Fernando Pessoa e António Ferro

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1 José Barreto Fernando Pessoa e António Ferro: do espírito do Orpheu à “Política do Espírito” Versão revista de uma comunicação ao II Congresso Internacional Fernando Pessoa, Casa Fernando Pessoa/Câmara Municipal de Lisboa, 23-25 de Novembro de 2010. Fernando Pessoa e o sete anos mais jovem António Ferro ligaram-se de amizade, através do amigo comum Mário de Sá-Carneiro, por volta de 1912. Pessoa tinha 24 anos e Ferro era um rapaz de 17. Em 1915, pouco depois da publicação do segundo número do Orpheu, romperam relações por razões políticas. Mais tarde reatariam contactos e cortesias (algumas raras cartas, dedicatórias em livros oferecidos), mas mantendo sempre uma grande distância entre si. Eram personalidades muito diferentes, por vezes nos antípodas um do outro: Pessoa era de espírito confessadamente “enrolado para dentro”, cerebral, elitista, misantropo e misógino, escrevendo mais por compulsão do que para a tipografia. Ferro era igualmente elitista, mas extrovertido, frívolo, charmeur, mundano, exímio na autopromoção. Nos seus percursos viriam a registar-se algumas convergências, nomeadamente no plano do pensamento político. São duas figuras, uma maior, outra menor, do modernismo português, além disso "modernistas" de feição e espírito muito diferentes. Tiveram também posteridades muito diversas: aquele que em vida mais fez falar de si, mais publicou e mais amplo público leitor conquistou e que, depois, triunfou também no campo da acção, é hoje dominantemente recordado e estudado não como escritor, mas como político construtor do mito de Salazar e chefe da propaganda do Estado Novo. Sintomático deste esquecimento do Ferro escritor modernista (modernismo que ele próprio renegaria expressamente mais tarde 1 ) é a escassez de estudos sobre a sua obra literária. A mais antiga revista cultural portuguesa, o Colóquio, não lhe dedicou um único artigo desde a sua morte, em 1956, até hoje, excepto uma curta recensão de uma reedição da sua obra 2 que, sintomaticamente também, se ficou pelo primeiro volume. Por contraste, Pessoa, em vida conhecido apenas de um círculo restrito, conquistou postumamente, sempre 1 Veja-se António Ferro, Dez Anos de Política do Espírito 1933-1943 (Lisboa: SPN, ca. 1943), p. 18. 2 J. A. França, recensão de António Ferro, Obras 1, Intervenção Modernista (Lisboa: Verbo, 1987), em Colóquio/Letras, n.º 100, Novembro de 1987, pp. 163-164.

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José Barreto

Fernando Pessoa e António Ferro: do espírito do Orpheu à “Política do Espírito”

Versão revista de uma comunicação ao II Congresso Internacional Fernando Pessoa, Casa Fernando

Pessoa/Câmara Municipal de Lisboa, 23-25 de Novembro de 2010.

Fernando Pessoa e o sete anos mais jovem António Ferro ligaram-se de

amizade, através do amigo comum Mário de Sá-Carneiro, por volta de

1912. Pessoa tinha 24 anos e Ferro era um rapaz de 17. Em 1915, pouco

depois da publicação do segundo número do Orpheu, romperam relações

por razões políticas. Mais tarde reatariam contactos e cortesias (algumas

raras cartas, dedicatórias em livros oferecidos), mas mantendo sempre uma

grande distância entre si. Eram personalidades muito diferentes, por vezes

nos antípodas um do outro: Pessoa era de espírito confessadamente

“enrolado para dentro”, cerebral, elitista, misantropo e misógino,

escrevendo mais por compulsão do que para a tipografia. Ferro era

igualmente elitista, mas extrovertido, frívolo, charmeur, mundano, exímio

na autopromoção. Nos seus percursos viriam a registar-se algumas

convergências, nomeadamente no plano do pensamento político. São duas

figuras, uma maior, outra menor, do modernismo português, além disso

"modernistas" de feição e espírito muito diferentes.

Tiveram também posteridades muito diversas: aquele que em vida mais fez

falar de si, mais publicou e mais amplo público leitor conquistou e que,

depois, triunfou também no campo da acção, é hoje dominantemente

recordado e estudado não como escritor, mas como político construtor do

mito de Salazar e chefe da propaganda do Estado Novo. Sintomático deste

esquecimento do Ferro escritor modernista (modernismo que ele próprio

renegaria expressamente mais tarde1) é a escassez de estudos sobre a sua

obra literária. A mais antiga revista cultural portuguesa, o Colóquio, não

lhe dedicou um único artigo desde a sua morte, em 1956, até hoje, excepto

uma curta recensão de uma reedição da sua obra2 – que, sintomaticamente

também, se ficou pelo primeiro volume. Por contraste, Pessoa, em vida

conhecido apenas de um círculo restrito, conquistou postumamente, sempre

1 Veja-se António Ferro, Dez Anos de Política do Espírito 1933-1943 (Lisboa: SPN, ca. 1943), p. 18.

2 J. A. França, recensão de António Ferro, Obras 1, Intervenção Modernista (Lisboa: Verbo, 1987), em

Colóquio/Letras, n.º 100, Novembro de 1987, pp. 163-164.

2

em crescendo, notoriedade e divulgação universais. Estudado sob todos os

ângulos, alvo de uma exegese incansável, Pessoa desperta hoje um

interesse e goza de um culto que em 1985, no cinquentenário da sua morte,

alguns julgavam já excessivo (que dirão esses hoje, perante o

extraordinário labor dos estudos pessoanos nos últimos 25 anos?). Em

contrapartida, os livros de prosa modernista de Ferro, todos publicados

entre 1920 e 1926, são curiosidades de uma época. Deles sobressaem a

colecção de frases e paradoxos Teoria da Indiferença e a “novela em

fragmentos” Leviana, nas quais é bem visível a inspiração dos contos e

greguerías de Ramón Gómez de la Serna.3 A esse conjunto não falta um

retardatário manifesto marinettiano (Nós, 1921), em que Ferro se

emparelha presunçosamente com D’Annunzio, Cocteau, Cendrars, Picasso

e Stravinsky e invectiva a multidão ignara, os “etcéteras da vida”. A

extrema petulância de Ferro será “moderna”, mas faz sorrir, e a sua

frivolidade e os seus paradoxos soam a oco, como o próprio o confessou

em mais de uma ocasião na idade madura.4 Da sua obra retém-se

basicamente o talento de phraseur, o colorido de alguma literatura de

magazine e, sobretudo, a actividade de repórter internacional, ofício em que

foi moderno e ousado, conseguindo “furos” jornalísticos (como a

reportagem com D’Annunzio em Fiume, em 1920, reeditada com o

narcísico título Gabriele d’Annunzio e Eu) e entrevistas com numerosas

celebridades europeias. Ferro entraria para a história como construtor da

imagem de Salazar e como encenador e animador cultural do Estado Novo,

depois de se ter desembaraçado do incómodo rótulo de modernista, que

cheirava a irreverência iconoclasta, a demo-liberalismo e a 1.ª República,

para se auto-atribuir o epíteto de vanguardista, mais consentâneo com o

espírito dos regimes autoritários.5

Jovens republicanos, Pessoa e Ferro tornaram-se ambos na maturidade

crescentemente críticos da República. Foram sucessivamente admiradores

do presidente Sidónio Pais, nacionalistas e antidemocráticos no pós-

sidonismo, defensores da Ditadura Militar após o 28 de Maio de 1926.

Eram os dois de compleição cosmopolita e gosto europeu, o que os

distinguia do quadrante nacionalista dominante, que era chauvinista,

tradicionalista e católico e que, em matéria literária, favorecia o

regionalismo e o naturalismo. Diversos textos conhecidos de Pessoa e Ferro 3 Vd. o estudo pioneiro de Antonio Sáez Delgado, “Ramón Gómez de la Serna, António Ferro y la

greguería”, Península – Revista de Estudos Ibéricos (4) 2007, pp. 195-202.

4 Veja-se especialmente o prefácio do autor a António Ferro, D. Manuel II, o Desventurado (Lisboa:

Bertrand, 1954), pp. 17-18, 23-24 e 34-35.

5 Vd. “Política do Espírito e sua definição” (discurso de 21 de Fevereiro de 1935), inserto em António

Ferro, Prémios Literários 1934-1947 (Lisboa: SNI, 1950), pp. 17-36, e o discurso Dez Anos de Política

do Espírito 1933-1943, op.cit., pp. 17-18.

3

defendiam, na política como na arte, um nacionalismo anti-passadista e

cosmopolita que realizasse uma síntese das influências civilizacionais

externas. A alma portuguesa não devia ser “limitada pela nacionalidade”,

escreveu Pessoa: “É preciso ter a alma na Europa”.6 Num texto inglês de

1914 sobre a moderna literatura portuguesa, Pessoa afirmava:

(...) não caímos na estreiteza de movimentos regionalistas e outros que tais. (...)

Não somos portugueses escrevendo para portugueses (...) Somos portugueses

escrevendo para a Europa, para a civilização inteira; nada somos por enquanto,

mas isto mesmo que estamos agora a fazer será um dia universalmente conhecido

e reconhecido.7

Ferro, por seu turno, sempre ocupado na importação do bom gosto dos

boulevards parisienses, defendia em 1921, numa crítica ao “regionalismo

estreito” da obra de Almeida Garrett: “para se fazer arte nacional (...) não é

necessário falar de Portugal, basta ser actual, basta encontrar a rítmica da

Hora, da Hora da raça”, e acrescentava: “A minha arte é portuguesa, bem

portuguesa, mas veste de Paris...”8 Pessoa e Ferro, nacionalistas

cosmopolitas, acreditavam na europeização de Portugal em todos os

domínios e num futuro em que o país faria falar de si, mostrando outra vez

novos caminhos ao mundo.

Da Grande Guerra até finais dos anos 20, Pessoa e Ferro trilharam

caminhos políticos por vezes próximos, para depois entrarem num processo

de crescente divergência. Pessoa evoluiria para um conservadorismo

nacionalista mas liberal, preocupado com a crescente ameaça do Estado aos

direitos do indivíduo e com a crescente influência da Igreja católica em

Portugal, olhando a vida política atentamente, mas de longe e com

cepticismo, enquanto Ferro, defensor dos regimes de autoridade e grande

admirador do fascismo italiano, buscaria activamente o poder e se tornaria

no propagandista da ditadura de Salazar – fazendo com que Pessoa

privadamente lhe inventasse o epíteto de “São Paulo do Estado Novo”, uma

alusão ao facto da saída de Ferro das hostes do republicanismo democrático

para se tornar no grande arauto da boa nova salazarista.9

6 BNP/E3, 133G-80

v, manuscrito de 1916 ou anterior, publicado pela primeira vez em Pessoa Inédito,

coord. Teresa Rita Lopes (Lisboa: Livros Horizonte, 1993), p. 314

7 Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, org. Georg R. Lind e Jacinto P. Coelho

(Lisboa: Ática, 1966), p. 119.

8 António Ferro, “O maior pecado da Arte de Garrett”, Diário de Lisboa, 23 de Maio de 1921, p. 4. Em

contrapartida, ele, Ferro, sempre petulante, não teria precisado de ir a Paris para a sua arte vir de lá: “Eu

ouvi Paris antes de o ver”.

9 Francisco Peixoto Bourbon, “Evocando Fernando Pessoa - XIV”, Eco de Estremoz, n.º3596, 3 de

Março de 1973, pp. 1 e 4.

4

Pioneiro, sob o salazarismo, do desenvolvimento do mecenato de Estado,

António Ferro é considerado por um historiador como o grande obreiro,

nos anos 30-40, da “domesticação” e “normalização” do modernismo e

como o autor de “um dos mais refinados discursos antimodernos”.10

Outros

preferem ver nele o criador de um “modernismo oficial”, de um

modernismo de Estado (embora de um Estado reaccionário), lembrando

José-Augusto França a defesa corajosa que Ferro fez da arte e dos artistas

plásticos modernos contra o “provincianismo oitocentesco que sobrevivia

nos gostos dos outros responsáveis governamentais”11

– acção que não teve

aliás paralelo, por motivos óbvios, na defesa da literatura portuguesa mais

avançada. Enfim, o panegirista de Ferro, António Quadros, apontou nele o

“fiel depositário” dos “ideais estéticos” do modernismo e o grande

“realizador prático”, sob o Estado Novo, do alegado “pensamento

profundo” do Orpheu. 12

Quadros chegou mesmo a sustentar que a

“Política do Espírito” do Estado Novo, formulada por Ferro, teria sido a

“política cultural preconizada pelo movimento do Orpheu”, ou, por outras

palavras, a “tradução do espírito do Orpheu em termos de acção

institucional e política”.13

Um autor independente, ainda que benévolo para

com Ferro, Artur Portela Filho, marca também no Orpheu a “origem” da

chamada “Política do Espírito” instaurada pelo chefe da propaganda

salazarista, embora pense que Ferro não podia ser absolutamente fiel às

ideias do grupo modernista, porque elas eram de vária natureza.14

Entre

opiniões tão díspares, alguém deve estar certamente equivocado.

O que se convencionou chamar modernismo português e cujo início se data

do lançamento da revista Orpheu foi uma vaga (ou uma maré, com duas ou

três vagas distintas) de literatura e arte em ruptura com o passado, embora

com ligações confessadas a experiências e movimentos anteriores, como o

simbolismo. Feixe de tendências estéticas e sensibilidades variadas,

movimento caracterizado pela inovação e pelo ecletismo, inclusive na

desigual relação com o passado e a tradição, o modernismo português

propunha-se romper com o marasmo literário e artístico que se arrastava

10

Nuno Rosmaninho, “António Ferro e a propaganda nacional antimoderna” em Luís Reis Torgal e

Heloísa Paulo, Estados Autoritários e Totalitários e Suas Representações (Coimbra: IU, 2008), pp. 289-

299.

11

José-Augusto França, O Modernismo na Arte Portuguesa (Lisboa: ICALP, 3.ª ed. 1991), pp. 99-105.

12

António Quadros, prefácio a António Ferro, Saudades de Mim (Lisboa: Bertrand, 1957), pp. 9-38, e o

capítulo sobre Ferro em António Quadros, O Primeiro Modernismo Português: Vanguarda e Tradição

(Lisboa: Europa-América, 1989), pp. 317-34.

13

A. Quadros, prefácio a António Ferro, Saudades de Mim, op. cit., pp. 17 e 28.

14

Artur Portela Filho, Salazarismo e Artes Plásticas (Lisboa: ICALP, 2.ª ed. 1987), pp. 57-58.

5

desde finais do século XIX. Foi também, como disse José-Augusto França,

referindo-se em especial à gente do Orpheu, uma tentativa de “reforma da

mentalidade urbana”.15

Como vaga de contestação e inovação, o

modernismo não podia deixar de ter alguns aspectos políticos, como

reacção da nova geração contra a “decadência nacional” e a

“desnacionalização”, apontadas estas tanto no constitucionalismo

monárquico como no republicanismo democrático, entre os quais Pessoa

via mais continuidade do que ruptura.16

O historiador Manuel Villaverde

Cabral assinala no modernismo português uma força desestabilizadora da

1.ª República, cuja “legitimidade cultural” teria sido “minada” por

modernistas e futuristas – e cita os nomes de Pessoa e Ferro, que assim

teriam contribuído, directa ou indirectamente, para a destruição do regime

republicano e para o advento do regime autoritário que lhe sucedeu.17

Necessário é porém constatar-se, desde logo, que o modernismo nasceu e

cresceu na 1.ª República (ainda que, por vezes, contra ela), em ambiente de

forte instabilidade política, mas de relativa liberdade de expressão e

agitação criativa. Num texto em francês escrito por volta de 1915, Pessoa

descreve o “renascimento literário” operado em Portugal nos primeiros

tempos da República, resultado, segundo ele, não da inexistente protecção

das artes e das letras pelo poder político republicano – inexistência “que

nada prova contra ela” (a República), segundo nota Pessoa −, mas devido

sim ao “fermento de vida e de esperança” e à “agitação fecunda”

provocados nas mentes pela revolução republicana.18

Pessoa e Ferro, como disse, ocuparam lugares muito diferentes no

movimento modernista. Fernando Pessoa foi, como lhe chamou o próprio

Ferro, “o grande filósofo do espírito novo”.19

Foi a figura emblemática do

movimento e um dos seus grandes criadores, com Sá-Carneiro, Santa-Rita

e Almada Negreiros. Pelo contrário, António Ferro, no dizer de José-

Augusto França, foi quem trouxe ao modernismo português “uma

dimensão em certa medida mundana, algo superficial e banalizadora”,

faceta que, na opinião do historiador, importaria também considerar na

15

José-Augusto França, recensão de António Ferro, Obras 1, Intervenção Modernista, op. cit.

16

Esta visão de Pessoa aparece já claramente expressa em Maio de 1912, no artigo “Reincidindo” (A

Águia, 2.ª série, n.º5), em que também profetiza a vinda do “homem de força” que porá fim à decadência

e à desnacionalização, colocando Portugal no caminho de um futuro glorioso.

17

Manuel Villaverde Cabral, “A estética do nacionalismo: modernismo literário e autoritarismo político

em Portugal no início do séc. XX”, em Nuno S. Teixeira e António C. Pinto, A Primeira República

Portuguesa – Entre o Liberalismo e o Autoritarismo, (Lisboa: Colibri, 1999), pp. 193 e 196.

18

“Les premières années de la République portugaise...”, BNP/E3, 55E-59, inédito publicado por

Jerónimo Pizarro em Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos (Lisboa: INCM, 2009), pp. 51-52.

19

António Ferro, “Alguns precursores”, O Notícias Ilustrado, 24 de Fevereiro de 1929.

6

literatura modernista. Para Almada Negreiros, em 1930, e, na sua senda,

José-Augusto França, o modernismo português hesitou, nas artes como na

literatura, entre uma “maneira de ser” e uma “maneira de fazer” ou “de

vestir”, melhor dito, entre um “modo” e uma “moda”.20

O modernismo na

variante mundana, como maneira de vestir ou moda, parece aplicar-se

claramente ao caso de António Ferro. Segundo o mesmo França, apreciador

benévolo do talento de Ferro, este teria sido, do grupo em torno do Orpheu,

“aquele que mais perto esteve do público lepidóptero”. Este foi o termo

depreciativo que Sá-Carneiro cunhou e Pessoa e Almada usaram para

caracterizar o meio literário reinante e o público burguês que o Orpheu

expressamente quis chocar. A confirmar esta proximidade de Ferro ao

público lepidóptero, já em 1929 o literato monárquico e católico João

Ameal, no seu “Inquérito aos escritores portugueses”, tinha designado

António Ferro como o “autorizado e legítimo representante da nova

geração” literária, isto é, do “modernismo legítimo” − omitindo no seu

inventário nomes como os de Fernando Pessoa ou José Régio, assim

aparentemente remetidos para um modernismo ilegítimo.21

Antes disso,

num artigo de 1922, tinha sido Ferro a enaltecer o suposto “modernismo”

das ignotas novelas de Ameal, elogio que o jornalista literário Ferro nunca

fez publicamente a propósito da obra poética de Fernando Pessoa. Vários

outros contribuíram para este incensamento do Ferro modernista, como o

escritor Valéry Larbaud que, em visita a Lisboa em 1926, o considerou −

certamente por amizade e, talvez, por ignorância − como “o chefe da avant-

garde literária de Portugal”.22

Quando, hoje como ontem, se apresenta António Ferro como um destacado

modernista, invariavelmente se alega à cabeça o seu papel de editor do

Orpheu. António Quadros foi ao ponto de afirmar, contra toda a evidência,

que Ferro teria sido “um dos seus mais activos e talentosos elementos”.23

O

próprio Ferro se tinha encarregado de reavivar periodicamente esse mal-

entendido em torno da sua função de "editor" do Orpheu. Literalmente

verdadeiro, o facto é totalmente equívoco e desadequado do fim em vista.

Como é sabido, o jovem Ferro foi designado, sem prévia consulta do

próprio, pelo seu amigo Sá-Carneiro para figurar como editor responsável

no cabeçalho da revista. A razão apresentada a um Fernando Pessoa

perplexo com esta escolha foi a de Ferro ser ainda menor − logo,

20

José-Augusto França, O Modernismo na Arte Portuguesa, op. cit., p. 101.

21

José-Augusto França, Os Anos Vinte em Portugal (Lisboa: Presença, 1992), p. 128.

22

A frase de Larbaud é citada pelo próprio Ferro, com a sua habitual imodéstia, no “Estudo crítico” a

anteceder a 4.ª edição de Leviana (1929), p. 27.

23

António Quadros, prefácio a António Ferro, Saudades de Mim, op. cit., p. 15.

7

irresponsável – e de essa ilegalidade ser sedutora para Sá-Carneiro.24

O

facto de ter sido em jovem das relações de Pessoa e Sá-Carneiro e de estes

lhe terem adornado um livro adolescente de quadras ao gosto popular

(Missal de Trovas, de 1914, em co-autoria com Augusto Cunha) com

considerações meramente amistosas não faz de Ferro um escritor

modernista nesse período (também Júlio Dantas, Augusto Gil e Afonso

Lopes Vieira incluíram elogios seus nesse livro). Sabemos que Pessoa

conhecia os poemas e peças de teatro do jovem amigo, sobre os quais

piedosamente guardou silêncio. Ferro não contribuiu com qualquer trabalho

para os números publicados do Orpheu e − contrariamente ao que afirmou

António Quadros25

− o seu nome não constava dos projectos de

continuação da revista em 1915-17, como não constava em 1925, quando

Pessoa planeava uma segunda fase da revista.26

A sua única contribuição

para o Orpheu de que há registo está numa nota do espólio de Pessoa que

diz ter Ferro angariado algumas assinaturas para a revista.27

Meses antes do

aparecimento do Orpheu, em carta a Côrtes-Rodrigues de 4 de Outubro de

1914, Pessoa informava ter decidido não incluir Ferro numa projectada

antologia poética do interseccionismo, por ele ser “ainda muito criança,

social e paulicamente”. Lendo os poemas que Ferro publicou por conta

própria entre 1913 e 1916, constata-se facilmente o abismo que o separava

dos colaboradores do Orpheu.28

Além da fraca opinião sobre os méritos

literários do jovem Ferro, os poetas do Orpheu também não tinham uma

excelente opinião pessoal sobre ele. “Menino idiota” e “estuporinho” é

como o seu amigo Mário de Sá-Carneiro se refere a António Ferro numa

carta a Fernando Pessoa de 2 de Dezembro de 1914.29

Ferro pertenceu

claramente ao grupo daqueles que Pessoa descreveu retrospectivamente,

num texto dos anos 20, como tendo sido “simples espectadores próximos

ou amigos [da revista], e sem que nela influíssem ou colaborassem.”30

Enfim, numa curta nota manuscrita, ainda inédita, do espólio de Pessoa

pode ler-se isto, que, no seu laconismo, parece significativo:

24

Sobre este episódio, ver Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., pp. 87-91, que

reproduz dois textos pós-1922 de Pessoa, publicados pela primeira vez por François Castex na revista

Colóquio n.º 48, Abril de 1968, pp. 59-61, com a história da revista e do grupo do Orpheu.

25

António Quadros, prefácio a António Ferro, Saudades de Mim, op. cit., p. 14.

26

Ver Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., pp. 25, 79-85 e 91-92.

27

Idem, p. 38.

28

Ernesto Castro Leal, António Ferro: Espaço Político e Imaginário Social (1918-1932) (Lisboa:

Cosmos, 1994), pp. 189-196

29

Mário de Sá-Carneiro, Correspondência com Fernando Pessoa, ed. Teresa S. Cunha (Lisboa: Relógio

de Água, 2003), vol. II, p. 29.

30

Texto de Pessoa publicado por François Castex na revista Colóquio n.º 48, pp. 59-60.

8

(Orpheu – Ferro)

O riso impossibilita-me de falar e portanto de protestar.31

O “Ferro do Orpheu” é simplesmente um mito, resistente, mas sem

conteúdo real. A obra modernista de Ferro, cujo valor estético não se

pretende aqui avaliar, surge só nos anos 20, tardiamente em relação aos

pioneiros e com características muito diversas. Sobre ela Pessoa dirá, como

adiante veremos, que frustrou a “promessa de qualidades” do jovem Ferro.

De resto, a proximidade de Ferro com Pessoa terminou abruptamente em

1915, ano do Orpheu, na sequência de um episódio que deixou para sempre

uma marca no seu relacionamento. Trata-se do caso da conhecida carta de

Pessoa/Álvaro de Campos ao jornal A Capital, em 6 de Julho de 1915,

reagindo aos sucessivos ataques da imprensa republicana contra os “poetas

de manicómio” e os “artistas de Rilhafoles” do Orpheu e, em particular, a

um artigo saído na Capital da véspera, intitulado “Gente para tudo”.32

Nessa carta Álvaro de Campos parecia regozijar-se por um grave acidente

sofrido por Afonso Costa, que ainda se encontrava no hospital. Os

membros do grupo do Orpheu demarcaram-se publicamente, como é

sabido, da atitude indecorosa de Pessoa, incluindo Sá-Carneiro, Almada

Negreiros e Côrtes-Rodrigues, mas só com Ferro houve simultaneamente

corte de relações.33

Numa carta enviada por Ferro e Alfredo Guisado ao

jornal republicano O Mundo, órgão do Partido Democrático, os subscritores

mostram-se indignados com a atitude de Pessoa, declaram a “maior

admiração” pela “alta personalidade do Sr. Dr. Afonso Costa”, de quem se

afirmam “correligionários de sempre”, e Ferro declara ainda abandonar de

imediato a responsabilidade de editor da revista, como Guisado deixara a

de colaborador logo após o primeiro número. O caso terminaria com um

incidente: a tentativa gorada de elementos da Formiga Branca de dar uma

tareia em Fernando Pessoa no Rossio, que o próprio Pessoa descreveu

como uma tentativa de linchamento. Segundo confidenciou mais tarde a

Francisco Peixoto Bourbon, um jovem membro da tertúlia do Café

Montanha, Pessoa terá ficado convencido de que Ferro não fora totalmente

alheio ao incidente.34

O mesmo Peixoto Bourbon, que só conheceu o poeta

a partir de 1927, sustenta que entre os ódios de estimação de Fernando

Pessoa estaria António Ferro, além do escritor lepidóptero e director do

31

BNP/E3, 87-37r.

32

Sobre o episódio, ver Nuno Júdice, Na Era do “Orpheu” (Lisboa: Teorema, 1986), pp. 101 e segs.

33

Francisco Peixoto Bourbon, “Evocando Fernando Pessoa”, Ecos de Estremoz, 3.III.1973, p. 4.

34

Idem.

9

Diário de Lisboa, Joaquim Manso, e de Pedro Teotónio Pereira, que em

1923, à frente dos estudantes católicos de Lisboa, protagonizou a campanha

de moralização contra a literatura “dissolvente”, principalmente a editada

pela Olisipo.

Diga-se que o Orpheu, enquanto grupo de escritores e artistas, não tinha

“ideias” próprias, não as expôs em nenhum manifesto ou documento

colectivo, não possuía uma linha estética precisa, muito menos uma linha

filosófica ou política − nem absolutamente nada que se parecesse com um

programa ou uma “política cultural”. São aliás conhecidas as dissensões

internas durante a curta e acidentada vida da revista. Numa declaração de

1915, redigida por Pessoa, destinada a ser assinada também por Sá-

Carneiro, negava-se que os elementos do grupo tivessem uma escola, uma

identidade ou um ideário colectivos:

Os artistas do Orpheu pertencem cada um à escola da sua individualidade própria,

não lhes cabendo portanto [...] designação alguma colectiva. As designações

colectivas só pertencem aos sindicatos, aos agrupamentos com uma ideia só (que

é sempre nenhuma).35

Se havia características comuns que Pessoa reclamava em 1915 para o

grupo do Orpheu, elas eram unicamente a “absoluta originalidade” e o

“cosmopolitismo” ou “internacionalismo”.36

O jovem Ferro, voluntariamente afastado do grupo em 1915, foi depois

estranho às publicações que surgiram no rasto do Orpheu e, de certo modo,

continuaram a sua linha inovadora, como as revistas Centauro, em 1916, e

Portugal Futurista, em 1917, a que Almada e Pessoa estiveram ligados,

embora tenha colaborado com uma poesia no número único de Exílio

(1916). Bem pelo contrário, na sua estreia como colunista do jornal O

Século, em 1918, António Ferro fez questão de troçar dos poetas do Café

Martinho, então poiso obrigatório de modernistas, futuristas e também de

Pessoa. Ferro fazia aí alusões que pareciam visar o poeta dos heterónimos e

da “Ode Triunfal”, bem como a revista Portugal Futurista, publicada

meses antes. Nesse longo artigo, em que não há uma palavra positiva sobre

os poetas da sua geração, mas apenas menosprezo e troça, diz Ferro:

Os poetas do Martinho! A sua Arte é um constante Carnaval... Andam todos

mascarados, com receio que não lhes dêem pela falta de talento... [...] E os que

posam de futuristas, que cantam a força, as máquinas, o Progresso, e andam para

aí a apodrecer pelas esquinas?!... [...] Os poetas da minha geração! Pobres cegos

35

Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., p. 69.

36

Idem, p. 49.

10

de estrada a lamuriar elogios... Tenham paciência, tenham paciência, não pode

ser.37

Refira-se num parêntese que, muito mais tarde, em 1932, quando se

candidatava já a um cargo na Ditadura, Ferro voltaria, em nome do “bom

gosto”, a atacar o futurismo, o “futurismo barato” e “pelintra”, que apelida

então de “falso vanguardismo” e descreve como “o futurismo dos borrões

vermelhos, dos triângulos pendurados e do delírio verbal...” E remata:

“Que não nos obriguem a ter saudades, por amor de Deus, do crochet das

nossas avós...”38

O bom futurismo era para ele, então, o do sexagenário

Marinetti, colocado já por Mussolini na Academia de Itália, reconciliado

com o que atacara antes, inclusive o academismo, e que, por isso mesmo,

foi em 1929 alvo do sarcasmo de Álvaro de Campos no poema “Marinetti

académico”, que Pessoa deixou inédito. Ferro trouxe em 1932 o eminente

académico fascista a Portugal, onde foi recebido também por Júlio Dantas.

Num furibundo artigo de jornal, Almada Negreiros não poupou Marinetti,

que, esquecendo os verdadeiros futuristas portugueses dos tempos heróicos,

viera a Lisboa de casaca acamaradar com os “putrefactos”, os “arranjistas”,

os “botas-de-elástico”, “os inimigos figadais do futurismo”, nomeando o

académico Júlio Dantas e o “mundano” António Ferro, acusando este de

“habilidades” de autopromoção e de ter um “programa pessoalíssimo” que

nada teria que ver com uma verdadeira política do espírito – conceito

pouco antes posto a circular por Ferro, prestes a entrar ao serviço de

Salazar.39

Para além do que é característico na sua verve, creio que Almada

expressava aqui também a opinião de Pessoa.

Mas voltemos atrás, aos anos pós-Grande Guerra. Na década de 20,

Fernando Pessoa e Almada Negreiros tiveram ocasionais relações de

colaboração com Ferro, que entretanto renegara as suas simpatias

democráticas, sob a influência do sidonismo e do irrequieto comandante

Filomeno da Câmara, de quem fora secretário no governo de Angola em

1918. Regressado a Lisboa ainda nesse ano, Ferro lançou-se com êxito na

carreira do jornalismo político e cultural, sendo em breve requisitado pelos

principais jornais de Lisboa. A Ilustração Portuguesa, que Ferro dirigiu

durante um semestre em 1921-22, foi por ele renovada, conseguindo-lhe

colaborações de Almada Negreiros e poemas de Fernando Pessoa.

37

“Carta do Martinho” (O Século, 3 de Março de 1918) reproduzida em Ferro, Obras I - Intervenção

Modernista (Lisboa: Verbo, 1987), pp. 10-11.

38

António Ferro, “Ano Novo, Ano Bom?”, Diário de Notícias, 1.I.1932, p. 1.

39

Almada Negreiros, “Um ponto no i do futurismo”, Diário de Lisboa, 25.XI.1932, pp. 5 e 8.

11

Entre 1919 e 1921, são visíveis nos escritos de Pessoa e Ferro crescentes

afinidades políticas, quer na rejeição do republicanismo democrático

novamente vigente em Portugal quer na promoção de soluções

conservadoras ou ditatoriais. Ferro, sem deixar de se declarar republicano,

inicia-se em 1919 no jornalismo político, no diário O Jornal, com textos de

grande violência contra os governantes do Partido Democrático, que apoda

de “quadrilha tenebrosa”, contra o Parlamento (“Congresso dos abutres”),

contra a República parlamentar (“ditadura de imbecis”) e posiciona-se

numa linha neo-sidonista, de defesa do presidencialismo conservador.40

Ferro declara, em Dezembro de 1919, que Portugal precisa de um ditador e

está certo que ele acabará por surgir numa manhã de nevoeiro.41

Na opinião

abalizada do fascizante Filomeno da Câmara, Ferro revelou-se nesses anos

como “um dos precursores na defesa do princípio da Autoridade”.42

Fernando Pessoa, gradualmente convertido desde 1915 ao nacionalismo

antidemocrático e, depois, à ideia monárquica, sem porém se aproximar do

Integralismo Lusitano, atravessava em 1919-20 a sua fase doutrinariamente

mais conservadora e elitista, de um radicalismo crescente, particularmente

visível nos escritos inéditos, pondo em causa os próprios princípios

políticos liberais em nome de um “princípio da Autoridade” que

identificava preferencialmente com a monarquia centrada no rei. Verberava

ao mesmo tempo a “anarquia” operária da CGT e a “plutocracia” capitalista

da Associação Industrial, grupos de interesses que, embora opostos entre si,

lhe pareciam conluiados para a ruína do país.43

Em 1919-20 Pessoa e Ferro escrevem ambos textos e poemas laudatórios

da figura de Sidónio, mitificando o messias morto, procurando fazer dele

um modelo sebastianista para a acção política. Pessoa funda em 1919 com

dois ou três amigos o minúsculo Núcleo de Acção Nacional e publica

longos textos políticos no jornal neo-sidonista Acção (a que Ferro foi

completamente alheio), tentando provar que a democracia baseada no

sufrágio era antipopular, antipatriótica e contrária à opinião pública e que o

constitucionalismo monárquico e a República tinham desnacionalizado

Portugal.44

O país precisaria, segundo ele, de um chefe messiânico, um

40

António Ferro, “A máscara dos dentes brancos”, O Jornal, 7.XI.1919, p. 1; “Os bons republicanos...”,

O Jornal, 9.IX.1919, p. 1; “A dança macabra”, O Jornal, 29.X.1919, p. 1.

41

António Ferro, “Sinfonia heróica”, O Jornal, 5.XII.1919, p. 1.

42

Filomeno da Câmara, Prefácio a António Ferro, Viagem à Volta das Ditaduras (Lisboa: Empresa do

Diário de Notícias1927), p. 12.

43

Baseamo-nos aqui em três escritos sem cota, datáveis de ca. 1919, provenientes do espólio de Pessoa

na posse da família, que começam: “Portugal tem a escolher...”, “Com a queda da Monarchia...” e “Ha,

por junto, só trez systemas verdadeiros de governo...”, que nos foram facultados por Jerónimo Pizarro.

12

Presidente-Rei que levasse a cabo um programa de industrialização

sistemática do país. A colaboração de Pessoa para Acção acabaria suspensa

pelo director Geraldo Coelho de Jesus − que repudiava a sua alegada defesa

da monarquia absoluta na (anunciada) terceira parte do artigo “A opinião

pública”−, ao mesmo tempo que a publicação do próprio jornal era

interrompida sine die.45

Nas vésperas do triunfo do fascismo em Itália e da ditadura de Primo de

Rivera em Espanha, Pessoa e Ferro pareciam, pois, politicamente

próximos, ainda que divergentes quanto à questão da forma de governo,

Monarquia ou República. No discurso de ambos, ao lado do tom radical,

quando não violento, podem detectar-se desde 1919 (ano do regresso do

Partido Democrático ao poder) certos temas, valores, modelos e anti-

modelos que levaram alguns autores falar de um discurso político pré-

fascista.46

Discurso que, no caso de Ferro, seria plenamente confirmado

pelas suas simpatias fascistas, declaradas logo em 1923 ao próprio

Mussolini numa entrevista em Roma. De volta a Lisboa, Ferro dará conta

ao público português do seu entusiasmo pelo alegado “milagre” fascista e

do seu fascínio por Mussolini, a quem chama o “grande mestre da política

moderna”, lamentando que em Portugal não seja possível milagre idêntico

ao italiano, por andarem aqui todos de “olhos fechados”.47

Mas o fascismo

italiano nunca suscitou em Fernando Pessoa semelhante epifania política,

muito pelo contrário. Logo nesse ano de 1923, em que Ferro trouxe para

Portugal a boa nova do milagre fascista, Pessoa escrevia num texto da arca

que recentemente dei a conhecer:

Quando, pois, em resposta a argumentos, como aqueles que de todas as partes

(…) se levantam contra o fascismo, se responde com a regularização do horário

dos comboios, a melhoria do valor da lira, e, até, o estabelecimento da ordem

pública (supondo que a paz varsoviana seja a ordem), não se responde a nada:

alega-se simplesmente uma coisa diferente, e que não vem para o caso. Matar,

torturar e enxovalhar não são fenómenos necessariamente envolvidos na

produção do bom funcionamento dos comboios. Não é inconcebível que se

possa melhorar a lira sem queimar bibliotecas particulares, e exercer sobre a

imprensa uma censura de carácter físico.48

44

Fernando Pessoa, “Como organizar Portugal”, Acção n.º 1, 1.V.1919, e “A opinião pública”, Acção n.os

2 e 3, 1.V.1919 e 4.VIII.1919.

45

Leia-se a nota anónima intitulada “A opinião pública”, inserta no n.º 4 e último de Acção (27.II.1920),

em que se descreve a posição de Fernando Pessoa como “ultramonárquica” ou “monárquica antiliberal”.

46

Vd., por exemplo, Manuel Villaverde Cabral, op. cit., p. 188.

47

A. Ferro, Viagem à Volta das Ditaduras, op. cit., pp. 59-75.

48

[Matthew Arnold, que foi…], BNP /E3, 92I-76r e 76

v, publicado sem título no diário i, n.º 163, 12 de

Novembro de 2009.

13

O fundo liberal da formação cultural e política de Pessoa, o valor por ele

atribuído ao indivíduo e à liberdade do espírito, a profunda desconfiança

em relação ao Estado imunizaram-no contra a solução totalitária.49

Pessoa

não abandonaria a sua defesa de um chefe carismático apoiado num mito

messiânico popular (nisto consistia o seu sebastianismo político), mas o seu

modelo de homem de Estado – dir-se-á que completamente anacrónico na

Europa do séc. XX – aproximava-se mais do de um monarca absoluto do

iluminismo, cujo paradigma máximo era, para Pessoa, Frederico II da

Prússia.50

Apesar das afinidades políticas parciais, do comum ofício literário, das

aparentes afinidades modernistas e da pequenez de Lisboa, as relações

entre Pessoa e Ferro nos anos 20 resumem-se a um magro inventário. Não

há testemunhos de convivência entre os dois amigos de outrora. Troca de

correspondência só aparece nos anos 30: duas cartas de cortesia de Pessoa,

uma terceira em que este intercede junto de Ferro, então já no poder, no

interesse dum amigo, e, em resposta a esta, uma única carta de Ferro para

Pessoa, prometendo fazer o que puder.51

Nos milhares de páginas do

espólio de Pessoa o nome de Ferro só muito raramente aparece em

referências posteriores a 1915. Em dedicatórias manuscritas de livros

oferecidos a Pessoa nos anos 20 e 30, Ferro não deixou de afiançar a sua

admiração por ele, que parece sincera. Mas os livros que Ferro publicou

entre 1920 e 1925 e lhe granjearam a fama de escritor modernista nunca

mereceram a Pessoa um comentário elogioso, podendo arriscar-se que o

tom assumidamente frívolo, blagueur e presunçoso de Teoria da

Indiferença e de Leviana o tenha deixado no mínimo indiferente. Quando,

em 1925, Ferro publica o seu último volume de contos, A Amadora dos

Fenómenos, Pessoa reagiria com vivo desdém, numa curta crítica que não

publicou, em que também trata o autor de imbecil:

Este livro é a coisa intelectualmente mais abjecta que tem até hoje produzido

uma criatura incapaz de o fazer. Conhecemos Antonio Ferro há muito tempo, e

antigamente ele dava promessa de qualidades, pelo processo mais seguro de se

49

Vd. a auto-apreciação que Pessoa faz num texto de 1935, “Explicação de um livro”, BNP/E3, 21-136 a

139, publicado pela primeira vez em Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit.

50

Exprimimos já esta opinião em “Fernando Pessoa e Salazar: sobre o pensamento político do escritor e

a sua ruptura com o salazarismo” (comunicação ao I Congresso Internacional de Fernando Pessoa,

Lisboa, Novembro de 2008), publicado sob o título “Pessoa & Salazar” em Pessoa – Revista de Ideias, n.º

3, Junho de 2011, pp. 17-34.

51

Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935, ed. M. Parreira da Silva (Lisboa: Assírio & Alvim,

1999), pp. 197-198, 289 e 309-310, e Correspondência Inédita, ed. M. Parreira da Silva (Lisboa: Livros

Horizonte, 1996), p. 137.

14

dar promessa de uma coisa – tê-la já. Desde então, à parte a salvação de

algumas quebras, tem sido um caminhar rápido para A Amadora de

Fenómenos. Este livro é o máximo do mínimo. Não evoca o Orpheu: invoca

Morpheu. (...)52

Em 1923, quando a representação da peça de António Ferro “Mar Alto” foi

proibida na sequência de desacatos verificados na estreia, Fernando Pessoa

subscreveu coerentemente o protesto de cinquenta homens de letras e

artistas contra a intromissão da autoridade policial em matéria de

moralidade literária. Meses antes, recorde-se, a polícia e os estudantes

católicos chefiados por Teotónio Pereira – macaqueando a campanha de

moralização pouco antes desencadeada em Itália pelos squadristi fascistas

– tinham efectuado rusgas pelas livrarias de Lisboa e exigido o confisco e a

queima de livros ditos imorais, alguns editados pela Olisipo de Fernando

Pessoa. Sobre a curta experiência do chamado Teatro Novo, promovido em

1925 por António Ferro e José Pacheco, Pessoa considerou, num artigo que

ficou inédito, que ela não teve êxito nem poderia ter tido, pela escassez de

público potencial e pelo erróneo critério de escolha das peças

representadas.53

Em 1928, Pessoa enviou a Ferro um exemplar assinado de

O Interregno: Defesa e Justificação da Ditadura Militar. Ferro reciprocou,

em 1933, com o envio de um exemplar, dedicado a Pessoa e dois dos seus

heterónimos, do livro Salazar: O Homem e a sua Obra. Pessoa agradeceu

por carta, elogiando a “mestria publicitária” do autor e esclarecendo essa

expressão: “não vai nada que não seja elogioso na alma deste adjectivo

corporalmente dúbio” – não fosse Ferro suspeitar de uma farpa disfarçada

de elogio.54

Na tertúlia habitual do Café Montanha, Pessoa falava ao

círculo de amigos com menos subtileza sobre Ferro e sobre a sua actividade

de proselitismo salazarista. Um dos convivas, o já aqui citado Peixoto

Bourbon, deu mais tarde testemunho, em repetidas evocações jornalísticas,

não só da velha antipatia de Pessoa por Ferro, mantida até ao final da vida,

mas também do epíteto de “São Paulo do Estado Novo” com que Pessoa

crismou Ferro.

Nas memórias da escritora Fernanda de Castro, por insistência de leitores

do primeiro volume que tinham estranhado o silêncio sobre o Orpheu, a

viúva de Ferro dedicou algumas linhas a Fernando Pessoa, para dizer que

ele era “ensimesmado” e “de uma timidez que chegava a incomodar-nos”.

Fernanda de Castro diz ter-se cruzado com Pessoa na casa de uma tia e na

52

BNP/E3, 142-94

r, cujo conhecimento devemos a Jerónimo Pizarro e Pauly Ellen Bothe.

53

BNP/E3, 55D-65-67. Este texto de Pessoa, que teria o título de “O Inêxito do ‘Teatro Novo’”, está

inserto numa lista de colaborações de 1925 para um projectado número do Orpheu da “segunda fase”, que

nunca se realizou. Vd. Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., pp. 91-92 e nota.

54

Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935, op. cit., p. 289.

15

de um casal amigo e conversado com ele numa livraria.55

E é tudo. A

autora não refere qualquer convivência de Pessoa com António Ferro ou

com o casal, por cuja casa passavam numerosos amigos, e aproveita para

desmentir como falso e mesmo “absurdo” o rumor segundo o qual Pessoa

teria tido uma paixão por ela, e que, por essa razão, se teria afastado do

casal.56

Refira-se ainda que não há qualquer livro de Fernanda de Castro na

biblioteca de Fernando Pessoa.

O golpe militar de 28 de Maio de 1926 despertou grandes expectativas em

Pessoa e em Ferro. Em 1927-28, Pessoa ressuscita o fantasmático Núcleo

de Acção Nacional de 1919 para, em nome dele, mas declarando não lhe

pertencer, publicar o folheto O Interregno, uma defesa da Ditadura Militar

baseada na convicção de que a democracia era impossível e de que era

indispensável um “Estado de transição” ou “Interregno” comandado pelos

militares, única entidade vocacionada para instaurar um novo “sistema de

governo” em Portugal. A Ditadura Militar não agradeceu a defesa que

Pessoa lhe fez, redigida em termos abstractos e insólitos, próprios de um

intelectual céptico e outsider, conservador anglófilo e, sobretudo, suspeito,

pois recusava expressamente no folheto em causa apoiar os actos concretos

do governo.57

Amuado ou desiludido, Pessoa não voltou à praça pública

para continuar a projectada exposição das suas teses políticas. Regressou

em força aos seus poemas de Álvaro de Campos e ao Livro do

Desassossego, interrompido quase dez anos antes, mas continuou a registar

privadamente, ao longo do período final de vida, as suas ideias e análises

políticas. Em Março de 1935, muito desiludido já com o Estado Novo (que

dizia ignorar o que seria), Pessoa repudiaria o folheto O Interregno,

declarando sobre ele: “Deve ser considerado como não existente”.58

Note-

se que assim não o entendeu o semanário Bandarra, da Editorial Império

(um e outra ligados ao Secretariado de Propaganda Nacional, de António

Ferro), que lhe republicou integralmente O Interregno logo após a morte do

escritor.59

A Editorial Império conhecia bem a posição do autor sobre essa

55

Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória – Memórias II (1939-1987) (Lisboa: Verbo, 2.ª ed. 1988), pp.

270-271.

56

Os rumores novelescos são persistentes, mesmo quando desmentidos. Este foi reposto em circulação

em 2009 por uma neta de Ferro, que declarou a um jornalista que Pessoa era “visita diária lá de casa” e

alegou a existência de um bilhete inédito, supostamente amoroso, de Pessoa para Fernanda de Castro. Vd.

a notícia “Fundação António Quadros foi apresentada ontem em Lisboa”, Público, 24 de Março de 2009.

57

Fernando Pessoa, O Interregno. Defeza e Justificação da Dictadura Militar em Portugal (Lisboa:

Núcleo de Acção Nacional, 1928), p. 6.

58

A afirmação consta da conhecida “nota biográfica” de Fernando Pessoa redigida em Março de 1935.

59

Bandarra n.os

40 a 43 (Dezembro 1935 a Janeiro de 1939), que são também os últimos números do

efémero semanário com que Ferro pretendia fazer frente à imprensa cultural dos “intelectuais livres”.

16

obra, pois foi essa editora que em 1940 revelou pela primeira vez ao

público uma "nota autobiográfica" em que Pessoa abordava essa questão –

nota que foi amputada, com consciência culposa, dos trechos em que

Pessoa afirmava as suas ideias políticas e repudiava O Interregno.60

A atitude de Ferro durante a Ditadura Militar foi muito diversa da de

Pessoa. A ligação de Ferro a Filomeno da Câmara − seu tutor político, que

o tinha arrancado ao ambiente “detestável” do Café Martinho para o levar

para Angola − levá-lo-ia a envolver-se pessoalmente nas várias tentativas

golpistas do comandante, antes e depois do 28 de Maio de 1926, inclusive

em Agosto de 1927, quando o golpe militar comandado por Filomeno e

secundado por Fidelino de Figueiredo − o “golpe dos Fifis” − pretendeu

empurrar a Ditadura para um figurino mais mussolinesco. Ferro foi

elemento de ligação entre Filomeno e as unidades militares sublevadas.61

O

livro de entrevistas de Ferro Viagem à Volta das Ditaduras, publicado

pouco antes dessa tentativa de golpe, tinha um longo prefácio de Filomeno,

candidato a ditador que Ferro promovia. O fiasco da intentona militar

empurraria Filomeno para Angola, deixando Ferro à procura de outro

candidato para promover e de outro caminho pessoal para o poder. Quando

Salazar assumiu as rédeas da governação, Ferro levou a cabo uma

aproximação meticulosa e bem sucedida ao homem do poder, numa

sucessão de artigos políticos publicados em 1932 no Diário de Notícias62

,

coroados, em Dezembro, pelas famosas entrevistas com Salazar.

Perante a ascensão do “ditador das Finanças” e a génese do novo regime,

Fernando Pessoa manteve-se numa expectativa algo benévola, mas sempre

crítica. As diferenças em relação ao passado da República eram para ele

genericamente positivas. Havia, finalmente, ordem no país e o tom

despojado e austero do ditador soava a novidade num país que, desde a

Monarquia, fora pasto de oradores demagogos.63

As influências ideológicas

integralista, maurrasiana, corporativista e católica que o programa

salazarista evidenciava eram encaradas por Pessoa, desde 1930, com a

maior desconfiança, mas a obra administrativa do governo começava a

60

Vd. Fernando Pessoa, Á Memoria do Presidente-Rei Sidonio Paes (Lisboa: Ed. Império, 1940). A nota

biográfica de Pessoa está nas pp. 3-4, com a menção que se trata de um “extracto”. As partes amputadas

revelavam a posição política e ideológica de Pessoa, que desagradavam à editora.

61

Ernesto Castro Leal, António Ferro: Espaço Político e Imaginário Social, op. cit., p. 43, nota 57.

62

Artigos “Ano Novo – Ano Bom?” (Diário de Notícias, 1.I.1932), “Vida” (DN, 7.V.1932), “Falta um

realizador...” (DN, 14.V.1932), “O Ditador e a multidão” (DN, 31.X.1932), “Política do Espírito” (DN,

21.XI.1932).

63

Veja-se a este respeito José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of Fernando Pessoa”,

Portuguese Studies, vol. 24, n.º 2 (2008), especialmente pp. 171-181.

17

aparecer e o prestígio de Portugal no exterior ressurgia, como ele

constatava pela imprensa estrangeira. O teste decisivo da nova ordem

política passaria muito, para Pessoa, pelo tipo de relação que Salazar e o

seu Estado Novo iriam criar com a elite intelectual e cultural portuguesa,

mais do que pela saúde das finanças públicas. Iria o lente de Coimbra

revelar-se um ditador esclarecido, apoiado numa relação viva com a

inteligência do país, ou não passaria de um contabilista promovido a César,

limitado pelas estreitezas da sua especialização financeira, da sua origem

rural e da sua formação de seminário? Por volta de 1932-33, Pessoa

escrevia sobre Salazar:

Faltam-lhe os contactos com todas as vidas – com a vida da inteligência, que

vive de ser vária e, entre os conflitos das doutrinas, não sabe decidir-se; com a

vida da emoção, que vive de ser impulsiva e incerta (...) 64

Também António Ferro se preocupava, à sua maneira, com este mesmo

problema da relação do ditador e da ditadura com a “vida do espírito”,

como lhe chamava, um problema que ele diagnosticou, nos citados artigos

do Diário de Notícias de 1932, como sendo o da apatia cultural do país, do

mau gosto imperante e da nefasta dispersão das iniciativas, dos espíritos e

dos talentos literários e artísticos − “tudo à espera de ordens”, dizia Ferro65

,

situação que reclamava a entrada em acção de um “encenador” (pensava

em si próprio) que impusesse o “bom gosto” e organizasse

centralizadamente o entusiasmo, a alegria e a animação espiritual da nação.

O regime nacionalista autoritário precisava de uma política cultural

coerente com os seus fins, mas imaginativa e ousada. Ferro chamou-lhe

“Política do Espírito”, roubando a expressão a Paul Valéry, que a utilizara

pouco antes num contexto muito diverso. Mas preocupava Ferro

igualmente, à luz do seu modelo mussoliniano, o problema do “isolamento,

frieza e rigidez” do ditador português66

, isto é, a sua falta de ligação não só

com a elite intelectual, mas também com “a multidão”. O austero e

recatado ministro das Finanças, mesmo depois de elevado a ditador, não via

utilidade em gastar dinheiro com a cultura ou com o marketing político,

facetas do que então candidamente se chamava propaganda. Na resolução

destes problemas precisos e interligados anteviu Ferro o seu caminho para

o poder, a oportunidade para fazer vingar as suas ideias modernas de

animação cultural e de promoção da imagem interna e externa do país, do

regime e do seu chefe. Propôs e realizou as entrevistas com Salazar, depois

64

BNP/E3, 92M-74 a 76, publicado pela primeira vez por Teresa Rita Lopes em Pessoa Inédito, op. cit.,

p. 366.

65

António Ferro, “Falta um realizador”, art. cit.

66

António Ferro, Introdução a Salazar: O Homem e a Sua Obra (Lisboa: ENP, 1933), p. 10.

18

reunidas em livro e traduzidas em várias línguas. José-Augusto França

descreve as entrevistas de Ferro como “a primeira pedra na mitificação” de

Salazar, e o seu autor, no panorama português, como “o único intelectual

(tirando outros, menores) que levou uma atracção fascista a consequências

práticas”.67

O êxito do livro faria o ditador ceder às ideias de Ferro,

nomeando-o director do Secretariado da Propaganda Nacional em Outubro

de 1933. Na Alemanha surgira seis meses antes o Ministério da Cultura

Popular e da Propaganda, com Goebbels à frente, e em Itália estava-se já a

caminho do MinCulPop, Ministério da Cultura Popular, assim crismado em

1937, depois de ter nascido como Subsecretariado de Estado para a

Imprensa e a Propaganda. Nos três organismos era trave-mestra a ligação

da cultura com a propaganda.

A instituição dos prémios literários do SPN, uma das primeiras iniciativas

de Ferro no cargo em que iria permanecer 17 longos anos, propunha-se

começar a realizar um dos objectivos da sua Política do Espírito,

textualmente, o “desenvolvimento de uma arte e de uma literatura

acentuadamente nacionais”. Promoção, pois, de um certo tipo de literatura

e arte, com apoio a “uma galeria de renovadores da arte e das letras que

devem ser revelados, aproveitados e auxiliados”. Exigia-se dos poetas,

prosadores e ensaístas candidatos aos prémios “uma intenção amplamente

construtiva”, um “firme critério patriótico” e “um alto sentido de exaltação

nacionalista”.68

O incitamento de amigos, especialmente de Augusto Ferreira Gomes, e a

perspectiva do prémio pecuniário levaram então Fernando Pessoa a decidir-

se pela publicação de Mensagem, livro há muito em preparação, que

completou em 1934 a tempo de participar no concurso. José Blanco

historiou com detalhes reveladores o modo como os amigos de Pessoa e o

próprio António Ferro auxiliaram a promoção do livro e o persuadiram da

conquista garantida do prémio.69

Ferro – que, segundo Blanco, teria mesmo

adiantado à tipografia o custo de impressão do livro – explicou no final do

concurso aos jornalistas que com o prémio atribuído a Pessoa o júri por ele

presidido desejara roubar o poeta ao seu “isolamento voluntário do grande

público”, enaltecendo o “alto sentido nacionalista” da Mensagem.70

Um

colaborador de Ferro, o já citado João Ameal, autor do célebre Decálogo

67

José Augusto França, “Sondagem nos anos 20: cultura, sociedade, cidade”, Análise Social n.º 77-79

(1983), p. 838.

68

António Ferro, A Política do Espírito e os Prémios Literários (Lisboa: SPN, s.d.), pp. 27 e segs.

69

José Blanco, “A verdade sobre a Mensagem”, em S. Dix e J. Pizarro (orgs.), A Arca de Pessoa (Lisboa:

ICS, 2007), pp. 147-158.

70

“O fim do ano literário. Os prémios dos concursos do SPN”, Diário de Lisboa, 31.XII.1934, p. 16.

19

do Estado Novo, publicado pelo SPN, foi depois um pouco mais explícito,

num artigo publicado no Diário da Manhã, órgão político do regime. A

Mensagem era aí elogiada e apresentada como uma obra profética, o toque

de clarim anunciando o “futuro já presente”, a “alvorada” que se vivia, o

nascente Estado Novo.71

Era arriscada esta interpretação política do sentido

da Mensagem, em especial do seu verso final − a exclamação “É a hora!”

Para Ameal, a “hora” era claramente a hora do Estado Novo. Mas como iria

Pessoa reagir a esta leitura? Aceitaria ele pacificamente o papel que lhe

propunham de clarim, poeta e profeta do regime? Estaria a “hora” da

Mensagem acertada pelo relógio da União Nacional? Não estava. Dali a

dez dias, a 4 de Fevereiro de 1935, Pessoa veio a público no Diário de

Lisboa com um calculado artigo de grande repercussão pública em defesa

do maior inimigo do regime, a Maçonaria. Perante o escândalo, o Diário da

Manhã sentiu-se obrigado a desautorizar a prévia interpretação de Ameal e

a atacar o ingrato Pessoa na primeira página, ironizando com a expressão

“É a hora!” e com o título da Mensagem (trocado por Maçagem) e

concluindo, aliás brilhantemente, que não se podia confiar em poetas.

Pessoa comprara o seu relógio numa loja maçónica, opinava o jornal,

rematando deselegantemente: “Ora sebo!...”72

Na sequência directa de

instruções de Salazar, a 6 de Fevereiro, ao director dos Serviços de

Censura73

, não foi permitida a continuação da polémica em torno do artigo

de Pessoa74

e este não pôde defender-se dos ataques de que foi alvo na

imprensa, passando de imediato a ser considerado persona non grata pelos

censores. Em suma, Salazar mandou silenciar Fernando Pessoa. Sobre o

presumível responsável pela mordaça de que foi alvo, Pessoa escreveu

numa nota: “pelo dedo se reconhece o Anão”.75

O “Anão” era visivelmente

Salazar, a quem Pessoa noutro texto de 1935 chama isso mesmo.76

Na

semana seguinte, o poeta faltou à cerimónia de entrega dos prémios

literários do SPN, que ia ser presidida pelo ditador. Esquivou-se assim a

ficar para a posteridade na fotografia oficial ao lado de Salazar, Ferro e das

outras individualidades literárias, civis e militares que nela figuram. A

tentativa de António Ferro de cooptar Pessoa e de o fazer solenemente

alinhar na sua Política do Espírito saldou-se por um fiasco público. 71

João Ameal, “Mensagem – versos de Fernando Pessoa”, Diário da Manhã, 25.I.1935, p. 3.

72

“A dança das horas. Um poeta e o papão (e que papão!) maçónico”, Diário da Manhã, 5.II.1935, p. 1.

73

ANTT/Arquivo Salazar, Agenda de 1935, dia 6 de Fevereiro.

74

Ver o fac-simile da circular n.º 101 da Censura em Richard Zenith, Fotobiografias Séc. XX: Fernando

Pessoa (Lisboa: Círculo de Leitores, 2008), p. 164.

75

BNP/E3, 53B-1r-v

, publicado por Teresa Rita Lopes em Pessoa Inédito, op. cit., p. 336.

76

BNP/E3, 92M-41, publicado por Teresa Rita Lopes, op. cit., p. 375.

20

A reacção de Pessoa não se ficou por essa não comparência. O premiado

ausente leu nos jornais do dia seguinte (22 de Fevereiro de 1935) os relatos

da cerimónia dos prémios, em que Ferro e Salazar tinham discursado. Ferro

tinha exposto de maneira circunstanciada as linhas mestras da Política do

Espírito do Estado Novo, que não se limitaria a dar “assistência aos artistas

e escritores” e a criar-lhes uma atmosfera propícia à criação, mas se

destinava também a “estabelecer e organizar o combate contra tudo o que

suja o espírito”, a “fazer o necessário para evitar certas pinturas viciosas do

vício que prejudicam a beleza, a felicidade da beleza, como certos crimes e

taras ofendem a humanidade, a felicidade do homem”; destinava-se ainda a

“combater sistematicamente (...) tudo o que é feio, grosseiro, bestial, tudo o

que é maléfico, doentio, por simples volúpia ou satanismo”. Os prémios do

SPN destinavam-se a distinguir “intenções amplamente construtivas”.

Sendo o SPN um órgão da Presidência do Conselho, bastava, segundo

declarou Ferro, ler os discursos de Salazar e “os princípios morais que

neles se contêm” (sic) para se entender o que eram essas “intenções

amplamente construtivas”. Quem não se identificasse com elas, que não

concorresse. A terminar, Ferro definiu numa tirada o “espírito” que

animava a festa dos prémios literários: “Organizando-a, dando-lhe

solenidade, nós quisemos declarar guerra publicamente aos déspotas da

liberdade de pensamento, aos intelectuais ‘livres’ cheios de cadeias e

preconceitos, aos defensores do homem gidiano, do homem-terramoto.

Narcisos da democracia, envenenadores do mundo!” Por sua vez, na sua

intervenção, Salazar estendeu o âmbito da Política do Espírito muito para

além do estímulo dos prémios literários. O ditador justificou a imposição,

na nova ordem política, de “limitações” e “directrizes” à actividade mental

e à criação intelectual e artística em Portugal. Condenou o “amoralismo” e

a “arte pela arte” como “frutos lindos de ver-se, mas inaproveitáveis ou

nocivos”. Expôs a tese sociológica de que os períodos decadentes da

história (pensava na 1.ª República) coincidiam na arte e na literatura com

“manifestações mórbidas” (estaria a pensar na literatura de manicómio e

nos artistas de Rilhafoles de 1915 ou na literatura de Sodoma alvo das

rusgas católicas de 1923?). Pelo contrário, nos períodos de elevação,

robustecimento e engrandecimento das nações (Salazar pensava no Estado

Novo), era preciso “alimentar na alma colectiva as grandes certezas e

contrapor às tendências de dissolução propósitos fortes, nobres exemplos,

costumes morigerados”. Justificando a censura e as directrizes à arte, o

ditador sustentava que não podia “valer socialmente tanto o que educa

como o que desmoraliza”, que não podia haver equivalência entre “os

criadores de energias cívicas ou morais e os sonhadores nostálgicos do

abatimento e da decadência”. Como se sabe, Pessoa adoptou esta

expressão, sonhador nostálgico do abatimento e da decadência, para com

21

ela assinar poemas satíricos contra Salazar, que fez circular em cópias

dactilografadas pelos cafés de Lisboa. A sua reacção aos discursos da

cerimónia dos prémios foi de absoluta indignação, inclusivamente por uma

razão pessoal: é que Ferro e Salazar tinham exposto os princípios e critérios

doutrinários ao abrigo dos quais também a Mensagem fora premiada,

princípios que eram inaceitáveis para o premiado e que o comprometiam

politicamente.

Conhece-se a reacção indignada de Pessoa pelos escritos do seu espólio,

pois a censura não permitiria divulgá-la. Não se ocupando das

considerações de Ferro (que preferiu ignorar, mas a que Pessoa, à luz de

toda a sua obra, não poderia ser mais contrário), Pessoa fixou-se na defesa

que Salazar fizera da imposição de “limitações” e “directrizes” à arte e ao

pensamento. Estava a passar-se em Portugal em 1935, como Pessoa

observa no rascunho de uma carta a Casais Monteiro (30 Outubro 1935), de

um regime de censura restritiva, em que se proíbe ao escritor de dizer isto

ou aquilo, para um regime que chama “soviético”, em que o poder obriga o

escritor a dizer isto ou aquilo. Referências às “directrizes” aparecem em

numerosos escritos de Pessoa de 1935, em prosa e em verso. Num desses

escritos, uma carta ao Presidente da República Óscar Carmona (que não

enviou nem completou), Pessoa diz sobre a Política do Espírito:

Até aqui a Ditadura não tinha tido o impudor de, renegando toda verdadeira

política do espírito [...] vir intimar quem pensa a que pense pela cabeça do

Estado, que a não tem, ou de vir intimar a quem trabalha a que trabalhe

livremente como lhe mandam.77

Ora uma “verdadeira política do espírito”, diz Pessoa, consistia em “pôr o

espírito acima da política”.78

Mais adiante, num trecho que resume o

pensamento de Pessoa sobre a relação entre o ditador e a intelectualidade,

escreve:

Um homem que, tendo de presidir a uma distribuição de prémios literários,

abre a sessão com um discurso em que enxovalha todos os escritores

portugueses − muitos deles seus superiores intelectuais − com a fútil

imposição de “directrizes” que ninguém lhe pediu nem pediria (...) − esse

homem, que assim, com uma inabilidade de aldeão letrado, de um só golpe

afastou de si o resto da inteligência portuguesa que ainda o olhava com uma

benevolência, já um pouco impaciente, e uma tolerância, já vagamente

desdenhosa, não tem sequer o prestígio limitado que lhe permita governar

77

BNP/E3, 92M-28 a 33, publicado pela primeira vez em Teresa Sobral Cunha, “Fernando Pessoa em

1935. Da Ditadura e do ditador em dois documentos inéditos”, Colóquio/Letras, n. 100, Nov.-Dez. de

1987, pp. 123-131.

78

Idem.

22

uma republica aristocrática, a aceitação de uma minoria que, ainda que

praticamente inútil, fosse teoricamente inteligente.79

E, mais adiante, este balanço:

Chegámos a isto, Senhor Presidente: passou a época da desordem e da má

administração; temos boa administração e ordem. E não há nenhum de nós

que não tenha saudades da desordem e da má administração. Não sabíamos

que a ordem nas ruas, que as estradas, os portos e as esquadras [navais]

tinham que ser compradas por tão alto preço − o da venda a retalho da alma

portuguesa.80

Enquanto Pessoa escrevia estes textos para a arca, António Ferro − que

além de director da propaganda governamental foi também o primeiro

presidente do Sindicato Nacional dos Jornalistas entre 1934 e 1937 −

continuou a sua cruzada, em nome da Política do Espírito, contra os

“intelectuais livres” e os “déspotas da liberdade de pensamento”.

Em 31 de Janeiro de 1935, duzentos intelectuais e artistas, no primeiro

documento colectivo do género que apareceu sob o Estado Novo, tinham

exigido do poder político, na pessoa do presidente da Assembleia Nacional,

o fim da censura instaurada em 1926. Os jornais não puderam divulgar a

petição, que circulou de mão em mão − e ainda hoje repousa, inédita, no

arquivo da Assembleia da República.81

Em resposta, Ferro organizou a 24

de Fevereiro, apenas três dias depois da festa de entrega dos prémios

literários, um encontro de “intelectuais nacionalistas” – um banquete a que

também chamou “plebiscito” dos intelectuais portugueses – com o

objectivo expresso de negar aos duzentos legitimidade para exigir o fim da

censura. No seu discurso, Ferro insistiu no tema da guerra contra os

intelectuais livres: “A batalha (...) deixou de ser nas ruas, nos quartéis (...)

A inteligência, ou antes, o que eles julgam ser a inteligência, é o último

reduto dos nossos inimigos.” A tarefa que se impunha em face desses

intelectuais “vencidos” consistia em “desalojá-los, para sempre, desse

reduto!”82

Não se sabe ao certo o que Ferro queria dizer com isso, mas,

nesse mesmo ano, ao abrigo de nova legislação repressiva, dezenas de

intelectuais opositores do regime foram expulsos dos seus empregos

públicos, entre os quais os professores catedráticos Abel Salazar, Aurélio

Quintanilha, Rodrigues Lapa e Sílvio Lima. A censura, essa deveria

79

BNP/E3, 92M-81, publicado por Teresa Rita Lopes em Pessoa Inédito, op. cit., p. 375.

80

BNP/E3, 92M-80, publicado por Teresa Rita Lopes, op. cit., p. 376.

81

Arquivo da Assembleia da República, Assembleia Nacional, Livro 1, fls. 123 a 142.

82

“Em resposta... Uma grande jornada nacionalista”, A Voz, 25.II.1935, pp. 1 e 6.

23

continuar: segundo Ferro proclamou no banquete dos intelectuais

nacionalistas, só ao Sindicato dos Jornalistas, por ele presidido, competia,

quando julgasse oportuno, pedir ao governo que a censura acabasse. Nunca

julgou.

Em doze anos, ao contrário de Pessoa, Ferro trocara de campo. De vítima

da censura em 1923, quando a proibição da sua peça de teatro fora alvo

dum protesto de intelectuais, Ferro passara, em 1935, para a liderança da

justificação da manutenção da censura, contra os duzentos “intelectuais

livres” que protestavam contra ela exigindo liberdade. Justificação por ele

proclamada, paradoxalmente, no quadro de uma “política do espírito” e em

nome também da corporação dos jornalistas. Não foi até hoje sublinhado

em qualquer estudo este papel substantivo em defesa da censura

desempenhado nos anos 30 por António Ferro, que muitos persistem em

apresentar como um benigno e tolerante protector das artes e das letras,

“um liberal dentro do Estado Novo” − como lhe chamou o panegirista

António Quadros.83

Pessoa não viveu o tempo suficiente para ver a Política do Espírito ferriana

plenamente aplicada, num sistema que combinava a censura, a propaganda

e o mecenato de Estado, sob a égide de um vanguardismo nacionalizado e

casado em segundas núpcias com a tradição. Se tivesse vivido, ter-lhe-ia

sido irresistível a comparação com o ambiente que ele chamou, num texto

aqui já citado, de “agitação fecunda”, de “fermento de vida e de

esperança”, em que se tinha gerado, sem o abraço protector do Estado às

letras e às artes, o “renascimento literário” português da primeira década da

República, nomeadamente com o aparecimento das novas correntes em

torno de A Águia e depois do Orpheu.

Que concluir deste percurso paralelo de dois escritores conotados com o

modernismo em Portugal, desde os tempos do Orpheu aos inícios da

Política do Espírito? Os factos não sustentam que o movimento modernista

português e as suas verdadeiras figuras de proa tivessem pavimentado

culturalmente o caminho para o regime autoritário. Os casos de Pessoa e

Ferro, entre outros, mostram que o descontentamento do meio intelectual e

artístico com a República democrática provinha de quadrantes políticos

diversos e evoluiu em direcções divergentes. Os factos sustentam ainda

menos, ao contrário do que Quadros pretendeu, que a política cultural do

83

A. Quadros, O Primeiro Modernismo Português..., op. cit., p. 321. Completa esta visão deturpada o

mito do “afastamento” de Ferro do SNI (o anterior SPN) em 1950. Sabe-se, porém, pela própria família,

que foi Ferro quem mostrou desejo de sair do cargo desde 1946 (vd. A. Quadros, O Primeiro Modernismo

Português..., op. cit., p. 329) e que Fernanda de Castro escreveu em 1948 a Salazar pedindo-lhe um

“posto” para o marido, sugerindo “talvez em Paris” (Mafalda Ferro e Rita Ferro, Retrato de uma Família,

Lisboa: Círculo de Leitores, 1999, p. 170).

24

Estado Novo, formulada por Ferro sob a alçada de Salazar, se tivesse

inspirado no alegado “pensamento profundo” e nas supostas propostas

culturais do grupo do Orpheu, núcleo fundador do modernismo. Parece,

aliás, claro que António Ferro nunca representou o modernismo português,

excepto em manobras de autopromoção, e que a mais fiel representação do

“espírito novo” surgido em 1915 coube, ao longo do período aqui em

causa, sobretudo a Fernando Pessoa, mas também a Almada Negreiros e

outros. Nessa representação autêntica tinha que ser protagonista, e foi-o, a

defesa da liberdade do espírito, valor central e irredutível em Fernando

Pessoa, ao lado do valor por ele atribuído ao indivíduo em face do Estado −

valores opostos aos da Política do Espírito de Ferro e Salazar.