pólis democrática.

De fato, foi a vida citadina, a disputa em praça pública, por meio do embate de um rhetor (“autor de uma

arenga”) com outro, que surgiu a nova forma de expressão. A polis criou o cidadão (polités), sujeito autônomo em

seu poder de fala em praça pública. A agorá (praça do mercado e local de reuniões da assembléia) era o local onde

se podia falar (legein), juntar (legein) conceitos e argumentos, em um discurso (logos), resultado da razão (logos). O

conceito mesmo central de logos deriva da importância da arte da persuasão retórica (peithein).

A forma narrativa “História”, neste contexto, não poderia deixar de representar um tipo específico de

persuasão, de retórica sobre as causas dos acontecimentos. Heródoto e Tucídides não queriam apenas narrar ou

explicar, defendiam, mirando-se nos logoi da praça pública, um ponto de vista sobre a sociedade da qual faziam

parte, Atenas, e seu sistema político, fundado, precisamente, na isegoria (“igualdade de fala, liberdade de

expressão”). Assim como os discursos, a narrativa histórica deve convencer pela beleza, forma, palavra latina que

significa, a uma só vez, a aparência e a formosura e que bem traduz os conceitos gregos de morphé (forma), skhêma

(esquema), taksis (ordem), pois a forma implica uma estruturação, uma ordenação dos argumentos e dos elementos.

A forma histórica consolida-se, a partir do século V a.C. e perdura, em ambiente latino, calcada em

recursos narrativos retóricos, em particular nos discursos reportados em linguagem direta ou indireta. Essa narrativa

histórica aparece, também, na iconografia antiga, como no famoso mosaico da Casa do Fauno, em Pompéia, baseado

56

em pintura de época helenística, da Batalha de Issus. O mosaico pompeiano deve ter sido executado antes de 100

a.C. e reproduz, com relativa fidelidade, o original. O tema do confronto entre Alexandre, o Grande, e Dario, entre a

civilização helênica e o mundo oriental, consubstanciava-se, de forma extraordinária, nesta representação. A ordem

(taksis) das tropas gregas opõem-se à desordem das fileiras persas, assim como a razão (logos) se contrapõe à

desrazão oriental. Alexandre é apresentado com suas feições, semelhante aos seus companheiros, um homem entre

homens, a comandar pela razão e em nome da razão. Dario aparece todo paramentado, um soberano que não possui

concidadãos, mas súditos, constituindo não uma koinonia (comunidade) sob regras (nomoi, “regras feitas pelos

homens”), mas um bando, uma horda desregrada que apenas deve obedecer ao despotés (“senhor de escravos”)

Dario.

Na historiografia contemporânea, inventou-se, à maneira dos gregos, um Oriente em tudo oposto ao

Ocidente, irracional, imutável, entregue ao despotismo e cuja libertação dependeria da ação providencial do discurso

lógico, da racionalidade e da retórica ocidentais, filhas da Grécia clássica. Ao longo das décadas de domínio

colonial, até a descolonização dos anos 1960, fazia-se uma analogia entre a ação civilizadora dos europeus e a

vitória helênica sobre o oriente, como Pierre Jouguet deixava claro em 1927 a respeito desta vitória de Alexandre:

“O Helenismo consquistou o Oriente pelas armas da Macedônia e por suas próprias instituições...não há

dúvida de que a civilização ocidental se apoia na concepção grega e que ela seja constituída pelo livre jogo das

iniciativas individuais. Ao tempo de Alexandre, ela já havia provado sua superioridade”.

A História continua, pois, como uma narrativa impregnada de retórica. Desde o século XIX, a disciplina

adquiriu, contudo, feições próprias, abandonando sua postura de forma literária, para constituir-se em ciência, uma

forma de conhecimento, Wissenschaft (wissen significa conhecer). Para Leopold von Ranke, em 1823, a História

deveria descrever aquilo que efetivamente aconteceu, wie es eingentlich gewesen. Afastava-se, assim, de forma

programática, a forma literária, em benefício da descrição positiva do passado, tal como reportado nos documentos.

Seria apenas no século XX que o caráter narrativo, a forma do discurso historiográfico, voltaria à baila e retornaria a

preocupação com uma análise da construção do argumento na historiografia.

57

A retórica, na Antigüidade presente, de forma direta, nos discursos dos personagens históricos e na

iconografia, aparece, em nossa época, de forma mais mediada. A persuasão dá-se pela uso seletivo das fontes, pelo

arranjo dos argumentos, pela seleção de um repertório de imagens e de elementos da cultura material que se

conformam à cadeia explicativa posta em marcha pelo historiador. A forma volta a ser importante, a beleza de uma

frase ou de título de livro adquire importância e retorna-se, de maneira original, a uma história ancorada na forma,

volta-se à forma literária, ainda que em um contexto muito diverso daquele antigo.

A construção dos heróis: do discurso épico à historiografia

A História é uma forma literária surgida no século V a.C., mas o relato é muito anterior. Mythos significa,

justamente, “relato”, “uma narrativa”, uma “história”, sem qualquer conotação de veracidade ou falsidade. Os mitos

são histórias repetidas, trazidas de pai para filho pela repetição. Como diziam os latinos, trazidas e, daí, tornadas

tradição. Os relatos míticos eram aceitos como parte da transmissão dos antigos sobre o universo, suas origens e seu

funcionamento. Segundo essa tradição, haveria os imortais (os deuses), os mortais e os heróis, mortais que podiam

se tornar imortais ou deuses. Os heróis foram os principais protagonistas da épica, dos grandes poemas fundadores

da civilização grega clássica, a Ilíada e a Odisséia.

A forma épica corresponde a um período histórico preciso, a uma sociedade aristocrática de princípios do

primeiro milênio a.C. Os heróis representam bem essa sociedade aristocrática, pois são os “melhores” (aristoi),

superiores aos outros, mas, em princípio, simples mortais, mesmo se filhos de deuses ou deusas. Não se distinguem

dos outros mortais, não são invulneráveis ou possuem poderes físicos ou metafísicos extraordinários. Representam,

contudo, a excelência humana, grandes, belos, fortes, são os nobres reis e poderosos guerreiros. São dotados de

coragem, a quintessência da aristocracia, como mostra um passo qualquer da Ilíada (XII, 310-322):

“Glauco, porquê nos dão tantos privilégios na Lícia, lugares de honra, carnes, taças cheias? Porquê nos

tratam todos ali como se fossemos deuses? Porquê possuímos, às margens do Ksanto, uma imensa propriedade, uma

58

bela herdade apropriada tanto para a criação como para o cultivo do trigo? Nosso dever, então, não é, hoje, por

justiça, estarmos na primeira fila dos Licianos, para responder ao chamado a uma dura batalha? Os licianos

encouraçados poderão, assim, se expressar: ‘Não são sem glória, os reis que comandam na nossa Lícia, comem

carneiros pingues e bebem o vinho doce escolhido. Possuem também, parece, o vigor dos bravos, já que estão na

primeira fileira dos licianos’”.

Possuem glória (timé, a boa fama), são como deuses, possuem a coragem dos grandes homens, areté. São,

também e de forma sintomática, agraciados com grandes propriedades, pois os heróis são uma representação dos

aristoi que dominavam a sociedade grega arcaica.

A historiografia surgida no século V a.C. virá a florescer em outro contexto, na polis onde já não dominam

os aristocratas, guerreiros e proprietários rurais. Em Atenas, manjedoura de Heródoto e Tucídides, a politeia

(“conjunto de cidadãos, república, constituição”) é o conjunto de politai, cidadãos de iguais direitos (isonomia,

“submetidos à mesma lei humana”). Já não é a justiça divina a governar os heróis, a themis, mas a ordem jurídica

feita pelos homens, por meio de leis (nomoi), mutáveis, resultado da ação de membros livres da comunidade. Neste

novo contexto, surge a historiografia e os heróis já não são aqueles da épica aristocrática. Tucídides (2, 65) assim

descreve Péricles, epítome do novo herói:

“Péricles, por sua posição, habilidade e reconhecida integridade, era capaz de controlar, de forma

independente, a multidão, conduzir os muitos, em vez de ser conduzido. Nunca tentou obter o poder de forma

imprópria e, por isso, nunca teve que adulá-los mas, ao contrário, era tão estimado que podia contradizer seus

desejos. Quando os via descontrolados de forma insolente e devido às circunstâncias, ele os deixaria alarmados. Se,

ao contrário, estivessem em meio ao pânico, de imediato lhes faria tornar a confiança. Em resumo, o que era, no

nome o governo do povo, tornava-se, em suas mãos, o governo do primeiro cidadão”.

As virtudes do herói já não são aquelas da épica homérica, pois estava centrada em suas habilidades

oratórias, no logos. Não se tratava de impor decisões, mas de apresentar argumentos bem estruturados, lógicos e

59

racionais, conceitos encapsulados no próprio termo logos. O herói não passa de um concidadão, ainda que, por

convencimento pela retórica, seja considerado como o primeiro cidadão. No mundo das cidades, só existem

cidadãos e as virtudes não estão apenas na força bruta da bravura militar, mas no domínio da palavra.

Como resultado, na historiografia antiga destacam-se os discursos dos grandes personagens, cuja oratória

constitui, de certa forma, a prova da sua excelência. O primeiro historiador latino, Salústio, construiu sua narrativa a

partir da recriação dos grandes discursos em praça pública. O discurso de Mário, ao assumir o consulado pela

primeira vez, homem sem origem nobre e cujos méritos eram só seus, na recriação de Salústio (Guerra de Jugurta,

85), desafiava:

“Comparai-me, homem novo, com a arrogância daqueles [sc. nobres], ó concidadãos. Isto que costumam

ouvir dizer ou ler, vi ser feito, ou eu mesmo fiz. Aprendem-nas pelo estudo e eu no campo de batalha. Agora,

estimai o que vale mais, atos ou palavras? Eles condenam minha condição de homem novo; eu, sua covardia. O que

levantam contra mim é um fruto acaso; o que se reprova neles é a desonestidade. Ainda que considere a natureza

humana única e comum a todos, penso que o mais nobre é o mais corajoso. E se me fosse dado perguntar, agora, aos

pais de Albino e de Béstia [sc. nobres] se prefeririam a mim ou àqueles como descendentes, que pensais que

reponderiam, senão que desejavam que seus filhos fossem os melhores?”.

O herói não possui nobreza de sangue, não possui nome e sobrenome, não tem antepassados ilustres, só lhe

restam seus próprios méritos. Este herói, muito propositadamente, com este discurso, estava por iniciar o

recrutamento de proletários no exército romano, em 111 a.C., até então composto somente por quem pudesse se

armar. Mário é um herói por méritos próprios, assim como aqueles cuja pobreza serão arrolados na milícia. É pela

arenga do herói que Salústio descreve uma importante mudança social, econômica e, em última instância, política.

Este processo, iniciado por Mário, irá culminar com seu herdeiro político, Caio Júlio César, outro grande heroi, cuja

figura marcará o grande historiador moderno Theodor Mommsen, autor de “César, Retrato de uma estadista” (1857),

cujas palavras conclusivas são claras: “Assim atuou e agiu César, como nenhum mortal, antes ou depois dele”. O

60

uso da palavra “mortal”, Sterblicher, relaciona o personagem do historiador aos heróis “mortais” da mais

alta antigüidade grega.

Não apenas a historiografia expressou, plasticamente, a heroicidade. A Estátua de Augusto como Pontifex

Maximus, encontrada em 1910 na Via Labicana, em Roma, e hoje custodiada no Museo Nazionale Romano

representa a expressão material e icônica dessa forma heróica. Augusto está representado em sua maturidade, sua

cabeça coberta com uma toga, a sacrificar. A face é representada com grauitas, irradiando um ar majestático e de

domínio. Augusto é, à semelhança de Péricles, um princeps, o primeiro cidadão, nunca rei, um homem de

qualidades excepcionais, à maneira de Mário, que se forjou a si mesmo, ainda que patrício (como César). Augusto,

título que lhe foi conferido pelo senado, significa “abençoado” pelos deuses e, assim como César, após a morte, sua

deificação aproxima, uma vez mais, os mortais dos deuses. Augusto, sintomaticamente, será homenageado pelo

maior poema épico latino, a Eneida, de Virgílio e pela mais ampla obra historiográfica romana, a História de Tito

Lívio. De certa forma, um ciclo se cumpria.

Agradecimentos

Uma versão deste ensaio foi publicada em www.historiaehistoria.com.br. Agradeço a Janice Theodoro da Silva e

menciono o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP), FAPESP, CNPq e Centro de

Extensão Universitária. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

Apresentação,

por Renata Cardoso Beleboni

O texto traduzido que será apresentado a seguir é resultado de uma conferência

proferida por Jean-Pierre Vernant intitulada La Mort Heroïque Chez Les Grecs, ocorrida por

iniciativa de professores de Letras e Filosofia do liceu Clemenceau de Nantes, com o apoio da

prefeitura desta cidade, dos liceus Livet, Saint-Stanislas e da Associação dos Professores de

Latim e Grego da Academia de Nantes.

61

Nesta conferência, Vernant aborda a questão da morte heróica, principalmente nos

textos literários antigos, comparando-a com o problema da morte comum. Neste contexto, o

helenista procurou esclarecer algumas atitudes e reflexões relacionadas à morte dentro de um

contexto cultural maior no qual compreende haver uma tentativa de ‘civilizar a morte’.

A Morte Heróica Entre os Gregos98

Jean-Pierre Vernant

Aquiles, o Ideal de Homem Heróico

Devo vos falar, nesta noite, da morte heróica na Grécia. Não é fácil. Não sei realmente

por qual parte começar, pois são numerosas. O mais simples é começar pelo personagem que

encarna aos nossos olhos e, antes aos olhos dos Gregos, o ideal de homem heróico e da morte

heróica: Aquiles. Nas narrativas que fazem referência a ele, não somente na Ilíada, mas nas

histórias lendárias que nos foram transmitidas por outras fontes, o dilema está claramente

colocado conforme sua decisão sobre uma escolha, quase metafísica, entre duas formas de vida

que se opõem. Aquiles é filho de um simples mortal, Peleu, e de uma deusa, Tétis – ela tentou

escapar desta união com um mortal que os deuses lhe impuseram, tomando toda espécie de

forma. Finalmente, o velho Peleu uniu-se a ela e tiveram muitos filhos de natureza ambígua e

que Tétis queria imortalizar. No caso de Aquiles, tomando-o pelo calcanhar, ela o imerge, recém-

98 VERNANT, Jean-Pierre. La Mort Heroïque Chez Les Grecs. Paris: Èditions Pleins Feux, 2001, pp. 11-34.

Tradução de Renata Cardoso Beleboni e revisão de Pedro Paulo A. Funari. Os nomes próprios gregos foram vertidos

segundo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Lisboa, Academia de Ciências de Lisboa, 1940, salvo

nos casos de vocábulos não coligidos pela Academia.

62

nascido, nas águas do Estige. Se ele chegasse a escapar desta prova terrificante, pois Estige é,

de uma certa maneira, a morte - , todas as partes do corpo que entrassem em contato com a água

se tornariam imortais. É o que acontece com Aquiles. Ele é, portanto, um ser humano cuja

individualidade, passado, genealogia, situa-se na fronteira entre o divino e o humano. Somente

uma pequena parte de seu corpo restou mortal: o calcanhar – como deveria, posto que Tétis o

segurou pelos pés – e é por esse ponto que ele perecerá.

Assim, este homem tem a imagem própria do guerreiro e de suas virtudes: não somente a

coragem, mas também esta forma de moral aristocrática que é, ao mesmo tempo, o último

desígnio da morte heróica, em que um homem é kalos kagathos, “belo e bom”, como se sua

qualidade de homem eminente, incomparável se manifestasse sobre seu corpo, sobre sua

nobreza, seu gestual, seu modo de andar, sua maneira de se apresentar. Quando um desses

homens como Aquiles aparecia em um círculo, era como se vissem um deus que se aproxima e

que encarna esta espécie de excelência que se manifesta num clarão luminoso, como a beleza de

uma jovem moça semelhante a uma deusa. É mais ou menos deste modo que os Gregos viam

Aquiles, ele não tem uma moral do pecado, do erro, do dever, existe a idéia que é preciso ser um

indivíduo bom, não fazer coisas indignas, desonrosas, invejosas, que é preciso se dominar.

Aquiles teve que fazer uma escolha entre duas vidas. Ou bem uma vida pacífica e doce,

uma vida longa com uma mulher, seus filhos, seu pai e depois a morte, no fim do caminho, como

ela chega a todos os anciãos, sobre seu leito; ele desapareceria em uma espécie de mundo

obscuro, de cabeças vestidas de noite, onde ninguém tem nome ou individualidade, no Hades, se

tornaria uma sombra inconsistente, depois mais nada, ninguém. Ou bem ao contrário, esta que os

Gregos chamam a vida breve e a bela morte, kalos thanatos. Não há bela morte se não há vida

breve. Isto significa que, no ideal heróico, um homem pode escolher querer ser sempre e em tudo

o melhor e, para provar isso, vai continuamente – esta é a moral guerreira -, no combate,

posicionar-se na linha de frente e colocar em jogo a cada dia, em cada afrontamento, sua psykhè,

ele próprio, sua própria vida, sem hesitar, tudo. Por que tudo? Esta concepção de uma forma de

vida que se apoia em um sentido de honra, a timè, faz também com que todas as honras de

estado, as honras estabelecidas, não valham nada.

No início da Ilíada, os reis estão reunidos, cada um com seu exército, os basileis, e

Agamêmnon, o rei dos reis, basileutatos, tem a honra de ser o maior na hierarquia social. Ele

63

deve sacrificar, ao sacerdote de Apolo, sua filha. Em troca, toma a jovem Briseis, que tinha

sido dada a Aquiles como sua parte da honra – quando se distribui o espólio, de um lado se dá a

cada um uma parte igual àquela dos outros, por outro lado, à elite, se dá uma parte pela honra,

um géras especial. Briseis representava para Aquiles o reconhecimento que todo o exército

Grego lhe concedeu por mostrar que não era como os outros, mas um indivíduo à parte e que,

com ele, a guerra não tinha exatamente o mesmo aspecto, pois ele lhe confere um sentido

particular por sua coragem, por seu arrojo. É este géras que Agamêmnon toma. Então, o exército

se reúne, faz um círculo, deixa um espaço no centro, uma espécie de agora onde podem falar

todos os reis. Aquiles vem e humilha Agamêmnon: com que direito tu me tomas aquela? É uma

grande ofensa que tu me fazes! Tu és apenas um covarde. Tu, tu te refugias nas últimas fileiras,

tu não sabes o que é, no corpo a corpo, o face-a-face contra o inimigo, o empenhar sua psykhè.

Vê-se bem nesta cena, opor-se de um lado, a honra ligada ao mérito e à virtude particular de um

combatente e, por outro lado, as honras ordinárias, sociais. Agamêmnon é o rei, mas ao mesmo

tempo a honra de Agamêmnon é incomensuravelmente inferior àquela de Aquiles. É uma

verdadeira inversão do status social e Aquiles faz com que ele o compreenda. E quando

Agamêmnon tenta reconciliar-se com Aquiles, que se retirou do combate – sem ele o exército

aqueu não resiste diante dos troianos -, envia uma delegação. Esta delegação explica que

Agamêmnon reconhece suas injustiças: devolve Briseis que ele não tocou, oferece toda espécie

de riquezas, trípodes, animais, uma de suas terras e mesmo uma de suas filhas sem exigir dote.

Mas Aquiles recusa porque, neste contexto da honra heróica que conduz à morte heróica, o

indivíduo se encontra sempre perante o “tudo ou nada”. Se na vida social existem hierarquias

equilibrando-se, conduzindo seus negócios, em compensação, a ofensa que foi feita não pode ser

reparada. Aquiles explica que pouco importa a honra ordinária que os Gregos oferecem a ele,

pouco importam todos os presentes que oferecem, porque existem duas formas de bens

diferentes: existem os bens que se trocam, ganham, perdem e que se pode repor quando os

perdeu; e os bens que são essenciais do ponto de vista dos valores humanos – novamente o “tudo

ou nada” -, este que, quando perdido, não se recupera jamais, isto é, a vida, si mesmo. É isto que,

a cada momento decisivo, não é comprável, nem permutável, é o que se perde definitivamente.

Eis a honra heróica que é uma outra categoria que não aquela da honra ordinária.

64

E quando se joga assim, segundo “tudo ou nada”, pode-se estar seguro de morrer um

dia ou outro, pois nenhum homem é imortal, nem mesmo Aquiles. Aquele que vive sua própria

existência, sua própria individualidade, desta maneira depende da escolha em colocar tudo em

jogo, si mesmo, a fim de se manifestar, de se demonstrar, de se provar que se é realmente um

homem sem acomodação, sem covardia, então, este está certo de morrer jovem. E esta morte não

é uma morte como as outras. Da mesma maneira que existe uma honra heróica que não é a honra

ordinária, existe uma morte heróica no combate que não é uma morte ordinária. Por quê Porque

o jovem homem na flor de sua idade e de sua beleza, que morre em combate, desconhecerá sobre

o seu corpo as cicatrizes, o enfraquecimento que a idade traz a todas as criaturas mortais. Esta é,

portanto, a lei do gênero humano: nasce-se, cresce-se, torna-se um efebo, um jovem homem, um

homem “feito” e depois, pouco a pouco, contrariamente ao que se passa entre os deuses, se

debilita, se deteriora, se degrada, tornando-se um ancião fatigado que delira e que vai, por

conseguinte, embora; e é como se ele não tivesse vivido. Enquanto que se tu morres no momento

em que fazes a demonstração disto que es na beleza da tua juventude, tua existência vai livrar-te

do desgaste do tempo, da mortalidade ordinária. Na Ilíada, no momento em que Heitor é

perseguido por Aquiles, indo afrontar o herói, Príamo, que se encontra sobre as torres, pede a seu

filho que fuja, atravesse a porta e volte ao abrigo das muralhas. Ele lhe diz mais ou menos isto:

para o jovem guerreiro que morre no campo de batalha, tudo é belo, tudo é conveniente, panta

kala, pant’epeoiken, mas a morte para um velho como eu, Príamo, se tu sucumbires, será

horrível. Príamo acrescenta que ele será coberto de sangue e que os cães aos quais ele deu no

passado o que comer, no pátio do palácio, virão devorar as suas partes sexuais. Tirtaios, em

Esparta, retoma a mesma imagem dizendo que para o jovem guerreiro que cai na linha de frente

na flor de sua juventude, jogando com sua própria vida e sua individualidade, “tudo é belo, tudo

convém”, para que os homens o admirem, as mulheres o venerem e para que as gerações futuras

continuem a admirá-lo. Ele não perecerá através desta morte – que se não a escolheu pelo menos

a aceitou – de continuar a ser o que era quando estava vivo, isto é, um homem jovem no brilho

de sua força e de sua beleza. Seus funerais considerarão isso igualmente. Por quê

A Grécia do século IX era ainda uma Grécia onde não existia a escrita deveras

desenvolvida. Ora, toda sociedade deve ter raízes, um passado para manter sua identidade. Para

os Gregos deste tempo que não tinham escritos, nem arquivos, na época de um casamento ou de

65

um nascimento, não existia nenhuma declaração, a memória social era assegurada por

uma pessoa, o mnémon, aquele que se lembra, que deve armazenar em sua mente todo o saber,

permitindo que qualquer um conheça sua identidade, quem é seu pai, quem são seus avós e mais

longe, as genealogias, mas também os limites de suas terras. Ao mesmo tempo, é preciso que

este grupo tenha em comum um certo número de assuntos conhecidos, de valores, de

representação de mundo, de concepções de si, de tradições intelectuais e espirituais: estes são os

aedos, os cantores que têm essa obrigação. Eles são inspirados por uma divindade que os Gregos

chamavam Mnémosunè, Memória. A memória é divinizada na medida em que não existem

escritos que podem ter o registro disto que os antropólogos denominam “o saber partilhado”.

Esta memória é o canto dos poetas, a tradição da Ilíada e da Odisséia, dos Cantos de Cipros e de

muitas outras ainda. É o que constitui a memória, as raízes do grupo e isto que no V ou IV

séculos e ainda durante a época helenística, as crianças Gregas vão aprender de cor e

compreenderão. Neste sentido, o texto da Ilíada, que é para nós um simples texto, foi em um

dado momento o canto tradicional que de geração em geração os poetas cantaram, repetiram,

modificaram às vezes, retomando o que lhes teriam ensinado e improvisando para relacioná-lo a

um novo público. Tudo isto era a base comum intelectual e espiritual de todos estes Gregos e

permanecia de um certo modo mais vivo, mais atual que eles próprios. No quadro desta

civilização grega que mudou muito desde a época homérica, Aquiles é um personagem sempre

presente a cada geração mais que qualquer outro; assim ele não é um Grego como

compreenderam Platão, Xenofonte ou Alcebíades, que não tiveram Aquiles a seu lado.

A morte heróica não procura somente um honra incomparável, mas afirma o paradoxo de

uma criatura humana mortal, efêmera, consagrada ao ciclo – a passagem pelos estágios até a

morte lamentável – que caracteriza o homem e que o opõe aos deuses. Aquiles escapa. Neste

mundo grego, não existe esta idéia, própria à nossa civilização judaico-cristã, que em cada um de

nós há uma parte que é nós mesmos, a alma, o espírito imortal, individualizado e até mais que

individualizado, pois finalmente terá também a ressurreição da carne, nossos corpos voltarão e,

portanto, estamos predestinados a uma imortalidade bem-aventurada. Para os Gregos, ela não

existe. Para eles, somos um corpo, a alma se compõe de sopros inconstantes e quando se morre,

vai para o Hades, não é mais nada.

66

A Resposta Grega ao Problema da Morte

Nesta visão tão positiva disto que é o homem, apesar disso, era preciso para os Gregos que existisse uma resposta a este problema que todas as culturas devem resolver, por diferentes que sejam uma das outras. Por exemplo: por que razão é

necessário que existam dois sexos Por que razão é necessário que existam homens e

mulheres Assim Hipólito se pergunta por que existem mulheres. Deveriam existir apenas homens! Isto seria muito melhor e mais simples. Mas existem homens e mulheres, e aliás isto não é o pior, pois somente as mulheres geram, o nascimento implica um ventre feminino. E isto ainda não é o pior, pois não somente elas geram mulheres, mas dão à luz também homens! Todas as culturas tentaram resolver estes problemas. É o mito de Pandora entre os Gregos.

Mas existe também o problema da morte. De onde ela vem Por que morremos Os

Gregos responderam a isto estabelecendo relações com a cultura aristocrática da honra heróica,

com a idéia da morte heróica. Ele vai portanto ter, independente disto que venho vos dizer, uma

dimensão metafísica. Na Ilíada, quando Aquiles é retirado do combate, os Troianos encurralam

os Gregos em suas naus e havia dois Lícios, Glauco e Sarpedon que são personagens de caráter

heróico, dois jovens vigorosos que desejavam, que se dispunham a lutar na linha de frente. Não

era fácil lutar na linha de frente, expor no afrontamento do combate a sua própria existência,

“tudo ou nada”. Eles hesitam e uma discussão interessante começa entre os dois jovens.

Sarpedon diz: é preciso ir; se, entre nós, os homens, os Lícios, nos rendem tantas honras, nos

festejam, nos estão dando suas melhores terras, nos oferecem as mais belas mulheres, os mais

belos cavalos, nos conduzem a uma vida maravilhosa de honra, é por que somos reis, por que

combatemos na linha de frente. Ele pondera, falsamente, como se tivesse, obrigatoriamente, um

acordo preestabelecido entre o fato de ser rei como o é Agamêmnon, e o fato de ser heróico

como o é Aquiles. Mas neste caso, Agamêmnon fica atrás e Aquiles se lança na linha de frente:

seu status é diferente.E Sarpédon diz que se ele é reconhecido como rei, é por que acreditam que

seja capaz da morte heróica, como se por ser rei, seria preciso aceitar a morte heróica e, como se

somente fossem aceitar a morte aqueles que são reis socialmente. O que não é verdade. Em

seguida, Sarpédon retrata-se e dá a verdadeira razão a seu companheiro: se podemos viver, nós

outros, pobres humanos, mortais e efêmeros, como os deuses, eternamente, sem conhecer a

morte, e sempre jovens, sempre o joelho e os braços em forma, então não deveria dizer-lhe para

67

arriscar sua vida na linha de frente. Mas não posso fazer isto! À velhice, à idade avançada, à

fadiga, à morte no fim do caminho, não escaparemos!É a verdadeira razão pela qual eu digo para

irmos.

Vejamos bem que o risco da morte heróica – o que está realmente em questão – é o fato

de que nós humanos, apesar de tudo, não podemos deixar de nos colocar a questão do sentido de

tudo isto. Para que fiz tantas coisas, lutas, fadigas das quais não restará nada Como é que eu

poderia chegar, por uma proeza, a qualquer coisa que me diferenciasse em relação àquilo que é

comum aos mortais, não como um deus, mas como ser humano, como a beleza de Afrodite sobre

uma bela jovem donzela, e é como se subitamente a vida humana fosse esclarecida, tornando-se

outra, única, como se a vida humana tornasse outra também pelo heroísmo de certos

combatentes.

Eis, creio, um dos sentidos da morte heróica e isto nos convida a compreender que neste

esforço no interior mesmo desta concepção grega de homem – uma concepção muito

insignificante -, a vida, a felicidade da vida, a coragem, a força, a impetuosidade, a juventude, o

prazer amoroso são os verdadeiros valores que competem. Mas tudo isto se dissipa, não é nada.

Então, como é que posso encontrar o meio de esperar um pouco da estabilidade desta existência,

que atribuo aos deuses Esta estabilidade é o fato de que o meu nome, nossa existência singular,

o que fiz, o que fui, ficarão inscritos para sempre na memória dos homens de duas maneiras.

Primeiramente, os poetas nos seus cantos vão celebrar o que os Gregos chamam kléos aphthiton,

uma glória cantada, imperecível; indefinidamente, Aquiles será cantado de geração em geração.

Em seguida, o memorial fúnebre: uma tumba será elevada com uma estela onde o nome de

Aquiles e quaisquer palavras, um verso ou dois às vezes, serão gravados.

Por que insisto sobre este ponto Para um cristão, hoje, a morte não é nada, é uma

passagem que não impede sua individualidade: os seres que ele amou partiram para outro lugar

com sua individualidade. Este cuidado da individualidade no interior do pensamento cristão

distingui-se justamente pela idéia da ressurreição dos corpos. Por que a alma de cada um poderia

ser, também, inteiramente espiritual – independente de sua visão, de seus gestos, de sua pele, de

sua distinção Se existe realmente uma imortalidade das pessoas na sua singularidade, é preciso

que os corpos também ressuscitem. A idéia de uma ressurreição dos corpos para os Gregos

68

antigos é impensável. A questão da individualidade permite, portanto, distinguir

nitidamente a cultura cristã da cultura grega. Permite também distinguir a cultura grega da

cultura hindu.

Entre nossos Gregos, quer dizer, homéricos, cremam-se os cadáveres. Pátroclo é

queimado, Heitor igualmente, há uma grande cerimônia durante a qual se eleva uma espécie de

fogueira; deposita-se o cadáver do jovem guerreiro heróico que o canto vai imortalizar para

sempre. Quando Heitor morre no campo de batalha – Heitor que os Gregos temiam e detestavam

– os Gregos ficam em torno dele; despojam-lhe do que possuía como armas e couraça, e ele fica

nu, gumnos e como narra a Ilíada, “eles admiram a beleza de Heitor”. Heitor também é um

homem jovem e os primeiros cuidados fúnebres consistem em devolver a este corpo que agora é

um soma, um cadáver, toda a beleza de sua juventude. Encobrem-se suas feridas, perfumam-no,

untam-no com azeite, ele é belo de se ver contrariamente ao corpo de um velho. Depois o

colocam sobre a fogueira e o cremam. Quando o ardor do fogo é abrandado pelas libações, as

ossadas do cadáver sobre as cinzas da madeira ficam bastante visíveis e destacadas. Estas

ossadas são recolhidas com o maior cuidado, colocam-nas em uma urna, freqüentemente untada

com azeite, envolta em um tecido e as enterram. Enfim, colocam-nas em uma elevação para que

este lugar onde as ossadas do morto são colocadas fique visível para todo o mundo, exatamente

como todo o mundo ouvirá os cantos. Há a Mnémosunè, a memória cantada, a mnèmè do morto.

Na Índia, também há a cremação do morto, mas quando o fogo se apaga e que ainda se

vêem as ossadas brancas, recolhem-nas e fazem o que chamam, do ponto de vista fúnebre, uma

segunda cremação: colocam os ossos brancos para queimar até que sejam completamente

consumidos também. Depois, ao invés de os colocar em um lugar determinado, com uma estela

que marcará o ponto específico da superfície da terra onde o homem e suas ossadas foram

colocadas, elas são lançadas nas águas de um rio ou as dispersam para que não subsista nenhum

traço daquilo que o defunto foi.

Nesse caso, como fazer para que isto que um homem foi durante sua vida e os atos

heróicos que executou não sejam esquecidos, para que a civilização detenha e de certo modo

transmita o que alguém fez e que isto seja um princípio da vida para todas as gerações seguintes

Na Índia, é preciso que tudo isto que o homem fez seja disperso frente ao Todo, a um Absoluto

69

que é ao mesmo tempo o Nada99

. É preciso que a importância dos atos, da singularidade, da

individualização seja dispersada. Na Índia, quando um homem sacrifica um animal ou outra

coisa, é a si próprio que quer queimar no fogo e toda sua ação consiste em conduzir a este

momento no qual ele próprio vai se sacrificar, ele mesmo vai entrar nesta espécie de nada

cósmico de onde não deverá jamais ser separado. Mas para os Gregos, isto não é, como escreve

Weber, uma religião extramundana, o religioso, o sagrado está no mundo, os deuses fazem parte

do cosmos, é a vida que é sagrada. O problema é, então, diferente: como podem manter uma

individualidade em tais condições

A solução do heroísmo, que se conservou perpassando todas as cidades gregas, é

justamente um esforço para resolver este paradoxo. E este paradoxo implica também, como

lembram, a afirmação de que a morte heróica está relacionada a uma glória imortal, aquela que o

afrontou, que vem pelo seu kléos, imortal e vive entre todos e ainda mais intensa no pensamento

dos vivos como os próprios vivos; este paradoxo implica que contrariamente a esta idéia indiana

de um retorno ao Absoluto que é uma transformação no nada (mais uma vez o autor utiliza-se do

termo néantisation), a morte teria um aspecto medonho, horrorizante. É por que a morte é vivida

como algo monstruoso que a morte heróica foi assim idealizada como solução rápida e

excepcional para uma condição humana marcada pela mortalidade. E por conseguinte, o herói

que escolhe a morte heróica, aceita também a idéia que existem potências que simbolizam a

morte.

A morte na Grécia, Thánatos, é um nome masculino, a morte heróica é masculina, e,

sobre os vasos quando aparece Thánatos freqüentemente com seu irmão Hýpnos, Sono, Thanatos

não tem nada de medonho. Ele está vestido com um capacete, encontrando-se na beleza da morte

juvenil. Mas existem também as Keres que são descritas por Hesíodo de uma maneira

assustadora: elas agarram os cadáveres, os degolam, e sobretudo existe a imagem própria da

morte que é a Górgona, a Medusa, isto é, uma visão monstruosa que vos congela em pedra.

Quando lemos os textos sobre Perseu e a Górgona, vemos que a Górgona retrata, com efeito, que

a morte é algo impensável para um homem. Esta Górgona, portanto, nos indica que ela é um

monstro que não podemos fazer ver e que não podemos exprimir, indizível e irrepresentável, ela

99 Vernant utilizou o termo Néantisation.

70

é absurda, o não-sentido, o não-humano. Alguém que estaria vivo e que não está mais,

eis o absurdo, o impensável, a morte. E é este impensável que é preciso evitar.

Eis, portanto, uma solução à condição humana: encontrar na morte o meio de ultrapassar

esta condição humana, vencer a morte pela própria morte, fazendo com que se dê à morte um

sentido que ela não tem, porque ela é absolutamente desprovida deste.

A Lição da Odisséia

Ao mesmo tempo, há o contrário, sobretudo na Odisséia, quando Ulisses no fim da

viagem, chegando à boca do Inferno, no limite do mundo, além do Oceano, manda vir os mortos;

então, “o medo primeiro” o toma quando ele vê subir a multidão das sombras; elas estão sem

rosto, sem voz, não falam claramente; há uma espécie de rumor confuso, medonho, inaudível. E

vem à mente de Ulisses que ele poderia se tornar, ele também, uma sombra inconsistente. Para

um ser que vive à luz do sol, de uma só vez, mergulhar na noite, mergulhar na cegueira, não mais

ver, não mais ser visto, não ter mais rosto, não mais poder falar, não ser nada nem ninguém, é o

que o amedronta. Depois, Aquiles aparece, bebe o sangue do carneiro que lhe permite, por um

curto instante, retomar a consciência e falar com Ulisses. Ulisses é o contrário de Aquiles.

Aquiles é o homem de vida curta e da morte gloriosa, Ulisses é o homem do retorno a si mesmo,

de longa vida com sua mulher, de fidelidade a si próprio, a Ítaca, à Penélope, à sua própria vida.

Ulisses vê Aquiles no reino das sombras e lhe diz: “Tu que foste o maior dos heróis, tu que todo

o mundo admirava, tu que eras como um sol entre nós, a luz da vida, agora tu estás aqui, deve ser

como um rei no meio das sombras”. Aquiles lhe responde que desejaria mais ser o último

escravo de uma gleba deplorável no estrume, mas estar vivo sobretudo do que estar morto. Há,

portanto, um contraponto: mostrar que mesmo a morte do herói é ao mesmo tempo uma coisa

terrível e que por isso é preciso encontrar um meio de sair dela.

Há um outro episódio significativo, aquele das Sereias. Ulisses está com seu barco à

caminho de volta e Circe, com a qual viveu dias felizes, lhe pediu cuidado, pois quando seu

barco for passar pela pequena ilha das Sereias, se ele se deixar seduzir, este será o seu fim. Ele

não deve, portanto, escutá-las. Astuto, Ulisses coloca cera nos ouvidos de seus marinheiros e

71

como quer ouvir as Sereias, que são como Musas – cantam com uma voz maravilhosa,

este som dos pássaros encoberto por corpos de mulheres -, se ata ao mastro. Em frente à ilha das

Sereias, o navio não mais avança, uma súbita calmaria reina, os marinheiros estão em seus remos

e as Sereias cantam. É um canto irresistível, um canto por vezes com encanto feminino e um

canto compreensível. Elas voltam-se para Ulisses que as compreende lhes dizendo: “Ulisses, tu,

se ilustre, tão louvado, venhas. Venhas escutar o que temos para te dizer. Tu te tornarás mais

sábio, tu saberás a verdade se nos escutar”. Ulisses tenta se desatar, mas teria ordenado aos seus

marinheiros de impedi-lo, ainda mais se ele implorasse, e foi isso que fizeram para que ele não

mais pudesse mover-se. Tomaram os remos e partiram. Mas o que elas lhe revelaram Fizeram

entender, cantando, isto que Mnémosunè, Memória, revela ao aedo, isto que é, o que foi e o que

será, todo o decorrer dos tempos dos humanos que se desenrola com as façanhas dos heróis e

vão, sem dúvida, revelar a Ulisses o que ele é, suas aventuras, suas condutas heróicas, sua

viagem, de alguma forma seu destino. E ele queria continuar a ouvir o canto. Mas todos aqueles

que cederam a esta tentativa de sedução e de saber o que não é permitido ao homem, estão em

torno da ilha, sobre a margem, sobre os prados em flores, porém são seus cadáveres, suas carnes

em curso de se decompor e que os pássaros comem. Ao mesmo tempo em que as Sereias vão

revelando ao marinheiro vivo o que elas sabem, os segredos que ele quer saber, anunciam uma

morte que será ignominiosa, o contrário da bela morte. “A bela morte” tem um oposto, “o

cadáver ultrajado”, isto é, o ultraje que pode infligir os inimigos para que não se tornem

memoráveis, para deixá-los entrar em putrefação. É assim que Aquiles quer ultrajar Heitor

quando o arrasta com sua biga e se enfurece contra o cadáver para que este não tenha a bela

morte – eis também o que fazem as Sereias. Por quê

Porque no sistema da morte heróica há, ao mesmo tempo, a idéia de que a morte é uma

soleira intransponível atrás da qual há um mundo que é um mundo de horror, do anonimato e de

magma onde qualquer um se perde. A fama que traz a morte heróica, Aquiles não a entende

quando está no reino das sombras, não há mais ouvidos, olhos. Se Ulisses tivesse permitido e se

estava vivo, entendendo o que as Sereias cantavam sobre ele na morte, teria se tornado um

cadáver em decomposição. Evitando este obstáculo, voltando a si, tornou-se o herói da

fidelidade, da reminiscência, da lembrança, o herói da fidelidade a si, do conhecimento do

mundo e do retorno ao seu lar. A imortalidade, o kléos aphthiton, que permite a morte heróica,

72

não ultrapassa a fronteira do Hades: é entre os vivos que Aquiles era mais conhecido, no reino

dos mortos, Aquiles deixa de existir. Entretanto, nesta morte heróica e após esta espécie de

idealidade da morte, que os Gregos tentaram esclarecer - como esclareceram uma espécie de

idealidade do espaço e do número pelos seus matemáticos -, há também esta afirmação de que a

vida vale ser vivida se damos a ela um sentido e que este sentido não está fora, no além; os

deuses estão aqui, no mundo, mas é um mundo inacessível, há uma fronteira. Certamente terá um

culto heróico mas, fundamentalmente, a vida e a morte destes que viveram é assunto dos vivos.

Nós somos os herdeiros disto. É a continuidade nesta civilização do canto dos poetas, da glória

de Aquiles e de Ulisses; é esta a aposta da morte heróica, e não a passagem como temos a

tendência em pensar e de a esperar, a entrada em um outro mundo, num além, a recompensa de

uma espécie de paraíso onde seremos ainda nós mesmos mas sob a forma de uma

individualidade sem relação com o que fomos, vivos.