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IDEOLOGIA E VIRTUALIDADE: DISCURSO ELEITORAL DOS CANDIDATOS A PREFEITO DE CURITIBA EM 2000 1,2
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IDEOLOGIA E VIRTUALIDADE: DISCURSO ELEITORAL DOS CANDIDATOS A PREFEITO DE CURITIBA EM 2000 1,2
Rosa Moura3 Thaís Kornin4
’Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele advém’. (FOUCAULT, 2000, p.7)
Repleto de símbolos e de interesses, o discurso cumpre papel determinante na
dinâmica cotidiana de produção e reprodução do espaço, interferindo no comportamento
dos agentes intervenientes, exibindo suas decisões. Na materialidade das palavras,
interpretações do urbano configuram imagens da cidade existente ou pretendida, que são
assumidas enquanto realidade. Nessa ordem se insere o discurso eleitoral, que se articula a
partir de uma visão ideologizada da cidade, tecendo proposições para seu futuro e
ajustando o cidadão ao espaço virtual que passa a compor.
O presente trabalho busca entender essa prática discursiva, na tentativa de
encontrar os elos existentes entre o “lugar” e o “global”, atento à adequação das propostas
às demandas particulares e/ou a intencionalidades exteriores, à percepção de mundo e às
diferentes leituras de uma mesma problemática urbana. Atento ainda a compreender qual
ideologia codifica o discurso eleitoral e o quanto cativo está das técnicas de marketing
político, que definem o padrão de comunicação nas sociedades democráticas
contemporâneas.
O ponto de partida da análise são os programas gratuitos do Horário Político
Eleitoral, do primeiro e segundo turnos, veiculados pela televisão. Complementa-se com
entrevistas realizadas com responsáveis de mídia pelos programas dos candidatos do
segundo turno.
1 Trabalho Apresentado no II Simpósio Internacional de Análise Crítica do Discurso, Universidade de São Paulo, agosto, 2007. 2 Uma primeira versão deste estudo, restrita ao primeiro turno da campanha eleitoral, foi apresentada no seminário Cidade e Poder, promovido pela UFPR, em abril de 2001, e publicada como (Des)construindo o discurso eleitoral: o primeiro turno das eleições municipais majoritárias em Curitiba no ano 2000. Revista de Ciência Política. Curitiba : n.16, p.67-95, junho 2001. As autoras agradecem ao PMDB, pelo empréstimo das fitas do primeiro turno da campanha eleitoral; e a ART CINE, por ter permitido assistir, em seus estúdios, às do segundo turno, correspondentes ao candidato do PT. 3 Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora da Rede Observatório das Metrópoles, Projeto Instituto do Milênio-CNPq. E-mail: [email protected]
2
O poder do discurso e o discurso do poder Em A ordem do discurso, Foucault (2000) desvenda a relação do discurso com o
desejo e com o poder, concebendo-o não somente como a manifestação (ou ocultamento)
do desejo, mas como o próprio objeto do desejo. Na perspectiva da Política, “o discurso não
é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. (FOUCAULT, 2000, p.10)
Considerando que o território das práticas discursivas é instituído de soberana
materialidade, este se caracteriza não apenas por um eficaz controle do discurso e a
rarefação dos sujeitos que falam, mas também pelo reagrupamento e unificação dos
discursos, de modo que ”ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas
exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas
as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis...” (FOUCAULT, 2000, p.37).
Na rarefação do discurso são percebidos os princípios de ordenamento e exclusão.
No âmbito desses princípios, Foucault aponta os sistemas de restrição, para os
quais um ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites do seu valor de coerção. (Determina) para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos. (FOUCAULT, 2000, p.39)
Nesse universo onde proliferam discursos políticos, religiosos, terapêuticos,
judiciários, e tantos outros, ditos e repetidos com o caráter de “verdadeiros”, processa-se a
“apropriação social dos discursos”, mediada tanto pelo forte papel persuasivo dos que falam,
quanto pela forma como é apreendido pelos que ouvem, provocando “uma espécie de temor
surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses
enunciados, de tudo o que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de
desordem, também, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do
discurso.” (FOUCAULT, 2000, p.51)
A análise do discurso não desvenda, portanto, “a universalidade de um sentido; ela
mostra à luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação.”
(FOUCAULT, 2000, p.70)
Processado pela mídia, o discurso adquire a consistência do convencimento e
penetra “capilarmente” nas mais diferenciadas esferas da sociedade. A produção do
discurso político sofre transformações importantes, operadas na relação entre a política e a
4 Doutoranda do programa Derechos Humanos y Desarrollo da Universidade Pablo de Olavide, Sevilha-Espanha. E-mail: [email protected]
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mídia eletrônica no exercício da democracia eleitoral contemporânea. Tal relação outorga
centralidade à visão publicitária, dominante neste circuito midiático, que passa a ter o poder
de determinar a sua formulação, subordinando-o a jogos de rarefação pertinentes à lógica
do mercado do entretenimento.5 O principal obstáculo a transpor é a rejeição do espectador
comum ao debate político, e a aridez de temáticas que, embora lhe digam respeito, não são
apropriadas ao seu horário de lazer televisivo. Sobre essa relação política/televisão,
Bourdieu (1998) observa que em um universo dominado pelo temor de ser entediante e pela preocupação (quase pânico) de divertir a qualquer preço, a política está condenada a aparecer como um assunto ingrato, que se exclui tanto quanto possível dos horários de grande audiência, um espetáculo pouco excitante, ou mesmo deprimente e difícil de tratar, que é preciso tornar interessante a qualquer preço. (BOURDIEU, 1998, p.95)
Isso implica construções discursivas que motivem o eleitor / espectador e
exponham situações com as quais ele encontre um mínimo de identidade. Além da pândega
a ser criada, é também preciso compor o candidato para que se torne um produto aceito,
consumível pelo voto – transformando sua aparência física e domando seu discurso político.
Opera-se, portanto, o “ritual”, subordinado à abordagem do marketing político. Este se
constitui em “um conjunto de técnicas e procedimentos cujo objetivo é avaliar, através de
pesquisas qualitativas e quantitativas, os humores do eleitorado para, a partir daí, encontrar
o melhor caminho para que o candidato atinja a maior votação possível” (FIGUEIREDO,
2000, p.14).
Com as novas regras da comunicação política, no interior dos partidos vem
crescendo a tendência a atribuir às estratégias de construção de imagem dos candidatos e
de marcas políticas o poder de definir o voto do eleitor. No entanto, essa questão é
controversa, tendo em vista os fracos resultados eleitorais alcançados por campanhas
milionárias realizadas por “marketeiros” famosos em diversos pleitos, o que relativiza o
impacto do marketing frente a questões ideológicas, ou mesmo subjetivas, que influem na
escolha do eleitor. A visão “exageradamente publicitária do marketing político”, Figueiredo
(2000) denomina “marketismo” e aponta como suas principais características a indesejável e
confusa simbiose entre o profissional de marketing e o candidato; a “desideologização” e
personificação das campanhas em detrimento de posições políticas partidárias; e o
redirecionamento do papel do marketing, que deixa de exercer a função de divulgar as
propostas, para formular políticas públicas (FIGUEIREDO, 2000, p. 36-37).
5 U m exemplo recente dessa influência é o destaque que a mídia vem dando aos publicitários responsáveis pelo marketing da campanha presidencial de 2002, revelando um inédito protagonismo dos mesmos nas decisões eleitorais, em detrimento das questões político-partidárias, incluindo a própria escolha da candidata à vice presidência, deputada Rita Camata, na chapa do PSDB, atribuída como uma estratégia de marketing do publicitário Nizan Guanaes (“O v da vitória. A vitória do marketing.” Veja nº 21, p.38, 29 de maio, 2002).
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Esse autor destaca observação do publicitário americano Tony Schwartz,
considerado um dos precursores do marketing político na década de 60 e exemplo de
“marketismo”, para quem “a televisão inverte aquilo que convencionalmente se compreendia
por oradores políticos, ou seja, alguém que deveria convencer sua audiência de seus pontos
de vista. Assim, ao invés do político falar aos seus eleitores das questões que julga
relevantes, ele pesquisa antes quais as questões que o eleitorado quer ouvir.”
(FIGUEIREDO, 2000, p.35) Portanto, uma importante transformação se opera na produção
do discurso político, para adequar-se às exigências da comunicação determinadas por
pesquisas de opinião: “o político moderno tenta convencer os eleitores sobre aquilo do qual
eles já estão convencidos. Um político nesse caso, não lidera; é ‘liderado’ pela opinião
pública.” (FIGUEIREDO, 2000, p.35)
Ultrapassando o poder da palavra, os programas eleitorais apostam no recurso da
imagem e da comunicação simbólica, muitas vezes de alcance subliminar, solidificando
ainda mais os elos com o desejo e o poder.
Embora o horário eleitoral seja gratuito, os programas usam técnicas de linguagem
televisiva que envolvem somas elevadas de recursos para a contratação de serviços
especializados que transformem a proposta política em uma peça de entretenimento.
Recursos que variam entre os candidatos, e que determinam a qualidade final dos
programas produzidos.
Na campanha em Curitiba, o candidato Cassio Taniguchi, do PFL, dispôs da maior
soma declarada e também do maior tempo diário disponível no ar durante o primeiro turno,
facilitando a veiculação de sua mensagem.6 De modo geral, é evidente a desigualdade entre
as partes, pois, mesmo que o horário gratuito vise ampliar e universalizar o espaço de
penetração do debate e a construção de uma agenda política, a dessimetria entre o tempo
destinado aos candidatos e a possibilidade financeira para contratar empresas mais
capacitadas a garantir a eficácia do marketing político reforçam o desequilíbrio de
condições. Pesa sobre isso a ação paralela da mídia comercial e jornalística que, embora se
apresente como veículo imparcial de informação, acaba por abrir espaços seletivos a
matérias que colocam em evidência apenas alguns candidatos.
Curitiba: a protagonista no discurso eleitoral A cidade é a protagonista no discurso eleitoral. Mais que espaço-objeto sobre o
qual as proposições devem incidir, a cidade se transforma no próprio sujeito capaz de
6 Segundo o Tribunal Regional Eleitoral, o tempo disponível no ar, por programa e por candidato, foi: Ângelo Vanhoni (Coligação PT/PPS/PV/PCB/PC do B/PMS/PMN), 04:15:12; Cassio Taniguchi (Coligação PFL//PTB/PPB/PTN/PSC/PSB/PST/ PRP/PSD/PSL/PT do B/PL/PRN), 10:26:89; Diego de Sturdze (PSTU), 01:25:71; Eduardo Requião (PDT), 02:24:53; Jamil Nakad (PRTB), 01:25:71; Luiz Forte Netto (PSDB), 05:18:65; Maurício Requião (PMDB/PAN), 04:43:36.
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operar as mudanças desejadas por seus moradores. Essa compreensão se empresta dos
segmentos de teóricos urbanos que concebem a cidade como determinante do progresso
econômico, do bem-estar social e da integração cultural de seus povos, tornando-se a
verdadeira propulsora das ações cotidianas e dos relacionamentos externos, logo a
protagonista (BORJA E CASTELLS, 1996). Para esses segmentos, o planejamento
estratégico passou a ser a ferramenta mais adequada a capacitar a cidade para que gere
respostas aos desafios da globalização.
Curitiba, desde os anos 70, implementa a estratégia de projeção da eficácia
conquistada no planejamento e na gestão urbana, alicerçados nos mesmos elementos
identificados como pilares do planejamento estratégico de cidades. Esse modo de planejar
traz embutido o forte comprometimento com a economia de mercado e com a flexibilização
produtiva, priorizando a adequação de infra-estruturas, especialmente para a organização e
a qualificação do espaço, requeridas pelos grandes empreendimentos. A estratégia adotada
por Curitiba é resgatada no discurso eleitoral, tanto no intuito de reforçá-la, quanto no de
criticá-la, porém, em momento nenhum, no de eliminar a sistemática de planejamento e
gestão da cidade, dada sua eficácia proclamada.
O planejamento estratégico, como didaticamente expõe Vainer, “está estruturado
basicamente na paradoxal articulação de três analogias: a cidade é uma mercadoria, a
cidade é uma empresa, a cidade é uma pátria” (VAINER, 2000, p.77). A primeira
textualmente integra o discurso dos difusores dessa teoria e resulta de uma relação direta
entre a configuração espacial urbana e a produção e reprodução do capital. Mais que isso,
já é prática corrente na gestão urbana, e se vale do abusivo recurso do city marketing –
desde há muito utilizado em Curitiba. A segunda analogia personifica a cidade como agente
em competição, buscando aumentar, a qualquer custo, seu poder atrativo. A cidade deixa a
forma passiva de objeto e assume a forma ativa de sujeito, ganhando nova identidade, a de
empresa, e passando a competir no mercado de cidades – daí a afirmação do discurso
oficial de que Curitiba é “a melhor cidade do Brasil para se fazer negócios”. Tal analogia
enfatiza a busca da agilidade e a transparência nas formas de gestão, com
desburocratização dos processos, mas, na verdade, pressupõe a despolitização e
produtivização da cidade. Ou seja, os “controles políticos são estranhos a um espaço social
onde o que conta é a produtividade e a competitividade, e onde o que vale são os
resultados.”(VAINER, 2000, p.90)
Essas analogias são facilitadas pela terceira: a unificação da sociedade em torno
de um “projeto”, a criação do consenso, a modelização, a geração de um “patriotismo da
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cidade”7 que faz aparentar a inexistência de jogos de interesses ou conflitos peculiares à
produção do espaço urbano e regional – a maioria dos moradores de Curitiba festeja viver
numa cidade-modelo. Uma liderança carismática e individualizada elimina a esfera política
local, a construção da cidadania, e assume para si a unidade, situando-se “acima dos
partidos e paixões” e tornando-se o elemento estruturador do próprio projeto, do exercício
do projeto empresarial.
Por trás da ação aparentemente apolítica se dá a “fabricação de consensos”, a
ação “em concerto”, que são, na verdade, “uma fábrica por excelência de ideologias” e,
sobretudo, “a fabulação de senso comum econômico” (ARANTES, 2000, p.27). As bases
das construções discursivas, que antecedem à construção das coisas, têm origem na
ideologia hegemônica. Com isso, o uso da informação, de metáforas, de fabulações
fortemente ideologizadas se impõe na sociedade via produção de imagens e do imaginário,
contribuindo fortemente para a construção de um pensamento único (SANTOS, 2000).
As três analogias cristalizam-se na prática do planejamento curitibano, compondo o
discurso oficial da gestão urbana e, conseqüentemente, os símbolos da candidatura à
reeleição. Permeiam também a construção discursiva dos demais candidatos, refletindo nas
facetas de produção de imagens e representações, uma cidade a ser renovada. A despeito
das críticas, prevaleceu o respeito, a consolidação e/ou aperfeiçoamento do modelo – posto
à prova na ocasião eleitoral.
Na cidade mercadoria, a consolidação do modelo Curitiba ostenta o status de cidade-modelo: modelo em planejamento e gestão, em
soluções urbanísticas, em transporte, em programas ambientais, em preservação de áreas
verdes e reciclagem de resíduos. Esse modelo busca se comprovar nas sucessivas
premiações internacionais e em sua reprodução por outras cidades. Sua construção pautou-
se nas intervenções urbanísticas usualmente consagradas e, mais recentemente,
incorporando os ditames globais, na ênfase do exercício da gestão urbana voltada a otimizar
a competitividade – condição necessária para sustentar o desenvolvimento numa economia
global. Incluem-se nesse exercício a requalificação do desenho urbano, a valorização da
atratividade a partir da identidade e qualidade ambiental, e a organização funcional e
tecnológica para a realização de negócios. Ao menos no discurso oficial, essa modelização
passou também a sugerir a participação comunitária e o estabelecimento de parcerias entre
o setor público e o privado. Cumpre, assim, o rol de quesitos da modelização, conforme
pensadores e gestores internacionais (SÁNCHEZ e MOURA,1999).
7 Expressão que Vainer resgata de BORJA, J. e FORN, M. de. Políticas da Europa e dos Estados para as cidades. Espaço e Debates, ano XVI, nº39, 1996.
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Aliada à construção da cidade-modelo está a produção da imagem urbana, apoiada
nas técnicas do city marketing que, além de promover o poder atrativo da cidade, criando a
cidade-espetáculo,8 volta-se a constituir uma “solidariedade social”, um “orgulho cívico”,
uma “lealdade” e uma “identidade local” pautados na despolitização da leitura da cidade pelo
fascínio de sua modelização, o que permite a abertura de uma gama de mecanismos de
controle social (SÁNCHEZ, 2001).
A vendagem pela mídia da idéia de uma cidade próspera obscurece problemas
sociais e econômicos, assumidamente ignorados pelos meios de comunicação, pelos
empreendedores, pelos gerentes urbanos, e até por grupos ditos de oposição, como forma
de favorecer representantes desses segmentos – verdadeiros defensores do chamado
“pensamento único”. Essa opção faz com que a imagem triunfe sobre a matéria (HARVEY,
1996).
No jogo de representações do discurso eleitoral, o modelo Curitiba adquire
diferentes conotações. Para o candidato à reeleição, Cassio Taniguchi, que vem
participando da contínua construção e consolidação da imagem de cidade-modelo, ciente
das críticas quanto às contradições sociais presentes na cidade e sua área metropolitana, o
modelo vai além das práticas urbanísticas. Com imagens dos ícones locais, seu programa
afirma: “Quem visita Curitiba vê bem mais que belas imagens”. Turistas entrevistados
enaltecem o padrão urbano e a qualidade de vida na cidade. O espaço urbano se
personifica como o lugar de todos, com o qual todos se identificam: Curitiba, uma cidade que é um pouco de cada cidade. (Imagens de Curitiba que lembram ícones de Brasília, da Europa, de Salvador, do Oriente e do interior do Brasil). Lugar onde ninguém se sente verdadeiramente longe de casa. (...) Curitiba é familiar e surpreendente. Depende do olhar, do ângulo, da luz, há sempre algo novo.
Numa ação artesanal, é forte e convincente a imagem de costureiras que bordam
os nomes de cada bairro e emendam uns nos outros, formando o mapa da cidade. A
extensão dos ícones do modelo a esses bairros está no projeto Nossa Rua, que prega a
equipamentação de ruas comerciais dos bairros para que se transformem em shoppings
abertos. Nas imagens, a proposição simula a presença de equipamentos similares aos do
calçadão da Rua XV – floreiras, lugar para deixar crianças – em outras partes da cidade.
A projeção internacional, especialmente se cidades estrangeiras passam a importar
sua experiência, a comprar seu know-how, também contribui para reforçar a aceitação do
modelo, sendo ela mesma uma estratégia de internacionalidade. A opinião do estrangeiro
chega a ser transformada em medida da qualidade dos projetos, proporcionando “uma
8 Nesse sentido, é ilustrativa a campanha publicitária que une o Festival de Teatro à comemoração dos 308 anos da cidade. Um outdoor composto como um palco emoldurado por cortinas abertas mostra um casal abraçado e se entreolhando, com o Jardim Botânico ao fundo (o cenário) e a mensagem “Há 308 anos, Curitiba é um grande espetáculo”. O mesmo conceito está presente no slogan que ilustra folder de informações turísticas, produzido pela gestão 2002/2006: “Curitiba – Um espetáculo aplaudido no mundo inteiro. Curitiba 309 anos: é mais fácil ser feliz aqui”.
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leitura positiva da modernização e, ademais, por um juiz supostamente imparcial e
qualificado” (SÁNCHEZ e MOURA, 1999, p.98-99).
Essa prática é abordada num dos programas de Cassio Taniguchi: “O nome
Curitiba corre o mundo, dizendo criatividade, planejamento. Desperta o encanto do
estrangeiro, fica na memória de técnicos do mundo inteiro.“ Com essa introdução, sucedem
no roteiro Domenico De Masi, entrevistado por Marília Gabriela, elogiando nominalmente
Cassio Taniguchi e o governador do Paraná; o prefeito de Los Angeles, visitando o sistema
de transportes e dizendo que “a mágica que vimos em Curitiba é incrível”; e uma seqüência
de imagens rápidas da mídia internacional referindo-se a Curitiba: cidade exemplo de
administração e planejamento, do Daily News; documentário “Curitiba, um modelo de
cidade”, de uma TV francesa; política urbana garantindo o meio ambiente, da TV NHK,
Japão; matéria da World TV, Canadá, com texto no qual claramente se ouve a expressão
“international superstar”, tratando das soluções aos problemas urbanos; e de uma emissora
de rádio e TV Belga, enaltecendo a “administração igualitária, com chance para todos”.
Além da mídia, seu discurso eleitoral mostra que o modelo é apresentado também
nas “publicações mais respeitadas”, como a National Geographic: “Curitiba, modelo em
planejamento urbano”; Time: “soluções criativas para problemas sociais”; The Economist:
“Curitiba foge dos engarrafamentos e da poluição com sistema de transporte eficiente”;
Scientific American: “a cidade desafia convenções e melhora qualidade de vida”; Los
Angeles Times: “a cidade mais inovadora do mundo”; Yomiuri Shimbum, Tokyo: “Curitiba é
exemplo na preservação do meio ambiente”; Air France Magazine: “Cassio é continuidade
na transformação que é referência no respeito ao cidadão”.
Com postura moderadamente crítica ao modelo, Forte Netto, candidato pelo PSDB,
ressalta seus resultados segregadores e as diferentes leituras que gera: “Cada um fala de
uma Curitiba. (...) Há muitas Curitibas. A diferença está em qual das Curitibas você vive.
Como cidadão, eu não aceito o modelo administrativo que ajudou a criar tantas diferenças”.
Propõe-se a “transformar as diversas Curitibas em uma Curitiba só. Uma cidade igual para
todos”. Ainda no âmbito da crítica moderada, Eduardo Requião, do PDT, propõe uma
“cidade conhecida pela solidariedade, qualidade de vida, justiça social, não pelas belezas de
concreto armado”.
Oscilando entre a crítica contundente e a leitura cautelosa, Maurício Requião,
candidato do PMDB, observa que na “propaganda oficial, a cidade é filmada do alto, vista de
longe”. Percorre os bairros periféricos, entrevista populares e mostra que, contrariamente
aos equipamentos oferecidos ao grande capital, neles as melhorias são pagas pelos
moradores: “nós paguemo, e nós que fizemo!”, afirma um morador. Mostra também a
conotação eleitoreira de certas obras: ”faz quatro anos que não mexiam no bairro, agora
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passaram esse asfaltinho...”. Em sua análise, reforçado pelo senador Roberto Requião,
critica a exposição da cidade como um cenário, escondendo o debate, e ressalta os gastos
do município com propaganda. “Propaganda que vende um produto com garantia vencida”.
Na seqüência da apresentação de suas propostas, o city marketing é com insistência o
elemento introdutório: “Curitiba dos comerciais, dos cartões postais, do prefeito, mostrada
para turistas. Existe uma outra Curitiba, uma Curitiba de verdade, a Curitiba onde tudo falta.
(...) Curitiba do desemprego, da violência. Nela também está sendo negado o direito à
moradia, um sonho legítimo a cada família, o sonho da casa própria.” Com imagens da rede
aberta de TV sobre violência urbana, afirma que a cidade requer mudanças na política, nas
propostas e nas idéias.
De modo também cauteloso, Ângelo Vanhoni, candidato do PT, adota a postura
política de não desconstruir o modelo e os símbolos, nem desmontar as marcas anteriores,
mas propõe avançar em busca da construção da cidadania, sem uma estratégia de
confronto e de diferenciação profunda. Com texto poético sobre Curitiba, fala e percorre,
com imagens, os locais tradicionais e os iconizados pelo modelo, confirmando, a seu modo,
o consenso, e reforçando a dicotomia entre a questão urbana e a questão social. Ressalta
que “a cidade que quer ser gente continue se embelezando cada vez mais, mas que se
preocupe em tornar mais bela e mais rica a vida de cada um dos curitibanos”. Agrega ao
seu desejo a reflexão de que “planejar uma cidade do ponto de vista urbano é muito
importante; mas, mais importante que isso é planejar uma cidade do ponto de vista humano,
oferecendo projetos para melhorar a vida de todas as pessoas”. Essa visão é reforçada pelo
apoio dado por Cristovão Buarque, ex-governador de Brasília. Segundo suas palavras, “o
Brasil inteiro admira Curitiba pela capacidade de inovar em soluções urbanas. O Brasil quer
admirar Curitiba por inovar no urbano e no social.” Como reação às críticas, os programas do candidato à reeleição vão produzindo
sucessivamente, com recursos de computação gráfica, uma virtualidade sedutora: “Cassio
transforma problemas em soluções”. Mais que isso, vão subliminarmente estimulando no
eleitorado a rejeição aos candidatos opositores, como comprova a seqüência: “Bairro Novo,
em menos de oito anos, casa própria, endereço e qualidade de vida para dezenas de
famílias.” Repentinamente, efeitos especiais cobrem as imagens do Bairro Novo com
barracas de lona preta. “Assim seria se a região, como antes, fosse dominada por aqueles
que usam a invasão como regra e a lona preta como teto”. Com base nesse jogo de
simulações, que associa os candidatos e partidos da oposição às lutas do MST, anunciam
em off a ameaça à cidade, dado que “incentivam a invasão”, “incentivam a desordem e a
violência”.
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Na cidade empresa, o modelo se renova Na cidade tornada mercadoria e gerida em moldes empresariais, a materialização
da ideologia hegemônica exige a reestruturação urbana. Apoiados no city marketing, que
redireciona as práticas recorrentes da vida cotidiana, projetos “modernizantes” e toda uma
série de normas e procedimentos que criam as bases para a entrada do capital global,
tentam tornar a cidade competitiva. Esses projetos passam a corporificar as políticas
urbanas recentes, tornando-se sua própria síntese. Políticas urbanas que, fundadas na
“gentrificação” dos espaços da cidade (ver ARANTES, 2000, p.31), passam também a
exercer novas formas de controle social.
A gentrificação urbana abre possibilidades a investimentos imobiliários, ao renovar
áreas consideradas degradadas, resultando na reprodução em série de parques, na
elitização de bairros, na construção de shopping centres, de centros de entretenimento ou
centros culturais. Inventa, até mesmo, o consumo da tradição, ao abrir espaço para a
construção de monumentos, memoriais e praças a grupos étnicos. Eliminando usos e
moradores não rentáveis, esses objetos urbanos passam a se constituir em marcas da
modernidade e, portanto, em cartões de visita na política da atratividade, garantindo maior
mobilidade ao capital multinacional. Elevam o valor das propriedades, da base tributária e da
circulação local da renda.
Nos anos recentes, Curitiba vem sendo exemplar nessa prática, tendo renovado o
uso de pedreiras desativadas, recuperado fundos de vales, transformando-os em parques, e
recomposto as várias culturas que participaram do movimento de colonização da região,
aproximando a arquitetura urbana de memoriais étnicos a novos parques de lazer.
Associados, urbanismo e cultura inserem a “commoditização” urbana no conteúdo da
cidade-mercadoria (IRAZÁBAL, 2005).
Arantes (2000) revela que, no projeto renovador, passa-se a “fazer a cidade” e,
nesse processo, o arquiteto-urbanista torna-se o intermediário cultural e planejador-
empreendedor, o criador de “lugares”, o fornecedor de bens e serviços simbólicos e o
principal agente da gentrificação. Lugares que, tidos como pontos identitários das
comunidades, nada mais são que meras reproduções de formas e conteúdos da
globalização – verdadeiras “paisagens do poder”.9 Na produção material do espaço urbano,
percebe-se o retorno ao urbanismo monumentalista, “produzindo ao final do século XX os
novos arcos do triunfo do capital transnacionalizado.” (VAINER, 2000, p.94)
Várias propostas, explicitadas no discurso eleitoral, exemplificam esse
procedimento, como a da desativação da Penitenciária do Ahú, com a restauração do prédio
9Landscapes of power, conforme referência a Sharon Zukin, The city as a landscape of power. In: Leslie Budd & Sam Whimster, Global Finance and Urban Living, Londres, Routledge, 1992; e Landscape of Power. From Detroit to Disney World, University of California Press, 1991.
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e construção de praça pública, apresentada por Cassio Taniguchi Localizada numa área
nobre da cidade, a mudança de uso desse espaço significaria desencadear um novo
processo de gentrificação, de “limpeza” da área, de certo modo, beneficiando segmentos
locais e abrindo possibilidades à inserção de novos capitais internacionais envolvidos no
mercado imobiliário, comercial e cultural. Também o projeto Memória Curitibana, de Cassio
Taniguchi, que prevê a restauração de prédios históricos degradados no centro da cidade,
ou mesmo as obras em andamento (escolas, postos de saúde, esgotos, avenidas, terminais,
estações-tubo, etc.) – “bairros virando verdadeiras cidades”. Outras propostas adicionais ou
apenas lembranças de realizações ampliam o quadro revitalizador. Num link com a cultura,
esse candidato propõe o Liceu da Informática, numa reciclagem do prédio central da Capela
do Colégio Santa Maria, que fará parte do complexo Teatro Guaíra. Dessa forma,
materializa a associação urbanismo/cultura/informação e, em mais um aspecto, adapta a
cidade ao diálogo global.
Porém, o principal exemplo da incorporação dessa tendência no discurso eleitoral
encontra-se na proposta de renovação do bairro Rebouças, também apresentada pelo
candidato Cassio Taniguchi. A proposta é introduzida com realce à busca da identidade e à
preservação da memória. “A história de Curitiba é a história de seus bairros. A estação
ferroviária lembra antigas viagens, as primeiras construções industriais de Curitiba; essas
construções do passado sugerem que essa área nobre da cidade encontre uma nova
vocação”. A parceria prevista para seu detalhamento induz uma verdadeira cumplicidade no
processo criativo, já que a idéia de transformar o Rebouças no bairro jovem de Curitiba é
apresentada numa seqüência de desenhos padrão HQ, e num linguajar apropriado das
gírias da juventude local: fazer do Rebouças uma porta para o futuro; a juventude, a galera vai decidir qual será o lance do novo Rebouças (...) (neste ponto, encerra a narração em off e o próprio Cassio pergunta) Que tal um local de trabalho, diversão e cultura dia e noite? Velhos barracões de cara nova pro agito, bandas de garagem, shows e festivais de música; estúdios de cinema, produção e festivais; local irado para o pessoal que quer ficar sempre com o corpo sarado, academias, games, livros, cds, internet, centros de línguas, capacitação pra profissões ligadas à informática? Tem lugar para tudo. (...) A revitalização deve priorizar a inquietude, a vontade dos jovens. Nossa equipe já tem mais de 30 anos. Participe, bote a imaginação pra funcionar. Você deve decidir inclusive o nome do projeto.
A informática emerge como o elo moderno do diálogo com a juventude: qualquer
sugestão pode ser enviada por correio eletrônico. A renovação desse bairro associa-se a
outro projeto requalificador: o metrô. “Faça bater um novo coração no velho Rebouças. O
futuro já está mais perto dele: é lá que o Cassio vai fazer a estação central do metrô”.
A proposta do metrô instaura uma das principais polêmicas da campanha. Com a
intenção de reciclar o tão premiado modelo em transporte coletivo, com novos modais e
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trajetos, a atual administração vem propondo a renovação de uso de um corredor hoje
percorrido pela BR116, que será desviada após a conclusão da via de contorno. Com
seqüência de imagens que rememoram a história do sistema em Curitiba, o candidato à
reeleição apresenta o projeto e faz seu apelo: “Curitiba não quer que essa evolução histórica
seja interrompida”. Aludindo ao sistema premiado, mostra que o metrô é “nova etapa, novo
avanço, com visão metropolitana, com aumento da capacidade do sistema”. Conclui
afirmando: “Curitiba, história de técnica e planejamento a serviço da população”. Em outra
seqüência, retoma: Metrô de Curitiba. O próximo passo para um sistema que é modelo no Brasil e no mundo. Antes que o problema apareça a gente apresenta uma alternativa. (...) O traçado do novo metrô é coerente à visão estratégica que temos de Curitiba e com a atitude da qual não abrimos mão: manter a função social do transporte coletivo de Curitiba. Por isso ele vai atender à área da cidade que mais cresce.
Polêmico pela escolha do trajeto, esse projeto visa introduzir um modal elevado e
recriar a paisagem de uma área integrada num dos eixos de verticalização dispostos pela
nova lei de uso do solo. Questionado pelo capital imobiliário local, esse eixo foi tido como
uma ameaça, pois com a alteração do coeficiente construtivo, apenas grandes capitais
externos teriam a possibilidade de adquirir imóveis com superfície viável à execução dos
edifícios, respeitadas todas as exigências de recuo.10
As propostas apresentadas se resumem em incrementar a atratividade urbana,
como se os demais fatores naturalmente viessem em decorrência. A característica central
desse novo empresariamento está na noção de parceria “público–privada”. Uma parceria
empresarial, porque tem sua execução e concepção sujeitas a dificuldades e riscos
inerentes aos investimentos especulativos, que se contrapõem àqueles organizados e
planejados racionalmente. Em muitos casos, esse risco onera o poder público, enquanto a
iniciativa privada apenas assume os benefícios (HARVEY, 1996).
A reestruturação adapta as estruturas urbanas às exigências do capital em trânsito;
as intervenções são naturalizadas como imprescindíveis e aceitas como uma opção
inquestionável. Santos (2001) discorre sobre os efeitos perversos dessa naturalização, que
transforma as intervenções meramente em “cosmética urbana”, desviando-se da direção
política. Você não enfrenta os problemas: oferece cristalizados os novos espaços. E aí também ajuda os escritórios. Aos grandes, você dá as grandes obras, e aos
10 Capitais, por sinal, já participantes em um fluxo de inversões que transcende Curitiba, integrando-a ao seu conjunto metropolitano e aos eixos de ligação com o Porto de Paranaguá e com o norte e o sul do país. Sua introdução local se deu com subsídios governamentais, dentro de um processo de refuncionalização de municípios periféricos ao pólo, para que fossem criadas as condições necessárias à inserção da metrópole no processo de reestruturação da economia global. Tal prática, recorrente nas gestões mais recentes de Curitiba, trouxe o fenômeno metropolitano ao discurso oficial, tornando a integração regional um dos objetivos da última administração. Objetivo que foi apenas tangenciado no discurso eleitoral, evidenciando que são tidas como mais importantes as relações verticais entre o lugar e o mundo, que suas relações horizontais com a vizinhança (SANTOS, 2000).
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pequenos e médios você dá as renovações locais: 80,100 pracinhas. E diz que está planejando a cidade toda para os pobres e para o futuro. (SANTOS, 2001, p.4-5)
No discurso dos candidatos, a cidade competitiva também é associada com a
possibilidade de ampliação das ofertas de emprego, ou sua modernização com o
aperfeiçoamento e a qualidade de vida urbana. Cassio Taniguchi, dentre as propostas que
relacionam renovação urbana e emprego, inclui o Linhão do Emprego, que significa a
reciclagem de extensas áreas abrindo alternativas para instalações econômicas, integrando-
se ao metrô, ao anel viário e à Linha Verde, articulando parques, turismo e lazer, “com infra-
estrutura para receber turistas”.
Além da adequação para a instalação econômica, a renovação urbana também se
faz justificar na proteção à violência, e portanto na garantia da qualidade de vida. Recriar
espaços é garantir a convivência pacífica, mesmo que sob controle de seguranças. Arantes
(2000), reportando-se a Zukin, cita a “estetização do medo”, induzida pela atual fase da
gentrificação que, ao transformar os espaços públicos em edificações cercadas e vigiadas,
apresenta-se na arena urbana, como uma “revanche contra trabalhadores precarizados,
imigrantes, sem-teto etc., enfim, todo o tipo de classe perigosa que possa ameaçar o sono
dos vencedores de ontem.” (ARANTES, 2000, p.37) Assim, a gentrificação restabelece a
ordem, e portanto a “civilidade”.
No caso de Curitiba, a questão da violência é a grande ameaça ao modelo e à sua
perspectiva de competitividade. Recente pesquisa realizada com jovens aponta que sua
maior preocupação é a violência urbana, seja advinda de grupos organizados ou da polícia
(SALLAS, 1999). Esse tema é captado por todos os candidatos, que colocam a segurança
dentre as políticas sociais prioritárias. Wacquant (2001) alerta que fantasias políticas da
“segurança-total” são, na atualidade, partilhadas pelos setores políticos da direita e da
esquerda, em virtude das conexões, socialmente disseminadas pelo discurso político, entre
a precariedade das condições sociais das populações pobres e a questão criminal. Essa
idéia, acaba por circunscrever práticas segregadoras, apresentando o paradoxo de
pretender “remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’
econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva
e subjetiva em todos os países.” (WACQUANT, 2001, p.7)
Maurício Requião, em seu discurso, faz a associação direta com a arquitetura da
proteção. “Mostrei que a violência e o desemprego podem ser enfrentados. Os condomínios
de segurança levarão uma nova polícia para perto das pessoas”. E Ângelo Vanhoni, por sua
vez, propõe a criação do “Inspetor de Quarteirão”.
A cidade família e a paternidade do modelo
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Uma outra analogia se insinua no discurso eleitoral: a de “cidade família”. Ora a
própria cidade encarna o aconchego do seio materno, como na fala de Eduardo Requião
que tece uma analogia com a “mãe-cidade, aquela que trata todos os seus filhos com igual
amor e respeito”, ou “a cidade enaltecida como exemplo não apenas de obras
arquitetônicas e urbanísticas, mas pelo tratamento carinhoso que concede a todos
aqueles que nela se aconchegam”. Ora o governante é que assume o papel de pai,
como se constata no discurso do governador Jaime Lerner, no qual os elementos
que materializam a modelização tornam-se explícitos: a personificação do projeto,
a paternidade e a condição de quem tem o poder de decidir por si o que é certo
para toda a cidade. Diz o governador Jaime Lerner (sob seu nome, na tela, a
legenda “curitibano”): Boa noite Curitiba. Peço sua licença por um minuto. No próximo dia 1º, vamos decidir como será a nossa vida nos próximos quatro anos. Quero, junto com cada um de vocês, pensar um pouco sobre este momento. Falo menos como governador e mais como curitibano que, com a confiança de todos vocês, teve a honra de ser prefeito da cidade por três vezes. Pois bem, a hora é de responsabilidade. Com a lucidez histórica de nossa gente, Curitiba não vai renunciar às suas conquistas. Não vai abrir mão de seguir avançando e consolidando suas marcas registradas. A cidade ecológica. A cidade que tem melhor índice educacional do país. Que tem maior número de postos de saúde por habitante. Que é recordista no número de crianças em creches. Que possui o mais eficiente transporte coletivo do Brasil. Tudo isso feito para você. Claro, problemas sempre existem e vão sempre existir. Até porque quando um problema é resolvido, surgem outros no seu lugar, exigindo criatividade e ação. Por isso, eu que penso, planejo, vivo e respiro Curitiba há tantos anos, sei o que ainda precisa ser feito. E mais importante: sabemos todos, eu e você, que o Cassio é o prefeito para continuar garantindo e ampliando as conquistas sociais que colocam o curitibano como centro de todas as coisas. O Cassio já provou que faz. Ele honrou seu voto. Não tenho dúvida. Ele e a equipe têm os melhores projetos para assegurar mais qualidade de vida para todos. Os outros, que não têm compromisso com a realidade, podem prometer o que quiserem. Podem tentar manipular as pessoas. Podem fazer demagogia. O Cassio não. Ele tem a competência, a seriedade e a serenidade que Curitiba exige. Não adianta a oposição atacá-lo para tirar o seu equilíbrio. Não tirarão. Porque seu equilíbrio é interior. Vem do fundo da alma. Vem da fé e da esperança de quem administra com a cabeça e o coração. Olha gente, amar é mudar a alma de casa. Eu mudei minha alma para a casa de cada um de vocês. Minhas filhas até dizem que são irmãs de Curitiba. E é verdade. Eu e a equipe, o Cassio sempre junto, dedicamos a mesma atenção que dedicamos aos nossos filhos. Eu me sinto um pouco parente de cada curitibano. Nós só fizemos o que Curitiba queria. (...) Nós crescemos juntos. Curitiba nos ensinou a gostar dela, respeitá-la. Por respeito a Curitiba vamos de novo. Vamos de Cassio.
Esse posicionamento, acionando o consenso, o orgulho cívico, o patriotismo, a
obediência filial, provocou a reação dos demais candidatos. Ângelo Vanhoni enfrenta a
paternidade dirigindo-se frontalmente, e com intimidade, ao governador, como um filho que
se rebela, porém não rompe os laços familiares:
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Ao longo desses anos, Curitiba teve muitas conquistas. Tornou-se referência em vários aspectos para todas as cidades brasileiras. Mas Curitiba também mudou muito neste tempo. A cidade cresceu. Novos problemas surgiram. Os desafios para entrar neste novo milênio são imensos. No último programa eleitoral o governador Jaime Lerner ocupou espaço para falar como curitibano sobre o risco que a cidade corre de perder tudo aquilo que conquistou. Pois bem, hoje eu quero pedir licença para falar com nosso governador. Quero dizer para você, Jaime, como curitibano, que não há o que temer. Assim como você, existem muitas pessoas que também se preocupam e amam nossa cidade: engenheiros, arquitetos, trabalhadores, donas de casa, empresários. Gente que quer contribuir para o debate sobre o futuro que é de todos nós. Você me conhece Jaime. Neste espaço eleitoral eu tenho trazido propostas e idéias, que tenho certeza, vão contribuir para tornar Curitiba ainda melhor. Nós queremos uma cidade que não seja apenas referência como planejamento urbano. Nós queremos uma cidade que seja modelo também pela transparência administrativa. Pelo cuidado com as crianças e os idosos. Pela valorização dos professores e da educação. E pela participação das pessoas com suas idéias e seus sonhos. Vamos encontrar o equilíbrio entre crescimento e a preservação de nossos mananciais. Vamos encontrar novas maneiras de tornar nosso transporte coletivo ainda mais eficiente. Vamos trazer idéias e propostas que já foram consagradas em outras cidades brasileiras como a Bolsa-Escola e o Banco do Povo, que vão trazer enormes benefícios para nossas mães e crianças. Idéias que Curitiba e você certamente vão aplaudir. Para discutir todas estas propostas eu quero fazer um convite. Um convite para você participar ativamente deste grande debate, que vai acontecer agora no segundo turno. Nós, da oposição, estamos prontos. Nosso coração está aberto para isso e eu tenho certeza que o seu, Jaime, e os de todos os curitibanos, que também amam esta cidade, também vão estar. Porque, afinal, é sempre bom lembrar o poeta: na vida tudo vale a pena quando a alma não é pequena.
Forte Netto rebate com veemência a paternidade do modelo, trazendo para si a
possibilidade de partilhar essa propriedade: Vimos o governador no programa do prefeito dizendo que ele se sente como pai de Curitiba. Uma cidade não tem pai. Ela não pode ser de um único dono. Ela é dos que aqui nasceram, dos que aqui chegaram e dos que ainda estão por vir. Ela é de cada um de nós, seus cidadãos, que a construímos e que a amamos de verdade. Cidadãos que têm a capacidade e o direito de fazer suas próprias escolhas sem medo. O filósofo já dizia: ‘A cidade são as pessoas.’
Maurício Requião questiona os resultados do papel do pai, assumindo para si essa
função. Afirma que, “cuidar bem de Curitiba” é dar a nossas crianças uma escola de qualidade que prepare para a vida. É garantir remédio, atendimento, exames, tratamento e hospital para quem precisa. Vou cuidar bem de Curitiba criando empregos porque não existe nada mais cruel que negar salário e trabalho às pessoas. Cuidar bem de Curitiba é asfaltar as ruas, fazer calçadas, sanear os bairros tornando bonito e agradável o lugar onde moramos. Cuidar bem de Curitiba é aplicar bem, com responsabilidade e eficiência, cada centavo do dinheiro público. Cuidar bem de Curitiba é diminuir os impostos: O IPTU, o ISS. Não sacrificar a população com esta voracidade de arrecadar. Cuidar bem de Curitiba é pôr fim nesses projetos mirabolantes e caros que enriquecem empreiteiros e endividam a população. Quem paga tudo isso? Cuidar bem de Curitiba é fazer bem feito tudo aquilo que a cidade quer e precisa. Eu vou cuidar bem de Curitiba. Vou cuidar da cidade com o mesmo zelo, o mesmo carinho e a mesma responsabilidade que cuido de minha própria família.
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Criando uma metáfora entre o discurso oficial do sucesso do planejamento e da
gestão urbana em Curitiba, e a harmonia familiar, a austeridade do pai se repete na
competência do técnico, com sua imagem inquestionavelmente apolítica. Imagem presente
no grupo de arquitetos-urbanistas responsável pelo planejamento da cidade, que vem
garantindo as seguidas vitórias eleitorais, principalmente em instâncias administrativas. A
importância dada à personificação do modelo, na figura de seu “idealizador”, não só como
pai mas como técnico competente, está presente tanto na fala do governador quanto na
resposta da oposição.
No discurso do governador Jaime Lerner, o “profissional”, mais que o “político”, é
quem decide. A composição da imagem de seu candidato se dá com extremo cuidado:
Cassio Taniguchi, nos primeiros programas, aparece junto a uma prancheta, sentado,
compenetrado, criando... E essa criação é mostrada como se unanimemente aceita, por
uma cidade que também é personificada e que “maternalmente” ama e é amada. (voz em
off) “O Curitibano ama Curitiba, (...) tem orgulho de ser curitibano, (...) porque Curitiba sabe,
como nenhuma outra cidade, amar o cidadão”. Nesse plano, sucedem imagens com
referência às campanhas vencedoras do “coração curitibano” (mote de eleições anteriores
do Governador Jaime Lerner) e cenas da equipe de Cassio Taniguchi planejando em volta
de uma grande mesa com mapas, desenhos, material de arquitetura. O governador Jaime
Lerner está lá, de costas para a câmara, como um pai, que observa e ajuda os passos dos
filhos. Técnicos sérios, conversam agradavelmente sob uma luz difusa e também agradável.
Na seqüência dos programas, o candidato à reeleição apresenta-se como um
técnico-urbanista competente, “doutor em Curitiba”. Uma competência que o capacita a
realizar, do mesmo modo que outros administradores de cidades-modelo, no contexto
mundial, “um governo forte, personalizado, estável, apolítico, carismático, expressando a
vontade unitária de toda uma cidade de manter a trégua e a coesão interna, a fim de
afrontar, com base num projeto competitivo e no patriotismo cívico, as outras cidades.”
(VAINER, 2000, p.97) Constitui-se, portanto, no protótipo de liderança urbana que
predomina na cidade-empresa, cuja principal característica é a despolitização planejada.
Forte Netto, dissidente do grupo original dos urbanistas, também procura
estabelecer sua imagem ao eleitorado, valendo-se dos estereótipos do modelo. Numa
criação também cuidadosa que sempre apresenta propostas ilustradas por mapas
dinâmicos, ele é introduzido como o “arquiteto com capacidade técnico-urbanística” para dar
continuidade à mesma forma de criar. Alega que a cidade deu-lhe a oportunidade para se
firmar enquanto profissional da arquitetura, deu-lhe o reconhecimento profissional; agora
pretende, “com idéias e ações inovadoras e com capacidade de realizar parcerias com a
comunidade”, retribuir o que a cidade lhe ofereceu. Buscará “soluções tecnicamente
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corretas”, com “criatividade para encontrá-las e determinação para executá-las”. Essa
identificação do candidato com o ícone consagrado – o urbanista – reforça a afinidade que
sua condição técnica tem com o curitibano, o que hipoteticamente lhe garante um completo
grau de conhecimento da realidade e da população local: “Você não me conhece, mas eu
conheço como você vive”.
A harmonia familiar, ou o respeito à competência técnica, se completa com
a obediência. Mediado pela interação criador/criatura, a ordenação do espaço da
cidade constrói o “curitibano”. Citadino11 naturalmente pacífico e exigente,
instituído de aguçado senso estético e um inabalável amor cívico pela cidade, tem,
no discurso dominante, seu papel político reduzido a objeto e objetivo das
intervenções urbanas. Esse curitibano-objeto, associado à imagem da cidade
sujeito, ou esse filho obediente, no colo de uma mãe dedicada, é lembrado no
discurso do governador Jaime Lerner, valendo acentuar: “Curitibano tem bom
gosto elevado e não vai aceitar. (...) O curitibano ama Curitiba porque Curitiba
sabe, como nenhuma outra cidade, amar o cidadão.(...) Nós só fizemos o que
Curitiba queria.”
Os demais candidatos não adotam para si o perfil técnico-urbanista.
Tampouco dão voz ao curitibano construído pelo modelo, mas àquele que
demonstra estar excluído de sua eficácia.
A cidade pátria: entre a participação e o consenso A gestão do espaço urbano é pautada fundamentalmente na produção de imagens
que se convertem na própria realidade. Grupos dominantes perpetuam seu exercício de
poder a partir de um jogo de representações expresso em políticas, projetos e práticas de
controle, buscando garantir a estabilidade social a partir do “convencimento”. Na
representação do interesse dominante como interesse comum da sociedade se dá a
legitimidade a esse grupo do poder.
De modo geral, o urbanismo torna-se o modelador de tais representações, já que
recria espaços, e a veiculação de mensagens, tornando sedutoras tais transformações,
produz uma subjetividade coletiva, exercendo um efeito esmorecedor da capacidade crítica
dos cidadãos: “O urbanismo realizado está no centro da cena, a cidade tornada sujeito, o
que em determinadas circunstâncias transforma os próprios cidadãos em meros figurantes,
atores secundários de seu roteiro.” (SÁNCHEZ, 1999, p.27)
11 Utiliza-se a terminologia “citadino”, conforme Vainer, com o intuito de estabelecer uma distinção que reflete a despolitização do significado de cidadania. “Enquanto estes (os cidadãos) se dividiriam quanto a visões ideológicas, projetos de sociedade e prioridades nacionais, os citadinos estariam acima (ou além) destas pugnas.” (VAINER, 2000, p.96)
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O discurso oficial da gestão em Curitiba tem demonstrado esse inegável poder de
convencimento. Seletiva na escolha dos interlocutores e restritiva na definição de
prioridades, a gestão em prática instaura um processo fundamentalmente desmobilizador
das forças populares e do exercício da cidadania, negando a cidade como espaço de
construção política e social, reduzindo-a a locus do investimento.
Nesse modo de gestão de Curitiba, as instâncias de participação têm um conteúdo
tenuemente consultivo e claramente legitimador das políticas oficiais. O influente
envolvimento em esferas decisórias fica restrito aos atores partícipes das coalizões
dominantes ligadas aos grandes interesses localizados (OLIVEIRA,1995). Os escassos
canais democráticos de participação parecem constituir-se mais em vetores de adesão
social ao projeto hegemônico – acríticos e reverenciadores – do que propriamente em uma
prática de cidadania. É essa adesão que Vainer (2000) denomina de um estimulado
“patriotismo urbano”, qualificando-o como um poderoso componente autoritário de modelos
de cidade.
Manifestações espontâneas de crítica ou rejeição ao processo são compreendidas
e veiculadas, pela retórica oficial, como “perturbação da ordem”, com ameaça à
governabilidade. Técnicas de comunicação são empregadas para conter o antagonismo e
confirmar o papel exercido e delegado ao poder público, como uma ação “concertada” com
os demais agentes intervenientes. Esse processo torna nítida a diferença entre participar e
ser participado, ou chamado para referendar.
Para Mouffe (1999), na concepção liberal, a política é entendida como um processo
racional de negociação entre indivíduos, destituída de uma dimensão de poder e
antagonismo. O êxito do liberalismo político, por sua vez, depende da possibilidade de
estabelecer as condições que fazem possível um tipo de argumentação que reconcilie a
moral com a neutralidade. A autora sustenta a impossibilidade de êxito da tentativa do
discurso liberal de inventar um princípio de unidade social por meio da neutralidade com
base na racionalidade. Ao analisar a dinâmica política das sociedades democráticas
contemporâneas, Mouffe considera preponderante o papel do poder e do antagonismo na
constituição de um projeto de sociedade democrática. Observa-se, na prática da gestão
pública local, uma resistência dos que detêm o poder, em abrir canais efetivos de debate
sobre as políticas públicas, valendo a visão tradicional da separação entre Estado e
sociedade civil. A “população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas
também como objeto nas mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo
que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça.” (FOUCAULT,
1985, p.289
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A cidade tornada pátria consegue ocultar suas contradições enquanto reacende, no
cidadão objeto, o orgulho cívico pelas suas virtualidades. No caso da campanha em
Curitiba, sua trajetória desvela situações, traduzidas em imagens, que aproximam a cidade
a outra qualquer. Ângelo Vanhoni afirma que há segregação social em Curitiba,
posicionando-se contrário à “discriminação e a qualquer forma de exclusão”, porque “todo
mundo é igual, apesar de diferente”. Enfrentando o verticalismo da gestão atual, o candidato
propõe-se a “administrar junto com a comunidade” e caracteriza sua concepção de
planejamento reforçando a premissa do “planejamento da cidade do ponto de vista humano”
(em contraposição com urbano). Sua meta é que “Curitiba continue se embelezando cada
vez mais, mas que se preocupe em tornar mais bela e mais rica a vida de cada um dos
curitibanos”.
Centralizando a sociedade e apontando a despolitização da cidade pátria, Eduardo
Requião sumariza seu ideário humanista em palavras de ordem como: “O direito do cidadão
acima de tudo”; ou “Miséria e desigualdade social restringem a liberdade de todos nós”. Sua
proposta é “discutir políticas e seus equívocos”, pois, ciente de que “a política pode
transformar a realidade”, justifica as contradições expostas pelo fato de que “os políticos
usaram palavras para iludir”.
A imagem da cidade revelada por Maurício Requião norteia-se na ruptura, no
abandono do discurso do urbanismo como “o discurso que procura identificar as ‘patologias
do espaço’, e que entende a intervenção médica, técnico-científica, estética e despolitizada”
(SOUZA, 1999, p.11). Em sua crítica à “cidade dos cartões postais”, vislumbra uma Curitiba
a ser construída participativamente, incluindo nesse processo de construção segmentos ora
discriminados, excluídos.
Seus programas colocam no papel principal “um outro curitibano”. Não o que
desfruta a festejada qualidade de vida da cidade planejada, mas o curitibano que “não se
sente amado” pela cidade e se diz abandonado à sua sorte.
A participação pretendida pelos candidatos e o maior entendimento da realidade
social só se consubstanciam por meio de sua articulação em relações de poder e, por
conseguinte, o objetivo de uma política democrática não se constitui na erradicação do
poder, mas na multiplicação dos espaços nos quais as relações de poder se abrem para a
contestação democrática (MOUFFE, 1999)
De modo geral, no caso da campanha em Curitiba, a maioria dos candidatos
apresentou, em seus discursos, idéias relacionadas à descentralização política e à
participação popular, sem no entanto propor formas concretas de institucionalização, ou
explicitar mecanismos de democratização das decisões. No entanto, especialmente no final
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do primeiro turno, o ideário relacionado a visões de participação popular na definição do
planejamento urbano passou a qualificar mais fortemente o discurso dos candidatos.
É ilustrativa a transformação da imagem do prefeito, candidato à reeleição. Nos
primeiros programas, a sua capacidade de planejar isoladamente, ou com sua equipe, é
enfatizada: “O prefeito Cassio já planejou (...). Antes que o problema apareça a gente
apresenta uma alternativa”. Contudo, o questionamento em bloco dos candidatos
oposicionistas, com relação à excessiva centralização das decisões das políticas públicas
implementadas na cidade, somado à perda de sua posição hegemônica em pesquisas de
intenção de voto, provocam sutil mudança. O programa passa a veicular cenas do prefeito
em reuniões comunitárias, como aquela em que se diz: “O pessoal já está acostumado. De
repente chega o japonês. Cassio não faz discurso. Toda reunião é uma conversa franca (...)
Cassio e sua equipe anotam tudo e, a partir daí, ele começa a tomar decisões.”
Já no programa do candidato Ângelo Vanhoni, a participação é mencionada
seguidamente no sentido de “integrar ações com participação da comunidade”. Ressalta que
a “qualidade de um prefeito é administrar junto com a comunidade, discutir com firmeza e
coragem, acreditando e garantindo credibilidade”. Exemplo marcante de participação está
na proposta do orçamento participativo, que se constitui no instrumento de reforma do
Estado de maior visibilidade nacional da prática de administração municipal do Partido dos
Trabalhadores. Proposta também mencionada pelo candidato Eduardo Requião, que
defende a descentralização em subprefeituras “com autonomia orçamentária e operacional”
e o “orçamento participativo, (...) pondo fim ao assistencialismo perverso.”
O tema também aparece com destaque no programa de Forte Netto, que critica a
“excessiva centralização na maneira de administrar a cidade”, enfatizando que
“descentralizar é um jeito de administrar Curitiba de forma igual para todos”. Em seu
discurso, Forte Netto lamenta: “Como cidadão, eu não aceito o modelo que ajudou a criar
tantas diferenças; (...) sofremos com os problemas, temos o direito de participar nas
soluções”. Propõe “olhar para todos os bairros com os mesmos olhos” e promover um
“desenvolvimento urbano mais democrático e mais justo, trabalhando em conjunto com a
comunidade”.
Em várias propostas se antevê uma pasteurização e até mesmo um esvaziamento
do significado das ações de participação e descentralização, com suas acepções originais
de criar as condições de um “autêntico pluralismo agonístico” – ou seja, de arenas de
verdadeiro confronto de idéias conflitantes, no plano do discurso –, nem no domínio do
Estado, tampouco no da sociedade civil, condições nas quais se circunscreve a dinâmica
inerente à democracia radical e plural.
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Elemento constitutivo do discurso do planejamento estratégico de cidades,
conforme Borja (1995, p.20), o “processo participativo é prioritário com respeito à definição
de conteúdos, posto que desse processo dependerá a viabilidade dos objetivos e atuações
a que se proponham.” Porém, retomando a analogia da cidade empresa, ele mesmo agrega
que o plano resultante desse processo não é “se não um contrato político entre as
instituições públicas e a sociedade civil.” (BORJA, 1995, p.20) A pseudo “concertação” da
sociedade e a consecução do “contrato” político, como um tipo de relação empresarial,
nesse modelo de planejamento, estão longe de instaurar dinâmicas emancipatórias, apenas
cumprindo premissas presentes nos manuais orientativos das agências multilaterais, que
prescrevem a participação como meio de legitimar a gestão urbana nas sociedades “em
redemocratização”, transformando o cidadão em ator, e não em co-autor do processo de
decisão.
Mudança de imagem-marca: de capital ecológica à capital social O conteúdo dos discursos opositores ao candidato à reeleição trouxe para o
cotidiano do debate, e da preocupação singular, uma Curitiba incompleta, já que o modelo,
se não desconstruído, foi detalhadamente exposto. As carências sociais revelaram a face
injusta do modelo e impuseram uma mudança de mote no discurso oficial: a “capital
ecológica” já não é suficiente para unir o curitibano em torno de um projeto.
No jogo de representações, emerge a “capital social”, criando um fato novo na
campanha e, do ponto de vista do marketing político, ampliando suas possibilidades de
sucesso, ao construir uma nova marca que vai ao encontro dos anseios da população. O
discurso eleitoral do candidato à reeleição torna-se quase um relatório de realizações,
destacando as ações sociais da administração municipal. Essa tática, começa a encaminhar
– até na criação visual da nova marca – a mudança da imagem-síntese, que se efetiva após
as eleições (PINHEIRO, 2002).
A questão que se coloca é se, ao contemplar uma exigência local, essa mudança
de marca não estaria revelando uma lacuna que macularia a imagem internacional de
cidade-modelo? Ou, ao revés, talvez já estaria anunciando um desgaste percebido no
recorrente uso de atributos pertinentes ao ambiente – sustentabilidade, ecologia, por
exemplo – em suas inúmeras representações, e antecipando a introdução, no rol de
componentes de modelização urbana, de novos conceitos – e conseqüentemente, novas
representações – mais afetos à generalizada crise social resultante da economia
globalizada?
Em visita a Curitiba, por convite oficial, David Harvey aponta as regiões
metropolitanas como “anti-ecológicas”, concluindo que “Curitiba vira esse mito pelo avesso”
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(HARVEY, 2002). Sua colocação reflete a penetração, inclusive no âmbito de teóricos do
urbano, do papel simbólico emanado da imagem-marca criada para a capital.
A noção de “cidade sustentável”, que apoia a “capital ecológica”, é carregada de
uma subjetividade que aciona diversas representações para a gestão da cidade, dentre elas,
a que a associa “a estratégias de implementação da metáfora cidade-empresa que projetam
na ‘cidade-sustentável’ alguns dos supostos atributos de atratividade de investimentos no
contexto da competição global.” (ACSELRAD, 1999, p.81). Ou seja, há que se requalificar o
ambiente urbano para realçar a atratividade, inspirar orgulho nos moradores e,
principalmente, ganhar confiança dos potenciais investidores.
Nesse padrão discursivo, a racionalidade técnica adquire um peso que dispensa
qualquer discussão. Verifica-se uma nítida despolitização da questão ambiental, uma recusa
ao reconhecimento de conflitos entre meio ambiente, sociedade e economia, que no caso de
Curitiba se intensifica com a implantação industrial, a adaptação viária e a introdução de
projetos habitacionais, em plena reserva de mananciais. E, principalmente, a
desconsideração de que o ambiente da cidade não se encerra em suas fronteiras político-
administrativas – também relegada em Curitiba, que construiu seus indicadores ambientais
circunscritos à extensão mínima do município.
Tal noção, insistentemente usada nas administrações anteriores, perde a
centralidade na campanha atual. Mesmo assim, em seu discurso, o governador Jaime
Lerner evoca a “capital ecológica”. O candidato que apoia toca no tema ao apresentar o
planejamento urbano como minimizador da degradação ambiental. Para Cassio Taniguchi, o
desafio das cidades é “enfrentar o crescimento sem perder a qualidade de vida, que faz da
nossa cidade um modelo para o mundo”. Refere-se a que a resposta obtida em Curitiba
deve-se ao seu passado e volta-se ao futuro: “o que fizemos com planejamento e visão
estratégica é que permitiu crescer com qualidade, diferente das demais; para o futuro,
(devemos) ampliar as conquistas com equilíbrio, bom senso, criatividade, conhecimento
técnico, mas muito, muito conhecimento técnico”.
No tratamento dos demais candidatos, a noção foi alvo de crítica. Com a imagem
chocante de um homem que, tomando água com canudinho, vira um esqueleto, Maurício
Requião reporta-se ao marketing ambiental das administrações anteriores: “A propaganda
do governo diz que Curitiba é a capital ecológica e todos os nossos rios estão mortos. Iniciar
a recuperação de nossos rios. Este é o compromisso de Maurício Requião”.
A mesma despolitização que caracteriza a representação local da qualidade
ambiental é absorvida na imposição da nova representação que se materializa ao final da
campanha. O “susto” de uma possível derrota fez com que o apelo do “social”, já
maximizado no final do primeiro turno – “Curitiba: cidade com a mão estendida para praticar
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a inclusão social” – se tornasse a proposição central do discurso no segundo turno. Essa foi
a forma de responder às críticas que perpassaram todas as candidaturas no turno inicial, e
principalmente, de enfrentar as propostas petistas voltadas a essa tônica, sucintamente
expostas nos programas do segundo turno.
Essa ênfase no “social” resume a existência de um campo simbólico no qual se trava
a luta política pela reprodução da hegemonia, ameaçada pelo conflito trazido por outras
leituras da cidade. Nelas, vê-se que há uma crescente desconfiança por parte dos curitibanos
quanto aos mitos que sustentam a imagem de cidade-modelo, resultando em uma abertura,
ainda que limitada, a novas posturas – desde que sem desconstruir essa imagem que povoa
o seu senso comum e consolida o seu conforto.
Já no início da campanha, a simplicidade dá as mãos à tecnologia e renova a
identidade urbana: com imagens processadas digitalmente, o programa de Cassio Taniguchi
mostra “a pavimentação mudando a vida das pessoas”; “a rua volta a ser o lugar da
convivência, do encontro”. É exposto o Plano 2000: calçadas nos dois lados dos 1000 km já
pavimentados (Plano 1000), ciclovias, iluminação, lixeiras, sinalização para caminhadas,
pontos de convivência, resultando na valorização dos imóveis, empregos nas obras, no
comércio.12 Ações com “visão estratégica: promover, na prática, a inclusão social”. Sob essa
ótica, pretende-se consolidar a nova face da imagem da cidade-modelo, agora sob um
“planejamento com vanguarda social”, afinal, “toda a obra tem que ter garantia de vida
melhor, de avanço social. Curitiba para o curitibano”. A inserção do social no discurso se
torna mais enfática no final da campanha. Num dos últimos programas, Marina Taniguchi,
esposa de Cassio, fala dos projetos sociais da prefeitura e, após o pedido de voto,
preconiza: “Curitiba será cada vez mais exemplo de justiça social e respeito pelas pessoas”.
Em outro programa, rebate as críticas quanto a lacunas sociais e já postula futuras
premiações. “Através de várias administrações bem-sucedidas, somos referência na área
social. Através desta rede de solidariedade que foi criada ao longo desses anos todos e que
hoje culmina nesta rede de serviços (...) com tudo aquilo que uma cidade precisa dar aos
seus habitantes”.
Porém, no segundo turno, quando o adversário tem ampliado seu tempo no ar e
passa a veicular detidamente práticas sociais já recorrentes, e tidas como eficazes em
outras administrações petistas do país, o eixo da disputa se deriva “da competição para o
ataque” (CESCATTO, 2002). Ângelo Vanhoni apoia-se em observações-síntese, como a de
Marta Suplicy que aponta que, depois de tanto tempo com governantes com visão técnica,
Curitiba precisa agora de visão social: “O Brasil vai se orgulhar muito mais de Curitiba.”
12 As peças publicitárias veiculadas pela atual gestão (2002/2006) resgatam essas mensagens elaboradas com recursos de computação gráfica, que “renovam” os espaços, sob a afirmação: “onde antes existia apenas uma cidade, os curitibanos estão vendo nascer a capital social”.
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Outros intelectuais, artistas e a própria mídia dão legitimidade às propostas: após seqüência
de recortes de matérias publicadas em tom elogioso a governos e práticas administrativas
petistas, como entrevistas com Mario Amato, com Otávio Frias Filho, ou textos do Le Monde
e da revista Veja, o programa conclui: “O Brasil e o mundo reconhecem a competência de
quem administra as cidades pensando nas pessoas.”
Nessa fase, a analogia da cidade-família se reinsere na composição das propostas
sociais de ambos os candidatos, com projetos de alcance a todos os membros da família,
tornando-se textual, particularmente, no pedido de voto de Mário Lago, que dá um “conselho
de pai para filho: vote no 13”.
O “marketing de guerra”: do debate político à arena do confronto Com as pesquisas eleitorais apontando para o fim da hegemonia histórica, a
campanha política do PFL passa a se valer menos da imagem pessoal de Cassio Taniguchi,
ou do programa de governo que apresenta – cuja principal característica é reduzir o espaço
da política do governo local à transformação da cidade em “um canteiro de obras, onde o
curitibano colhe qualidade de vida” –, mas a apoiar-se na estratégia de fazer desacreditar o
discurso de seus oponentes, valendo-se de procedimentos de exclusão.
Passa a estabelecer táticas de guerra no marketing político, obedecendo ao
princípio de que “cada vez mais as campanhas de marketing (passam a ser) planejadas
como campanhas militares (...) Talvez marketing seja guerra, onde a concorrência é o
inimigo e o objetivo é ganhar a batalha.” (RIES e TROUT, 1986, p.5) Na busca de satanizar
a imagem dos concorrentes, foram criadas peças publicitárias que recorreram a poderosos
símbolos que, povoam o imaginário do eleitor, no que se refere ao “medo da esquerda
política”. Num comercial do candidato do PFL, uma bandeira branca se transforma em
vermelha à medida que se fala em off: Nos últimos quatro anos, Curitiba viveu em paz. Atraiu investimentos, progrediu. Tornou-se humana e justa. Sem greves, sem tumultos, sem agitações. Você sabe como isto é importante. Agora imagine Curitiba dominada pela agressão, pela intolerância, pelo radicalismo político. Os curitibanos amam Curitiba e vão protegê-la (a última frase aparece em texto na tela para reforço da voz).
Outra peça emblemática foi criada para reforçar a resistência a modalidades de
ampliação dos canais de participação dos segmentos não-estatais na definição de políticas
públicas. A propaganda ironizava a democracia direta por meio da imagem de um ônibus
urbano, cujo trajeto só seria definido após uma assembléia entre os passageiros. Os
estereótipos, particularmente contrários à idéia do orçamento participativo, foram bem
explorados – confusão, conflitos, perda de tempo – e, apesar do estilo debochado da
situação inusitada, a peça reproduziu, com sucesso, a idéia hegemônica que a maioria da
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população tem dos canais de democracia direta. Cabe destacar que o Estado brasileiro
sempre se caracterizou por exacerbado centralismo. Essa condição se reflete diretamente
na cultura política, ocasionando, inclusive uma grande relutância nos mais diferenciados
setores da sociedade civil em aceitar proposições de experiências de democracia direta,
como exemplifica a propaganda da candidatura do PFL.
Já no primeiro turno, alguns candidatos dirigiram peças curtas, e de forte poder de
penetração, na desconstrução do candidato oficial. O PMDB se valeu do território da crítica
política identificando o candidato da situação com um grupo político ora envolvido em toda
sorte de denúncias sobre corrupção. Com inserções curtas, relaciona-o com seus aliados
em metáforas e comparações: “Política como um jogo de cartas marcadas” (e sucedem, nas
cartas de baralho, as fotos de seus aliados), “Tango” (ao som do tango Amigos, dançam
seus aliados), ou “É tudo caranguejo do mesmo barco”.13
Como resposta, o programa de Cassio Taniguchi mostra os elos dos opositores14
com o MST, no íntimo ato de tomar chimarrão, durante acampamento ocorrido em frente ao
Palácio Iguaçu, e questionam o tom leve de suas campanhas: “A população de Curitiba
precisa saber: afinal o que mudou? Mudou o MST? Mudaram estes políticos?”
O PSTU também adentra contundentemente o território da crítica política aos
governantes, sendo alvo de suspensões contínuas de sua participação no horário político
eleitoral, determinadas como direito de resposta a acusações nominais.
Esses discursos causaram forte impacto em um eleitor que, em diversas pesquisas
de opinião se posiciona contrário a candidatos que apresentam críticas duras, sejam
denúncias de cunho político ou pessoal, a outros candidatos. Portanto, é compreensível
que, do ponto de vista do marketing político, a maioria dos candidatos tenha evitado o
antagonismo, intrínseco ao campo da política, e procurado o território confortável da imagem
do “gestor equilibrado com competência técnica”.
Na campanha pelo segundo turno, quando as candidaturas apresentam nítida
polaridade, o ponto de partida do candidato Ângelo Vanhoni foi o esgotamento do modelo.
Segundo idealizadores dos programas, pretendeu-se uma contraposição no tratamento
puramente material do candidato Cassio Taniguchi: “contra o número de quilômetros de ruas
asfaltadas, o foco, o conceito era ‘gente’” (CESCATTO, 2002; TAMBLING, 2002). Outra
percepção é que o antagonismo criado no primeiro turno entre o “discurso dos vitoriosos” –
oficial, pautado no modelo e atrativo à classe média – e o “discurso dos ressentidos” –
revelador da pobreza, brutal, mas sem considerar os sonhos das classes menos favorecidas
13 Sobre esse aspecto, é curioso notar que o discurso do candidato à reeleição se esquiva de qualquer identificação com o governo federal, do qual seu partido político compõe uma das bases fundamentais, e mesmo estadual, ou de qualquer referência aos problemas sociais, econômicos ou éticos do país. 14 Nesse caso específico, o deputado estadual Ângelo Vanhoni, do PT, e o deputado estadual Caíto Quintana, do PMDB.
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– era contraproducente, pois “as pessoas em Curitiba não gostam do confronto aberto.
Porém esse era o jogo pretendido pela equipe adversária. Mas o PT não entrou nesse jogo.”
(CESCATTO, 2002) A opção foi manter o discurso alternativo, articulador dos pólos da
sociedade, estabelecendo um enfrentamento, mas sem agressão.
À medida que crescia a intenção de voto no candidato da oposição, o aparato de
guerra empregado pela situação foi se ampliando e tomando espaços: rádio, televisão,
imprensa, debates, panfletos apócrifos, pessoas contratadas circulando como transeuntes
anônimos nas ruas e ônibus, repassando falas decoradas. “Atinge os limites da ética quando
explora a imagem do adversário, em sua condição de deficiente físico, sobre muletas.”
(CESCATTO, 2002)
Às estratégias usadas, Ângelo Vanhoni reagiu inicialmente com ponderação, dando
continuidade à apresentação de suas propostas,15 a despeito da pressão oriunda da
militância petista que “queria exorcizar a ira” no programa (CESCATTO, 2002). Porém, a
quatro dias do pleito final, o candidato pronuncia o mais duro discurso desde que iniciou a
campanha: O grupo que está no poder há tanto tempo em Curitiba assustou-se. E o medo fez cair a sua máscara. De repente, no segundo turno, o clima da campanha foi alterado com cenas de violência e boataria, ameaças e armações. Ao mesmo tempo que o candidato do PFL mantinha de maneira hipócrita uma linha comportada na televisão, apresentava edições falsas e maldosas dos debates. Enquanto isso, baixava radicalmente o nível no rádio, nas ações de rua. (...) Até agora tive que conter toda a ordem de denúncia contra a vida pessoal e política dos senhores. Impedi que denúncias que os senhores conhecem muito bem penetrassem o ambiente eleitoral, até em respeito à família de nós, curitibanos. (...) Essa baixaria que eles estão promovendo prova que eles não querem o melhor para a nossa cidade. Que não estão preparados para o debate democrático de idéias. Que eles não querem que as pessoas exerçam o seu direito de cidadania. Mas você, curitibano, merece exercer esse direito. Porque você é cidadão. E cá entre nós, é você com seu trabalho que faz a cidade. E você tinha que saber o que está acontecendo.
Nem a pressão direta, ou a campanha veiculada nos derradeiros programas de
Cassio Taniguchi alteraram os resultados das pesquisas de intenção de voto, que
continuaram desfavoráveis à situação. No dia da votação, a cidade amanheceu “fardada de
azul” (cor das camisetas usadas pela equipe do PFL), e uma verdadeira “carga de exército”,
uma “organização de guerra” completou a intimidação (CESCATTO, 2002). Mesmo assim,
sua vitória no turno final se deu pela pequena margem de 2% de votos, oriundos de pouco
mais que 25 mil eleitores.
Independente do resultado das urnas, o antagonismo, a pluralidade de posições e
os comportamentos peculiares entre os candidatos permitiram que fosse instaurado um
15 Convém destacar que em seu discurso frases como “não se preocupe”, “pode ficar tranqüilo”, “não dê ouvidos às intrigas e boatos” foram amplamente utilizadas. Evidências do poder exercido pelos mecanismos de exclusão do candidato oponente.
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debate que, no conjunto, acabou por fazer uma leitura crítica do consenso sobre a eficácia
do modelo-Curitiba. Esse modelo foi preservado em propostas que, apesar de admitirem
mudanças em seu conteúdo, persistem aprisionadas em suas intenções globalizantes.
Reservadas as diferenças de visão de política urbana no interior do discurso da
oposição, de modo geral explicita-se uma nova concepção do espaço da cidade, onde a
mesma é vista como arena “onde se defrontam interesses diferenciados em luta pela
apropriação de benefícios em termos de rendas e ganhos gerados pela ocupação do solo da
cidade” (RIBEIRO, 1994, p.262). O discurso da oposição deixou textual a urgência de
políticas públicas de cunho social que venham a dar conta das demandas desatendidas que
ameaçam a “qualidade de vida” do pólo metropolitano, especialmente no tocante à
contenção da violência urbana. Seu discurso também destacou a necessidade da
participação cidadã, não aquela do mero espectador que referenda decisões que lhes são
impostas, mas a do verdadeiro cidadão, com livre direito à reflexão e à crítica, despertando
compromissos e responsabilidades. E, o mais importante, reportou-se à premência da lisura
administrativa, da probidade e da transparência na gestão pública. Cabe considerar, que
todos os elementos destacados fazem parte de matriz discursiva, em evidência no discurso
político contemporâneo, e que, por sua vez, são impactantes por derivarem do “imaginário
social” do eleitorado.
O poder do discurso da globalização se evidencia no fato de ter perpassado pela
superfície da construção discursiva da totalidade dos candidatos. No entanto, o debate
político acerca da idéia hegemônica de cidade-modelo suscitou consideráveis rupturas na
construção virtual que a sustenta, e evidenciou que, ao menos no âmbito do eleitor, o
pensamento sobre a cidade já não é tão único.16
Tempos depois... Passados quatro anos, o jogo da correlação de forças políticas locais, bastante
influenciado pela prática administrativa exercida pelo governo federal, então petista,
recoloca no segundo turno da eleição municipal de Curitiba os mesmos grupos: a situação,
representada pelo vice-prefeito de Cassio Taniguchi (Beto Richa), que numa estratégia
eleitoral se manifesta crítico e opositor à administração que representa, e novamente Ângelo
Vanhoni, do PT, apoiado pelos governos estadual e federal.
16 Esta conclusão ampara-se também na mudança constatada na composição da Câmara dos Vereadores na última legislatura. Considerando, dentre os componentes da câmara municipal, como partidos de oposição o PT e o PMDB, essas bancadas se mantiveram com sete vereadores eleitos tanto em 1992 quanto em 1996 (três do PT e quatro do PMDB, e esse, com a ressalva de que parte de seus integrantes votaram projetos com a base governista); nas eleições de 2000, embora o PMDB tenha reduzido sua bancada para três vereadores, o PT elege seis candidatos, dobrando sua bancada, e o PDT, antiga base governista, explicita oposição ao governo, ampliando a frente oposicionista para 11 vereadores.
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Do ponto de vista do marketing político a construção do candidato Beto Richa
explora a sua juventude, a condição de engenheiro e de filho de político paranaense
proeminente e bem conceituado pela população – José Richa. Já nas peças veiculadas no
Horário Eleitoral Gratuito a inovação é o “protagonismo da população”. Toda a estratégia de
campanha baseia-se em visitas a todas as regionais e encontros com moradores,
especialmente agendados para a filmagem. Nesses encontros o candidato conversa com os
participantes e procura demonstrar a sua capacidade de comunicação e interesse em
resolver os problemas decorrentes da desigualdade socioambiental, imposta pelo modelo, à
população carente.
A resposta da sociedade curitibana foi de repúdio à mudança, tanto no executivo
quanto no parlamento. A vitória da situação, estendendo o projeto do grupo dominante por
mais quatro anos, reforça o alcance capilar da estratégia hegemônica, confirma o “modelo” e
aponta os ingredientes necessários à sua adequação aos novos tempos: a “capital social”
avança na direção da “cidade da gente”.
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