FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
SÉRGIO HENRIQUE TEIXEIRA PÁDUA
ANÁLISE DA LEI 11.705/2008 (“Lei Seca”)
À LUZ DE UM ADEQUADO DIREITO PENAL CONSTITUCIONAL
NOVA LIMA, MG
2012
2
SÉRGIO HENRIQUE TEIXEIRA PÁDUA
ANÁLISE DA LEI 11.705/2008 (“Lei Seca”)
À LUZ DE UM ADEQUADO DIREITO PENAL CONSTITUCIONAL
Monografia apresentada pelo aluno Sérgio Henrique Teixeira Pádua como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Direito – Ciências Penais - pela Faculdade Milton Campos sob orientação da Profª Mestra Carla Silene.
NOVA LIMA, MG
2012
3
“A fé no homem se conquista somente amando o homem. Mais que ler muitos livros eu queria que os Juízes conhecessem muitos homens; se fosse possível, sobretudo santos e canalhas, aqueles que estão sobre o mais alto ou o mais baixo degrau da escada.”
FRANCESCO CARNELUTTI
4
RESUMO
A presente monografia tem por escopo discutir os diversos aspectos
penais que circundam a promulgação da Lei 11.705/2008 (“Lei Seca”),
que alterou o crime de embriaguez ao volante.
Em um primeiro momento, refletiremos sobre a conjuntura político-
social e os principais motivos que originaram a promulgação da precitada
Lei. Feito isto, passaremos a analisar qual o bem jurídico tutelado pela
norma incriminadora, compreendendo se o mesmo possui legitimidade
constitucional.
Demais disso, será efetuada uma abordagem sobre os crimes de
perigo concreto e de perigo abstrato, tendo sempre em mira o delito
contido no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
Por fim, tentaremos esboçar conclusões a respeito da
constitucionalidade da “Lei Seca” e sugerir possíveis aperfeiçoamentos ao
comando normativo estudado, visando uma maior racionalidade no
sistema penal como um todo.
5
ABSTRACT
This monograph has the scope to discuss the various aspects
surrounding the criminal edition of 11.705/2008 law, which changed the
crime of drunken driving.
At first, we will reflect about socio-political situation and the main
reasons that originated promulgation of the Law above. After that, we will
examine what is the legal interest protected by the incriminating norm,
including whether it has constitutional legitimacy.
Furthermore, an approach will be made about crimes of real danger
and abstract danger, always taking in sight the offense contained in
article 306 of the Brazilian Traffic Code.
Finally, we will try list conclusions about the constitutionality of that
law and suggest possible improvements to the normative command
studied, seeking a better rationality in the penal system as a whole.
6
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.............................................................................7
2 BEM JURÍDICO – CONCEITO E FUNÇÃO......................................9
3 CRIMES DE PERIGO..................................................................11
4 A LEI 11.705/2008 NA PERSPECTIVA DE UM ALMEJADO DIREITO
PENAL CONSTITUCIONAL............................................................14
4.1 Do bem jurídico tutelado.......................................................14
4.2 Da presunção de lesão ao bem jurídico tutelado....................16
4.3 A questão probatória ............................................................18
4.4 Jurisprudência relacionada ao tema......................................20
5 CONCLUSÃO..............................................................................24
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................26
7
1 INTRODUÇÃO
Os acidentes de trânsito refletem uma preocupante estatística no
Brasil: são aproximadamente 35 mil mortos, 400 mil feridos e mais de
1,5 milhão de acidentes, tudo isso ocorrendo em frequência anual.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea1, esse
cenário provoca no país um custo de 22 bilhões de reais por ano. Os
gastos com saúde (atendimentos de urgência, hospitais, profissionais de
saúde, materiais hospitalares,...), bem como a perda irreparável de
expressivo número de pessoas (quase sempre, em plena capacidade
produtiva), faz com que a situação seja objeto de um intenso e fervoroso
debate público em todo território nacional.
As causas dessa realidade em nosso sistema viário são conhecidas:
imprudência dos motoristas, estradas e rodovias em mal estado de
conservação, deficiência na sinalização, pouca fiscalização preventiva por
parte do poder público, falta de manutenção em veículos, excesso de
velocidade, embriaguez ao volante, entre outras.
Quando se investiga a combinação entre bebida alcoólica e direção,
acredita-se que cerca de 30% das mortes no trânsito estejam
relacionadas com a ingestão de álcool2.
Em virtude desse quadro alarmante, e sob pressão de setores da
sociedade civil organizada e alguns órgãos de mídia, a União federal, em
19 de junho de 2008, promulgou a popularmente conhecida “Lei Seca”
(Lei 11.705 /08), com o escopo de coibir motoristas a dirigirem tendo
ingerido qualquer dosagem de álcool.
Assim, o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro – CTB - passou a
vigorar com a seguinte redação:
1 Esses dados podem ser verificados em matéria veiculada pelo Estadão (Acidentes de trânsito custam R$22 bilhões ao ano, diz IPEA): http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,acidentes-de-transito-custam-r-22-bilhoes-ao-ano-diz-ipea,179010,0.htm 2 Revista Veja, 29-11-2006, p. 103
8
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Editou, ainda, o decreto 6.488/2008, visando regulamentar o novo
delito criado, especialmente no tocante aos testes de alcoolemia hábeis a
serem utilizados na persecução criminal.
Ao que parece, portanto, no afã de legitimamente proteger a vida, a
integridade física e a incolumidade pública, o legislador terminou por criar
mais um crime de perigo abstrato, já há tanto criticado pela mais
autorizada doutrina.
Nessa perspectiva, a presente monografia possui a intenção de
discutir e aprofundar um pouco mais sobre a questão da
constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, a legitimidade dos bens
jurídicos penalmente tutelados e a questão probatória (ninguém pode ser
obrigado a produzir provas contra si - autoincriminação), tendo sempre
como referencial dogmático o crime insculpido no art. 306 do CTB.
9
2 BEM JURÍDICO – CONCEITO E FUNÇÃO
Formular um conceito de bem jurídico, na seara penal, é tarefa
árdua. Das teorias sociológicas às teorias constitucionais, várias hipóteses
foram formuladas. Houve também tentativas de trazer para esse conceito
conteúdos de cunho exclusivamente morais. Contudo, entendemos que
concepções de caráter ideológico, moral ou religioso devem permanecer
afastadas do instituto, em respeito ao ideal de igualdade e à laicidade
inerentes ao Estado Democrático de Direito.
Em verdade, o bem jurídico se traduz em necessidades (e até
mesmo valores) de uma determinada coletividade. A vida em sociedade
exige o respeito a determinados bens (sejam eles materiais ou não):
vida, propriedade, honra, entre outros; sem os quais, a convivência
comunitária se tornaria inviável ou insuportável.
Discorrendo sobre as acepções clássicas do bem jurídico-penal, Yuri
Coelho menciona a posição de renomados doutrinadores brasileiros:
Nelson Hungria definiu bem como “tudo aquilo que satisfaz a uma necessidade da existência humana (existência do homem individualmente considerado e existência do homem em Estado de sociedade), e interesse é a avaliação ou representação subjetiva do bem como tal, definindo bem jurídico como aquele que “incide sob a proteção do direito in genere” e “dispõe da reforçada tutela penal” (...) Nas lições de Luiz Regis Prado “a noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento humano” (...) Segundo Cezar Roberto Bittencout, “o bem jurídico pode ser definido como todo valor da vida humana protegido pelo direito” (COELHO, 2003, ps. 126-129).
O moderno Direito Penal deve interpretar a dogmática sempre a luz
do texto constitucional. Nesse sentido, uma teoria do bem jurídico que
esteja em sintonia com o Estado em que vivemos (Democrático e de
Direito) terá seu fundamento basilar na Constituição. É ela que, enquanto
instrumento do nosso “pacto fundacional”, elencará os valores e bens que
podem ser legitimamente tutelados no âmbito criminal em face da
relevância dos mesmos.
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Nesse sentido, adotaremos o conceito exposto pelo professor Yuri
Coelho como modelo referencial para este trabalho:
bem jurídico-penal é um valor tutelado pelo direito penal, que possui seu substrato na Constituição, ancorado na realidade social, sendo o elemento material da estrutura do delito e que tenha a capacidade hermenêutica de relativizar o princípio da liberdade e de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto valor fundamental para a convivência pacífica em sociedade. (COELHO, 2003, p. 130).
Essa definição nos parece ser bastante precisa, dotada de suficiente
abrangência e em sintonia com os ideais da política criminal concebidos
pelo funcionalismo.
Também é oportuno dizer que os bens jurídicos podem ser coletivos
toda vez que a tutela recair sobre interesses ou valores que transponham
a esfera individual. Como exemplo, podemos citar os tipos penais que
protegem o meio ambiente (bem coletivo e intergeracional), a ordem
econômica, a moralidade administrativa, entre outros.
Quando conceituamos um instituto, mais clara se torna suas
funções. Assim, basicamente, as funções do bem jurídico são de legitimar
a norma penal incriminadora e limitar a liberdade do legislador
infraconstitucional quando da elaboração de novos tipos penais.
Nesse diapasão, o douto jurista Ângelo Ilha da Silva, ao tratar dessa
temática, assim concluiu:
A nosso ver, o bem jurídico apresenta outra função assaz relevante de orientação do operador do direito, seja do órgão do Ministério Público, seja do julgador ou do defensor, quando estes se depararem com casos de diminuta significância lesiva. (...) Quanto mais se estende a reflexão, maior relevo e maior variedade de funções demonstra o bem jurídico. Outrossim, em torno de todas as funções mencionadas está implícito o axioma fundamentador e, por conseguinte, legitimador das incriminações, ou seja, a dedução de que o legislador só poderá incriminar, de forma subsidiária, condutas lesivas a bens fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade. Quando se fala em condutas lesivas, tem-se em consideração tanto a lesão efetiva quanto a exposição em perigo, o que poderá visualizar melhor ao cuidarmos da estrutura dos crimes de perigo. (SILVA, 2003, p. 43).
11
3 CRIMES DE PERIGO
Ab initio, devemos compreender a noção de perigo. O perigo nada
mais é do que a capacidade que um determinado evento possui de gerar
outro (evento) efetivamente danoso. Aduz Ângelo Ilha da Silva, se
valendo das lições do renomado jurista Miguel Reale Jr:
A aptidão de um fenômeno para causar determinado outro, conforme as relações de causalidade que a experiência indica, segundo critérios e métodos de base científica. (...) a aptidão, a idoneidade de um fenômeno de ser causa de dano, ou seja, é a modificação de um estado verificado no mundo exterior com a potencialidade de produzir a perda ou diminuição de um bem, o sacrifício ou a restrição de um interesse. (SILVA, 2003,p. 54).
A controvérsia surge ao se definir se o perigo se concretiza com a
mera possibilidade de dano, ou, se por outro lado, exige-se a existência
de real probabilidade. Entendemos que o perigo, para efeitos penais, deve
se revestir de certo grau de probabilidade3, única alternativa que atende
aos princípios jurídicos da última ratio e fragmentariedade, ínsitos ao
direito penal. A mera possibilidade é um conceito demasiadamente vago e
impreciso, que pode gerar um punitivismo excessivo caso seja adotado.
Para assimilar o que são os crimes de perigo é imprescindível
entender o seu “oposto”: crimes de dano. Na sempre percuciente lição de
Magalhães Noronha, “crimes de dano são os que só se consumam com a
efetiva lesão do bem jurídico tutelado: homicídio, lesões corporais, etc”
(NORONHA, 1995, p. 107).
Assim, os crimes de dano ofendem diretamente o bem jurídico
tutelado, enquanto os crimes de perigo nunca chegam a atingi-los
efetivamente, mas apresentam apenas uma ameaça, um risco ou
prenúncio de dano.
3 Obviamente tal probabilidade não necessita ser igual ou superior a 50%. Não há que se fazer um juízo estatístico para estabelecer essa probabilidade, bastando que a experiência natural demonstre a considerável aptidão do perigo para o desencadeamento de um eventus damini.
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Importa salientar que na eleição do lesgilador do que venha a
constituir situação de perigo, há sempre um grau de valoração e,
portanto, de subjetividade. Tal valoração, contudo, deve ter respaldo
explícito ou implícito no texto constitucional. Ademais, a noção de perigo
também possui componentes de objetividade, pois a ele se chega com
base na experiência do que normalmente acontece, sendo indispensável
sua íntima conexão com a realidade fenomênica.
A respeito do tema, há uma subdivisão clássica entre os crimes de
perigo: eles podem ser de índole concreta ou abstrata. A esse respeito,
nos valemos dos ensinamentos do professor José Arthur Kalil:
O perigo pode ser considerado abstrata ou concretamente. É concreto quando as circunstâncias do caso tiverem de ser levadas em conta pelo magistrado, para que afirme o juízo de idoneidade . No denominado “perigo abstrato”, existe a presunção de que a conduta incriminada pelo legislador trará a situação perigosa ao bem jurídico, quando realizada, abstraídas as circunstâncias que o caso apresentar. (...) A dicotomia do perigo antes mencionada dá ensejo à conhecida classificação de crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto. Nestes, o perigo é elemento do tipo, de modo que só se verificará a tipicidade caso o julgador constate a idoneidade da conduta desenvolvida. Nos crimes de perigo abstrato, a idoneidade da conduta in concreto não importa para a configuração do tipo, uma vez que é tida como existente pelo legislador (...) alguns tribunais, em casos de comprovada ausência de potencialidade lesiva da conduta, que se subsumiu a priori a um tipo de perigo abstrato, têm decidido pela não configuração do perigo em virtude das circunstâncias do caso. Grifos nossos. (KALIL, 2007, ps. 33–35)
Desse modo, podemos deduzir que tanto o perigo concreto quanto o
abstrato são previsões de condutas que se presumem potencialmente
danosas. Contudo, no crime de perigo concreto essa presunção é relativa
(iuris tantum), de modo que o órgão acusador tem o ônus de provar a
maneira pela qual, no caso concreto, a conduta do réu ameaçou ou expôs
a perigo determinado bem jurídico.
Já no perigo abstrato a lei cria um tipo legal de crime em que a
situação de risco é presumida de maneira absoluta (iuri et iuri). É nesse
ponto que reside a problemática dessa modalidade de delito. O direito
penal moderno exige em sua estrutura o princípio da ofensividade (ou,
13
lesividade). Todo injusto penal deve descrever uma situação que agrida
ou efetivamente coloque em risco algum bem jurídico legitimamente
tutelado. O precursor do garantismo penal, Luigi Ferrajoli, em sua célebre
obra “Direito e Razão”, entre vários outros axiomas de sua teoria,
afirmou: “nulla lex sine iniuria”, vale dizer, não pode haver lei penal sem
ofensa.
O princípio da lesividade também está consagrado na Constituição
da República, ainda que de maneira implícita. O direito penal, em sua
essência, existe para proteger os bens jurídicos mais relevantes da
sociedade e que estão fundamentados na magna carta. Se tem a função
de protegê-los, então não faz sentido sua atuação quando eles não são
colocados nem ao menos em risco. Outrossim, os princípios da última
ratio e intervenção mínima não poderiam nos levar a conclusão diversa.
Posto isto, reputamos que essa presunção de risco de índole
absoluta agride a constitucionalidade de tais normas, pois, a princípio,
basta que a conduta se subsuma a hipótese prevista para que haja
reprimenda penal, ainda que o caso concreto demonstre que a conduta
não possuía idoneidade suficiente para violar o bem jurídico que
supostamente se almejava tutelar. Ao vedar a prova em contrário, a
defesa se torna praticamente inviável em tais casos, pois a pretensa
situação de perigo já fora antecipadamente elegida e “julgada” pelo
legislador, desobrigando magistrados e acusadores de demonstrarem no
processo judicial a real ameaça de dano (potencialidade lesiva).
Na sequência, tentaremos demonstrar como todas essas questões
estão presentes no atual artigo 306 do CTB, que define o crime de
embriaguez ao volante.
14
4 A LEI 11.705/2008 NA PERSPECTIVA DE UM ALMEJADO DIREITO
PENAL CONSTITUCIONAL
Uma vez discutidos os institutos básicos imprescindíveis para
melhor compreensão das controvérsias trazidas pela supramencionada
“Lei Seca”, passaremos a analisá-la em cotejo com o hodierno direito
penal constitucional, tendo como referencial o modelo do funcionalismo
elaborado pelos célebres autores Claus Roxin e Günther Jakobs.
4.1 Do bem jurídico tutelado
O bem jurídico tutelado pelo tipo contido no art. 306 do CTB é a
incolumidade pública, sob a perspectiva da segurança viária. O parágrafo
segundo do art. 1° da precitada lei aduz que “o trânsito, em condições
seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades
componentes do Sistema Nacional de Trânsito”. A segurança no trânsito é
sob onde recai a tutela principal da descrição típica, sendo a vida e a
saúde os bens jurídicos indiretamente protegidos.
Trata-se, portanto, de um bem jurídico-penal coletivo. Cumpre
examinar o aspecto da legitimidade. O penalista Luís Greco, em profunda
reflexão, aponta para a possibilidade de bens jurídicos coletivos
verdadeiros e falsos, sendo que estes últimos sempre fulminam a
constitucionalidade do delito quando neles se fundamentam
exclusivamente, pois não encontram respaldo nos valores elencados pela
magna carta como merecedores da proteção em âmbito penal. Vejamos
as palavras do eminente jurista:
Optamos por uma concepção dualista do bem jurídico, isto é, reconhecemos bens jurídicos coletivos em seu pleno direito, ao lado de bens jurídicos individuais. Mas um rápido apanhado de bens jurídicos coletivos já demonstra que nem todos apresentam o mesmo pedigree. De um lado, temos bens jurídicos coletivos como o meio ambiente, a fé pública (crimes de falso), a Administração Pública e sua probidade (crimes de corrupção). De outro, a incolumidade pública (chamados crimes de perigo comum), a saúde pública (crimes de tóxico), a segurança no
15
trânsito (crimes de trânsito), as relações de consumo (crimes contra o consumidor). O curioso é que este segundo grupo de bens jurídicos coletivos é proposto e defendido pela generalidade de nossa doutrina, em alguns casos (crimes de perigo comum) sem maiores questionamentos, em outros, como nos crimes de tóxico e de trânsito, justamente como alternativa à construção de crimes de perigo abstrato. (...) O que não parece ser visto é que, no final das contas, acabou-se por legitimar, da mesma forma, a antecipação do direito penal.(...) como agora haveria verdadeira lesão, e não mais mero perigo abstrato, como a saúde pública seria lesionada, e não somente posta em perigo abstrato pelo porte de entorpecentes, desaparecem todos e quaisquer problemas de legitimidade. Afinal, o tal princípio da lesividade, que exige lesão (ou perigo concreto) a um bem jurídico, estaria atendido (...) parte da doutrina embarcou num empreendimento que, segundo me parece, será uma das mais fecundas utilizações da teoria do bem jurídico: a desconstrução de bens jurídicos só aparentemente coletivos (...) A soma de vários bens jurídicos individuais não é suficiente, porém, para constituir um bem jurídico coletivo, porque este é caracterizado pela elementar da não-distributividade, isto é, ele é indivisível entre diversas pessoas. Assim, cada qual tem a sua vida, a sua propriedade, independente das dos demais, mas o meio ambiente ou a probidade da Administração Pública são gozados por todos em sua totalidade, não havendo uma parte do meio ambiente ou da probidade da Administração Pública que assista exclusivamente a A ou a B. Já o bem jurídico saúde pública, por exemplo, nada mais é do que a soma das várias integridades físicas individuais, de maneira que não passa de um pseudo-bem coletivo. (...) Falar em saúde ou incolumidade pública, por exemplo, esconde os déficits de legitimidade de antecipações da tutela penal. Grifos Nossos. (GRECO, 2004, ps. 111-117).
Pelo exposto, nota-se que o objeto de proteção previsto pela Lei
Seca não pode ser considerado autêntico bem jurídico coletivo. A
incolumidade pública não existe enquanto um valor em si mesmo,
abstrato e dissociado das frações menores que o compõe (cidadãos).
Em verdade, o que se busca impedir é a possibilidade de lesão à
vida e integridade física das pessoas individualmente consideradas. Isso
não quer dizer que a proteção seja ilegítima a priori, mas sim, que não se
pode violar a “incolumidade pública” de forma abstrata e exclusiva, é
necessário que se coloque concretamente em risco a vida ou a saúde de
pessoas. Essa é a interpretação que se mostra em conformidade com o
direito penal constitucional, impedindo que a punição recaia sobre
condutas em que não exista, ao menos, potencialidade ofensiva.
16
4.2 Da presunção de lesão ao bem jurídico tutelado
Inegavelmente, essa é a inovação mais controversa trazida pela Lei
11.705 de 2008. Aqui se encontra a razão pela qual reputamos que o
atual delito de embriaguez ao volante padece do vício de
inconstitucionalidade material.
Com efeito, ao estabelecer pena para quem conduzir veículo
automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro
de sangue igual ou superior a seis decigramas, terminou a referida norma
por criar um crime de perigo abstrato.
Tal como discutimos anteriormente, os crimes de perigo concreto
delegam ao juiz o poder-dever de verificar a ameaça efetiva de dano na
análise casuística. Ou seja, a descrição típica prevê uma situação que
normalmente é um prenúncio de dano, mas somente o magistrado poderá
afirmar no caso concreto se a conduta era idônea para, potencialmente,
lesar o bem jurídico tutelado.
Essa era, aliás, a sistemática adotada na ocasião da promulgação do
CTB, o qual prescrevia anteriormente no art. 306: conduzir veículo
automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de
efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.
Assim, competia ao Ministério Público provar a existência efetiva do risco,
por exemplo, demonstrando que o motorista estava guiando o carro em
“zigue-zague”, invadindo a contramão de direção, etc. Ademais, a
redação do dispositivo não exigia uma concentração alcoólica específica,
bastando que estivesse dirigindo sob a influência da bebida (o que, a
princípio, um exame clínico poderia constatar).
Com o advento da “Lei Seca” de 2008, o referido modelo fora
completamente abandonado. A atual descrição típica não exige mais a
obrigatoriedade de potencial implemento do dano. Suficiente que o
condutor possua certa concentração etílica (seis decigramas por litro de
sangue). Nem mesmo é necessário que esteja sob a influência do álcool.
Interessante que, na parte final do caput do dispositivo, é também
17
incriminada a condução de quem tenha ingerido substância psicoativa que
determine dependência, mas desde que esteja “sob a influência” dela.
Desse modo, o novo tipo não faz menção alguma à efetiva
condução anormal do veículo, sendo esta, portanto, irrelevante para a
consumação delitiva nos termos propostos pelo legislador. Demais disso,
a norma estabeleceu uma quantia específica de dosagem etílica (seis
decigramas de álcool por litro de sangue), a qual só pode ser afirmada
por meio de instrumentos técnicos ou científicos. Criou-se, então, um
outro problema do ponto de vista da prova no processo penal, cuja
análise faremos no tópico consecutivo.
Ao nosso sentir, o grande descuido do atual crime de “direção
embriagada” está na presunção de índole absoluta (iuri et iuri) quanto ao
risco de dano à incolumidade pública. Tendo por base tal presunção,
poderão ser cometidos abusos no exercício do ius puniendi. O princípio da
lesividade impõe que o bem jurídico tutelado tenha sido, no mínimo,
exposto a risco. Nos dizeres do professor Luiz Flávio Gomes:
Isso significa, claramente, que está vedada a possibilidade de o legislador configurar o delito como uma mera desobediência ou simples infração da norma imperativa (infração de um dever) ou mesmo como simples desvalor da ação (como se dá no perigo abstrato, por exemplo), sem considerar qualquer ofensa ao bem jurídico protegido (ou melhor: a um autêntico bem jurídico tutelado). (...) O que se pretende é que o legislador, já no momento mesmo da construção do tipo penal, expresse de modo inequívoco (taxativo) a ofensividade da conduta (na forma de uma lesão ou de um perigo concreto de lesão). Esse é o significado máximo da fórmula nulla lex sine iniuria. Ou seja: não pode a lei penal descrever um fato típico (uma relação jurídica ou uma situação fática) com verbos e outras condições neutros, isto é, sem nenhum significado ofensivo (para o bem jurídico). (...) Em síntese, se se pretende que o Direito penal objetivo seja um (verdadeiro) limite à intervenção penal (ius poenale como limite do ius puniendi) e ao mesmo tempo uma garantia para a liberdade de todos, ele “tem que respeitar as exigências que, desde a perspectiva da técnica legislativa, o princípio da legalidade impõe ao legislador no que se refere ao modo de se formular a lei”. G.N. (GOMES, 2007, ps. 481-484)
Trata-se, novamente, de reconhecer validade a um dos principais
axiomas do garantismo penal pensado por Ferrajoli: nulla lex sine iniuria.
No mesmo sentido, nos ensina Rogério Greco:
18
O princípio da lesividade nos esclarecerá, limitando ainda mais o poder do legislador, quais são as condutas que poderão ser incriminadas pela lei penal. (...) busca-se, também, afastar da incidência de aplicação da lei penal aquelas condutas que, embora desviadas, não afetam qualquer bem jurídico de terceiros. (GRECO, 2010, ps. 49-51)
Como é cediço, o efeito do álcool no organismo humano diferencia-
se em cada indivíduo, dependendo de inúmeras variáveis como altura,
peso, sexo, genética, predisposição, hábitos de vida, entre outras.
Ademais, podemos imaginar a hipótese do cidadão que é abordado em
uma operação policial de rotina (blitz) já no quarteirão em que situa-se
sua residência (prestes a adentrá-la) ou a poucos metros do seu destino
final. Seria crível supor que conduzir o veículo por mais alguns metros em
baixa velocidade poderia colocar a incolumidade pública em risco?
Destarte, reputamos que a presunção categórica feita pelo
legislador numa fórmula genérica não atende a um dos pressupostos
mínimos da tutela penal: a ofensividade. Mais acertado seria que o órgão
acusatório provasse in casu como a conduta do réu expôs a risco a
integridade física de outrem. E a defesa, por sua vez, no contraditório
judicial, também deveria ter a oportunidade de demonstrar ao magistrado
que embora o réu tivesse em seu organismo certa quantidade de álcool, o
mesmo não criou nenhum risco especial ou majorado em relação aos
demais condutores, podendo, eventualmente, provar que o acusado
dirigira com grande cautela (o que, em tese, seria possível apenas se
estivéssemos diante de delito de perigo concreto).
4.3 A questão probatória
Outra celeuma instaurada pela Lei 11.705 de 2008 diz respeito ao
problema da prova. Para regulamentar o disposto no art. 306 do CTB, o
poder executivo federal editou, em 19 de junho de 2008, o decreto n.
6.488, o qual estabelece no artigo segundo:
19
Art. 2o Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei no 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte: I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões.
A primeira implicação lógica é que para aferição da materialidade do
crime de embriaguez ao volante se tornou imprescindível a produção de
prova pericial. Ao prever, como elemento normativo do tipo, a
concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis)
decigramas, o legislador terminou por colocar nas mãos do perito (ou de
instrumentos técnico-científicos) o deslinde da causa, atestando se houve
ou não configuração típica.
Inegável que, testemunhas ou até mesmo um médico num exame
clínico, podem confirmar que um cidadão possuía claros sinais de
embriaguez. Contudo, por razões óbvias, jamais poderão atestar que o
aludido estado se dava em função de concentração etílica superior a seis
decigramas por litro de sangue. Esta constatação só pode ser aferida
através do instrumental adequado.
Desse modo, a norma regulamentadora estabeleceu duas
possibilidades para se provar a direção embriagada: teste do etilômetro
(bafômetro) ou exame de sangue.
Perceba-se, porém, que essas duas formas de se provar o crime em
comento exigem do acusado a sua colaboração ou participação. No caso
do exame de sangue é necessário que o indivíduo forneça uma amostra
do seu plasma, e na hipótese do teste do bafômetro pressupõe sua
colaboração em se submeter ao aparelho, assoprando-o.
Posto isto, devemos trazer a lume uma das mais valiosas garantias
constitucionais de ordem processual penal: a presunção do estado de
inocência (art. 5°, inciso LVII, CR/88). Todas as pessoas devem ser
tratadas como inocentes até que se prove o contrário e que seja
declarado em sentença penal condenatória com trânsito em julgado.
20
Disso decorre, como consectário lógico (e inerente ao atual modelo de
democracia), que ninguém poderá ser constrangido ou forçado a produzir
provas contra si. Se há suspeição de que alguém tenha cometido
determinado crime, incumbe precipuamente ao Ministério Público (ação
penal pública) provar a autoria e materialidade delitiva4.
Sendo assim, entendemos que qualquer coação (moral ou física)
exercida sobre o condutor, pelas autoridades policiais, com o desiderato
de que sejam realizados um dos testes de alcoolemia, deve ser tida como
abusiva e inconstitucional. Eventual prova obtida dessa maneira deverá
ser reputada ilícita e imprestável para fins processuais. Na sequência,
veremos alguns julgados que revelam a posição da jurisprudência quanto
ao problema probatório ora exposto.
4.4 Jurisprudência relacionada ao tema
Em relação aos temas examinados no presente trabalho, merecem
destaque algumas decisões proferidas pelos tribunais superiores.
No tocante à exigibilidade de prova técnica para configuração da
materialidade do crime previsto no art. 306 do CTB, o Superior Tribunal
de Justiça – STJ, em julgamento ocorrido em 28 de março de 2012, assim
decidiu:
PROCESSUAL PENAL. PROVAS. AVERIGUAÇÃO DO ÍNDICE DE ALCOOLEMIA EM CONDUTORES DE VEÍCULOS. VEDAÇÃO À AUTOINCRIMINAÇÃO. DETERMINAÇÃO DE ELEMENTO OBJETIVO DO TIPO PENAL. EXAME PERICIAL. PROVA QUE SÓ PODE SER REALIZADA POR MEIOS TÉCNICOS ADEQUADOS. DECRETO REGULAMENTADOR QUE PREVÊ EXPRESSAMENTE A METODOLOGIA DE APURAÇÃO DO ÍNDICE DE CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NO SANGUE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 1. O entendimento adotado pelo Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode ser
4 Nesse sentido, o art. 8º, letra “g”, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), proclama a seguinte garantia: “Artigo. 8º. Garantias Judiciais. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada (...)”.
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compelido a colaborar com os referidos testes do 'bafômetro' ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere). Em todas essas situações prevaleceu, para o STF, o direito fundamental sobre a necessidade da persecução estatal. 2. Em nome de adequar-se a lei a outros fins ou propósitos não se pode cometer o equívoco de ferir os direitos fundamentais do cidadão, transformando-o em réu, em processo crime, impondo-lhe, desde logo, um constrangimento ilegal, em decorrência de uma inaceitável exigência não prevista em lei. 3. O tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é formado, entre outros, por um elemento objetivo, de natureza exata, que não permite a aplicação de critérios subjetivos de interpretação, qual seja, o índice de 6 decigramas de álcool por litro de sangue. 4. O grau de embriaguez é elementar objetiva do tipo, não configurando a conduta típica o exercício da atividade em qualquer outra concentração inferior àquela determinada pela lei, emanada do Congresso Nacional. 5. O decreto regulamentador, podendo elencar quaisquer meios de prova que considerasse hábeis à tipicidade da conduta, tratou especificamente de 2 (dois) exames por métodos técnicos e científicos que poderiam ser realizados em aparelhos homologados pelo CONTRAN, quais sejam, o exame de sangue e o etilômetro. 6. Não se pode perder de vista que numa democracia é vedado ao judiciário modificar o conteúdo e o sentido emprestados pelo legislador, ao elaborar a norma jurídica. Aliás, não é demais lembrar que não se inclui entre as tarefas do juiz, a de legislar. 7. Falece ao aplicador da norma jurídica o poder de fragilizar os alicerces jurídicos da sociedade, em absoluta desconformidade com o garantismo penal, que exerce missão essencial no estado democrático. Não é papel do intérprete-magistrado substituir a função do legislador, buscando, por meio da jurisdição, dar validade à norma que se mostra de pouca aplicação em razão da construção legislativa deficiente. 8. Os tribunais devem exercer o controle da legalidade e da constitucionalidade das leis, deixando ao legislativo a tarefa de legislar e de adequar as normas jurídicas às exigências da sociedade. Interpretações elásticas do preceito legal incriminador, efetivadas pelos juízes, ampliando-lhes o alcance, induvidosamente, violam o princípio da reserva legal, inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". 9. Recurso especial a que se nega provimento.5
Esse entendimento está em consonância com a posição que
sustentamos no tópico anterior em relação à singularidade dos meios de
prova (exame de sangue ou etilômetro) e à vedação da autoincriminação. 5 Recurso Especial n. 1.111.566 do DF, STJ. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. Publicado no DJe em 04/09/2012. Na mesma linha argumentativa, o HC 239.518/SP, 6ª Turma do STJ (publicado em 20/08/2012).
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Já no que tange à controvérsia sobre a constitucionalidade dos
crimes de perigo abstrato, especificamente em relação ao vigente delito
de embriaguez ao volante, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal –
STF no seguinte sentido:
HABEAS CORPUS. PENAL. DELITO DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO REFERIDO TIPO PENAL POR TRATAR-SE DE CRIME DE PERIGO ABSTRATO. IMPROCEDÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I - A objetividade jurídica do delito tipificado na mencionada norma transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da proteção de todo corpo social, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança nas vias públicas. II - Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não, concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para o qual não importa o resultado. Precedente. III – No tipo penal sob análise, basta que se comprove que o acusado conduzia veículo automotor, na via pública, apresentando concentração de álcool no sangue igual ou superior a 6 decigramas por litro para que esteja caracterizado o perigo ao bem jurídico tutelado e, portanto, configurado o crime. IV – Por opção legislativa, não se faz necessária a prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente que dirige embriagado, inexistindo qualquer inconstitucionalidade em tal previsão legal. V – Ordem denegada.6
Em que pese a credibilidade na qual detém a Suprema Corte
brasileira, entendemos que a precitada decisão encontra-se dissociada do
atual direito penal constitucional. Os ministros entenderam ser irrelevante
indagar se a conduta do agente atingiu ou não, concretamente, o bem
jurídico tutelado. Ora, e o respeito ao princípio da ofensividade7? Confiar,
de tal maneira, na presunção de risco estabelecida abstratamente pelo
legislador é retirar praticamente qualquer limite para a criação de futuros
tipos penais.
Infelizmente, constata-se que essa tem sido a posição dominante no
STF, novamente reiterada na ocasião do julgamento do Habeas Corpus n.
6 Habeas Corpus n. 109.269/MG. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. 2ª Turma do STF. Publicado no DJe em 11/10/2011. 7 Assunto já abordado nos capítulos 3 e 4 (tópico 4.2).
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110.258/DF, no qual afirmou-se ser válida a desnecessidade de exposição
a dano potencial para consumação do injusto penal contido no art. 306 do
CTB8.
Por fim, no julgamento exarado pela 2ª Turma do STF no Habeas
Corpus n. 99.449/MG, em que se examinava o delito de porte ilegal de
arma de fogo previsto na Lei 9.437/97 (revogada pelo Estatuto do
Desarmamento em 2003), os ministros assentaram a atipicidade quanto
ao porte de arma desmuniciada, fundamentados na falta do princípio da
ofensividade. Nessa oportunidade, portanto, o STF rechaçou o modelo de
presunção absoluta estabelecido pelos tipos de perigo abstrato. Senão
vejamos:
EMENTA: AÇÃO PENAL. Crime. Arma de fogo. Porte ilegal. Arma desmuniciada, sem disponibilidade imediata de munição. Fato atípico. Falta de ofensividade. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC concedido para esse fim. Inteligência do art. 10 da Lei n° 9.437/97. Voto vencido. Porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sem que o portador tenha disponibilidade imediata de munição, não configura o tipo previsto no art. 10 da Lei n° 9.437/979.
A jurisprudência da 2ª Turma do STF tem demonstrado não
reconhecer a constitucionalidade de alguns crimes de perigo abstrato.
Resta, agora, aguardarmos para verificar qual será a posição do STF em
plenário, bem como se o colendo Tribunal afastará a legitimidade de toda
a categoria dos crimes de perigo abstrato ou apenas parte deles.
8 Rel. Min. Dias Toffoli. 1ª Turma do STF. Publicado no DJe em 24/05/2012. 9 Rel. Min. Ellen Gracie. 2ª Turma do STF. Publicado no DJe em 12/02/2010.
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5 CONCLUSÃO
Com o intuito de tentar reduzir o número de vítimas em acidentes
de trânsito, o legislador promulgou a Lei 11.705 de 2008 (popularmente
batizada de “Lei Seca”), modificando o art. 306 do Código de Trânsito
Brasileiro. Cominou-se, então, pena de detenção de seis meses a três
anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a habilitação para
dirigir veículo automotor, àqueles que forem flagrados conduzindo veículo
automotor estando com concentração de álcool por litro de sangue igual
ou superior a seis decigramas.
O bem jurídico representa sempre um valor ou interesse da
sociedade a ser especialmente protegido pelo ordenamento. Sua
fundamentação deve estar, explicita ou implicitamente, prevista na
Constituição da República. No caso do vigente delito de embriaguez ao
volante, visa-se tutelar a incolumidade pública (ou, a rigor, a integridade
física dos que transitam na via pública).
Os bens jurídico-penais podem ser individuais ou coletivos, sendo
estes autênticos ou falsos. A incolumidade pública é um falso bem jurídico
coletivo, pois, em última análise, representa apenas a soma da proteção
dos diversos bens jurídicos individuais (vida e saúde) que podem ser
expostos a risco pelo comportamento incriminado. Isso por si só não
deslegitima a tutela penal, apenas reorienta a interpretação que o
operador do direito deve possuir em relação ao tema, cumprindo verificar
se a integridade física de alguém fora efetivamente colocada em risco.
Os crimes de perigo abstrato, na medida em que estabelecem uma
presunção de índole absoluta (iuri et iuri) de risco de dano ao bem
jurídico tutelado, não mais se coadunam a um adequado direito penal
constitucional, pois afrontam o princípio da ofensividade: nulla lex sine
iniuria (não pode haver lei penal sem lesão).
O precitado princípio tem por escopo dar maior racionalidade à
dogmática penal, pois se esta tem sua vigência justificada pela
necessidade de proteção aos bem jurídicos mais relevantes da
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coletividade, por que, então, acioná-la quando tais bens não forem sequer
ameaçados?
Desse modo, o órgão ministerial, no caso concreto, deve se
desincumbir do ônus de provar que o réu, através de sua conduta, expôs
a integridade física de outrem a dano potencial. Lado outro, a defesa terá
toda oportunidade, exercida em contraditório judicial, de demonstrar que
não houve majoração do risco de lesão à “incolumidade pública”, seja
porque o teor alcoólico não fora suficiente para gerar uma condução
anormal do veículo, ou porque o acusado fora abordado a poucos metros
de seu destino final (residência, p. ex.), entre outras hipóteses.
Outrossim, a fórmula que optou o legislador, consistente na
definição de uma dosagem específica de álcool no sangue para a
consumação delitiva, tornou imprescindível a realização de prova técnica
(pericial). Assim, somente o exame de sangue ou a submissão ao teste do
etilômetro poderá constatar a materialidade. Contudo, o princípio de que
ninguém pode ser compelido a produzir provas contra si, corolário do
princípio da presunção do estado de inocência, terminou por esvaziar a
eficácia do art. 306 do CTB, uma vez que o acusado não possui o menor
dever de ceder material do próprio corpo (amostras de sangue) ou
colaborar na produção de prova destinada a incriminá-lo. Esse
entendimento, aliás, já está consolidado na jurisprudência do STJ e STF.
Por derradeiro, em caráter propositivo, reputamos que a melhor
maneira de se proteger a incolumidade pública sob a ótica da segurança
viária, e, simultaneamente, preservar os direitos e garantias
constitucionais de conteúdo penal, seria através da retomada do delito de
embriaguez ao volante na modalidade do perigo concreto, in verbis:
conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou
substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a
incolumidade de outrem. Restaria ao poder público utilizar de seus
aparatos para conferir eficácia ao aludido dispositivo, reprimindo (agora
de forma legítima) os que se aventurem a conduzir veículos automotores
estando embriagados e oferecendo perigo a terceiros.
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