0 ASSALTO •INFANC IA NO MUNDO AMARGO

DA CANA-DE-ACUCAR: Onde Esta o Lazer?0 Gato Comeu!!!*

Maudclo Roberto da Silva * *

Minha diverscio...!!? Chegar emcasa, tomar banho, comer e dormir, tocansado demais... "'

a 18 anos dedico-meaos estudos do lazer/recreacao no "campode jogo" da Educa-cao Fisica. Durantetodo esse percursoacademico estiverampresences na minhapratica cientifica,

nuancas dos intelectuais adaptados,hegemOnicos e transformadores. 2 Nolimiar deste projeto pude constatar, porum lado, a dominancia do paradigmaempirico-analitico nas pesquisas ernEducacao Fisica.' Muitos desses estu-dos se apresentaram como "problemasins ignificantes sem relaccrio comas q ues-flies de releväncia pfiblica". 4 Por outrolado, despontou-nos, nos anos 80 uma

tendencia critica na area de EducacaoFisica, apontando caminhos para a revi-sao das concepcOes do Homem na Soci-edade, Corpo, Curriculo e Esporte. Al-guns desses estudos foram realizadosna decada de 80, por Taffarel, Castellani,Carmo, Bracht, Soares, Escobar e ou-tros.` Neste contexto, devo realcar ascontribuicOes de Marcellino, no que serefere aos estudos do Lazer, corn basenas Ciencias Sociais. Tais estudos, jun-tamente corn outros autores, deram novorumo para a discussao do lazer no ambitoda Educacao Fisica.' Durante minha tra-jetOria como professor de "Recreacdo"constatei que, embutida nesta concep-cao, estava a ideia da recreacao comopanaceia ou fuga dos conflitos sociais(compensacao), aliada a iddia de "recre-accio infantil" ou "para criancas". Aconcepcao de crianca subjacente e do-m inante era romantica, por conseguinte,uma crianca infantilizada, ingenua, "ri-sonha e franca", a semelhanca divina do

* Cf. a introducao do Projcto do pcsquisa apresentado ao Programa de POs-Graduaeao da Faculdadede Educacao da UNICAMP - Dcpartamento de Ciencias Sociais Aplicados a Educacito, e aoPrograma de POs-Graduacao cm Educacao da UFMG, para fins de avaliacao pelas comissbes dePOs-Graduacao do Exam de Selecio do Programa de Doutourado.

* * Professor do Departamento de Recreacao c Pratica Desportiva - CDS/UFSC e integrante doNikko de Estudos Pedagegicos/NEPEF/CDS/UFSC.

menino Jesus, portanto, uma visäo de

crianca abstrata, a- critica e a - histOrica.Nfto se ressaltava, salvo algumas exce-cOes, a histOria das criancas na idademediae no seculo XIX, onde estas trans-formavam-se em adultos, sem passarpelas etapas da juventude. 7 Tampoucose ye nos estudos, abordagens sobre ahistOria social da exploracäo atraves da"fabricacito do menor no trabalho ",sque diz respeito a pauperizacao das fami-I ias das classes trabalhadoras, que bus-cam sobreviver atraves do trabalho dascriancas e adolescentes. Os estudos naArea da Educacfto Fisica, raramente privi-legiam as reflexOes sobre a"adulterizacilo"da crianca pela via dotrabalho precoce. A maioria dos estudosdesloca essa questäo para as criticas aoensino precoce dos esportes para crian-cas. Entretanto existem algumas exce-cOes de estudos que podem ser consi-derados como aqueles que apontamencaminhamentos epistemolOgicos paraum debate critico em tornoda exploracãoda mào-de-obra infantil.' As considera-cOes supracitadas pretendem superaraprecariedade dessas abordagens naEducacäo Fisica, Esportes e Lazer e, aomesmo tempo, reforcar a relevância soci-al e teOrica deste tema, considerando apossibilidade de red imensionamento daconcepcao de crianca na area. Este estu-do acena, tambem, para a critica ao "cor-po-escravo" ou "corpo-mercatioria ",predominante na zona rural e urbana, nabusca de elementos indicadores da exis-tencia de corpos infantis que se expres-sem atraves de corpus brincames.

Se, na Educacäo Fisica, a discus-sào de urn outro projeto de criancarestrito, na Educacão e Ciencias Sociais,

Motrivir4icia

em contrapartida, apresenta estudos

priorizando a critica ao trabalho infantilprecoce. A literatura a considernvel,porem, destaco as obras de Maria AliceNogueira ("Educacdo, Saber e ProducAoem Marx e Engels: Textos sobre Educa-cäo e Ensino"). Existe aindana literatura,os trabalhos sobre a prostituicäo infantil(Dimenstein), as criticas a legis lack) bra-sileira (Alvim, Spindel); aldm das aborda-gens sobre os men inos e men inas de ruaenfocando: o trabalho, a violencia, a si-tuacAo das familias, a criminal idade, asdrogas etc. (Graciani, Pastoral de Menor,Projeto Axe, "Casa de Passagem dePernambuco" e outros). Pode-sevisualizar ainda vasta literatura editadapela "Organ izacao Internacional do Tra-balho". Essas obras se posicionam, emsua maioria, em defesa da cidadania in-fantil, denunciando o trabalho precocena rua ou na fAbrica. Dois trabalhos säode fundamental importdncia para estapesquisa: o primeiro e "Criancas deFibra", e o segundo e a pesquisa doCentro Jose de Castro: Estudos e Pesqui-sas, intitulada "Trabalhadores invisi-vets: criancas e adolescentes dos cana-viais de Pernambuco". Verifiquei, naliteratura que trata da exploracào do tra-balho da crianca no meio rural,pouquissimas consideracOes sobre omundo do lazer. Neste sentido, justifica-se a pertinéncia do tema em questfto,como relevante, näo so para a EducacäoFisica, Esportes e Lazer, como tambem,para os estudos das Ciéncias SociaisAplicados a Educacao.

Retomando o inicio da minha fala,na qual me refiro a minha prAtica pedagO-gica, sal iento nesta, as minhas tentativasde intervencao sociolOgica, consideran-

Dezembro, 1995

do alguns trabalhos de pesquisa e publ i-cacaocomo: "0 m undo do trabalhoe dolazer dos meninos e meninas de rua deAracaM"; "A dupla jornada de traba-lho da mulher e questaodo lazer": "Aparticipaceio das pessoas portadorasde deficlenciafisica nas accies de Lazer/ Recreacclo" e outros. Destaco, ainda,que as minhas preocupacOes vêm sedando na direcao da Imaginacdo Socio-lOgica, enquanto uma qualidade intelec-tual de natureza critica, que prevë asintonia do cientista social, corn seusproblemas individuais, 1 igados corn asrealidades sociais mais amplas.'"

Esta pesquisa pretende, finalmen-te, contribuir para a compreensao dotrabalho infantil, suas raizes e implica-cOes e, primordialmente, das conse-qtlencias da expropriacao do lazer doimagindrio infantil. Para canto, precisaapoiar-se em analises sociolOgicas quetentem compreender o mundo social quederam inicio as sociedades industrializa-das e, ainda, em urn tripl ice exercicio deImaginaccio Sociohigica, envolvendouma sensibilidade histOrica, untropohj-gica e critica."

Assim, diante desses fatos e dasproblematizacOes apresentadas, sera deborn alvitre retornarmos aos nossosquestionamentos prelim inares: Qual e alOgica que comanda o trabulho-infanto-juvenil na sociedude canavieira do Es-tado de Pernambuco ? E possivel sepensar um corpo hidico, num corpolivre, com fantasias, mister-los, desejos,prazeres, vontudes, quando nos referi-mos a criancas e adolescentes, enquan-to trabalhadores invisiveis nos cana-viais de Pernambuco?

"Quando a foice me cortou, adosei se o que sentia era fome, dorou raiva." '12

O termo "lazer na infäncia" estd,normalmente, ligado a iddia de jogo e de16dico, pressupondo que o lugar de cri-anca a na escola. Nos patios, nos recrei-os... imagina-se, pois, que o jogo (16dico)

o elemento simbOlico primordial na vidada crianca, portanto, o elemento culturalque cid sentido ao seu lazer. Entretanto,devido ao carater de exploracao da forcade trabalho infantil e o conseqiiente as-salto a infcincia, esse projeto adotara,tambem, o termo lazer, para as criancas,dada as semelhancas corn as condiceiesde trabalho da maioriada classe trabalha-dora adulta: extensas jornadas de traba-lho, salarios injustos, etc. Levando emconta, ainda, que ë no universo infantil,onde a expropriacao do lazer podera as-sumir consequências drasticas para aeducacâo das criancas, objetiva-se corno presente projeto: investigar o lazerdas crianca e adolescentes dos canavi-ais de Pernambuco, visando identificaras representacues da cultura hidica, eem que condictles materials (tempo eespaco) ela se manifesto: durance otrabalho, nos intervalos e na escola.

Os resultados obtidos poderlo tera conotacao de dentincia da real idade,caso seja constatada a exclusão do direi-to de brincar no tempo de lazer; e, aomesmo tempo, um carater de antincio depossibi 1 idades te6rico-praticas, cornbase de sustentacao para a efetiva par-ticipacao cultural, criativa e transfor-madora.

A hip6tese que subjaz o objetivocentral e: ale que ponto o trabalho pre-coce e escravo implica ou e responscivel

pelo processo de exclusiio do lazer ou

furto do hidico na infancia ? Coln basenos objetivos propostos e nas hipOtesesque dal emanam a necessario abordar oproblema de modo articulado, ou seja,buscando as interfaces entre trabalhoinfantil - educacao, lazer infantil - traba-lho infantil, e lazer - educacao infantil.Entretanto, urge lembrar que a pesquisadeve privilegiar, enquanto categoria cen-tral: o lazer infantil. Para concretizar osobjetivos propostos, pretendo observaros possiveis tempos de lazer das crian-eas, bem como, observar as representa-cOes do trabalho cotidiano, quer dizer:buscarei o entendimento do tempo "su-gado" pelas extensas e estafantes jorna-das de trabalho, akin do tempo "dedica-do" a escolarizacao. Dessa forma, acre-dito captar, de maneira mais completa, osignificado do "tempo disponivel", noqual se materializa a cultura ludico (jo-gos, brincadeiras, diversOes etc.). Estesprocedimentos sao fundamentals paraque, hipoteticamente, possa estabelecerprovisoriamente, as seguintes questOesde pesquisa: os sujeitos investigadosmanifestam a cultura lfidica durante astarefas do trabalho (resistencia) ou nospossiveis intervalos ou "sobras" detempo? E possivel falar do corpobrincante e do corpo dafesta, da ginga,dojogo, ou do corpo explorado e sacri-ficado pelo trabalho?

Com os objetivos secunddrios, oprojeto busca situar as causas, conseqa-éncias e similitudes do processo deadulterizacao das criancas e adolescen-tes no mundo do trabalho no seculo XIX,para melhor compreender a questAo daexclusao do lazer no momento atual.

0 projeto ainda objetiva: investi-

gar o mundo do trabalho, de criancas eadolescentes nos canaviais dePernambuco, procurando identificarcomo se manifestam as representacOesdo trabalho e o tempo dea'icado aescolarizactio; analisar como e utiliza-do o "tempo de sobra" ' (tempo disponi-vel) para a vivencia da cultura(jogos, brincadeiras etc...) no "tempode lazer" dessas criancas ejovens; com-preender causas, consequencias e bus-car similitudes corn o processo deadulterizaccio de criancas e adolescen-tes no mundo do trabalho do seculo XIXe o momento atual, desvelando pontosconvergentes existentes no mundo dotrabalho infanto-juvenil, nos momentoshistOricos situados entre os seculos XIXe XX, ern relaccio a legislaccio, as condi-cOes sociais, familiares e no cimbito daseguranca do trabalho.

Em suma, essa pesquisa, intenci-onalmente, podera ter cardter mais amploe politico como ode contribuir para cornmovimentos e lutas - nacionais e/ouinternacionais - na tarefa histOrica daeliminacdo do trabalho infanto-juve-nil precoce, pela via dos estudos dolazer.

Notas

Depoimento de Carlos Adriano, 15anos, Municipio de Cortez/ Pe, cf. "Ostrabalhadores invisiveis: criancas eadolescentes dos canaviais dePernambuco", p. 23.

cf.Giroux (1987).

Dezembro, 1995

' cf. "Mestrados em Educacao Fisicano Brasil: Pesquisando suas pesqui-sas" de autoria de Rossana ValeriaSouza e Silva, 1990.

° cf. Wright Mills,"A imaginacAo Soci-olOgica" (p.221-243).

cf. Silva(1993).6 Refiro-me a Marcel lino e aos demais

componentes do "Departamento deEstudos do Lazer" da FEFI /UNICAMP.

cf. Aries, p. 10.

g cf. Azevedo e Guerra (p. 28 e 29), nolivro"Criancas Vitimadas: A Sindromedo pequeno Poder", op. cit.

Vou citar apenas tr'es exemplos entreas excecOes: o primeiro trata-se datese de mestrado em Educacão dePaulo Cesar R. Carrano, intitulada:"Se der tempo agente brinca": 0Ltidico e o Lazer da Crianca quetrabalha e estuda (1993). 0 segundo 6o Iivro "Pedagogia da An imacäo" deNelson C. Marcellino (1990), onde oautor dedica urn capitulo a questäo do"furto do !Odic() na inrancia". 0 ter-ceiro exemplo e o escudo orientadopor mim, na graduacão em Ed. Fisicada UFSC, de autoria de Fabio Macha-do Pinto, intitulado: "Os meninose asmeninas da Oficina do Saber: umacompreensào do trabalho infäntil dotrabalho precoce e do 16dico, dascriancas das comunidades empo-brecidas" (1994).

io cf. Mills, p. 20.11 cf. Giddens, p. 15-20.12 Depoimento de Airton, 13 anos,

cortador de cana, Municipio dos

Palmares / Pe, cf. "Os trabalhadoresinvisiveis: criancas e adolescentes doscanaviais de Pernambuco" (1987, p.98).

11 cf. Marcellino, op. cit. In: Lazer eHumanizacão (1987).

'4 cf. Santin (1984,p. 83 - 84).15 cf. Rubem Alves (1982, p. 42).16 cf. Nogueira (1993) e Marx e Engels

(1992), op. cit.17 Para tanto pretendo part is ipar de even-

tos como ouvinte e palestrante, pro-duzir textos, artigos, videos, fo-tografias,etc; participar como mem-bro pesquisador das seguintes insti-tuicaes: Nacionais; Centro Jose deCastro: Estudos e Pesquisas, Nixie°de Estudo sobre a infancia (UFRJ),Sindicatos, LaboratOrio de EstudosAplicados a Educacäo Fisica, Espor-tese L .7zer (U FPe), Fundacao ABRINQ(Säo Paulo); Internacionais: UNICEF,DAAD (Alemanha), OIT (Organiza-cAo Internacional do Trabalho) e di-versas ONGs (Internacionais e Na-cionais). Depoimento de CarlosAdrian°, 15 anos, Municipio de Cortez/Pe, cf "Os trabalhadores invisiveis:criancas e adolescentes dos cana-viais de Pernambuco", p. 23.

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