(IX) MOURA, Carlos Francisco - As viagens das naus na Rota do Brasil. Três estrangeiros -...

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ARS NAUTICA Fernando Oliveira e o Seu Tempo Humanismo e Arte de Navegar no Renascimento Europeu (1 450-1650) Fernando Oliveira and his Era Humanism and the Art of Navigaion in Renaissance Europe (1 450-1 650) Actas da lX Reunido lnternacional de Historia da Ndutica e da Hidrografia Proceedings of the lX lnternational Reunion for the History of Nautical Science and Hydrography Edi96o organizada por lndcio Guerreiro e Francisco Contente Domingues PATRIMONIA oASCAIS 1999

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ARS NAUTICA

Fernando Oliveira e o Seu TempoHumanismo e Arte de Navegar

no Renascimento Europeu (1 450-1650)

Fernando Oliveira and his EraHumanism and the Art of Navigaion in

Renaissance Europe (1 450-1 650)

Actas da lX Reunido lnternacional de Historia da Ndutica e da Hidrografia

Proceedings of the lX lnternational Reunionfor the History of Nautical Science and Hydrography

Edi96o organizada porlndcio Guerreiro e Francisco Contente Domingues

PATRIMONIA

oASCAIS 1999

As viagens das naus na Rota do Brasil

Três estrangeiros - Alimentação e animais de corte a bordo

Carlos Francisco MouraInvestighador

Quem lê a monumental História Trágico-Marítima, que reúne doze relações de nau-frágios cujas datas extremas são 1555 e 1602, fica chocado não só com as tragédias em si,mas também com as condições de vida a bordo: desconforto, superlotação, excesso de car-ga, falta de higiene, fome, sede, doenças e muitos outros problemas.

O cristão-novo lisboeta Duarte Gomes Solis nas obras Discursos sobre los Comérciosde Ias dos índias (1622) e Alegacion en Favor de Ia Compania de Ia Índia Oriental(1628) verbera os citados problemas e outros, e acrescenta verdadeiras catilinárias contra asnaus então construídas em Portugal, afirmando que menores, melhores e mais adequadoseram os navios ingleses e principalmente os holandeses. E não só os navios como tambémas condições de vida a bordo.

É evidente que a maioria das críticas procede, mas elas se referem principalmente asituações limite. Mas quem se restringir apenas á leitura das citadas obras e outras de auto-res portugueses de mesmo diapasão, corre o risco de incorrer em duas generalizações pre-cipitadas: 1) a vida a bordo das naus portuguesas seria sempre em péssimas condições 2) ascondições seriam sempre piores que as dos navios de todas as outras nações, na época.

Parece até que, para encontrar moderação nas descrições da vida a bordo de nausportuguesas, é preciso recorrer a autores estrangeiros.

O artilheiro alemão Hans Staden, no livro Duas Viagens ao Brasil, nenhum problemamaior relata na viagem que fez, em navio português. Além dos calores da zona do Equa-dor, das tempestades e do temor de que faltassem víveres devido a atrasos provocados porventos contrários, nada digno de nota aconteceu, e a de 28/01/1548, 84 dias depois de dei-xarem a costa do Marrocos, avistaram o Cabo de Santo Agostinho1.

A viagem de volta teve alguns problemas em virtude da imprevidência dos navegan-tes. "Velejamos assim, sob ventos contrários e com parcas provisões, para Portugal, e so-fremos grande fome. Alguns comeram as peles de cabras que trazíamos a bordo. Cada ho-mem recebia diariamente um copo de água e um pouco de farinha de mandioca brasilei-ra"2 .

A 12/08/1548 chegava aos Açores, depois de 108 dias de viagem. Além da fome, eda sede, nada mais, o que nos faz concluir que as demais condições da viagem foram"normais" para Hans Staden, isto é, para os padnes da época, pois ele não conheceu ape-nas a vida a bordo da nau portuguesa: viajou também em navios da Holanda, da Espanha,da França e da Inglaterra.

1 Hans Staden, Duas Viagens ao Brasil, tradução de Guiomar de Carvalho Franco, Editora da USP/Livr. Italiana Editora, p.45.

Idem, ibidem, p. 50.

As viagens das naus na Rota do Brasil. Três estrangeiros - Alimentação e animais de corte a bordo 461

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

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462 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Para encontrar elogios á construção naval portuguesa da época, é preciso também re-correr a estrangeiros, como o espanhol Tomé Cano, autor do Livro de Fábrica de Naus,publicado em Sevilha em 16113.

Uma análise objectiva das condições de vida a bordo de naus portuguesas não podeprescindir da comparação com o que, na mesma época, ocorreria nos navios de outras na-ções; e também com os relatos estrangeiros de viagens em naus portuguesas.

Resumimos para tanto três relatos estrangeiros, dois de viagens em navios franceses, eum em navio português. E acrescentamos um estudo sobre alimentação a bordo.

1. Três estrangeiros na rota do Brasil

1.1. Binot Paulmier De Gonneville (1503-1505)

A viagem de Binot Paulmier de Gonneville permaneceu muito tempo quase ignoradados historiadores. Em 1663 Jean Paulmier de Gonneville, cónego de Lisieux, bisneto de umindígena que o navegador tinha trazido para a França, escreveu uma memória, na qualtranscreve trechos da relação de viagem. Essa memória, que não se destinava a publicação,depois de andar de mão em mão acabou sendo publicada em Paris em 1663 sem prévioconhecimento do autor4. O paradeiro do texto integral do relato da viagem era desconhe-cido até que, finalmente foi encontrado por Paul Lacroix, bibliotecário da Biblioteca doArsenal, em Paris, e publicado por d'Avezac em 1869, na obra Campagne du navire L'Es-poir de Honfleur 1503 -1508. Relation authentique du Voyage (...)5.

Tristão de Alencar Araripe traduziu para o português a Relação Autêntica da viagempublicada por d'Avezac e a publicou em 1886 na Revista do Instituto Histórico e Geográfi-co Brasileiro, no artigo intitulado Primeiro Navio Francês no Brasil6. Em 1992 a ProPLeyla Perrone - Moisés publicou estudo completo sobre o tema, intitulado Vinte Luas-Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil 1503-15051.

Como nosso estudo se restringe ás condições da viagem, vamos resumi-la a partir datradução de Alencar Araripe, convertida para a ortografia atual a grafia sui generis que uti-lizou em muitas palavras8.

Binot Paulmier de Gonneville e outros mercadores da cidade de Honfleur, na Nor-mandia, foram a Lisboa comerciar e, entusiasmados "com as importantes riquezas de espe-ciarias e outras raridades trazidas para essa cidade por navios portugueses que vão ás índiasOrientais, há pouco anos descobertas"9.

"(...) ajustaram entre si mandar um navio, depois de obterem minuciosa informaçãode pessoas que tinham feito essa viagem, e de haverem contratado por alto salário dois

3 V. Carlos Francisco Moura, O Cálculo da Arqueação de Naus Segundo o Piloto Tomé Cano (inédito).O título do trabalho do cónego Jean Paulmier é Memoires touchant VEtablissement d'une Mission Chrestienne dans le

Troisieme Monde, Autrement appellé La Terre Australe, Meridionale, Antartique & Inconnue, (Paris,1663). As peripécias domanuscrito e de sua edição são relatadas por Rubens Borda de Moraes, Bibliographia Brasiliana, I, p, 305/6.

Campagne du navie UEspoir de Honfleur 1503-1505. (Relation authentique du voyage du Capitaine de Gonneville ásnouvelles terres des Indes publié intégralement pour Ia premiere fois avec une introduction et des Eclaircissements par M. d'A-vezac ... Paris, Challanel ainé, 1869.

" Tristão de Alencar Araripe, Primeiro navio francez no Brazil, Revista Trimensal Instituto Histórico Geográphico e Etno-graphico do Brazil, tomo XLIX, 4o trimestre de 1886, Rio de Janeiro, 1886,pp. 315/360.

7 Leyla Perrone - Moisés, Vinte Luas Viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil 1503 • 1505, Companhia de Letras, SãoPaulo, 1992.

Ex. xegara, xegar, roxedos, abitadas, omens, marxa, xaminé, xaves, xeias, xamadas, ospedeiro, abitantes." Tristão de Alencar Araripe, o. c, pp. 333/4.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 463

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

portugueses, que dali tinham regressado, um de nome Bastião de Moura, e outro Diogo doCouto, para com a sua experiência os coadjuvar no trajeto para as índias"10.

O navio, com sessenta pessoas a bordo, partiu de Honfleur no dia de "São João Ba-tista do ano da graça de 1503". A 12 de setembro passavam a Linha do Equador, e logodepois o escorbuto começava a se manifestar, sendo atacados dois terços dos tripulantes, e 6morreram.

"E desde então começaram a dirigir-se pelo Cruzeiro do outro pólo"11.No dia 9 de novembro avistaram grossos caniços flutuando, "que os portugueses di-

ziam ser sinal de aproximação do Cabo da Boa Esperança".Mas como não apareciam as aves denominadas "mangas de veludo", características

da região, e fazia muito frio, concluíram que estavam muito abaixo do Cabo. Começaramentão a ter tempo e vento contrários, e, a seguir violentas tempestades. Depois de muitosdias sem rumo, e com o suprimento de água quase esgotado, avistaram pássaros, o que osfez pensar que estavam próximos a terra. A direcção que os pássaros tomavam era, entre-tanto, contrária á das índias Orientais , e eles resolveram mudar o rumo.

No dia 5 de janeiro de 1504, finalmente "descobriram uma grande terra", e para láse dirigiram12. Presume-se que era a costa de Santa Catarina, no sul do Brasil13.

Permaneceram ali até o dia 3 de julho, quando, receando prosseguir para índia, re-solveram voltar para a França.

Viveram esses 6 meses em boa harmonia com os indígenas, e o chefe deles consentiuque um filho seu de 15 anos - Essomeric - e um acompanhante, de 30 ou 40, Namoa, fos-sem com os franceses, que prometeram traze-los de volta "dentro de vinte luas, ao maistardar"14.

Logo no início da viagem de volta foram atacados de "febre maligna", que vitimouquatro.

Na véspera de S. Dionísio chegaram a uma região cujos habitantes eram "cruéis co-medores de carne humana". Mataram logo um pajem que havia descido a terra , e levaramprisioneiros um soldado e um marinheiro, dos quais não houve mais notícia15.

Esses nativos, que fabricavam "o seu pão e bebidas de certas raízes", disseram aosfranceses que no seu país já tinham estado estrangeiros, e por isso não se espantavam donavio, mas "temiam sobretudo a artilharia e os arcabuzes". Acabaram matando mais umfrancês e ferindo vários outros, motivo pelo qual deixaram o lugar, e subiram a costa maiscem léguas , onde, mais com muita cautela, conseguiram abastecer o navio de víveres eágua, e "entre dia de S. Tomé e natal de 1504",partiram de volta para a Europa16.

No dia 9 de março ancoraram na Ilha do Faial, e embarcaram mais "víveres e outrascoisas de que necessitavam"17.

As tempestades obrigaram-nos depois a aportar á Irlanda, onde aproveitaram para"calafetar rombos do navio".

10 Idem, ibidem, p. 334.11 Idem, ibidem, p. 338.12 Idem, ibidem, p. 339.13 Idem, ibidem, p. 339. "(•••) esse ponto, a que o navio aportou, e onde os navegantes desembarcaram a 6 de janeiro de

1504, é a foz da rio de São Francisco do Sul". Em nota, ele transcreve d'Avezac quanto ao local de desembarque: onde "de-semboca o rio de São Francisco do.Sul, país habitado pelos Carijós" (Ibidem, p. 323).

1 Tristão de Alencar Araripe, o. c.,p 345.15 Segundo d.Avezac, a região de Porto Seguro (Leyla Perrone fi Moisés, o.c, p. 65).

6 Diz Alencar Araripe, nas suas conclusões "que, daí partindo, foi ainda o navio aportar em outro ponto da costa brasíli-ca, na província da Bahia"(o. c, p. 323).

Alencar Araripe, o. c, p. 350.

464 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Ao chegar ás proximidades das Ilhas de Jersey e Guernesey se depararam com o cor-sário inglês Edouard Blunth, de Plymouth, e resolveram enfrentá-lo. Entretanto logo depoissurgiu o navio de outro pirata, este francês, da Bretanha, capitão Mouris Fortin.

Por não poder resistir, Gonneville deu com o navio á costa, onde parte dos viajantesse salvou, mas a carga perdeu-se toda, pois foi saqueada pelos piratas antes que a embarca-ção acabasse de afundar. As baixas foram de 12 mortos e 4 que morreram depois em con-sequência dos ferimentos.

Os sobreviventes, num total de 28, foram levados ao porto de Hougue, e daí, por ter-ra, a Honfleur, onde chegaram a 20 de maio de 1505. Entre eles os dois portugueses, e oíndio Essomeric, batizado durante a viagem com o nome do capitão: Binot18.

Quando Gonneville e os companheiros foram registrar na justiça os prejuízos que ti-nham tido, os oficiais solicitaram a apresentação dos diários da viagem, e eles informaramnão ser possível, porque esses documentos se haviam perdido com o navio. Escreveram en-tão uma Declaração que foi depositada em juízo no dia 19 de junho de 1505.

O rol da tripulação do navio L'Espior registra três dezenas de mortos, entre eles, 6 deescorbuto, 3 de febre maligna no mar, 16 por afogamento ou em consequência do ataquedos piratas, 4 "assassinados pelos canibais". Portanto, das 60 pessoas embarcadas em Hon-fleur, com mais os dois índios na viagem de volta, a metade pereceu.

1.2. Jean De Léry (1557-1558)

Jean de Léry veio ao Brasil na expedição de Bois le Comte, e embarcou em Honfleurna Normandia, no dia 19 de novembro de 1556 no navio Grande Roberge, de quase oitotoesas de comprimento e três e meia de largura, no qual vinham ao todo 120 pessoas19

A cinco de dezembro eles chegaram á altura do Cabo de S. Vicente, e, a pretexto defalta de víveres, os marinheiros franceses pilharam de um navio irlandês que encontraram, 6ou 7 pipas de vinho espanhol, figos, laranjas e outras coisas.

Depois, entre outras presas, abordaram uma caravela espanhola e lhe tomaram vinho,biscoito e outros géneros. Entretanto a perda que o espanhol mais lamentou foi a de umagalinha, pois, por maior que fosse a tormenta, não deixava de pôr um ovo por dia.

As contínuas chuvas da zona tórrida alagavam os paióis e estragavam e mofavam obiscoito. Era tão reduzida a ração, "que nos víamos obrigados a comê-la apodrecida semsequer desperdiçar os vermes que entravam por metade, fazendo de tudo sopas ou bolos afim de não morrermos de fome"20.

A água tinha tantos bichos que a todos repugnava, e "para beber se fazia mister se-gurar o copo com uma das mãos e tapar o nariz com a outra"21.

Só depois de 7 semanas bordejando a linha do Equador conseguiram transpó-la. Ob-serva Léry que muitos consomem todos os suprimentos nessa tentativa, e desistem de conti-nuar a viagem, sendo obrigados a voltar á Europa.

A 26 de fevereiro de 1557 avistaram a "índia Ocidental ou terra do Brasil, quartaparte do mundo, desconhecida dos antigos e também chamada América"22.

Desavenças com Villegagnon obrigaram Léry e outros franceses a deixar o Brasil evoltar para a pátria menos de um ano após a chegada.

18 Idem, ibidem pp. 351 e 360.19 Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, trad. de Sérgio Milliet, 3* edição, Livr. Martins Editora, São Paulo p. 55 e 56.20 Idem, ibidem, p. 68.21 Idem, ibidem, p. 68.22 Idem, ibidem, p. 71.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 465

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

Partiram eles do Rio de Janeiro em 04/01/1558 no navio Jacques, levando pau-brasil,bugios, saguis, papagaios e outras novidades da terra. A embarcação era pequena, conduzi-da por uma tripulação de 25 homens, e levava 15 passageiros23.

Logo o Jaques começou a ser invadido pela água que enxarcava a carga de pau-brasil, e corria "vermelha como sangue de boi". Quando já não aguentavam mais traba-lhar com as bombas, o carpinteiro e alguns marinheiros conseguiram finalmente, com tou-cinho, chumbo, panos e outras coisas, tapar as maiores fendas.

Houve grandes discussões a bordo, se era mais arriscado prosseguir na viagem ou sevoltar para junto de Villegagnon. Léry e outros passageiros resolveram interromper a via-gem. Puseram num bote "alguma farinha de mandioca", bebidas e roupas, de última hora,entretanto, o autor, atendendo á advertência de um amigo sobre os perigos que correriajunto a seus compatriotas do Brasil, resolveu continuar a viagem. Voltaram para terra osoutros cinco.

O navio prosseguiu viagem sempre fazendo água, e mantendo-se a flutuar a poderdas bombas, ao mesmo tempo que enfrentava grandes tempestades. Cinco meses durou avolta, nos quais avistaram apenas uma ilha que não foi possível identificar.

Como as provisões iam acabando, houve grandes discussões sobre se deveria aportarao Cabo de S. Roque, onde havia selvagens que não estariam dispostos a auxiliar os nave-gantes, mas a maioria foi de opinião ser preferível comer parte dos papagaios e bugios parapoupar alimento, e prosseguir viagem.

Outros problemas foram surgindo, como a briga entre o piloto e o contra-mestre,que quase se matam, o desprendimento de uma peça de madeira do casco que fez entrartanta água que ia pondo o barco a fundo, um descuido do artilheiro com a pólvora, quequase abrasava tudo.24

Com os atrasos da viagem, decorrentes dos erros do piloto, os víveres iam-se acaban-do.

"Já varríamos o paiol, cubículo caiado e gessado onde se guarda a bolacha nos na-vios, mas encontrávamos mais vermes e excrementos de ratos do que migalhas de pão"25.

Com esse farelo faziam uma papa preta e amarga como fuligem, que era repartida àscolheradas.

Os couros de boi e de outros animais eram assados nas brasas e comidos, bem comoas solas de sapatos, velas de sebo e tudo o que se pudesse encontrar.

Passaram depois a comer os ratos.Durante as três semanas dessa terrível fome, a água ficou tão racionada que só se da-

va um copo a cada um por dia. "E a sede nos atormentava ainda mais que a fome"26.

"(...) por isso quando chovia estendíamos lençóis com um peso no centro para dis-tilar a água da chuva, que era recolhida em vasilhas, mas também aproveitávamos o enxurrodo convés e embora este fosse mais escuro do que o alcatrão, por causa da sujeira dos pés, emais imundo do que o das sarjetas, nem por isso o deixávamos de beber"27.

23 Idem, ibidem, p. 226.24 Idem, ibidem, p. 227.25 Idem, ibidem, p. 237.26 Idem, ibidem, pp. 239/240.

Idem, ibidem, p. 240. Frédéric Mauro observa que o processo de captar água da chuva com um lençol estendido foitambém descrito em 1614 por Abbeville, e ignora se os portugueses o utilizavam.(Le Portugal et V Atlantique au XVII e Siècle(1570 - 1670), 1960, p. 74). A referência de Abbeville é a seguinte: "Ao verem-se aproximar as chuvas, muito frequentes na

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Nada mais restava que se pudesse comer, e os franceses começaram a mascar pedaçosde pau-brasil do carregamento.

A fome era tanta, que pouco faltou para chegarem a devorar os companheiros, e dizLéry, "só nos reteve o temor a Deus"28.

A 24 de maio de 1558, com quase todos estendidos de inanição no convés, avistamas terras da Baixa Bretanha.

"Foi quando nos disse o mestre do navio, em voz alta, que, se tal situação tivesseperdurado por mais um dia estava decidido não a lançar sortes, como em tal circunstânciapraticam os comandantes dos barcos, mas a matar um de nós sem aviso para a alimentaçãodos outros"29.

Observa Léry que a declaração não o assustou, porque, embora não existisse no bar-co nenhum gordo, ele só seria escolhido se quisessem comer pele e osso30.

Mas nem mesmo a chegada tão almejada á pátria pós, de imediato, fim a todos os so-frimentos: companheiros enviados com dinheiro a terra para trazer alimentos, fugiram enão mais voltaram; tripulantes de outras embarcações fugiam ao invés de socorrê-los, oucobravam alto preço por pequenas quantidades de alimentos.

Depois de conseguir pão, vinho e outras provisões, rumaram para La Rochelle, ondepretendiam vender o pau-brasil, mas a meio caminho, foram avisados por tripulantes de umbarco, que certos piratas estavam assolando a costa e resolveram não se arriscar. Entraramna enseada de Blavet, na Bretanha, para onde também estavam regressando muitos navios,com as tripulações dando tiros e cantando vitórias. Entre eles, um de São Maló, que haviacapturado um navio espanhol procedente do Peru, com mais de 60 mil ducados em merca-dorias31.

Cerca de metade dos sobreviventes da viagem morreu por ter comido vorazmente lo-go ao desembarcar. Os demais, seguindo a recomendação de ir se alimentando aos poucos,conseguiram escapar, mas com sequelas e padecimentos que se prolongaram por muitotempo.

1.3. Richard Flecknoe (1648)

Richard Flecknoe (ou Fleckno, como ás vezes aparece grafado), foi um poeta, dra-maturgo e viajante cuja biografia apresenta muitas dúvidas e controvérsias. "Very little isknown about Richard Fleckno, an Irish Catholic Priest"32. "Born apparently in Ire-land"33. Parece que foi a princípio jesuíta, e depois padre secular. "Was possibily a Jesuitof Irish extraction"34. "Irish poet, said to have been a priest"35.

região, os marujos atavam lençóis brancos nos quatro cantos das cordas dos navios e colocavam no centro uma bala de canhãoou um pedaço de chumbo pesado de modo a formar uma concavidade" (História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha doMaranhão, p 32).

28 Jean de Léry, o. c, p. 241.29 Idem, ibidem, p. 241.30 Idem, ibidem, p. 241. Lembramos episódios semelhantes, do Naufrágio de Jorge de Albuquerque Coelho (História Trági-

co - Marítima), e do romance da Nau Catrineta.31 Jean de Léry, o. c, p. 242.

Rubens Borda de Moraes, Bibliographia Brasiliana, I, p. 267.The Century Dictionary and Cyclopedia.

Encyclopaedia Britannica, 1971.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 467

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

Não são conhecidas as datas de seu nascimento e morte, e crê-se, geralmente, que vi-veu entre 1600 e 1678. Escreveu Enigmatical characters, ali taken to the life from severalpersons, humours, & dispositions (1658), Sixtynine enigmatical characters, ali very exactlydrawn to the life from several persons, humours, dispositions (Londres, 1665, 2a edição outiragem da obra anterior), Epigrams of ali sorts, made at diverses times on several occasionsby Richard Flecknoe (1670), Loveís Kingdom - A pastoral trage-comedy (...) with a shorttreatise of the English stage, &c. (Londres) (1664)36. The Damoiselles á Ia mode (1667),comédia, baseada, como ele diz no prefácio, em peças de Moliére37.

Sua obra também foi objeto de controvérsias e críticas desfavoráveis na época. Con-siderado autor cómico de mérito reduzido n "a British poet and playwright of slight me-rit"38, seus escritos evocavam tanto louvor como ridículo "both praise and ridicule"39.

Em Fleckno, an English priest at Rome, Andrew Marvell critica seu ascetismo e mausversos.

Southey, no século XIX procurou reabilitar Flecknoe.Mas a obra mais famosa de Flecknoe é A Relation of Ten Years Travells in Europe,

Ásia, Affrique, and America, publicada em Londres sem data, mas provavelmente em 1654ou 1655. O mesmo texto apareceu depois com nova folha de rosto e título diferente: " ATrue and Faithful Account...", e a data de 166540.

O livro é formado por cartas escritas dos locais por onde viajava, dirigidas a pessoasda nobreza. Depois de visitar os Países Baixos, a Itália e Constantinopla, Flecknoe chega aPortugal, onde se entusiasma com notícias sobre o Brasil e, "merelly on curiosity", resolvevisitá-lo, obtendo não só a permissão necessária, como ajuda financeira para a viagem41.

Viajou em 1648 na frota de Salvador de Brito Pereira, como apurou CR. Boxer42, e,ao invés de críticas ás condições, desconfortos e perigos da navegação, Flecknoe só faz elo-gios.

A poucas semanas da partida de Lisboa, aportam ao Funchal, Ilha da Madeira, ondesão acolhidos pelos comerciantes locais, cada qual querendo mostrar-se mais hospitaleiro.Permaneceram ali quatro ou cinco dias, "festejados e regalados quotidianamente", e

"(...) presenteados no momento da partida com as especiarias da ilha, onde se fazemas melhores gulodices do mundo, tanto enxutas quanto licorosas, pois a cana-de-açúcaraqui cresce em grande abundância e os vinhos sobrepujam em generosidade tudo quantojamais provei"43.

Em carta dirigida a Mlle. De Beauvais, ele afirma:

"Quanto a outras comodidades e delicadezas que possuis na Terra, também não nosfaltaram em nossos camarotes, tão grandes quanto os vossos quartos, nossas camas tão có-modas, passadiços tão espaçosos .quanto as vossas galerias, cozinhas e adegas tão bem sor-tidas como as vossas"44.

' Webster's Biographical Dictionary, p. 531.3 A Catalog ofBooks Represented by Library ofCongress, v.48, Michigan, 1941.3' La Grande Encyclopédie.3° The Century Dictionary and Cyclopedia.3" Encyclopaedia Britannica.™ Rubens Borda de Moraes, o. c, pp. 267/268. De acordo com este autor, a 1* edição saiu "circa 1656"41 Idem, ibidem, pp. 267/268.42 Idem, ibidem, p. 268.43 Affonso de E. Taunay, Visitantes do Brasil Colonial (séc. XVI - XVIII), 2* edição, p. 54.^ Idem, ibidem, p. 57.

468 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Mas não havia só o conforto e a largueza dos alojamentos. Havia também diversies ágrande.

"Continuamente vivíamos em festa, pois nem a música nos faltou aos divertimentos.Contávamos, na maruja, além de excelente par de trombeteiros, alguns violeiros, ao som decujos instrumentos dançavam, com frequência e grande satisfação, os passageiros"45.

E prossegue Flecknoe se vangloriando da boa vida a bordo.

"Assim, dormindo, comendo, bebendo e folgando, fizemos esta viagem a salvo detempestades, livres de piratas e inimigos até á altura do Cabo de Santo Agostinho, ondeavistamos terra e três ou quatro veleiros holandeses de Pernambuco"46.

Mas ainda nesse lance, que poderia provocar tiros, combates e outros sucessos maisgraves, nada aconteceu. Os holandeses, depois de tentar inutilmente apresar uma caravela eum patacho, á altura da Bahia desistiram, e a frota portuguesa seguiu tranquila rumo ao Riode Janeiro.

Ao chegar ao porto de S. Sebastião, Flecknoe fornece mais algumas informações queatestam a viagem feliz que fizera: deduzida a estadia na África, durara menos de três meses,chegando "quase que aos Antípodas, com quatro naus e mais de quatrocentos homens", econclui: "apenas perdemos um homem durante toda a travessia"47.

Além do bom sortimento das cozinhas e adegas, os viajantes dispunham de carnefresca de porcos, carneiros e aves que eram conduzidos vivos para corte, a bordo.

"Porcos em abundância, carneiros em rebanho, aves de toda a espécie, era do quedispúnhamos"48.

Acostumados ás críticas das condições das viagens marítimas da época (particular-mente em navios portugueses), os estudiosos em geral reagiram ao relato de Flecknoe.Affonso de E. Taunay, a quem devemos a primeira tradução dos capítulos referentes aoBrasil, não hesita em atribuir os elogios á viagem á "gabolice"de Flecknoe: "Nas primei-ras páginas do relato alguns pormenores curiosos ocorrem, como, por exemplo, as gaboli-ces do conforto do nosso jesuíta na nau em que singrava o oceano. Conforto, no seu dizer,quase sibarítico". E ironizava: "Conforto num galeão da carreira do Brasil em meados doséculo XVII?! Quanta relatividade"49.

45 Idem, ibidem, p. 57.46 Idem, ibidem, p. 58.47 Idem, ibidem, p. 58.48 Idem, ibidem, p. 57.49 Idem, ibidem, p. 53.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 469

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

2. Alimentação a bordo

2.1. Em Naus Portuguesas

O pe. Fernando Oliveira na obra A Arte da Guerra do Mar, publicada em 1555 emLisboa, informa que o principal alimento no mar para os portugueses era o biscoito de tri-go, melhor que o de centeio e o de cevada50. A seguir menciona o vinho, informando queseu uso "he chão entre nós".

As carnes e os pescados deviam ser bem curados para não apodrecerem, o que, sepudesse ser feito sem sal, seria melhor, porque a sede no mar aflige muito os homens. De-viam ser preferidas, das carnes, a de vaca, e dos peixes, a pescada. O queijo era "uma dasmelhores e mais acostumadas companagens que se pode recolher para o mar, e algumasvezes se pode dar por inteiro conduto, ao menos nas ceias"51. Da manteiga, diz FernandoOliveira, não faziam os portugueses "tanta festa", mas as gentes do Norte - franceses, fla-mengos, alemães e todos os mais, "não sabem comer sem manteiga, e é para eles manti-mento mais que conduto" Câmara52. Recomendava recolher aos armazéns, para o mar, le-gumes, "convém a saber, favas, as quais são muito apropriadas para homens de trabalho"porque eram fartivas, e feijies, que são da mesma natureza das favas n também crescem efartam. Acrescenta ainda como ajuda de companagem, grãos, chicharos (grão-de-bico) eervilhas. Azeite, vinagre e sal também eram necessários.

No capítulo da esquipação dos mantimentos, Fernando de Oliveira calcula o consu-mo de biscoito por homem: em 1 dia, 2 arráteis, em 1 mês, 2 arrobas, e em 1 ano, 6 quin-tais. E o de vinho: em 1 dia, 3 quartilhos, em 1 mês, 2 almudes, e em 1 ano 1 pipa.

Assim, resume, um navio de 100 homens necessitava:

AlimentoBiscoitoVinho

Por mês200 arrobas

8 pipas

Por ano600 quintais

100 pipas

E acrescenta "porque o que vai a mais se dá para quebras"53.Fernando Oliveira não dá a proporção de carne, peixe e outros acompanhamentos.

"De carne e pescado, e toda outra campanagem, façam recolher segundo seu estillo,quero dizer, segundo costume das terras, que dam mays ou menos cinduto, e segundo osnauios, porque nos delrey há hum estillo e nos marchantes outro"54.

Alimentos conduzidos na esquadra de Cabral, em 1500, são documentados na cartade Pêro Vaz de Caminha.

Aos dois primeiros índios levados a bordo da capitania, "deram-lhes ali de comer:pão e peixe cozido, confeitos, farteis, mel, figos passados". Não quiseram comer quase na-da, e quanto ao vinho que lhes trouxeram, "não gostaram dele nada, nem quiserammais"55.

50 Padre Fernando Oliveira, A Arte da Guerra do Mar, Colecção Documentos/Ediçãodo Ministério da Marinha, N° 1, Lisboa, [1969], p. 44.

ldem, ibidem, p. 44.ldem, ibidem, p. 44.

53 ldem, ibidem, p. 77.54 ldem, ibidem, p. 78.55 Leonardo Arroyo, A Carta de Pêro Vaz de Caminha, 2* edição, Edições Melhoramentos, INL, Brasília, 1976, p. 47.

470 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Outros dois que depois foram levados a bordo, "de tudo quanto lhes deram, come-ram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sanchode Tovar dizer que o não bebiam bem"56.

O Livro Náutico, de fins do século XVI, relaciona o custo acabado de "hum caraue-lão de 40 te 50 toneis" (...) "com seus mastos, enxárcias, amarras, ancoras, velas e outrosaparelhos te ser posto a vela e ci mantimtos e soldos de vinte e cinco pessoas". Os manti-mentos para os 25 homens que compunham a guarnição (capitão, mestre, piloto, 8 mari-nheiros, 6 grumetes, 2 bombardeiros e 6 soldados) com os respectivos preços e quantida-des, eram os seguintes:

AlimentoBiscoitoVinho

Carne

PescadasAzeite

Vinagre

Quantidade77

9

2004312

16

Unidade

QuintaisPipas

ArrobasDúzias

Cântaros

Almudes

Preço1.800 rs

4.500 rs

500 rs600rs900 rs

160 rs

Total170.000 rs

40.500 rs100.000 rs25.800 rs

10.800 rs2.650 rs

O orçamento inclui 10 pipas vazias para água e 10 par vinho e vinagre, ao preço de1300 rs cada uma, e mais uma verba de 30400 rs para "lenhas, carretos, aguadas e despesasde arrumação".

As quantidades são calculadas para 8 meses. Nos 4 meses restantes do ano, o carave-lão ficava estacionado no porto, e era mantido e vigiado pelo mestre e por um grumetecujos soldos e mantimentos durante esse período montavam a 17.200 réis. Tratando-se deum Caravelão para recados, como consta no livro náutico, destinava-se a viagens curtas, semgrandes problemas de abastecimento57.

Muitos outros alimentos são documentados a bordo das naus portuguesas.O irmão Marcos Nunes, em carta de Goa, de 04/01/1556, menciona, além de conserva

de marmelos, farinha, biscoito, grão-de-bico, lentilhas, ameixas, passas, amêndoas, açúcar emel: "(...) trayamos garvanços y lantezas, ciruelas, passas, y almendras, y açúcar e miei

( - ) " 5 8 .A Relação da Viagem e Naufrágio da Nau S. Paulo (1560) menciona "passas,

amêndoas e outras cousas"59.Jácome de Braga, em 02/12/1563, menciona "biscoito alvo e pasas e açúcar rrosado,

(...) muitos grãos llentilhas e ameixas pasadas e muito açúcar, mel e amêndoas (...)"60.Azeitonas também são mencionadas na Relação do Naufrágio da Nau S. Paulo :

"(...) comendo em pé do queijo, e azeitonas, e outras cousas que o mar deitava fora, de quetoda a praia era cheia (...)"61. A Relação do Naufágio da Nau Conceição (1555) mencionaque os sobreviventes recolheram entre outros alimentos "uma pipa de azeitonas"62

O holandês Van Linschoten, que embarcou em abril de 1587 para a índia a serviçodo bispo nomeado de Goa, D. Vicente Ferreira, descreve a alimentação a bordo, que era

56 Idem, ibidem, p. 59.57 Carlos Francisco Moura, Os Caravelões Brasileiros, separata da revista Navigator, Serviço de Documentação Geral da

Marinha, Rio de Janeiro, 1974, pp. 59/60. O documento foi transcrito de H. Quirino da Fonseca, A Caravela Portuguesa.58 Joseph Wicki, S. J., Documenta Indica, vol. III, p. 440.59 Bernardo Gomes de Brito, História Trágico-Marítima, vol. 11, Edições Afrodite, Lisboa, 1971.60 Joseph Wicki, S. J., o. c, vol. VI, p. 53.61 Bernardo Gomes de Brito, o. c, p. 347.62 Idem, ibidem, vol. 1, p. 148.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 471

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

igual para todos: por dia cada um recebia libra e meia de biscoito, meia caneca de vinho euma de água. Alguns peixes secos, cebolas e outras coisas eram "distribuídas a preço mó-dico". A carne salgada era á razão de uma arroba por mês. Linschoten informa ainda quea despensa da nau estava provida de farinhas, açúcar, mel, uvas, passas, ameixas, compotas eoutros doces, "mas tudo para os doentes"63.

Na viagem de volta, segundo Linschoten, a situação era bem diferente: a todos eramdistribuídos biscoito e água, mas só até ao Cabo da Boa Esperança. Todos, até os soldadosdependiam do que trouxessem64.

O pe. Bartolomeu Guerreiro, no livro Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal(Lisboa, 1625), informa que a Armada da Coroa de Portugal, que noa ano anterior saiu deLisboa para a reconquista da Bahia aos holandeses, levava os seguintes suprimentos:

BiscoitoVinhoÁguaCarnePeixe3ArrozAzeiteVinagre

7500 quintais884 pipas1.378 [pipas]4.190 arrobas.739 arrobas1.782 arrobas122 quartos93 pipas

"E fora deste provimento, leuaua muyto outro de quejos, passas, figos, legumes,amêndoas, ameixas passadas, açúcar, doces, especiarias, sal (...)"65

Um assento datado de Lisboa a 12/11/1637 informa o preço de vinho e azeite que se-riam fornecidos á Armada de Socorro do Brasil: 1500 pipas de vinho ao preço unitário de5.300 réis (as pipas fornecidas pela coroa) e 2000 cântaros de azeite, ao preço unitário de900 réis (cântaros fornecidos pela coroa)66.

A frota de socorro das ilhas, organizada por D. Diogo Lobo nos Açores para auxiliaro Brasil na guerra contra os holandeses e que fundeou em frente a Salvador em 9/10/1639,era formada por 18 navios que conduziam 1120 soldados67.

Os principais mantimentos nela embarcados foram os seguintes:

Biscoitos 1448 quintais, 3 arrobas e 10 librasVinho 329 quartos e meioArroz 247 arrobasBacalhau 238 arrobasFarinha 26.077 arrobasAzeite 164 cântaros e 2 canadasVinagre 287 cântaros e meioÁgua 476 pipas68

63 Citado por Luís da Câmara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, vol. 1, p. 335.64 Idem, ibidem, vol. 1, p. 355.6-* Pe. Bartolomeu Guerreiro, Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1968, pp.

55/5666 Max Justo Guedes, As Guerras Holandesas no Mar, História Naval Brasileira, 2° Volume, Tomo IA Ministério da Mari-

nha, Seviço de Documentação Geral da Marinha, Rio de Janeiro, 1990, pp. 226/7.67 Idem, ibidem, p. 270.68 Idem, ibidem, p. 271.

472 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

A bordo da nau Nossa Senhora de Guadalupe, de 300 toneladas, que fazia parte dafrota, vinha o jesuíta Luís Lopes que escreveu a Relaçam da Viagem de Socorro, através daqual podemos saber pormenores da alimentação, inclusive que havia carneiros e galinhas.Nessa nau, por ocasião da festa de Santo Inácio, os jesuítas ofereceram ao capitão da infan-taria Paulo Machado de Lemos e ao capitão e mestre do navio, António Salazar, ao pilotoPantaleão Rangel e a outras pessoas "uma honesta refeição", um "jantar moderado qualse podia esperar de religiosos tam graves e apontados em suas cousas", e embora já estives-sem no sétimo dia de viagem, "ainda se achavam boas algumas das cousas que se costu-mam trazer de refresco"69.

o

"O jantar se deu no castello de popa diante da camará do mestre e piloto, e se cons-tou das cousas seguintes: Io caldo de gallinha; 2° gallinha assada, mea para cada hum; 3carneyro cozido; 4o carneyro assado; 5o gallinha com arroz; 6o marram, presunto, chouriçosde Alentejo e hum payo, T queyjo de Alentejo, azeitonas, perrexil. Nam faltou na mesaagraço, limies, limas, biscouto de Lisboa e S. Miguel, vinho de Peramanca, pasto de Évora evinho bom de S. Miguel, huma caxa de perada, confeitos, bolos de açúcar e ginetes, pêrasde S. Miguel e melam bastante"70.

Apesar da pletora e variedades dos alimentos, diz o autor que "de tudo se comeocom a devida sobriedade"71.

Na véspera da festa, "(...) mandou o P. Visitador o dia dantes dar aos músicos (...)meyo carneyro, hum frasco de vinho e hum queyjo de Alentejo; e aos marinheiros humcarneyro, e repartir entre os marynheiros e soldados hum barril de sardinhas de Setuval quetinha hum milheyro"72.

Por ocasião da festa de S. Lourenço mandou o Visitador dar á ""gente do mar":

"(...) 6 chouriços ordinários e hum presunto e algumas postas de vacca, hum cestocom algunas 5 ou 6 arráteis de confeitos miúdos de erva doce e lizos e huma boa boceta decaramelos, e ao domingo o canecam da Companha cheo de vinho para o jantar e hum cestode biscouto branco (...) e ao mestre e piloto deu huma gallinha e huma boceta de perada

(...)"73-A Relaçam da Viagem de Socorro revela a procedência de vários alimentos a bor-

do74, além das já transcritas: "chouriços de Eivas, queijos do Alentejo, pam de açúcar daMadeyra e ballancia de Lisboa, etc."75.

Revela também que teve de ser lançado ao mar "hum quarto cheo de carne de vaccade Inglaterra, a qual estava podre e corria perigo de inficcionar o navio com o seo maocheyro"76.

69 Luís Lopes, S. J., Relaçam da Viagem de Socorro que o Mestre de Campo D. Diogo Lopes levantou nas Ilhas dos Açorese levou, em 16 navios, a Cidade da Bahia, e das cousas mais notaveiz que neste caminho socedêrana, principalmente na NaoNossa Senhora de Guadalupe, publicado por Frédéric Mauro, Le Portugal et l'AIantique au XVIIe Siècle (1570-1670), SEPEN,1960.

70 Idem, ibidem, pp. 223/4.71 Idem, ibidem, p. 254.72 Idem, ibidem, p. 254.73 Idem, ibidem, p. 254.74 Idem, ibidem, pp. 252/3.7^ O diário da viagem do governador nomeado de Mato Grosso, Luís Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, de Lisboa

ao Rio de Janeiro, registra o término de melancias a 19/11/1771, 39° dia de viagem: "Findarão as melancias no navio", GilbertoFreyre, Contribuição para uma Sociologia da Biografia, p. 217.

76 Luís Lopes, o. c, p. 227.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 473

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

No dia 5 de agosto conseguiram pescar "uma toninha que passou de três arrobas depeso", que foi logo repartida por marinheiros, o capitão e alguns soldados77.

Mesmo numa viagem sem maiores percalços como a descrita na Relaçam de Viagemde Socorro, problemas de alimentação se manifestaram "Carne não havia nenhuma, opeyxe e arroz estava acabado; só havia favas e chicharos e faltava agoa para cozer"78.

Não tinham já "carne nem toucinho díel Rei, senam muito pouco, e ficarem so combiscouto cheo de bichos, tal que os cães o não queriam comer, e com arroz, fava, e chicha-ros (...) e pouco peyxe secco e o mais delle podre"79.

No 60° dia de viagem "já a navegaçam parecia cumprida aos que comiam somentebiscoutos e favas cruas ou torradas e aos que cuydavam que desembarcariam na Bahia com50 dias de viagem"80.

Com o andar do tempo, a alimentação a bordo vai tendo progressos.Um documento de 26/08/1750, do Conselho Ultramarino, estabelece as condições

para o transporte de mil pessoas das Ilhas dos Açores para o Pará, entre elas a alimentação abordo é regulamentada em três cláusulas81.

Ao jantar, legumes, em cada dia diversos (feijão-fradinho ou feijão branco, ervilhas,favas, etc), á razão de um alqueire para cada quarenta pessoas.

As ceias eram mais diversificadas:- Domingos, Terças e Quintas:Três quartas de carne por pessoa, a saber, meio arrátel de vaca e uma quarta de tou-

cinho "e poderá este toucinho cozer-se com os legumes do jantar dando para a ceia azeitee vinagre que havia servir com os legumes para com eles se temperarem o salgado da va-ca"82

- Segundas e Sextas-Feiras:Meio arrátel de arroz por pessoa- Quartas-Feiras e Sábados:Meio arrátel de bacalhau por pessoa

Para o tempero dos legumes, bacalhau e arroz - pimenta ou alho, ou cebola, e umacanada de azeite para cada 60 pessoas, "e de vinagre o que baste conforme a sua força"83.

Além disso, cada pessoa receberia, por dia "um arrátel de bom biscoito novo e semcorrupção alguma"84.

A água era a "tinello" ou ao menos uma canada por dia por pessoa, "somente parabeber, além do que for necessária para cozer a comida".

Deveriam também ser levadas dietas para os que adoecessem, "á proporção da gentede sua lotação incluindo a de equipagem":

Para cada 50 pessoas:20 galinhas21 arráteis de doce, de lentilhas, ameixas e grãos (4 alqueires repartidos por

estes géneros)43 arráteis de açúcar

77 Idem, ibidem, pp. 225/6.78 Idem, ibidem, p. 248.79 Idem, ibidem, pp. 246/7. .80 Idem, Ibidem, p. 225.ft 1

Luís da Câmara Cascudo, o. c, v. 1, p. 357.82 Idem, Ibidem, p. 357.83 Idem, ibidem, p. 357.84 Idem, Ibidem, p. 357.

474 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

43 arráteis de farinha2 barris de biscouto branco escolhido85.Ao contrário do que ocorria geralmente nos séculos XVI e XVII, quando cada via-

jante ou grupo de viajantes devia preparar a própria comida ou providenciar alguém que apreparasse, no transporte dos ilhéus em causa, ela seria preparada pelo cozinheiro ou cozi-nheiros do navio, sendo previamente examinada pelos "recebedores", que ordenariam adistribuição. A comida das mulheres e dos meninos até 7 anos teria preparação separada dados homens.

O preço do transporte e sustento desde as ilhas da Madeira ou dos Açores até o Paráseria de "dezenove mil e trezentos e cincoenta réis por cada pessoa de três annos comple-tos, e pelas desta idade para baixo se não dará cousa alguma"86.

Um tópico anterior informa que as rações eram só para as pessoas de três anos com-pletos, "porque as que os não tiverem não serão contados nem se lhes dará reção, mas aágua necessária"87.

Um decreto de 28/11/1753, de D. José, tinha como objetivo proporcionar melhorqualidade dos alimentos a bordo. Determinava que as frotas deveriam partir de Potugal"tão oportunamente"que pudessem recolher os frutos do Reino que costumam carregar, eque, voltando dos portos do Brasil, com a mesma oportunidade, pudessem trazer frescos osfrutos deles depois de completadas as colheitas88. Assim estabelecia as seguintes épocas departir:

FROTASdo Rio de Janeiroda Bahiade Pernambucodo Pará-Maranhão

PARTIDA DE LISBOA1° de janeiroprincípio de fevereiro15 de novembro1° de março

PARTIDA PARA 0 REINOaté princípios de iunhoaté o fim de junhoaté 20 de maioaté a Ia lua do mês de agosto

Pelo decreto de 11/12/1756 o rei D. José permitiu que vários géneros fossem levadosde Portugal para o Brasil, e do Brasil para Portugal, "por conta e risco" dos oficiais, mes-tres e marinheiros.

De Portugal podiam ser levados presuntos, paios, chouriços, "queijos de Alentejo ede Montemor, e não outros", sardinhas, castanhas piladas, seiras de passas, de figos e deamêndoas do Algarve; ameixas passadas, azeitonas, alhos, alecrim e louro89.

Do Brasil podiam levar farinha de mandioca, melaço, cocos, boiies e barris de doce90.

2.1.1. Alimentos Do Brasil

Fernando Oliveira louva a excelência do trigo como alimento de bordo, mas dá al-ternativas para a sua substituição nas terras onde não o houvesse.

"Nas terras onde (não) há trigo, em lugar de biscouto os nauios q laa vão ter, suprema falta delle ci quaesquer mãtimentos q nessas terras há, e servem por pão, na india ci arroz,

85 Idem, lbidem, p. 358.86 Idem, lbidem, p. 359.87 Idem, lbidem, p. 357.88 Idem, lbidem, p. 359.89 Idem, lbidem, p. 360.90 Idem, lbidem, p. 360.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 475

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

no brasil ci maiz e raiz, mas nem laa nem quaa acha cousa igual ao trigo, pêra mãtimentto eforça do homem"91.

No Brasil, portanto, os navios, em vez de trigo, carregavam milho (maíz) e mandioca(raiz).

E muito importante é este depoimento de 1554 de Fernão de Oliveira sobre o em-prego de milho em substituição ao trigo como alimento nos navios. Não só porque nãoresta dúvida de que era o milho americano, pois empregou a palavra maiz, ao invés de ou-tras passíveis de interpretações divergentes (milho simplesmente, milho zaburro, milho daGuiné, milho de maçaroca, trigo da turquia, etc), como porque atesta a procedência brasi-leira.

A mandioca era o principal alimento dos índios do Brasil, vindo a seguir o milho. Oscolonos em geral adotaram esses alimentos base, e, acrescenta um cronista, empregavammuito o milho nas criações domésticas.

Pode-se concluir que o milho era empregado nos navios não só na alimentação hu-mana, como na de animais, que eram numerosos a bordo.

Pêro Vaz de Caminha na sua famosa carta de 1/05/1500 em que comunica o desco-brimento do Brasil ao rei, dá a mandioca n que designa com uma palavra já anteriormenteadotada em português - "inhame" n como o principal alimento dos indígenas.

"(...) não comem senão deste inhame, de que há muito, e dessas sementes e frutosque a terra e as árvores de si lançam"92.

Os primeiros cronistas do Brasil, com maior conhecimento das realidades locais des-crevem mais extensamente a mandioca, e são umas raízes como de cenouras, ainda quemais grossas e compridas"93. "Nestas partes do Brasil não semeiam trigo nem se dá outromantimento algum deste Reino, o que lá se come em lugar de pão he farinha de pao: Estase faz da raiz de uma planta que se chama mandioca, a qual he como inhame"94.

"(...) saibamos dos seus mantimentos naturais; e peguemos primeiro da mandioca,que é o principal mantimento e de mais substancia, que em Portugal chamam farinha-de-pau"95.

Os Diálogos das Grandezas do Brasil, de 1612, mencionam os mantimentos do país,"dos quaes os principaes e melhores são três, e destes ocupa o primeiro lugar a mandioca,que é a raiz de um pao, que se planta de estaca, o qual, em tempo de um ano está em per-feição de se poder comer; e por este mantimento se fazer da raiz de um pao lhe chamamem Portugal farinha de pao"96.

E acrescenta a razão da designação: "quando querem vituperar o Brasil, a principalcousa que lhe opiem é dizerem que nele se come farinha de pao"97.

Segundo Gabriel Soares, "a mandioca é mais sadia e proveitosa que o bom trigo, porser de melhor digestão", e os governadores Tomé de Sousa, D. Duarte da Costa e Mem de

' Fernando Oliveira, o. c, p. 44.9 Leonardo Arroyo, o. c, p. 60.93 Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil, Cia. Editora Nacional, 1978, p. 45.94 Pêro de Magalhães Gandavo, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, p. 43.95 Idem, lbidem, p. 172.9 Diálogos das Grandezas do Brasil, p. 176.97 Idem, lbidem, p. 176.

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Sá preferiam-na, e não comiam no Brasil pão de trigo, por não se acharem bem com ele, eassim também faziam muitas outras98.

Havia dois tipos de farinha. Uma mais seca, para durar mais sem se estragar, chamadafarinha-de-guerra porque os índios a levava nas expedições contra os inimigos. A outra erafresca, "mais branda e tem mais substancia"99.

Fernão Cardin diz que, "misturando a farinha já preparada em certa têmpera com acrua, se faz uma farinha biscoitada que chamão de guerra, que serve aos índios, e portugue-ses pelo mar, e quando vão á guerra, como biscoito"100.

Os Diálogos das Grandezas também registram o uso da farinha-de-guerra nos navios:"dura mais tempo sem corrupção e a levam para comer no mar"101.

E Gabriel Soares: "(...) os navios que vêm do Brasil para estes reinos não tem outroremédio de matalotagem para se sustentar a gente até Portugal, senão o da farinha-de-guerra"102.

E fornece um dado importante: o consumo per capita: "(...) um alqueire dela damedida da Bahia, que tem dois de Portugal, se dá de regra a cada homem por um mês(...)"103.

Os Diálogos das Grandezas do Brasil afirmam que os alqueires da Bahia valiam 2,5dos de Portugal, que o consumo per capita era de um desses alqueires, e acrescentam o pre-ço da farinha ordinária de mandioca.

"Os alqueires desta capitania são maiores que os do Reino duas vezes e meia, emforma que um alqueire dos de cá responde por dous e meio dos de Portugal; um alqueiredos semelhantes é bastante pêra sustentar a um homem por espaço de um mês, e vai a du-zentos a cincoenta reis a trezentos, e ás vezes é mais barata, segundo a falta ou abundânciaque há dela"104.

O uso da farinha de mandioca nos navios também é mencionado por frei Vicente doSalvador: "os marinheiros fazem dela sua matalotagem daqui pêra o reino"105. E pelofrancês François Pyrard de Lavai, na viagem da Bahia para a Europa, em 1610, numa "be-líssima urca feita em Dunkerke", de propriedade de dois flamengos naturalizados portu-gueses: "Dela me servi por espaço de seis meses, em vez de pão, tanto ali como a bordo donavio, que não tinha bolacha, na viagem de volta"106.

Gabriel Soares diz que, inventadas pelas mulheres portuguesas, faziam-se no Brasil"umas filhos a que chamam beijus", que "ficam tão iguais como obréias", "mui saboro-sas, sadias e de boa digestão", usadas nos navios. "Também costumam levar para o marmatalotagem de beijus grossos muito torrados, que dura um ano, e mais sem se danarem,como a farinha de guerra"107.

Pyrard de Lavai informa que a farinha de mandioca era exportada do Brasil paraAngola.

98 Peto de Magalhães Gandavo, o. c, pp. 179/180.99 Idem, lbidem, p. 44.1 0 0 Idem, lbidem, p. 168.

Diálogos das Grandezas do Brasil, p. 176.1 0 2 Pêro de Magalhães Gandavo, o. c, p. 178.1 0 3 Idem, lbidem, p. 178.1 0 4 Diálogos das Grandezas do Brasil, p. 179.1 0 5 Afonso Escragnole Taunay, Extratos das Viagens de François de Pyrand, Revista do Instituto Histórico e Geográfico

de S. Paulo, p. 3501 0 6 Idem, ibidem1 0 7 Pêro de Magalhães Gandavo, o. c, p. 178.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 477

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

"Dela há tal quantidade que navios se carregam para levá-la ao Reino de Angola,que está na costa de Guiné"108.

E a mandioca chegou até ao Oriente, como prova a Relação da Viagem e Naufrágioda Nao S. Paulo, de Henrique Dias. A S. Paulo partiu de Lisboa para índia em 25/04/1560,mas teve que arribar á Bahia, onde se reabasteceu. Quando deu á costa num ilhéu em Sa-matra, verificou-se "não haver aí mais mantimentos, que os que já disse, e uma pouca defarinha de pau-do-brasil"109.

O padre Francisco de Monclaro em carta de 01/08/1570, escrita em Moçambique, in-forma que a nau em que viajara para a índia teve que arribar á Bahia, onde ficou 6 meses.Ao chegar ao Cabo da Boa Esperança e Terra do Natal, os mantimentos estavam acabando,e "já não avia mais que fejoins e farinha de pao"110.

Na Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal (1625), o pe. Bartolmeu Guerreiro in-forma que, em 1625, quando as armadas reais das coroas de Portugal e de Castela, recon-quistada a Bahia aos holandeses, preparavam-se para voltar para a Europa; entre os supri-mentos que enviou Matias de Albuquerque figuravam: 4200 alqueires de farinha da terra,63 terços e 120 quartos de farinha de trigo, e 435 sacas de farinha das Ilhas111. Farinha daterra era farinha de mandioca.

A Gazeta de Lisboa notícia no início de julho de 1750 a chegada da frota da Bahiacom artigos importados, entre eles, "306 barris de farinha"112. Se era importada do Brasil,devia ser de mandioca. Notícia publicada em novembro de 1791 no mesmo jornal, vinda daBahia em agosto, informa que "o Paiz se acha abundante de mantimentos, principalmentede farinha, que está a 300. reis o alqueyre, & não passa nenhuma de 400. reis (,..)"113.

A frota do Rio de Janeiro que chegou a Lisboa em agosto de 1751, trazia "937 (bar-ris) de farinha de mandioca"114. A da mesma origem que chegou a Lisboa em maio de1754 trazia "1173 fí barris de farinha de mandioca"115.

O vice-rei D. Francisco de Assis de Távora, 3o Marquês de Távora, em fins de 1750diz acreditar que não poderia faltar farinha-de-pau para as naus da índia, pois sempre haviasobra da que vinha da América, isto é, do Brasil.

"(...) e tem por M Aletria, e farinha de pao, de qí cuido não pode haver falta paas Náos da índia por qí creyo, qí nas qí vão de transporte de America pa Lisboa há sempresobra deste género"116.

Além da farinha de mandioca e do milho, o Brasil abastecia os navios portuguesescom outros alimentos, alguns deles reexportados, como a farinha de trigo do Reino e dasIlhas. A citada Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal cita mais: 519 pipas de vinho, 67barris e 1688 botijas de azeite, 29 pipas de sal, 550 chacinas e 12500 peixes secos117.

1 ftS

Afonso Escragnole Taunay, o. c, p. 350.1 0 9 Bernardo Gomes de Brito, o. c, vol. 1, p. 358.1 1 0 Joseph Wicki, vol. VIII, p. 291.1 1 1 Pe. Bartolomeu Guerreiro, o. c, p. 125.1 1 2 Notícias Históricas de Portugal e do Brasil, Vol 1, p. 289.1 1 3 Idem, ibidem, Vol. II, p. 38,1 1 4 Idem, ibidem, Vol II, p. 10.1 1 5 Idem, ibidem, Vol II, p. 38.1 ^ António Marques Esparteiro, A Higiene nas Naus de Viagem em Meados do Século XVIII, Boletim da Sociedade de

Geografia de Lisboa, série 76, ns. 10-12, out/dez, 1958.Pe. Bartolomeu Guerreiro, o. c, p. 125.

478 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Não faltavam doces, compotas e conservas, que a riqueza do país em frutas e açúcarproporcionava, como observa Pirard de Lavai em 1610:

"Os que cá saem para Portugal carregam os navios com açúcar e conservas secas oulíquidas, como laranjas, limies e outros frutos"118.

O chamado coco da Bahia, que na verdade é originário das ilhas do oriente, e foi in-troduzido no Brasil pelos portugueses, já no século XVI aparece nos navios suprimindo afalta de outros alimentos, como se lê no Naufrágio que passou Jorge de Albuquerque Co-elho (1565).

2.1.2. Doces, Marmelada, Conservas e Compotas

Doces, conservas, compotas e confeitos faziam parte das vitualhas das carreiras daíndia e do Brasil. Trazidos não só do Reino como da escala na Madeira, grande produtorade açúcar e de frutas.

A fabricação de marmelada em Portugal é tradição muito antiga, que data talvez dada Antiguidade. Santo Isidoro de Sevilha, que viveu de 560 a 636, antes, portanto, da inva-são dos árabes, na sua famosa obra Etimologias, que pode ser considerada uma enciclopé-dia da Península Ibérica na época, já a menciona. "Mala cydonia (membrillos) (...). De estamanzana se hace cidonitum, mermelada de membrillo"119.

Não havia açúcar na época, e a marmelada era feita com mel. Quando com as desco-bertas, e a introdução da cana-de-açúcar na Ilha da Madeira e depois no Brasil, a crescenteprodução de açúcar provocou a substituição do mel.

Duarte Nunes de Leão, no início do século XVII, atesta a substituição do mel peloaçúcar: "As marmeladas que os antigos faziam de mel em casas muito honradas, não queragora qualquer mecânico comê-las senão de açúcar, e tocadas de âmbar e almíscar"120.

A Relação do Naufrágio da Nau S. Paulo, que foi para a índia em 1560, menciona"um João Gonçalves, casado em Goa, feitor que foi desta nau, sendo de mercadores (...)com muitas conservas que levava da Ilha da Madeira, aproveitou e fez muito bem a mui-tos"121. Uma carta datada de Goa em 04/01/1556 menciona entre os alimentos a bordo"carne de membrillos y conservas"122. A expressão "carne de membrillos" significa"conserva que se hace de esta fruta", e membrillo é marmelo em espanhol.

A Relação do Naufrágio da Nau Conceição nos baixos de Pêro dos Banhos mencio-na que, depois do naufrágio, em 22/08/1555, "D. Álvaro mandou apartar oito sacos de bis-couto para levar, e sessenta caixas de marmelada, das quais deixou obra de cinquenta, e le-vou trinta barris de quarta de conserva, e deixou alguns vinte e cinco"123.

Muitas vezes a marmelada era o único alimento com que os náufragos podiam con-tar. O pe. Pedro Martins, em carta de Goa de 09/12/1586, informa que os sobreviventes,procuravam alcançar Sofala, "fazendo deu caminho sem comerem mais cada dia que duas

1 1 8 Luís da Câmara Cacudo, História da Alimentação no Brasil, Ed. USP, Ed. Itatiaia, São Paulo, 1983, vol. II, p. 643.1 1 9 San Isidoro de Sevilla, Etimolgías, versíon castellana total de Luis Cortês e Góngora, Biblioteca de Autores Cristianos,

Madrid, 1951, p. 420.1 2 0 Luís da Câmara Cascudo, o. c, vol. 2, p. 656.1 2 1 Bernardo Gomes de Brito, História Trágico-Marítima, Edicies Afrodite, Lisboa, 1971, Vol. 1, p. 293.1 2 2 Joseph Wicki, Documenta Indica, Vol. III, p. 440.1 2 3 Bernardo Gomes de Brito, o. c, Vol. 1, p. 154.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 479

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

talhadas de marmelada, uma pela manhã outra à noite, e beberem hum terço de meo quar-tilho de uvinho salgado todo dia (,..)"124.

O mesmo missionário informa que outros náufragos, recolhidos nos penedos, fize-ram uma jangada "boa e forte", e "os mantimentos que nella meterão forão 30 caixas demarmeladas, seis baris de conserva, e hum baril de 3 almudes de augoa e outro da mesmamedida de vinho, e outro de farinha, a qual mais servira se for a em biscouto"125.

A marmelada serviu também para aduirir dos cafres outros alimentos "(...) mas lo-guo os nossos lhe pagarão muito bem o peixe que comerão com algumas marmeladas"126.

Segundo a Relação do Naufrágio da Nau Santiago, em 1585, dezesseis pessoas sesalvaram, "não levando na jangada mais mantimentos, que um almude e meio de vinho,um almude de água, seis barris pequenos de conserva, oito caixas de marmelada (...) o quese dava a cada pesoa era uma pêra em conserva, ou uma talhada de marmelada e uma pe-quena vez de vinho, como o quarta parte de um quartilho"127.

Na mesma relação se relata que, por estar sobrecarregado de gente o batel, o caitão eseus parciais decidiram lançar ao mar várias pessoas, para que a embarcação não soçobras-se. Essa decisão terrível, que equivalia á sentença de morte foi sendo executada, e "aconte-ceu aqui, que querendo botar ao mar o tanoeiro de sobressalente, o qual tinha trabalhadomuito bem no conserto do batel, e vendo o pobre homem, que não tinha nenhum remédio,pediu que lhe dessem uma talhada de marmelada; deram-lha, e sobre ela bebeu uma vez devinho, e assim se deixou lançar, indo-sw logo a pique ao fundo, sem mais aparecer"128

Marmelada, conservas, açúcar rosado eram geralmente dados aos doentes "(...) caixasde marmelada, (...) biscouto alvo e passas e açúcar rosado pêra os mesmos enfermos"129

"Também dávamos a cada doente (...) pão com uma pequena de marmelada ou pa-cas (...)"13°

Muitas vezes os calores, principalmente da região do Equador, faziam "ferver" ou"referver" a marmelada e outros alimentos.

Isto aconteceu próximo à linha, na nau em que o pe. Pedro da Cruz ia para a índia,como ele relata em carta de 23/11/1563, de Goa:

"Aqui se dano Ia mayor parte de Ias cosas de comer, porque el azeite,la manteca, Iasmarmeladas y Ia miei ferviam; el agua se corrompia; laspassas, los higos y otras muchas co-sas con Ia grande calma se danavam"131.

Em dezembro de 1750 o físico-mor do Estado da índia considerava doces a bordo"supérfluos e nocivos", e recomendava, ao invés deles, dar aos doentes galinha e carne decarneiro.

"(...) e um provimento de doces supérfluos e nocivos, que passando a primeira vez alinha equinocial, logo refervem; e se por impossível, enquantos perfeitos, pudeçem ser de

1 2 4 Joseph Wicki, o. c, Vol. XTV, p. 371.1 2 5 Idem, ibidem, Vol. XIV, p. 379.1 2 6 Idem, ibidem, Vol. XIV, p.,384.1 2 7 Bernardo Gomes de Brito, o. c, Vol. 2, p. 466.1 2 8 Idem, ibidem, Vol. II, p. 466.1 2 9 Joseph Wicki, o. c, Vol. VI, p. 53.1 3 0 Idem, Ibidem, Vol. VI, p. 503.1 3 1 Idem, ibidem, Vol. VI, p. 35.

480 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

utilidade aos Enfermos, já naqelle tempo se podião julgar por venenosos; nestes, que erãooito arrobas, não consenti que se bolisse, prohibindo-lhe totalmente o seu vzo. Melhor háque de seu custo se comprem Gallinhas, e Carneiros de que se utilizem os eenfermos"132.

No Brasil, desde o primeiro século, com a variedade de frutas e a grande produçãode açúcar, começou-se logo a fazer doces e conservas, como atesta Fernão Cardim.

"As árvores de espinho, como laranjeiras, cidreiras, limoeiros, limeiras de várias sor-tes, se dão também nesta terra que quasitodo o ano têm fruto, e há grandes laranjaes, ci-draes, até se derem pelos matos, e é tanta abundância destas cousas que delas se não fazcaso (...) e como não falta açúcar se fazem infinitas "conservas, se. cidrada, limies, florada,& "133.

O mesmo jesuíta informa que os marmeleiros no Rio de Janeiro, São Vicente e Pira-tininga eram tantos que em breve seriam dispensadas as marmeladas da Madeira.

"No Rio de Janeiro, e São Vicente, e no campo de Piratiniga se dão muitos marme-los, e dão quatro camadas uma após a outra, ehá homem que em poucos marmeleiros colhedez e doze mil marmelos, e aqui se fazem muitas marmeladas, e cedo se excusarão as daIlha da Madeira"134.

Quando ele partiu de Piratiniga para São Vicente, mandaram-lhe "galinhas para amatalotagem, caixas de marmelada e outras cousas"135.

Em Piratininga os jesuítas tinham "uma cerca grande com muitos marmelos (...)" eoutras frutas136.

A cerca dos jesuítas no Rio de Janeiro, além de outras árvores de frutas de Portugal edo Brasil, tinha "muitos marmeleiros"137.

Segundo Alcântara Machado, a conserva de marmelada foi "o artigo principal daexportação paulista". Eram muitos milhares de caixas, vendidas a 320 réis cada, preço que,no século XVIII baixou para 100 réis138.

Das viagens marítimas a marmelada passou para as fluviais no Brasil. Era um dosalimentos transportados pelas canoas das monções de Cuiabá, que ligavam Araritaguaba,em S. Paulo, a Cuiabá, no coração da América do Sul.

Carta de um comerciante, datada de Cuiabá, a 30/06/1725, dá uma lista de preços dosartigos de maior consumo em Cuiabá, entre eles, a marmelada, a 4 oitavas (de ouro) a cai-xeta: "cacheta de marmelada 4 8s"139.

Documento datado da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá a 24/03/1728140,relaciona, entre os alimentos levados na moção do governador Rodrigo César de Meneses,entre outros mantimentos:

5 dúzias de queijos a 640 rs = 38$4008 arrobas de doce a 4700 rs= 37$600

" António Marques Esparteiro, o. c, p. 293.1 3 3 Pe. Fernão Cardim, o. c, p. 93.1 3 4 Idem, ibidem, p. 93.1 3 5Idem, ibidem, p. 313.1 3 6 Idem, ibidem, p. 315.1 3 7 Idem, ibidem, p. 308.1 3 8 Citado por Luís da Câmara Cascudo, o.c, Vol. II, p. 640.1 3 9 Carlos Francisco Moura, Arraial do Cuyabá, Vila Real do Senhor Bom Jesus 1719-1727, Convergência Lusíada, Ano

III, n. 6, Rio de Janeiro, 1979, p. 85.1 4 0 Virgílio Corrêa Filho, História de Mato Grosso, INL, Rio de Janeiro, 1969, p. 139.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 481

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

144 caixetas a 160 rs= 23$040O Anal de Vila Bela, de 1736, dá o preço da caixeta de marmelada - 5 oitavas (de

ouro)141.Manuel Félix de Lima, a quem "se deve o invento da navegação do Pará para as

conquistas de Mato Grosso" em 1742142, só se salvou da grande fome no Mato Grosso dosParecis depois da descoberta do ouro graças a 70 caixas de marmelada que havia compra-do em Taubaté, antes de embarcar na monção de canoas pata Cuiabá, como informa RobertSouthey.

"Escapou, diz ele, milagrosamente, mas qualquer que seja a parte que ele a NossaSenhora da Conceição queira assinar na sua preservação durante aquele ano de fome, é fo-ra de dúvida que algum quinhão neste milagre deve caber a setenta caixas de marmelada deTaubaté que consumiu, tendo-lhes custado 3 oitavas de ouro cada"143.

Entre os víveres embarcados na expedição de Cândido Xavier de Almeida e Sousa ásfronteirsas do Paraguai "pelos rios", figuram "6 cachetoens de marmelada"144.

Em Minas Gerais também se produzia marmelada. Saint Hilaire pousou em 1818num rancho próximo a Vila Rica e dá notícias da plantação de marmelos, da fabricação demarmelada e das caixetas em que eram acondicionadas

"As macieiras e os marmeleiros dão muitos frutos e a colheita demarmelos é mesmode grande importância para a aldeia de S. Bartolomeu, cabeça da paróquia, situada a 1 Qlégua de João Henriques. Não há, disseram-me, uma pessoa em S. Bartolomeu que não te-nha um quintal plantado de marmeleiros e macieiras; os habitantes fazem com os marmelosum doce muito afamado que é posto em caixas quadradas feitas de uma madeira leve cha-mada caixeta, e não somente vendem essas caixas em Vila Rica e seus arredores, como ain-da fazem remessas para o Rio de Janeiro"145.

Goiás já no século XVIII produzia marmelada, e a de Santa Luzia (atual Luziânia,próximo a Brasília) tornou-se famosa. A de Bonfim, também.

Entre os mantimentos da expedição de 21 canoas enviadas em 1776 rio Araguaiaabaixo por José de Almeida de Vasconcelos de Soveral e Carvalho, governador da Capita-nia de Goiás, para a conquista da ilha do Bananal, figuram "12 caixas de marmelada"146.

Uma estatística da agricultura de Goiás em 1804 dá uma produção de "marmiladas"de 200 arrobas, com avaliação tanto ao norte como ao sul de 4800, totalizando o valor de960$000147.

Johann Emanuel Pohl, que chegou a Santa Luzia nas vésperas do Natal de 1818, dánotícia da sua "famosa marmelada" e também do queijo "de reputação nacional" que fa-bricava.

1 4 1 Idem, ibidem, p. 246.1 4 2 Joseph Barboza de Sá, Relação das Povoacoens do Cuyabá e Mato Grosso, Edicies UFMT, Cuiabá, 1975, p. 47.1 4 3 Robert Southey, História do Brasil, Vol. 3, p. 177.1 Cândido Xavier de Almeida e Sousa, Descrição Diária dos Progressos da Expedição, RIHGB, Vol. 202, Rio de Janei-

ro, 1949, p. 9.Auguste de Saint-Hilaire, Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil, trad. de Leonam de Oliveira Penna,

EDUSP, Ed. Itatiaia, S. Paulo, p. 83.Carlos Francisco Moura, Três documentos sobre a conquista da Nova Beira, a maior ilha fluvial do mundo, in Amar

Sentir e Viver a História - Estudos de Homenagem a Joaquim Veríssimo Serrão, Vol. I, p. 301.1 4 7 Memórias Goianas, Vol. I, UEG, 1982, p. 108.

482 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

"Os moradores de Santa Luzia vivem em parte de suas plantações, um pouco da cri-ação do gado e do comércio, e principalmente de uma famosa marmelada que vai até á ci-dade do Rio de Janeiro. Produzem anualmente 500 arrobas, que são vendidas a um preçounitário que varia entre 2$800 e 4$200, Também tem reputação nacional uma espécie dequeijo seco de fabricação local"148.

A Corografia Histórica da Província de Goiás, de Raimundo José da Cunha Matos,oferecida ao Imperador D. Pedro II em 31/12/1824, informa que o Arraial de Santa Luxiaproduzia "excelentes frutas e os melhores marmelos da província", e fazia "grande comércioem tabaco de fumo e marmeladas"149

A Memóriaa Histórica da Província de Goiás, escrita em 1832 pelo pe. Luís Antóniode Silva e Souza relaciona "as mais consideráveis" do julgado de Santa Luzia: 800 arrobasde marmelada, 500 de de açúcar, 1000 de café e 500 de tabaco, por ano, destinados á ca-pital (Vila Boa) e ás Vilas de Franca (S. Paulo) e Paracatu (Minas Gerais). Em volume,portanto, a marmelada era a segunda colocada. Logo após o café150.

Em doces, têm as goianas primazia sobre as suas patrícias dos outros Estados. Sãodeveras excelentes os doces goianos. Assim as célebres marmeladas de Bonfim e Santa Lu-zia, as goiabadas de Goiás, os doces secos, os pudins que as donas de casa sabem prepa-rar"151.

2.1.2.1. Romeu-e-Julieta nas Naus das Carreiras da índia e do Brasil, e no Brasil

Queijo, como recomendava Fernando Oliveira, figurava na ementa de bordo.A Relação da Viagem e Naufrágio da Nau S. Paulo (1560) menciona "comendo em

pé do queijo, e azeitonas, e outras cousas que o mar deitava fora (...)"152, e "sofremo-loscom comer alguma cousa, ainda que pouco, de pão, vinho, queijo e carne, que à custa deEl-Rei se tomava às partes"153.

A Relação do Naufrágio da Nau Conceição em 1555 menciona: "(...) retomámosoito pipas de vinho, e alguns quatrocentos queijos do Alentejo, e perto de uma pipa deazeitonas (...)"154.

O pe. Francisco de Pina, em carta de 10/09/1562, de Goa, informa que "(...) mandouS. Senhoria dar de almoçar a toda a gente do mar e soldados muito bem, vinho e queijo ecarme"155.

O conjunto queijo e marmelada era comum nas naus de carreira do Brasil e da índia.A Relação do Naufrágio da Nau Santa Maria da Barca, que se perdeu em 1559,

vindo da índia para Portugal, refere que

"(...) quando foi noite, que nos achámos no mar em um batel arrombado, e sem re-mos, mais que quatro, e sem vela, sem mastro, e sem agulha, nem mantimento, que não le-

1 Johann Emanuel Pohl, Viagem no Interior do Brasil, p. 113.1 Raimundo José da Cunha Matos, Corografia História da Província de Goiás, p. 37.1 5 0 José Mendonça Teles, Vida e Obra de Silva e Souza, p. 164.1 5 1 Victor Coelho de Almeida, Goyas, Usos, Costumes, Riquezas Naturais, 1944, p. 34.1 5 2 Bernardo Gomes de Brito, o. c, vol. I, p. 347.1 5 3 Idem, ibidem, Vol I, p. 345.1 5 4 Idem, ibidem, Vol I, p. 1448.1 5 5 Joseph Wicki, o. c, Vol I, p. 267.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 483

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

vávamos mais que cinco caixas de marmelada, e seis queijos, e um barril com obra de dousalmudes e meio de água para cinquenta e nove pessoas (,..)"156.

No naufrágio da Nau Santiago, em 1585, os sobreviventes que consertavam o batel,"não bebiam mais de duas vezes ao dia, cada um uma vez de vinho puro, sobre uma talha-da de marmelada ou de queijo"157. Retiraram da nau "mantimentos, água, vinho, biscouto,queijos, marmeladas e algumas conservas"158.

O jesuíta Alexandre Valignano, em documento de 1574, diz que muitos portuguesesembarcavam para a índia como se fossem viajar apenas uma légua, levando apenas comosuprimento dois pães, um queijo e uma caixa de marmelada.

"Es cosa de maravilla ver Ia facilidad y frequência, con que se embarcan para Ia ín-dia los Portugueses; porque, como está dicho, parten cada ano de Portugal, quatro ou cinconãos cargados de ellos; yba muchos se embarcan, como se uviessem de yr de alli legoa conuna camisa, y dos panes en Ia manos, y con un queso y una caxa de marmelada, sin otra al-guna manera de provisión"159.

Das naus da carreira, queijo e marmelada passaram á culinária brasileira sob formade sobremesa.

Um viajante inglês do século XIX espantou-se ao verificar que, no Brasil, usavam,como sobremesa, queijo salgado e marmelada.

A sobremesa, muito apreciada até hoje, tem o nome popular de romeu-e-julieta, e égeralmente de queijo minas e marmelada, mas pode ser de outro tipo de queijo e de goia-bada.

O Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2o edição) registra romeu-e-julieta - como "goiabada e queijo", e a dá como um regionalismo do Rio de Janeiro. ...uma das sobremesas mais comuns no Brasil, e figura na ementa de qualquer hotel, restau-rante ou pensão. Entretanto a composição inicial era queijo e marmelada.

No texto citado de 1818, Pohl se refere á "famosa marmelada" de Santa Luzia, emGoiás, que também fabricava "uma espécie de queijo seco" "de reputação nacional"160.Portanto, marmelada e queijos.

Waldomiro Bariani Ortêncio, no Dicionário do Brasil Central registra: "Romeu e Ju-lieta - Marmelada ou goiabada com queijo é Romeu e Julieta ou casadinhos", e acrescentaum ditado: "Marmelada sem queijo, abraço sem beijo"161. O mesmo autor cita doces típi-cos da culinária goiana: maramelada-cazumba e marmelada-de-sumo, "a mais deliciosa detodas"162. Regina Lacerda, no livro Folclore Brasileiro - Goiás cita um doce de marmeladae queijo entre os doces regionais em calda, de frutas: "de marmelo goiano, em pedaços ouem forma de sopa, servido quente com queijo"163.

Tão popular era o consumo de queijo em Goiás, que deu origem ao termo queijeiro,aplicado aos homens simples do campo.

1 5 6 Bernardo Gomes de Brito, o. c, vol. I, p. 267.1 5 7 Idem, ibidem, Vol II, p. 459.1 5 8 Idem, ibidem, Vol II, p. 459.1 5 9 C. R. Boxer, A Idade de Ouro do Brasil, trad. de Nair de Lacerda, Cia. Ed. Nacional, S. Paulo, 1963, p. 334, n. 27.1 6 0 Johann Emanuel Pohl, o. c, p. 113.16 Waldomiro Bariani Ortêncio, Dicionário do Brasil Central, Editora Ática, p. 391.1 6 2 Idem, ibidem, pp. 269,270.1 6 3 Regina Lacerda, Folclore Brasileiro - Goiás, p. 51.

484 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

"Queijeiro - termo goiano, sinónimo de caipira, tabaréu, pessoa do interior. Regista-do por Cornélio Pires níAs Estrambóticas Aventuras de Joaquim Bentinho, á pág. 122, eVitor Coelho, de Almeida, em Goiás"164.

Victor Coelho de Almeida, no livro Goyaz, de 1944, no glossário de regionalismos,informa: "Queijeiro - (depreciativo), roceiro, matuto"165.

O citado Dicionário do Brasil Central regista - "Queijeiro - roceiro, caipira" e tam-bém "Queijeirada - grupo de roceiros"166.

Gabriel Soares de Souza em 1587 diz que se fazia marmelada de goiaba - "Estafruta se come toda e tem a ponta de azedo mui saboroso, da qual se faz marmelada que émuito boa"167.

Frei Cristóvão de Lisboa, na História dos Animais e Árvores do Maranhão, diz omesmo: o fruto da goiabeira "é muito bom de comer", e dele se "pode fazer muito boamarmelada"168.

Logo porém a "marmelada de goiaba" assumiu a própria identidade: "goiabada".Sendo nativa do país e mais rústica que o marmeleiro, logo a goiaba ganhou terreno sobrea percursora na arte da doçaria.

2.2. Em Navios Espanhóis

A alimentação a bordo de navios espanhóis era semelhante á dos portugueses. E, du-rante o período da dominação filipina, com as armadas conjuntas, confudiam-se aindamais.

A Armada da Coroa de Espanha, do comando de D. Fradique de Toledo Osório, en-viada contra os invasores holandeses da Bahia, foi abastecida por Espanha e Portugal.

Em Cádiz foram embarcados os seguintes géneros: biscoito, vinho (de Jerez e deMálaga), toucinho de Flandres, queijo da Sardenha, grão-de-bico, bacalhau, farinha de tri-go, vinagre e azeite (em botijas de barro)169.

De Lisboa recebeu: biscoito, vinho (de Lamego), toucinho, queijo, arroz, grão-de-bico, vinagre, azeite e farinha de trigo170.

A expedição levou também biscoito branco e passas. E 360 carneiros, 2720 galinhase 1000 perus171.

A Armada de Castela, formada por 6 navios, do comando de Lope de Hoces, enviadapor Filipe IV para combater os holandeses do Brasil, partiu de Lisboa em 07/09/1635 e,além dos alimentos habituais (biscoito comum, biscoito branco, vinho, toucinho, arroz, ba-calhau, grão-de-bico, azeite, vinagre, sal), levava passas, ameixas secas, amêndoas, açúcar,açúcar rosado e até especiarias - canela e açafrão. Levava também 83 carneiros, 300 gali-nhas e 2300 ovos172.

Bernardino José de Sousa, Dicionário da Terra e da Gente do Brasil.1 6 5 Victor Coelho de Almeida, o.c, p. 205.1 6 6 Waldomiro Bariani Ortêncio, o.c, p.367.

Citado por José E. Mendes Ferrão, A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses, Ed. do Instituto de Inves-tigação Científica Tropical, Lisboa, 1993, p. 98.

1 6 8 Idem, ibidem, p. 98.1 6 9 Max Justo Guedes, o. c, p. 57.1 7 0 Idem, ibidem, p. 57.1 7 1 Idem, ibidem, p. 57.1 7 2 Idem, ibidem, p. 186.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 485

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

2.3. Em Navios Franceses

O navio L'Espoir, de Gonneville, saiu em 1503 do porto de Honfleur provido de"biscoito, grãos, farinha para quase dois anos, em razão do número de gente da tripula-ção". Levava mais ervilhas, favas, toucinho, carne de cabra e peixe salgado e seco, água pa-ra mais de um ano, "cidra e outras bebidas". "Além disso foi abastecido de muito refres-co antes da partida"173.

Refresco eram frutas, legumes e verduras frescas, que duravam pouco em viagens tãolongas.

L'Espoir chegou ás ilhas de Cabo Verde "cheias de montes e rochedos, habitadospor portugueses, que fazem o seu principal tráfico de cabritos, de que estas ilhas abun-dam"174.

Prosseguindo chegaram a Cabo Verde, "país de Mouros, os quais permutaram com agente do navio o cuxu, espécie de arroz, galinhas pretas e outras vitualhas". Ali se reabas-teceram também de água175.

Cuxu é o cuscuz, prato que já havia sido introduzido em Portugal pelos berberes eárabes e que depois também foi incorporado á culinária brasileira. José Pedro Machado re-gistra o termo na obra Influência Arábica no Vocabulário Português: "Cuscuz s. Do ár.Kuskuz, "alimento preparado com sêmola", muito usado no Norte da África" e dá umaabonação do século XV, da Vida do Infante D. Fernando, de João Álvares: "... e aas vezeslhe dauam alghuua daquela vianda a que chamam coscuz..."176

Luís da Câmara Cascudo registra o cuscuz, "prato nacional de mouros e árabes, mi-lenar, favorito, fundamental na alimentação diária. Fazem-no de arroz, trigo, cevada, mi-lhetos, sorgos. Quando o milho americano Zea mays apareceu ao correr do séc. XVI, de-terminou domínio imediato". Descreve os vários tipos e observa: os berberes, seus invento-res, levaram-no á península ibérica onde se divulgou, talqualmente por toda a África, entrenegros maometanos e árabes, do Atlântico ao Índico e orla litorânea do Mediterrâneo"177 .

Acrescenta que os portugueses trouxeram o cuscuz para o Brasil no início da coloni-zação e inovaram utilizando nele o milho e adicionando o leite de coco.

Na região do Brasil onde os franceses ficaram perto de seis meses, os indígenas vivi-am "sem grande trabalho", de caça, pesca "e do produto espontâneo da terra, e de algunslegumes e raízes, que plantam"178. Ao partir dali; os franceses foram providos por eles "deabundantes víveres"179.

Na primeira escala que fizeram ma viagem de volta (provavelmente Porto Seguro),verificaram que os habitantes "fabricam o seu pão e bebidas de certas raízes"180.

Na segunda arribada, cem léguas mais ao norte, o navio foi carregado "de víveres emercadorias do dito país já declarados"181. Isto é, abasteceram-se de mandioca em 1504, eesta seria uma das primeiras vezes em que é documentado seu emprego por europeus naalimentação a bordo.

3 Tristão de Alencar Araripe, o. c, p. 336.1 7 4 Idem, iMífem.p. 337.1 7 5 Idem, ibidem, p. 337.1 7 6 José Pedro Machado, Influência Arábica no Vocabulário Português, vol. II.1 7 7 Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, 4a. ed., Edições Melhoramentos, INL, S. Paulo, 1979, p.

276.1 7 8 Tristão de Alencar Araripe, o. c, p. 340.1 7 9 Idem, ibidem, p. 346.1 8 0 Idem, ibidem, p. 348.1 8 1 Idem, ibidem, p. 349.

486 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Anteriores á viagem de Gonneville, foram as de Cabral (1500), a expedição de Gon-çalo Coelho (1501 - 1502), e a viagem em virtude do arrendamento da Terra de Santa Cruza Fernão de Noronha (1502 - 1503). Praticamente na mesma época foi a segunda viagemde Gonçalo Coelho (1503 - 1504)182. ... provável que no retorno, que tenham se abasteci-do de mandioca. Não conhecemos documentos de que Cabral o tivesse feito. Sua frota aliáslevava alimentos para a viagem até á índia. Caminha só se refere ao aproveitamento depalmitos: "Há muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos"183.

Philippe Bonnichon estudou uma lista manuscrita "que pode ser datada entre 1550 e1560", existente na Biblioteca Nacional de Paris, e que resume o que era necessário paraum navio de cem toneladas e cinqaenta tripulantes, inclusive o mantimento "suficiente paraoito meses, a fim de fazer uma viagem ao Brasil"184.

Biscoito n era alimentação de base n total de 150 quintais, á razão de 1 libra e meiapor pessoa, "caso não fosse necessário racionar"185.

Carne- 50 talhadas de toucinho e dois boisPeixe- 2000 bacalhaus secosVinho- 30 tonéis á razão de 1 pipa por homem, e 10 para perdasÁgua- 10 tonéisVinagre- 2 barricasAgraço- 1 barricaAguardente- 1 barrica186

Filippe Bonnichon esclarece que, na Normandia, o tonel equivalia a 504 potes e a pi-pa a 252, "o que representa para os oito meses um pote de vinho, isto é, duas pintas porhomem, por dia"187, e aduz, em nota, que "só no século XVII foi determinado que a pintada Normandia seguisse o padrão de de Paris , que continha quase um litro"188.

"Trata-se de alimentação monótona, sem frutas ou legumes, estribada nos produtosbásicos consumidos na Europa, mas cuja carência de vitamina C deixava presente o perigodo escorbuto"189.

Insiste que "era um regime ascético, embora relativamente generoso em carnes e vi-nho", e observa que "nada mudou nos séculos seguintes: pouco se acrescentou aos mes-mos ingredientes de base até fins do século XVIII. Legumes secos, ervilhas e favas (doisbarris cada) vieram complementar o biscoito e os protídeos; as gorduras eram representadaspor dois quintais de óleo de oliva e quatro cents (grandes porções) de manteiga"190.

2.4.Em Navios Holandeses

Max Justo Guedes, As Expedições Portuguesas e o Reconhecimento do Litoral Brasileiro, História Naval Brasileira, 1°Vol, Tomo I, p. 224.

1 R"%Leonardo Arroyo, o.c, p. 60.

18 Philippe Bonnichon, A França Antártica - Parte I - A Invasão, História Naval Brasileira, Primeiro Volume, Tomo II, p.424.

1 8 5 Idem, ibidem, p. 427.1 8 6 Idem, ibidem, p. 427.1 8 7 Idem, ibidem, p. 427.1 8 8 Idem, ibidem, p. 443, n. 102.1 8 9 Idem, ibidem, p. 427.1 9 0 Idem, ibidem, p. 427.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 487

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

O alemão Ambrósio Richshoffer, contratado em 1629 como soldado pela holandesaCompanhia das índias Ocidentais descreve alimentação a bordo do navio holandês Sala-mandra, que levou dez meses para chegar a Pernambuco.

Antes de embarcar, ele saboreia uma refeição composta de queijo, manteiga, arenquefresco e cerveja, "do que mais tarde sentimos grande falta". Cada tripulante recebia porsemana 4 libras de biscoito, Q. de manteiga e um pouco de vinagre. Havia, por semana,dois dias de carne e um de toucinho para o jantar, junto com um prato redondo de Q. librade favas para cada um (domingos, terças e quintas)191.

Nos outros dias, distribuia-se um prato de aveia, ou de cevada ou de ervilha, "e al-gumas vezes bacalhau, porém, de tudo tão pouco que dois homens com bom apetite teriamdevorado as rações dos oitos"192. Cada tripulante recebia também três grandes queijosflamengos para toda a viagem Por dia cada um recebia uma medida de água.

Richshoffer não reclama só dá pouca quantidade dos alimentos. "O nosso biscoito,porém, com o ar que apanhou, encheu-se de pequenos vermes e besouros vermelhos con-quanto antes fosse tão duro como vidro e bastante saboroso"193. A água era "a parte dasvezes fétida"194. Não havia mesas e grupos de 8 homens reuniam-se em volta dos fardospara comer; não havia toalhas nem guardanapos195.

Depois de de transcrever Richshoffer, Câmara Cascudo conclui que "a navegação deHolanda seiscentista não oferecia confortos maiores nos navios a serviço dos supremos in-teresses económicos"196.

Max Justo Guedes dá notícia da alimentação a bordo dos navios da expedição deHendrick Brouwer ao Chile (1643-1644). No comando do Amsterdam e e do Eendracht,Brouwer partiu de Texel e chegou em 22/12/1642 ao Recife, onde em reunião com Nassaue os do Conselho Secreto foi ultimado o plano da expedição. Além dos dois navios citados,tomariam parte o Vlissinghen, o Oragnien-Boon e o iate Dolphijn. Os cinco se concentra-ram na ilha de Santo Aleixo, e a partida foi na noite de 15/01/1643197.

As rações foram fixadas no dia seguinte:Semanalmente, cada tripulante receberia 1 bom queijo, 3 libras de biscoito, £1 libra

de manteiga e 1 quartrilho de vinagre.2as. feiras - 6 onças de bacalhau salgado3as. feiras - 1/4 libra de merlusa4as. feiras - 6 onças de bacalhau salgado5as. feiras - Salmão e 3/4 libra de toucinho6as. feiras - Salmão e 3/4 libra de toucinhosábados - 1/4 libra de merlusadomingos - 3/4 libra de carne

Além disso, todo dia cada um podia comer quanto mingau de aveia quisesse.A água era á razão de 1 jarro (ou, segundo outra relação, 1 quartrilho) por dia198.Frei Manuel Calado, que foi prisioneiro dos holandeses na Bahia, na obra O Valeroso

Lucideno, publicado em Lisboa em 1648, informa que os do Supremo Conselho do Recife

1 9 1 Citado por Luís da Câmara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, Vol. 1, pp. 355/6.Luís da Câmara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, Vol. 1, p. 356.

1 9 3 Idem, ibidem. Vol. I, p. 356.1 9 4 Idem, ibidem, Vol. I, p. 356.1 9 5 Idem, ibidem, Vol. I, pp. 196.1 9 6 Idem, ibidem, Vol. I, p. 355.1 9 7 Max Justo Guedes, A Guerras Holandesas no Mar, 2° Vol., Tomo IA, p. 339.1 9 8 Idem, ibidem, p. 339.

488 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

enviaram ao Governador Henrique Hus, além de mais gente de guerra e munições, "vinho,aguardente, cerveja, manteiga e broth para que não lhe faltasse o mantimento"199.

Quando descreve o cerco dos luso-brsileiros aos holandeses do Recife, ao informarque três desertores foram inquiridos da situação dos sitiados, esclarece o que eram os bro-tes, e dá até o seu preço.

"(...) confessaram todos por uma boca, que no Arrecife havia tão grande fome quenão davam aos soldados para sustentação em cada semana mais que duas libras de carnesalgada, e dois brotes, que são uns pães negros feitos de farinha de favas, lentilhas, cevada,feijies, que se parecem com os pães de farelo, que se fazem para os cachorros (...) disserammais que cada brote custava vinte e cinco placas, três das quais fazem um vintém"200.

A palavra brote entrou para o vocabulário do Nordeste do Brasil e o Grande Dicio-nário Aurélio a registra como brasileirismo do Nordeste, com o significado de "biscoito oubolacha pequena, torrada, feita de farinha de trigo", e a dá como derivada "do holandêsbrood, êpãoí, introduzida na época do domínio holandês no N. E. do Brasil (1636 -1654)".

O termo, com a grafia com que permanece atualmente, aparece nos versos do poetasatírico Gregório de Matos ( 2° metade do século XVII).

"Outro vem , que casou[em Moçambique]

E vive com a ração de vinho[e brote]

Que o sogro deu e o clérigo[Cacique]201

Segundo Câmara Cascudo:

"Brote — do holandês brood (que ainda no século XVIII se grafava broot, uma es-pécie de bolacha dura, com dimensões várias (há o tipo brotinho), vendida em vários esta-dos do Nordeste. Nas viagens marítimas e em expedições os holandeses usavam o hart bro-ot, isto é, pão duro, com maior capacidade de resistência ao tempo que o weeck broot oupão mole. Um e outro foram usados pelos holandeses no Nordeste (1630 n 1654) e delespassou para o português da região"202.

Acrescenta ainda que Richshoffer se refere ao hart broot "chamando-o de biscoitoou pão cozido duas vezes"203. E cita Gilberto Freyre: "a única palavra holandesa que atéhoje se identificou na língua do Nordeste é um nome de comida: brote", acrescentando:

"Brote é realmente o único vocábulo de origem holandesa que persiste no portuguêsdo Norte, sendo que Pichelingue caiu em desuso há muito tempo, e deve ser consideradoarcaísmo."204.

" Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 147.2 Frei Manuel Calado, O Valeroso Lucideno e Trinfo da Liberdade, 1" parte, 2. tomo, IV, V e VI livros, Edições Cultura,

S. Paulo, 1943, p. 242.20 Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, p. 148.2 0 2Idem, ibidem, p.147.2 0 3 Idem, ibidem, p. 147.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 489

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

O Dicionário Grande Aurélio registra o termo como popular e desusado:

"Pichelingue [Do esp. Pechelingue èpirataí, top. Flessing ou Vlissinger (Holanda).S. m. Pop. e desus. l.Larápio, gatuno, rataneiro. 2. Corsário, pirata."

2.5. Em Navios Ingleses E Americanos

Alguma coisa podemos falar também com relação á alimentação a bordo de naviosingleses, com base em documentação que interessa ao Brasil.

O famoso capitão James Cook, em viagem para o Taiti, fez escala primeiro na Ilha daMadeira e depois no Rio de janeiro. Seu navio, o Endeavour, partiu de Plymouth em25/08/1768, e parou na ilha "a fim de prover-se de boa carga de vinho, item consideradoimportante das provisões de bordo, visto que a água e a cerveja não resistiam ás viagens delogo curso"205.

Numa carta que Cook, já ao largo do Rio de Janeiro, escreveu ao vice-rei D. AntónioRolim de Moura, Conde de Azambuja, consta que mandou a Mr. Burrhs, residente na cida-de, "um pequeno barril de rum, uma dúzia de garrafas de cerveja e algumas fatias de bife eporco". Uma amostra do que se comia e bebia a bordo206.

Já que falamos nos ingleses, toquemos também, de passagem, nos americanos. O bra-sileiro Hipólito da Costa Pereira, natural da Colónia do Sacramento, e depois famoso reda-tor do "Correio Brasiliense", descreve, no Diário de Minha Viagem para Filadélfia, a vidaa bordo da corveta norte-americana William, de 175 toneladas, que, sob comando do capi-tão Quandrill, deu á vela de Lisboa a 16 de outubro de 1798. Em 22 de dezembro domesmo ano, escrevia da Filadélfia: "depois de cinq4enta e nove dias de uma assaz incómo-da viagem aportei a esta cidade a 13 do corrente"207. Os percalços da viagem sucederam-se: enjoos, tempestades, o trabalho penoso das bombas para esgotar a água. Quebrou umapipa de vinho branco, e os marinheiros beberam tanto que ninguém podia pegar o leme, ebrigavam uns com os outros.

O autor descreve em pormenor a alimentação a bordo.

" Ao pé do camarote do comandante que é também piloto, se acha a seguinte tábuado mantimento dos marinheiros:

Domingo n carne de porco e ervilha. Segunda feira n feijão e batatas. 3o feira n car-ne de porco e feijão, etc, etc, etc."208.

E acrescenta:

"Esta tábua, que é uma consequência de uma ato do Congresso nunca foi executadaa bordo do meu navio"209.

2 0 4 Idem, ibidem, 148.2 0 5 António Camilo de Oliveira, Bicentenário da passagem do Capitão Cook pelo Rio de Janeiro, RIHGB, Vol. 290, 1971,

P. 100.2 0 6 Idem, ibidem, p. 111.2 0 7 Hipólito da Costa Pereira, Diário da Minha Viagem para Filadélfia, Academia Brasileira, Rio de Janeiro, 1955, p. 41.2 0 8 Idem, ibidem, p. 41.2 0 9 Idem, ibidem, p. 41.

490 Carlos Francisco Moura

FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

"O nosso almoço ordinário é café muito carregado, e sem leite, junto com carne deporco e vaca salgada, cozida mas fria; biscoito seco e algum molhado em água quente euntado com manteiga; outras vezes angu a que chamam conforme a consistência. Indianpudin ou Indian chec"210

Os marinheiros informaram a Hipólito que, por um ato do Congresso, os capitães emarinheiros são obrigados a assinar um contrato, que prescrevia, entre as obrigações dosoficiais,

"(•••) meter de mantimentos para cada pessoa (indo para mar alto de qualquer portoque seja): 60 gahes díágua, 100 libras de carne salgada nova e boa, 100 libras de biscoito derala (ship bread), além do mais que é preciso"211.

Uma nota da edição esclarece: "os dicionários consignam ship-biscuit, bolacha".Outra passagem do autor informa: "desde o dia 15 de viagem que os marinheiros

têm, á ração: 3 bolachas cada dia para e um marinheiro e cada uma têm de diâmetro Q.palmo, e 1 escasso dedo de altura"212.

Devido á ganância do comandante, que embarcava menos mantimentos do que deviapara mais de dois meses de viagem, já no 45° dia o biscoito ia acabando, acrescenta Hipó-lito, "sem embargo de se ter comido uma arroba do meu"213. Os marinheiros reclamavamcontra a escassez de alimentos e Hipólito soube que dois deles iam registrar os problemasem diário, para dar queixa do comandante quando chegassem á América.

Hipólito observa também que os marinheiros americanos ganhavam mal214.

3. Animais de corte a bordo

Portugueses e espanhóis foram pioneiros na introdução de animais domésticos daEuropa na América. Mas não é da introdução que vamos tratar, e sim do transporte deanimais domésticos de corte para suprir de carne fresca a tripulação e os viajantes215.

Na própria armada do descobrimento do Brasil a presença de animais é documenta-da por Pêro Vaz de Caminha, quando relata a ida de dois índios á nau capitânia.

"Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele. Mostraram-lhes uma galinha:quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pór a mão. Depois lhe pegaram, mas como es-pantados"216.

Galinhas eram importante alimento a bordo. Era fácil transportá-las em capoeiras e,além da carne, podiam fornecer ovos frescos durante as viagens. Seu caldo era recomenda-do para dieta dos doentes, geralmente numerosos nas longas viagens, como as do Brasil, emais ainda, as da índia.

2 1 0Idem, ibidem, p. 43.2 1 1 Idem, ibidem, p. 57.2 1 2Idem, ibidem, p. 53.2 1 3 Idem, ibidem, p. 53.2 1 4 Idem, ibidem, p. 48.2 1 5 O tema já foi abordado por Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro na VI Reunião Internacional de História

da Náutica e da Hidrografia (Sagres, 1987) na comunicação A Vida a Bordo na Carreira da índia (Século XVI), publicada naRevista da Universidade de Coimbra, Vol. 34, Coimbra, 1987.

Leonardo Arroyo, o.c, p. 47.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 491

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

Uma carta datada de 21/11/1564, que descreve uma viagem á índia, informa que osjesuítas, para acudir os doentes, prepararam "duas panelas muyto grandes, huma de gali-nhas e outra de lentilhas", para as quais "huns offerecião suas capueiras"217.

O pe. Pedro Martins em carta de 09/12/1586, descreve o naufrágio da nau em que vi-ajava rumo á índia, e informa que os sobreviventes, "fazendo foguo naqueles pedaços danau e assando alguas galinhas das quais comeo a gente já sobre si e com algum alento"218.

Nos portos de escala permanentes ou eventuais das carreiras do Brasil e da índia ííMadeira, Açores, Cabo Verde, Bahia, Santa Helena, Moçambique n as naus se reabasteciamde mantimentos e também de animais vivos.

Os Açores forneciam suprimentos também ás armadas e esquadras das índias deCastela. Um autor seiscentista informa que, quando estas chegavam ao porto de Angra,acorriam os habitantes de toda ilha, "huns com as cassas, outros com as aves, outros com osfrutos, outros com os gados, outros com os panos de linho"219.

Em documento do século XVI, destinado ao rei, Pedro Anes do Canto, provedor daarmadas nos Açores, queixava-se de que os que conduziam as armadas do reino, alegando:

"que lhe apodrese o bisquouto que se lhe foy ho azeite que lhe apodreçeo a carne(...) e asim me pedem os capitães mores refresquo de bois viuos dizendo que asim é custu-me e regimento de Vossa Alteza se dar a todas as suas armadas omde vão ter que aprouem"220.

Anes do Canto diz que já sobre o problema "mais llagarmente a vosa altesa tenhoescryto", e pede orientação, pois como seu regimento não previa o fornecimento, nãoatendia os pedidos "senão muy Raramente"221.

A nau em que quatro jesuítas partiram de Lisboa em 15/02/1563 com destino á Bahiafez escala na Ilha de Santiago, arquipélago de Cabo Verde, e, durante a estadia eles foramhospedados pelo bispo D. Frei Francisco da Cruz que, quando partiram, mandou "dar parao caminho duas dúzias de galinhas, huma vaqua [...] cabritos e outras cousas", como in-forma o irmão Sebastião de Pina em carta de 12/05/1563. A vaca entretanto, não chegou aser embarcada: "Levamos o que pudemos. Ha vaca deixamos, por não ser necessária"222.

A Relação da Viagem de Socorro, de 1639, informa que o capitão de infantaria en-viou no batel da nau Guadalupe á capitânia, un carneiro preto ao mestre de campo", istoem plena viagem, em alto mar. Noutra passagem menciona um acidente com um carneirobranco do capitão. O jantar enviado ao capitão Salazar pelo mestre-de-campo constava"dos melhores pratos da mesa, na qual ouve carneyro fresco e bem cozido e adubado,gallinhas assadas, payo do Alentejo e vários doces"223.

Porcos também aparecem. Ao chegar a nau São Rafael a Moçambique, informa o pe.Gaspar Dias, "Dom Francisco, capitão da terra, nos mandou huma boa esmola para a via-gem, scillicet, quatro capados e quorenta e tantas galinhas224.

2 1 7 Joseph Wicki, o.c, Vol. XIV, p. 393.2 1 8 Idem, ibidem, o.c, Vol. VI, p. 307.2 1 9 Artur Teodoro de Matos, As Escalas do Atlântico no Século XVI (VI Reunião Internacional de História da Náutica e da

Hidrografia (Sagres, 1987), Revista da Universidade de Coimbra, Vol. 34, Coimbra, 1987.2 2 0 Idem, ibidem, pp. 180, 170.2 2 1 Idem, ibidem, p. 180.2 2 2 Idem, ibidem, p. 160.2 2 3 Frédéric Mauro, o.c, pp. 252/3, 261, 249/50.2 2 4 Joseph Wicki, o.c, Vol. VII, p. 292.

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FERNANDO OLIVEIRA E O SEU TEMPO

Outro missionário, Andrés Galdamés, que viajou na nau S. Vicente, em carta de04/11/1556, menciona o recebimento em Moçambique de galinhas, carneiros, porcos etambém vacas.

Y ai embarcar imbió a los padres gallinas y carneros y un puerco; y el Senor DonDiego embió carneros, creo, y vacas y muchas gallinas"225.

A grande expedição conjunta luso-espanhola do comando de D. Fradique de ToledoOsório, enviada para reconquistar a Bahia aos holandeses em 1625, trazia nos seus navios,vivos, os seguintes animais: 360 carneiros, 2720 sardinhas e 1000 perus226.

Outra armada de Castela, do comando de Lope de Hoces, que partiu de Lisboa em07/09/1635 também para combater os holandeses do Brasil, levava, também 2300 ovos227.

Richard Flecknoe, que viajou para o Brasil em 1648 num dos navios da frota de Sal-vador de Brito Pereira informa: "porcos em abundância, carneiros em rebanho, aves detoda a espécie, era do que dispúnhamos"228

O relatório datado de dezembro de 1750, do físico-mor do Estado da índia, Dr. Bal-tazar Manuel de Chaves recomendava para aquela carreira: "entre as vaccas e vitellas damatalotagem podem vir algumas cabras e vaccas de leite para esta casta de doentes (...)",isto é, os que padeciam de escorbuto229Esse documento prova que era comum nas naus dacarreira da índia o transpore de vacas e vitelas para alimentação. E prova também a presen-ça de uma vaca de leite a bordo da Nau Nossa Senhora das Necessidades, na qual o físico-mor, nesse ano seguiu para a índia acompanhando o vice-rei nomeado, Francisco de Assisde Távora, 3o. Marquês de Távora: na viagem quatro pessoas foram atacadas de escoburto,"e concorreo muito para a sua melhoria o leite, que V. Exa. Mandou que lhes desse da suavacca (...)"23°.

A Prof. Maria da Conceição Vilhena no estudo Viagens no Século XVIII: dos Aço-res ao Brasil, transcreve lista de animais conduzidos numa nau de 600 toneladas: 8 bois, 2vacas leiteiras, 6 vitelos, 17 suínos, 24 carneiros e grande quantidade de aves: 500 galinhas,48 patos, 12 patas, 24 peruas e 36 pombos. Observa que deviam ser incluídos também gatose doninhas para caçar ratos, e conclui: "os barcos do século XVIII eram, pois, um quasejardim zoológico em miniatura"231 ^À vista disso, não se pode dizer que o irlandês Fle-cknoe exagera quando fala em "manadas" a bordo.

Parte da esquadra que conduzia para o Rio de Janeiro a Família Real Portuguesa foiparar a Salvador em 21/01/1808. Ali permaneceu mais de um mês, enquanto os navios rece-biam reparos e embarcavam "mantimentos, animais vivos e água"232.

Da frota que, em 1817, conduzia para o Brasil a princesa austríaca D. Leopoldina pa-ra casar-se com o príncipe D. Pedro, faziam parte as naus portuguesas D. João VI e S. Se-bastião e as fragatas austríacas Áustria e Augusta. A princesa vinha na D. João VI, na S. Se-bastião o médico e naturalista Johann Emnuel Pohl, e na Áustria o pintor Tomás Ender.

Ao descrever o perigo de abalroamento em 18 de outubro, depois de cruzarem oEquador, Pohl informa que "o nosso comandante recebera, por meio de sinais, a ordem de

2 2 5 Idem, ibidem, Vol. III, p. 508.2 2 ° Max Justo Guedes, As Guerras Holandesas no Mar, Segundo vol., tomo IA, p. 67.2 2 7 Idem, ibidem, p. 186.2 2 8 Affonso de E. Taunay, o. c, p. 57.

António Marques Esparteiro, o. c, p. 295.2 3 0 Idem, ibidem, p. 295.2 3 1 Maria da Conceição Vilhena, Viagens no Século XVIII: dos Açores ao Brasil, rev. Stvdia, n. 51, Lisboa, 1992, p. 145.2 3 2 Kennet H. Light, A Viagem da Família Real para o Brasil, RIHGB, Vol. 397, Rio de Janeiro, 1997,p. 1039.

Sinais de Terra: O conceito e o tema da "Fronteira" na Literatura de Viagens portuguesa 493

IX REUNIÃO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA NÁUTICA E DA HIDROGRAFIA

se aproximar da nau Capitânia, sendo-lhe comunicado que deveria ceder certo número dereses para matança"233. Isto é, a nau S. Sebastião conduzia a bordo animais para corte;provavelmente, entre eles, bovinos.

Tomas Ender desenhou um boi e alguns carneiros a bordo da fragata Áustria, naqual vinha embarcado. Se tivesse vindo na S. Sebastião, teria desenhado os animais quenela vinham, referidos por Pohl.

As naus D. João VI e a S. Sebastião eram bem maiores que as duas fragatas austría-cas, e, portanto, podiam transportar maior quantidades de animais de grande porte que elas.Foram chamadas de "colossos" e "fortalezas flutuantes" por Pohl, que admirou sua "se-vera grandeza"234.

2 3 3 Johann Emanuel Pohl, o. c, p. 29.2 3 4 Idem, ibidem, p. 17.

494 Carlos Francisco Moura