Experiências de Encantamento e a relação dos Miranha do Cuiú-Cuiú com os botos-vermelhos (inia...
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DUTRA, Juliana. C. O; SANTOS, Rafael .B.C. . Enchantment experiences and the relation between the Miraña of Cuiú-Cuiú and the pink river dolphin (inia geoffrensis). Uakari (Belém. Online), v. 10, p. 2, 2014.
EXPERIÊNCIAS DE ENCANTAMENTO E A RELAÇÃO DOS MIRANHA DO CUIÚ-CUIÚ COM OS BOTOS VERMELHOS (Inia geoffrensis)
Juliana Cabral de Oliveira Dutra – Universidade Federal de Minas Gerais
Rafael Barbi Costa e Santos – Instituto Mamirauá
Palavras-chave: Boto-Vermelho, Miranha, Encantado, Perspectivismo Ameríndio,
Equivocação, Conservação
Key words: Pink River-Dolphin, Miraña, Enchanted, Amerindian Perspectivism, Equivocation,
Conservation
RESUMO Este trabalho busca discutir a relação entre os Miranha da Terra Indígena Cuiú-Cuiú e seu
entorno com o boto-vermelho (Inia geoffrensis). Buscamos conhecer, através do uso do método
etnográfico e da teoria do perspectivismo ameríndio, como este povo indígena do médio
Solimões se relaciona com o boto-vermelho e como a cosmologia por eles construída está
ligada às práticas de predação desse mamífero, usado como isca para a pesca de piracatinga
(Calophysus macropterus) na região. Buscou-se identificar e compreender os motivos que
levam os pescadores a matar ou não os botos-vermelhos. Demonstrando as especificidades do
pensamento dos Miranha acerca do boto-vermelho, pretendemos chamar a atenção para a
importância da compreensão e valorização das cosmologias amazônicas na elaboração e
execução de iniciativas de conservação nessa região.
ABSTRACT
This work seeks further clarification on the relationship between the Miraña of the Cuiú-Cuiú
Indigenous Land, and its surroundings, and the pink river dolphin (Inia geoffrensis), regionally
known as boto. We demonstrate, through the use of ethnographic methods and the theory of
Amerindian Perspectivism, how this indigenous group from the médio Solimões relates to the
pink river dolphin and how their cosmology is linked to the predation practices, of this animal,
used as bait for the capture of the picaratinga catfish (Calophysus macropterus). We seek to
identify the reasons that lead fishermen to kill, or not to kill, botos. Demonstrating the unique
ideas of the Miraña about the pink river dolphin, we intend to call attention to the importance of
understanding and valuing the Amazonian cosmologies in the planning and execution of
conservation initiatives in the region.
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“E isso foi verdade o que aconteceu comigo. É verdade, isso aí é verdade. Boto vira gente mesmo!”
- Antônio Preto, comunidade São José do Cuiú-Cuiú
INTRODUÇÃO
Esse trabalho deriva da conjunção entre diferentes esforços de pesquisa e extensão realizadas
no âmbito do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá: a atuação da autora Juliana
Dutra como educadora ambiental do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos do Instituto
de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) em 2012, e sua etnografia entre as
comunidades miranha da TI Cuiú-Cuiú; e as pesquisas de Rafael Barbi entre os indígenas da
região do médio Solimões e afluentes. A partir do estudo do caso da relação dos Miranha com
os botos-vermelhos, procuramos refletir acerca das diferenças sobre a concepção de espécies
animais a partir dos pontos de vista das ciências e das populações amazônicas.
Durante a realização de atividades de educação ambiental entre os Miranha do Cuiú-Cuiú
percebemos a dificuldade em trabalhar com os conceitos e classificações das Ciências
Biológicas. Ao mesmo tempo, nos era apresentado um rico conhecimento local, baseado na
experiência cotidiana dos Miranha com os ambientes aquáticos e suas diversas espécies
animais, e nos pressupostos de sua cosmologia. O boto-vermelho, em especial, era descrito
como animal potencialmente encantado, dotado de agência e capacidade transformativa.
Notamos então, a necessidade de se descrever o conhecimento dos Miranha sobre esse
animal.
As narrativas a respeito de seres sobrenaturais ou encantados são parte significativa dos
estudos de folclore brasileiro, presentes nos estudos abrangentes publicados por de Luís da
Câmara Cascudo (1954) e Alceu Maynard Araújo (1964). Nessas obras, o boto encantado
figura entre curupiras, sacis e mulas sem-cabeça, como um personagem de lendas contadas
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no interior do Brasil. Embora o tratamento das narrativas de boto encantado enquanto “lendas”
pelos estudos de folclore tenha se popularizado, ele contribui para um esvaziamento de sua
importância no mundo vivido dos narradores e ofusca o fato de que essas narrativas são
apresentadas enquanto experiências vividas. Nesse sentido, o trabalho de Eduardo Galvão
(1955), contemporâneo de Câmara Cascudo e Araújo, sobre religiosidade na vila de Itá, no
Baixo Amazonas, é o primeiro a abordar o encantamento como parte ativa da vida de seus
interlocutores.
Galvão afirma que os moradores de Itá definem “encantado” como “uma força mágica atribuída
aos sobrenaturais. Seres humanos, animais, objetos podem ficar encantados por influencia de
um sobrenatural”. Ele entende que o conceito de encantado se baseia tanto em “descrições de
sobrenaturais de origem indígena” e um “empréstimo europeu” (idem: 91-92). O boto figura,
entre os encantados conhecidos como “companheiros do fundo” ou “caruaras”, habitantes de
cidades e reinos submersos, espíritos familiares usados nos processos de cura de pajés e
sacacas. É considerado como pertencente a uma “categoria especial de seres encantados”,
uma vez que, diferente das demais entidades encantadas da floresta como o curupira ou o
mapinguari, pode se apresentar sob formas diferentes. Segundo os moradores de Itá, o boto
pode se transformar em um homem branco, dotado de espírito e poderes sobrenaturais
capazes de provocar a morte e a loucura ou ajudar pajés em seus trabalhos. Mais
recentemente, através de uma pesquisa multi-situada na Amazônia brasileira, Slater (1994)
documenta e analisa um grande número de narrativas envolvendo botos encantados. A autora
discute as diferenças e similaridades nas histórias e na conceituação dos encantados, através
de material coletados nos estados do Amazonas, Rondônia, Pará e Amapá. Nomura (1996:16-
22) afirma que as narrativas de boto são um aspecto marcante da cosmologia das populações
amazônicas, nelas o boto é descrito como um ser dotado da capacidade de se transformar em
belo homem (ou mulher), vestido com roupas brancas e chapéu que serve para esconder seu
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espiráculo. Rivas-Ruiz (2011:64) descreve que entre os Cocama da Amazônia peruana o boto-
vermelho é considerado como um animal mágico por excelência, capaz de se transformar em
gente, ter relações sexuais com humanos e lhes fazer mal através de feitiçaria. Wawzyniak
(2008), em pesquisa no baixo Tapajós, também documentou que os habitantes daquela região
atribuem ao boto-vermelho a capacidade de transformar-se em gente e colocar o “mau-olhado
de bicho” nas pessoas humanas. Em um pequeno livro organizado por Trujillo e colaborares
(2004), estão registradas pequenas narrativas de indígenas Cocama, Yágua e Ticuna na
Amazônia Colombiana, nas quais os botos encantados transformam-se em humanos, vivem
em cidades submersas e seduzem homens e mulheres. Os moradores da vila do Paru, no
baixo Amazonas, atribuem doenças acontecidas durante as cheias à ação dos botos vemelhos
(Harris, 1996: 78).
Na TI Cuiú-Cuiú, os encantados aparecem como aspecto forte do mundo vivido dos Miranha. A
cosmologia do encantamento influencia a forma como os moradores desta terra indígena
interagem com o Inia geoffrensis. Durante a realização de atividades de educação ambiental
naquela TI, notamos que, ao perguntar aos moradores as principais características do boto-
vermelho, as respostas estavam mais relacionadas a seu aspecto encantado do que às
características relacionadas à biologia ou ecologia da espécie.
As atividades de educação ambiental realizadas na ocasião da pesquisa de campo eram
baseadas na ideia de que o aprendizado a respeito da ecologia do animal torna o educando
mais sensível para a conservação da espécie. Segundo esta lógica, um dos objetivos dessas
atividades era ensinar aos moradores do Cuiú-Cuiú questões relacionadas a conhecimentos
científicos produzidos pelas ciências biológicas acerca do Inia geoffrensis. A relação de tal
conteúdo com o saber dos Miranha é pouco significativa, sendo baseado em pressupostos que
não são compartilhados pelos cientistas e indígenas. O que se instaurava a partir da educação
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ambiental era uma barreira no estabelecimento de um diálogo saudável entre os educadores e
os moradores do Cuiú-Cuiú.
A carcaça do boto-vermelho, assim como de algumas espécies de jacarés (Melanosuchus niger
e Caiman crocodilus), vem sendo comercializada e utilizada, em diversas áreas da Amazônia,
como isca para a pesca de piracatinga (Calophysus macropterus). Este peixe siluriforme de
médio porte é apreciado e consumido principalmente em países como Peru e Colômbia, com
recente intensificação do consumo no Brasil. A piracatinga é conhecida por ingerir alimentos de
origem vegetal e animal, incluindo carcaças de animais mortos, hábito alimentar que faz com
que o consumo desse peixe não seja apreciado na Amazônia brasileira (ESTUPIÑÁN et al.,
2003). Nos últimos 10 anos, a comercialização desta espécie de peixe pela indústria pesqueira
no Brasil tem crescido vertiginosamente: visando driblar essas restrições ao consumo da
piracatinga pela população da Amazônia brasileira, este peixe tem sido comercializado sob o
nome de “Douradinha” (BRUM, 2011; MINTZER et al., 2013)
Durante o período de pesquisa, notamos que muitos moradores declaravam ter medo de matar
os botos-vermelhos, e, a maioria declarava realizar a pesca da piracatinga somente com
carcaças de jacarés. Cabe aqui destacar que a carcaça do boto-vermelho é considerada a isca
mais eficiente nesta pesca por possuir pitiú (cheiro forte) e maior quantidade de gordura. Dados
recentes (IRIARTE & MARMONTEL, 2013; MINTZER et al., 2013) sugerem, no entanto, que a
pesca à piracatinga com o uso da carne de boto-vermelho permanece intensa na região. Essa
aparente contradição - ao mesmo tempo temer e matar intencionalmente o boto-vermelho -
revela-se como parte de uma relação complexa entre as populações do baixo Japurá e este
animal. A ênfase dada pelos Miranha à condição encantada do boto-vermelho sugeriu a
necessidade de investigarmos esse aspecto de seu mundo vivido.
Lima (2012) sugere que a teoria do perspectivismo ameríndio seria essencial para a
compreensão da natureza encantada do boto. Eduardo Viveiros de Castro (1996, 2002) aponta
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que as cosmologias dos povos ameríndios pressupõem que os animais são potencialmente
humanos segundo sua própria perspectiva. Ou seja: veem a si mesmos como pessoas, seus
atributos corporais são adornos ou vestimentas, seu alimento é comida própria de humanos e
suas relações são organizadas como aquelas das pessoas humanas. Assim, a onça vê a si
mesmo como pessoa humana, vê sua casa na árvore como uma maloca, vê o sangue que
bebe como cauim. Segundo a perspectiva da onça, os seres humanos seriam presas
potenciais, sendo percebidos por ela sob a condição de porcos-do-mato.
O perspectivismo ameríndio implicaria em modos de relação distintos daqueles caros às
cosmologias multiculturalistas, baseadas na ideia de uma natureza única e uma multiplicidade
de culturas. As cosmologias ameríndias partiriam, ao contrário, de uma ideia de cultura
extensiva, expressa pela potencial existência humana de diversos seres segundo sua própria
perspectiva, ao mesmo tempo em que se pensa em uma multiplicidade de naturezas. As
diferenças estariam dadas pelos corpos, por suas especificidades e potências. A síntese de
Viveiros de Castro para a teoria do perspectivismo ameríndio aponta que o pensamento
ameríndio opera os conceitos natureza e cultura de maneira distinta, por exemplo, daquela das
ciências modernas.
Em artigo recente, Maués (2012) defende, com base em dados de diversas etnografias, que o
perspectivismo não operaria como pressuposto cosmológico apenas entre os povos
ameríndios, sendo partilhado pelas populações da Amazônia rural. As narrativas e as teorias
do encante no médio Solimões são pensadas por Lima (2012) como experiências de vida, cuja
estrutura tem origem histórica em uma ontologia perspectivista. Em outras situações de
pesquisa, no baixo Japurá e na foz do Jutaí, interlocutores indígenas e não-indígenas
descrevem alguns animais e encantados através de sua agência e capacidade transformativa,
algo que remete às teorias do perspectivismo ameríndio.
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Dentro das ciências modernas a ordem dos Cetáceos, à qual pertence o Inia geoffrensis, está
no centro de uma longa controvérsia acerca dos limites da humanidade e animalidade. Desde a
década de 1970, pesquisas acerca da anatomia do córtex e o que seriam evidências da
presença de linguagem articulada em Cetáceos teriam operado uma transformação no estatuto
ontológico desses seres (CALHEIROS, 2009:20-25).
Bruno Latour (1993) estipula que a modernidade se constitui através de separações, como
aquelas entre ciência e política, natureza e cultura, humanos e não-humanos, e de
pressuposições, como a da transcendência da natureza e a imanência da sociedade. Ele
afirma que estas separações e pressupostos seriam garantidos através da “Constituição
Moderna”, sua metáfora para o que seria um “texto comum” que definiria os acordos em torno
destas garantias. A tese de Latour, no entanto, é de que os modernos não operam de fato
através dessas separações e pressuposições, sendo justamente a Constituição Moderna
aquela a dar conta dos “híbridos” que perturbam as garantias da modernidade. Os “híbridos”
seriam gerados quando, por exemplo, política e natureza se misturam nas ciências, ou quando
se entende que a sociedade é composta por um número crescente de mediadores não-
humanos. Com base nessa teoria, e seguindo a análise de Calheiros (2009), entendemos que
os Cetáceos ocupariam o lugar de híbridos nas ciências contemporâneas, sendo o foco de
discussões sobre os limites dos conceitos de “humano” e “animal”.
No ano de 2010, em Helsinki, a “Declaração dos Direitos para os Cetáceos”, elaborada por
pesquisadores após a conferência “Cetacean Rights: Fostering Moral and Legal Change”
propôs o reconhecimento dos Cetáceos como pessoas não-humanas, sujeitos de direitos. Os
proponentes da declaração destacam que a “pesquisa científica nos fornece conhecimentos
mais profundos a respeito das complexidades das mentes, sociedades e culturas dos
Cetáceos” (HELSINKI GROUP, 2010).
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Não obstante, se povos amazônicos e cientistas atribuem aos botos vermelhos um estatuto de
humanidade relativa, estes o fazem sob pressupostos diversos que articulam conceitos
diferentes de “humano”.
MÉTODOS
A TI Cuiú-Cuiú é habitada pelo povo Miranha, está localizada no baixo Japurá, e seu território
faz parte do município de Maraã. Seus moradores integram a organização comunitária do setor
Boa União, que faz parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM). A TI
tem uma extensão de 36.450 hectares, tendo começado seu processo de identificação em
1992, foi finalmente homologada em 2003. A TI Cuiú-cuiú não apresenta sobreposição com as
RDS Mamirauá e Amanã, mas seus moradores mantêm o acesso a recursos naturais dentro da
RDSM, sob a condição de “usuários” da Unidade de Conservação. “Usuário” é uma categoria
de gestão que denomina aqueles que vivem fora dos limites das RDS, mas fazem uso dos
recursos naturais dentro destas. Em geral, os usuários são moradores de comunidades nas
áreas de entorno das UCs. Os Miranha da TI Cuiú-Cuiú participam de programas de assessoria
técnica e extensão oferecidos pelo IDSM, como o programa de educação ambiental pelo Grupo
de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos, a partir do qual essa discussão é construída.
A TI Cuiú-Cuiú inclui as comunidades indígenas São José, Nova Esperança, Nova Estrela, Vila
Nova 1, Vila Nova 2 e São Pedro. Próximo à comunidade São Pedro se encontra a comunidade
Jubará que, inicialmente não se reconheceu como parte da TI Cuiú-Cuiú, apesar de seus
moradores possuírem parentesco com os Miranha das demais comunidades. Anos depois,
passada a homologação da mesma, os moradores do Jubará entraram em acordo com as
lideranças da TI para que encaminhassem um pedido de revisão da área para uma que
abarcasse a comunidade (SOUZA, 2012). Por isso, a Jubará ainda se encontra em processo
de reconhecimento oficial de suas terras. Mesmo assim, para fins práticos, esta comunidade é
considerada, neste trabalho, como parte da TI, já que seus moradores se veem como tal.
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Dessa forma, a única comunidade do setor Boa União que não faz parte da TI Cuiú-Cuiú e não
se identifica como indígena é a Açaituba.
A metodologia usada nesse trabalho consistiu na pesquisa bibliográfica e pesquisa qualitativa,
balizada pelo método de pesquisa etnográfico. Para a primeira, realizamos pesquisa
bibliográfica a respeito da relação de humanos e botos-vermelhos segundo diferentes
abordagens. A pesquisa incluiu relatórios sobre as atividades de educação ambiental
realizadas no âmbito do IDSM, em especial o da bolsista Letícia Silva de Oliveira, que realizou
trabalhos de educação ambiental no setor Boa União entre 2011 e 2012. Também levantamos
relatórios de outros pesquisadores que realizaram pesquisas na RDSM, com temas afins ao
deste trabalho. O trabalho foi norteado pelas contribuições de Candace Slater (1994), Eduardo
Viveiros de Castro (1996, 2002) e Deborah Lima (2005, 2013).
A pesquisa em campo utilizou métodos etnográficos, com destaque para entrevistas em
profundidade e observação participante. A abordagem da autora nas práticas de educação
ambiental passou a ser reelaborada a partir da identificação das relações da população local
com os botos, reconhecendo que estas são profundamente influenciadas pelos pressupostos
cosmológicos dos povos amazônicos.
Dados etnográficos foram coletados pela autora Juliana Dutra quando esta atuava como
educadora ambiental junto ao Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos do IDSM. Notou-se
que, as comunidades São Pedro, São José e Vila Nova 2 eram mais abertas ao diálogo, em
parte devido à boa relação estabelecida entre esses moradores e Letícia Silva, que atuara ali
também em projetos de educação ambiental. Decidiu-se que estas comunidades seriam
priorizadas. Para realização desta pesquisa e das atividades de educação, Juliana Dutra
passou seis meses em contato com os moradores do TI Cuiú-Cuiú, alternando períodos nas
comunidades, na base Flutuante Preguiça e na sede do Instituto Mamirauá, em Tefé.
O contato com essas comunidades foi pautado também pelo envolvimento em atividades
cotidianas como descascar mandioca, partilhar refeições, cozinhar, assistir a jogos do
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campeonato local de futebol e, inclusive, participar de pescas de piracatinga. Esse exercício se
concretizou em uma observação participante que, juntamente com as reuniões voltadas para a
educação ambiental, foi importante para estabelecer uma relação de confiança com alguns
moradores destas comunidades indígenas. O contato com outras comunidades do setor Boa
União foi mantido devido às atividades de educação ambiental, de maneira que alguns
moradores destas se mostraram dispostos a conversar sobe o tema e a dar entrevistas.
Após o estabelecimento de uma boa relação com as comunidades escolhidas, foi elaborada e
aplicada uma entrevista semi-estruturada que abordou os diversos aspectos do conhecimento
local sobre o boto-vermelho. Em sua grande maioria, as entrevistas foram aplicadas
individualmente nas residências dos entrevistados, mas em alguns casos, estavam presentes
outros moradores, incluindo Odinez Clarindo Moraes, assistente de campo cuja atuação foi
crucial para esta pesquisa. Além de auxiliar nas atividades de educação ambiental e pilotar as
embarcações usadas no deslocamento, com o tempo Odinez passou a ser também o
informante-chave da pesquisa, indicando as pessoas com maiores conhecimentos sobre o
tema e fornecendo informações preciosas sobre o mundo vivido dos moradores da região.
Percebeu-se que alguns entrevistados se sentiam mais desconfortáveis e acuados quando
sozinhos na presença da pesquisadora, apresentando-se mais tranquilos quando em
companhia de outro morador local. A presença de Odinez, conhecido por todos, também foi
muito importante nesses momentos.
A pesquisadora também recebeu visitas de indígenas no flutuante Preguiça, onde se sentiram
à vontade para conversar sobre o tema da pesquisa. Durante esses momentos, explicavam
como e quando ocorre a caça ao boto; o que é o Encante; determinaram as classificações
locais para os botos; citaram locais onde ocorrem maior quantidade de manifestações de
encantados, e contaram histórias conhecidas ou vivenciadas em que o boto se apresenta como
ser encantado ou “vivente”.
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Foram realizados registros fotográficos e 15 entrevistas foram gravadas (12 homens e 3
mulheres), de acordo com a aceitação expressa dos interlocutores, tomando o cuidado para
que estas ferramentas não os inibisse. Neste trabalho usamos nomes fictícios para preservar a
identidade dos entrevistados.
Nesse artigo, escolhemos tratar o encantamento como “experiência”, antes de “representação”
ou “crença”, por entendermos que seu lugar no mundo vivido dos Miranha não está no domínio
do imaginário (cf. GOLDMAN, 2006). Analisar as narrativas de encantamento como “crenças”
ou “lendas” acaba por esvaziar o fato de que, para os narradores elas têm status de verdade –
ou, no mínimo, se encontram no patamar da dúvida razoável. Os Miranha apresentam as
narrativas de encantamento como eventos, situados num tempo dado, experimentados pelos
narradores ou por seus conhecidos, e sua relação com o boto é fortemente mediada por essas
experiências e as narrativas que delas derivam.
RESULTADOS & DISCUSSÃO
Os Miranha são um povo indígena de língua Bora distribuído entre o Brasil e Colômbia. Na
Amazônia colombiana, fazem parte dos “Povos do Centro” (ECHEVERRI, 1997), uma
autodenominação coletiva que agrega, além dos Miranha, outros os povos de interflúvio
Caquetá-Putumayo: Uitoto, Ocaina, Nonuya, Bora, Muiname,e Andoque. O etnônimo Miranha
seria originário do Nheengatu “mira-nhana” (“gente que corre”), não havendo uma
autodenominação que agrupe a totalidade dos falantes de seu idioma – as autodenominações
geralmente tratam de grupos patrilocais e exogâmicos (Guyot, 1972). Atualmente os Miranha
somam pouco mais que duas mil pessoas na Amazônia colombiana, e oitocentas pessoas na
Amazônia Brasileira (KARADIMAS, 2001; ISA, 2013). No Brasil, habitam as Terras Indígenas
de Miratu, Méria, Barreira da Missão, Cajuhiri Atravessado e Cuiú-Cuiú, localizadas na região
do médio Solimões e do baixo Japurá, além de diversas comunidades indígenas em TIs não
demarcadas nessa mesma região.
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Historicamente, a presença dos Miranha na região do baixo Japurá e médio Solimões está
relacionada a deslocamentos forçados, ligados ao comércio de escravos indígenas nos séculos
XVIII até o início do XX, e à exploração por parte de caucheiros colombianos e peruanos nos
séculos XIX e XX (FAULHABER, 1996). Nos relatos de viajantes naturalistas nos séculos XVIII
E XIX, os Miranha são descritos como um povo numeroso, que empreendia guerras contra
outros indígenas do Japurá – inclusive outros grupos falantes da mesma língua – em busca de
cativos, cujo destino era ser rendido à escravidão ou devorado em rituais antropofágicos
(BATES, 1944[1863]; FERREIRA, 2008[1788]; SPIX & MARITUS, 1981[1831].). Paul Marcoy
(1875) e Henry Walter Bates (1944), afirmam que os Miranha vendiam os próprios filhos aos
colonizadores, e que os últimos empregavam seu trabalho sob a condição de escravos.
Karadimas (2001) argumenta que esses seriam filhos classificatórios, em um artigo que aborda
esse comércio escravista à partir da memória dos próprios Miranha. Diante dessa configuração
de etnonímia e história, Faulhaber (1999) defende que a denominação Miranha na Amazônia
brasileira não se referiria a um grupo indígena específico, tratando-se de um nome genérico
que englobaria indígenas de diversos povos do Caquetá/Japurá reduzidos à escravidão pelos
colonizadores ou por outros indígenas.
Em 1974, Expedito Arnaud pesquisou entre os Miranha residentes no rio Caiçara (Méria) e no
rio Uarini (Miratu). Ele descreve uma duradoura estigmatização dos Miranha pela população
regional, apesar de viverem de maneira bastante similar aos demais moradores da região.
Afirma que a relação dos Miranha com seu os “membros da sociedade regional” seria
ambivalente “de um lado procuravam esconder o passado tribal para não sofrerem
discriminações, de outro identificavam-se como índios a fim de garantirem a posse das terras
que habitavam” (ARNAUD, 1981: 17).
Essa ambivalência ainda ressoa no contexto indígena do médio Solimões e afluentes. Durante
a pesquisa, notamos que alguns Miranha da TI Cuiú-Cuiú opõem as categorias de “índio” e
“civilizado”. “Índio” é uma categoria marcada, que faz a referência de uma forma de vida ou um
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passado marcado pela não aceitação ao Cristianismo, escassez de mercadorias e bens,
genocídio, escravidão e total ausência de direitos. Assim quando confrontados com o conceito
de “índio”, muitos indígenas se definiram, durante conversas, como “civilizados”. A articulação
dos movimentos indígenas no Japurá tem contribuído para uma valorização da categoria de
“índio”, difusão da informação acerca dos direitos indígenas no Brasil e uma reversão desse
estigma.
De todo modo, embora os Miranha possuam uma trajetória particular e trágica na história da
ocupação colonial do médio Solimões, o modo de vida dos indígenas do Cuiú-Cuiú é similar ao
das populações não-indígenas das margens do Japurá: são falantes de português; organizam
seus assentamentos sob a forma de “comunidades”; mantém relações de comércio e trabalho
com diferentes “patrões” e “regatões”; possuem uma intensa mobilidade entre a floresta e as
cidades produzida através da articulação de extensas redes de parentesco; têm ênfase nas
atividades produtivas da pesca e produção de farinha de mandioca (SOUZA, 2011).
Os Miranha do Cuiú-Cuiú definem os botos encantados como aqueles que “possuem espírito”,
ou seja, a característica de um ser “vivente” que, assim como as pessoas humanas, é dotado
de agência e “inteligência”. Mas como Geraldo, afirma: “Existe boto que não é encantado não.
E tem o boto que é encantado: que é esse que é inteligente.” O boto encantado apresenta o
poder de encantar, ou enfeitiçar seres humanos: carregar para seu mundo no fundo do rio
aquele pelo qual se apaixona ou do qual deseja se vingar. O sujeito encantado pelo boto pode
ser levado física ou espiritualmente para o mundo do fundo dos rios. O feitiço, cabe destacar, é
um aspecto da intencionalidade de “fazer mal” às pessoas, e pode ser enviado não só pelo
boto encantado, mas também por outros espíritos ou pelo próprio homem. Dona Maria,
considerada pelos mais jovens como “índia de verdade”, conta que existem homens que, por
inveja, “pintam com manchas pretas a pele de outra pessoa.”
Por ser potencialmente encantado, o boto-vermelho recebe a característica de “malino”, uma
expressão amazônica próxima do sentido de travesso ou traquina, e que se difere da ideia de
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maligno (LIMA, 2012). Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual o boto-vermelho ataca
pescadores nas canoas, João responde: “Não sei, eu sei que eles gostam de judiar da gente.”
Apesar de o boto ser capaz de cometer “maldades” e feitiços, sua capacidade de livre-arbítrio é
remetida àquela das pessoas humanas. Slater (1994: 147) afirma que “o boto [encantado] pode
fazer tanto o bem quanto o mal”. Galvão (1955: 110) entende que “a malinesa não é uma
simples atitude de antagonismo entre o homem e forças imaginárias”, e seria decorrente do
domínio, proteção e controle que os animais encantados têm sobre a natureza. Mesmo assim,
em muitas entrevistas, o boto encantado aparece como um ser para o qual maltratar seres
humanos é uma forma de diversão e, talvez seja por isso que o medo é um elemento
recorrente nas entrevistas. “Eu fiquei com medo dele, olha.”; “Eu tenho medo, eu sou cabreiro,
assim, de boto... de boto vermelho.”; “Eu tava com medo. Eu tava com medo daquele boto.”
Esses atos prejudiciais atribuídos aos botos encantados são remetidos como “feitiços” ou
“flechadas”, sendo essa última uma forma mais comum de referência.
Um hábito comumente atribuído aos botos que provoca medo na grande parte dos pescadores
é o de tentar virar canoas. Alguns afirmam que ele o faz simplesmente por ser animal “malino”
e “gaiato”, enquanto outros dizem que o objetivo do boto é encantar o pescador e levá-lo para
seu mundo. Alguns interlocutores afirmaram que uma forma de afastar os botos e evitar que
estes façam “rebojo” na canoa é fincar uma faca no porão da canoa, como descreve Adailton:
“Aí me ensinaram que quando ele tá assim, aí pega uma faca e enfia no porão da canoa,
toda empinada assim. De modo que vai nele, e ele foge da gente. Coloca no meio da
canoa. A gente pega ela e faz assim e ela entra a ponta e vai empinada na canoa e
espanta ele.”
Todos também estão de acordo que o boto-vermelho é capaz de morder as pessoas. Além
disso, é muito comum ouvir pescadores reclamarem de botos que, “por maldade”, os impedem
de pescar, pois ficam, em grupo, boiando e fazendo “zuada” próximo à canoa, o que afasta os
peixes. Este é um dos motivos pelo qual alguns pescadores tentam arpoar botos e acabam
“pegando feitiço”.
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A característica mais comum atribuída ao boto encantado é a de existir em forma de humano,
no fundo dos rios e lagos. “Aqui nesse mundo onde a gente tá, a gente vê ele boto, e lá [no
fundo], é gente.”, diz Odinez. Em alguns casos, entretanto, o boto também se apresenta como
humano na superfície. Geraldo é enfático: “É verdade, isso aí é verdade. boto vira gente
mesmo!”. Em diversas entrevistas, os moradores relatam uma mesma praia como local
preferencial onde botos se transformam em pessoas e conversam entre si. Sempre que alguém
chega, eles correm para a água e, rapidamente, se transformam de novo em botos. “Nós
víamos o boto se assoalhar assim no sol quente, na praia. Na praia bem com fronte. E ele
ficava lá rolando, tipo assim, uma gente. Depois ele alevantava tipo uma gente e corria pra
água e caía na água”, relata Adailton.
Os entrevistados concordam a respeito da beleza dos homens (e mulheres) nos quais os botos
se transformam, os quais usam roupas brancas e elegantes, joias e chapéus. Por outro lado, a
história usualmente difundida de que os botos se transformam em homens para frequentar
festas, conquistar moças e ir embora, deixando-as apaixonadas e muitas vezes grávidas, é
considerada pela maioria como uma anedota contada pelos antigos. De todo modo, essa ideia
de que os botos frequentam espaços e eventos reservados às pessoas humanas é muito
presente no pensamento dos Miranha do Cuiú-Cuiú.
Os moradores também relatam que o boto ataca mulheres menstruadas quando estão em uma
canoa ou lavando roupa ou se banhando na beira. Os horários citados como mais perigosos
para uma mulher menstruada ficar perto da água são o meio dia, às seis horas da tarde e às
seis horas da manhã. A grande maioria dos entrevistados afirma que os botos atacam estas
mulheres pois se sentem atraídos pelo cheiro de sangue e tentam ter relações sexuais com
elas, o que, em alguns casos, pode resultar na gravidez – nesses casos a mulher engravidada
não terá lembrança do ato. Alguns entrevistados afirmam que o boto é capaz de engravidar
mulheres menstruadas, da mesma forma que seriam outros animais: macacos, porcos ou o
16
cachorros. Os interlocutores não entendem essa capacidade como algo propriamente
encantado ou sobrenatural.
Nos relatos em que mulheres engravidam do boto, são possíveis dois desfechos: a mulher
morre, uma vez que nenhuma mulher tem o corpo preparado para dar à luz a um animal; a
mulher dá a luz a seres metade-boto e metade-crianças que são devolvidos ao rio por
exigência dos botos encantados que vem em sonho atormentar a mãe. Narrativas similares
foram registradas por Galvão (1955:94-96)
Os interlocutores falam sobre a existência de cidades encantadas em determinados lugares no
fundo dos rios e lagos: “O boto vermelho... falam que ele tem um outro mundo”. A superfície da
água é pensada como um meio de passagem para o mundo dos encantados, e os
procedimentos necessários para se atravessá-la são conhecidos pelos botos encantados e
pelos sacacas, uma categoria poderosa de pajé capaz de viajar em corpo e espírito para o
fundo do rio (cf. SLATER, 1994:110. As demais pessoas só atravessam a fronteira quando
encantadas pelos botos. Alguns interlocutores afirmam que o Flutuante Preguiça estaria
instalado, inclusive, sobre uma destas cidades.
Assim, sob o ponto de vista dos Miranha, algumas pessoas que desapareceram da região,
vivem no fundo como encantadas. Um exemplo é o tio de José, que, de acordo com sua
esposa Carla, era sacaca e foi de vontade própria para o fundo viver com uma ‘bota’ que
sempre aparecia para ele na figura de uma bela mulher. Carla conta que o tio de seu esposo a
visitou “em espírito” e informou que estava no fundo, dizendo que ela não deveria sofrer, pois
sempre que fosse possível ele iria visitá-la em espírito.
Os motivos que levam os botos a enfeitiçar pessoas e levá-las para o fundo são a vingança ou
a paixão, ou seja, quando o boto “se engraça” de uma pessoa. No caso relatado por Sarney, os
botos levaram uma jovem para o fundo por terem se apaixonado por ela:
“quando foi um tempo assim a menina já começou a ficar triste, aí ele disse: ‘Rapaz, o que que tá
acontecendo com minha filha?’. Os pais dela ne?! Toda vez que saíam aí dava um enjoo nela. Aí
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ele foi levar ela num curador pra ver o que é que era. Aí ele disse que era o boto que tava
pegando a filha dele. (...) Ele esperava ela dormir. Quando a família tava todinha dormindo o
boto ia lá e... fazia os negócio nela. Tirava a roupa dela tudinho e fazia o relacionamento. [Ela]
engravidou do boto. Não teve [o filho] porque ela morreu. Ele foi matando ela aos poucos.”
Lorival, curador do Cuiú-Cuiú, afirma que os “flechados” são levados pelo boto de diferentes
formas: de “corpo” ou “espírito”. Aqueles que são levados “de corpo” desaparecem em eventos
que podem ser descritos como sendo incomuns e inexplicáveis. Ter o “espírito” levado pelo
boto é algo que ocorre depois uma enfermidade causada pela “flechada”. No primeiro caso, os
sacacas e pajés intervêm para que o corpo seja devolvido (com ou sem “espírito”), no segundo
eles podem conseguir trazer o “espírito” de volta, salvando a vítima de ser levada para o
Encante. Quando o enfeitiçado é levado para o fundo, ele também passa a utilizar a ‘capa’ de
boto, sendo visto como tal na superfície. O termo ‘capa’ é utilizado por três entrevistados para
descrever a forma usual do boto. Nesses casos, embora os encantados desapareçam ou
morram neste mundo, isso não significa que estejam mortos de fato.
Eventos de desaparecimento de pessoas nos rios são narrados e discutidos pelos Miranha no
contexto das conversas sobre encantados, mesmo quando acontecem em lugares distantes.
Em 2012, um militar sofreu um acidente em sua voadeira (nome regional para lancha) e
desapareceu no rio Solimões próximo ao município de Alvarães. Apesar das incessantes
buscas, o corpo e a embarcação não foram encontrados. De acordo com os moradores do
Cuiú-Cuiú, o acidente foi incompreensível, pois não havia banzeiro – termo regional para a
ondulação das águas provocada pela dinâmica dos ventos ou movimentação de embarcações
– e nem troncos de árvore próximos a embarcação. A explicação dada pelos Miranha
destacava o fato do homem ter sido levado pelos botos para o fundo. Essa versão, entretanto,
não foi um consenso entre os moradores, uma vez que outros afirmaram que o homem e sua
voadeira foram engolidos por uma Cobra-Grande. Lima (2013) afirma que essas referências
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comuns são sempre atualizadas a partir de um acontecimento recente, envolvendo uma
pessoa ou local conhecido.
Uma vez no fundo, não se deve aceitar ofertas de alimento e sexo, pois, caso contrário, perde-
se a esperança de voltar para a superfície. Odinez deixa claro: “Olha, pessoa que vai daqui
desse mundo pra lá, diz que se comer alguma coisa lá não volta mais pra esse mundo. Não
pode comer. Se comer fica pra lá, para sempre.” Lídia, considerada por muitos como sacaca da
região, disse que quando os botos começaram a se “agradar” dela, eles jogavam frutas em sua
casa para que ela comesse e fosse morar no fundo. Ela nunca comeu, pois sabia que se
comesse não voltaria mais. A narradora descreve o fundo de forma bastante similar ao
registrado por Galvão (1955:92) entre os moradores de um município do baixo Amazonas na
década de 1950: este seria um “reino encantado” semelhante a uma cidade, onde tudo brilha
como se fosse revestido de ouro. João relata o dia em que ele próprio visitou o fundo,
acompanhado de uma sacaca:
“Foi só o espírito da mulher que trabalhava ne. Acompanhando. Andei muuuuito lá. Passei por
muita gente, gente, gente, gente. Mesas e mesas de cachaça, de cerveja. Bancas de ananás, e
de banana, de beiju, de biscoito e de tudo. Aí, só o que ela disse pra mim não comer e nem
beber nada. Aí sei que andemo, andemo, andemo, andemo até ela falar “vamos embora, tamos
mesmo passeando”.
Lídia demonstra que o que se vê no fundo nem sempre corresponde à mesma coisa aqui na
superfície: “O banco deles é aquelas cobras jibóia (...). Aqueles beijuzão, assim, é pura arraia,
as tartarugas que eles chamam é o tal de charuto [pirarucu]... o charuto que é a tartaruga
deles, a carne deles”. Joca, que afirma ter sido levado para o fundo confirma as ter visto a
arraia-beiju e o banco-sucuriju. João e outros afirmam que arraia seria, na verdade, o chapéu
dos botos encantados. Odinez explica que as cobras que vemos, são cordas na perspectiva
dos botos. Outra relação comum se refere ao peixe-boi que em muitas ocasiões é comparado
ao homem negro. Se no “Fundo” o boto-vermelho é um homem branco, para alguns
entrevistados, o peixe-boi é um homem negro. Lídia explica a totalidade dessas trocas de
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perspectivas através da metáfora do “espelho”, afirmando que “a água pra ele [Boto] é um
espelho, a água é o espelho deles” e que “o boto é o espelho do homem”.
Uma das razões pelas quais os botos “flecham” as pessoas é a de vingar aqueles que os
maltratam ou ameaçam. Slater afirma (1994: 134) que quem mata um boto pode ficar
“panema”, ou seja, pode ser atacado por uma incapacidade sobrenatural, sobretudo na caça e
na pesca. Se a vítima for um encantado em forma animal, as consequências podem ser piores.
No Cuiú-Cuiú, foram relatadas algumas histórias em que pescadores foram enfeitiçados após
terem matado, agredido ou arpoado botos intencionalmente.
Nesses relatos, as causas que motivaram a caça do boto variam: matar para usar a carne
como isca na pesca de piracatinga; arpoar ou matar tentando evitar que esse atrapalhe a pesca
do pirarucu; e, finalmente, os poucos que alegaram matar por “curiosidade” ou “diversão”. É
importante ressaltar que o pescador que mata o boto sem intenção não é vingado por ele,
assim, quando o animal fica preso em um malhadeira e morre afogado, aquele que a usava
não é vítima de feitiço. Mesmo nos casos de matança intencional, o feitiço pode não acontecer.
Entrevistados afirmaram ter matado botos sem sofrer nenhuma consequência, sendo que na
maioria das vezes atribuem essa sorte a “Deus”.
Foram descritos casos variados em que pescadores foram enfeitiçados após maltratar botos.
Em alguns casos, os boto tenta se vingar do pescador que o agrediu perseguindo-o e fazendo
“rebojo” na canoa. O feitiço, por outro lado, é caracterizado por febre forte e dores de cabeça,
que podem ou não ser seguidos de visitas do espírito do boto que atormenta o enfeitiçado
durante a noite. Caso essas experiências sejam frequentes, o enfeitiçado pode chegar a
enlouquecer. Também dores nos braços, “tapas” na cabeça, alucinações e perseguições por
espíritos durante a pesca.
Os interlocutores explicam que, nesses casos, o objetivo do boto seria alertar o pescador para
que não os maltrate mais ou levá-lo para o fundo como forma de vingança. O enfeitiçado pode
conseguir se curar antes de ser levado, seja sozinho ou através da intervenção de um pajé,
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curador ou sacaca. As curas podem ser ministradas através de banhos, garrafadas ou rituais
nos quais o espírito do boto é afastado. O alho é um elemento comum nos remédios para curar
feitiços de boto, sendo usado também como forma de proteção contra esses, ao ser pendurado
na soleira das portas das casas. O alho também citado por Galvão como um antídoto para os
feitiços de boto (1995: 95).
José conta que arpoou um boto fêmea (“bota”) e logo em seguida sentiu “uma mão dando um
tapa” em sua nuca. Já Carla conta que seu irmão, após arpoar um boto, teve febre, dor de
cabeça e não enxergava nada além de botos, mesmo fora da água. Davi matou um boto e ficou
mais de uma semana sentindo dores no braço. Joca afirma ser frequentemente perseguido por
botos quando vai ao lago Preguiça, perseguição a qual ele atribui ao fato de ter matado muitos
botos-vermelhos em sua vida. Ricardo conta que caso alguém faça mal a um boto encantando,
ele será “flechado pelo boto”, destacando que seu primo “ficou doido” após arpoar um boto.
Geraldo, afirma ter arpoado um boto quando jovem, e por isso teria ficado algumas semanas
enxergando sangue onde deveria enxergar água. Ele conta que depois desta experiência
nunca mais arpoou botos. Registramos uma enorme diversidade de narrativas como essas,
tratando tanto de experiências próprias com os feitiços de boto quanto narrando algo
acontecido a terceiros.
Durante as entrevistas, também foram presentes narrativas tratando do que ocorre no caso do
boto encantado ser arpoado e não morrer: o pescador é levado para o fundo do rio por dois
homens vestidos de branco que aparecem remando em sua direção, chamados de “soldados”.
No fundo, o desafortunado pescador se encontra em um grande hospital onde o boto arpoado
convalesce como homem doente em uma maca. Em alguns casos o pescador é chamado à
responsabilidade, devendo remover a ponta do arpão do corpo do encantado. Slater (1994:
136) registra narrativas similares a esta.
O poder de vingança do boto frente à agressão dos pescadores tem relação com as interações
possíveis entre humanos e botos na calha do Japurá, incluindo a pesca da piracatinga. No
21
relatório de Estupiñán (et al, 2003, p. 7), parte do território do Cuiú-Cuiú aparece como ponto
crítico “muito intenso” de abate de jacarés e botos para pesca de piracatinga. Entretanto,
apesar de um número considerável de entrevistados ter declarado que pratica a pesca da
piracatinga com jacarés, a grande maioria afirma não matar botos. Esse quadro pode ser
dever, em parte, ao receio dos entrevistados em falar de uma prática ilegal, uma vez que o
abate de jacarés e botos para a pesca não é permitido por lei. Também existe uma confusão,
por parte da população regional, do papel do Instituto Mamirauá com o do IBAMA (Instituto
Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) e demais órgãos de fiscalização
ambiental, acreditando que os membros do Instituto Mamirauá teriam poder de polícia e
fiscalização.
Assim, apenas um único morador, receoso de dar esse depoimento, admitiu matar botos para a
pesca de piracatinga, alegando também que “é frescura ter medo de boto por causa desse
negócio de espírito”. Outros admitiram já ter matado botos, pois estes estavam atrapalhando na
pesca, e a maioria dos entrevistados afirmou não matar botos. Alguns alegaram não matar
porque o boto-vermelho é um animal rápido e difícil de ser arpoado; outros entrevistados
admitiram que não caçam botos por medo de estes se vingarem ou por já terem
experimentando os efeitos dos feitiços por vingança. Sarney pesca piracatinga, mas deixa bem
claro que só o faz utilizando jacarés como isca, pois tem mais medo de botos do que de
jacarés, já que os primeiros possuem espírito.
Durante o período de pesquisa o Ponto X, comunidade não indígena do setor Aranapu, foi
citada pelos Miranha como local onde a prática de se matar botos para a pesca de piracatinga
é comum. A comunidade se situa em um local onde a população de botos é abundante durante
a seca, sendo fácil capturá-los usando redes de arrastão. Esta comunidade foi visitada três
vezes para realização de atividades de educação ambiental e foram coletados depoimentos de
jovens que realizam a pesca com boto. Esses não discordam do poder do boto encantado,
22
afirmando que são perseguidos durante o sono e que só pescam a piracatinga porque não
encontram outra alternativa de fonte de renda.
Na mesma comunidade, um morador contou que tinha o costume de matar botos, não só para
utilizá-los na pesca de piracatinga, mas também por diversão, já que acreditava que o boto era
um ser sem espírito. Durante muito tempo sua sogra o advertia que, se continuasse com esta
prática, seu filho nasceria deficiente. Ele continuou matando botos-vermelhos mesmo durante a
gravidez de sua esposa, e, assim como previsto pela sogra, seu filho nasceu com sérias
deficiências motoras e mentais, que de acordo com a própria família, o fazem parecer com um
filhote de boto. Após o acontecido, o homem afirma que nunca mais matou e nem irá matar
nenhum boto, pois “aprendeu a lição”.
Foi possível notar alguns padrões de relação dos pescadores com os botos. A grande maioria
dos pescadores entrevistados acredita que aquele que mata um encantado está sujeito a ser
enfeitiçado. Assim alguns afirmam que, como é impossível discernir botos encantados de botos
comuns, é melhor nunca matá-los. Esses pescadores podem ter chegado a matar botos, mas
devido aos eventos de feitiços decidiram interromper a prática. Por outro lado, outros
pescadores que também acreditam no poder de encante do boto, não deixam de matar botos.
Alegam que o fato de os botos encantados estarem ultimamente se manifestando com pouca
frequência acarreta em uma maior chance de arpoar um boto que não é encantado, ficando o
pescador livre do feitiço. Outro grupo, representado pelos pescadores do Ponto X, conhecem
os feitiços dos botos, já foram alvo dos mesmos, mas continuam matando botos devido à alta
lucratividade da pesca de piracatinga feita com carcaça de botos.
Lima (2012) apresenta o relato de um amazonense que afirma que o aumento da população e
o crescimento das cidades estariam levando os encantados a se afastarem do mundo dos
humanos. Slater (1994) também mostra que para alguns de seus entrevistados as narrativas de
encantados ocorreram no passado. Um de seus interlocutores chega afirmar que os botos não
gostam de grandes cidades, pois os barulhos lhes causam dor de cabeça (Ibid.: 51). Os
23
Miranha do Cuiú-Cuiú partilham essa ideia de uma diminuição relativa da manifestação dos
botos encantados. Apesar de muitos entrevistados terem vivenciado experiências de encante
envolvendo o boto, outros se referem à manifestação dos encantados como algo do passado,
sendo os termos ‘antigamente’ e ‘antigos’ recorrentes quando o entrevistado fala sobre esse
assunto.
Alguns Miranha apresentam outra justificativa para a diminuição dos encantados na região.
Para esses, a existência de botos encantados depende da existência do “índio pagão”, ou seja,
o não-cristão que privilegia conhecimentos acerca dos encantados. Ao ser questionada sobre o
porquê da existência de poucos botos encantados atualmente, Maria respondeu: “Porque hoje
tudo já é crente né, naquele tempo não. O povo era pagão, ninguém tinha compromisso com
Deus. Eles sabiam mexer com essas coisas.” Lorival, diante do mesmo questionamento, deu
uma resposta similar: “Eu acredito que as igrejas afastaram muito as coisas, né?! (...)Diminuiu
porque agora todo mundo é crente”. Dentro da mesma lógica, Lídia afirma que, hoje em dia,
existem menos casos de encante, pois as pessoas se tornaram cristãs, rezam mais e por isso
estão “fechando o corpo”, o que as torna imunes às manifestações dos encantados.
E, no entanto, todas estas narrativas, descrições e práticas relacionadas ao boto-vermelho
eram amplamente conhecidas pela totalidade dos interlocutores envolvidos na pesquisa,
incluindo jovens e crianças. As narrativas de encantamento são recorrentes nas conversas
cotidianas, e todos têm o conhecimento necessário para discorrer longamente acerca dos
encantados. Por outro lado, durante a realização das atividades de educação ambiental no
Cuiú-Cuiú, focadas nas características biológicas do boto-vermelho, percebia-se uma
atmosfera de incompreensão. A orientação dessas iniciativas compreendia atividades lúdicas
como “jogo da memória” e “quebra-cabeças”, que incluíam perguntas como: Quantos meses
dura a gestação do boto? Durante quanto tempo o filhote fica com a mãe? O boto é um animal
solitário ou está sempre acompanhado? Mesmo que estas atividades tivessem sido realizadas
durante muitos meses, os moradores do Cuiú-Cuiú desconheciam as respostas.
24
“O encante está sempre escapando à definição”, escreve Slater (1994:340). O ser encantado
seria aquele que faz parte de outra ordem de existência, que usa “capas”, capaz de feitos
mágicos, que foi ou é enfeitiçado e tem poder de enfeitiçar e encantar seus Outros. Nos relatos
coletados o encante aparece como algo sobre o qual se pode versar longamente, mas cuja
natureza é misteriosa e desconhecida, desafiando uma apreensão total.
O fato de muitos moradores confirmarem um relativo desaparecimento do boto encantado é
indício de que este aspecto da cosmologia do Cuiú-Cuiú está em transformação. Com base nos
depoimentos de seus interlocutores, Slater (1994: 330) afirma que os “encantados estão
vivendo um retiro forçado do mundo dos seres humanos”.
Essa transformação se reflete nas diferentes formas com que os moradores da região se
relacionam com o boto-vermelho. Há moradores que não matam botos por medo de feitiço,
outros o fazem em retaliação à sua intromissão nos esforços de pesca (danificando
malhadeiras ou comendo peixes), e também para o uso da carcaça na pesca da piracatinga.
Seria tentador estabelecer uma relação de causalidade entre o aumento do abate de botos,
relatado por Estupinãn e colaboradores (2003:07) com as narrativas da diminuição da
manifestação dos botos encantados: um menor número de botos encantados implicando
menos chances de sofrer a retaliação por feitiçaria. No entanto, essa diminuição precisa ser
posta em relação, ou seja, ela é descrita frente um passado de prevalência e intensidade nas
manifestações dos encantados. Assim, as narrativas e experiências dos Miranha e demais
populações do baixo Japurá não deixam dúvidas de que as experiências e histórias de
encantamento permanecem.
Para os envolvidos nas iniciativas de conservação de espécies aquáticas, a compreensão das
relações entre populações humanas e botos-vermelhos na Amazônia passa pelo
conhecimento da síntese do que Viveiros de Castro (1996, 2002) chama de perspectivismo
ameríndio. Na lógica das populações ameríndias pessoas e animais se opõem a partir das
diferenças de seus corpos, mas cada um percebe o seu corpo, alimento, casa e adornos como
25
idênticos àqueles das pessoas. O encontro entre diferentes tipos de gente (homem e boto
encantando, por exemplo) só aconteceria em momentos excepcionais, justamente quando as
pessoas humanas passam pelo risco de ser encantadas e, passando para perspectiva do boto,
começam a vê-los como gente.
Assim, segundo o perspectivismo ameríndio, sujeitos diferentes vêem o mundo do mesmo
modo, mas o que veem como “a mesma coisa” não é coincidente. Isso significa que cada tipo
de corpo, dentro do qual as perspectivas são compartilhadas. Esse aspecto está ilustrado em
diversas narrativas, mas fica explícito naquelas em que se afirma que os encantados veem as
pessoas da mesma forma que os humanos vêem os botos na água, e, assim como os homens
“flecham” os botos em seu mundo, os encantados tentam “flechá-los”, já que de sua
perspectiva somos como os botos são para nós. O que se processa nesses casos é um jogo de
inversão das perspectivas de predador e presa, de humanos e botos.
Essas inversões também são ilustradas por Lídia, quando ela afirma que o banco dos
moradores do fundo é a jibóia, seu beiju é a arraia e que a tartaruga é seu pirarucu. Em
pesquisa entre os Cocama da região da foz do Jutaí, a lista de correlações encontradas foi
ainda maior, indicando que os diferentes moradores do fundo e pessoas humanas
experimentam a existência de seres-objetos de maneiras não coincidentes.
CONCLUSÃO Nosso intuito neste trabalho foi, à partir do estudo da relação entre os Miranha e o boto-
vermelho, expor as dificuldades em se fazer comunicar os diferentes modos de conhecimento
em torno do que chamamos de “Natureza”. Discussões e pesquisas a respeito de iniciativas de
conservação têm apontado aspectos de sinergia e disjunção entre as conjecturas científicas e
os modos de conhecimento locais (BLASER, 2009; CARNEIRO DA CUNHA, 2009; CEPEK,
2011; PERALTA & LIMA, 2012). A equivocação na interação entre essas formas de
conhecimento não se daria apenas nas dificuldades de se produzir traduções terminológicas
26
eficazes, mas na busca pelo estabelecimento de diálogos possíveis entre pressupostos
ontológicos distintos. Partindo do conceito de antropologia como “equivocação controlada”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2004) nos perguntamos se seria possível operar uma tradução dos
conhecimentos implicados na relação dos Miranha, e demais populações do baixo Japurá, com
o boto-vermelho. Nesse caso, o que propomos é trabalhar deliberadamente na composição de
uma “equivocação produtiva” na relação entre as populações locais e aqueles envolvidos na
produção das pesquisas e iniciativas de conservação.
Esse esforço, no entanto, não pode se resumir em propostas simplistas marcadas por uma
hipertrofia utilitarista dos sentimentos de respeito e medo evocados pelos botos-vermelhos
devido à sua potencial natureza encantada. Pontos em comum entre as cosmologias
amazônicas e os esforços de conservação têm sido apontados em diversos trabalhos
(ALMEIDA, 2013; CARNEIRO DA CUNHA & ALMEIDA, 2009; CEPEK, 2011; LIMA &
POZZOBON, 2005; SMITH, 1996). Tais similaridades, no entanto, não podem ser tomadas
pensadas como correspondentes aos pressupostos da biologia da conservação, nem como
relações simples de causa e efeito - tais como “não se mata botos porque se acredita que são
encantados” ou “mata-se o boto porque não se acredita mais que são encantados”.
Isso também não significa que devamos nos apoiar na ideia de que há uma
incomensurabilidade absoluta entre o conhecimento sobre o Inia geoffrensis produzido no
âmbito das ciências biológicas e os modos de conhecimento locais. O conhecimento dos
Miranha acerca do boto-vermelho não se apresenta exclusivamente nas facetas do
encantamento: os pescadores observam comportamentos e padrões em sua interação com os
botos (cf. PASCHOAL, 2010), mas elaboram seu conhecimento de acordo com pressupostos
distintos daqueles das ciências biológicas.
A tentativa de instruir o público-alvo das atividades de educação ambiental com os conceitos
das ciências biológicas que descrevem anatomia, habitat e nicho ecológico do animal,
classificando-o em Reinos e Filos, perde muito de sua relevância quando estas pessoas,
27
colocadas na situação de aprendizes, pensam a respeito e interagem com esses animais
guiados por pressupostos diferentes. Nesse sentido, é possível assumir que o diminuído
interesse dos Miranha frente às atividades de educação ambiental não se deva somente à
natureza do conteúdo apresentado, mas à falta da promoção de uma intersecção possível
entre maneiras diferentes de conhecer o mundo vivido.
A promoção de um diálogo possível não deriva da máxima de que primeiro seria necessário
“conhecer a realidade” das populações entre as quais se trabalha. O cerne da questão é de
que maneira os conhecimentos destas podem ser colocados em debate com as ciências que
subsidiam as iniciativas de conservação. Em primeiro lugar a construção dessa possibilidade
exige que cientistas e educadores se coloquem na posição de aprendizes no entendimento de
como as populações amazônicas concebem seu mundo vivido e se relacionam com as
espécies e ambientes estudados pelas ciências da conservação. Essa possibilidade exige
também um tratamento simétrico dos diferentes regimes de conhecimento, visando não reduzir
o saber dessas populações ao status de “lendas” ou “crenças”. As teorias amazônicas a
respeito do boto-vermelho são capazes de nos informar acerca de modos diferentes de
conceber e interagir com o que chamamos de “Natureza”, como essas populações definem o
humano e os diferentes seres que povoam o mundo – as espécies-alvo das iniciativas de
conservação inclusas.
28
AGRADECIMENTOS
Agradecemos, em primeiro lugar, aos Miranha da TI Cuiú-Cuiú, por consentir com a realização
da pesquisa e participar da mesma. Agradecemos, em especial, a Odinez Clarindo Moraes, por
seu trabalho cuidadoso e diálogo frutífero, sem o qual esta pesquisa não teria sido possível.
Nossa gratidão a Deborah de Magalhães Lima por sua orientação e interlocução na elaboração
desse artigo e além. A Miriam Marmontel somos gratos pela oportunidade de trabalho junto ao
Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos. Aos funcionários da FUNAI-Tefé agradecemos
pela ajuda para conseguir as permissões de pesquisa. Agradecemos também a Candace Slater
pela frutífera troca de ideias durante uma viagem pelo baixo Japurá. Nelissa Peralta, José
Cândido Douglas Campelo e Flora Gonçalves colaboraram com sugestões e correções
valiosas nas diversas versões desse trabalho. Os eventuais erros e problemas, no entanto, são
de inteira responsabilidade dos autores. A pesquisa foi financiada pelo Instituto de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) através do Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação (MCTI), e também pelo Projeto AQUAVERT que conta com recursos do Programa
Petrobrás Ambiental.
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29
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