Fernando Pessoa e António Ferro
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José Barreto
Fernando Pessoa e António Ferro: do espírito do Orpheu à “Política do Espírito”
Versão revista de uma comunicação ao II Congresso Internacional Fernando Pessoa, Casa Fernando
Pessoa/Câmara Municipal de Lisboa, 23-25 de Novembro de 2010.
Fernando Pessoa e o sete anos mais jovem António Ferro ligaram-se de
amizade, através do amigo comum Mário de Sá-Carneiro, por volta de
1912. Pessoa tinha 24 anos e Ferro era um rapaz de 17. Em 1915, pouco
depois da publicação do segundo número do Orpheu, romperam relações
por razões políticas. Mais tarde reatariam contactos e cortesias (algumas
raras cartas, dedicatórias em livros oferecidos), mas mantendo sempre uma
grande distância entre si. Eram personalidades muito diferentes, por vezes
nos antípodas um do outro: Pessoa era de espírito confessadamente
“enrolado para dentro”, cerebral, elitista, misantropo e misógino,
escrevendo mais por compulsão do que para a tipografia. Ferro era
igualmente elitista, mas extrovertido, frívolo, charmeur, mundano, exímio
na autopromoção. Nos seus percursos viriam a registar-se algumas
convergências, nomeadamente no plano do pensamento político. São duas
figuras, uma maior, outra menor, do modernismo português, além disso
"modernistas" de feição e espírito muito diferentes.
Tiveram também posteridades muito diversas: aquele que em vida mais fez
falar de si, mais publicou e mais amplo público leitor conquistou e que,
depois, triunfou também no campo da acção, é hoje dominantemente
recordado e estudado não como escritor, mas como político construtor do
mito de Salazar e chefe da propaganda do Estado Novo. Sintomático deste
esquecimento do Ferro escritor modernista (modernismo que ele próprio
renegaria expressamente mais tarde1) é a escassez de estudos sobre a sua
obra literária. A mais antiga revista cultural portuguesa, o Colóquio, não
lhe dedicou um único artigo desde a sua morte, em 1956, até hoje, excepto
uma curta recensão de uma reedição da sua obra2 – que, sintomaticamente
também, se ficou pelo primeiro volume. Por contraste, Pessoa, em vida
conhecido apenas de um círculo restrito, conquistou postumamente, sempre
1 Veja-se António Ferro, Dez Anos de Política do Espírito 1933-1943 (Lisboa: SPN, ca. 1943), p. 18.
2 J. A. França, recensão de António Ferro, Obras 1, Intervenção Modernista (Lisboa: Verbo, 1987), em
Colóquio/Letras, n.º 100, Novembro de 1987, pp. 163-164.
2
em crescendo, notoriedade e divulgação universais. Estudado sob todos os
ângulos, alvo de uma exegese incansável, Pessoa desperta hoje um
interesse e goza de um culto que em 1985, no cinquentenário da sua morte,
alguns julgavam já excessivo (que dirão esses hoje, perante o
extraordinário labor dos estudos pessoanos nos últimos 25 anos?). Em
contrapartida, os livros de prosa modernista de Ferro, todos publicados
entre 1920 e 1926, são curiosidades de uma época. Deles sobressaem a
colecção de frases e paradoxos Teoria da Indiferença e a “novela em
fragmentos” Leviana, nas quais é bem visível a inspiração dos contos e
greguerías de Ramón Gómez de la Serna.3 A esse conjunto não falta um
retardatário manifesto marinettiano (Nós, 1921), em que Ferro se
emparelha presunçosamente com D’Annunzio, Cocteau, Cendrars, Picasso
e Stravinsky e invectiva a multidão ignara, os “etcéteras da vida”. A
extrema petulância de Ferro será “moderna”, mas faz sorrir, e a sua
frivolidade e os seus paradoxos soam a oco, como o próprio o confessou
em mais de uma ocasião na idade madura.4 Da sua obra retém-se
basicamente o talento de phraseur, o colorido de alguma literatura de
magazine e, sobretudo, a actividade de repórter internacional, ofício em que
foi moderno e ousado, conseguindo “furos” jornalísticos (como a
reportagem com D’Annunzio em Fiume, em 1920, reeditada com o
narcísico título Gabriele d’Annunzio e Eu) e entrevistas com numerosas
celebridades europeias. Ferro entraria para a história como construtor da
imagem de Salazar e como encenador e animador cultural do Estado Novo,
depois de se ter desembaraçado do incómodo rótulo de modernista, que
cheirava a irreverência iconoclasta, a demo-liberalismo e a 1.ª República,
para se auto-atribuir o epíteto de vanguardista, mais consentâneo com o
espírito dos regimes autoritários.5
Jovens republicanos, Pessoa e Ferro tornaram-se ambos na maturidade
crescentemente críticos da República. Foram sucessivamente admiradores
do presidente Sidónio Pais, nacionalistas e antidemocráticos no pós-
sidonismo, defensores da Ditadura Militar após o 28 de Maio de 1926.
Eram os dois de compleição cosmopolita e gosto europeu, o que os
distinguia do quadrante nacionalista dominante, que era chauvinista,
tradicionalista e católico e que, em matéria literária, favorecia o
regionalismo e o naturalismo. Diversos textos conhecidos de Pessoa e Ferro 3 Vd. o estudo pioneiro de Antonio Sáez Delgado, “Ramón Gómez de la Serna, António Ferro y la
greguería”, Península – Revista de Estudos Ibéricos (4) 2007, pp. 195-202.
4 Veja-se especialmente o prefácio do autor a António Ferro, D. Manuel II, o Desventurado (Lisboa:
Bertrand, 1954), pp. 17-18, 23-24 e 34-35.
5 Vd. “Política do Espírito e sua definição” (discurso de 21 de Fevereiro de 1935), inserto em António
Ferro, Prémios Literários 1934-1947 (Lisboa: SNI, 1950), pp. 17-36, e o discurso Dez Anos de Política
do Espírito 1933-1943, op.cit., pp. 17-18.
3
defendiam, na política como na arte, um nacionalismo anti-passadista e
cosmopolita que realizasse uma síntese das influências civilizacionais
externas. A alma portuguesa não devia ser “limitada pela nacionalidade”,
escreveu Pessoa: “É preciso ter a alma na Europa”.6 Num texto inglês de
1914 sobre a moderna literatura portuguesa, Pessoa afirmava:
(...) não caímos na estreiteza de movimentos regionalistas e outros que tais. (...)
Não somos portugueses escrevendo para portugueses (...) Somos portugueses
escrevendo para a Europa, para a civilização inteira; nada somos por enquanto,
mas isto mesmo que estamos agora a fazer será um dia universalmente conhecido
e reconhecido.7
Ferro, por seu turno, sempre ocupado na importação do bom gosto dos
boulevards parisienses, defendia em 1921, numa crítica ao “regionalismo
estreito” da obra de Almeida Garrett: “para se fazer arte nacional (...) não é
necessário falar de Portugal, basta ser actual, basta encontrar a rítmica da
Hora, da Hora da raça”, e acrescentava: “A minha arte é portuguesa, bem
portuguesa, mas veste de Paris...”8 Pessoa e Ferro, nacionalistas
cosmopolitas, acreditavam na europeização de Portugal em todos os
domínios e num futuro em que o país faria falar de si, mostrando outra vez
novos caminhos ao mundo.
Da Grande Guerra até finais dos anos 20, Pessoa e Ferro trilharam
caminhos políticos por vezes próximos, para depois entrarem num processo
de crescente divergência. Pessoa evoluiria para um conservadorismo
nacionalista mas liberal, preocupado com a crescente ameaça do Estado aos
direitos do indivíduo e com a crescente influência da Igreja católica em
Portugal, olhando a vida política atentamente, mas de longe e com
cepticismo, enquanto Ferro, defensor dos regimes de autoridade e grande
admirador do fascismo italiano, buscaria activamente o poder e se tornaria
no propagandista da ditadura de Salazar – fazendo com que Pessoa
privadamente lhe inventasse o epíteto de “São Paulo do Estado Novo”, uma
alusão ao facto da saída de Ferro das hostes do republicanismo democrático
para se tornar no grande arauto da boa nova salazarista.9
6 BNP/E3, 133G-80
v, manuscrito de 1916 ou anterior, publicado pela primeira vez em Pessoa Inédito,
coord. Teresa Rita Lopes (Lisboa: Livros Horizonte, 1993), p. 314
7 Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, org. Georg R. Lind e Jacinto P. Coelho
(Lisboa: Ática, 1966), p. 119.
8 António Ferro, “O maior pecado da Arte de Garrett”, Diário de Lisboa, 23 de Maio de 1921, p. 4. Em
contrapartida, ele, Ferro, sempre petulante, não teria precisado de ir a Paris para a sua arte vir de lá: “Eu
ouvi Paris antes de o ver”.
9 Francisco Peixoto Bourbon, “Evocando Fernando Pessoa - XIV”, Eco de Estremoz, n.º3596, 3 de
Março de 1973, pp. 1 e 4.
4
Pioneiro, sob o salazarismo, do desenvolvimento do mecenato de Estado,
António Ferro é considerado por um historiador como o grande obreiro,
nos anos 30-40, da “domesticação” e “normalização” do modernismo e
como o autor de “um dos mais refinados discursos antimodernos”.10
Outros
preferem ver nele o criador de um “modernismo oficial”, de um
modernismo de Estado (embora de um Estado reaccionário), lembrando
José-Augusto França a defesa corajosa que Ferro fez da arte e dos artistas
plásticos modernos contra o “provincianismo oitocentesco que sobrevivia
nos gostos dos outros responsáveis governamentais”11
– acção que não teve
aliás paralelo, por motivos óbvios, na defesa da literatura portuguesa mais
avançada. Enfim, o panegirista de Ferro, António Quadros, apontou nele o
“fiel depositário” dos “ideais estéticos” do modernismo e o grande
“realizador prático”, sob o Estado Novo, do alegado “pensamento
profundo” do Orpheu. 12
Quadros chegou mesmo a sustentar que a
“Política do Espírito” do Estado Novo, formulada por Ferro, teria sido a
“política cultural preconizada pelo movimento do Orpheu”, ou, por outras
palavras, a “tradução do espírito do Orpheu em termos de acção
institucional e política”.13
Um autor independente, ainda que benévolo para
com Ferro, Artur Portela Filho, marca também no Orpheu a “origem” da
chamada “Política do Espírito” instaurada pelo chefe da propaganda
salazarista, embora pense que Ferro não podia ser absolutamente fiel às
ideias do grupo modernista, porque elas eram de vária natureza.14
Entre
opiniões tão díspares, alguém deve estar certamente equivocado.
O que se convencionou chamar modernismo português e cujo início se data
do lançamento da revista Orpheu foi uma vaga (ou uma maré, com duas ou
três vagas distintas) de literatura e arte em ruptura com o passado, embora
com ligações confessadas a experiências e movimentos anteriores, como o
simbolismo. Feixe de tendências estéticas e sensibilidades variadas,
movimento caracterizado pela inovação e pelo ecletismo, inclusive na
desigual relação com o passado e a tradição, o modernismo português
propunha-se romper com o marasmo literário e artístico que se arrastava
10
Nuno Rosmaninho, “António Ferro e a propaganda nacional antimoderna” em Luís Reis Torgal e
Heloísa Paulo, Estados Autoritários e Totalitários e Suas Representações (Coimbra: IU, 2008), pp. 289-
299.
11
José-Augusto França, O Modernismo na Arte Portuguesa (Lisboa: ICALP, 3.ª ed. 1991), pp. 99-105.
12
António Quadros, prefácio a António Ferro, Saudades de Mim (Lisboa: Bertrand, 1957), pp. 9-38, e o
capítulo sobre Ferro em António Quadros, O Primeiro Modernismo Português: Vanguarda e Tradição
(Lisboa: Europa-América, 1989), pp. 317-34.
13
A. Quadros, prefácio a António Ferro, Saudades de Mim, op. cit., pp. 17 e 28.
14
Artur Portela Filho, Salazarismo e Artes Plásticas (Lisboa: ICALP, 2.ª ed. 1987), pp. 57-58.
5
desde finais do século XIX. Foi também, como disse José-Augusto França,
referindo-se em especial à gente do Orpheu, uma tentativa de “reforma da
mentalidade urbana”.15
Como vaga de contestação e inovação, o
modernismo não podia deixar de ter alguns aspectos políticos, como
reacção da nova geração contra a “decadência nacional” e a
“desnacionalização”, apontadas estas tanto no constitucionalismo
monárquico como no republicanismo democrático, entre os quais Pessoa
via mais continuidade do que ruptura.16
O historiador Manuel Villaverde
Cabral assinala no modernismo português uma força desestabilizadora da
1.ª República, cuja “legitimidade cultural” teria sido “minada” por
modernistas e futuristas – e cita os nomes de Pessoa e Ferro, que assim
teriam contribuído, directa ou indirectamente, para a destruição do regime
republicano e para o advento do regime autoritário que lhe sucedeu.17
Necessário é porém constatar-se, desde logo, que o modernismo nasceu e
cresceu na 1.ª República (ainda que, por vezes, contra ela), em ambiente de
forte instabilidade política, mas de relativa liberdade de expressão e
agitação criativa. Num texto em francês escrito por volta de 1915, Pessoa
descreve o “renascimento literário” operado em Portugal nos primeiros
tempos da República, resultado, segundo ele, não da inexistente protecção
das artes e das letras pelo poder político republicano – inexistência “que
nada prova contra ela” (a República), segundo nota Pessoa −, mas devido
sim ao “fermento de vida e de esperança” e à “agitação fecunda”
provocados nas mentes pela revolução republicana.18
Pessoa e Ferro, como disse, ocuparam lugares muito diferentes no
movimento modernista. Fernando Pessoa foi, como lhe chamou o próprio
Ferro, “o grande filósofo do espírito novo”.19
Foi a figura emblemática do
movimento e um dos seus grandes criadores, com Sá-Carneiro, Santa-Rita
e Almada Negreiros. Pelo contrário, António Ferro, no dizer de José-
Augusto França, foi quem trouxe ao modernismo português “uma
dimensão em certa medida mundana, algo superficial e banalizadora”,
faceta que, na opinião do historiador, importaria também considerar na
15
José-Augusto França, recensão de António Ferro, Obras 1, Intervenção Modernista, op. cit.
16
Esta visão de Pessoa aparece já claramente expressa em Maio de 1912, no artigo “Reincidindo” (A
Águia, 2.ª série, n.º5), em que também profetiza a vinda do “homem de força” que porá fim à decadência
e à desnacionalização, colocando Portugal no caminho de um futuro glorioso.
17
Manuel Villaverde Cabral, “A estética do nacionalismo: modernismo literário e autoritarismo político
em Portugal no início do séc. XX”, em Nuno S. Teixeira e António C. Pinto, A Primeira República
Portuguesa – Entre o Liberalismo e o Autoritarismo, (Lisboa: Colibri, 1999), pp. 193 e 196.
18
“Les premières années de la République portugaise...”, BNP/E3, 55E-59, inédito publicado por
Jerónimo Pizarro em Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos (Lisboa: INCM, 2009), pp. 51-52.
19
António Ferro, “Alguns precursores”, O Notícias Ilustrado, 24 de Fevereiro de 1929.
6
literatura modernista. Para Almada Negreiros, em 1930, e, na sua senda,
José-Augusto França, o modernismo português hesitou, nas artes como na
literatura, entre uma “maneira de ser” e uma “maneira de fazer” ou “de
vestir”, melhor dito, entre um “modo” e uma “moda”.20
O modernismo na
variante mundana, como maneira de vestir ou moda, parece aplicar-se
claramente ao caso de António Ferro. Segundo o mesmo França, apreciador
benévolo do talento de Ferro, este teria sido, do grupo em torno do Orpheu,
“aquele que mais perto esteve do público lepidóptero”. Este foi o termo
depreciativo que Sá-Carneiro cunhou e Pessoa e Almada usaram para
caracterizar o meio literário reinante e o público burguês que o Orpheu
expressamente quis chocar. A confirmar esta proximidade de Ferro ao
público lepidóptero, já em 1929 o literato monárquico e católico João
Ameal, no seu “Inquérito aos escritores portugueses”, tinha designado
António Ferro como o “autorizado e legítimo representante da nova
geração” literária, isto é, do “modernismo legítimo” − omitindo no seu
inventário nomes como os de Fernando Pessoa ou José Régio, assim
aparentemente remetidos para um modernismo ilegítimo.21
Antes disso,
num artigo de 1922, tinha sido Ferro a enaltecer o suposto “modernismo”
das ignotas novelas de Ameal, elogio que o jornalista literário Ferro nunca
fez publicamente a propósito da obra poética de Fernando Pessoa. Vários
outros contribuíram para este incensamento do Ferro modernista, como o
escritor Valéry Larbaud que, em visita a Lisboa em 1926, o considerou −
certamente por amizade e, talvez, por ignorância − como “o chefe da avant-
garde literária de Portugal”.22
Quando, hoje como ontem, se apresenta António Ferro como um destacado
modernista, invariavelmente se alega à cabeça o seu papel de editor do
Orpheu. António Quadros foi ao ponto de afirmar, contra toda a evidência,
que Ferro teria sido “um dos seus mais activos e talentosos elementos”.23
O
próprio Ferro se tinha encarregado de reavivar periodicamente esse mal-
entendido em torno da sua função de "editor" do Orpheu. Literalmente
verdadeiro, o facto é totalmente equívoco e desadequado do fim em vista.
Como é sabido, o jovem Ferro foi designado, sem prévia consulta do
próprio, pelo seu amigo Sá-Carneiro para figurar como editor responsável
no cabeçalho da revista. A razão apresentada a um Fernando Pessoa
perplexo com esta escolha foi a de Ferro ser ainda menor − logo,
20
José-Augusto França, O Modernismo na Arte Portuguesa, op. cit., p. 101.
21
José-Augusto França, Os Anos Vinte em Portugal (Lisboa: Presença, 1992), p. 128.
22
A frase de Larbaud é citada pelo próprio Ferro, com a sua habitual imodéstia, no “Estudo crítico” a
anteceder a 4.ª edição de Leviana (1929), p. 27.
23
António Quadros, prefácio a António Ferro, Saudades de Mim, op. cit., p. 15.
7
irresponsável – e de essa ilegalidade ser sedutora para Sá-Carneiro.24
O
facto de ter sido em jovem das relações de Pessoa e Sá-Carneiro e de estes
lhe terem adornado um livro adolescente de quadras ao gosto popular
(Missal de Trovas, de 1914, em co-autoria com Augusto Cunha) com
considerações meramente amistosas não faz de Ferro um escritor
modernista nesse período (também Júlio Dantas, Augusto Gil e Afonso
Lopes Vieira incluíram elogios seus nesse livro). Sabemos que Pessoa
conhecia os poemas e peças de teatro do jovem amigo, sobre os quais
piedosamente guardou silêncio. Ferro não contribuiu com qualquer trabalho
para os números publicados do Orpheu e − contrariamente ao que afirmou
António Quadros25
− o seu nome não constava dos projectos de
continuação da revista em 1915-17, como não constava em 1925, quando
Pessoa planeava uma segunda fase da revista.26
A sua única contribuição
para o Orpheu de que há registo está numa nota do espólio de Pessoa que
diz ter Ferro angariado algumas assinaturas para a revista.27
Meses antes do
aparecimento do Orpheu, em carta a Côrtes-Rodrigues de 4 de Outubro de
1914, Pessoa informava ter decidido não incluir Ferro numa projectada
antologia poética do interseccionismo, por ele ser “ainda muito criança,
social e paulicamente”. Lendo os poemas que Ferro publicou por conta
própria entre 1913 e 1916, constata-se facilmente o abismo que o separava
dos colaboradores do Orpheu.28
Além da fraca opinião sobre os méritos
literários do jovem Ferro, os poetas do Orpheu também não tinham uma
excelente opinião pessoal sobre ele. “Menino idiota” e “estuporinho” é
como o seu amigo Mário de Sá-Carneiro se refere a António Ferro numa
carta a Fernando Pessoa de 2 de Dezembro de 1914.29
Ferro pertenceu
claramente ao grupo daqueles que Pessoa descreveu retrospectivamente,
num texto dos anos 20, como tendo sido “simples espectadores próximos
ou amigos [da revista], e sem que nela influíssem ou colaborassem.”30
Enfim, numa curta nota manuscrita, ainda inédita, do espólio de Pessoa
pode ler-se isto, que, no seu laconismo, parece significativo:
24
Sobre este episódio, ver Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., pp. 87-91, que
reproduz dois textos pós-1922 de Pessoa, publicados pela primeira vez por François Castex na revista
Colóquio n.º 48, Abril de 1968, pp. 59-61, com a história da revista e do grupo do Orpheu.
25
António Quadros, prefácio a António Ferro, Saudades de Mim, op. cit., p. 14.
26
Ver Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., pp. 25, 79-85 e 91-92.
27
Idem, p. 38.
28
Ernesto Castro Leal, António Ferro: Espaço Político e Imaginário Social (1918-1932) (Lisboa:
Cosmos, 1994), pp. 189-196
29
Mário de Sá-Carneiro, Correspondência com Fernando Pessoa, ed. Teresa S. Cunha (Lisboa: Relógio
de Água, 2003), vol. II, p. 29.
30
Texto de Pessoa publicado por François Castex na revista Colóquio n.º 48, pp. 59-60.
8
(Orpheu – Ferro)
O riso impossibilita-me de falar e portanto de protestar.31
O “Ferro do Orpheu” é simplesmente um mito, resistente, mas sem
conteúdo real. A obra modernista de Ferro, cujo valor estético não se
pretende aqui avaliar, surge só nos anos 20, tardiamente em relação aos
pioneiros e com características muito diversas. Sobre ela Pessoa dirá, como
adiante veremos, que frustrou a “promessa de qualidades” do jovem Ferro.
De resto, a proximidade de Ferro com Pessoa terminou abruptamente em
1915, ano do Orpheu, na sequência de um episódio que deixou para sempre
uma marca no seu relacionamento. Trata-se do caso da conhecida carta de
Pessoa/Álvaro de Campos ao jornal A Capital, em 6 de Julho de 1915,
reagindo aos sucessivos ataques da imprensa republicana contra os “poetas
de manicómio” e os “artistas de Rilhafoles” do Orpheu e, em particular, a
um artigo saído na Capital da véspera, intitulado “Gente para tudo”.32
Nessa carta Álvaro de Campos parecia regozijar-se por um grave acidente
sofrido por Afonso Costa, que ainda se encontrava no hospital. Os
membros do grupo do Orpheu demarcaram-se publicamente, como é
sabido, da atitude indecorosa de Pessoa, incluindo Sá-Carneiro, Almada
Negreiros e Côrtes-Rodrigues, mas só com Ferro houve simultaneamente
corte de relações.33
Numa carta enviada por Ferro e Alfredo Guisado ao
jornal republicano O Mundo, órgão do Partido Democrático, os subscritores
mostram-se indignados com a atitude de Pessoa, declaram a “maior
admiração” pela “alta personalidade do Sr. Dr. Afonso Costa”, de quem se
afirmam “correligionários de sempre”, e Ferro declara ainda abandonar de
imediato a responsabilidade de editor da revista, como Guisado deixara a
de colaborador logo após o primeiro número. O caso terminaria com um
incidente: a tentativa gorada de elementos da Formiga Branca de dar uma
tareia em Fernando Pessoa no Rossio, que o próprio Pessoa descreveu
como uma tentativa de linchamento. Segundo confidenciou mais tarde a
Francisco Peixoto Bourbon, um jovem membro da tertúlia do Café
Montanha, Pessoa terá ficado convencido de que Ferro não fora totalmente
alheio ao incidente.34
O mesmo Peixoto Bourbon, que só conheceu o poeta
a partir de 1927, sustenta que entre os ódios de estimação de Fernando
Pessoa estaria António Ferro, além do escritor lepidóptero e director do
31
BNP/E3, 87-37r.
32
Sobre o episódio, ver Nuno Júdice, Na Era do “Orpheu” (Lisboa: Teorema, 1986), pp. 101 e segs.
33
Francisco Peixoto Bourbon, “Evocando Fernando Pessoa”, Ecos de Estremoz, 3.III.1973, p. 4.
34
Idem.
9
Diário de Lisboa, Joaquim Manso, e de Pedro Teotónio Pereira, que em
1923, à frente dos estudantes católicos de Lisboa, protagonizou a campanha
de moralização contra a literatura “dissolvente”, principalmente a editada
pela Olisipo.
Diga-se que o Orpheu, enquanto grupo de escritores e artistas, não tinha
“ideias” próprias, não as expôs em nenhum manifesto ou documento
colectivo, não possuía uma linha estética precisa, muito menos uma linha
filosófica ou política − nem absolutamente nada que se parecesse com um
programa ou uma “política cultural”. São aliás conhecidas as dissensões
internas durante a curta e acidentada vida da revista. Numa declaração de
1915, redigida por Pessoa, destinada a ser assinada também por Sá-
Carneiro, negava-se que os elementos do grupo tivessem uma escola, uma
identidade ou um ideário colectivos:
Os artistas do Orpheu pertencem cada um à escola da sua individualidade própria,
não lhes cabendo portanto [...] designação alguma colectiva. As designações
colectivas só pertencem aos sindicatos, aos agrupamentos com uma ideia só (que
é sempre nenhuma).35
Se havia características comuns que Pessoa reclamava em 1915 para o
grupo do Orpheu, elas eram unicamente a “absoluta originalidade” e o
“cosmopolitismo” ou “internacionalismo”.36
O jovem Ferro, voluntariamente afastado do grupo em 1915, foi depois
estranho às publicações que surgiram no rasto do Orpheu e, de certo modo,
continuaram a sua linha inovadora, como as revistas Centauro, em 1916, e
Portugal Futurista, em 1917, a que Almada e Pessoa estiveram ligados,
embora tenha colaborado com uma poesia no número único de Exílio
(1916). Bem pelo contrário, na sua estreia como colunista do jornal O
Século, em 1918, António Ferro fez questão de troçar dos poetas do Café
Martinho, então poiso obrigatório de modernistas, futuristas e também de
Pessoa. Ferro fazia aí alusões que pareciam visar o poeta dos heterónimos e
da “Ode Triunfal”, bem como a revista Portugal Futurista, publicada
meses antes. Nesse longo artigo, em que não há uma palavra positiva sobre
os poetas da sua geração, mas apenas menosprezo e troça, diz Ferro:
Os poetas do Martinho! A sua Arte é um constante Carnaval... Andam todos
mascarados, com receio que não lhes dêem pela falta de talento... [...] E os que
posam de futuristas, que cantam a força, as máquinas, o Progresso, e andam para
aí a apodrecer pelas esquinas?!... [...] Os poetas da minha geração! Pobres cegos
35
Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., p. 69.
36
Idem, p. 49.
10
de estrada a lamuriar elogios... Tenham paciência, tenham paciência, não pode
ser.37
Refira-se num parêntese que, muito mais tarde, em 1932, quando se
candidatava já a um cargo na Ditadura, Ferro voltaria, em nome do “bom
gosto”, a atacar o futurismo, o “futurismo barato” e “pelintra”, que apelida
então de “falso vanguardismo” e descreve como “o futurismo dos borrões
vermelhos, dos triângulos pendurados e do delírio verbal...” E remata:
“Que não nos obriguem a ter saudades, por amor de Deus, do crochet das
nossas avós...”38
O bom futurismo era para ele, então, o do sexagenário
Marinetti, colocado já por Mussolini na Academia de Itália, reconciliado
com o que atacara antes, inclusive o academismo, e que, por isso mesmo,
foi em 1929 alvo do sarcasmo de Álvaro de Campos no poema “Marinetti
académico”, que Pessoa deixou inédito. Ferro trouxe em 1932 o eminente
académico fascista a Portugal, onde foi recebido também por Júlio Dantas.
Num furibundo artigo de jornal, Almada Negreiros não poupou Marinetti,
que, esquecendo os verdadeiros futuristas portugueses dos tempos heróicos,
viera a Lisboa de casaca acamaradar com os “putrefactos”, os “arranjistas”,
os “botas-de-elástico”, “os inimigos figadais do futurismo”, nomeando o
académico Júlio Dantas e o “mundano” António Ferro, acusando este de
“habilidades” de autopromoção e de ter um “programa pessoalíssimo” que
nada teria que ver com uma verdadeira política do espírito – conceito
pouco antes posto a circular por Ferro, prestes a entrar ao serviço de
Salazar.39
Para além do que é característico na sua verve, creio que Almada
expressava aqui também a opinião de Pessoa.
Mas voltemos atrás, aos anos pós-Grande Guerra. Na década de 20,
Fernando Pessoa e Almada Negreiros tiveram ocasionais relações de
colaboração com Ferro, que entretanto renegara as suas simpatias
democráticas, sob a influência do sidonismo e do irrequieto comandante
Filomeno da Câmara, de quem fora secretário no governo de Angola em
1918. Regressado a Lisboa ainda nesse ano, Ferro lançou-se com êxito na
carreira do jornalismo político e cultural, sendo em breve requisitado pelos
principais jornais de Lisboa. A Ilustração Portuguesa, que Ferro dirigiu
durante um semestre em 1921-22, foi por ele renovada, conseguindo-lhe
colaborações de Almada Negreiros e poemas de Fernando Pessoa.
37
“Carta do Martinho” (O Século, 3 de Março de 1918) reproduzida em Ferro, Obras I - Intervenção
Modernista (Lisboa: Verbo, 1987), pp. 10-11.
38
António Ferro, “Ano Novo, Ano Bom?”, Diário de Notícias, 1.I.1932, p. 1.
39
Almada Negreiros, “Um ponto no i do futurismo”, Diário de Lisboa, 25.XI.1932, pp. 5 e 8.
11
Entre 1919 e 1921, são visíveis nos escritos de Pessoa e Ferro crescentes
afinidades políticas, quer na rejeição do republicanismo democrático
novamente vigente em Portugal quer na promoção de soluções
conservadoras ou ditatoriais. Ferro, sem deixar de se declarar republicano,
inicia-se em 1919 no jornalismo político, no diário O Jornal, com textos de
grande violência contra os governantes do Partido Democrático, que apoda
de “quadrilha tenebrosa”, contra o Parlamento (“Congresso dos abutres”),
contra a República parlamentar (“ditadura de imbecis”) e posiciona-se
numa linha neo-sidonista, de defesa do presidencialismo conservador.40
Ferro declara, em Dezembro de 1919, que Portugal precisa de um ditador e
está certo que ele acabará por surgir numa manhã de nevoeiro.41
Na opinião
abalizada do fascizante Filomeno da Câmara, Ferro revelou-se nesses anos
como “um dos precursores na defesa do princípio da Autoridade”.42
Fernando Pessoa, gradualmente convertido desde 1915 ao nacionalismo
antidemocrático e, depois, à ideia monárquica, sem porém se aproximar do
Integralismo Lusitano, atravessava em 1919-20 a sua fase doutrinariamente
mais conservadora e elitista, de um radicalismo crescente, particularmente
visível nos escritos inéditos, pondo em causa os próprios princípios
políticos liberais em nome de um “princípio da Autoridade” que
identificava preferencialmente com a monarquia centrada no rei. Verberava
ao mesmo tempo a “anarquia” operária da CGT e a “plutocracia” capitalista
da Associação Industrial, grupos de interesses que, embora opostos entre si,
lhe pareciam conluiados para a ruína do país.43
Em 1919-20 Pessoa e Ferro escrevem ambos textos e poemas laudatórios
da figura de Sidónio, mitificando o messias morto, procurando fazer dele
um modelo sebastianista para a acção política. Pessoa funda em 1919 com
dois ou três amigos o minúsculo Núcleo de Acção Nacional e publica
longos textos políticos no jornal neo-sidonista Acção (a que Ferro foi
completamente alheio), tentando provar que a democracia baseada no
sufrágio era antipopular, antipatriótica e contrária à opinião pública e que o
constitucionalismo monárquico e a República tinham desnacionalizado
Portugal.44
O país precisaria, segundo ele, de um chefe messiânico, um
40
António Ferro, “A máscara dos dentes brancos”, O Jornal, 7.XI.1919, p. 1; “Os bons republicanos...”,
O Jornal, 9.IX.1919, p. 1; “A dança macabra”, O Jornal, 29.X.1919, p. 1.
41
António Ferro, “Sinfonia heróica”, O Jornal, 5.XII.1919, p. 1.
42
Filomeno da Câmara, Prefácio a António Ferro, Viagem à Volta das Ditaduras (Lisboa: Empresa do
Diário de Notícias1927), p. 12.
43
Baseamo-nos aqui em três escritos sem cota, datáveis de ca. 1919, provenientes do espólio de Pessoa
na posse da família, que começam: “Portugal tem a escolher...”, “Com a queda da Monarchia...” e “Ha,
por junto, só trez systemas verdadeiros de governo...”, que nos foram facultados por Jerónimo Pizarro.
12
Presidente-Rei que levasse a cabo um programa de industrialização
sistemática do país. A colaboração de Pessoa para Acção acabaria suspensa
pelo director Geraldo Coelho de Jesus − que repudiava a sua alegada defesa
da monarquia absoluta na (anunciada) terceira parte do artigo “A opinião
pública”−, ao mesmo tempo que a publicação do próprio jornal era
interrompida sine die.45
Nas vésperas do triunfo do fascismo em Itália e da ditadura de Primo de
Rivera em Espanha, Pessoa e Ferro pareciam, pois, politicamente
próximos, ainda que divergentes quanto à questão da forma de governo,
Monarquia ou República. No discurso de ambos, ao lado do tom radical,
quando não violento, podem detectar-se desde 1919 (ano do regresso do
Partido Democrático ao poder) certos temas, valores, modelos e anti-
modelos que levaram alguns autores falar de um discurso político pré-
fascista.46
Discurso que, no caso de Ferro, seria plenamente confirmado
pelas suas simpatias fascistas, declaradas logo em 1923 ao próprio
Mussolini numa entrevista em Roma. De volta a Lisboa, Ferro dará conta
ao público português do seu entusiasmo pelo alegado “milagre” fascista e
do seu fascínio por Mussolini, a quem chama o “grande mestre da política
moderna”, lamentando que em Portugal não seja possível milagre idêntico
ao italiano, por andarem aqui todos de “olhos fechados”.47
Mas o fascismo
italiano nunca suscitou em Fernando Pessoa semelhante epifania política,
muito pelo contrário. Logo nesse ano de 1923, em que Ferro trouxe para
Portugal a boa nova do milagre fascista, Pessoa escrevia num texto da arca
que recentemente dei a conhecer:
Quando, pois, em resposta a argumentos, como aqueles que de todas as partes
(…) se levantam contra o fascismo, se responde com a regularização do horário
dos comboios, a melhoria do valor da lira, e, até, o estabelecimento da ordem
pública (supondo que a paz varsoviana seja a ordem), não se responde a nada:
alega-se simplesmente uma coisa diferente, e que não vem para o caso. Matar,
torturar e enxovalhar não são fenómenos necessariamente envolvidos na
produção do bom funcionamento dos comboios. Não é inconcebível que se
possa melhorar a lira sem queimar bibliotecas particulares, e exercer sobre a
imprensa uma censura de carácter físico.48
44
Fernando Pessoa, “Como organizar Portugal”, Acção n.º 1, 1.V.1919, e “A opinião pública”, Acção n.os
2 e 3, 1.V.1919 e 4.VIII.1919.
45
Leia-se a nota anónima intitulada “A opinião pública”, inserta no n.º 4 e último de Acção (27.II.1920),
em que se descreve a posição de Fernando Pessoa como “ultramonárquica” ou “monárquica antiliberal”.
46
Vd., por exemplo, Manuel Villaverde Cabral, op. cit., p. 188.
47
A. Ferro, Viagem à Volta das Ditaduras, op. cit., pp. 59-75.
48
[Matthew Arnold, que foi…], BNP /E3, 92I-76r e 76
v, publicado sem título no diário i, n.º 163, 12 de
Novembro de 2009.
13
O fundo liberal da formação cultural e política de Pessoa, o valor por ele
atribuído ao indivíduo e à liberdade do espírito, a profunda desconfiança
em relação ao Estado imunizaram-no contra a solução totalitária.49
Pessoa
não abandonaria a sua defesa de um chefe carismático apoiado num mito
messiânico popular (nisto consistia o seu sebastianismo político), mas o seu
modelo de homem de Estado – dir-se-á que completamente anacrónico na
Europa do séc. XX – aproximava-se mais do de um monarca absoluto do
iluminismo, cujo paradigma máximo era, para Pessoa, Frederico II da
Prússia.50
Apesar das afinidades políticas parciais, do comum ofício literário, das
aparentes afinidades modernistas e da pequenez de Lisboa, as relações
entre Pessoa e Ferro nos anos 20 resumem-se a um magro inventário. Não
há testemunhos de convivência entre os dois amigos de outrora. Troca de
correspondência só aparece nos anos 30: duas cartas de cortesia de Pessoa,
uma terceira em que este intercede junto de Ferro, então já no poder, no
interesse dum amigo, e, em resposta a esta, uma única carta de Ferro para
Pessoa, prometendo fazer o que puder.51
Nos milhares de páginas do
espólio de Pessoa o nome de Ferro só muito raramente aparece em
referências posteriores a 1915. Em dedicatórias manuscritas de livros
oferecidos a Pessoa nos anos 20 e 30, Ferro não deixou de afiançar a sua
admiração por ele, que parece sincera. Mas os livros que Ferro publicou
entre 1920 e 1925 e lhe granjearam a fama de escritor modernista nunca
mereceram a Pessoa um comentário elogioso, podendo arriscar-se que o
tom assumidamente frívolo, blagueur e presunçoso de Teoria da
Indiferença e de Leviana o tenha deixado no mínimo indiferente. Quando,
em 1925, Ferro publica o seu último volume de contos, A Amadora dos
Fenómenos, Pessoa reagiria com vivo desdém, numa curta crítica que não
publicou, em que também trata o autor de imbecil:
Este livro é a coisa intelectualmente mais abjecta que tem até hoje produzido
uma criatura incapaz de o fazer. Conhecemos Antonio Ferro há muito tempo, e
antigamente ele dava promessa de qualidades, pelo processo mais seguro de se
49
Vd. a auto-apreciação que Pessoa faz num texto de 1935, “Explicação de um livro”, BNP/E3, 21-136 a
139, publicado pela primeira vez em Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, op. cit.
50
Exprimimos já esta opinião em “Fernando Pessoa e Salazar: sobre o pensamento político do escritor e
a sua ruptura com o salazarismo” (comunicação ao I Congresso Internacional de Fernando Pessoa,
Lisboa, Novembro de 2008), publicado sob o título “Pessoa & Salazar” em Pessoa – Revista de Ideias, n.º
3, Junho de 2011, pp. 17-34.
51
Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935, ed. M. Parreira da Silva (Lisboa: Assírio & Alvim,
1999), pp. 197-198, 289 e 309-310, e Correspondência Inédita, ed. M. Parreira da Silva (Lisboa: Livros
Horizonte, 1996), p. 137.
14
dar promessa de uma coisa – tê-la já. Desde então, à parte a salvação de
algumas quebras, tem sido um caminhar rápido para A Amadora de
Fenómenos. Este livro é o máximo do mínimo. Não evoca o Orpheu: invoca
Morpheu. (...)52
Em 1923, quando a representação da peça de António Ferro “Mar Alto” foi
proibida na sequência de desacatos verificados na estreia, Fernando Pessoa
subscreveu coerentemente o protesto de cinquenta homens de letras e
artistas contra a intromissão da autoridade policial em matéria de
moralidade literária. Meses antes, recorde-se, a polícia e os estudantes
católicos chefiados por Teotónio Pereira – macaqueando a campanha de
moralização pouco antes desencadeada em Itália pelos squadristi fascistas
– tinham efectuado rusgas pelas livrarias de Lisboa e exigido o confisco e a
queima de livros ditos imorais, alguns editados pela Olisipo de Fernando
Pessoa. Sobre a curta experiência do chamado Teatro Novo, promovido em
1925 por António Ferro e José Pacheco, Pessoa considerou, num artigo que
ficou inédito, que ela não teve êxito nem poderia ter tido, pela escassez de
público potencial e pelo erróneo critério de escolha das peças
representadas.53
Em 1928, Pessoa enviou a Ferro um exemplar assinado de
O Interregno: Defesa e Justificação da Ditadura Militar. Ferro reciprocou,
em 1933, com o envio de um exemplar, dedicado a Pessoa e dois dos seus
heterónimos, do livro Salazar: O Homem e a sua Obra. Pessoa agradeceu
por carta, elogiando a “mestria publicitária” do autor e esclarecendo essa
expressão: “não vai nada que não seja elogioso na alma deste adjectivo
corporalmente dúbio” – não fosse Ferro suspeitar de uma farpa disfarçada
de elogio.54
Na tertúlia habitual do Café Montanha, Pessoa falava ao
círculo de amigos com menos subtileza sobre Ferro e sobre a sua actividade
de proselitismo salazarista. Um dos convivas, o já aqui citado Peixoto
Bourbon, deu mais tarde testemunho, em repetidas evocações jornalísticas,
não só da velha antipatia de Pessoa por Ferro, mantida até ao final da vida,
mas também do epíteto de “São Paulo do Estado Novo” com que Pessoa
crismou Ferro.
Nas memórias da escritora Fernanda de Castro, por insistência de leitores
do primeiro volume que tinham estranhado o silêncio sobre o Orpheu, a
viúva de Ferro dedicou algumas linhas a Fernando Pessoa, para dizer que
ele era “ensimesmado” e “de uma timidez que chegava a incomodar-nos”.
Fernanda de Castro diz ter-se cruzado com Pessoa na casa de uma tia e na
52
BNP/E3, 142-94
r, cujo conhecimento devemos a Jerónimo Pizarro e Pauly Ellen Bothe.
53
BNP/E3, 55D-65-67. Este texto de Pessoa, que teria o título de “O Inêxito do ‘Teatro Novo’”, está
inserto numa lista de colaborações de 1925 para um projectado número do Orpheu da “segunda fase”, que
nunca se realizou. Vd. Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., pp. 91-92 e nota.
54
Fernando Pessoa, Correspondência 1923-1935, op. cit., p. 289.
15
de um casal amigo e conversado com ele numa livraria.55
E é tudo. A
autora não refere qualquer convivência de Pessoa com António Ferro ou
com o casal, por cuja casa passavam numerosos amigos, e aproveita para
desmentir como falso e mesmo “absurdo” o rumor segundo o qual Pessoa
teria tido uma paixão por ela, e que, por essa razão, se teria afastado do
casal.56
Refira-se ainda que não há qualquer livro de Fernanda de Castro na
biblioteca de Fernando Pessoa.
O golpe militar de 28 de Maio de 1926 despertou grandes expectativas em
Pessoa e em Ferro. Em 1927-28, Pessoa ressuscita o fantasmático Núcleo
de Acção Nacional de 1919 para, em nome dele, mas declarando não lhe
pertencer, publicar o folheto O Interregno, uma defesa da Ditadura Militar
baseada na convicção de que a democracia era impossível e de que era
indispensável um “Estado de transição” ou “Interregno” comandado pelos
militares, única entidade vocacionada para instaurar um novo “sistema de
governo” em Portugal. A Ditadura Militar não agradeceu a defesa que
Pessoa lhe fez, redigida em termos abstractos e insólitos, próprios de um
intelectual céptico e outsider, conservador anglófilo e, sobretudo, suspeito,
pois recusava expressamente no folheto em causa apoiar os actos concretos
do governo.57
Amuado ou desiludido, Pessoa não voltou à praça pública
para continuar a projectada exposição das suas teses políticas. Regressou
em força aos seus poemas de Álvaro de Campos e ao Livro do
Desassossego, interrompido quase dez anos antes, mas continuou a registar
privadamente, ao longo do período final de vida, as suas ideias e análises
políticas. Em Março de 1935, muito desiludido já com o Estado Novo (que
dizia ignorar o que seria), Pessoa repudiaria o folheto O Interregno,
declarando sobre ele: “Deve ser considerado como não existente”.58
Note-
se que assim não o entendeu o semanário Bandarra, da Editorial Império
(um e outra ligados ao Secretariado de Propaganda Nacional, de António
Ferro), que lhe republicou integralmente O Interregno logo após a morte do
escritor.59
A Editorial Império conhecia bem a posição do autor sobre essa
55
Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória – Memórias II (1939-1987) (Lisboa: Verbo, 2.ª ed. 1988), pp.
270-271.
56
Os rumores novelescos são persistentes, mesmo quando desmentidos. Este foi reposto em circulação
em 2009 por uma neta de Ferro, que declarou a um jornalista que Pessoa era “visita diária lá de casa” e
alegou a existência de um bilhete inédito, supostamente amoroso, de Pessoa para Fernanda de Castro. Vd.
a notícia “Fundação António Quadros foi apresentada ontem em Lisboa”, Público, 24 de Março de 2009.
57
Fernando Pessoa, O Interregno. Defeza e Justificação da Dictadura Militar em Portugal (Lisboa:
Núcleo de Acção Nacional, 1928), p. 6.
58
A afirmação consta da conhecida “nota biográfica” de Fernando Pessoa redigida em Março de 1935.
59
Bandarra n.os
40 a 43 (Dezembro 1935 a Janeiro de 1939), que são também os últimos números do
efémero semanário com que Ferro pretendia fazer frente à imprensa cultural dos “intelectuais livres”.
16
obra, pois foi essa editora que em 1940 revelou pela primeira vez ao
público uma "nota autobiográfica" em que Pessoa abordava essa questão –
nota que foi amputada, com consciência culposa, dos trechos em que
Pessoa afirmava as suas ideias políticas e repudiava O Interregno.60
A atitude de Ferro durante a Ditadura Militar foi muito diversa da de
Pessoa. A ligação de Ferro a Filomeno da Câmara − seu tutor político, que
o tinha arrancado ao ambiente “detestável” do Café Martinho para o levar
para Angola − levá-lo-ia a envolver-se pessoalmente nas várias tentativas
golpistas do comandante, antes e depois do 28 de Maio de 1926, inclusive
em Agosto de 1927, quando o golpe militar comandado por Filomeno e
secundado por Fidelino de Figueiredo − o “golpe dos Fifis” − pretendeu
empurrar a Ditadura para um figurino mais mussolinesco. Ferro foi
elemento de ligação entre Filomeno e as unidades militares sublevadas.61
O
livro de entrevistas de Ferro Viagem à Volta das Ditaduras, publicado
pouco antes dessa tentativa de golpe, tinha um longo prefácio de Filomeno,
candidato a ditador que Ferro promovia. O fiasco da intentona militar
empurraria Filomeno para Angola, deixando Ferro à procura de outro
candidato para promover e de outro caminho pessoal para o poder. Quando
Salazar assumiu as rédeas da governação, Ferro levou a cabo uma
aproximação meticulosa e bem sucedida ao homem do poder, numa
sucessão de artigos políticos publicados em 1932 no Diário de Notícias62
,
coroados, em Dezembro, pelas famosas entrevistas com Salazar.
Perante a ascensão do “ditador das Finanças” e a génese do novo regime,
Fernando Pessoa manteve-se numa expectativa algo benévola, mas sempre
crítica. As diferenças em relação ao passado da República eram para ele
genericamente positivas. Havia, finalmente, ordem no país e o tom
despojado e austero do ditador soava a novidade num país que, desde a
Monarquia, fora pasto de oradores demagogos.63
As influências ideológicas
integralista, maurrasiana, corporativista e católica que o programa
salazarista evidenciava eram encaradas por Pessoa, desde 1930, com a
maior desconfiança, mas a obra administrativa do governo começava a
60
Vd. Fernando Pessoa, Á Memoria do Presidente-Rei Sidonio Paes (Lisboa: Ed. Império, 1940). A nota
biográfica de Pessoa está nas pp. 3-4, com a menção que se trata de um “extracto”. As partes amputadas
revelavam a posição política e ideológica de Pessoa, que desagradavam à editora.
61
Ernesto Castro Leal, António Ferro: Espaço Político e Imaginário Social, op. cit., p. 43, nota 57.
62
Artigos “Ano Novo – Ano Bom?” (Diário de Notícias, 1.I.1932), “Vida” (DN, 7.V.1932), “Falta um
realizador...” (DN, 14.V.1932), “O Ditador e a multidão” (DN, 31.X.1932), “Política do Espírito” (DN,
21.XI.1932).
63
Veja-se a este respeito José Barreto, “Salazar and the New State in the Writings of Fernando Pessoa”,
Portuguese Studies, vol. 24, n.º 2 (2008), especialmente pp. 171-181.
17
aparecer e o prestígio de Portugal no exterior ressurgia, como ele
constatava pela imprensa estrangeira. O teste decisivo da nova ordem
política passaria muito, para Pessoa, pelo tipo de relação que Salazar e o
seu Estado Novo iriam criar com a elite intelectual e cultural portuguesa,
mais do que pela saúde das finanças públicas. Iria o lente de Coimbra
revelar-se um ditador esclarecido, apoiado numa relação viva com a
inteligência do país, ou não passaria de um contabilista promovido a César,
limitado pelas estreitezas da sua especialização financeira, da sua origem
rural e da sua formação de seminário? Por volta de 1932-33, Pessoa
escrevia sobre Salazar:
Faltam-lhe os contactos com todas as vidas – com a vida da inteligência, que
vive de ser vária e, entre os conflitos das doutrinas, não sabe decidir-se; com a
vida da emoção, que vive de ser impulsiva e incerta (...) 64
Também António Ferro se preocupava, à sua maneira, com este mesmo
problema da relação do ditador e da ditadura com a “vida do espírito”,
como lhe chamava, um problema que ele diagnosticou, nos citados artigos
do Diário de Notícias de 1932, como sendo o da apatia cultural do país, do
mau gosto imperante e da nefasta dispersão das iniciativas, dos espíritos e
dos talentos literários e artísticos − “tudo à espera de ordens”, dizia Ferro65
,
situação que reclamava a entrada em acção de um “encenador” (pensava
em si próprio) que impusesse o “bom gosto” e organizasse
centralizadamente o entusiasmo, a alegria e a animação espiritual da nação.
O regime nacionalista autoritário precisava de uma política cultural
coerente com os seus fins, mas imaginativa e ousada. Ferro chamou-lhe
“Política do Espírito”, roubando a expressão a Paul Valéry, que a utilizara
pouco antes num contexto muito diverso. Mas preocupava Ferro
igualmente, à luz do seu modelo mussoliniano, o problema do “isolamento,
frieza e rigidez” do ditador português66
, isto é, a sua falta de ligação não só
com a elite intelectual, mas também com “a multidão”. O austero e
recatado ministro das Finanças, mesmo depois de elevado a ditador, não via
utilidade em gastar dinheiro com a cultura ou com o marketing político,
facetas do que então candidamente se chamava propaganda. Na resolução
destes problemas precisos e interligados anteviu Ferro o seu caminho para
o poder, a oportunidade para fazer vingar as suas ideias modernas de
animação cultural e de promoção da imagem interna e externa do país, do
regime e do seu chefe. Propôs e realizou as entrevistas com Salazar, depois
64
BNP/E3, 92M-74 a 76, publicado pela primeira vez por Teresa Rita Lopes em Pessoa Inédito, op. cit.,
p. 366.
65
António Ferro, “Falta um realizador”, art. cit.
66
António Ferro, Introdução a Salazar: O Homem e a Sua Obra (Lisboa: ENP, 1933), p. 10.
18
reunidas em livro e traduzidas em várias línguas. José-Augusto França
descreve as entrevistas de Ferro como “a primeira pedra na mitificação” de
Salazar, e o seu autor, no panorama português, como “o único intelectual
(tirando outros, menores) que levou uma atracção fascista a consequências
práticas”.67
O êxito do livro faria o ditador ceder às ideias de Ferro,
nomeando-o director do Secretariado da Propaganda Nacional em Outubro
de 1933. Na Alemanha surgira seis meses antes o Ministério da Cultura
Popular e da Propaganda, com Goebbels à frente, e em Itália estava-se já a
caminho do MinCulPop, Ministério da Cultura Popular, assim crismado em
1937, depois de ter nascido como Subsecretariado de Estado para a
Imprensa e a Propaganda. Nos três organismos era trave-mestra a ligação
da cultura com a propaganda.
A instituição dos prémios literários do SPN, uma das primeiras iniciativas
de Ferro no cargo em que iria permanecer 17 longos anos, propunha-se
começar a realizar um dos objectivos da sua Política do Espírito,
textualmente, o “desenvolvimento de uma arte e de uma literatura
acentuadamente nacionais”. Promoção, pois, de um certo tipo de literatura
e arte, com apoio a “uma galeria de renovadores da arte e das letras que
devem ser revelados, aproveitados e auxiliados”. Exigia-se dos poetas,
prosadores e ensaístas candidatos aos prémios “uma intenção amplamente
construtiva”, um “firme critério patriótico” e “um alto sentido de exaltação
nacionalista”.68
O incitamento de amigos, especialmente de Augusto Ferreira Gomes, e a
perspectiva do prémio pecuniário levaram então Fernando Pessoa a decidir-
se pela publicação de Mensagem, livro há muito em preparação, que
completou em 1934 a tempo de participar no concurso. José Blanco
historiou com detalhes reveladores o modo como os amigos de Pessoa e o
próprio António Ferro auxiliaram a promoção do livro e o persuadiram da
conquista garantida do prémio.69
Ferro – que, segundo Blanco, teria mesmo
adiantado à tipografia o custo de impressão do livro – explicou no final do
concurso aos jornalistas que com o prémio atribuído a Pessoa o júri por ele
presidido desejara roubar o poeta ao seu “isolamento voluntário do grande
público”, enaltecendo o “alto sentido nacionalista” da Mensagem.70
Um
colaborador de Ferro, o já citado João Ameal, autor do célebre Decálogo
67
José Augusto França, “Sondagem nos anos 20: cultura, sociedade, cidade”, Análise Social n.º 77-79
(1983), p. 838.
68
António Ferro, A Política do Espírito e os Prémios Literários (Lisboa: SPN, s.d.), pp. 27 e segs.
69
José Blanco, “A verdade sobre a Mensagem”, em S. Dix e J. Pizarro (orgs.), A Arca de Pessoa (Lisboa:
ICS, 2007), pp. 147-158.
70
“O fim do ano literário. Os prémios dos concursos do SPN”, Diário de Lisboa, 31.XII.1934, p. 16.
19
do Estado Novo, publicado pelo SPN, foi depois um pouco mais explícito,
num artigo publicado no Diário da Manhã, órgão político do regime. A
Mensagem era aí elogiada e apresentada como uma obra profética, o toque
de clarim anunciando o “futuro já presente”, a “alvorada” que se vivia, o
nascente Estado Novo.71
Era arriscada esta interpretação política do sentido
da Mensagem, em especial do seu verso final − a exclamação “É a hora!”
Para Ameal, a “hora” era claramente a hora do Estado Novo. Mas como iria
Pessoa reagir a esta leitura? Aceitaria ele pacificamente o papel que lhe
propunham de clarim, poeta e profeta do regime? Estaria a “hora” da
Mensagem acertada pelo relógio da União Nacional? Não estava. Dali a
dez dias, a 4 de Fevereiro de 1935, Pessoa veio a público no Diário de
Lisboa com um calculado artigo de grande repercussão pública em defesa
do maior inimigo do regime, a Maçonaria. Perante o escândalo, o Diário da
Manhã sentiu-se obrigado a desautorizar a prévia interpretação de Ameal e
a atacar o ingrato Pessoa na primeira página, ironizando com a expressão
“É a hora!” e com o título da Mensagem (trocado por Maçagem) e
concluindo, aliás brilhantemente, que não se podia confiar em poetas.
Pessoa comprara o seu relógio numa loja maçónica, opinava o jornal,
rematando deselegantemente: “Ora sebo!...”72
Na sequência directa de
instruções de Salazar, a 6 de Fevereiro, ao director dos Serviços de
Censura73
, não foi permitida a continuação da polémica em torno do artigo
de Pessoa74
e este não pôde defender-se dos ataques de que foi alvo na
imprensa, passando de imediato a ser considerado persona non grata pelos
censores. Em suma, Salazar mandou silenciar Fernando Pessoa. Sobre o
presumível responsável pela mordaça de que foi alvo, Pessoa escreveu
numa nota: “pelo dedo se reconhece o Anão”.75
O “Anão” era visivelmente
Salazar, a quem Pessoa noutro texto de 1935 chama isso mesmo.76
Na
semana seguinte, o poeta faltou à cerimónia de entrega dos prémios
literários do SPN, que ia ser presidida pelo ditador. Esquivou-se assim a
ficar para a posteridade na fotografia oficial ao lado de Salazar, Ferro e das
outras individualidades literárias, civis e militares que nela figuram. A
tentativa de António Ferro de cooptar Pessoa e de o fazer solenemente
alinhar na sua Política do Espírito saldou-se por um fiasco público. 71
João Ameal, “Mensagem – versos de Fernando Pessoa”, Diário da Manhã, 25.I.1935, p. 3.
72
“A dança das horas. Um poeta e o papão (e que papão!) maçónico”, Diário da Manhã, 5.II.1935, p. 1.
73
ANTT/Arquivo Salazar, Agenda de 1935, dia 6 de Fevereiro.
74
Ver o fac-simile da circular n.º 101 da Censura em Richard Zenith, Fotobiografias Séc. XX: Fernando
Pessoa (Lisboa: Círculo de Leitores, 2008), p. 164.
75
BNP/E3, 53B-1r-v
, publicado por Teresa Rita Lopes em Pessoa Inédito, op. cit., p. 336.
76
BNP/E3, 92M-41, publicado por Teresa Rita Lopes, op. cit., p. 375.
20
A reacção de Pessoa não se ficou por essa não comparência. O premiado
ausente leu nos jornais do dia seguinte (22 de Fevereiro de 1935) os relatos
da cerimónia dos prémios, em que Ferro e Salazar tinham discursado. Ferro
tinha exposto de maneira circunstanciada as linhas mestras da Política do
Espírito do Estado Novo, que não se limitaria a dar “assistência aos artistas
e escritores” e a criar-lhes uma atmosfera propícia à criação, mas se
destinava também a “estabelecer e organizar o combate contra tudo o que
suja o espírito”, a “fazer o necessário para evitar certas pinturas viciosas do
vício que prejudicam a beleza, a felicidade da beleza, como certos crimes e
taras ofendem a humanidade, a felicidade do homem”; destinava-se ainda a
“combater sistematicamente (...) tudo o que é feio, grosseiro, bestial, tudo o
que é maléfico, doentio, por simples volúpia ou satanismo”. Os prémios do
SPN destinavam-se a distinguir “intenções amplamente construtivas”.
Sendo o SPN um órgão da Presidência do Conselho, bastava, segundo
declarou Ferro, ler os discursos de Salazar e “os princípios morais que
neles se contêm” (sic) para se entender o que eram essas “intenções
amplamente construtivas”. Quem não se identificasse com elas, que não
concorresse. A terminar, Ferro definiu numa tirada o “espírito” que
animava a festa dos prémios literários: “Organizando-a, dando-lhe
solenidade, nós quisemos declarar guerra publicamente aos déspotas da
liberdade de pensamento, aos intelectuais ‘livres’ cheios de cadeias e
preconceitos, aos defensores do homem gidiano, do homem-terramoto.
Narcisos da democracia, envenenadores do mundo!” Por sua vez, na sua
intervenção, Salazar estendeu o âmbito da Política do Espírito muito para
além do estímulo dos prémios literários. O ditador justificou a imposição,
na nova ordem política, de “limitações” e “directrizes” à actividade mental
e à criação intelectual e artística em Portugal. Condenou o “amoralismo” e
a “arte pela arte” como “frutos lindos de ver-se, mas inaproveitáveis ou
nocivos”. Expôs a tese sociológica de que os períodos decadentes da
história (pensava na 1.ª República) coincidiam na arte e na literatura com
“manifestações mórbidas” (estaria a pensar na literatura de manicómio e
nos artistas de Rilhafoles de 1915 ou na literatura de Sodoma alvo das
rusgas católicas de 1923?). Pelo contrário, nos períodos de elevação,
robustecimento e engrandecimento das nações (Salazar pensava no Estado
Novo), era preciso “alimentar na alma colectiva as grandes certezas e
contrapor às tendências de dissolução propósitos fortes, nobres exemplos,
costumes morigerados”. Justificando a censura e as directrizes à arte, o
ditador sustentava que não podia “valer socialmente tanto o que educa
como o que desmoraliza”, que não podia haver equivalência entre “os
criadores de energias cívicas ou morais e os sonhadores nostálgicos do
abatimento e da decadência”. Como se sabe, Pessoa adoptou esta
expressão, sonhador nostálgico do abatimento e da decadência, para com
21
ela assinar poemas satíricos contra Salazar, que fez circular em cópias
dactilografadas pelos cafés de Lisboa. A sua reacção aos discursos da
cerimónia dos prémios foi de absoluta indignação, inclusivamente por uma
razão pessoal: é que Ferro e Salazar tinham exposto os princípios e critérios
doutrinários ao abrigo dos quais também a Mensagem fora premiada,
princípios que eram inaceitáveis para o premiado e que o comprometiam
politicamente.
Conhece-se a reacção indignada de Pessoa pelos escritos do seu espólio,
pois a censura não permitiria divulgá-la. Não se ocupando das
considerações de Ferro (que preferiu ignorar, mas a que Pessoa, à luz de
toda a sua obra, não poderia ser mais contrário), Pessoa fixou-se na defesa
que Salazar fizera da imposição de “limitações” e “directrizes” à arte e ao
pensamento. Estava a passar-se em Portugal em 1935, como Pessoa
observa no rascunho de uma carta a Casais Monteiro (30 Outubro 1935), de
um regime de censura restritiva, em que se proíbe ao escritor de dizer isto
ou aquilo, para um regime que chama “soviético”, em que o poder obriga o
escritor a dizer isto ou aquilo. Referências às “directrizes” aparecem em
numerosos escritos de Pessoa de 1935, em prosa e em verso. Num desses
escritos, uma carta ao Presidente da República Óscar Carmona (que não
enviou nem completou), Pessoa diz sobre a Política do Espírito:
Até aqui a Ditadura não tinha tido o impudor de, renegando toda verdadeira
política do espírito [...] vir intimar quem pensa a que pense pela cabeça do
Estado, que a não tem, ou de vir intimar a quem trabalha a que trabalhe
livremente como lhe mandam.77
Ora uma “verdadeira política do espírito”, diz Pessoa, consistia em “pôr o
espírito acima da política”.78
Mais adiante, num trecho que resume o
pensamento de Pessoa sobre a relação entre o ditador e a intelectualidade,
escreve:
Um homem que, tendo de presidir a uma distribuição de prémios literários,
abre a sessão com um discurso em que enxovalha todos os escritores
portugueses − muitos deles seus superiores intelectuais − com a fútil
imposição de “directrizes” que ninguém lhe pediu nem pediria (...) − esse
homem, que assim, com uma inabilidade de aldeão letrado, de um só golpe
afastou de si o resto da inteligência portuguesa que ainda o olhava com uma
benevolência, já um pouco impaciente, e uma tolerância, já vagamente
desdenhosa, não tem sequer o prestígio limitado que lhe permita governar
77
BNP/E3, 92M-28 a 33, publicado pela primeira vez em Teresa Sobral Cunha, “Fernando Pessoa em
1935. Da Ditadura e do ditador em dois documentos inéditos”, Colóquio/Letras, n. 100, Nov.-Dez. de
1987, pp. 123-131.
78
Idem.
22
uma republica aristocrática, a aceitação de uma minoria que, ainda que
praticamente inútil, fosse teoricamente inteligente.79
E, mais adiante, este balanço:
Chegámos a isto, Senhor Presidente: passou a época da desordem e da má
administração; temos boa administração e ordem. E não há nenhum de nós
que não tenha saudades da desordem e da má administração. Não sabíamos
que a ordem nas ruas, que as estradas, os portos e as esquadras [navais]
tinham que ser compradas por tão alto preço − o da venda a retalho da alma
portuguesa.80
Enquanto Pessoa escrevia estes textos para a arca, António Ferro − que
além de director da propaganda governamental foi também o primeiro
presidente do Sindicato Nacional dos Jornalistas entre 1934 e 1937 −
continuou a sua cruzada, em nome da Política do Espírito, contra os
“intelectuais livres” e os “déspotas da liberdade de pensamento”.
Em 31 de Janeiro de 1935, duzentos intelectuais e artistas, no primeiro
documento colectivo do género que apareceu sob o Estado Novo, tinham
exigido do poder político, na pessoa do presidente da Assembleia Nacional,
o fim da censura instaurada em 1926. Os jornais não puderam divulgar a
petição, que circulou de mão em mão − e ainda hoje repousa, inédita, no
arquivo da Assembleia da República.81
Em resposta, Ferro organizou a 24
de Fevereiro, apenas três dias depois da festa de entrega dos prémios
literários, um encontro de “intelectuais nacionalistas” – um banquete a que
também chamou “plebiscito” dos intelectuais portugueses – com o
objectivo expresso de negar aos duzentos legitimidade para exigir o fim da
censura. No seu discurso, Ferro insistiu no tema da guerra contra os
intelectuais livres: “A batalha (...) deixou de ser nas ruas, nos quartéis (...)
A inteligência, ou antes, o que eles julgam ser a inteligência, é o último
reduto dos nossos inimigos.” A tarefa que se impunha em face desses
intelectuais “vencidos” consistia em “desalojá-los, para sempre, desse
reduto!”82
Não se sabe ao certo o que Ferro queria dizer com isso, mas,
nesse mesmo ano, ao abrigo de nova legislação repressiva, dezenas de
intelectuais opositores do regime foram expulsos dos seus empregos
públicos, entre os quais os professores catedráticos Abel Salazar, Aurélio
Quintanilha, Rodrigues Lapa e Sílvio Lima. A censura, essa deveria
79
BNP/E3, 92M-81, publicado por Teresa Rita Lopes em Pessoa Inédito, op. cit., p. 375.
80
BNP/E3, 92M-80, publicado por Teresa Rita Lopes, op. cit., p. 376.
81
Arquivo da Assembleia da República, Assembleia Nacional, Livro 1, fls. 123 a 142.
82
“Em resposta... Uma grande jornada nacionalista”, A Voz, 25.II.1935, pp. 1 e 6.
23
continuar: segundo Ferro proclamou no banquete dos intelectuais
nacionalistas, só ao Sindicato dos Jornalistas, por ele presidido, competia,
quando julgasse oportuno, pedir ao governo que a censura acabasse. Nunca
julgou.
Em doze anos, ao contrário de Pessoa, Ferro trocara de campo. De vítima
da censura em 1923, quando a proibição da sua peça de teatro fora alvo
dum protesto de intelectuais, Ferro passara, em 1935, para a liderança da
justificação da manutenção da censura, contra os duzentos “intelectuais
livres” que protestavam contra ela exigindo liberdade. Justificação por ele
proclamada, paradoxalmente, no quadro de uma “política do espírito” e em
nome também da corporação dos jornalistas. Não foi até hoje sublinhado
em qualquer estudo este papel substantivo em defesa da censura
desempenhado nos anos 30 por António Ferro, que muitos persistem em
apresentar como um benigno e tolerante protector das artes e das letras,
“um liberal dentro do Estado Novo” − como lhe chamou o panegirista
António Quadros.83
Pessoa não viveu o tempo suficiente para ver a Política do Espírito ferriana
plenamente aplicada, num sistema que combinava a censura, a propaganda
e o mecenato de Estado, sob a égide de um vanguardismo nacionalizado e
casado em segundas núpcias com a tradição. Se tivesse vivido, ter-lhe-ia
sido irresistível a comparação com o ambiente que ele chamou, num texto
aqui já citado, de “agitação fecunda”, de “fermento de vida e de
esperança”, em que se tinha gerado, sem o abraço protector do Estado às
letras e às artes, o “renascimento literário” português da primeira década da
República, nomeadamente com o aparecimento das novas correntes em
torno de A Águia e depois do Orpheu.
Que concluir deste percurso paralelo de dois escritores conotados com o
modernismo em Portugal, desde os tempos do Orpheu aos inícios da
Política do Espírito? Os factos não sustentam que o movimento modernista
português e as suas verdadeiras figuras de proa tivessem pavimentado
culturalmente o caminho para o regime autoritário. Os casos de Pessoa e
Ferro, entre outros, mostram que o descontentamento do meio intelectual e
artístico com a República democrática provinha de quadrantes políticos
diversos e evoluiu em direcções divergentes. Os factos sustentam ainda
menos, ao contrário do que Quadros pretendeu, que a política cultural do
83
A. Quadros, O Primeiro Modernismo Português..., op. cit., p. 321. Completa esta visão deturpada o
mito do “afastamento” de Ferro do SNI (o anterior SPN) em 1950. Sabe-se, porém, pela própria família,
que foi Ferro quem mostrou desejo de sair do cargo desde 1946 (vd. A. Quadros, O Primeiro Modernismo
Português..., op. cit., p. 329) e que Fernanda de Castro escreveu em 1948 a Salazar pedindo-lhe um
“posto” para o marido, sugerindo “talvez em Paris” (Mafalda Ferro e Rita Ferro, Retrato de uma Família,
Lisboa: Círculo de Leitores, 1999, p. 170).
24
Estado Novo, formulada por Ferro sob a alçada de Salazar, se tivesse
inspirado no alegado “pensamento profundo” e nas supostas propostas
culturais do grupo do Orpheu, núcleo fundador do modernismo. Parece,
aliás, claro que António Ferro nunca representou o modernismo português,
excepto em manobras de autopromoção, e que a mais fiel representação do
“espírito novo” surgido em 1915 coube, ao longo do período aqui em
causa, sobretudo a Fernando Pessoa, mas também a Almada Negreiros e
outros. Nessa representação autêntica tinha que ser protagonista, e foi-o, a
defesa da liberdade do espírito, valor central e irredutível em Fernando
Pessoa, ao lado do valor por ele atribuído ao indivíduo em face do Estado −
valores opostos aos da Política do Espírito de Ferro e Salazar.