Experiências de Encantamento e a relação dos Miranha do Cuiú-Cuiú com os botos-vermelhos (inia...

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1 DUTRA, Juliana. C. O; SANTOS, Rafael .B.C. . Enchantment experiences and the relation between the Miraña of Cuiú-Cuiú and the pink river dolphin (inia geoffrensis). Uakari (Belém. Online), v. 10, p. 2, 2014. EXPERIÊNCIAS DE ENCANTAMENTO E A RELAÇÃO DOS MIRANHA DO CUIÚ-CUIÚ COM OS BOTOS VERMELHOS (Inia geoffrensis) Juliana Cabral de Oliveira Dutra – Universidade Federal de Minas Gerais Rafael Barbi Costa e Santos – Instituto Mamirauá Palavras-chave: Boto-Vermelho, Miranha, Encantado, Perspectivismo Ameríndio, Equivocação, Conservação Key words: Pink River-Dolphin, Miraña, Enchanted, Amerindian Perspectivism, Equivocation, Conservation RESUMO Este trabalho busca discutir a relação entre os Miranha da Terra Indígena Cuiú-Cuiú e seu entorno com o boto-vermelho (Inia geoffrensis). Buscamos conhecer, através do uso do método etnográfico e da teoria do perspectivismo ameríndio, como este povo indígena do médio Solimões se relaciona com o boto-vermelho e como a cosmologia por eles construída está ligada às práticas de predação desse mamífero, usado como isca para a pesca de piracatinga (Calophysus macropterus) na região. Buscou-se identificar e compreender os motivos que levam os pescadores a matar ou não os botos-vermelhos. Demonstrando as especificidades do pensamento dos Miranha acerca do boto-vermelho, pretendemos chamar a atenção para a importância da compreensão e valorização das cosmologias amazônicas na elaboração e execução de iniciativas de conservação nessa região. ABSTRACT This work seeks further clarification on the relationship between the Miraña of the Cuiú-Cuiú Indigenous Land, and its surroundings, and the pink river dolphin (Inia geoffrensis), regionally known as boto. We demonstrate, through the use of ethnographic methods and the theory of Amerindian Perspectivism, how this indigenous group from the médio Solimões relates to the pink river dolphin and how their cosmology is linked to the predation practices, of this animal, used as bait for the capture of the picaratinga catfish (Calophysus macropterus). We seek to identify the reasons that lead fishermen to kill, or not to kill, botos. Demonstrating the unique ideas of the Miraña about the pink river dolphin, we intend to call attention to the importance of understanding and valuing the Amazonian cosmologies in the planning and execution of conservation initiatives in the region.

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DUTRA, Juliana. C. O; SANTOS, Rafael .B.C. . Enchantment experiences and the relation between the Miraña of Cuiú-Cuiú and the pink river dolphin (inia geoffrensis). Uakari (Belém. Online), v. 10, p. 2, 2014.

EXPERIÊNCIAS DE ENCANTAMENTO E A RELAÇÃO DOS MIRANHA DO CUIÚ-CUIÚ COM OS BOTOS VERMELHOS (Inia geoffrensis)

Juliana Cabral de Oliveira Dutra – Universidade Federal de Minas Gerais

Rafael Barbi Costa e Santos – Instituto Mamirauá

Palavras-chave: Boto-Vermelho, Miranha, Encantado, Perspectivismo Ameríndio,

Equivocação, Conservação

Key words: Pink River-Dolphin, Miraña, Enchanted, Amerindian Perspectivism, Equivocation,

Conservation

RESUMO Este trabalho busca discutir a relação entre os Miranha da Terra Indígena Cuiú-Cuiú e seu

entorno com o boto-vermelho (Inia geoffrensis). Buscamos conhecer, através do uso do método

etnográfico e da teoria do perspectivismo ameríndio, como este povo indígena do médio

Solimões se relaciona com o boto-vermelho e como a cosmologia por eles construída está

ligada às práticas de predação desse mamífero, usado como isca para a pesca de piracatinga

(Calophysus macropterus) na região. Buscou-se identificar e compreender os motivos que

levam os pescadores a matar ou não os botos-vermelhos. Demonstrando as especificidades do

pensamento dos Miranha acerca do boto-vermelho, pretendemos chamar a atenção para a

importância da compreensão e valorização das cosmologias amazônicas na elaboração e

execução de iniciativas de conservação nessa região.

ABSTRACT

This work seeks further clarification on the relationship between the Miraña of the Cuiú-Cuiú

Indigenous Land, and its surroundings, and the pink river dolphin (Inia geoffrensis), regionally

known as boto. We demonstrate, through the use of ethnographic methods and the theory of

Amerindian Perspectivism, how this indigenous group from the médio Solimões relates to the

pink river dolphin and how their cosmology is linked to the predation practices, of this animal,

used as bait for the capture of the picaratinga catfish (Calophysus macropterus). We seek to

identify the reasons that lead fishermen to kill, or not to kill, botos. Demonstrating the unique

ideas of the Miraña about the pink river dolphin, we intend to call attention to the importance of

understanding and valuing the Amazonian cosmologies in the planning and execution of

conservation initiatives in the region.

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“E isso foi verdade o que aconteceu comigo. É verdade, isso aí é verdade. Boto vira gente mesmo!”

- Antônio Preto, comunidade São José do Cuiú-Cuiú

INTRODUÇÃO

Esse trabalho deriva da conjunção entre diferentes esforços de pesquisa e extensão realizadas

no âmbito do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá: a atuação da autora Juliana

Dutra como educadora ambiental do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos do Instituto

de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) em 2012, e sua etnografia entre as

comunidades miranha da TI Cuiú-Cuiú; e as pesquisas de Rafael Barbi entre os indígenas da

região do médio Solimões e afluentes. A partir do estudo do caso da relação dos Miranha com

os botos-vermelhos, procuramos refletir acerca das diferenças sobre a concepção de espécies

animais a partir dos pontos de vista das ciências e das populações amazônicas.

Durante a realização de atividades de educação ambiental entre os Miranha do Cuiú-Cuiú

percebemos a dificuldade em trabalhar com os conceitos e classificações das Ciências

Biológicas. Ao mesmo tempo, nos era apresentado um rico conhecimento local, baseado na

experiência cotidiana dos Miranha com os ambientes aquáticos e suas diversas espécies

animais, e nos pressupostos de sua cosmologia. O boto-vermelho, em especial, era descrito

como animal potencialmente encantado, dotado de agência e capacidade transformativa.

Notamos então, a necessidade de se descrever o conhecimento dos Miranha sobre esse

animal.

As narrativas a respeito de seres sobrenaturais ou encantados são parte significativa dos

estudos de folclore brasileiro, presentes nos estudos abrangentes publicados por de Luís da

Câmara Cascudo (1954) e Alceu Maynard Araújo (1964). Nessas obras, o boto encantado

figura entre curupiras, sacis e mulas sem-cabeça, como um personagem de lendas contadas

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no interior do Brasil. Embora o tratamento das narrativas de boto encantado enquanto “lendas”

pelos estudos de folclore tenha se popularizado, ele contribui para um esvaziamento de sua

importância no mundo vivido dos narradores e ofusca o fato de que essas narrativas são

apresentadas enquanto experiências vividas. Nesse sentido, o trabalho de Eduardo Galvão

(1955), contemporâneo de Câmara Cascudo e Araújo, sobre religiosidade na vila de Itá, no

Baixo Amazonas, é o primeiro a abordar o encantamento como parte ativa da vida de seus

interlocutores.

Galvão afirma que os moradores de Itá definem “encantado” como “uma força mágica atribuída

aos sobrenaturais. Seres humanos, animais, objetos podem ficar encantados por influencia de

um sobrenatural”. Ele entende que o conceito de encantado se baseia tanto em “descrições de

sobrenaturais de origem indígena” e um “empréstimo europeu” (idem: 91-92). O boto figura,

entre os encantados conhecidos como “companheiros do fundo” ou “caruaras”, habitantes de

cidades e reinos submersos, espíritos familiares usados nos processos de cura de pajés e

sacacas. É considerado como pertencente a uma “categoria especial de seres encantados”,

uma vez que, diferente das demais entidades encantadas da floresta como o curupira ou o

mapinguari, pode se apresentar sob formas diferentes. Segundo os moradores de Itá, o boto

pode se transformar em um homem branco, dotado de espírito e poderes sobrenaturais

capazes de provocar a morte e a loucura ou ajudar pajés em seus trabalhos. Mais

recentemente, através de uma pesquisa multi-situada na Amazônia brasileira, Slater (1994)

documenta e analisa um grande número de narrativas envolvendo botos encantados. A autora

discute as diferenças e similaridades nas histórias e na conceituação dos encantados, através

de material coletados nos estados do Amazonas, Rondônia, Pará e Amapá. Nomura (1996:16-

22) afirma que as narrativas de boto são um aspecto marcante da cosmologia das populações

amazônicas, nelas o boto é descrito como um ser dotado da capacidade de se transformar em

belo homem (ou mulher), vestido com roupas brancas e chapéu que serve para esconder seu

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espiráculo. Rivas-Ruiz (2011:64) descreve que entre os Cocama da Amazônia peruana o boto-

vermelho é considerado como um animal mágico por excelência, capaz de se transformar em

gente, ter relações sexuais com humanos e lhes fazer mal através de feitiçaria. Wawzyniak

(2008), em pesquisa no baixo Tapajós, também documentou que os habitantes daquela região

atribuem ao boto-vermelho a capacidade de transformar-se em gente e colocar o “mau-olhado

de bicho” nas pessoas humanas. Em um pequeno livro organizado por Trujillo e colaborares

(2004), estão registradas pequenas narrativas de indígenas Cocama, Yágua e Ticuna na

Amazônia Colombiana, nas quais os botos encantados transformam-se em humanos, vivem

em cidades submersas e seduzem homens e mulheres. Os moradores da vila do Paru, no

baixo Amazonas, atribuem doenças acontecidas durante as cheias à ação dos botos vemelhos

(Harris, 1996: 78).

Na TI Cuiú-Cuiú, os encantados aparecem como aspecto forte do mundo vivido dos Miranha. A

cosmologia do encantamento influencia a forma como os moradores desta terra indígena

interagem com o Inia geoffrensis. Durante a realização de atividades de educação ambiental

naquela TI, notamos que, ao perguntar aos moradores as principais características do boto-

vermelho, as respostas estavam mais relacionadas a seu aspecto encantado do que às

características relacionadas à biologia ou ecologia da espécie.

As atividades de educação ambiental realizadas na ocasião da pesquisa de campo eram

baseadas na ideia de que o aprendizado a respeito da ecologia do animal torna o educando

mais sensível para a conservação da espécie. Segundo esta lógica, um dos objetivos dessas

atividades era ensinar aos moradores do Cuiú-Cuiú questões relacionadas a conhecimentos

científicos produzidos pelas ciências biológicas acerca do Inia geoffrensis. A relação de tal

conteúdo com o saber dos Miranha é pouco significativa, sendo baseado em pressupostos que

não são compartilhados pelos cientistas e indígenas. O que se instaurava a partir da educação

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ambiental era uma barreira no estabelecimento de um diálogo saudável entre os educadores e

os moradores do Cuiú-Cuiú.

A carcaça do boto-vermelho, assim como de algumas espécies de jacarés (Melanosuchus niger

e Caiman crocodilus), vem sendo comercializada e utilizada, em diversas áreas da Amazônia,

como isca para a pesca de piracatinga (Calophysus macropterus). Este peixe siluriforme de

médio porte é apreciado e consumido principalmente em países como Peru e Colômbia, com

recente intensificação do consumo no Brasil. A piracatinga é conhecida por ingerir alimentos de

origem vegetal e animal, incluindo carcaças de animais mortos, hábito alimentar que faz com

que o consumo desse peixe não seja apreciado na Amazônia brasileira (ESTUPIÑÁN et al.,

2003). Nos últimos 10 anos, a comercialização desta espécie de peixe pela indústria pesqueira

no Brasil tem crescido vertiginosamente: visando driblar essas restrições ao consumo da

piracatinga pela população da Amazônia brasileira, este peixe tem sido comercializado sob o

nome de “Douradinha” (BRUM, 2011; MINTZER et al., 2013)

Durante o período de pesquisa, notamos que muitos moradores declaravam ter medo de matar

os botos-vermelhos, e, a maioria declarava realizar a pesca da piracatinga somente com

carcaças de jacarés. Cabe aqui destacar que a carcaça do boto-vermelho é considerada a isca

mais eficiente nesta pesca por possuir pitiú (cheiro forte) e maior quantidade de gordura. Dados

recentes (IRIARTE & MARMONTEL, 2013; MINTZER et al., 2013) sugerem, no entanto, que a

pesca à piracatinga com o uso da carne de boto-vermelho permanece intensa na região. Essa

aparente contradição - ao mesmo tempo temer e matar intencionalmente o boto-vermelho -

revela-se como parte de uma relação complexa entre as populações do baixo Japurá e este

animal. A ênfase dada pelos Miranha à condição encantada do boto-vermelho sugeriu a

necessidade de investigarmos esse aspecto de seu mundo vivido.

Lima (2012) sugere que a teoria do perspectivismo ameríndio seria essencial para a

compreensão da natureza encantada do boto. Eduardo Viveiros de Castro (1996, 2002) aponta

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que as cosmologias dos povos ameríndios pressupõem que os animais são potencialmente

humanos segundo sua própria perspectiva. Ou seja: veem a si mesmos como pessoas, seus

atributos corporais são adornos ou vestimentas, seu alimento é comida própria de humanos e

suas relações são organizadas como aquelas das pessoas humanas. Assim, a onça vê a si

mesmo como pessoa humana, vê sua casa na árvore como uma maloca, vê o sangue que

bebe como cauim. Segundo a perspectiva da onça, os seres humanos seriam presas

potenciais, sendo percebidos por ela sob a condição de porcos-do-mato.

O perspectivismo ameríndio implicaria em modos de relação distintos daqueles caros às

cosmologias multiculturalistas, baseadas na ideia de uma natureza única e uma multiplicidade

de culturas. As cosmologias ameríndias partiriam, ao contrário, de uma ideia de cultura

extensiva, expressa pela potencial existência humana de diversos seres segundo sua própria

perspectiva, ao mesmo tempo em que se pensa em uma multiplicidade de naturezas. As

diferenças estariam dadas pelos corpos, por suas especificidades e potências. A síntese de

Viveiros de Castro para a teoria do perspectivismo ameríndio aponta que o pensamento

ameríndio opera os conceitos natureza e cultura de maneira distinta, por exemplo, daquela das

ciências modernas.

Em artigo recente, Maués (2012) defende, com base em dados de diversas etnografias, que o

perspectivismo não operaria como pressuposto cosmológico apenas entre os povos

ameríndios, sendo partilhado pelas populações da Amazônia rural. As narrativas e as teorias

do encante no médio Solimões são pensadas por Lima (2012) como experiências de vida, cuja

estrutura tem origem histórica em uma ontologia perspectivista. Em outras situações de

pesquisa, no baixo Japurá e na foz do Jutaí, interlocutores indígenas e não-indígenas

descrevem alguns animais e encantados através de sua agência e capacidade transformativa,

algo que remete às teorias do perspectivismo ameríndio.

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Dentro das ciências modernas a ordem dos Cetáceos, à qual pertence o Inia geoffrensis, está

no centro de uma longa controvérsia acerca dos limites da humanidade e animalidade. Desde a

década de 1970, pesquisas acerca da anatomia do córtex e o que seriam evidências da

presença de linguagem articulada em Cetáceos teriam operado uma transformação no estatuto

ontológico desses seres (CALHEIROS, 2009:20-25).

Bruno Latour (1993) estipula que a modernidade se constitui através de separações, como

aquelas entre ciência e política, natureza e cultura, humanos e não-humanos, e de

pressuposições, como a da transcendência da natureza e a imanência da sociedade. Ele

afirma que estas separações e pressupostos seriam garantidos através da “Constituição

Moderna”, sua metáfora para o que seria um “texto comum” que definiria os acordos em torno

destas garantias. A tese de Latour, no entanto, é de que os modernos não operam de fato

através dessas separações e pressuposições, sendo justamente a Constituição Moderna

aquela a dar conta dos “híbridos” que perturbam as garantias da modernidade. Os “híbridos”

seriam gerados quando, por exemplo, política e natureza se misturam nas ciências, ou quando

se entende que a sociedade é composta por um número crescente de mediadores não-

humanos. Com base nessa teoria, e seguindo a análise de Calheiros (2009), entendemos que

os Cetáceos ocupariam o lugar de híbridos nas ciências contemporâneas, sendo o foco de

discussões sobre os limites dos conceitos de “humano” e “animal”.

No ano de 2010, em Helsinki, a “Declaração dos Direitos para os Cetáceos”, elaborada por

pesquisadores após a conferência “Cetacean Rights: Fostering Moral and Legal Change”

propôs o reconhecimento dos Cetáceos como pessoas não-humanas, sujeitos de direitos. Os

proponentes da declaração destacam que a “pesquisa científica nos fornece conhecimentos

mais profundos a respeito das complexidades das mentes, sociedades e culturas dos

Cetáceos” (HELSINKI GROUP, 2010).

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Não obstante, se povos amazônicos e cientistas atribuem aos botos vermelhos um estatuto de

humanidade relativa, estes o fazem sob pressupostos diversos que articulam conceitos

diferentes de “humano”.

MÉTODOS

A TI Cuiú-Cuiú é habitada pelo povo Miranha, está localizada no baixo Japurá, e seu território

faz parte do município de Maraã. Seus moradores integram a organização comunitária do setor

Boa União, que faz parte da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (RDSM). A TI

tem uma extensão de 36.450 hectares, tendo começado seu processo de identificação em

1992, foi finalmente homologada em 2003. A TI Cuiú-cuiú não apresenta sobreposição com as

RDS Mamirauá e Amanã, mas seus moradores mantêm o acesso a recursos naturais dentro da

RDSM, sob a condição de “usuários” da Unidade de Conservação. “Usuário” é uma categoria

de gestão que denomina aqueles que vivem fora dos limites das RDS, mas fazem uso dos

recursos naturais dentro destas. Em geral, os usuários são moradores de comunidades nas

áreas de entorno das UCs. Os Miranha da TI Cuiú-Cuiú participam de programas de assessoria

técnica e extensão oferecidos pelo IDSM, como o programa de educação ambiental pelo Grupo

de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos, a partir do qual essa discussão é construída.

A TI Cuiú-Cuiú inclui as comunidades indígenas São José, Nova Esperança, Nova Estrela, Vila

Nova 1, Vila Nova 2 e São Pedro. Próximo à comunidade São Pedro se encontra a comunidade

Jubará que, inicialmente não se reconheceu como parte da TI Cuiú-Cuiú, apesar de seus

moradores possuírem parentesco com os Miranha das demais comunidades. Anos depois,

passada a homologação da mesma, os moradores do Jubará entraram em acordo com as

lideranças da TI para que encaminhassem um pedido de revisão da área para uma que

abarcasse a comunidade (SOUZA, 2012). Por isso, a Jubará ainda se encontra em processo

de reconhecimento oficial de suas terras. Mesmo assim, para fins práticos, esta comunidade é

considerada, neste trabalho, como parte da TI, já que seus moradores se veem como tal.

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Dessa forma, a única comunidade do setor Boa União que não faz parte da TI Cuiú-Cuiú e não

se identifica como indígena é a Açaituba.

A metodologia usada nesse trabalho consistiu na pesquisa bibliográfica e pesquisa qualitativa,

balizada pelo método de pesquisa etnográfico. Para a primeira, realizamos pesquisa

bibliográfica a respeito da relação de humanos e botos-vermelhos segundo diferentes

abordagens. A pesquisa incluiu relatórios sobre as atividades de educação ambiental

realizadas no âmbito do IDSM, em especial o da bolsista Letícia Silva de Oliveira, que realizou

trabalhos de educação ambiental no setor Boa União entre 2011 e 2012. Também levantamos

relatórios de outros pesquisadores que realizaram pesquisas na RDSM, com temas afins ao

deste trabalho. O trabalho foi norteado pelas contribuições de Candace Slater (1994), Eduardo

Viveiros de Castro (1996, 2002) e Deborah Lima (2005, 2013).

A pesquisa em campo utilizou métodos etnográficos, com destaque para entrevistas em

profundidade e observação participante. A abordagem da autora nas práticas de educação

ambiental passou a ser reelaborada a partir da identificação das relações da população local

com os botos, reconhecendo que estas são profundamente influenciadas pelos pressupostos

cosmológicos dos povos amazônicos.

Dados etnográficos foram coletados pela autora Juliana Dutra quando esta atuava como

educadora ambiental junto ao Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos do IDSM. Notou-se

que, as comunidades São Pedro, São José e Vila Nova 2 eram mais abertas ao diálogo, em

parte devido à boa relação estabelecida entre esses moradores e Letícia Silva, que atuara ali

também em projetos de educação ambiental. Decidiu-se que estas comunidades seriam

priorizadas. Para realização desta pesquisa e das atividades de educação, Juliana Dutra

passou seis meses em contato com os moradores do TI Cuiú-Cuiú, alternando períodos nas

comunidades, na base Flutuante Preguiça e na sede do Instituto Mamirauá, em Tefé.

O contato com essas comunidades foi pautado também pelo envolvimento em atividades

cotidianas como descascar mandioca, partilhar refeições, cozinhar, assistir a jogos do

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campeonato local de futebol e, inclusive, participar de pescas de piracatinga. Esse exercício se

concretizou em uma observação participante que, juntamente com as reuniões voltadas para a

educação ambiental, foi importante para estabelecer uma relação de confiança com alguns

moradores destas comunidades indígenas. O contato com outras comunidades do setor Boa

União foi mantido devido às atividades de educação ambiental, de maneira que alguns

moradores destas se mostraram dispostos a conversar sobe o tema e a dar entrevistas.

Após o estabelecimento de uma boa relação com as comunidades escolhidas, foi elaborada e

aplicada uma entrevista semi-estruturada que abordou os diversos aspectos do conhecimento

local sobre o boto-vermelho. Em sua grande maioria, as entrevistas foram aplicadas

individualmente nas residências dos entrevistados, mas em alguns casos, estavam presentes

outros moradores, incluindo Odinez Clarindo Moraes, assistente de campo cuja atuação foi

crucial para esta pesquisa. Além de auxiliar nas atividades de educação ambiental e pilotar as

embarcações usadas no deslocamento, com o tempo Odinez passou a ser também o

informante-chave da pesquisa, indicando as pessoas com maiores conhecimentos sobre o

tema e fornecendo informações preciosas sobre o mundo vivido dos moradores da região.

Percebeu-se que alguns entrevistados se sentiam mais desconfortáveis e acuados quando

sozinhos na presença da pesquisadora, apresentando-se mais tranquilos quando em

companhia de outro morador local. A presença de Odinez, conhecido por todos, também foi

muito importante nesses momentos.

A pesquisadora também recebeu visitas de indígenas no flutuante Preguiça, onde se sentiram

à vontade para conversar sobre o tema da pesquisa. Durante esses momentos, explicavam

como e quando ocorre a caça ao boto; o que é o Encante; determinaram as classificações

locais para os botos; citaram locais onde ocorrem maior quantidade de manifestações de

encantados, e contaram histórias conhecidas ou vivenciadas em que o boto se apresenta como

ser encantado ou “vivente”.

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Foram realizados registros fotográficos e 15 entrevistas foram gravadas (12 homens e 3

mulheres), de acordo com a aceitação expressa dos interlocutores, tomando o cuidado para

que estas ferramentas não os inibisse. Neste trabalho usamos nomes fictícios para preservar a

identidade dos entrevistados.

Nesse artigo, escolhemos tratar o encantamento como “experiência”, antes de “representação”

ou “crença”, por entendermos que seu lugar no mundo vivido dos Miranha não está no domínio

do imaginário (cf. GOLDMAN, 2006). Analisar as narrativas de encantamento como “crenças”

ou “lendas” acaba por esvaziar o fato de que, para os narradores elas têm status de verdade –

ou, no mínimo, se encontram no patamar da dúvida razoável. Os Miranha apresentam as

narrativas de encantamento como eventos, situados num tempo dado, experimentados pelos

narradores ou por seus conhecidos, e sua relação com o boto é fortemente mediada por essas

experiências e as narrativas que delas derivam.

RESULTADOS & DISCUSSÃO

Os Miranha são um povo indígena de língua Bora distribuído entre o Brasil e Colômbia. Na

Amazônia colombiana, fazem parte dos “Povos do Centro” (ECHEVERRI, 1997), uma

autodenominação coletiva que agrega, além dos Miranha, outros os povos de interflúvio

Caquetá-Putumayo: Uitoto, Ocaina, Nonuya, Bora, Muiname,e Andoque. O etnônimo Miranha

seria originário do Nheengatu “mira-nhana” (“gente que corre”), não havendo uma

autodenominação que agrupe a totalidade dos falantes de seu idioma – as autodenominações

geralmente tratam de grupos patrilocais e exogâmicos (Guyot, 1972). Atualmente os Miranha

somam pouco mais que duas mil pessoas na Amazônia colombiana, e oitocentas pessoas na

Amazônia Brasileira (KARADIMAS, 2001; ISA, 2013). No Brasil, habitam as Terras Indígenas

de Miratu, Méria, Barreira da Missão, Cajuhiri Atravessado e Cuiú-Cuiú, localizadas na região

do médio Solimões e do baixo Japurá, além de diversas comunidades indígenas em TIs não

demarcadas nessa mesma região.

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Historicamente, a presença dos Miranha na região do baixo Japurá e médio Solimões está

relacionada a deslocamentos forçados, ligados ao comércio de escravos indígenas nos séculos

XVIII até o início do XX, e à exploração por parte de caucheiros colombianos e peruanos nos

séculos XIX e XX (FAULHABER, 1996). Nos relatos de viajantes naturalistas nos séculos XVIII

E XIX, os Miranha são descritos como um povo numeroso, que empreendia guerras contra

outros indígenas do Japurá – inclusive outros grupos falantes da mesma língua – em busca de

cativos, cujo destino era ser rendido à escravidão ou devorado em rituais antropofágicos

(BATES, 1944[1863]; FERREIRA, 2008[1788]; SPIX & MARITUS, 1981[1831].). Paul Marcoy

(1875) e Henry Walter Bates (1944), afirmam que os Miranha vendiam os próprios filhos aos

colonizadores, e que os últimos empregavam seu trabalho sob a condição de escravos.

Karadimas (2001) argumenta que esses seriam filhos classificatórios, em um artigo que aborda

esse comércio escravista à partir da memória dos próprios Miranha. Diante dessa configuração

de etnonímia e história, Faulhaber (1999) defende que a denominação Miranha na Amazônia

brasileira não se referiria a um grupo indígena específico, tratando-se de um nome genérico

que englobaria indígenas de diversos povos do Caquetá/Japurá reduzidos à escravidão pelos

colonizadores ou por outros indígenas.

Em 1974, Expedito Arnaud pesquisou entre os Miranha residentes no rio Caiçara (Méria) e no

rio Uarini (Miratu). Ele descreve uma duradoura estigmatização dos Miranha pela população

regional, apesar de viverem de maneira bastante similar aos demais moradores da região.

Afirma que a relação dos Miranha com seu os “membros da sociedade regional” seria

ambivalente “de um lado procuravam esconder o passado tribal para não sofrerem

discriminações, de outro identificavam-se como índios a fim de garantirem a posse das terras

que habitavam” (ARNAUD, 1981: 17).

Essa ambivalência ainda ressoa no contexto indígena do médio Solimões e afluentes. Durante

a pesquisa, notamos que alguns Miranha da TI Cuiú-Cuiú opõem as categorias de “índio” e

“civilizado”. “Índio” é uma categoria marcada, que faz a referência de uma forma de vida ou um

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passado marcado pela não aceitação ao Cristianismo, escassez de mercadorias e bens,

genocídio, escravidão e total ausência de direitos. Assim quando confrontados com o conceito

de “índio”, muitos indígenas se definiram, durante conversas, como “civilizados”. A articulação

dos movimentos indígenas no Japurá tem contribuído para uma valorização da categoria de

“índio”, difusão da informação acerca dos direitos indígenas no Brasil e uma reversão desse

estigma.

De todo modo, embora os Miranha possuam uma trajetória particular e trágica na história da

ocupação colonial do médio Solimões, o modo de vida dos indígenas do Cuiú-Cuiú é similar ao

das populações não-indígenas das margens do Japurá: são falantes de português; organizam

seus assentamentos sob a forma de “comunidades”; mantém relações de comércio e trabalho

com diferentes “patrões” e “regatões”; possuem uma intensa mobilidade entre a floresta e as

cidades produzida através da articulação de extensas redes de parentesco; têm ênfase nas

atividades produtivas da pesca e produção de farinha de mandioca (SOUZA, 2011).

Os Miranha do Cuiú-Cuiú definem os botos encantados como aqueles que “possuem espírito”,

ou seja, a característica de um ser “vivente” que, assim como as pessoas humanas, é dotado

de agência e “inteligência”. Mas como Geraldo, afirma: “Existe boto que não é encantado não.

E tem o boto que é encantado: que é esse que é inteligente.” O boto encantado apresenta o

poder de encantar, ou enfeitiçar seres humanos: carregar para seu mundo no fundo do rio

aquele pelo qual se apaixona ou do qual deseja se vingar. O sujeito encantado pelo boto pode

ser levado física ou espiritualmente para o mundo do fundo dos rios. O feitiço, cabe destacar, é

um aspecto da intencionalidade de “fazer mal” às pessoas, e pode ser enviado não só pelo

boto encantado, mas também por outros espíritos ou pelo próprio homem. Dona Maria,

considerada pelos mais jovens como “índia de verdade”, conta que existem homens que, por

inveja, “pintam com manchas pretas a pele de outra pessoa.”

Por ser potencialmente encantado, o boto-vermelho recebe a característica de “malino”, uma

expressão amazônica próxima do sentido de travesso ou traquina, e que se difere da ideia de

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maligno (LIMA, 2012). Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual o boto-vermelho ataca

pescadores nas canoas, João responde: “Não sei, eu sei que eles gostam de judiar da gente.”

Apesar de o boto ser capaz de cometer “maldades” e feitiços, sua capacidade de livre-arbítrio é

remetida àquela das pessoas humanas. Slater (1994: 147) afirma que “o boto [encantado] pode

fazer tanto o bem quanto o mal”. Galvão (1955: 110) entende que “a malinesa não é uma

simples atitude de antagonismo entre o homem e forças imaginárias”, e seria decorrente do

domínio, proteção e controle que os animais encantados têm sobre a natureza. Mesmo assim,

em muitas entrevistas, o boto encantado aparece como um ser para o qual maltratar seres

humanos é uma forma de diversão e, talvez seja por isso que o medo é um elemento

recorrente nas entrevistas. “Eu fiquei com medo dele, olha.”; “Eu tenho medo, eu sou cabreiro,

assim, de boto... de boto vermelho.”; “Eu tava com medo. Eu tava com medo daquele boto.”

Esses atos prejudiciais atribuídos aos botos encantados são remetidos como “feitiços” ou

“flechadas”, sendo essa última uma forma mais comum de referência.

Um hábito comumente atribuído aos botos que provoca medo na grande parte dos pescadores

é o de tentar virar canoas. Alguns afirmam que ele o faz simplesmente por ser animal “malino”

e “gaiato”, enquanto outros dizem que o objetivo do boto é encantar o pescador e levá-lo para

seu mundo. Alguns interlocutores afirmaram que uma forma de afastar os botos e evitar que

estes façam “rebojo” na canoa é fincar uma faca no porão da canoa, como descreve Adailton:

“Aí me ensinaram que quando ele tá assim, aí pega uma faca e enfia no porão da canoa,

toda empinada assim. De modo que vai nele, e ele foge da gente. Coloca no meio da

canoa. A gente pega ela e faz assim e ela entra a ponta e vai empinada na canoa e

espanta ele.”

Todos também estão de acordo que o boto-vermelho é capaz de morder as pessoas. Além

disso, é muito comum ouvir pescadores reclamarem de botos que, “por maldade”, os impedem

de pescar, pois ficam, em grupo, boiando e fazendo “zuada” próximo à canoa, o que afasta os

peixes. Este é um dos motivos pelo qual alguns pescadores tentam arpoar botos e acabam

“pegando feitiço”.

15

A característica mais comum atribuída ao boto encantado é a de existir em forma de humano,

no fundo dos rios e lagos. “Aqui nesse mundo onde a gente tá, a gente vê ele boto, e lá [no

fundo], é gente.”, diz Odinez. Em alguns casos, entretanto, o boto também se apresenta como

humano na superfície. Geraldo é enfático: “É verdade, isso aí é verdade. boto vira gente

mesmo!”. Em diversas entrevistas, os moradores relatam uma mesma praia como local

preferencial onde botos se transformam em pessoas e conversam entre si. Sempre que alguém

chega, eles correm para a água e, rapidamente, se transformam de novo em botos. “Nós

víamos o boto se assoalhar assim no sol quente, na praia. Na praia bem com fronte. E ele

ficava lá rolando, tipo assim, uma gente. Depois ele alevantava tipo uma gente e corria pra

água e caía na água”, relata Adailton.

Os entrevistados concordam a respeito da beleza dos homens (e mulheres) nos quais os botos

se transformam, os quais usam roupas brancas e elegantes, joias e chapéus. Por outro lado, a

história usualmente difundida de que os botos se transformam em homens para frequentar

festas, conquistar moças e ir embora, deixando-as apaixonadas e muitas vezes grávidas, é

considerada pela maioria como uma anedota contada pelos antigos. De todo modo, essa ideia

de que os botos frequentam espaços e eventos reservados às pessoas humanas é muito

presente no pensamento dos Miranha do Cuiú-Cuiú.

Os moradores também relatam que o boto ataca mulheres menstruadas quando estão em uma

canoa ou lavando roupa ou se banhando na beira. Os horários citados como mais perigosos

para uma mulher menstruada ficar perto da água são o meio dia, às seis horas da tarde e às

seis horas da manhã. A grande maioria dos entrevistados afirma que os botos atacam estas

mulheres pois se sentem atraídos pelo cheiro de sangue e tentam ter relações sexuais com

elas, o que, em alguns casos, pode resultar na gravidez – nesses casos a mulher engravidada

não terá lembrança do ato. Alguns entrevistados afirmam que o boto é capaz de engravidar

mulheres menstruadas, da mesma forma que seriam outros animais: macacos, porcos ou o

16

cachorros. Os interlocutores não entendem essa capacidade como algo propriamente

encantado ou sobrenatural.

Nos relatos em que mulheres engravidam do boto, são possíveis dois desfechos: a mulher

morre, uma vez que nenhuma mulher tem o corpo preparado para dar à luz a um animal; a

mulher dá a luz a seres metade-boto e metade-crianças que são devolvidos ao rio por

exigência dos botos encantados que vem em sonho atormentar a mãe. Narrativas similares

foram registradas por Galvão (1955:94-96)

Os interlocutores falam sobre a existência de cidades encantadas em determinados lugares no

fundo dos rios e lagos: “O boto vermelho... falam que ele tem um outro mundo”. A superfície da

água é pensada como um meio de passagem para o mundo dos encantados, e os

procedimentos necessários para se atravessá-la são conhecidos pelos botos encantados e

pelos sacacas, uma categoria poderosa de pajé capaz de viajar em corpo e espírito para o

fundo do rio (cf. SLATER, 1994:110. As demais pessoas só atravessam a fronteira quando

encantadas pelos botos. Alguns interlocutores afirmam que o Flutuante Preguiça estaria

instalado, inclusive, sobre uma destas cidades.

Assim, sob o ponto de vista dos Miranha, algumas pessoas que desapareceram da região,

vivem no fundo como encantadas. Um exemplo é o tio de José, que, de acordo com sua

esposa Carla, era sacaca e foi de vontade própria para o fundo viver com uma ‘bota’ que

sempre aparecia para ele na figura de uma bela mulher. Carla conta que o tio de seu esposo a

visitou “em espírito” e informou que estava no fundo, dizendo que ela não deveria sofrer, pois

sempre que fosse possível ele iria visitá-la em espírito.

Os motivos que levam os botos a enfeitiçar pessoas e levá-las para o fundo são a vingança ou

a paixão, ou seja, quando o boto “se engraça” de uma pessoa. No caso relatado por Sarney, os

botos levaram uma jovem para o fundo por terem se apaixonado por ela:

“quando foi um tempo assim a menina já começou a ficar triste, aí ele disse: ‘Rapaz, o que que tá

acontecendo com minha filha?’. Os pais dela ne?! Toda vez que saíam aí dava um enjoo nela. Aí

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ele foi levar ela num curador pra ver o que é que era. Aí ele disse que era o boto que tava

pegando a filha dele. (...) Ele esperava ela dormir. Quando a família tava todinha dormindo o

boto ia lá e... fazia os negócio nela. Tirava a roupa dela tudinho e fazia o relacionamento. [Ela]

engravidou do boto. Não teve [o filho] porque ela morreu. Ele foi matando ela aos poucos.”

Lorival, curador do Cuiú-Cuiú, afirma que os “flechados” são levados pelo boto de diferentes

formas: de “corpo” ou “espírito”. Aqueles que são levados “de corpo” desaparecem em eventos

que podem ser descritos como sendo incomuns e inexplicáveis. Ter o “espírito” levado pelo

boto é algo que ocorre depois uma enfermidade causada pela “flechada”. No primeiro caso, os

sacacas e pajés intervêm para que o corpo seja devolvido (com ou sem “espírito”), no segundo

eles podem conseguir trazer o “espírito” de volta, salvando a vítima de ser levada para o

Encante. Quando o enfeitiçado é levado para o fundo, ele também passa a utilizar a ‘capa’ de

boto, sendo visto como tal na superfície. O termo ‘capa’ é utilizado por três entrevistados para

descrever a forma usual do boto. Nesses casos, embora os encantados desapareçam ou

morram neste mundo, isso não significa que estejam mortos de fato.

Eventos de desaparecimento de pessoas nos rios são narrados e discutidos pelos Miranha no

contexto das conversas sobre encantados, mesmo quando acontecem em lugares distantes.

Em 2012, um militar sofreu um acidente em sua voadeira (nome regional para lancha) e

desapareceu no rio Solimões próximo ao município de Alvarães. Apesar das incessantes

buscas, o corpo e a embarcação não foram encontrados. De acordo com os moradores do

Cuiú-Cuiú, o acidente foi incompreensível, pois não havia banzeiro – termo regional para a

ondulação das águas provocada pela dinâmica dos ventos ou movimentação de embarcações

– e nem troncos de árvore próximos a embarcação. A explicação dada pelos Miranha

destacava o fato do homem ter sido levado pelos botos para o fundo. Essa versão, entretanto,

não foi um consenso entre os moradores, uma vez que outros afirmaram que o homem e sua

voadeira foram engolidos por uma Cobra-Grande. Lima (2013) afirma que essas referências

18

comuns são sempre atualizadas a partir de um acontecimento recente, envolvendo uma

pessoa ou local conhecido.

Uma vez no fundo, não se deve aceitar ofertas de alimento e sexo, pois, caso contrário, perde-

se a esperança de voltar para a superfície. Odinez deixa claro: “Olha, pessoa que vai daqui

desse mundo pra lá, diz que se comer alguma coisa lá não volta mais pra esse mundo. Não

pode comer. Se comer fica pra lá, para sempre.” Lídia, considerada por muitos como sacaca da

região, disse que quando os botos começaram a se “agradar” dela, eles jogavam frutas em sua

casa para que ela comesse e fosse morar no fundo. Ela nunca comeu, pois sabia que se

comesse não voltaria mais. A narradora descreve o fundo de forma bastante similar ao

registrado por Galvão (1955:92) entre os moradores de um município do baixo Amazonas na

década de 1950: este seria um “reino encantado” semelhante a uma cidade, onde tudo brilha

como se fosse revestido de ouro. João relata o dia em que ele próprio visitou o fundo,

acompanhado de uma sacaca:

“Foi só o espírito da mulher que trabalhava ne. Acompanhando. Andei muuuuito lá. Passei por

muita gente, gente, gente, gente. Mesas e mesas de cachaça, de cerveja. Bancas de ananás, e

de banana, de beiju, de biscoito e de tudo. Aí, só o que ela disse pra mim não comer e nem

beber nada. Aí sei que andemo, andemo, andemo, andemo até ela falar “vamos embora, tamos

mesmo passeando”.

Lídia demonstra que o que se vê no fundo nem sempre corresponde à mesma coisa aqui na

superfície: “O banco deles é aquelas cobras jibóia (...). Aqueles beijuzão, assim, é pura arraia,

as tartarugas que eles chamam é o tal de charuto [pirarucu]... o charuto que é a tartaruga

deles, a carne deles”. Joca, que afirma ter sido levado para o fundo confirma as ter visto a

arraia-beiju e o banco-sucuriju. João e outros afirmam que arraia seria, na verdade, o chapéu

dos botos encantados. Odinez explica que as cobras que vemos, são cordas na perspectiva

dos botos. Outra relação comum se refere ao peixe-boi que em muitas ocasiões é comparado

ao homem negro. Se no “Fundo” o boto-vermelho é um homem branco, para alguns

entrevistados, o peixe-boi é um homem negro. Lídia explica a totalidade dessas trocas de

19

perspectivas através da metáfora do “espelho”, afirmando que “a água pra ele [Boto] é um

espelho, a água é o espelho deles” e que “o boto é o espelho do homem”.

Uma das razões pelas quais os botos “flecham” as pessoas é a de vingar aqueles que os

maltratam ou ameaçam. Slater afirma (1994: 134) que quem mata um boto pode ficar

“panema”, ou seja, pode ser atacado por uma incapacidade sobrenatural, sobretudo na caça e

na pesca. Se a vítima for um encantado em forma animal, as consequências podem ser piores.

No Cuiú-Cuiú, foram relatadas algumas histórias em que pescadores foram enfeitiçados após

terem matado, agredido ou arpoado botos intencionalmente.

Nesses relatos, as causas que motivaram a caça do boto variam: matar para usar a carne

como isca na pesca de piracatinga; arpoar ou matar tentando evitar que esse atrapalhe a pesca

do pirarucu; e, finalmente, os poucos que alegaram matar por “curiosidade” ou “diversão”. É

importante ressaltar que o pescador que mata o boto sem intenção não é vingado por ele,

assim, quando o animal fica preso em um malhadeira e morre afogado, aquele que a usava

não é vítima de feitiço. Mesmo nos casos de matança intencional, o feitiço pode não acontecer.

Entrevistados afirmaram ter matado botos sem sofrer nenhuma consequência, sendo que na

maioria das vezes atribuem essa sorte a “Deus”.

Foram descritos casos variados em que pescadores foram enfeitiçados após maltratar botos.

Em alguns casos, os boto tenta se vingar do pescador que o agrediu perseguindo-o e fazendo

“rebojo” na canoa. O feitiço, por outro lado, é caracterizado por febre forte e dores de cabeça,

que podem ou não ser seguidos de visitas do espírito do boto que atormenta o enfeitiçado

durante a noite. Caso essas experiências sejam frequentes, o enfeitiçado pode chegar a

enlouquecer. Também dores nos braços, “tapas” na cabeça, alucinações e perseguições por

espíritos durante a pesca.

Os interlocutores explicam que, nesses casos, o objetivo do boto seria alertar o pescador para

que não os maltrate mais ou levá-lo para o fundo como forma de vingança. O enfeitiçado pode

conseguir se curar antes de ser levado, seja sozinho ou através da intervenção de um pajé,

20

curador ou sacaca. As curas podem ser ministradas através de banhos, garrafadas ou rituais

nos quais o espírito do boto é afastado. O alho é um elemento comum nos remédios para curar

feitiços de boto, sendo usado também como forma de proteção contra esses, ao ser pendurado

na soleira das portas das casas. O alho também citado por Galvão como um antídoto para os

feitiços de boto (1995: 95).

José conta que arpoou um boto fêmea (“bota”) e logo em seguida sentiu “uma mão dando um

tapa” em sua nuca. Já Carla conta que seu irmão, após arpoar um boto, teve febre, dor de

cabeça e não enxergava nada além de botos, mesmo fora da água. Davi matou um boto e ficou

mais de uma semana sentindo dores no braço. Joca afirma ser frequentemente perseguido por

botos quando vai ao lago Preguiça, perseguição a qual ele atribui ao fato de ter matado muitos

botos-vermelhos em sua vida. Ricardo conta que caso alguém faça mal a um boto encantando,

ele será “flechado pelo boto”, destacando que seu primo “ficou doido” após arpoar um boto.

Geraldo, afirma ter arpoado um boto quando jovem, e por isso teria ficado algumas semanas

enxergando sangue onde deveria enxergar água. Ele conta que depois desta experiência

nunca mais arpoou botos. Registramos uma enorme diversidade de narrativas como essas,

tratando tanto de experiências próprias com os feitiços de boto quanto narrando algo

acontecido a terceiros.

Durante as entrevistas, também foram presentes narrativas tratando do que ocorre no caso do

boto encantado ser arpoado e não morrer: o pescador é levado para o fundo do rio por dois

homens vestidos de branco que aparecem remando em sua direção, chamados de “soldados”.

No fundo, o desafortunado pescador se encontra em um grande hospital onde o boto arpoado

convalesce como homem doente em uma maca. Em alguns casos o pescador é chamado à

responsabilidade, devendo remover a ponta do arpão do corpo do encantado. Slater (1994:

136) registra narrativas similares a esta.

O poder de vingança do boto frente à agressão dos pescadores tem relação com as interações

possíveis entre humanos e botos na calha do Japurá, incluindo a pesca da piracatinga. No

21

relatório de Estupiñán (et al, 2003, p. 7), parte do território do Cuiú-Cuiú aparece como ponto

crítico “muito intenso” de abate de jacarés e botos para pesca de piracatinga. Entretanto,

apesar de um número considerável de entrevistados ter declarado que pratica a pesca da

piracatinga com jacarés, a grande maioria afirma não matar botos. Esse quadro pode ser

dever, em parte, ao receio dos entrevistados em falar de uma prática ilegal, uma vez que o

abate de jacarés e botos para a pesca não é permitido por lei. Também existe uma confusão,

por parte da população regional, do papel do Instituto Mamirauá com o do IBAMA (Instituto

Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) e demais órgãos de fiscalização

ambiental, acreditando que os membros do Instituto Mamirauá teriam poder de polícia e

fiscalização.

Assim, apenas um único morador, receoso de dar esse depoimento, admitiu matar botos para a

pesca de piracatinga, alegando também que “é frescura ter medo de boto por causa desse

negócio de espírito”. Outros admitiram já ter matado botos, pois estes estavam atrapalhando na

pesca, e a maioria dos entrevistados afirmou não matar botos. Alguns alegaram não matar

porque o boto-vermelho é um animal rápido e difícil de ser arpoado; outros entrevistados

admitiram que não caçam botos por medo de estes se vingarem ou por já terem

experimentando os efeitos dos feitiços por vingança. Sarney pesca piracatinga, mas deixa bem

claro que só o faz utilizando jacarés como isca, pois tem mais medo de botos do que de

jacarés, já que os primeiros possuem espírito.

Durante o período de pesquisa o Ponto X, comunidade não indígena do setor Aranapu, foi

citada pelos Miranha como local onde a prática de se matar botos para a pesca de piracatinga

é comum. A comunidade se situa em um local onde a população de botos é abundante durante

a seca, sendo fácil capturá-los usando redes de arrastão. Esta comunidade foi visitada três

vezes para realização de atividades de educação ambiental e foram coletados depoimentos de

jovens que realizam a pesca com boto. Esses não discordam do poder do boto encantado,

22

afirmando que são perseguidos durante o sono e que só pescam a piracatinga porque não

encontram outra alternativa de fonte de renda.

Na mesma comunidade, um morador contou que tinha o costume de matar botos, não só para

utilizá-los na pesca de piracatinga, mas também por diversão, já que acreditava que o boto era

um ser sem espírito. Durante muito tempo sua sogra o advertia que, se continuasse com esta

prática, seu filho nasceria deficiente. Ele continuou matando botos-vermelhos mesmo durante a

gravidez de sua esposa, e, assim como previsto pela sogra, seu filho nasceu com sérias

deficiências motoras e mentais, que de acordo com a própria família, o fazem parecer com um

filhote de boto. Após o acontecido, o homem afirma que nunca mais matou e nem irá matar

nenhum boto, pois “aprendeu a lição”.

Foi possível notar alguns padrões de relação dos pescadores com os botos. A grande maioria

dos pescadores entrevistados acredita que aquele que mata um encantado está sujeito a ser

enfeitiçado. Assim alguns afirmam que, como é impossível discernir botos encantados de botos

comuns, é melhor nunca matá-los. Esses pescadores podem ter chegado a matar botos, mas

devido aos eventos de feitiços decidiram interromper a prática. Por outro lado, outros

pescadores que também acreditam no poder de encante do boto, não deixam de matar botos.

Alegam que o fato de os botos encantados estarem ultimamente se manifestando com pouca

frequência acarreta em uma maior chance de arpoar um boto que não é encantado, ficando o

pescador livre do feitiço. Outro grupo, representado pelos pescadores do Ponto X, conhecem

os feitiços dos botos, já foram alvo dos mesmos, mas continuam matando botos devido à alta

lucratividade da pesca de piracatinga feita com carcaça de botos.

Lima (2012) apresenta o relato de um amazonense que afirma que o aumento da população e

o crescimento das cidades estariam levando os encantados a se afastarem do mundo dos

humanos. Slater (1994) também mostra que para alguns de seus entrevistados as narrativas de

encantados ocorreram no passado. Um de seus interlocutores chega afirmar que os botos não

gostam de grandes cidades, pois os barulhos lhes causam dor de cabeça (Ibid.: 51). Os

23

Miranha do Cuiú-Cuiú partilham essa ideia de uma diminuição relativa da manifestação dos

botos encantados. Apesar de muitos entrevistados terem vivenciado experiências de encante

envolvendo o boto, outros se referem à manifestação dos encantados como algo do passado,

sendo os termos ‘antigamente’ e ‘antigos’ recorrentes quando o entrevistado fala sobre esse

assunto.

Alguns Miranha apresentam outra justificativa para a diminuição dos encantados na região.

Para esses, a existência de botos encantados depende da existência do “índio pagão”, ou seja,

o não-cristão que privilegia conhecimentos acerca dos encantados. Ao ser questionada sobre o

porquê da existência de poucos botos encantados atualmente, Maria respondeu: “Porque hoje

tudo já é crente né, naquele tempo não. O povo era pagão, ninguém tinha compromisso com

Deus. Eles sabiam mexer com essas coisas.” Lorival, diante do mesmo questionamento, deu

uma resposta similar: “Eu acredito que as igrejas afastaram muito as coisas, né?! (...)Diminuiu

porque agora todo mundo é crente”. Dentro da mesma lógica, Lídia afirma que, hoje em dia,

existem menos casos de encante, pois as pessoas se tornaram cristãs, rezam mais e por isso

estão “fechando o corpo”, o que as torna imunes às manifestações dos encantados.

E, no entanto, todas estas narrativas, descrições e práticas relacionadas ao boto-vermelho

eram amplamente conhecidas pela totalidade dos interlocutores envolvidos na pesquisa,

incluindo jovens e crianças. As narrativas de encantamento são recorrentes nas conversas

cotidianas, e todos têm o conhecimento necessário para discorrer longamente acerca dos

encantados. Por outro lado, durante a realização das atividades de educação ambiental no

Cuiú-Cuiú, focadas nas características biológicas do boto-vermelho, percebia-se uma

atmosfera de incompreensão. A orientação dessas iniciativas compreendia atividades lúdicas

como “jogo da memória” e “quebra-cabeças”, que incluíam perguntas como: Quantos meses

dura a gestação do boto? Durante quanto tempo o filhote fica com a mãe? O boto é um animal

solitário ou está sempre acompanhado? Mesmo que estas atividades tivessem sido realizadas

durante muitos meses, os moradores do Cuiú-Cuiú desconheciam as respostas.

24

“O encante está sempre escapando à definição”, escreve Slater (1994:340). O ser encantado

seria aquele que faz parte de outra ordem de existência, que usa “capas”, capaz de feitos

mágicos, que foi ou é enfeitiçado e tem poder de enfeitiçar e encantar seus Outros. Nos relatos

coletados o encante aparece como algo sobre o qual se pode versar longamente, mas cuja

natureza é misteriosa e desconhecida, desafiando uma apreensão total.

O fato de muitos moradores confirmarem um relativo desaparecimento do boto encantado é

indício de que este aspecto da cosmologia do Cuiú-Cuiú está em transformação. Com base nos

depoimentos de seus interlocutores, Slater (1994: 330) afirma que os “encantados estão

vivendo um retiro forçado do mundo dos seres humanos”.

Essa transformação se reflete nas diferentes formas com que os moradores da região se

relacionam com o boto-vermelho. Há moradores que não matam botos por medo de feitiço,

outros o fazem em retaliação à sua intromissão nos esforços de pesca (danificando

malhadeiras ou comendo peixes), e também para o uso da carcaça na pesca da piracatinga.

Seria tentador estabelecer uma relação de causalidade entre o aumento do abate de botos,

relatado por Estupinãn e colaboradores (2003:07) com as narrativas da diminuição da

manifestação dos botos encantados: um menor número de botos encantados implicando

menos chances de sofrer a retaliação por feitiçaria. No entanto, essa diminuição precisa ser

posta em relação, ou seja, ela é descrita frente um passado de prevalência e intensidade nas

manifestações dos encantados. Assim, as narrativas e experiências dos Miranha e demais

populações do baixo Japurá não deixam dúvidas de que as experiências e histórias de

encantamento permanecem.

Para os envolvidos nas iniciativas de conservação de espécies aquáticas, a compreensão das

relações entre populações humanas e botos-vermelhos na Amazônia passa pelo

conhecimento da síntese do que Viveiros de Castro (1996, 2002) chama de perspectivismo

ameríndio. Na lógica das populações ameríndias pessoas e animais se opõem a partir das

diferenças de seus corpos, mas cada um percebe o seu corpo, alimento, casa e adornos como

25

idênticos àqueles das pessoas. O encontro entre diferentes tipos de gente (homem e boto

encantando, por exemplo) só aconteceria em momentos excepcionais, justamente quando as

pessoas humanas passam pelo risco de ser encantadas e, passando para perspectiva do boto,

começam a vê-los como gente.

Assim, segundo o perspectivismo ameríndio, sujeitos diferentes vêem o mundo do mesmo

modo, mas o que veem como “a mesma coisa” não é coincidente. Isso significa que cada tipo

de corpo, dentro do qual as perspectivas são compartilhadas. Esse aspecto está ilustrado em

diversas narrativas, mas fica explícito naquelas em que se afirma que os encantados veem as

pessoas da mesma forma que os humanos vêem os botos na água, e, assim como os homens

“flecham” os botos em seu mundo, os encantados tentam “flechá-los”, já que de sua

perspectiva somos como os botos são para nós. O que se processa nesses casos é um jogo de

inversão das perspectivas de predador e presa, de humanos e botos.

Essas inversões também são ilustradas por Lídia, quando ela afirma que o banco dos

moradores do fundo é a jibóia, seu beiju é a arraia e que a tartaruga é seu pirarucu. Em

pesquisa entre os Cocama da região da foz do Jutaí, a lista de correlações encontradas foi

ainda maior, indicando que os diferentes moradores do fundo e pessoas humanas

experimentam a existência de seres-objetos de maneiras não coincidentes.

CONCLUSÃO Nosso intuito neste trabalho foi, à partir do estudo da relação entre os Miranha e o boto-

vermelho, expor as dificuldades em se fazer comunicar os diferentes modos de conhecimento

em torno do que chamamos de “Natureza”. Discussões e pesquisas a respeito de iniciativas de

conservação têm apontado aspectos de sinergia e disjunção entre as conjecturas científicas e

os modos de conhecimento locais (BLASER, 2009; CARNEIRO DA CUNHA, 2009; CEPEK,

2011; PERALTA & LIMA, 2012). A equivocação na interação entre essas formas de

conhecimento não se daria apenas nas dificuldades de se produzir traduções terminológicas

26

eficazes, mas na busca pelo estabelecimento de diálogos possíveis entre pressupostos

ontológicos distintos. Partindo do conceito de antropologia como “equivocação controlada”

(VIVEIROS DE CASTRO, 2004) nos perguntamos se seria possível operar uma tradução dos

conhecimentos implicados na relação dos Miranha, e demais populações do baixo Japurá, com

o boto-vermelho. Nesse caso, o que propomos é trabalhar deliberadamente na composição de

uma “equivocação produtiva” na relação entre as populações locais e aqueles envolvidos na

produção das pesquisas e iniciativas de conservação.

Esse esforço, no entanto, não pode se resumir em propostas simplistas marcadas por uma

hipertrofia utilitarista dos sentimentos de respeito e medo evocados pelos botos-vermelhos

devido à sua potencial natureza encantada. Pontos em comum entre as cosmologias

amazônicas e os esforços de conservação têm sido apontados em diversos trabalhos

(ALMEIDA, 2013; CARNEIRO DA CUNHA & ALMEIDA, 2009; CEPEK, 2011; LIMA &

POZZOBON, 2005; SMITH, 1996). Tais similaridades, no entanto, não podem ser tomadas

pensadas como correspondentes aos pressupostos da biologia da conservação, nem como

relações simples de causa e efeito - tais como “não se mata botos porque se acredita que são

encantados” ou “mata-se o boto porque não se acredita mais que são encantados”.

Isso também não significa que devamos nos apoiar na ideia de que há uma

incomensurabilidade absoluta entre o conhecimento sobre o Inia geoffrensis produzido no

âmbito das ciências biológicas e os modos de conhecimento locais. O conhecimento dos

Miranha acerca do boto-vermelho não se apresenta exclusivamente nas facetas do

encantamento: os pescadores observam comportamentos e padrões em sua interação com os

botos (cf. PASCHOAL, 2010), mas elaboram seu conhecimento de acordo com pressupostos

distintos daqueles das ciências biológicas.

A tentativa de instruir o público-alvo das atividades de educação ambiental com os conceitos

das ciências biológicas que descrevem anatomia, habitat e nicho ecológico do animal,

classificando-o em Reinos e Filos, perde muito de sua relevância quando estas pessoas,

27

colocadas na situação de aprendizes, pensam a respeito e interagem com esses animais

guiados por pressupostos diferentes. Nesse sentido, é possível assumir que o diminuído

interesse dos Miranha frente às atividades de educação ambiental não se deva somente à

natureza do conteúdo apresentado, mas à falta da promoção de uma intersecção possível

entre maneiras diferentes de conhecer o mundo vivido.

A promoção de um diálogo possível não deriva da máxima de que primeiro seria necessário

“conhecer a realidade” das populações entre as quais se trabalha. O cerne da questão é de

que maneira os conhecimentos destas podem ser colocados em debate com as ciências que

subsidiam as iniciativas de conservação. Em primeiro lugar a construção dessa possibilidade

exige que cientistas e educadores se coloquem na posição de aprendizes no entendimento de

como as populações amazônicas concebem seu mundo vivido e se relacionam com as

espécies e ambientes estudados pelas ciências da conservação. Essa possibilidade exige

também um tratamento simétrico dos diferentes regimes de conhecimento, visando não reduzir

o saber dessas populações ao status de “lendas” ou “crenças”. As teorias amazônicas a

respeito do boto-vermelho são capazes de nos informar acerca de modos diferentes de

conceber e interagir com o que chamamos de “Natureza”, como essas populações definem o

humano e os diferentes seres que povoam o mundo – as espécies-alvo das iniciativas de

conservação inclusas.

28

AGRADECIMENTOS

Agradecemos, em primeiro lugar, aos Miranha da TI Cuiú-Cuiú, por consentir com a realização

da pesquisa e participar da mesma. Agradecemos, em especial, a Odinez Clarindo Moraes, por

seu trabalho cuidadoso e diálogo frutífero, sem o qual esta pesquisa não teria sido possível.

Nossa gratidão a Deborah de Magalhães Lima por sua orientação e interlocução na elaboração

desse artigo e além. A Miriam Marmontel somos gratos pela oportunidade de trabalho junto ao

Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos. Aos funcionários da FUNAI-Tefé agradecemos

pela ajuda para conseguir as permissões de pesquisa. Agradecemos também a Candace Slater

pela frutífera troca de ideias durante uma viagem pelo baixo Japurá. Nelissa Peralta, José

Cândido Douglas Campelo e Flora Gonçalves colaboraram com sugestões e correções

valiosas nas diversas versões desse trabalho. Os eventuais erros e problemas, no entanto, são

de inteira responsabilidade dos autores. A pesquisa foi financiada pelo Instituto de

Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) através do Ministério da Ciência, Tecnologia e

Inovação (MCTI), e também pelo Projeto AQUAVERT que conta com recursos do Programa

Petrobrás Ambiental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, M. W. Capiora e outros conflitos ontológicos. Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, 2013.

ARAÚJO, L. M. Folclore Nacional (vol. I): Festas, Bailados, Mitos e Lendas. Edições Melhoramentos de São Paulo, 1964.

ARNAUD, E. Os índios Mirânia e a expansão luso-brasileira (Médio Solimões-Japurá, Amazonas). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, n.81, 1981.

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