Ilusionismos - A quadratura no mundo iberico (with David Garcia Cueto)

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ILUSIONISMOS Os Tetos Pintados do Palácio Alvor 8 de março – 26 de maio 2013

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ILUSIONISMOSOs Tetos Pintados do Palácio Alvor

8 de março – 26 de maio 2013

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A QUADRATURA NO MUNDO IBÉRICO.Afinidades e Diferenças entre Madrid e Lisboa

DAVID GARCÍA CUETO E GIUSEPPINA RAGGI

A QUADRATURA EM MADRID*O êxito das propostas artísticas dos pintores bolonheses Agostino Mitelli (1609-1660) e Angelo Michele Colonna (1604--1687) em terras italianas propiciou o convite que receberam da coroa espanhola para se instalarem durante alguns anos em Madrid, o que veio a acontecer em 1658. Deste modo, ambos os pintores se converteram nos importadores para Espanha da quadratura bolonhesa, fórmula decorativa até então desconhe-cida em terras espanholas1.

A chegada de Colonna e Mitelli a Madrid correspondeu à ne-cessidade de contar com artífices estrangeiros que levassem a cabo a decoração dos reais sítios madrilenos, já que os espa-nhóis então praticantes desta disciplina não eram capazes de satisfazer os desejos de um mecenas tão exigente quanto o era Filipe IV. A missão de contratar um pintor de frescos disposto a mudar-se para Madrid a fim de servir o soberano espanhol recaíu no próprio Diego Velázquez (1599-1660), que teve como um dos principais objetivos da sua viagem a Itália (1649-1651) encontar um artista com tal aptidão. Desde logo foi eleito Pietro da Cortona (1596-1669), mas perante a sua recusa em viajar para Espanha, houve que procurar uma alternativa. Os bolonheses Mitelli e Colonna, peritos em decorações murais de arquiteturas fingidas (quadraturas), foram recomendados a Velázquez como sendo uma interessante opção. O pintor espanhol contactou-os durante a sua passagem por Bolonha, ainda que, em virtude de certas vicissitudes não de todo esclarecidas, decorressem vários anos até que o duo rumasse a Espanha, em 1658. A sua permanência em Madrid não foi demasiado prolongada, mas o impacto da sua arte de imediato se fez sentir na corte espanhola. Mitelli morreu tragicamente em Madrid, em agosto de 1660, tendo Colonna, depois da morte do companheiro, permanecido sozinho na cidade até setembro de 1662.

* Este texto baseia-se fundamentalmente em García Cueto, 2005 e 2011. Quero expressar à Prof. Doutora Giuseppina Raggi a minha gratidão pelo convite em participar neste catálogo.

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Uma vez instalados em Madrid no verão de 1658, os artistas começaram a trabalhar na decoração de diferentes espaços do Alcázar, à época a principal residência dos reis de Espanha. As campanhas decorativas empreendidas por Filipe IV neste palácio tinham por finalidade atualizar, segundo os critérios da moda barroca, alguns dos espaços mais representativos do edifício régio, considerando o monarca como imprescindível a decoração a fresco. Mitelli e Colonna concentraram os esfor-ços iniciais, não nas salas de representação do Alcázar, mas em lugares mais reservados, alguns deles de estrito uso privado do soberano. Os primeiros trabalhos dos bolonheses no Alcázar centraram-se na decoração de vários espaços do chamado Quarto Baixo de verão, aposento privado do rei no flanco norte do palácio. Primeiro, realizaram a decoração de uma das facha-das do Quarto Baixo que dava para o jardim e, superada esta prova inicial, a partir de outubro de 1658 começaram a pintar os tetos dos três compartimentos que se sucediam no mesmo apo-sento. Os temas eleitos para para tais tetos foram O Dia, A Noite e A Queda de Faetonte, alusão à metáfora do soberano como astro--rei. Depois de terminadas as tarefas nestas salas entregaram-se à decoração da Galeria da Rainha, cujos andaimes estavam a ser montados em 25 de novembro de 1658.

Em abril de 1659 começou a principal intervenção dos bolo-nheses no vetusto palácio, a decoração da abóbada do Salão dos Espelhos, a peça mais representativa do Alcázar. Para esta tarefa, Colonna e Mitelli contaram com a assistência de dois reputados pintores espanhóis, Francisco Rizi (1614-1685) e Juan Carreño de Miranda (1614-1685). Ambos conheciam a técnica do fresco e haviam dado já provas do seu prestígio nesta disciplina. Pela mão dos quatro pintores, ainda que seguindo um desenho dos bolo-nheses, o teto revestiu-se de uma poderosa arquitetura fingida, que contamplava cinco cenas – uma principal e quatro laterais – do mito de Pandora. O programa iconográfico resultava insólito na tradição palaciana espanhola, aflorando uma complexa men-sagem política associada aos então iminentes esponsais da filha

mais velha de Filipe IV, a infanta Maria Teresa, com Luís XIV, rei de França. À semelhança de Pandora, Maria Teresa poderia abrir a caixa de todos os males – a ira da monarquia hispânica – se o esposo não cumprisse os acordos com Espanha que se firmariam com a Paz dos Pirinéus, em novembro de 1659. Não é em vão que depois da conclusão deste teto o Salão dos Espelhos fosse o lugar eleito por Filipe IV para receber o emissário francês com quem concluiria as negociações do casamento.

Do Alcázar, os bolonheses passaram a trabalhar no Palácio do Bom Retiro, onde os seus esforços se centraram numa inte-ressante construção dos jardins deste sítio real, recordada como a ermida de São Paulo, se bem que, na realidade, este edifício fosse um conjunto arquitetónico formado por uma ermida mais antiga e por um novo salão a ela adossado, à maneira dos pavi-lhões de recreio dos jardins italianos. Foi este salão que Mitelli e Colonna decoraram, tanto no interior como na fachada. Do seu teto conserva-se um conhecido modelo a óleo, agora em exposição (cat. 1) que, atualmente, é o mais destacado testemu-nho artístico da atividade dos pintores em Espanha. Os artistas trabalharam juntos nesta obra desde agosto de 1659, depois de concluir o teto do Salão dos Espelhos, até março de 1660 e, numa segunda fase, desde junho daquele ano até Fevereiro de 1661, meses depois da morte de Agostino, tendo Colonna acabado, sozinho, tanto a decoração da fachada como do interior do salão.

A última grande campanha iniciada pelos bolonheses em Madrid foi de caráter sacro. Tratou-se da decoração da cúpula da Igreja das Mercês, que não fora prevista nos acordos estabele-cidos entre os artistas e a coroa espanhola. Foram seguramente os padres mercedários, ajudados pelo duque de Terranova, pa-trono da capela-mor da igreja conventual, quem persuadiu os bolonheses a aceitar a encomenda. Mitelli, porém, morreu no início destas obras, a 2 de agosto de 1660, por causa das febres altas causadas pelas elevadas temperaturas do verão, em Madrid, que lhe afetaram as idas ao Palácio da Moncloa, residência que estava a pintar nos arredores da cidade. O seu proprietário, don

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Gaspar de Haro, marquês de Heliche, para quem já antes traba-lhara, juntamente com Colonna, no seu jardim de São Joaquim, era um dos mais importantes mecenas da corte. Depois da morte do companheiro, Colonna terminou a decoração da cúpula das Mercês, utilizando os cartões deixados por Mitelli. Nela figura-va a Assunção, que aos olhos do padre Felipe Colombo parecia «um eco da formusura da Glória de Maria». Numa segunda fase, concluída a 26 de maio de 1662, Colonna pintou ainda o anel, os arcos torais e as trompas daquela cúpula, se bem que não se saiba se trabalhou ou não sobre esboços e cartões de Agostino. As pinturas de Colonna na Igreja das Mercês trouxeram à capital espanhola uma novidade na modelação artística dos espaços celestes, um eco da Glória de Maria na terra, origem de uma nova relação entre fiel e templo, baseada na capacidade do espaço sa-grado em envolver a visão do crente e encenar de forma verídica, perante os seus olhos, os milagres e os episódios fundamenteis da doutrina católica.

Francamente satisfeito com os anteriores trabalhos dos bolo-nheses, em novembro de 1661 o rei encomendou a Colonna uma nova campanha, também ela não contratada aquando da sua vinda. Filipe IV queria que o pintor decorasse a cúpula da capela de Nossa Senhora de Atocha, obra através da qual o soberano pretendia dar graças pelo nascimento do príncipe Carlos, futuro Carlos II. Mas Colonna não aceitou, argumentando com a ne-cessidade que tinha de voltar a Bolonha e com os compromissos ainda pendentes com os padres da Igreja das Mercês. Até ao seu regresso a Itália, nos meses seguintes trabalhou na conclusão das já referidas decorações das Mercês, assim como na realização de algumas pinturas na residência do almirante de Castilla, no Prado de Recoletos. Finalmente, Colonna conseguiu regressar à sua saudosa Bolonha em setembro de 1662 (Raggi, 2002; Salort, 2002; García Cueto, 2005; Spinelli, 2011).

O desaparecimento em Espanha de todos os ciclos de frescos dos bolonheses não diminui a sua importância para a história da arte. Bem pelo contrário, torna-se imprescindível compreender

algumas manifestações do panorama espanhol das últimas dé-cadas do século XVII, especialmente as que se ligam à corte, depois de 1660. Com mais ou menos fidelidade, com mais ou me-nos habilidade, as obras de Colonna e Mitelli foram adaptadas por numerosos pintores, de início só por aqueles estabelecidos em Madrid e, pouco depois, pelos artífices de Toledo, Saragoça ou Valência.

A técnica e o rico repertório utilizado não foram as únicas bases da renovação causada pelo duo de Bolonha. O seu profun-do conhecimento das leis da perspetiva e o emprego da chama-da «multifocal», que consistia em substituir nos conjuntos de arquitetura fingida um ponto de fuga por vários, permitiram que o espectador experimentasse uma visão mais próxima da realidade, conquista que não passou despercebida aos seus con-temporâneos (Palomino, 1944, II: 200).

De facto, poucas presenças na corte de Filipe IV resultaram tão sugestivas e inspiradoras no panorama artístico espanhol do século XVII como a destes bolonheses. As suas inovações técnicas e formais tiveram uma extraordinária aceitação no dis-creto ambiente da pintura decorativa espanhola, superando os esquemas dominados pela abstração e pelo maneirismo (Bonet Correa, 1960: 248; Pérez Sánchez, 1991: 52). As suas propostas espaciais foram admiradas e evocadas em numerosas ocasiões e circunstâncias, e as suas obras converteram-se em referentes irrecusáveis para artistas de diferente prestígio. Até pelo menos 1692, data em que Luca Giordano (1634-1705) chegou a Madrid para tomar a seu cargo a conclusão da decoração do mosteiro do Escorial, a influência de Mitelli e Colonna será dominante no panorama da pintura mural em Espanha. A partir daquela data, as arquiteturas fingidas dos bolonheses começaram a abrir--se a espaços celestes impostos pelo mestre napolitano (Pérez Sánchez, 2002: 57-71), ainda que o seu repertório ornamental fosse usado até já bem entrado o século XVIII.

O especial interesse que a corte madrilena teve então pela pintura de quadratura não foi de todo casual, antes devendo-se

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à novidade e à qualidade da obra de Colonna e Mitelli e ao facto de o seu estilo ter sido desde iní-cio associado às promoções artísticas da realeza. O prestígio aúlico uniu-se à quadratura na Madrid da segunda metade do século XVII, gerando na aristocracia e no clero um desejo intenso de contar

com decorações semelhantes.Como já vimos, durante a breve estada dos bolonheses em

Madrid, dois pintores espanhóis que serviam a coroa, Juan Carreño de Miranda e Francisco Rizi, tiveram oportunidade de trabalhar com eles. No decurso das obras de decoração do emblemático Salão dos Espelhos, ambos mantiveram estreita colaboração com Colonna e Mitelli, uma ocasião privilegiada para aprender os segredos da pintura de quadratura. A assimi-lação da arte dos bolonheses chegou a tal ponto que a partir de 1660, já independentes, levaram a cabo uma prolífica associação que lhes permitiu realizar importantíssimas obras murais em Madrid e Toledo. Assim nasceu o primeiro duo de quadraturis-tas espanhóis, Rizi ocupando-se principalmente da pintura das arquiteturas e Carreño das figuras.

Estes dois mestres excederam todos os demais espanhóis que participaram na introdução da qua-dratura em Espanha, como atestam as obras que deles se conservam, em particular a abóbada da igreja madrilena de Santo António dos Portugueses (1662-1666) (fig. 6), campanha ligada à coroa e pa-trocinada desde o início por uma ilustre estirpe de aristocratas lusitanos, os marqueses de Castelo Rodrigo2.

Vários indícios apontam para o facto de o próprio Colonna ter recebido, algures em 1661 ou 1662, já depois da morte de Mitelli, o encargo de apresentar diversas propostas para a decoração da abóbada de Santo António dos Portugueses (fig. 7), que logo foram reelaboradas por Francisco Rizi.

No início da década de 1670, outro destacado duo de qua-draturistas iniciou a sua atividade em Madrid. Claudio Coello (1642-1693), discípulo preferido de Rizi, começou a executar com grande brilhantismo, e juntamente com José Ximénez Donoso (c. 1632-1690), obras deste tipo, levando a quadratu-ra tanto a contextos sacros e residências particulares como a edifícios civis. O distanciamento de Carreño y Rizi levou a que

Fig. 6 F. Rizi e J. Carreño de Miranda, Quadratura, Glória de Santo António, 1662-1666. Madrid, Igreja de Santo António dos Portugueses

Fig. 7A. M. Colonna, Projeto para a quadratura da Igreja de Santo António dos Portugueses, 1661-1662. Desenho. Real Biblioteca de Madrid, IX/M/90

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este último iniciasse uma nova colaboração com o pintor bolonhês Dionisio Mantuano (1624-1684), na altura também residente em Madrid, já com ex-periência adquirida neste género de decorações (García Cueto e Sánchez del Peral, 2006). Juntos, realizaram algumas das mais notáveis pinturas

murais que se conservam no mosteiro da Descalças Reais, no-meadamente as da Capela do Milagre (fig. 8). No duo composto por Mantuano e Rizi, o primeiro atuou como um quadraturista rigoroso enquanto o segundo foi um pintor de figuras eficaz, ainda que a sua experiência anterior na arte da quadratura lhe permitisse imaginar e pintar arquiteturas fingidas. Outro enigmático artista bolonhês, Giuseppe Romani, esteve ativo em Madrid por aqueles anos, se bem que aquilo que dele se conhece se limite quase exclusivamente às breves informações que Palomino fornece no seu Parnaso (Palomino, 1988: 268-269).

Inspiradas de perto na quadratura bolonhesa, numerosas foram as campanhas decorativas na corte de Madrid e, mesmo

que por diversas circunstâncias muitas tenham desaparecido, ainda subsistem algumas que tes-temunham os objetivos alcançados nas últimas décadas do século XVII; para além da mencionada Santo António dos Portugueses, de Rizi e Carreño, subsistem, em parte, os frescos da Casa de la Panadería de Claudio Coello e Donoso (1672-73) (fig. 9) (Sánchez de Palacios, 1977; Sullivan, 1989: 189-190), os da escadaria principal e os já mencionados da Capela do Milagre no convento das Descalças Reais (González Asenjo, 1998, 1999 e 2005), ou as decorações do andar nobre da Casa de la Villa, da mão de Antonio Palomino (1655-1726) e realizadas entre 1692 e 1696 (Gaya Nuño, 1956: 23-25; Aparicio Olmos, 1966: 119-121). Deste modo, pode afirmar-se que a de-coração baseada em arquiteturas fingidas converteu-se num recurso habitual na Madrid da segunda metade do século XVII. (DGC)

Fig. 8F. Rizi e D. Mantuano, Quadratura, pormenor, 1678. Madrid, Mosteiro das Descalças Reais, Capela do Milagre

Fig. 9C. Coello e J. Ximénez Donoso, Quadratura, Alegoria com as armas da monarquia hispânica, 1672-1673. Madrid, Salão da Casa de la Panadería

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O MODELO PARA UM TETO DO BOM RETIROO modelo conservado no Museu do Prado é uma obra funda-mental no âmbito da produção espanhola de Angelo Michele Colonna e Agostino Mitelli, pois é o único testemunho pictó-rico que se conserva dos anos que os artistas bolonheses pas-saram na corte de Madrid. Realizada a óleo sobre tela (cat. 1), a obra apresenta a estrutura completa da quadratura a passar a fresco no teto da chamada Sala de São Paulo, um pavilhão de recreio situado nos jardins do Palácio do Bom Retiro.

A tela oferece uma visão clara das inovações radicais intro-duzidas pelos dois quadraturistas no panorama artístico madri-leno. Bonet Correa atribui o modelo apenas a Colonna (Bonet Correa, 1964: 307), enquanto Ebria Feinblatt põe a hipótese de ser obra de ambos, atribuindo a Mitelli a composição da quadra-tura e, a Colonna, a execução das decorações (Feinbaltt, 1965: 356-357). Esta última proposta, embora a mais convincente, levanta, no entanto, algumas questões (García Cueto, 2005: 157-159). Na Kunstbibliothek de Berlim conservam-se diversos desenhos de Agostino relacionados com este modelo (Feinblatt, 1965: 354), que testemunham o respetivo processo criativo e mostram como, a partir de uma ideia central, a fantasia do artista inventa numerosas «variações sobre o tema», traduzindo-as em esquissos de alto requinte gráfico.

Ebria Feinblatt sublinha o uso insólito de soluções assimétri-cas ao longo dos lados maiores do modelo, para as quais avan-ça a hipótese de poder tratar-se de aberturas reais (Feinblatt, 1992: 111). Pesquisas sucessivas confirmaram a existência de dois óculos e um janelão central na parte alta da fachada, que aparecem incluídos na tela enquanto elementos fundamentais a integrar na quadratura para garantir a eficácia da ilusão. Neste caso, os artistas jogam com os focos de luz natural e com as su-gestões da luz artificial, potenciando aquela com efeitos pictóri-cos (García Cueto, 2005: 170-176). O modelo mostra como a pas-sagem da luz real através das janelas é realçada pictoricamente, reforçando as zonas de sombra e de luz do teto e criando, assim,

Cat. 1A. Mitelli e A. M. Colonna, Modelo para um teto do Palácio do Bom Retiro, c. 1659. Óleo sobre tela, 187 x 281 cm. Museu de História de Madrid (Depósito do Museu do Prado), inv. P02907

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um maior impacto visual do espaço tridimensional. O «novo modo […] de uma tal forma de pintar, com mil bizarrias de figu-ras, frutos, festões, flores, cartelas, entre outros», utilizado nos frescos genoveses afirma-se plenamente em Espanha (v. p. 21). Demonstra-o este modelo assim como os desenhos originais que, por via espanhola, se conservam na Kunstbibliothek de Berlim. A arquitetura pintada anima-se: putti e sátiros afastam cortinas azuis para mostrar as cenas monocromas dos ovados an-gulares como se fossem pequenos panos de cena, coroados por águias de asas abertas, as quais, nunca anteriormente empre-gues por Colonna e Mitelli em Itália, remetem para os símbolos heráldicos da Casa de Áustria. As cenas monocromas referem-se ao mito de Céfalo e Prócris, escolhido como tema do progra-ma iconográfico, que se torna a base narrativa e conceptual da valência retórica e metafórica do espaço criado. A memória das gravuras de Antonio Tempesta ecoa nos monocromos realiza-dos, como é habitual, por Angelo Michele Colonna, enquanto para o sfondato central é escolhida a representação do Rapto de Céfalo por Aurora (García Cueto, 2005: 165-170; Raggi, 2004b: 178, nota 4 e fig. 1).

Como sublinha Martin Kemp (Kemp, 1990: 155, fig. 262), a presença de elementos curvilíneos permite eliminar os efeitos de distorção devido à aplicação canónica da regra da perspetiva nas arquiteturas pintadas. Neste caso, as colunas geminadas que sustêm os dois frontões ao centro dos lados maiores do mode-lo organizam-se segundo o esquema dos pontos transcendentais, registado por Antonio Palomino como invenção dos dois qua-draturistas bolonheses. A espacialidade criada pela quadratu-ra torna-se mais fluida: ao primeiro nível, arquitetonicamente mais estruturado, sobrepõe-se um outro mais airoso, onde as abóbadas de aresta delimitam os quatro grandes arcos que su-portam a cornija do sfondato. Na abertura, ao centro da abóbada ilusionisticamente reinventada e elevada, e perante o olhar do espectador movendo-se pela maravilhosa espacialidade da sala pintada, Céfalo é raptado no espaço celeste de Aurora.

Assim, o processo de consolidação e transformação da qua-dratura que se regista na passagem dos frescos de Sassuolo àque-les que foram realizados em Génova e, depois, na Capela do Rosário de Bolonha, atinge uma total maturação em Espanha. Embora mantenham a coerência e verosimilhança do espaço ar-quitetónico pintado, os bolonheses plasmam-no de forma mais audaz e evocativa. Os artistas espanhóis valorizarão este «novo modo […] de tal forma de pintar» realizando, durante algumas décadas, obras de quadratura inspiradas ou diretamente rela-cionadas com o fresco de São Paulo. (DGC · GR)

A QUADRATURA EM LISBOA Ao contrário do que sucede em Madrid com o convite régio aos máximos expoentes da quadratura seiscentista e a sua rápida difusão em terras espanholas nas últimas décadas do século, esta arte só começa a ser efetivamente realizada em Lisboa após 1701, graças à chegada de um pintor florentino, Vincenzo Bacherelli (1672-1745) que, desconhecido na sua pátria, alcança grande sucesso e riqueza em Portugal.

A introdução deste género pictórico segue, pois, um percur-so menos linear e mais difícil de reconstituir historicamente. D. Pedro II não dedica particular atenção ao mecenato e, duran-te o seu reinado, não se registam iniciativas artísticas marcantes. Até o Palácio Real da Ribeira continua a ser pouco vivido, prefe-rindo o rei ocupar a residência contígua da Corte Real. As cartas do núncio apostólico em Lisboa confirmam o perfil discreto da vida da corte enquanto, pelo contrário, nas últimas décadas do século XVII, a aristocracia lusitana promove ativamente a produção artística, estimulada pelo processo de curialização e pela necessidade de construir novas residências de família na capital. Além da grande nobreza, também nesta altura os jesuítas e a comunidade italiana residente em Lisboa são dinamizadores ativos do mercado artístico (Vale, 2012).

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Embora de mais difícil reconstituição, começam a aparecer no último quartel do século XVII contactos esporádicos com a cultura da quadratura. Por um lado, carecem de aprofunda-mento as dinâmicas artísticas veiculadas pelas famílias lusas em Espanha, como é evidenciado, por exemplo, pela campanha de-corativa da igreja madrilena de Santo António dos Portugueses (v. p. 31). Por outro, existem provas arquivísticas de um interes-sante debate ocorrido nos anos 80 e 90 entre Roma, São Salvador e Lisboa, relacionado com as primeiras obras romanas de Andrea Pozzo e com a rápida circulação de informações que, através da rede jesuíta, suscitam a reflexão artística sobre os géneros de pintura monumental na capital do Estado do Brasil antes de ela acontecer na metrópole.

Relativamente à corte dos Medici, onde Angelo Michele Colonna e Agostino Mitelli tinham deixado admiráveis tes-temunhos da sua arte, determinando o desenvolvimento da escola de quadratura toscana por parte de Jacopo Chiavistelli, os contactos com Portugal estreitam-se nos anos que imedia-tamente se seguiram ao tratado de paz com Espanha. O padre António Vieira estabelece mesmo uma relação duradoura com o grão-duque, indo a Florença por diversas ocasiões. A viagem de Cosme III à Península Ibérica é conhecida (1668-1669), mas só estudos recentes revelaram o pedido do grão-duque para receber os retratos dos cabos de guerra da Restauração a fim de os acrescentar à sua prestigiada coleção, como exemplos de virtude militar (Viola, 2012; Raggi, 2012b). Estabelecem-se, nesta ocasião, vínculos com a nova aristocracia portuguesa, destacando-se o 3.º conde da Ericeira que, durante os anos da realização dos retratos a partir do natural (1673-1674), oferece a Cosme III o seu Portugal Restaurado. Este pedido é interme-diado por Lorenzo Ginori, grande mercador ultramarino. As redes mercantis e financeiras geridas pelos italianos em Lisboa garantem um fluxo ininterrupto de trocas e informações e têm um papel de primeiro plano na transferência de obras de arte e na circulação de artistas por terras portuguesas.

A escolha de Vincenzo Bacherelli para rumar a Lisboa nasce, provavelmente, dos contactos com o ambiente mercantil tosca-no (Mello, 1998; Serrão, 2003: 246-252). O facto de estar ativo como quadraturista em alguns palácios de Livorno terá refor-çado a oportunidade de perceber a recetividade do mercado artístico da capital lusitana, graças às informações de primeira mão que chegavam àquele porto, centro nevrálgico de atividades mercantis. É preciso não esquecer, ainda, que depois de vários anos em Lisboa, o já citado Lorenzo Ginori regressa a Florença em 1689, sendo nomeado por Cosme III provedor das galeras (Viola, 2012: 175). O seu conhecimento de Portugal pode ter sido um fator de estímulo para Bacherelli empreender a viagem. De qualquer modo, no estado atual da investigação faltam notí-cias sobre a passagem do pintor em Portugal, bem como não se conhecem, nas fontes historiográficas toscanas, relatos biográ-ficos exaustivos sobre a sua carreira. Francesco Maria Gaburri descreve-o assim no manuscrito das Vite dei pittori: «Vincenzio Bacherelli pintor florentino de Arquitetura e de perspetivas a fresco e a têmpera nascido em [?]3 foi aluno de [?]4. Após muito ter trabalhado na sua pátria viajou para Portugal onde teve uma feliz receção estando no seu tempo a cidade de Lisboa privada de pintores desse género, onde acumulou muito dinheiro, com o que, tornando à pátria, deixou a pintura e se dedicou ao negócio do câmbio. Vive feliz em Florença em 1740»5.

Na realidade, só após o seu regresso à Toscana, c. 1721, o qua-draturista entra na Academia de Desenho, na qual ocupa vários cargos sem, no entanto, deixar traço do exercício artístico senão no autorretrato dos Uffizi. Aparece ali inscrito desde janeiro de 1723 e assim se mantém até 1745, ano da sua morte. Na gestão interna da Academia está ativo em 1726, 1731, 1736 e 1742; em 1731 é eleito conservador e cônsul para a pintura; em 1740 é nomeado conselheiro6.

Também pouco se conhece da atividade económica e finan-ceira que o pintor desenvolveu em Portugal. Neste âmbito, é lembrada a sua participação nos investimentos dos Ghersi,

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importante família de mercadores genoveses pertencente à mes-ma «nação» dos Ravara que, na passagem do século XVII para o século XVIII, detém um apertado controlo da comunidade italiana da Igreja de Nossa Senhora do Loreto. Desembarcado em Lisboa no verão de 1701, Vincenzo Bacherelli dá um exem-plo da novidade da quadratura na própria igreja dos italianos, propondo aos irmão da mesa de «pintar o coro a fresco»7, o que faz no verão de 1702.

A introdução no mercado artístico português dá-se, pois, gradualmente, e a primeira notícia referente ao serviço régio do pintor pode deduzir-se de uma carta do núncio apostólico que a 29 de novembro de 1708 escreve: «Não tendo ainda ter-minado os Arcos triunfais que todas as Nações e Artes erigem […] para distrair a Rainha do grande desejo que tem de sair de casa, anteciparam-se as touradas, e estando terminado na grande praça o sumptuoso teatro todo pintado e dourado […] numa varanda dourada erguida na fachada do palácio real assistem sempre Suas Majestades e os Sereníssimos Infantes e a nobreza toda distribuída em diversos camarotes de teatro ricamente decorados»8.

A terminologia usada é recorrente nas descrições italianas de arquiteturas efémeras pintadas em quadratura e a organi-zação das festas para os esponsais de D. João V e Maria Ana de Áustria representa o momento propício para Bacherelli afirmar a sua arte no seio da corte. O rei, na verdade, procede a uma primeira intervenção nas salas do palácio régio onde Vincenzo Bacherelli trabalha, de acordo com a biografia escrita por Orazio Marrini 9. Esta fonte historiográfica sublinha a intensa atividade de quadraturista por ele praticada nas residências aristocráticas de Lisboa, residindo a excecionalidade das pinturas do Palácio Alvor no facto de serem as únicas atualmente existentes num es-paço profano. Apesar de serem mais conhecidas as suas obras de caráter religioso, o sucesso da quadratura e o prestígio pes soal alcançado por Bacherelli em Lisboa são determinados, tanto pelas características artísticas, representativas e simbólicas da

linguagem por si introduzida como, sobretudo, pela boa respos-ta dada às exigências da nova sociedade de corte. A relação com a grande nobreza é fundamental para compreender o processo de apropriação e de ressignificação da quadratura, o qual está na base da sua ampla e duradoura difusão no mundo português.

No Grand dictionnaire historique ou le curieux de l’histoire sacrée et profane, datado de 1732-1749 e traduzido em espanhol por Louis Moreri em 1753, pode ler-se: «Baccarelle (Vicente) Pintor […] vi-veu muito em Portugal e pintava muito bem a fresco, sobretudo perspetivas, como se vê entre outras nas que estão na Igreja de Nossa Senhora do Loreto em Lisboa, e muitos artesanos no palá-cio do conde de Alvor e na casa de campo do marquês de Távora e em muitas outras partes»10. José da Cunha Taborda confirma que «no palácio que foi ultimamente dos Condes das Galveas há tetos de algumas sallas pintados por Bacarelli» referindo-se à citada casa de campo (do marquês de Távora), atualmente sede da Biblioteca Municipal no Campo Pequeno, além de recordar que no «palácio do Conde de Povolide […] na sala chamada da Camara há um teto pintado pelo famoso Bacarelli»11!.

O envolvimento do quadraturista na vida cultural e social da alta nobreza deve-se também à sua capacidade no campo da cenografia. Como sublinha Anna Maria Matteucci (Matteucci, 1980), quadratura, cenografia, arquitetura efémera são campos afins da aplicação da perspetiva e fazem parte da formação de artistas que, como Bacherelli, cresceram em contacto com a tradição bolonhesa aprendida através da escola de quadratura florentina (Mello, 2004; Raggi, 2004b). Em 1713, as cartas do núncio apostólico de Lisboa registam uma insólita vivacidade de celebrações festivas. À beira do fim da guerra da sucessão espanhola abrem-se novos espaços de relações e maiores capa-cidades de investimento. A 3 de agosto «no dia de aniversário do SS infante D. Manuel, a corte vestiu-se toda de gala e à noi-te no Palácio houve comédia castelhana»12, seguida, nos dias seguintes, de outras representações. A notícia é ampliada no Compendio de novas da Europa desde 1 de abril de 1713 que refere: «No

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Paço fizerão Comedias todos os dias santos, e muitos feriados, duas muito luzidas aos anos do Sr. Infante D. Manoel em casa do Sr. Conde de São Vicente, theatro e bastidores pintado por Bacarelli, há loa do Conde da Ericeira, com musica de D. Jayme [de la Te y Sagau]»13.

A arte do quadraturista e cenógrafo florentino é assim requi-sitada pelos mais prestigiados encomendantes, respondendo às suas exigências retóricas e eruditas. A potencialidade me-tafórica e simbólica da quadratura é plenamente entendida, como demonstra, um decénio mais tarde, a sua adoção nas três salas da biblioteca de Coimbra, obra central para compreender a dinâmica cultural joanina do segundo e terceiro decénio de Setecentos (Pimentel, 1998; Raggi, 2012b).

No verão de 1713, a intervenção de Bacherelli é também soli-citada pelas congregações religiosas e mais uma vez as cartas do núncio apostólico fornecem informações variadas. «Os padres Capuchinhos franceses – escreve – celebraram com majesto-so aparato a canonização de São Félix […] e Suas Majestades assistiram […]. A mesma honra tiveram-na os Padres Teatinos na igreja da Divina Providência para a festa da canonização de Santo André Avelino […] não sendo o aparato inferior ao da-queles padres Capuchinhos»14 . Esta última arquitetura efémera é particularmente descrita na Noticia individual del sagrado culto... que recorda como se «deu princípio ao adorno pela fachada da Igreja, e quando se pensava pintá-la a fresco de formosa arqui-tetura pelo soberano pincel de Bacarelo, foi suspensa a decisão por falta de tempo»15.

Dada a reputação alcançada, pode ser atribuída a Bacharelli a invenção do aparato efémero realizado pelos padres Capuchinhos italianos em setembro daquele mesmo ano e as-sim descrito pelo núncio: «Além do nobilíssimo e rico aparato na igreja do seu hospício que têm fora da cidade […] via-se no espaçoso claustro todo coberto com tendas um grande altar com uma fonte no meio ambos feitos com engenhosa arquitetura que foi admirada e aplaudida por todos. Em redor distribuíam-se

preciosos panos de Raz e 12 quadros nos quais se viam represen-tados ao vivo e a cores os milagres mais insignes do Santo com as suas explicações em versos portugueses. Suas Majestades o rei e a rainha honraram tal função com toda a Casa Real […] e [houve] grande concurso de povo manhã e noite para participar naquela devoção, venerar o Santo e para admirar as novas invenções»16.

A arte da quadratura, com as suas derivações nos campos da cenografia e da arquitetura efémera, afirma-se assim plena-mente na capital portuguesa e suscita não só interesse estético mas também reflexão teórica. Testemunho disto encontra-se no Tratado de perspectiva atribuído ao padre Inácio Vieira (Mello, 2002; Serrão, 2003: 246-252), no qual o jesuíta sublinha a rutura dos preceitos na pintura de Bacherelli realizada para a portaria de São Vicente de Fora, em 1710. Numa passagem dedicada a «fazer mayor a sala», Inácio Vieira sintetiza a posição do tratado do padre Deschales o qual, falando da pintura de arquitetura e não da perspetiva aérea, como interpreta Magno Moraes Mello17, acha «impossível» e perspecticamente incorreto pintar abertas as janelas ilusionistas para evitar que a luz e as cores façam pa-recer mais próximo aquilo que está além delas, comprometendo assim a regular gradação da quadratura. «Porém – acrescen-ta o jesuíta – depois que vy aquelle arrayal do sol na portaria de S. Vicente de Fora por entre a baranda fingida, não me parece tão impossivel a quem tiver tão boa arte»18 .

A entrada da luz pintada coordenada com a das aberturas reais é um elemento fundamental para a construção coerente da ilusão espacial. Nas três salas do Palácio Pitti, Colonna e Mitelli dão profunda atenção a este aspeto que constitui um dos pontos cardeais do ofício de quadraturista e que, portanto, se encontra na arte de Bacherelli (figs. 10, 11 e 12), tal como nas pinturas que António Simões Ribeiro realiza em São Salvador da Baía, entre 1735 e 1755.

A presença de fontes de luz, reais ou ilusionísticas, e o cor-reto cálculo das sombras projetadas pelas arquiteturas pintadas reforça a tridimensionalidade, tornando «habitável» o espaço

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Fig. 12A. Lobo, Quadratura, Coroação da Virgem, 1719. Intervenção de Luís Batista e Pedro Alexandrino de Carvalho, 1797. Lisboa, Igreja de Nossa Senhora da Pena

Fig. 10A. Mitelli e A. M. Colonna, Quadratura, Glória de Alexandre, 1640. Florença, Palácio Pitti

Fig. 11V. Bacherelli, Quadratura, Vitória de Santo Agostinho sobre os maniqueístas, 1710. Intervenção de Manuel da Costa, 1781. Lisboa, Portaria do Mosteiro de São Vicente de Fora

criado. É o que sucede na abóbada da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Piedade da Merceana, hoje muito danificada, que, pela qualidade artística do conjunto, pode atribuir-se ao quadraturista toscano. Dos dois varandins pintados lateralmen-te, os Apóstolos assistem à Assunção da Virgem. Nesta obra fundem--se elementos próprios da escola quadraturística bolonhesa e da tradição pictórica italiana de Seiscentos (Raggi, 2007). A grande qualidade dos monocromos liga-se diretamente aos que se veem na portaria de São Vicente de Fora. A representação no centro do sfondato recupera modelos dos Carracci, enquanto a distribui-ção da cena na totalidade do espaço pintado lembra as soluções pictóricas de Andrea Pozzo realizadas em Mondovì e em Viena. A confluência de diferentes modelos seiscentistas é um proces-so que envolve toda a Península Ibérica. Prova-o uma gravura incluída por Antonio Palomino no seu tratado El museo pictorico y escala óptica (1724), na qual a técnica de construção perspética de Andrea Pozzo, que recupera a utilização dogmática do pon-to de fuga único, é colocada ao lado da ilustração gráfica dos pontos transcendentais elaborada por Colonna e Mitelli. Também o padre Inácio Vieira, numa outra passagem, respeitante, desta

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vez, à arte cenográfica de Bacherelli, evidencia a convergência de métodos diferentes. Recordando a tragédia representada em 1709 no colégio de Santo Antão, para celebrar os esponsais de D. João V, o jesuíta afirma que as cenas foram realizadas «tirando em parte do Irmão Pozzo, quanto ao principio, e depois confor-me algumas notas que nos tinha deixado Vicente Bacarelle, que primo quis tomar a obra por sua conta mas por razão de preço a tomou hum D. Jozeph de nação Alemam que tinha vindo com a senhora Rainha»19.

A possibilidade de utilizar técnicas cenográficas variadas, adaptáveis a cada circunstância, é um modus operandi corrente na península, que ultrapassa as divisões das escolas italianas, fundindo-as num saber que resume todo o legado artístico do século anterior.

Também o núncio apostólico recorda o sucesso da represen-tação teatral levada à cena a 25 de Abril de 1709: «Os padres da Companhia – escreve – fizeram recitar por muitos estudantes na Igreja do colégio de Santo Antão uma representação da vida de São Leopoldo em latim, à qual assistiram Suas Majestades o Rei e a Rainha e os Sereníssimos Infantes com toda a corte, ficando to-dos satisfeitos não só pelo bom garbo dos atores mas ainda pela estrutura do Teatro, para cujas despesas concorrerem os pais e familiares desses estudantes»20. Da dupla descrição do acon-tecimento fica evidente como Vincenzo Bacherelli sabia gerir habilmente o aspeto económico do seu trabalho. A novidade da quadratura e o conhecimento técnico-prático necessário para a sua realização deram-lhe uma posição privilegiada no panorama artístico da capital, oferecendo-lhe a possibilidade de escolher os encomendantes que o podiam recompensar lautamente.

Os estudos portugueses do século XX explicam o seu re-gresso a Itália em virtude de um conflito com os padres agosti-nhos. O sucesso alcançado e a riqueza acumulada, graças tanto à atividade artística como económica e financeira, poderiam igualmente justificar o retorno a Florença. Todavia, analisando o contexto cultural daqueles anos, põe-se a questão da razão pela

qual Bacherelli não terá colaborado com Filippo Juvarra (1678- -1736) no aparato das Quarantore para a igreja dos Italianos nem, sequer, na realização do monumental projeto de transfiguração da cidade para a procissão do Corpo de Deus. A escassez de documentos pode ter ocultado a memória da sua intervenção, mas tal não muda o facto de ter regressado a Florença nos anos de máxima abertura da vida de corte (Raggi, 2012a: 180-183).

A disparidade de formação e de nível artístico entre Bacherelli e Juvarra está fora de questão. O primeiro é, sem dúvida, um hábil quadraturista, como tantos outros em Itália nos finais do século XVII. O segundo, pelo contrário, é um artista de primeiro plano, seguindo a escola de Fontana, ativo e apreciado no exi-gente ambiente cultural artístico romano, além de ser primeiro arquiteto do rei Vitório Amadeu de Saboia. Como acontecera com Angelo Michele Colonna e Agostino Mitelli, chamados a Espanha pelo rei Filipe IV, a vinda de Juvarra à corte de Lisboa é amplamente desejada por D. João V e marca um momento de grande ambição cultural que envolve totalmente a corte e se projeta na década seguinte. A inteligência artística de Bacherelli pode ter-lhe sugerido que os tempos estavam a mudar e era che-gado o momento de voltar à pátria. (GR)

NOTAS

1. Entre a bibliografia dedicada à estada de Mitelli e Colonna em Madrid, cabe destacar Harris, 1961; Bonet Correa, 1964; Feinblatt, 1965; Sancho Gaspar, 1987; Feinblatt, 1992; Lademann, 1997; García Cueto, 1999/2000; Raggi, 2002; Salort, 2002; García Cueto, 2005; Aterido, 2006; Spinelli, 2011.

2. Sobre estes artistas, as referências mais completas continuam sendo as de Pérez Sánchez, 1986. Sobre Santo António dos Portugueses, veja-se Gutiérrez Pastor e Arranz Otero, 1999. Eu próprio me ocupo da intervenção de Angelo Mi-chele Colonna na gestação desta obra; veja-se García Cueto, 2005: 286-295, onde igualmente se considera a possível intervenção na fase de projeto do também bolonhês Dionisio Mantuano. A produção mural de Francisco Rizi foi analisada de forma monográfica por Angulo Íñiguez, 1974.

3. Omisso no original.

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4. Omisso no original.

5. Biblioteca Nacional Central de Florença, Secção de manuscritos, ms. Pal. E.B. 9.5, Francesco Maria Gaburri, Vite dei pittori, fl. 2420v. Ver também Marrini, 1764, parte II: 41-42.

6. Raggi, 2004a, vol. I: 501-502.

7. Raggi, 2004a, vol. II: 1170-1172.

8. Arquivo Secreto do Vaticano [ASV], Segreteria di Stato, Portogallo, 66, fl. 409, datado 29 novembro 1708.

9. Delaforce, 2002: 33-34 e 387, nota 36; Marrini, 1764, parte II: 41-42.

10. Moreri, 1753, tomo 2: 8.

11. Arquivo da F. C. Gulbenkian, ms RS cx. 173ª, 10, fl. 5, José da Cunha Taborda, Igrejas, conventos, casas, quintas em Lisboa e em alguns suburbius q conservão pinturas e outros objetos dignos de atenção.

12. ASV, Segreteria di Stato, Portogallo, 71, fl. 169v datado 4 agosto 1713.

13. Biblioteca Nacional de Portugal, Divisão de manuscritos, ms Compendio de novas da Europa desde 1 de abril de 1713, cx. 2, n.º 17 (citado por Carvalho, 1962).

14. ASV, Segreteria di Stato, Portogallo, 71, fl. 169, datado 4 agosto 1713.

15. Biblioteca Nacional de Portugal, Noticia individual del sagrado culto con que la devociaon desta corte de Lisboa celebrò en un octavario de solemnes fiestas la canoniza-cion del gloriosissimo S. Andres Avelino… en Lisboa, en la imprensa real Deslandesiana, 1713: 3, citada por Serrão, 2003: 250.

16. ASV, Segreteria di Stato, Portogallo, 71, fls. 188r-v. Itálico meu.

17. Mello, 2004: 172.

18. Raggi, 2004a, vol. I: 527 cfr. Mello, 2002, vol. II, n.º 505; Serrão, 2003: 251.

19. Mello, 2002, vol. II, n.os 535, 539, 541.

20. ASV, Segreteria di Stato, Portogallo, 67, fl. 117, datado 26 abril 1709.