Iván, o Terrível Os Textos de um não-jornalista Iván Marrom

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Iván, o Terrível Os Textos de um não-jornalista Iván Marrom Organizado por: Ignacio Fornos Angues

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Iván, o Terrível

Os Textos de um não-jornalista

Iván Marrom Organizado por: Ignacio Fornos Angues

Iván Andrés Fornos Angues e Ignacio Fornos Angues 1ª edição Impresso no Brasil

“Alguém me avisou que libertinagem estraga o fígado; mas

ninguém disse se isso é ruim.”

Dedicatória

Índice

Alguém me avisou..........................................10 Paranoia viajante............................................13 Cuba................................................................18 É quase uma autobiografia….........................23 Dói..................................................................28 Os “rato” se camufla com as roupa da cor da babilônia........................................................ 32 O típico esquerdiota.......................................37 Nota Sobre A FAMECOS...............................42 Fragmentos tortos de andanças tranquilas...45 O Errado e o Errante......................................50

Passavam........................................................62 O Dia...............................................................65 O Sonho..........................................................71 A Mulher Que Alimentava Peixes..................73 Um visconde partido ao meio, um alguém sem razão.......................................................78 O Governador.................................................83 Na Cidade.......................................................85

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Alguém me avisou

Alguém me avisou que libertinagem estraga o fígado; mas ninguém disse se isso é ruim. Alguém me avisou que o David Coimbra escreve mal pra caralho, daí eu fui ler alguma coisa dele e comprovei a veracidade do fato. Daí quando alguém me avisa que não existe nada mais complicado do que as mesóclises que eu uso, penso em ignorar a preguiça e instalar o Linux no computador, muito embora eu faça questão de cada vez mais trocá-lo pela rua. Assim, substitui-se o regramento pelo libertarismo e, agora que decorei o horário dos ônibus da madrugada, meu discurso cada vez tem menos sentido por aqui.

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Por mais confuso que meus escritos sejam, um dia alguém me avisou pra eu escrever pra mim mesmo. Não sou jornalista corporativista pra me importar se a transmissão da mensagem está clara e objetiva, ou se vou sair do molde editorial do veículo de comunicação. Alguém me avisou que eu tenho um público alvo e eu rechaço-o com afinco. Da trupe que toda hora me avisa (e quem avisa amigo é?), vez que outra eu perco a compostura. Sou problemático até com o protocolo acadêmico irresponsável.

Mas eu tinha dezesseis anos e vim de lá pequenininho; foi nessa época que eu entrei nesse ambiente acadêmico politicamente correto. Tantos mestres e doutores, que na adolescência cega eu de fato tinha que os louvar. E louvei até pouco tempo. Deu pra perceber que a decepção é um sentimento deveras revoltoso, e eu vejo peleguice em quase tudo. Passei a reconhecer mais o escancaramento de ideias, mesmo que esdrúxulas, do que o discurso lindo e

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entusiasmado que depois foge pela tangente. Alguém me avisou que é bom desconfiar.

A mais bela aparição cultural jornalística eu vi ontem, no Centro de Porto Alegre. Um jornalzinho vagabundo, vagabundo assim como eu, ficou lá de vagabundagem. Deu até vontade de participar também, fugir da babaquice corporativa. Vontade de praticar liberdade de fato, expor ideias chocantes de rebeldia, daquelas em que até os subversivos fiquem com um pé atrás. Dá pra fazer isso. Mas só sei que alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho.

Foram me chamar e eu estou aqui, o que é que há?

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Paranoia viajante

Tenho uma mania de jornalista chinelo. Mas é daqueles bem urbanos mesmo, que gostam dum visu e não são chegados a formalidade. Vez que outra o cara mete uma marra, mesmo que inventiva, de malandro dos blocos da Leopoldina. Daí rola o som do Emicida no MP3 e o olho fica bem atento no que se passa, como que acompanhando as intempéries do cotidiano da cidade num flow similar ao que chega aos ouvidos. O pior é que, mesmo fazendo sempre o mesmo caminho, caindo na rotina e nos mesmos buracos das ruas, nêgo vai achar novidade. Não que gere espanto, evidentemente, mas proporciona sensação de continuidade.

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O lance é quebrar esses caminhos e fronteiras, desvendar aquilo que se apresenta tão próximo. Um dia me perguntaram por que eu não gosto de viajar por aí, eis que tergiverso numa negativa enrolada; eis que digo: “mas eu gosto”. Ainda mais se for tal qual descrevi acima, sem querer desvalorizar quem curte conhecer a Torre de Pisa. A Itália deve ter o seu valor, mas eu só conheço a Rua Itália mesmo, lá no Niterói. Isso da época que eu me enganava e tentava aprender ingrêis; essa porra não é pra mim. Toda terça-feira ia lá pra Canoas ter aula particular. Não adianta, não entra na minha cabeça. Talvez por isso eu dispense sair muito por aí. And now, what do I do? The tool Google Language’re saved in my bookmarks. Mas essa mania de jornalista chinelo, além de ser um viajante urbano silencioso, remete a não ter bloquinho de anotação. Todo mundo tem caderninho, agendinha e o escambau. Não me entendam mal, não estou recriminando quem tem. Ainda mais quem

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usa isso pra anotar passagens de Bukowski, indicações de livros do Calvino ou até poemas próprios. Aquela história de desorganizar para organizar é muito levada ao pé da letra e me impede de ter um lugar para anotação. Daí esses tempos eu tava na faculdade, fumando um e contando grana pra cerveja; ao colocar a mão dentro da mochila para buscar moedas, deparo-me com um amontoado de pedaços de papéis amassados e sujos. “Olha como eu sou jornalista, aqui estão as minhas anotações”, pensei. Acontece que as vezes eu tô na rua ou no banzo e alguma coisa me chama a atenção, por exemplo; daí pego um pedaço de papel, anoto, e jogo dentro da mochila pensando em escrever sobre aquilo depois. Ontem mesmo duas velhas me deram lugar pra sentar por causa das minhas muletas. O detalhe é que a juventude tava toda sentada no banco preferencial.

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O mais normal é perder esses papéis. Tempos atrás eu tava no Vila Nova, ali pela Av. Nonoai, e me pechei com um tiozinho, devia ter os seus quase quarenta. Reconheci o rosto humilde do tipo que mora nas casinhas da João Salomoni; tava fardado tipo com um uniforme duma empresa de toldo, que na época eu consegui anotar o nome e o site. Fiz o vestibular com esse doido, era um cara que ia com o filho até a porta, depois se despedia dele. O filho ficava esperando ele na saída. Lembro-me duma fala do homem, deveras sensata, numa assembleia geral da Ciências Sociais: “Seguinte, vou iniciar minha fala, mas acredito que nada possa ser resolvido, metade das pessoas estão indo embora, muitas têm aula aqui e outras têm que ir até o Centro”, disse. Outra história de ônibus eu deixei anotadinha aqui, mas o convívio com a sujeira fez os singelos traços do meu lápis desaparecerem do papel rasgado. Sei que era o cobrador do Petrópolis/PUC, todo faceiro;

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parece que tinha encontrado uma colega da época da faculdade. Conversa vai, conversa vem, comecei a anotar o papo sobre física, campo magnético, raios e trovões e a velocidade que eles levam pra fazer sei lá o quê. Vendo que eu desci na UFRGS, sabe-se lá o motivo, indagou-me: “vai estudar , guri?”. Diante da positiva resposta, lembro de algo como “é bom estudar” e uma cara de orgulho ao se referir ao filho, também da uni. “E tu faz física?”, perguntei. “Não, não, eu fiz foi pedagogia, só que no IPA. Eu tava conversando sobre um livro que ensina física para crianças”. Apertei a mão do cara e desci. A única coisa que consigo ler no papel é uma frase solta que anotei da fala desse homem. Assim, dessa forma, pode não dizer lá muita coisa; uma pena esquecer do contexto: “O que atrapalha é a política”.

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Cuba

Mas que grata surpresa! O grandioso Jornal do Comércio agora aparece de graça no saguão da faculdade, recém saído do forno. Podemos deliciar-nos com os textos picantes e cheios de sabedoria do Seu Brenol, bem como as nada preconceituosas tirinhas do Fernando Albrecht logo de manhã cedo, dividindo-nos entre isso e uma aprazível aula de sétimo semestre. Antes, vejam só, já contávamos com um Correio do Povo recheadíssimo de cultura e informação, apresentando-nos notícias em primeira mão com um grande grau de percepção jornalística e aprofundamento teórico. Ficaremos sentados esperando a Zero Hora, o jornal mais limpinho e ético do Rio Grande do Sul, que, descobri, possui uma

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política interna que impede sua distribuição dessa maneira.

Anteontem, ou seja, na terça-feira, dia dez de maio (2011), escamoteei uma Zero. Interessou-me umareportagem na editoria de Mundo, localizada na página 26: “A ilha muda – Cubanos vão poder viajar”. Ao ler “Cuba” numa Zero Hora, imediatamente mexem-se as antenas. “Só quero ver que porra escreveram sobre Cuba!”, pensa-se. E, antes de continuar essa habitual postagem, convém ressaltar a minha própria controvérsia sobre a dificuldade dos cubanos de saírem do país. Vê-se, ninguém aqui cerra os olhos de tal maneira, porém tampouco manipula. O fato é que, desde as constantes atualizações políticas na ilha, a grande mídia, por vezes, chega a tratar de Cuba mais brandamente. Ao invés de “ditadura comunista”, como é de costume, a linha de apoio da ZH trouxe “regime socialista”. Vejam só!

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Tal matéria não renderia uma postagem nossa. Zero Hora já fez coisas bem piores. Seu erro mais crasso foi abrir um subtítulo intitulado “Objetivo é tirar país da crise econômica” e manipular essa informação de tal forma que, pra não dizer que não o fizeram, reservaram uma mísera linha que trata do “embargo americano de 1962″ e que, mesmo assim, não diz nada. É a típica matéria não assinada fadada à lixeira, embrulho de peixe ou forro para a casinha do meu cachorro. Não podemos esperar mais nada de um periódico que, nesta mesma edição, publica um artigo de um padre sobre a união homoafetiva. Um tal de Gerson Schmidt, que, além disso, é jornalista.

Para a minha não surpresa, e conforme eu já havia explanado, foi o JC que rendeu, no entanto. Ainda mais o seu sempre valoroso editorial. De ontem, quarta feira, onze de maio: “Quem diria, Cuba está mudando rumo ao modelo de economia de mercado (…) como na China, onde deu certo”.

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Daqui a pouco os cubanos estarão sofrendo com controle de natalidade. O autor do texto escreve como se fosse a maior autoridade dentre os cubanos. Ignora a porra do bloqueio econômico ao citar a economia cubana como “profundo atoleiro”, além de, principalmente, colocar-se no lugar de um jovem cubano sedento por vida, liberdade, libertinagem e consumo. O prostíbulo que antes era Cuba, e a admiração desse povo para com os líderes da revolução sequer são assuntos mencionados. “(…) Fidel foi endeusado pelos jovens da época, que se identificavam com os barbudos da Sierra Maestra. No Entanto, conforme se tornavam adultos, desejavam consumir, ter moradia e automóvel próprios, o encanto se dissipava e Cuba virou apenas uma curiosidade”, escreveu o editor. A profecia também dá conta que Che Guevara não morreu e mora escondido numa mansão em Cuba, com quatro prostitutas importadas dos Estados Unidos ao seu dispor. Tudo com o dinheiro dos herdeiros do Stálin. E assim tem-se início o romance mais esperado de 2011, a

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ser lançado pela Integrare Editora lá por novembro.

“Cuba mudará, como a China. ‘Cuba libre’, nos anos 1960, era uma frase e uma bebida da juventude brasileira. Hoje, é apenas o sonho dos jovens cubanos”. E o meu sonho é ter o dom da adivinhação.

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É quase uma autobiografia…

“Um escritor pode conjeturar um pouco, mas o mais convincente é o real. Se você inventa tudo não dá gosto.”

O cara é um Bukowski latino. Trezentas e quarenta e uma páginas do romance Animal Tropical, pela edição da Companhia das Letras; e lê-se em três dias tranquilamente. Pedro Juan Gutiérrez, o escritor cubano (ir)responsável por esse livro, aborda as dicotomias da vida cotidiana numa escrita envolvente e uma história em que não vejo nada de ficção (apesar da advertência inicial afirmar o oposto). Pedro Juan é o próprio protagonista; é o manda-chuva, o

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centro das atenções. E haja autoafirmação: o tio tem cinquenta anos e não brocha nunca, numa narrativa repleta de obscenidades. É um livro feito pra ser riscado. A turma do “livro não se risca” vai ter que me perdoar, mas, no estilo gonzo, Pedro Juan consegue observar intempéries sociais e levantar hipóteses conclusivas acerca daquilo que o rodeia. E nada mais importante do que fazer apontamentos para discussões posteriores. É quase um relato antropológico urbano, vivido numa Cuba repleta de particularidades. Romantizações à parte é uma escola pra literatura; um paraíso pra quem se mete a escritor:

“Neste momento não me interessa escrever um romance que começa desse jeito e que conheço de cor. De cabo a rabo. Só tenho de sentar e escrever. Escrever com as tripas e com as entranhas. Jogando tudo no papel.

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Manchando o papel de sangue e saliva e de merda e urina e muco e lágrimas. Quando o editor recebe esses manuscritos tão porcos, geralmente não entende por que alguém é tão sujo e descuidado. O que acontece é que um romance (…) não é escrito com o cérebro nem com as mãos. É preciso estar disposto a se esfolar. Você se esfola, tira a pele, fica em carne viva, e então se joga no despenhadeiro do romance até o fundo do precipício. Se batendo, se ralando e quebrando os ossos contra as pedras. É o único jeito. Quem não se atraver a fazer assim é melhor deixar o lápis e o papel sobre a mesa e se dedicar a vender tomates ou entrar para o ramo imobiliário.”

Dá pra perceber o quanto a literatura mostra horizontes, abre caminhos, estimula ideias. Meu irmão fez quinze anos ontem, dá pra ver como o tempo passa. Todo dia antes de dormir, desde que se alfabetizou, não vai pra

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cama ser ler alguma coisa – não vai ser um ignorante como o seu irmão mais velho. Vai aprender desde cedo que mídia manipula, que partidário faz politicagem infrutífera, que patrão explora empregado. Vai aprender a ler o Pedro Juan e ter peito pra dizer se é bobajada ou não. Pra mim, pelo menos, não é.

- Tem muita coisa no mundo que não se deve fazer. E se faz. E somos todos cúmplices. Quando você era rica, sabe de onde seu marido tirava dinheiro? - Dos negócios. Era dinheiro honrado. - Sabe quantos salários miseráveis ele pagava e a quanta gente obrigava a trabalhar como burros de carga? Ele roubava de algum jeito. - Acho que não. Era honrado. Uma pessoa muito boa. E está morto. Era um homem decente.

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- Nenhum homem de negócios é decente. Nenhum político é decente. Ninguém é decente. O que é decência? Não encha, Agneta. Vou comprar a corrente de quem me vender mais barato! Não importa se roubaram de um turista que exibia seu ouro em um país onde as pessoas passam fome. Fome e anemia! Isso sim é indecente.

Em Animal Tropical, Pedro Juan é Pedro Juan; fala dos romances que escreveu, das mulheres que comeu, dos lugares que trabalhou. É a arrogância do poeta encarnada numa obra literária de primeira linha. É quase uma autobiografia…

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Dói

Uma listra vermelha forma-se no cinza da calçada. O escuro da noite e o vai-vem do meu balanceado impedem uma real verificação do problema. Na falta de cores da madrugada, a falta de tino proporciona a criação de um arrebol no interior dos meus pensamentos. Sem pensar, a busca por um lugar seguro ao lado de alguém amistoso torna-se a pior das epopeias e propicia grande embaraço posterior. Receio de desonra, talvez. Doce veneno. Eis o tal amargor que desce do copo pelo corpo, depois sobe ao cerebelo e arrepia os cabelos. Na dificuldade em subir num ônibus, a facilidade ao decidir descer e ficar mais um pouco. O arrependimento e a busca de um novo

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caminho. A listra vermelha que se forma no cinza da calçada da João Pessoa. O problema de precisar chegar ao Monte Bonito, e dar-se conta que os ponteiros alinham-se no número doze. O caminhar afoito e dolorido do pé direito ensanguentado na areia. O que faz um rapaz com o dedo do pé aberto? Vinte e sete quilômetros o separam da sua residência não tão amada. As dez quadras até a Av. André da Rocha parecem toleráveis. O martírio é o pensar em arrependimento. E o arrependimento ao pronunciar isso num texto. Isso não se faz! E nada de arrependido fico. Sabe-se lá, dormi.

Sentada estava uma senhora num degrau sujo de uma loja fechada, no horário das duas da manhã. Era quarta-feira. Caminhava eu em direção ao lugar por onde pensava dormir. Estava cerca de duas quadras. Ou três.

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- Hei. Meu marido me bateu. - O que houve? - Vocês me dão dinheiro pra passagem? Eu queria ir pra Glória. - Onde? - Na Primeiro de Maio. - Ah, na Cascata. Mas essa hora não tem ônibus. Mas dá pra pegar a lotação Glória/Gruta na João Pessoa. - Meu marido me bateu. Me trancou no quarto. Lá na Azenha. Daí eu pulei do segundo andar, pela janela. Olha meu joelho, moço. Não sei, não lembro. Não lembro se sangrava tanto. Sei que sangrava. Não sei se fez listra vermelha na calçada cinza. Deve ter feito, lá na Azenha. Não sei se é verdade, também. Deve ser, mas não sei. Sei que a

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senhora recebeu quatro reais – o irrisório preço da passagem, afinal. Foi oferecido mais. Ela não quis.

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Os “rato” se camufla com as roupa da cor

da babilônia

Eu vejo vários Sun Tzu de chinelo com prego, e vários prego faltando na cabeça duns malandro. Várias fita procedendo nas quebradas da Ipiranga, o que me faz lembrar do barulho do vento. Ali tem uns maluco bem doido, do tipo que sabe tudo que se passa no Brasil. O mano como eu sonha é com o fim dessa cuzada toda. Tem um magrão lá, bem esperto, sagaz, faceiro. Nem lembro a sua graça, acho que tem a ver com alguma cidade da Europa, de Portugal. Só sei que era um pinta que colava aqui pelas bandas do Alim Pedro, jogava um futebol decentemente. Só abria a boca pra falar merda. Dá nada… na

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época a gente não tinha essa percepção toda. Hoje em dia eu continuo por aqui, dando voltas e voltas na Volta do Guerino. O que se nota é como esse guri cresceu, ganhou notoriedade e não perdeu essa mania de se achar comedor e confundir as coisas. O pior de tudo é que carrega o nome aqui do IAPI nas páginas do fantástico mundo da Zerolândia. A real é que ele não mudou nada. Fala sobre mulher, seu principal passatempo. Se mete a discursar uns esquema meio falho, de vez em quando umas penca lá da sociologia e o caralho a quatro. Tá ligado aquelas visão política bem restrita e esteriotipada? Tem uns termo aí do tipo imperialismo… até nisso a topeira se meteu a escrever! Daí vou lá eu dar risada da precariedade da atividade jornalística no país e sou chamado de radical. E, enfim, essa precariedade não quer dizer as falta de equipamento, grana, funcionário e tal. É o conhecimento, né, irmão!? Cadê essa porra? Vai lá neguim estudar uns três pares de ano numa faculdade, onde até os professor se

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metem a dar discurso moralista sem fundamento. A gente tá ligado que num é intelectual como alguns, e nem faz muita questão disso também. Não faz muita questão, mas não recrimina quem é. O conhecimento é indeferente em relação a isso. Pior é se intitular no ramo e o resultado não ser lá tão bom. Mas, de verdade, nem quero briga coisa nenhuma. Só tô me expressando, né. Os caras descem a lenha aqui na minha levada; vão crente nas história de que eu quero queda de braço e o escambau. Tudo isso por causa das minhas birra com os engravatado – principalmente aquelas porra de prêmio que saiam toda hora no Jornal do Comércio. Um dia, ano passado, fizeram lá uma celebração pra premiar o que eles chamaram de “Top Ser Humano”. Porra, olha o nome do bagulho! Daí na fotografia habitual uma caralhada de mané… tudo véio careca. Assim não dá. Depois dizem que o Brasil não vai pra frente só por causa daquele livro do MEC. A começar que os

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cuzão formador de opinião tão toda hora manipulando a fala lá da doutora que organizou a parada. O mais fodido é perceber que artimanha para discurso é o que falta pra esses bostas; cada textim que eu vejo dá vontade de chorar de tão mal escrito. E qual é daquele lance de ficar metendo caixa alta e negrito toda hora? É querer se sobrepujar? Como não devia faltar, o parceiro das antigas peladas alimpedrísticas comentou o assunto. Mais de uma vez ainda por cima. Menos mal que tem gente contrariando. “Escrevem mal, só pensam merda”, parafraseando um professor de jornalismo mais decente.

*** Não existe isso que se chama escrever bem. Existe é pensar bem. Escrever é pensar. Quem pensa mal, escreve mal. Não há habilidade retórica que consiga disfarçar um pensamento fraco ou medíocre. Tem gente que domina bem os recursos de estilo, manipula vasto

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vocabulário, constrói bem suas frases e sabe dar às palavras o justo peso. Mas tem pensamento fraco, ralo ou sem cor. Não existe estilo de linguagem. Existe é estilo do pensamento. Paulo Francis, por exemplo. Francis escreve aos trancos e barrancos, períodos entrecortados, desequilibrados, cheios de curto-circuitos. A beleza e o fascínio de escrever de Francis estão na força de seu pensamento, não no uso de certos números retóricos ou alguns ritmos codificados pela tradição literária. O caso, também, me parece, de Décio Pignatari. Não cheguem para um escritor dizendo você está escrevendo cada vez melhor. Digam você está pensando cada vez melhor. (PAULO LEMINSKI)

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O típico esquerdiota

Sou de esquerda, mas tenho receio quando um negro entra no ônibus. Tenho ideais humanistas, mas troco de calçada ao avistar um mendigo. Discurso a favor dos meninos de rua, mas quando um deles chega perto me enojo somente ao fitar a sujeira entranhada nas suas unhas.

Muitos costumam simplificar o jogo político polarizando opiniões entre de esquerda e direita. Muito embora este não seja o maior dos absurdos – ou talvez até nem mesmo um absurdo propriamente dito -, é impreterível desmistificar esses lados. De maneira breve, o presente artigo pretende relatar um caso em específico – não isolado -, que assolou este que vos escreve e, principalmente, o seu companheiro de boemia mais fiel: Fábio Viecili (um sujeito que, num

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ato de tino, abandonou a faculdade de jornalismo). Antes disso, convém reafirmar o que foi dito mais de oitenta vezes: nos posicionamos, sim, do lado esquerdo. Isso não impede uma forte crítica aos que compartilham da nossa ideologia – tampouco aqueles que servem de base para o nosso pensamento, como o (racista) Karl Marx. A ponderação, entretanto, e o estudo aprofundado acabam por relativizar muitos desses artifícios. O esquerditota típico, o liberalista moderno e ilustrado de calça Calvin Clain, óculos Tommy Hilfiger à lá Woody Allen e tênis AllStar, representa um mal de grande porte. Peço sinceras desculpas pelo meu habitual esculacho que pode ser entendido como um preconceito dos grandes. A birra com a calça, o óculos e o par de tênis não faz o menor sentido. Aliás, ela nem existe. O sujeito que tornar-se-á peça chave para o

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entendimento desse artigo maçante não se veste – ou pelo menos não estava vestido – assim. Foi na passeata da Massa Crítica, no início do mês, que sucedeu-se a história: tiozão alternativo bicicleteiro, com pinta de eleitor do PT, com arrogância pra cima de um menino mirrado andarilho das ruas da Cidade Baixa. Gabriel é o seu nome (do menino). Ou ao menos foi o que ele disse. Pediu o celular para bater umas fotos. Tomou algumas, e mais algumas. E outras depois. Ganhou autorização para circular pela multidão tirando fotografias e sumiu da nossa vista. Voltou depois de alguns minutos extremamente entusiasmado com o feito. Subiu numa estátua para tirar uma foto panorâmica, utilizava a linguagem gestual para se comunicar com as pessoas que carregavam cartazes dignos de registro. Parecia familiarizado com a fotografia. Um dom?

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Chegou perto de um sujeito de óculos, que tinha um cartaz enrolado no guidom da bicicleta. Pediu autorização para bater uma foto e não obteve resposta momentânea. Alguns segundos depois, recebeu uma negativa desrespeitosa (mas não ríspida, devemos admitir). O homem que seria fotografado com o seu cartaz de protesto, ao perceber nossos olhares atentos, escancarou seu sorriso amarelo: “ele tá com vocês?”, perguntou. Diante da afirmação, concluiu: “ah, então tu pode tirar uma foto”. E o guri foi lá e tirou. “Não gostei desse cara”, sussurei ao Fábio. “Também não”, obtive como resposta. E então me aproximei do guri para analisar sua foto. Passei uma por uma, elogiando cada tomada ao som do meu colega ao fundo julgando o menino de 15 anos como “muito inteligente”. Encontrei a presidente da Câmara dos Vereadores, Sofia Cavedon, e conversei alguns minutos com ela sobre o rapazito. Me recomendou conversar com ele,

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buscar saber mais sobre sua vida, a ponto de uma ajuda futura. É um trabalho que ficará em aberto e está sendo planejado (coisa que um jornalista não faz). No fim da passeata, pela noite, uma cena que presenciei que parecia passar-se entre pai e filho: meu amigo girando o guri pelos braços, como se fosse de brincadeira, procedido de um abraço. Tudo isso precedido de uma indagação de outro: “como tu pode agarrar esse piolhento?”. O piolhento, então, nos seguiu até o Mister X, onde fez sua primeira refeição do dia. Antes de sair, ajudou na conta com dez centavos.

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Nota Sobre A FAMECOS

Uma série de fatores que, por ora, determinam essa colocação pífia nesse guia imbecil, que prioriza majoritariamente o mercado sujo com o qual os profissionais de jornalismo se deparam e acabam se corrompendo. O nível nulo de discussões sobre jornalismo acarretam num quadradismo incomparável nessa merda de universidade, que não faz nada além de adestramento, coagindo estudantes todavia envoltos pelo fantástico mundo da zerolândia, por exemplo. E, quando estes tocam-se da realidade (caso se toquem), se veem sem saída, sem caminho, sem possibilidades, sem estudo, sem conhecimento social, sem nada. E a grande faculdade de jornalismo fez isso: ensinou

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conceitos técnicos extremamente falhos, que de maneira alguma enriquecem o jornalismo, tais quais a bizarrice da pirâmide invertida, o lead, a roupa que eu devo estar usando, a ordem da frase que eu vou escrever, a maneira com que devo dar prosseguimento a uma entrevista, entre outras observações que, no fim, todo mundo sabe que são inventivas, meramente superficiais, onde normalmente passa-se por cima diante da primeira adversidade - inclusive no tão aclamado mercado de trabalho. Aliás, é só nisso que pensam esses filhos da puta: mercado de trabalho. Bem disse aquele vídeo idiota de 59 anos da Famecos, resultado de um constante processo de emburrecimento contínuo com o qual o corpo discente vê-se imerso: fama, mercado e costeletas, é nisso que se resume a Famecos mesmo. Um Gigabite onde não existe ao menos um espaço producente de conhecimento rico, que extrapole um pouco os limites que a universidade (principalmente a nossa, que é privada) impõe de forma tão fascista que muitos nem percebem. Todos

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sabem quais são esses limites, e eles não ultrapassam esses paradigmas toscos do corporativismo, onde predomina a mais pura mediocridade. E tudo é tão perfeito que nem nos damos conta quando de uma disciplina interessante, pois estamos mais preocupados com o tuíter que devemos atualizar, da empresa x de assessoria, que nos paga quinhentos contos de salário para realizarmos a "árdua" tarefa a qual somos preparados durante quatro anos (ou mais, né, pro pessoal ter mais tempo de buscar estágio e melhorar seu currículo). Depois disso a gente tem mesmo é que ficar feliz quando aqueles ignorantes da RBS vêm dar palestra que lotam o auditório; umas duas vezes por semestre vem alguém dessa empresa porca fazer propaganda, e nós todos lá, babando ovo do Rodrigo Lopes ou Humberto Trezzi. Engraçado é que, por incrível que pareça, existem sim jornalistas de verdade por aí, mas da Famecos eles passam longe. E os professores? Ah, esses não podem falar nada. Claro. Gostam do emprego que têm...

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Fragmentos tortos de andanças tranquilas

Ó, nuvens doces que hoje são lembranças, de tempos sem preocupações angustiantes, passos em falso e desilusões. Foram elas embora – as nuvens, não as lembranças –, e fico aqui a tomar sol nas costas diante do imenso céu após a chuva forte que cai em Porto Alegre. Tremendo banho de sol e chuva, que diariamente tomo tal qual Alceu Valença e outros compositores da nossa música popular. No dia anterior eu marchei, com milhares, pelo asfalto corroído pelas solas de sapato. Solas que se gastam a cada sentimento de deriva (sentimento da utopia).

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E a deriva tem motivo, vários peitos abertos por amor e solidariedade. Pela grande adesão popular que se instaurou no movimento autônomo, abrem-se caminhos para a conquista das reivindicações aclamadas por todos os setores da sociedade. Pois bem, quase todos! Parece que o Estado trava uma batalha contra nós. Pois este, e seus mui amigos empresários, incluindo a imprensa – serviço capitalista infernal sem a menor utilidade –, cravam em nossa face as deturpadas taxas em reais, ou então escamoteadas em cartões de plástico com um chip inserido. Vejo um homem entre trinta e quarenta anos, de terno e pasta preta na mão, gritando na chuva. Ele chamava as pessoas contra o aumento da passagem de ônibus. O que faz ali aquele homem? Uma multidão caminha atrás, na frente, do lado dele. Três merrecas a mais no borso dum engravatado que nem ele – isso que ele deve pensar. Vejo veias de indignação nas calçadas, no meio da

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rua, no meio da testa das pessoas do tal Bloco de Luta. O bloco mexe os dedos, como num tique, um nervosismo, uma ânsia de vencer, evidenciar que os punhos cerrados são como um dia foram os das gerações anteriores. As minhas costas já tinham parado de arder, pois passava das vinte e duas horas, e desde as dezesseis eu bebia um gole ou outro de cerveja diante daquele sol. Bebia com um amigo, um bom amigo, discutindo sobre outro beberrão, o tal Allan Poe, que citei quando meu companheiro fez questão de esfriar meu ânimo, dizendo que deveríamos produzir e produzir dentro do sistema. Ora pois, desde sei-lá-qual-século, talvez o de Poe, isso assim sucede! Não quero. Quero ficar quieto, não falar nada. Um dia outro amigo enfezou-se com minha pessoa quando escrevi isso numa parede. Ficar quieto, não falar nada. Ninguém quer servir de pilar de sustentação da faca afiada que é o sistema. Faca afiada a gente também carrega na

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camufla. E que não soe violento, por favor, nosso clamor. Nosso clamor é por justiça e amor; o doce bárbaro da rebeldia. – Não! – gritou meu amigo, batendo com o copo na mesa após ter bebido o último gole. – Massa de manobra é uma merda. É verdade. Mas se o mundo da mesa de bar já é tão imperfeito, mesmo que somente entre nós dois, imagina entre cinco, dez mil pessoas. Teve gente que até deu entrevista, caralho. Deu entrevista! Puta que pariu, por qual motivo alguém dá entrevista sobre milhares de pessoas caminhando na rua? Quem tem esse poder? A imprensa fétida logo levantou seu rabo de gambá – que antes fosse o meu entupido de álcool –, e então azar de mim e dos outros, e de mais quem for. Os protestos nas ruas foram efusivos, considerados truculentos (mas não sei por quê ou quem, exatamente).

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Fui chamado pra depor na polícia. O faria na manhã seguinte. A polícia nada truculenta, afinal. Mandou uma cartinha pelo Correios. Então sentei a cervejar-me mais um pouco, num infecto horizonte de uma caixa jukebox. Sem mais delongas, na noite de 2013 em que completava mais um ano de vida, escutei Raul Seixas e os clássicos do Adoniran gravados pelos Demônios da Garoa. A madrugada me acolheu, e fiquei sentado com os Novos Baianos esperando aquele que era o causador do meu mais novo problema: o ônibus.

Iván, O Terrível

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O Errado e o Errante

Saudade é foda. E que linda palavra.

Doce sentimento repentino e filho da puta,

que brota sem razão de ser onde ainda se

desconhece a serventia do seu papel peculiar.

Mas é bom, por vezes. Fiel lembrança tenho de

tempos nem tão passados, momentos

embriagados como só eles; do corpo que era

tão somente um conjunto físico envolto pela

alegria da cerveja barata. E era diário. Era

mágico. Talvez, confesso, um período nem tão

rico em ações diretas, de marcos revoltosos

convencionais, de servidão. Mas acho que, no

Iván, O Terrível

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fim das contas, aquilo ali era a minha rebeldia,

meu papel produtivo. E teve um fim. O motivo

eu não sei, só sei que assim foi.

Faz um ano que eu o conheci. Moleque

mirrado, baixinho. Por entre os alcoolizados

transitava extravagante, peitando. Roupa

velha, rasgada e suja. Pele não muito escura,

com cascões ao redor do pescoço. Uma piteira

de madeira sustentando um cigarro comum de

filtro branco por entre aqueles dedos cujas

unhas roídas e negras escancaravam a

condição inaceitável em que vivia um ser

humano. Chamá-lo-ei de André, não gostaria

de explaná-lo de forma alguma, sendo este um

personagem folclórico da noite

cidadebaixense. Minha moto estava na frente

Iván, O Terrível

[ 52 ]

do bar, estacionada. Subi e o guri queria andar

também. Mesmo sem conhecê-lo, permiti que

acelerasse.

Hoje eu tô mais anárquico. Não chego

ao nível crítico de abandonar o gonzo, largar

de mão a ceva; mas parece que adentrei no

(errôneo?) mundo da supervalorização da

vagabundagem. É aquele lance de se deitar

numa pracinha no sol do meio-dia, fumar um

e esquecer as politicagens que, imersas num

senso comum, disseminam desavenças e

perpetuam o sistema que tantos fazem questão

de criticar. E por aí anda o menino de rua. Sei

que está no mesmo lugar. Mas, com exceção

das ríspidas passagens em que me rendo ao

valoroso universo da Cidade Baixa, busco

Iván, O Terrível

[ 53 ]

outros cantos de Porto Alegre, me dedico a

conhecê-la melhor e traspasso horizontes, não

sendo possível um contato maior com este

rapazote. Hoje, um crivo vermelho faz-se

suficiente de vez em quando, seguido de um

beque. E depois outro beque.

A boemia era um encargo. Diria um

dos meus grandes companheiros da época, o

Saltonzito, que o excesso de libertinagem fodia

a saúde da gurizada. Ele tava sempre

reclamando das aftas que apareciam depois de

tanta Kaiser gelada e teve até um maluco que

pegou hepatite alcoólica. Outro parceiro, o

Gui, chegou a apanhar na rua e eu sempre

perdia algumas partes do meu pé quando

voltava pra casa tropeçando de chinelinho por

Iván, O Terrível

[ 54 ]

aí. Entre tardes e noites de devassidão, um

companheiro fiel: o menino. Agraciava-nos o

finório com a extrovertida presença de uma

criatura carismática e inteligente. Dissera que

tinha quinze anos, o que não duvido, apesar da

estatura baixa e do corpo esgaivotado.

E que moleque mentiroso. Explanava

morar na Lima e Silva, sustentando essa

versão enfaticamente. O piá tava sempre com

a mesma roupa, o cabelo duro de sujeira. Não

moraria com os sete irmãos no segundo andar

de um apê na Cidade Baixa, com a mãe técnica

em enfermagem e o pai pedreiro. Destaca-se a

real astúcia desse adolescente esperto e

risonho, na tentativa de fixar histórias, viver

um mundo paralelo. As compaixões habituais

Iván, O Terrível

[ 55 ]

com os guris de rua (humanas, porém

robotizadas) não o contemplavam. Não

contemplavam a mim também. Trata-se de

um rapaz diferenciado, mesmo rodeado pelos

males das heterogêneas vias da cidade.

Coisa mais do caralho essa mentira

toda. É tão comumente exposta que se torna

uma verdade absoluta. E é assim mesmo que

funciona. O guri fez história pra mim, sendo o

piá malandro de rua que consegue morar num

apê dum bairro de classe média. Quem mora

com a véia há quase 15km da José do

Patrocínio até entende o motivo da

romantização dessa viagem pensante. Não

tiremos, jamais e de ninguém, portanto, a

única liberdade total que temos: o

Iván, O Terrível

[ 56 ]

pensamento. É o sonho de um guri de rua, ex-

morador da Restinga, fugitivo de uma tal de

Casa Especial Quero-Quero – que é um abrigo

da prefeitura – e que dorme, quando

consegue, naquela praça da Borges perto do

Pão dos Pobres.

Conseguir algumas dessas informações

exigiram meses de uma aprazível vivência

antropológica urbana, inimaginável para um

jornalista corporativo rodeado de obrigações

mercantis diárias e empresariais, públicos-

alvo e a certeza dos grandiosos mil e trezentos

reais no fim do mês. Eu só tinha a certeza da

amizade, do sorriso, da chilelagem. Só queria

saber de gastar em bebida todo o dinheiro que

os poucos meses de trabalho no Jornal do

Iván, O Terrível

[ 57 ]

Comércio me deram. E, seguramente, em

alguma hora da boemia, chegaria o menino,

triunfante após mais um dia vencido, com um

Iván cambaleante entre o Mister X e o Elio,

atravessando de uma calçada à outra enquanto

do correr de carros e ônibus naquele asfalto

repleto de copos plásticos.

Meu aparelho de MP4 volta e meia tava

sintonizado na Eldorado. Era o André, que

saía por aí com meus fones de ouvido

cantando pagode. Certa vez, dei um

presentinho pra ele: um MP3 de camelô da

Sony. Fiquei feliz ao vê-lo usar durante

algumas semanas. Depois ele sumiu com o

troço e eu não me importo nem um pouquinho

se foi vendido pra comprar porcaria ou seja lá

Iván, O Terrível

[ 58 ]

o que for. A culpa foi minha também; burro

pra cacete, esqueci de dar o carregador junto.

Mas o fato é que o André sempre usava nossos

utensílios e devolvia religiosamente. A coisa

mais afudê foi quando emprestamos um

celular com máquina digital e ele saiu por aí

batendo fotos da Massa Crítica. Nesse mesmo

dia, contribuiu na conta do Mister X com os

dez centavos que estavam faltando.

Numa noite, na frente do Mr. Dam, me

chamou para contar que tinha sido adotado

por uma mulher chamada Luiza, de Viamão, e

que largaria a CB em breve. Também disse que

tinha sido adotado antes por uma senhora de

Guaíba, e que só saiu de lá depois que

invadiram a casa dela de arma em punho.

Iván, O Terrível

[ 59 ]

Histórias fantasiosas que eu chuto, mas não

afirmo, se tratarem de invenções. Coincidência

ou não, depois desse dia passamos uns dois

meses sem vê-lo. “Quando vê o piá foi adotado

mesmo”, pensei. Não sei. O que lembro é que,

no seu retorno, estava com roupas novas e

limpas. E também começou com um papo de

que andava com uma gurizada no Marinha,

fumando uns baseados pela tarde.

A nossa convivência diária estava

começando a ter um fim. Muitas eram as

noites pegando o Corujão pra voltar pra zona

norte, o que não era nada saudável. Acordadão

mesmo eu só voltei um dia, quando fui tomar

uma cervejinha sozinho no Elio e o vi com a

mão fechada. “Tô dando uns bafos no loló

Iván, O Terrível

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aqui”, me disse. “Duvido”, respondi. Então me

abriu a mão e ofereceu o paninho, que peguei

na hora e inalei com força, sentindo um cheiro

forte adentrar as narinas e ir até o consciente

que, confesso, queria mais. Tive tino pra ir

embora, mas a vontade de repetir e a sensação

de alívio ao cheirar loló me fez entender o

motivo do seu uso entre os guris de rua.

O tempo passou e descobri seu nome de

verdade. Descobri que os meninos de rua

trocam nomes entre si. Descobri que ele mora

na rua desde os oito anos. Descobri que outros

100 menores, segundo dados estatísticos da

FASC, apresentam-se nessas condições em

Porto Alegre, e que esse número sobe para

mais de 1.200 quando de maiores penais.

Iván, O Terrível

[ 61 ]

Descobri também que a Cidade Baixa sem

o Elio é uma bosta, e que tá rolando uma

incongruente higienização social com o

fechamento dos bares. A última boemia rolou

quando da vinda do Eduardo Marinho (aquele

carioca lá, procurem vídeos no YouTube) pra

Porto, em que o André fez questão de meter

um fino pra ele. E acabou-se o que era doce.

Subi na moto e parti pro Passo das Pedras...

Iván, O Terrível

[ 62 ]

Passavam

Passavam-se aproximadamente dois meses

onde não se fazia necessário vestir uma calça

em Porto Alegre. A sensação térmica, em

determinados lugares, devia chegar a 50º, e no

período vespertino da quinta-feira do dia seis

de dezembro, já estava assim vestido, com

camiseta de manga e sapato fechado. Normas

da empresa para visitação. O nosso encontro

estava marcado para 18h30min, no

logradouro da Avenida das Indústrias,

próximo ao Hotel Íbis, que fica do lado do

Aeroporto.

Iván, O Terrível

[ 63 ]

A Avenida das Indústrias, como bem

pode dizer o nome, consiste basicamente em

fábricas uma do lado da outra, e um posto de

gasolina. É um lugar longínquo e sem muita

coisa para fazer – e aparentemente perigoso.

O grupo encontrou-se na porta da empresa e

logo se dirigiu a uma sala onde fomos

instruídos. Após cartilha de apresentação da

empresa, é que constatei se tratar de uma

fábrica de peças automotivas, a DHB. O

gerente que nos guiava a apresentação

mostrou duas barras de direção, bem como o

encaixe e quanto tempo se leva para fazer uma

daquelas peças.

A empresa funciona nos três turnos, de

segunda a sábado, e aquele era o momento de

Iván, O Terrível

[ 64 ]

menor funcionamento. O turno se estendia até

o raiar do dia. Entre os operadores de

máquina, nenhuma mulher trabalhava

naquele período (a nossa guia comentou que a

empresa conta com quatro funcionárias para

essa função). Estávamos entrando numa

fábrica com capacidade de produção anual de

mais de um milhão de mecanismos mecânicos,

hidráulicos e para barcos, e quase dois

milhões de bombas hidráulicas. O barulho que

saía das máquinas era muito alto, e usávamos

tampões nos ouvidos. Usávamos também

óculos para proteger os olhos de algo que

possa sair das máquinas.

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O Dia

Adentrei pelas ruas do Centro Histórico, as quais me traziam valorosas lembranças. Caminhar por ali era como flertar com os antigos amores, que agora jaziam a cada esquina onde encontrava um bar fechado. Ainda bem. Por muito tempo aquele foi meu lugar de trabalho, minha distração, minha casa. Enchia-me de vida aquela deriva, muito embora estivesse eu assolado por um sentimento angustiante. Nesses momentos, e sempre nesses momentos, recebo a ligação de Márcio - o qual sempre fui todo ouvidos, mas não tanto quanto ele para mim. Conversamos. Meu caminho era a visita. Paulo estava acabado. Digo, sentimentalmente acabado. Mantinha um certo controle, mas me

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parecia visível o seu abatimento. Insisti para que saíssemos dali, caminhássemos pela rua arborizada, enfim, fizéssemos algo. Caminhar para pensar. Outro Paulo, o Leminski, alguma vez escreveu que só sabia pensar se estivesse andando. Por fim, assim fomos. Aquele era o retrato geográfico da má administração pública; um espectro pesado de início de noite duma metrópole. Jonathan tinha cigarros. Encontramo-lo num pub, assim que nos pusemos a caminhar. Mudamos de local - o bar mais barato da cidade nos parecia mais atraente. Deixei-os conversar e saí com uma cerveja na mão. Preferi fitar a calçada, que tantas vezes me tinha acolhido. Carlos, grande companheiro, que costumava sair comigo de moto, sem rumo, foi um amigo que um dia esteve comigo naquela mesma calçada, no horário das oito da manhã. Fito, figura

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quase que folclórica da juventude da cidade, estava, nessa ocasião, com um camalhaço de papéis, todos escritos à mão. E seguia a escrever. Não era mais possível ficar naquele bar, concordaram meus amigos. Muita coisa já tinha se passado lá. O ambiente, reformado, me parecia igualmente conveniente, mas não para todas as outras pessoas que um dia tiveram o prazer de parar ali. Me despedi dos amigos e rumei pela Av. Principal. Foi muito bom poder ver Paulo, que estava enclausurado em casa há uma semana. Mas eu precisava estar sozinho por aquelas ruas. De qualquer forma, sabia que nos encontraríamos em breve, ele e Jonathan. Desci a ladeira de ladrilhos brancos imaginando cenas da insensatez humana, cada dia mais evidente. A cada passo torto de uma calçada quebrada pelas raízes das árvores, surgia uma imagem simplória,

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que pra mim parecia uma construção surrealista do ambiente que estou acostumado a caminhar. Depois, como num ataque de alucinação, ou paranoia, juro ter visto uma tartaruga saindo de um bueiro. Optei por me afastar do asfalto e seguir pelas ruas de terra que contornam um monumento de metal. Passei de fronte ao meu último lugar de trabalho, exercício este que me faz muita falta. Eu conhecia um lugar, ali perto, onde, de dia, mais especificamente pelas sete ou oito da manhã, eu bebia uma cerveja de lata antes do expediente. Era um hábito. Dali, podia-se ver tudo. Trata-se de uma escadaria muito íngreme, que levava para um palco nas cercanias do Ministério Público. Desse palco, enxergava as duas mil pessoas que, naquela noite, se aglomeravam com isopores e faziam música. Não aguentei ficar mais de dois minutos ali.

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Na parte de baixo, do outro lado, havia um córrego. Certa vez, quando caminhava na companhia de Márcio, vi pessoas se banhando ali. É uma região que gosto e não gosto de passear. Muitas pessoas vivem em casas de papelão, e assim o fazem na proximidade do rio. Há cerca de quatro dias, quando caminhei por ali com Dario, resolvemos seguir pela beira até o momento em que não tivesse mais gente morando. Foi uma boa caminhada, acho que de meia hora. Foi uma aprazível surpresa encontrar, a caminho da parada de ônibus, Fernando. Ex-colega, tínhamos trabalhado juntos num jornal. Aceitei sua cerveja e nos sentamos, na sarjeta, um pouco distantes da aglomeração. Fernando tinha voltado duma excursão na Amazônia. Me contou, além da viagem, duma reportagem que fez por conta própria numa favela de Manaus. Lembro que o nome do lugar tinha a ver

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com o número 40. Discorremos sobre as favelas de palafitas, de costas para as favelas de papelão, e de frente para a multidão que, em algum momento, e sem eu me dar conta, foi diminuindo até morrer.

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O Sonho

um passo largo pra passar a aflição e chegar logo no largo vigiado pelo olho do estado e seus três, quatro, oitenta mil poderes de repressão ditadura! procuro a pura a puta um puto no bolso um bolsonaro morto pelo meu combate ao fascismo

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e um brinde! à desmoralização da mídia à falência múltipla dos órgãos da imprensa à demolição do prédio da zero hora que um dia eu hei de ver. tô cansado... um passo largo pra passar a aflição e sair logo do largo fogo no mercado público

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A Mulher Que Alimentava Peixes

Ele tinha muito jeito de jornalista. Estava lá comigo, munido de uma câmera fotográfica da marca Canon – não sei se profissional ou semi. Passávamos por uma área onde as mais diversas espécies de vegetação rasteira se mesclavam por cima da areia fofa e quente. Eu, no ápice do efeito da maconha, o observava e escutava seus comentários sobre a paisagem, concordando com tudo e imaginando aquela cena como se fosse um curta- metragem.

Prestei atenção no meu amigo e colega de profissão. O seu trabalho parecia ser divertido e interessante, mas não combinava comigo, muito embora eu tivesse apreço pela

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coisa e também soubesse manipular a máquina. Quer dizer, o pleno exercício do jornalismo é realmente o exercício da vagabundagem. Ambos vagabundeavam. Fazíamos isso há dois dias. E eu, levando essa máxima ao seu extremo, deixava para ele a incumbência dos registros. Estávamos entre uns dez, desbravando o bucólico lugar. Minha audição parecia estar supersensível, e eu conseguia ouvi-los se distanciar. Ficamos só nós dois. O silêncio por fim tomou conta do espaço, deixando tão somente o suave bater das plantas, por vezes interrompido pelos cliques da máquina. Havia uma mulher loira sentada na beira de um pequeno riacho, em cima de um tijolo. Aparentava uns 40 anos e vestia um agasalho marrom e uma calça esportiva azul. - Vamos fotografar aquela mulher? – Perguntei. - Vamos.

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Eu tinha a barba e os cabelos longos

que chegavam até o meio das costas. Vestia camiseta e bermuda largas e sujas. Meus pés também estavam sujos. A câmera não me cairia bem. Desde pequeno gosto de tirar fotos, mas de todos os fotógrafos que conheci, todos eles eram chatos e bitolados com uma merda de câmera na mão. Meu amigo até que não, mas, de qualquer forma, parecia mais apresentável, envolvido e disposto a fotografar. Como eu disse, tinha uma cara de jornalista mesmo. Fiquei pensando que um dia ele seria reconhecido pelo excelente profissional que é, e então eu me lembraria daquela nossa tarde com a mulher.

Ele se aproximou dela primeiro. Eu

depois. Algo o chamou a atenção na água. Não sei o que foi. Fiquei olhando fixamente para a água enquanto do bater constante de fotos por parte do meu amigo, que começou a percorrer pelos cantos e ir para mais longe, procurando melhores ângulos, suponho. Fiquei a sós com

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a mulher, a observá-la. Fiquei com vontade de fotografá- la de perto, fazer recortes do seu rosto. A sua pele era amarela e enrugada. Agachei-me ao seu lado. As suas mãos eram secas. Suas unhas, roídas. Ora ela comia uma bolacha de água e sal, ora despedaçava-a e atirava no riacho.

Meu amigo voltou. Pedi um cigarro. A moça nos estendeu um isqueiro. Fumamos juntos. Apesar de ver que os micro pedaços de bolacha afundavam, era impossível enxergar os peixes. Comentei isso com ela. Apontei para o fato de os peixes abandonarem os pedaços maiores, sendo incapazes de digeri-los. Sorrimos ao olhar para a água de novo. De forma alguma eu quebraria aqueles bons fluídos que a brisa nos trazia para perguntar se ela gostaria de ser fotografada.

- Aqui não tem peixe grande? –

Perguntei. - Eu venho aqui há anos e nunca vi. Por

isso os alimento.

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Só então reparei que ela trazia consigo

uma garrafa vazia de cinco litros, com o gargalo cortado e um barbante preso à tampa enrolado num pedaço de madeira, propício para a pesca em água rasa. Fotografei com os olhos.

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Um visconde partido ao meio, um alguém

sem razão

Lado. Todo mundo deveria ter um. Ou ao menos deveria defendê-lo, deixá-lo à mostra. Exímio defensor das ideias que sou, também tenho meu lado, por óbvio. E ele não é do bem ou do mal; ou bom ou ruim. É meu, simplesmente. O livro O Visconde Partido ao Meio, do escritor Italo Calvino, trata de questão semelhante. Não igual, convém ressaltar. O visconde Medardo di Terralba é um homem comum, personagem principal e fictício da anteriormente citada obra. Mesmo inexperiente em batalhas, o nobre cavaleiro

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genovês opta por ajudar a cristandade na guerra contra os turcos que se segue. Em “temerária arremetida contra a ímpia artilharia de turcos”, acaba por ser destroçado depois de levar um tiro de canhão à queima roupa no peito. Como consequência, fica com o corpo partido em dois. E assim sobrevive. O lado direito, o que menos se danificou, segue de volta rumo ao castelo em Terralba. Medardo, entretanto, está meio tudo. Tem meia boca, meio nariz, meia testa. E apenas um braço e uma perna. No limite do seu corpo, sua pele é esticada a fim de proteger suas veias do mundo exterior. A fala é mansa – seria impossível comprendê-lo caso resolvesse falar mais ligeiro. Não por menos, seu sorriso é assustador, triangular. A parte direita de Medardo acumula todas as maldades detidas na sua integralidade. Trajando uma capa negra com capuz, que cobre seu meio corpo e o faz parecer um grande sombreado, passa a

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distribuir – no alto do seu poder de visconde – ordens de matança e extermínio por todos os cantos. Medardo di Terralba também galopeava com seu cavalo negro e magro pelas florestas e bosques, sempre a fazer maldades. Certa vez, colheu dezenas de cogumelos, entre comestíveis e venenosos. Ao avistar seu sobrinho, não pensou duas vezes e deu-lhe os venenosos, dizendo para fritá-los. Não fosse uma senhora, seria morte na certa do menino. Medardo era temido e poderoso. Com a única mão, segurava uma bengala para se locomover. Não perdoava dívidas, não permitia falhas. Não possuía compaixão. Apesar, não desdenhava todos. Tratava alguns, aqueles que o bajulavam ou que poderiam ser úteis, com certa cordialidade. Passou a ser odiado, e chegou a confessar que tinha receio ao dormir, com medo que seus guardas o assassinassem durante o sono. Em contraponto, anos e anos após a chegada da parte direita do visconde, surge a parte esquerda. Fisicamente muito semelhante ao

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outro, obviamente. Usava meias listradas em branco e azul, e sua capa era um pouco mais abarrotada. Ao invés do cavalo, peregrinava somente com a ajuda da bengala (mais tarde viria a adquirir uma mula). Caminhava. Durante anos visitou vilarejos e distribuiu benfeitorias pelos lugares que percorreu. Era a parte boa do visconde. A mesma feição horrenda, o mesmo sorriso triangular. “Bom”, como foi apelidado, trazia todos os resquícios da bondade humana, porém. Se desfez da própria bengala em prol do próximo, por exemplo. Mas no decorrer da estadia começou a ser rechaçado. Se o outro, o “Mesquinho”, era bandido, Bom era um trouxa. Acabava por querer beneficiar todos, mas o fazia em detrimento próprio. Não se dava valor. E isso começou a irritar os moradores de Terralba. Calvino, mestre, sintetizou:”nossos sentimentos se tornavam incolores e obtusos, pois nos sentíamos como perdidos entre maldades e virtudes igualmente desumanas”.

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Mesquinho e Bom fazem parte de um único alguém. Completam-se. São exemplos claros e cômicos que anseiam a reflexão sobre os valores da vida humana e do mundo vagabundo. Medardo di Terralba, completo, é um homem inteiro. Nem bom, nem ruim – apenas inteiro. Assim como a ideia de lado que mencionei no primeiro parágrafo desse texto. Medardo di Terralba tinha sapiência. Quem balanceia os seus lados e impõe seus valores acaba por obter êxito. Por mais estúpida que seja a direita, menos mal que sempre existirá uma esquerda.

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O Governador

o governador, pela manhã, acorda e vai tomar o seu café pegar seu jornalzinho e ir até a sua biblioteca pessoal cheia de livros que um dia eu li numa reportagem ele tem tantos livros que, óbvio se um deles sumir, nem percebe (tanto que ele tem um controle rígido e anota quem entra e quem sai dali mesmo se for a netinha dele) e assim ele abriu a porta da casa dele prum jornalista cuzão e bunda mole carinha-de-reaça e sem ofício

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ficar tirando foto da casa dele dos livros dele é bom ter livros então, não? se a polícia apreende livros se o jornalista não tem o costume de ler, apenas de sair reproduzindo a mesma bosta sempre e o governador se faz de louco (pois ele tem vários livros e a polícia apreende livros e a polícia mata também!) então eu é que estou louco bradando coisas sem sentido e lendo livros!

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Na Cidade

Na cidade Porto Alegre Berço da minha vida Seguindo, cantando Defendendo periferia Dando banda na Cefer Sarandi Restinga Caminhando pela vila Um pega, uma pinga Seguindo, Assis Brasil Mas que puta que pariu! Tu viu? Roubaram a bolsa daquele tio

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Subiu, nem me viu Entrando no T1 Direto Não fica preocupado Da Bonja ele passa reto! Arroio Dilúvio Avenida Ipiranga Gente no sinal Camiseta sem manga Faz malabarismo Qualquer pedaço de madeira Toca o pau pro alto É noite de sexta-feira Rumo pra Cidade Baixa Ao encontro dos faixa Bora fazer fumaça... No meio da rua Mesa pra caralho É quase fim de semana Ninguém tem mais trabalho

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Só o proletário Fazendo a segurança Da burguesia do Mon’t Serrat Que querem tudo ir pra França! Parada lotada Banzo tudo cheio Esperando o transporte Que vai... levar pra Esteio Rumo a rodoviária Desce, pega o trem É, meu bem É puro conforto Dá até pra ficar zen Ah, que ironia Quase que tu me engana Triste realidade De quem mora na região metropolitana! É escuro Picho o muro Na volta levo um murro

Iván, O Terrível

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A cidade é assim, que culpa eu tenho disso tudo? Já to lá do outro lado Avenida Icaraí Fico ligeiro Fico esperto Já quero vazar dali Aqui não tem história Pego o Prado pro outro lado E volto la pra Glória Mas vai tomar no cu Reclama do Carandiru A invasão da Intendente Azevedo Quem fez... foi tu! Plantou o que colheu Não foi um pararraio Quem sabe tu te muda Pras lomba da 1 de maio! Falando em lomba

Iván, O Terrível

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Me mando lá pra zona leste Quase na Antônio de Carvalho Incêndio na KidFest Bento pra esquerda Bairro Agronomia Mama mia Mais um da periferia Assalto no T10 a luz do dia... To cansado de ver Deu até na TV Nessa semana foi três vez Eu digo pra vocês Tudo mundo sabe Porra da autoridade Chineliando os bebum Que ficam zanzando até mais tarde Como antes falei Subi, me infiltrei Na mente só meu rei Deus ta comigo que eu sei

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Lomba do Pinheiro Só lixo verdadeiro Eles tocam tudo lá E a favela sente o cheiro! Rua África do Sul No Rio Grande do Sul Saindo da zona sul O céu nem é mais azul O dia tem sol Mas, porra, ta cinzento É cheiro de cadáver ao vento Só lamento Bagulho que eu vejo Da porra da janela De dentro do busão Que passa no meio da favela Vai pra universidade Antes dá um role Belém Velho, Pinheiro

Iván, O Terrível

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Nada a ver com você

Iván, O Terrível

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Iván, O Terrível

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