Goiandira, arte e areia

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Goiandira arte e areia

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Goiandiraarte e areia

© Instituto Casa Brasil de Cultura, 2008

Realização: Instituto Casa Brasil de Cultura

www.icbc.org.br

Pesquisa: Solange Franco Walkyria do Couto e Souza

Diagramação: Marcus Lisita Rotoli

Fotografia: Rui Faquini

Projeto gráfico: Genilda Alexandria

Coordenação editorial: Wolney Unes

Impressão: Gráfica e Editora Bandeirante

Fotografias: Todas as fotografias são de autoria de Ruy Faquini, exceto nas páginas 17, de 80 a 87 (do álbum de família da artista),

nas páginas 20, 21 e 23 (Wolney Unes) e na página 88 (Alois Feichtenberger).

CIP. Brasil. Catalogação - na - FonteBiblioteca Municipal Marietta Telles Machado

U445g Goiandira : arte e areia / Wolney Unes (organizador) Goiânia : ICBC, 2008. 88p. : il. color. ; 24,5 x 26,5 cm.

ISBN: 859876231-8

1. Couto, Goiandira do – pintora. 2. Pintura – catálogo. I. Unes, Wolney. II. Título.

2008 – 34 CDU: 75Goiandira 75:017

Proibida a reprodução total ou parcial (sansões previstas na Lei 9.610 de 20 de junho de 1998)Impresso no Brasil – 2008 – Printed in Brasil

Goiandiraarte e areia

Goiânia, 2008

Apresentação

A vida é boa, nós todos podemos fazê-la sempre melhor e o melhor da vida é o trabalho. É o que faz você, operária nobre da Arte, dando voz às areias perdidas da Serra Dourada, hoje supervalorizadas no seu Engenho e Arte.

Pelas suas mãos artistas e dedos privilegiados você manda no seu poder artístico o nome da nossa velha Goiás aos recantos mais longínquos da terra.

Goiás a saúda e eu com amor assino esta página num cântico de gratidão pelo que és dentro e fora das pedras da nossa cidade.

Cora CoralinaCidade de Goiás, 1985

Goiandira do Couto pinta com extrema sensibilidade na ponta dos dedos, os seus quadros de areia muito peculiares. O método por ela desenvolvido é certamente um regresso à natureza. As obras que Goiandira do Couto fez, deste modo, sugerem um singular sentimento. As finas partículas de areia refletem a luz e brilham; o ouro brilha verdadeiramente como ouro, e as tonalidades mais suaves combinadas por sua mão de artista, em perfeita composição, são verdadeiros deleites para a vista. Goiandira não tem a ambição de ganhar glória como a artista moderna, com suas obras sensacionais. Ela se conten-ta em demonstrar as belezas de sua terra, sempre com aspectos novos, no seu modo de ver e trabalhar. Que ela alcançou suces-so com sua arte peculiar, demonstra a grande procura de suas obras. Ela já tem convite para expor seus quadros em salões do Rio, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Porto Alegre. Para o exterior, já seguiram diversos de seus quadros típicos, pedidos por diplomatas de Paris e Barcelona, de Chicago e São Fran-cisco, até onde foi o eco do seu sucesso.

Alois FeitchtenbergerSão Paulo, 1968

Apresentação

A natureza nos dotou de órgãos dos sentidos. Desde o nascimento va-mos descobrindo esses sentidos, suas nuances, e é um processo que pode nos acompanhar durante toda a vida: a descoberta de um novo som, um novo timbre combinado a uma melodia desconhecida, um espaço inusitado, odores e sabores enebriantes. As possibilidades parecem ser múltiplas, infinitas.

Pelos olhos, essa descoberta se dá pela percepção de forma e luz, som-bras e contrastes, dimensões e escalas, figuras solarizadas, contornos; a lista é longa. Concentremo-nos aqui por, um instante, apenas em algumas dessas di-mensões, talvez apenas na cor. A história da descoberta das cores é longa, tão longa quanto a história de nossa própria espécie, desde as cavernas com suas paredes pintadas, desde os corpos de nossos antepassados com suas cores a de-nunciar-lhes a intenção.

Mas houve um momento, em que parecemos ter acreditado que a his-tória da descoberta da cor havia chegado a um fim, que a química tudo podia, tudo substituía. Houve um momento em que abandonamos as terras de Siena, os lápis-lázulis persas, as cochonilhas marinhas, o índigo; seus nomes sonoros sobrevivem apenas aqui e ali em antiquados nomes de cores, que se confundem com antigas fórmulas alquimistas: azul-da-prússia, vermelho-de-tiro, preto-su-dão, amarelo-úmbria, vermelho-congo ou bordeaux, tinta-da-índia, entre mui-tas outras.

Naquele momento, ali pelos anos 1950, em que dávamos a história da cores por encerrada, a química parecia ter vencido a relação telúrica entre pig-mento e terra, entre cor e região.

Mas eis que na mesma época surge no interior do Brasil, nas fraldas da majestosa Serra Dourada, um descendente daqueles pintadores de cavernas e corpos, imbuído da mesma inspiração pela apropriação estética da natureza herdada de tempos ancestrais. Em suas andanças pela paisagem serrana, entre paisagens deslumbrantes, este nosso caçador estético se depara com pigmentos naturais, aqui salpicados de mica, ali misturados a quartzitos.

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Lírios. Óleo sobre vidro, 1933

À surpresa inicial junta-se outra ainda maior: as cores esta-vam todas ali, num mesmo local! Prússia e Pérsia, Fenícia e Itália, antigos pigmentos marinhos, fluviais e serranos encontravam-se todos ali, na Serra Dourada. E seus sentidos logo se põem em ação buscando descobrir-lhes as possibilidades, imaginando-lhes uma aplicação.

Esta caçadora é Goiandira. Em suas andanças pela Serra Dourada, descobre o amarelo-serra-dourada, o marrom-cerrado, o marrom-goiás, o cinza-de-couto, o vermelho do rio, o branco das casas, o azul infinito dos céus vila-boenses. E assim, em pleno século XX, Goiandira consegue a proeza de nos mostrar que a his-tória das cores não estava terminada, que a descoberta de nossos sentidos ainda não havia chegado ao fim.

Goiandira alinha sobre uma grande mesa pequenos poti-nhos com suas centenas de pigmentos, com seu olhar treinado e afiado, espectrômetro humano. Inicialmente hesita ante sua des-coberta: sabe-lhe o valor, mas demora a vislumbrar o uso. Até que subitamente descobre o que fazer com seus potinhos de areias co-loridas e passa a nos apresentá-los: 515 pigmentos ao todo, nú-mero mágico, misterioso, que nos faz pensar na busca do sistema perfeito de caracterização e nomenclatura de cores, que tanto ocu-pou Munsell, Helmholtz ou Goethe: quantas cores existem? Em que momento um vermelho deixa de ser vermelho para se tornar laranja?

Mas isso não é tudo; juntaram-se em Goiandira do Cou-to ainda outras habilidades. Ao lado de seu olhar e de seu ímpeto descobridor, somou-se uma habilidade manual que lhe permite combinar suas centenas de pigmentos formando figuras, delinean-do sombras e explicitando contrastes. Goiandira tem a resposta a Munsell ou a Goethe: sabe exatamente quando trocar a tonalidade da areia de um potinho pelo potinho vizinho, construindo uma de-licada gradação. E assim constrói suas paisagens, suas sombras, com seus dedos pescando aqui e ali pitadas de suas areias coloridas.

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E é isto que este livro pretende registrar e mostrar: um pouco dessa personalidade de artista caçadora, da intimidade de sua relação com sua terra e da descoberta de suas areias coloridas.

Entre as várias coisas que nos impressiona nesta artista está seu estro em reviver este ímpeto primal, de descobrir a natureza e dela se aproprias. Mas Goiandira é também a flâneur contemporâ-nea, que caminha pelas ruas de sua cidade descobrindo seus becos, seus cantos esquecidos e suas perspectivas inusitadas.

Não há que procurar na obra de nossa caçadora experiên-cias formais, dimensões fantásticas ou figuras oníricas. A obra de nossa caçadora é a aplicação das cores descobertas e selecionados por ela. E nesse campo sua obra é vasta. As telas aqui retratadas representam uma pequena parcela de sua criação, mas formam um panorama de seus mais de 70 anos de trajetória artística. Buscou-se também mostrar que Goiandira é mais que suas areias: folclorista, professora, desenhista, costureira, cozinheira, mulher de mil artes, como ela mesma gosta de se definir.

Goiana de 1912, lúcida no alto de seus 93 anos, Goiandira usou sua cidade em sua arte. E com ela transformou a velha Goiás, chegando a inventar o folclore local, como mostram seus desenhos para o figurino da Procissão do Fogaréu.

Completam a reprodução de suas obras dois textos: um em que se apresentam traços biográficos da artista e outro em que se discutem característica de sua arte e técnica. Ao final apresen-tamos um resumo cronológico da trajetória da artista, com fatos marcantes, homenagens, bem como uma seleção de exposições mais importantes.

Se os caminhos da arte são a melhor forma de despertar os sentidos, a arte de Goiandira é uma amostra de como descobrir nossa terra e apropriar-se de nossa natureza. Com esta publicação, o Instituto Casa Brasil de Cultura avança mais um passo em sua missão: mostrar o Brasil, suas artes, seus criadores.

O organizador

Lírios. Óleo sobre vidro, 1933