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Sistema de Informações Sociais associados a Programas de Transferência de Renda: Um Estudo...
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Sistema de Informações Sociais associados a Programas de
Transferência de Renda:
Um Estudo Comparado das Experiências
Brasileira e Chilena 1
Marcelo Prado Ferrari Manzano
Brasília, dezembro de 2010
1 Este documento resulta de pesquisa realizada pelo autor sob patrocínio do International Policy Centre for Inclusive Growth – IPD-IG/PNUD, no âmbito do projeto “Brasil Três Tempos”.
2
Sumário
Apresentação ....................................................................................................................................................................... 4
1. Introdução ................................................................................................................................................................ 6
2. A experiência Chilena ........................................................................................................................................ 11
3. A experiência Brasileira .................................................................................................................................... 29
4. Conclusões .............................................................................................................................................................. 48
Bibliografia Citada ......................................................................................................................................................... 52
3
Resumo
Neste trabalho procuramos demonstrar as particularidades dos sistemas de informações sociais que constituem importantes aparatos de auxíl io às inovadoras prát icas de enfrentamento à pobreza que têm sido implementadas nos respectivos “S istemas de Proteção Social” do Chile e do Brasil .
Apresentamos as principais características de cada um dos Programas de Transferência de Renda Condicionada dos países e demonstramos as articulações funcionais associadas aos Sistemas de Informações Sociais que lhes dão suporte (a Ficha de Protección Social , no caso do Chi le, e o Cadastro Único , no caso do Brasil ).
Em nossa argumentação, enfatizamos especialmente os aspectos históricos e institucionais que estiveram envolvidos em cada uma das trajetórias de desenvolvimento daqueles sistemas. Mais do que apresentar as arquiteturas acabadas de cada experiência, estivemos preocupados em demonstrar os passos e contra -passos do percurso e analisá-los de forma comparada, ante a experiência do outro.
Desse esforço, resulta também a compreensão de que mesmo quando se trata de construir “apenas” um aparato tecnológico, é de extrema relevância considerar as singularidades e as complexas interações dinâmicas que caracterizam os fenômenos sociais de cada país e, em especial , a chamada extrema pobreza. Sem um olhar acurado sobre essa questão, são inevitáveis as d isfuncionalidades da tecnologia.
Por f im, avaliamos que, a essa altura dos acontecimentos, Chile e Brasi l dispõem de sistemas de informações sociais bastante robustos e sofisticados, que são de grande ut il idade no apoio à gestão e à operacionalização das polít icas sociais. Contudo, a observação atenta dos condicionantes dessas experiências recomenda prudência nas inic iativas de transpor modelos exitosos a outras real idades nacionais .
4
Apresentação
Este documento resulta de dois estudos prévios, dedicados às
análises dos Sistemas de Informações Sociais (SIS) util izados por
Brasil e Chile como suporte a os seus respectivos programas de
Transferência de Renda Condicionada (TRC) .
Pretende-se aqui retomar os principais aspectos de cada um
dos casos pesquisados, apresentando suas particularidades, seus
êxitos e também seus aspectos problemáticos , contrapondo-os entre
si , a fim de que se possa indicar a gestores ou formuladores de
programas similares um leque de alternativas já experimentadas que,
eventualmente, contribuam para o encurtamento dos percursos , a
redução de custos de transação e, quiçá, maiores taxas de sucesso.
A escolha dos casos de Brasil e Chile se deve fundamentalmente
ao fato de que os dois países se des tacam nas décadas recentes pelo
êxito no enfrentamento à pobreza e pela implantação de bem
sucedidos programas de Transferência de Renda Condicion ada .
Haveria, certamente, outras experiências interessantes que
talvez pudessem compor esse estudo. A Colômbia tem se destacado
por avançar na abordagem multidisciplinar e no intenso trabalho
junto às famílias . O México, com o seu programa Oportunidades
também poderia ser um caso interessante, quanto mais porque é a
experiência que mais avançou na constituição de um sistema de
informações sociais realmente integrado e único. Poder-se-ia pensar
ainda nos casos da Costa Rica ou da África do Sul, que também
agregaram práticas inovadoras às estratégias de enfrentamento à
pobreza. 2
Contudo, Chile e Brasil constituem objetos de estudos que nos
parecem mais profícuos, pois, além de precursores na implementação
2 Para uma análise comparadas das outras experiências latinoamericanas, ver ARRIAGADA & MATHIVET (2007), ROMAN (2010), CEPAL (2009).
5
de programas de Transferência de Renda Condicionada, são
emblemáticos em suas respectivas particularidades.
Apesar de vizinhos próximos no continente sulamericano 3, as
diferenças entre os dois países são de inúmeras ordens. Seja em
termos de processo de formação nacional, de dimensão ter ritorial e
de escala demográfica, de histórico político, de caracterização
geográfica, de inserção na divisão internacional do trabalho, de
tradição cultural, entre outras mais, os dois países não só se revelam
quase antípodas, como são casos paradigmático s em seus respectivos
contextos.
Antes de avançarmos no estudo, alguns esclarecimentos. No
início da pesquisa, t ínhamos a pretensão de incluir na análise do caso
brasileiro, uma avaliação da Versão 7 do Cadastro Único , que, àquela
altura, estava sen do proposta para ser implantada em alguns
municípios-pilotos. Contudo, por questões de ordem operacionais dos
órgãos responsáveis pelo Cadastro Único, o cronograma de
implantação da versão 7 foi modificado e sua implantação efetiva foi
postergada para a mesmo mês de conclusão do presente trabalho.
Diante de tal contingência , a análise que apresentamos sobre o
Cadastro Único traz à tona alguns aspectos problemáticos que, em
certa medida, foram saneados na Versão 7. A nosso ver, entretanto,
isso não invalida a análi se citada, uma vez que o objetivo aqui é,
sobretudo, o de avaliar o processo de desenvolvimento dos sistemas
de informações sociais.
3 Curioso notar que Chile e Equador são os únicos países da América do Sul que não fazem fronteira com o Brasil.
6
1. Introdução
O historiador Sergio Buarque de Holanda, quando se dedicou a
compreender as várias dimensões do processo da formação do Brasil,
escreveu no capítulo final de sua obra maior - Raízes do Brasil - que o
Estado brasileiro se constitu i como “uma periferia sem um centro ” .4 A
imagem é primorosa, tanto pelo que ajuda na difíci l tarefa de
distinguir as forças do amalgama que fizeram país essa antiga colônia
portuguesa, quanto porque é um traço ainda vivo do Brasil
contemporâneo.
Tomando de empréstimo a imagem de Sergio Buarque e
transpondo seu sentido à história chilena, talvez coubesse dizer que
o Chile, por seu turno, é uma nação que se define como “um centro
sem periferia”.5 Assim, já do nascedouro, podia -se talvez identificar o
quão dispares seriam as trajetórias dessas duas nações da América do
Sul.
Entre tantas e importantes diferenças, uma em especial parece
relevante para a temática desse trabalho, visto que foi definidora dos
sistemas de proteção social que se erigiram em cada um dos dois
países. Refiro-me aos vetores políticos e ideológicos que marcaram a
história de Brasil e Chile nas últimas quatro décadas.
O Chile, desde que o General Augusto Pinochet assumiu o poder
no início dos setenta, seguiu um percurso singular, transitando de um
radical e precoce neoliberalismo para um arranjo político partidário
– os governos da Concertación – que viria a introduzir de forma
gradual, já na década de 2000, valores da chamada social -democracia.
4 Holanda (2005), p. 176.
5 Vale notar que, no mesmo capítulo de Raízes do Brasil, Sergio Buarque faz menção ao Chile, lembrando que no processo de constituição daquela nação foi emblemático o papel do regime ‘acentuadamente oligárquico’ inaugurado em 1829/30 pelo controvertido Diego Portales (p. 183).
7
O Brasil , por outro lado, seguiu em sentido inverso. Desde o
início da década de oitenta, distintos movimentos da sociedade civil
que se engajaram na luta pela redemocratização e pela ampliação dos
direitos sociais lograram consolidar na Constituição de 1988 um
sistema de proteção social bastante ambicioso , inspirado nas
experiências de welfare state das nações européias . Mais tarde,
principalmente a partir da eleição de Fernando H. Cardoso em 1994,
o país embarcou de forma extemporânea pelo reformismo neoliberal,
que, entretanto, avançou mais sobre as dimensões econômicas e
produtivas do que propriamente sobre o sistema de proteção social.
Com raras exceções 6, o que houve foi um processo de consolidação e
regulamentação das políticas sociais que, em muitos caos, se traduziu
em ampliação de direitos e da concomitante introdução de algumas
recomendações de políticas públicas frequentemente associadas ao
ideário neoliberal .
Assim, apesar do descompasso original entre as trajetórias de
Chile e Brasil, nos primeiros anos da década de 2000 era possível
reconhecer certo paralelismo político-ideológico entre os dois países,
bem como convergência programática em relação às linhas mestras
que orientavam suas políticas sociais. É , portanto, nesse contexto que
vão se desenvolver e consolidar os programas de transferência de
renda condicionada de ambos os países .
Contudo, antes de passar à análise de cada caso, cabem algumas
considerações sobre o desempenho recente dos dois países.
Como se nota no Gráfico I. i , tanto o Chile quanto o Brasil
conseguiram reduzir de maneira muito significativa o contingente de
pobres e de indigentes. Ao longo das duas últimas décadas, o Brasil,
reduziu a praticamente metade o contingente de pobres e a um terço
a população considerada indigente.
6 A maior delas se deu na previdência social, que passou por duas reformas nos anos recentes.
8
GRÁFICO 1.i.
F on te : Cep als t at , CE P AL (2 0 1 0 )
Já no Chile, cujo patamar de pobreza esteve sempre em nível
inferior ao brasileiro, a queda também foi acentuada, porém, com
uma tendência de estabilização do porcentual de indigentes a partir
de meados dos anos noventa.
De qualquer maneira, como demonstram os dados do Quadro
1.I. , no ano de 2009, a pobreza atingia 11,5% da população chilena e
24,5% dos brasileiros, enquanto a indigência correspondia a 3,6%
dos chilenos e 7% da população do Brasil. Ou seja, as taxas
brasileiras ainda são aproximadamente o dobro das chilenas.
Principalmente por conta desses processos de redução da
pobreza, verificam-se no mesmo período melhoras consideráveis dos
indicadores de desigualda de em cada país. (ver Gráfico 1.II. ). No caso
do Brasil, o Índice de Gini cai de 0,637 para 0,576 entre os anos de
9
1996 e 2009 e no do Chile, a queda mais acentuada se dá no período
recente, com uma redução de 0,552 para 0,524.
QUADRO 1.i.
Variáveis Chave
VARIÁVEIS SELECIONADAS BRASIL CHILE
População (2010) 190,7 milhões 17,1 milhões
Esperança de Vida ao Nascer (2008) 72,9 anos 78,5 anos
Pobreza (2009) 24,9% 11,5%
Extrema Pobreza (2009) 7,0% 3,6%
PIB Nominal (2010)¹ U$ 2.023 bilhões U$ 199 bilhões
PIB Nominal per capita (2010)¹ U$ 10.471 U$ 11.587
Extensão Territorial 8.514.877 km² 756.945 km²
Estados/Reg. Administrativa 26 15
Municípios/Comunas 5.565 346
Receita Tributária em Porcentagem do PIB
Total 34,30% 17,2%
Governo Central 23,80% 16,7%
Governos Subnacionais 10,50% 0,5%
Fontes: Data Mapper –FMI (2010) e Cepalstat-CEPAL (2010)
Portanto, como bem demonstra m os números relativos à
pobreza e à desigualdade no período, são inegáveis os avanços desses
dois países no enfrentamento dessas mazelas do subdesenvolvimento ,
que resistiram a décadas de crescimento econômico . Sem dúvida, há
evidências de que os padrões de desenvolvimento de Brasil e Chile se
10
transformaram, mesmo considerando que se trata de dois países com
tantas disparidades. E essa constatação despertou o interesse da
comunidade internacional sobre as inovações programáticas
experimentadas pelos dois pa íses. Dentre essas, os Sistemas de
Informações Sociais foram parte fundamental.
Vejamos então nos capítulos que seguem como foram as
trajetórias de desenvolvimento dessas políticas e quais as seus
vínculos com os sistemas de informações sociais que lhes dão
suporte.
GRÁFICO 1.ii.
F on te : Cep als t at - CE P A L (2 0 1 0 )
11
2. A experiência Chilena
I. Antecedentes Políticos e Institucionais
Até os anos setenta, o Chile se destacava na América L atina por
sua solidez institucional e por apresentar indica dores sociais que o
aproximava das nações desenvolvidas . A consciência precoce do
necessário protagonismo estatal como única via para o
desenvolvimento de um capitalismo fora de época e lugar, foi fator
importante na trajetória singular do Chile de então. Seguindo por um
percurso político que caminhava de forma gradual do centro para a
esquerda, assistia-se a uma crescente universalização das políticas
sociais e também à estatização de setores produtivos estratégic os, em
especial o da mineração.
Contudo, a partir do golpe de estado promovido pelo General
Augusto Pinochet em 11 setembro de 1973, o país sofre uma aguda
ruptura política e uma inflexão daquela trajetória de
desenvolvimento. Com uma agenda que se destacou pelo
ultraliberalismo econômico 7, os anos sob ditadura foram marcados
pela constrição dos gastos públicos, pela rigidez monetária e p or
recorrentes crises de endividamento - que chegaram a comprometer
35% do PIB do país - e do balanço de pagamentos . Na raiz dessa
disfuncionalidade macroeconômica estava a radical liberalização do
mercado de capitais , que exigia a manutenção de taxas de juros reais
de até 38% a.a. , e a liberalização comercial , que provocava a
sobrevalorização da taxa de câmbio . Somados, esses fatores
deprimiam fortemente a de manda interna e explicam as baixas taxas
de crescimento do PIB, cuja média anual foi de apenas 2,9% no
período (French-Davis, 2008).
7 Considere-se que o liberalismo econômico praticado pelo Governo Pinochet foi pioneiro na América Latina e antecedeu inclusive as experiências dos governos Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos EUA.
12
Do ponto de vista social, esse período também foi marcado por
retrocessos significativos. Enquanto o desemprego manteve-se em
níveis bastante elevados, com uma taxa média de 18% a.a. , os salários
reais sofreram severas perdas , em especial nos primeiros anos do
regime e, consequentemente, a concentração de renda também se
acentuou (veja Quadro 2.i .).
QUADRO 2.i.
Chile, Variáveis Selecionadas, 1974-2006
F onte : B an co C entr al de l Ch i l e / D IP RE S e I NE ( ap u d. F fr e n ch - D av is , 2 0 0 8 )
Somente no início da década de noventa , após o fim do governo
de Augusto Pinochet e a instauração de uma ampla coalizão política
de centro-esquerda, denominada Concertación de Partidos por la
Democracia , tem início no Chile um período de desenvolvimento
bastante virtuoso. Reconquistando a solidez das pri ncipais variáveis
macroeconômicas, o país vai se destacar ao longo desse período nã o
só pelo desempenho econômico ímpar entre as nações da região e
pelo êxito na redução da pobreza, mas também por algumas
inovações em termos de políticas públicas.
Conforme se pode observar no Gráfico 2.i . , a redução da
pobreza a partir dos governos da Concertación foi realmente notável.
Enquanto em 1990 a somatória de pobres e indigentes correspondia a
51,6,1% da população chilena, no ano de 2009 esse contingente
representava apenas 15,1%. Ou seja, em duas décadas, praticamente
um em cada três chilenos conseguiu superar a condição de pobreza .
Alwin Frei Lagos Bachelet
1971-73 1974-89 1990-93 1994-99 2000-05 2006
Variação do PIB (%) 1,2 2,9 7,7 5,4 4,3 4,0Taxa de Desemprego (%) 4,7 18,0 7,3 7,4 9,8 8,4Salário Real (1970=100) 90 82 100 123 140 149Distribuição de Renda (Q5/Q1) 11,4 18,5 13,1 16,8 15,0 14,8
Pinochet
Concertación
Allende
13
Contudo, quando se observa mais detalhadamente o período,
percebe-se que entre a segunda metade dos noventa e início dos
2000, o contingente de população considerad a indigente se
estabilizou um pouco abaixo dos 5%, apesar do PIB ter continuado a
crescer a taxas ainda elevadas (Quadro 2.i . ). Quando comparada com
a expressiva redução da indigência registrada no período
imediatamente anterior, nota -se que houve um considerável
arrefecimento dos efeitos redistributi vos do dinamismo econômico.
Enquanto entre 1990 e 1996 conseguiu-se reduzir o número de
indigentes em 7,3%, entre os anos 1996 e 2003 a que da desse
contingente populacional foi de apenas 1% .
GRÁFICO 2.i.
F onte : Cep als ta t , CE P AL (2 0 1 0 )
14
GRÁFICO 2.ii.
Fonte: Cepalstat, CEPAL( 2010)
Esse quadro de resiliência da extrema pobreza em um período
em que a renda per capita crescia , a uma taxa média anual de 2%
(veja Gráfico 2.ii . ) , e os gastos públicos socia is se elevavam (veja
Gráfico 2.iii .) alertou as autoridades chilenas para a necessidade de
implantar novas estratégias de apoio às famílias que se localizavam
no nível mais baixo da pirâmide de renda e que, por razões diversas,
não era capaz de se beneficiar do desenvolvimento econômico e
social que vicejava no país .
Coube então ao Ministerio de Planificacion - MIDEPLAN a tarefa
de desenvolver um programa que buscasse resgatar da condição de
indigência aquele contingente de aproximadamente 5% da população
do país. Para tanto, institui -se em 2002, durante o governo de
Ricardo Lagos, o programa Chile Solidario , que tinha como objetivo
explícito incorporar as famílias em condições de extrema pobreza às
redes sociais e garantir -lhes acesso a melhores condições de vida.
-
1.000
2.000
3.000
4.000
5.000
6.000
7.000
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
PIB por Habitante(dólares de 2000)
15
GRÁFICO 2.iii.
F ont e: P an or a ma So ci a l d a Am ér i c a La t i na /CE P AL (2 0 0 9 )
II. O Programa Chile Solidario
O Programa Chile Solidario foi formulado a partir da
perspectiva de que a extrema pobreza (ou indigência) não se
restringe apenas a sua dimensão monetária , mas é, sobretudo,
condicionada por uma multiplicidade de determinantes que se
retroalimentam e que limitam a capacidade do indivíduo ou da
família de superar aquela condição. Em tais circunstâncias, o simples
pagamento de um auxílio monetário não era visto como garantia
suficiente para mobilizar as potencialidades de uma família , nem
tampouco para vencer os entraves exógenos que lhe obstacularizam o
acesso às redes sociais .
Assim, se o fenômeno da pobreza exige uma abordagem
multidisciplinar, seria imprescindível a efetiva participação de
diferentes instâncias e setores do poder público , atuando sobre os
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
12 12 1213
1415 15
1312
(%)
Gasto Social em relação ao PIBChile e América Latina
Chile
AL
16
mesmos problemas e ofertando diferentes serviços . É certo que, entre
os anos noventa e início da década de 2000, e ssa perspectiva nã o era
exclusiva ou original das autoridades chilenas . Havia entre
especialistas e formuladores de políticas públicas um razoável
consenso quanto às complexas determinações da pobreza,
particularmente daquela considerada como indigência. Porém, a
maneira como as autoridades do governo chileno lidaram com esse
desafio foi , em diversos aspectos, inovadora e, em larga medida,
exitosa.
Desde a sua implantação, os responsáveis pelo Programa Chile
Solidário trataram de estabelecer estratégias concretas que
assegurassem na prática a intersetorialidade. Para tanto, foram
definidos três eixos básicos de intervenção : o apoio psicossocial ; o
acesso a oferta preferente e o pagamento de bônus e subsídios .
Assim, para que uma família (que pode ser constituída por uma
única pessoa) acesse o programa, o primeiro passo é realizar um
levantamento das suas demandas, i .e , dos problemas e carências que
a afetam. Esse processo se inicia já no momento do cadastramento da
família no sistema de informações sociais do programa, denominado
Ficha de Protección Social .
Após um teste de meios - processado automaticamente pelo
sistema - a família cuja pontuação total corresponder a uma situação
considerada de extrema pobreza (indigência) será então inscrita em
uma das quatro vertentes que compõe m o eixo de apoio psicossocial :
Puente (para famílias em situação de extrema pobreza)
Calle (para moradores de rua)
Vínculo (para pessoas com mais de 65 anos, que vivam
sós e sejam classificadas em extrema pobreza )
17
Camino (para famílias que possuem menores de 18 anos,
onde um dos pais ou responsáveis esteja privado de
liberdade)
Considerando que o programa Puente é o que atende o maior
conjunto das famílias que estão sob o PCS e que os demais
apresentam pequenas variações de método apenas para adequá -los às
especificidades de seus públicos, tomamos o Puente como exemplo
maior da sistemática de intervenção que está associada à experiência
do Chile Solidário .
Uma vez considerada elegível e inscrita em um desses
programas, a família (ou a pessoa , no caso dos programas Calle e
Vínculos) passa a receber um apoiador psicossocial com quem deverá
realizar um amplo diagnóstico de suas necessidades e de suas
potencialidades. Nesse diagnóstico, deverão ser consideradas sete
dimensões da vida familiar (Trabalho, Educação, Saúde, Habitação,
Renda, Identificação documental, Subsídios ), de tal sorte que a elas
seja possível associar as demandas identificadas.
Concluída essa etapa de levantamento da demanda , o apoiador
e os membros da família devem então assinar um contrato, onde são
explicitados os compromissos de cada parte: o apoiador psicossocial,
em nome do Estado, se compromete a garantir o acesso aos serviços
sociais apontados como necessários para que a família possa superar
os problemas identificados durante a elaboração do diagnóstico; os
membros da família, por seu turno, assumem o compromisso de
mobilizarem seus esforços no sentido de alcançar as metas
estabelecidas. Assim, por um período de 24 meses, o apoiador
acompanhará de perto a família, visitando -a semanalmente, se
necessário, mais de uma vez por semana .
Por outro lado, a fim de assegurar que a família tenha suas
demandas atendidas da melhor maneira possível, o PCS prevê uma
ação efetiva sobre a órbita da oferta de serviços públicos. A
18
estratégia consiste em estabelecer pactos institucionais que
garantam “oferta preferente” à população-objetivo do programa.
Através da transferência de recursos a outros Ministérios ou órgãos
parceiros , o MIDEPLAN “compra” o direito de acesso prioritário e
diferenciado às famílias em situação de extrema pobreza 8. Dessa
maneira, uma família consegue, por exemplo, acesso facilitado a uma
linha subsidiada de financiamento para aquisição de moradia, uma
vaga na creche mais próxima ou um tratamento de saúde na rede
pública. E, aqui também, caberá ao apoiador psicossocial responsável
por cada família zelar para que , de fato , o “contrato” seja cumprido.
Trata-se, pois, de uma solução criativa e pragmática que
garante que a tão frequentemente lembrada intersetorialidade ocorra
na prática e, mais do que isso, que o p rincípio da equidade seja
efetivamente cumprido.
Junto a essas duas órbitas de intervenção, o programa
contempla também o pagamento de distintas modalidades de auxílios
monetários, cuja finalidade é evitar que , por absoluta falta de
recursos, as famílias elegíveis deixem de acessar a rede de serviç os
disponíveis. Deve-se alertar, entretanto, que no caso do PCS esses
auxílios monetários não constituem o eixo fundamental do programa,
mas apenas um suporte para que as demais ações tenham maiores
possibilidades de sucesso. Por essa razão, talvez seja inadequado
classificar o PCS como um programa de Transferência de Renda
Condicionada . Embora as transferências monetária s de fato ocorram e
sejam importantes , elas se destinam a despesas pontuais e têm um
caráter apenas complementar. Os inegáveis êxitos do programa
parecem estar mais diretamente relacionado s às demais órbitas de
intervenção: o apoio psicossocial , de intenso acompanhamento
familiar, e o acesso preferente à oferta de serviços públicos. (Galasso
& Carneiro, 2009).
8 Importante observar que os recursos despendidos para assegurar a oferta preferente correspondem a 55% do orçamento do Programa Chile Solidário.
19
Contudo, para a finalidade específica do presente estudo, o
aspecto a ser destacado do Programa Chile Solidario é o seu aparato
de soluções informacionais , uti lizadas para a identificação e
discriminação de sua população-objetivo. Como se trata de um
programa cuja concepção parte da perspectiva de que a condição de
extrema pobreza é multideterminada e que, por isso, a ação pública
deve não só ser focalizada, mas , mais do que isso, customizada para
cada caso, as soluções em termos de método de registro e uso das
informações associadas aos usuários constituem elemento crucial do
programa e, em boa medida, são inovações que avançam em relação a
experiências de outros países .
No capítulo que segue, faz-se uma apresentação dos traços
fundamentais do que denominamos acima de ‘aparato informacional ’
que serve ao Programa Chile Solidario .
III. A Ficha de Protección Social
Já no ano de 1980 os programas sociais chilenos dispunham de
um instrumental dedicado à identificação , registro, classificação e
seleção de suas respectivas populações-objetivo. Tratava -se da
chamada Ficha CAS , cujo nome fazia referência aos Comités de
Assistencia Social que, à época, tinham a missão de diagnost icar e
enfrentar mazelas sociais ao nível local .
Em linhas gerais, a CAS era um sistema de registro de
informações sociais que permitia associar a cada agrupamento
familiar uma dada pontuação, resultante da somatória de suas
carências socioeconômicas. Entre outras, as variáveis nível de renda
do chefe da família e bens duráveis de que dispunha a família
constituíam os aspectos de maior relevância na definição da
20
pontuação atribuída à família. A partir dela , erigia-se uma escala de
valores que permitia aos gestores hierarquizar o conjunto de famílias
e agir discricionariamente de acordo com o grau de focalização
exigido por cada programa social.
Ao longo dos anos, contudo, a Ficha CAS passou por diversas
revisões metodológicas, visando sempre aperfeiçoar sua capacidade
discricionária. Assim, em 1987, é lançada a Ficha CAS 2 que, por sua
vez, viria a ser reformulada outras três vezes no decorrer da década
de noventa.
Em 2002, com as novas diretrizes estabelecidas a partir da
implementação do PCS , impõem-se necessárias adequações ao sistema
informacional, resultando no lançamento entre 2003 -2004 de uma
nova versão, agora denominada Ficha Família . A essa altura, já se
buscava ampliar o escopo desse instrumental , de tal forma que
fossem considerados também alguns indicadores de vulnerabilidade
da família e não apenas de pobreza.
Mais adiante, já no governo de Michele Bachelet (2006), os
formuladores do MIDEPLAN buscaram enfim realizar uma profunda
reformulação do sistema de informações sociais, a qual deu o rigem à
Ficha de Protección Social – FPS .
Embora fosse um produto cujo desenvolvimento remontasse à
longa trajetória de construção da CAS, tratava-se, agora, de um
instrumental bastante mais sofisticado: um sistema de informações
sociais cuja arquitetura levava em conta não apenas a s variáveis
tradicionalmente associadas à pobreza (renda, vínculo empregatício,
patrimônio, etc .) ou à vulnerabilidade das famílias (escolaridade,
número de dependentes, condiç ões de habitação), mas, em especial ,
as potencialidades de cada família vis-a-vis os riscos a que estava
sujeita. (Veja no Quadro abaixo as principais diferenças entre as duas
metodologias).
21
QUADRO 2.ii.
Comparativo CAS x FPS
Ficha CAS Ficha de Protección Social
Definição de Família Subjetiva, tal qual definida pelo chefe da família.
Objetiva: conjunto de indivíduos que vivem juntos e que compartilham renda.
Pobreza Declarada, ex post Potencial, ex ante
Renda Declarada Capacidade Geradora
Especificidades Territoriais
Ausentes Consideradas
Escolaridade Considerada
Somente do chefe da família De todos os membros da família
Escala de equivalências e necessidades
Ausente Presente
Dimensões Consideradas
5 (Habitação; Ocupação; Educação; Patrimônio; Renda)
7 (Habitação; Ocupação, Educação; Saúde; Renda; Identificação Documental; Subsídios Sociais)
De acordo com essa nova metodologia, ap resentada
esquematicamente na Figura 1 abaixo, a pontuação a ser atribuída a
cada família deve considerar três componentes fundamentais:
1) um componente dinâmico, que resulta da somatória da
capacidade de geração de renda do conjunto de membros
da família (com peso de 90%) e da renda declarada ( com
peso de 10%);
2) um componente estrutural, que indica o recebimento de
benefícios monetários de caráter permanente (pensões,
aposentadorias);
3) um índice de equivalências e necessidades, com o qual se
busca ajustar a renda da família às suas particularidades,
22
em termos de escala (número e perfis de indivíduos da
família), características territoriais (regionais, locais) e
necessidades específicas (presença de idosos, de pessoas
com necessidades especiais , etc).
Figura 2.i
Esquema de Cálculo para Pontuação das Famílias
Adap t ad o d e MI DE P L A N (2 0 0 7 )
Ou seja, com a FPS se introduz uma dimensão dinâmica no
sistema de identificação, registro , classificação e seleção das famílias.
Não se trata mais de considerar apenas as condições objetivas que
caracterizam a pobreza, aferidas no momento do registro, mas
também de incorporar potencialidades e fatores de risco que possam
fazer oscilar a renda futura da família. Além disso, a metodologia
empregada no sistema de pontuação da FPS inova também ao
ponderar os componentes relacionados à renda pelas discrepâncias
encontradas entre as diferentes estruturas familiares – consideradas
em termos de um índice de escalas de equivalências e necessidades –
que resultam em dinâmicas familiares distintas, independentes dos
padrões de renda.
Por todas essas inovações, a FPS tornou-se de fato um
instrumental bastante mais adequado para atender às diretrizes do
Programa Chile Solidário . Conforme demonstra estudo realizado pelo
23
próprio governo (Mideplan, 2007), comparando a Ficha CAS com a
Ficha de Protección Social , a metodologia do FPS resultou em maior
acuidade no processo de focalização das políticas de proteção social .
Além disso, pela complexidade de sua metodologia de cálculo e pela
limitada possibilidade de acesso aos fatores que determinam a
classificação de cada família, as possibilidades de manipulação ou
interferência externa nos resultados é bastante reduzida, o que
contribui para a legitimação do processo de elegibilidade e diminui a
possibilidades de fraudes.
IV. O Papel da FPS no Sistema Integrado de Informações Sociais
A Ficha de Proteccion Social , tal qual visto até aqui, serve
fundamentalmente como instrumento de registro, identificação,
classificação e seleção de famílias elegíveis do Programa Chile
Solidário e suas vertentes . Entretanto, a FPS é também parte
importante de uma plataforma tecnológica computacional de maior
amplitude, denominada Sistema Integrado de Informações Sociais –
SIIS , cuja finalidade é superar as limitações de comunicação entre os
diferentes sub-sistemas de informação administrados por distintos
órgãos públicos. (Veja Figura 2.ii)
Estruturado para funcionar de acordo com o princípio da
interoperabilidade – que permite o compartilhamento de informações
entre diferentes sistemas - o SIIS foi concebido para dar suporte aos
programas de proteção social, ofertando soluções que , entre outras
mais, auxiliam nos seguintes processos:
Definição de quem serão os beneficiários de determ inado
programa;
Determinar o nível de focalização exigido para cada
programa;
24
Identificar o tipo de benefício concedido (bem ou
serviço);
Definir o perfil de egresso desejado para cada programa;
Avaliar o impacto do programa, comparando a situação de
entrada e a de saída;
Avaliar a situação do egresso em momentos posteriores
(análise longitudinal) ;
Avaliar a efetividade das políticas através da compa ração
com grupos-controle (análise latitudinal) ;
Contudo, para que funcione adequadamente e permita a ef etiva
interoperabilidade entre os sub-sistemas, há um pré-requisito
fundamental sem o qual a integração seria infinitamente mais difíci l e
onerosa. Trata-se do RUN – Registro Único Nacional - um número de
identificação único e individual que todo cidadão chileno recebe ao
nascer e que serve a todos os registros civis e documentos que venha
a fazer uso ao longo de sua vida. No SIIS é, portanto, o RUN que serve
como chave para que os sistemas possam processar informações
lógicas e atributos individuais (civis e socioeconômicos) que estejam
armazenados em seu banco de dados .
Esta particularidade do sistema chileno, que pode parecer um
detalhe operacional de menor relevância é, por certo, um dos
principais fatores a explicar o êxito na construção da FPS e do SIIS .
25
Figura 2.ii
Ad ap t ad o d e F OSI S (2 0 1 0 )
Implantado durante os anos setenta, o RUN não só é um
facilitador nos processos de integração dos bancos de dados dos
múltiplos sistemas vigentes no país, mas também é um fator que
serviu de baliza para o desenvolvimento desses sistemas ao longo dos
anos. Na medida em que vinham se desenvolvendo as tecnologias de
informação e, com elas, crescia a necessidade de conversão das bases
analógicas para digitais, já estava consolidado em âmbito nacional
um parâmetro comum que, desde logo, serviu como indutor de uma
formatação compatível dos sistemas de informação sociais. Enquanto
na imensa maioria dos países esse processo de conversão foi caótico
e competitivo – resultando em sistemas concorrentes e incompatíveis
– no Chile a convergência foi tremendamente beneficiada pela prévia
vigência de um registro civil único.
Vínculo
Puente
Calle
FPSCamino
Serviço Público
Serviço Público
Serviço Público
Serviço Público
Serviço Público
Serviço Público
Serviço Público
WebService
WebService
WebService
WebService
Banco de Dados
Serviço Público
SIIS – Ficha de Protección Social
26
V. A Gestão Compartilhada da FPS
Por uma série de fatores históricos 9 , a estrutura político-
institucional do Chile é fortemente centralizada no governo nacional,
restando às autorida des comunais ou provinciais uma margem
estreita para a execução de políticas autônomas, seja porque existem
impedimentos legais, seja porque possuem baixa capacidade de
arrecadação e, portanto, de investimento.
No que tange às políticas de proteção social, a quase totalidade
das ações resultam de programas concebidos e executados pelo nível
central e que, em determinados aspectos, contam com a colabor ação
dos governos comunais. No caso do Programa Chile Solidar io e do
correlato Ficha de Protección Social , como dependem de um estreito
vínculo entre os serviços públicos e as famíli as beneficiárias, há um
esforço de estreitamento das parcerias com órgãos e equipe das
instâncias comunais.
Seja para coordenar e acompanhar as atividades dos apoiadores
psicossociais, seja para manter atualizados os registros das famílias
no sistema da FPS , o governo central repassa recursos aos municípios
e estabelece convênios específicos nos quais são pactuadas as
atribuições e responsabilidades de cada uma das partes. Com base
nessa sistemática, dá -se início então ao processo de cadastramento
das famílias, que pode ser motivado tanto por iniciativa espontânea
da família interessada, quanto por uma campanha de mobilização do
governo local.
Na figura abaixo, reproduzimos de maneira esquemática os
principais fluxos e as respectivas responsabilidades para a execução
9 Pode-se citar, entre outros, os importantes conflitos territoriais ao norte e ao sul; a forte e precoce presença do setor produtivo estatal na economia; os dezesete anos de ditadura sob o comando do General Augusto Pinochet.
27
do processo de inclusão e atualização dos registros sociais no banco
de dados da FPS e, por conseguinte, do sistema SIIS.
Figura 2.iii
Atividades
Ficha de Proteción
Social
Responsáveis
Registro de Dados
Familiares(in loco)
Governo Local
Digitação e Revisão
Processa-mento e
Classificação
GovernoLocal
Governo Central
(MIDEPLAN)
Processo de Cadastramento
Ad a pta d o d e MIDEP LAN (2 0 1 0 )
É interessante notar que , segundo relato dos gestores do
Mideplan, nessa sistemática de gestão compartilhada que ve m sendo
experimentada no âmbito do Programa Chile Solidário e na gestão da
FPS , algumas práticas de gestão bastante simples e de baixo custo
têm produzido resultados positivos. Por exemplo, menciona-se a
maneira como são estabelecidas as normas operacionais dos
programas. Sempre que algum agente ou apoiador do nível local tem
28
dúvida quanto a um procedimento, deve encaminhá -la por escrito
através de meio eletrônico a um coordena dor do Mideplan que atua
em um comitê de políticas sociais de nível provincial. Esse
coordenador deve então buscar responder à indagação apresentando
algum documento oficial do Mideplan onde conste a norma que diga
respeito à duvida levantada. Caso não haj a uma norma escrita sobre a
questão, cabe ao coordenador de nível provincial repassar a
indagação ao escritório central do Mideplan, que deverá redigir uma
norma a respeito e encaminhar para todos os agentes comunais que
atuam no programa.
A referência a esse exemplo se deve ao fato de que é bastante
ilustrativo da relação entre as diferentes instâncias de governo no
Chile. Nota-se boa fluidez e canais institucionalizados para que os
operadores das instâncias de governo inferiores possam expressar
suas demandas. Contudo, as deliberações relativas à oferta
permanecem de competência quase exclusiva do nível central.
VI. Considerações sobre a Experiência Chilena
As experiências de gestão pública no Chile são bastante ricas e
muito singulares. Por sua geografia, sua história, suas especificidades
econômicas e sua cultura política, o Chile é, sob diversos aspectos,
uma nação “insular”. A começar pela variável “temp o histórico”, que
lá parece bater em ritmo menos frenético que o dos seus vizinhos de
continente. Embora o país também tenha sofrido com processos de
ruptura democrática (nas ditaduras de Carlos Ibanez, de 1927 e 1931,
e Augusto Pinochet, de 1973 a 1990), a continuidade de suas
instituições é notável para os padrões latino -americanos.
Mesmo se considerarmos a história recente, quando o país
atravessou um longo período de ditadura, a continuidade não deixou
29
de ser a marca. Durante a ditadura, evidentemente, houve tempo e
força política para que se consolidassem determinadas práticas de
gestão com forte centralização política, em geral inspiradas numa
concepção de burocracia bismarkiana. Já nos anos noventa, com o
retorno à democracia e os vinte anos de Concertación Nacional , a
continuidade também foi a tônica da política chilena, com os
sucessivos governos de centro-esquerda seguindo por uma trajetória
programática bastante homogênea.
Esse ambiente foi certamente bastante favorável para o
desenvolvimento de um sistema de informações sociais robusto, fruto
de sucessivos aperfeiçoamentos e adequações marginais que
permitiram a sua atualização tecnológica e sua compatibilização
funcional ante as lentas transformações institucionais do país.
Porém, parece-me que mesmo sob tais circunstâncias, o relativo
êxito da FPS enquanto instrumento de apoio aos programas de
proteção social só pode bem ser compreendido quando se leva em
consideração o fato de o Chile ser um dos poucos países a dispor de
um sistema de registro único de identificação dos cidadãos
plenamente consolidado. Mais do que isso, conforme assinalamos , o
fato de tê-lo implantado em uma época na qual as tecnologias de
informação dedicadas à gestão pública ainda não haviam se
desenvolvido, propiciou que s e tri lhasse um roteiro de
desenvolvimento cujos parâmetros fundamentais já estavam
indicados.
Por outro lado, pelo excesso de rigidez das estruturas
burocráticas do Chile e pelo déficit democrático que marcou sua
história recente, é patente que a gestão lo cal ainda é, em muitos
aspectos, tímida e atrofiada.
3. A experiência Brasileira
30
I. Antecedentes Políticos e Institucionais
Qualquer análise que se pretenda desenvolver sobre temas
relacionados às políticas sociais no Brasil contemporâneo não tem
como fugir ao legado da Constituição Federal de 1988, não sem razão
batizada de Constituição Cidadã . 10 Redigida em um ambiente de
transição política 11 - do regime militar para a democracia
representativa - e fruto de um longo e intenso movimento de luta
pela redemocratização, a Carta Magna de 1988 consolidou
importantes avanços políticos, sociais e econômicos que respondiam
a demandas acumuladas ao longo dos vinte anos de regime de
exceção.
Esse contexto histórico é crucial para que se possa
compreender como e porque o Brasil avançou rumo à universalização
e à garantia de direitos sociais - inscrevendo direitos relativos ao
trabalho, à previdência, à educação e à saúde como “cláusulas
pétreas” 12 da Constituição Federal – enquanto, no mesmo período,
nos países centrais percebia -se um processo de sentido contrário , de
desmonte e reforma do Welfare State e de forte constrangimento das
instituições e das finanças públicas 13.
10 O Deputado Ulisses Guimarães, então presidente da Assembléia Constituinte, assim denominou aquela constituição em referência a importantes e numerosos direitos sociais alçados à condição de direitos constitucionais. À época, foram 245 artigos e hoje, após revisão, já somam 250.
11 A ditadura militar, que durou de 1964 a 1984, deu lugar a um governo de transição, eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. Foi, portanto, ainda durante o chamado “período de transição” que ocorreu o processo constitucional. Em 1990, toma posse o primeiro Presidente eleito democraticamente pós-ditadura.
12 No entendimento das constituições de países lusófonos, denominam-se “clausulas pétreas” – equivalente parcial ao termo entrenchment clauses na constituição dos EUA, as disposições consideradas imutáveis, que não podem ser reformadas ou suprimidas por meio de emendas. Na Constituição Brasileira de 1988, as disposições elencadas no seu Artigo 6º e que definem os direitos sociais (a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparado) são consideradas cláusulas pétreas, embora persista alguma divergência na interpretação jurídica a respeito.
13 Sobre o tema das reformas do Welfare State, são obras de referência os trabalhos de Offe & Keane (1984), de Przeworski (1986) e de Esping-Andersen (1996).
31
Esse descompasso temporal (explicado em parte pelas duas
décadas de direitos políticos em suspensão no Brasil ), não só se
estendeu para os anos seguintes, como se transpôs para o campo da
política, estabelecendo um regime de coexistência de duas tendências
politicamente antagônicas: uma empenhada na consolidação do
Estado de Bem Estar no país (com forte apoio dos movimentos sociais
e dos setores mais organizados do sindicali smo), e outra, inspirada
nos processos revisionistas dos países centrais, associada aos
princípios do neoliberalismo e da chamada Terceira Via , que
mantinha-se no governo central (apoiada no capital político
arregimentado com o processo de estabilização m onetária ocorrido
no biênio 93-9414 ) . Essa a dualidade também se faria presente no
campo programático. Por um lado, as recomendações do Consenso de
Washington 15 e as pressões pela reforma e redução do tamanho do
Estado 16 encontravam crescente respaldo entre a classe política e os
formadores de opinião, mas, por outro, a tarefa de regulamentar e
implementar as políticas desenhadas pela Assembléia Constituinte de
1988 se traduzia na concreta ampliação da oferta de serviços
públicos, na universalização da saúde e da educação básica e na
correspondente elevação da carga fiscal - que saltou do patamar de
25 para o de 35% do PIB em um período de 15 a nos.
É nesse contexto ideologicamente híbr ido - carregado de
contradições, mas também especialmente dinâmico e aberto a novas
experimentações institucionais - que surgem então, na segunda
metade dos anos noventa, os primeiros programas de Transferência
de Renda Condicionada (TCR’s) no país . 17 Esses programas pioneiros,
14 Para uma análise detalhada desse período e do processo de desenvolvimento das linhas programática que se consolidaram na Constituinte de 1988, veja Fagnani (2005)
15 Sobre a agenda dos organismos multilaterais no período e sua influência no debate sobre as políticas sociais no Brasil dos anos 90, veja Maracci (2007)
16 São exemplos desse processo a chamada Reforma Gerencial, promovida pelo então Ministro da Administração, Bresser Pereira, e a Lei de Responsabilidade Fiscal (de 2001) que introduz limites orçamentários para despesas com pessoal e reduz drasticamente a capacidade de endividamento dos três níveis de governo.
17 Cf Apêndice I.
32
instituídos a partir de 1995, tinham como objetivo fundamental
socorrer famílias que estivessem em situação de pobreza ou extrema
pobreza e, ao mesmo tempo, estimulá -las a aderir a outras políticas
sociais. Note-se que, ao combinar estrat égias de focalização , como a
concessão de benefícios monetários a clientelas específicas, e exigir
como contrapartida o ingresso dos beneficiários em programas de
caráter universal , a experiência brasileira de transferência de renda
condicionada é ao mesmo tempo síntese e símbolo daquela dubiedade
a que fizemos referência linhas acima 18.
Esse quadro institucional suigeneris - que poderíamos
caracterizar como fracamente estruturado – no qual não ficava
evidente a predominância de uma determinada concepção de Estado
ou de sociedade e que, por outro lado, revelava um contexto de
intenso experimentalismo, constituiu o ambiente a partir do qual foi
desenvolvido o Sistema de Informações Sociais (SIS) que iria dar
suporte às demandas operacionais dos programas de tr ansferência de
renda. Precisamente por conta dessas especificidades institucionais
que a análise do Sistema de Informações Sociais implementado no
Brasil reflete também uma razoável plasticidade de suas estruturas,
bem como de seus usos e finalidades, como procuraremos demonstrar
nas próximas secções.
18 Sobre a dualidade de objetivos do Bolsa Família e a conseqüente dificuldade de atingí-los simultaneamente, veja Soares e Sátyro (2009).
33
II. O Cadastro Único no âmbito do Programa Bolsa Família
No contexto brasileiro atual, não existe formalmente um
Sistema de Informações Sociais que integre o conjunto de registros
sociais ou que unifique efetivamente os bancos de dados de todos
beneficiários das políticas sociais. O que existe, por ora, é uma
constelação de sistemas e bancos de dados desenvolvidos por
diferentes instituições, em diferentes tempos e para diferentes fins,
que, na medida do possível, se integram e se complementam e, assim,
constituem um Sistema de Informações Sociais “ ad doc” que serve,
entre outros, aos programas de transferência de renda, notadamente
o Programa Bolsa Família (PBF). No que tange especificamente às
bases de dados que operam no âmbito das políticas de assistência
social, esse sistema “ad doc” tem como espinha dorsal o chamado
Cadastro Único dos Progra mas Sociais do Governo Federal ( CadÚncio) ,
idealizado para funcionar como um instrumento de identificação das
populações-objetivo dos programas de transferência de renda
condicionada – o que a l iteratura especializada convencionou
denominar de “Sistema Integrado de Identificação de Beneficiários”
(SIIB).
Instituído formalmente em julho de 2001 19, o CadÚnico foi
concebido em um momento de especial efervescência dos programas
de transferência de renda no país 20. E naquele início de década, à
medida em que a transferência de renda ganhava significância no
campo das políticas sociais, faziam-se crescentes as necessidades de
estruturação e compatibilização dos diversos programas em curso,
bem como dos processos de gestão a eles associados. No âmbito do
governo federal, ante o risco de progressiva perda de eficácia e de
19 Criado através do Decreto Federal nº 3.877, o CadÚnico tinha por finalidade atender a todos os órgãos públicos federais que executassem programas focalizados de caráter permanente, exceto aqueles de caráter previdenciário, cuja administração deveria permanecer a cargo do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)
20 Veja cronologia no Apêndice I.
34
eficiência dos programas, cuja gestão era fragmentada e desconecta,
deu-se início então a um processo de convergência de suas múltiplas
dimensões gerencias: agências executoras, fontes de financiamento,
critérios de elegibilidade, sistemas de informações, valores dos
benefícios, entre outras. (Soares et al . , 2009).
Nesse contexto, o governo federal instituiu o Fundo de
Erradicação e Combate à Pobreza (FECP) 21 - que visava garantir e
unificar as fontes de financiamento para os programas de
transferência de renda condicionada – e implementou o CadÚnico.
Para desenvolver e operacionalizar esse último, foi estabelecido um
convênio junto à Caixa Econômica Federal , um banco público com
grande tradição na gestão de benefícios sociais ( como benefícios
previdenciários e indenizações trabalhistas 22).
Desse esforço, surge então a primeira versão do CadÚnico , que
funcionou de forma muito insipiente, durante os dois primeiros anos.
Somente em 2003, com a criação do Programa Bolsa Família , é que de
fato o CadÚnico ganha relevância e escala , progredindo ao longo dos
anos, até se tornar uma das maiores e mais consistente bases de
dados sociais disponíveis no país. Porém, antes de avançarmos para
uma análise mais detalhada do CadÚnico, vejamos brevemente quais
os traços fundamentais do Programa Bolsa Família
3.II.1. CARACTERIZAÇÃO DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA:
Visando integrar os diferentes programas de transferência de
renda que eram executados por distintos órgãos de âmbito federal, a
21 Através da Lei Complementar nº 111, de 06 de julho de 2001.
22 Em relação aos benefícios associados aos vínculos profissionais, destacam-se o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço( FGTS), que é um sistema de poupança compulsória para fins de indenização por demissão imotivada, e o Programa de Integração Social (PIS), que estabelece uma contribuição social de natureza tributária destinada a financiar o pagamento de um abono salarial para os trabalhadores com rendimentos de até dois salários mínimos.
35
equipe que assumiu o governo com a eleição do Presidente Lula,
instituiu já em outubro de 2003 o Programa Bolsa Família 23.
Segundo as diretrizes definidas pelo governo à época, o
Programa Bolsa Família estabelecia como público elegível o conjunto
de famílias de baixa renda 24, estimadas àquela altura em um total de
onze milhões, para as quais seriam concedidos benefícios monetários
mensais, desde que cumprissem com as condicionalidades estipuladas
pelo programa:
Garantir presença das crianças de até 15 anos em pelo menos 85% das aulas;
Estar em dia com a vacinação e a saúde das crianças e adolescentes;
No caso de mulheres grávidas e nutrizes, realizar consultas periódicas no sistema público de saúde .
Considerando-se que o critério de elegibilidade definido pelo
programa era a renda familiar autodeclarada pelo representante legal
da família, qualquer família estava apta, a princípio, a se cadastrar no
programa. A seleção dos beneficiários, contudo, é realizada pelo MDS
através de processo automatizado, com b ase na análise dos dados
cadastrais das famílias e na disponibilidade orçamentária do governo
federal que define as metas físicas de cada exercício 25 - atualmente, o
programa já atende 12,9 milhões de famílias, pagando benefícios
mensais que podem variar d e R$ 22 (U$ 12,50) a R$ 200 (U$ 113,50)
a depender da renda familiar e do número de filhos em idade escolar.
23 Originalmente criada por meio da Medida Provisória nº 132 e convertida na Lei Federal nº 10.836, em 09 de janeiro de 2004
24 Cuja renda mensal familiar per capita fosse inferior a meio Salário Mínimo ( R$ 120,00 à época, o
que equivalia a aproximadamente U$ 63,00). Atualmente são consideradas famílias de baixa renda: 1)
aquelas cuja renda mensal por pessoa seja igual ou inferior a ½ salário mínimo; 2) aquelas cuja renda
familiar mensal seja de até três salários mínimos (veja Bartholo, 2010).
25 Como o benefício do Programa Bolsa Família não constitui legalmente um direito social, não existe a obrigatoriedade de atender à totalidade do público elegível.
36
No que tange a seu desenho institucional, o Programa Bolsa
Família foi concebido para ser executado de forma descentralizada e
com uma gestão compartilhada entre os três níveis de governo:
ao Ministério do Desenvolvimento S ocial e Combate à Fome (MDS) cabe a função de a agência executora;
à Caixa Econômica Federal (CEF) cabe a função de agente operador do sistema, responsabilizando -se, portanto, pelo armazenamento das informações cadastrais, pela manutenção e desenvolvimento do sistema informático e pelo pagamento dos benefícios;
aos governos estaduais ca be cuidar dos processos de capacitação, apoio e monitoramento dos gestores municipais;
aos municípios cabe garantir o cadastramento dos interessados, transmitir as informações à CEF e ao MDS, realizar atualizações periódicas dos cadastros, acompanhar os beneficiários e garantir o cumprimento das respectivas condicionalidades.
Contudo, como no sistema federativo brasileiro, os entes
dos diferentes níveis de governo são autônomos, a fórmula
encontrada para promover a adesão dos governos subnacionais
ao Programa Bolsa Família e ao CadÚnico foi instituir um Termo
de Adesão 26 que, à época, estabelecia os compromissos e
responsabilidades de cada parte e, em contrapartida, garantia o
repasse de R$ 6,00 (U$ 3,00) para cada cadastro válido
realizado. Assim, após a adesão da quase totalidade dos
municípios brasileiros, e uma importante melhoria na
qualidade das informações registradas na base do CadÚnico , em
2006 o governo federal institui o Índice de Gestão
Descentralizada (IGD) 27, visando estabelecer um mecanismo
contínuo de estímulo à participação e comprometimento dos
governos municipais, bem como garant ir a qualidade das
26 Criado por meio da Portaria do MDS, nº 246, de 20 de maio de 2005.
27 Criado por meio da Portaria do MDS, nº 148, de 27 de Abril de 2006.
37
informações registradas no CadÚnico . Podendo variar de 0 a 1,
o IGD é calculado segundo uma média aritmética composta de
quatro variáveis:
Taxa de Cobertura do Cadastro;
Taxa de Atualização Cadastral;
Taxa de Crianças com informações de freqüência escolar;
Taxa de famílias com acompanhamento das condicionalidades da saúde.
Uma vez definido o IGD de cada município, multiplica -se o
índice pelo número de famílias beneficiárias do Programa Bolsa
Família no município e, depois, pelo valor de R$ 2,50 (U$ 1,42). O
valor total é então transferido mensalmente aos órgãos de gestão
municipal e pode ser usado na aquisição de quaisquer bens ou
serviços que contribuam para o bom funcionamento do programa 28.
Além de definir padrões de gestão a serem perseguidos pelos
gestores municipais, o MDS propôs também uma série ações a serem
desenvolvidas pelas Secretarias Municipais de Assistência Social
visando articular a transferência direta de renda a outras políticas de
assistência social. Nessa perspectiv a, tem função estratégica a
articulação do Programa Bolsa Família com o Programa de Atenção
Integral à Família (PAIF), cujo objetivo é desenvolver na base
territorial, por meio dos Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS), uma série de iniciativa s de apoio aos indivíduos e às famílias
em seu contexto comunitário (serviços sócioassistenciais,
sócioeducativos, de convivência e de preparação para a inclusão
produtiva).
28 A fim de garantir condições mínimas aos municípios pequenos, sujeitos a deseconomias de escala, o MDS estabeleceu que para as primeiras 200 famílias cadastradas paga-se o valor dobrado. Já para os governos estaduais ficou estabelecido que devem receber o equivalente a 10% do valor total transferido para os municípios localizados em sua área de abrangência.
38
Mais recentemente 29, o governo federal tem logrado maiores
esforços no sentido de desenvolver as denominadas ações
complementares junto aos beneficiários do Programa Bolsa Família ,
tratando-os como público prioritário nos programas de qualificação
profissional, executados em parceria com o Ministério do Trabalho e
Emprego 30, e no programa de habitação popular, conhecido como
“Minha Casa, Minha Vida”.
3.II.2. Aspectos Fundamentais do Cadastro Único
O CadÚnico , na sua Versão 7 - que vem sendo implementada ao
longo deste anos de 2010 - constitui um importante aparato de apoio
à execução das políticas sociais. Sob a responsabilidade do Ministério
do Desenvolvimento Social (MDS), seu desenvolvimento tem como
finalidade primeira instituir “um instrumento de identificação e
caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa
renda” (Bartholo, 2010) . Em seu banco de dados, são registradas três
dimensões distintas relativas às famílias mais pobres do país:
características da família, do domicílio e de cada indivíduo
componente da família. Para cada uma dessas dimensões existe um
formulário específico, cuja aplicação cabe ao órgão municipal
definido como o responsável local pela operação do cadastro – em
geral, são as secretarias de assistência social 31 . Os municípios
coletam e digitam os dados diretamente no sistema, que na Versão 7
opera em plataforma web – on line – e que, portanto, informa e
atualiza a base nacional (centralizada) em tempo real. (veja modelo
na figura abaixo) 29 Posterior à nova lei, de 2007 que redefine os critérios de elegibilidade
30 Como, por exemplo, os casos dos Planos Setoriais de Qualificação (PLANSEQs) da Construção Civil e do Turismo.
31 Não é obrigatório que seja uma secretaria especificamente de assistência social. Cabe a autoridade municipal designar qual deverá ser o órgão responsável. Em alguns casos é a secretaria de saúde, em outros, a de educação ou de Trabalho e Renda.
39
Figura 3.i
Ad ap t ad o d e Bar thol o (2 0 1 0 )
Dos gestores municipais, exige-se apenas que garantam um
acesso à internet de boa qualidade e que cadastrem no sistema um
responsável local (“usuário master”) e todos os entrevistadores que
irão aplicar os formulários para coleta de dados das famílias.
Entretanto, como alguns municípios possuem sistemas locais de
informações gerenciais, muitas vezes integrados a outras bases de
dados, a Versão 7 permite que, nesses casos, as informações
cadastrais sejam transferidas para base nacional mensalmente, no
formato “txt” (arquivo de texto). O MDS, por seu turno, remete a
todos os municípios, também mensalmente, um arquivo txt, com
todas as informações relativas ao município , para uso em relatórios e
análises estatísticas, ou ainda para alimentar outras bases de dados
municipais. Além disso, a Versão 7 permite também realizar
PREFEITURA
RELATÓRIOSE CONSULTAS BASE
NACIONAL
ON-LINE
DISPOSITIVOMÓVEL
WEB SERVICE
SISTEMA LOCAL DE INFORMACÕES
GERENCIAIS
WEB SERVICEBASE INCREMENTAL
MENSAGERIA
WEB SERVICEMANUTENÇÃO TABELAS
MDS
Auditoria
PORTAL DE RELACIONAMENTO
Cadastro Único – Versão 7
INTERNET
CAIXA
BASE TXTMENSAL
SISTEMA PRÓPRIO
40
consultas on-line da base municipal, trazendo informações da família,
do domicílio ou da pessoas, bem como i nformações relativas a
benefícios pagos ou a outros programas vinculados à pessoa.
Como agente operador do sistema, re sponsável pela
infraestrutura da Base Nacional e pelas operações de manutenção e
desenvolvimento, permanece desde o início a Caixa Econômica
Federal , a quem cabe também replicar a base nacional para uma base-
espelho no MDS e transmitir ao SIISO (sistema de integrado de
informações sociais) 32 os dados considerados pertinentes para que
sejam confrontados com outras bases de informações sociais que
compartilham o mesmo núcleo de informações de identificação dos
indivíduos 33 . Cabe ainda à Caixa Econômica Federal realizar
checagens e auditorias periódicas, através do cruzamento com outras
bases de dados. A esse respeito, vale destacar o bat imento (“batch”)
realizado com o Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS), que
permite identificar eventuais beneficiários que se encontram
formalmente empregados e que percebem uma remuneração familiar
per capita superior à linha de corte de 1/2 salá rio mínimo mensal e a
comparação com relação à Pesquisa Nacional de Amostra de
Domicílios (PNAD), que possibilita inferir a acuidade da focalização
34. Esporadicamente, por exigência dos órgãos de controle, são feitos
batimentos adicionais com o SISOBI, par a identificar eventuais
beneficiários que faleceram e que não tiveram seus benefícios
cancelados.
Assim, após diversos processos de auditoria e checagem, alguns
através de algoritmos do próprio sistema, outros através de
32 Trata-se de um sistema operacionalizado pela Caixa Econômica Federal que integra o núcleo central das informações dos indivíduos registrados em outras bases de dados sociais, tais como a do PIS (relativo ao sistema de financiamento de abono salarial para trabalhadores que recebem até dois salários mínimos), do PASEP(similar ao PIS, porém relativo aos servidores públicos) , do CADSUS (vinculado aos usuários do Sistema Único de Saúde) e do CNIS (que serve à identificação de todos os trabalhadores para fins previdenciários).
33 Composto pelo nome da pessoa, nome da mãe, data de nascimento enumero de documento de identificação.
34 Sobre a efetividade do processo de focalização, veja o trabalho de Soares et all (2009.)
41
processos de batimento com outras b ases, tem-se que o acervo de
registros sociais que compõe o CadÚnico é bastante consistente e
fidedigno, com baixos níveis de cadastros irregulares e, portanto,
relativamente poucos casos de benefícios pagos indevidamente 35.
Para garantir transparência e c ontrole social do processo de
elegibilidade dos beneficiários do Programa Bolsa Família , ao se
tornarem signatários do program a, os municípios são obrigados a
instituir uma comissão ou um conselho – pode-se também designar
uma pré-existente - para acompanhar todos os trâmites e processos
que envolvam as operações de cadastramento e de seleção de
beneficiários. E, para que seja legítima e o mais isenta possível, pelo
menos a metade da comissão deve ser composta de membros da
sociedade civil , sem qualquer vínculo com os órgãos executores.
Por fim, cabe um comentário sobre a gradativa relevância do
CadÚnico como instrumento de identificação e seleção de
beneficiários para outros programas sociais. N o seu atual estágio de
desenvolvimento, o CadÚnico já é uti lizado pelos seguintes
programas de alçada do governo central :
Bolsa Família
o Brasil Alfabetizado
o Próximo Passo
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI
Tarifa Social de Energia Elétrica
Carteira do Idoso
Cisternas
ProJovem Adolescente
Minha Casa, Minha Vida
Isenção de taxas para concursos públicos
Cadastramento do BPC
35 Para uma avaliação quantitativa, veja Bartholo (2007).
42
III. A perspectiva dos gestores subnacionais
No escopo da presente pesquisa, foi realizada uma série de
entrevistas com diversos gestores e usuários do CadÚnico em nível
municipal e estadual 36, com o intuito de se conhecer a opinião que
tinham sobre o sistema, visto que, por estarem situados na chamada
“ponta do sistema” , suas perspectivas trazem à tona alguns aspectos
que muitas vezes passam desapercebidos dos agentes executo res de
um instrumental com a dimensão e a complexidade do CadÚnico .
Antes, porém, deve-se esclarecer que as entrevistas aconteceram
entre os meses de junho e julho de 2010, quando a Versão 7 ainda
não estava disponível. Embora a idéia original fosse falar justamente
com gestores e usuários dos municípios que estivessem testando a
nova versão, por conta de atrasos no seu cronograma original de
implantação, não tinham na ocasião informações consistentes sobre a
operacionalização da Versão 7 .
Para facilitar o entendimento e também evitar que se pudesse
identificar os entrevistados, reunimos as questões em blocos
temáticos:
3.III.1. Aspectos Negativos
a. Dificuldade de Operacionalização : é opinião comum entre
todos os entrevistados que o modo de operação do CadÚnico ,
tal qual estabelecido até meados de 2010, é demasiadamente
oneroso e confuso, exigindo dedicação excessiva de parte
relevante do corpo técnico de servidores municipais, além
de produzir frequentes impasses nos fluxos operacionais.
36 Veja o conjunto dos relatórios das entrevistas no Anexo I.
43
b. Multiplicidade de Sistemas: o fato de persistirem
demandas de operacionalização em paralelo, em diversos
sistemas de informação, é frequentemente apontado como
ponto crítico e responsável pela opacidade dos fluxos de
trabalho e pela subutilização das informações registradas
nas bases de dados.
c. Escassez de Recursos Analíticos : também é freqüente a
avaliação de que o CadÚnico carece de ferramentas e
aplicativos que permitam melhor manejar a s informações
referentes aos beneficiários dos programas sociais. Os
recursos para consulta são parciais e não existe a
possibilidade de produção de relatórios que considerem as
especificidades (territoriais, programáticas, demográficas)
de cada município.
d. Desenvolvimento de Sistemas Customizados : por conta
das referidas limitações do CadÚnico , muitos municípios de
porte médio e grande decidiram desenvolver sistemas
próprios como recurso para melhor aproveitar as
possibilidades de uso do banco de dados do CadÚnico. Com
autonomia para manejar as informações armazenadas em
suas próprias bases de da dos, dispõem de ferramentas de
suporte à gestão local, seja para as ações de diagnóstico e
planejamento, seja para as rotinas de avaliação e
monitoramento dos programas sociais. Cabe nota r que entre
os gestores desses municípios há certa preocupação quanto
ao futuro desses sistemas cus tomizados, visto que não se
sabia exatamente como seria a compatibilidade dos s istemas
próprios e a Versão 7 do CadÚnico .
e. Desafios para o Georeferenciamento : dada a grande
demanda dos gestores pela possibilidade de georeferenc iar
as informações sociais coletadas e registradas pelo
CadÚnico , é recorrente o problema de ausência de base de
44
logradouros (endereços) confiáveis que possam ser
associadas às informações do CadÚnico . Além do sistema não
prever tal integração, de forma qu e os endereços possam
aparecer numa tabela indexada, não há até o presente
momento nas instituições públicas brasileiras um
regramento sobre o tema. Em uma mesma prefeitura, podem
coexistir diversas bases de logradouros, de difícil integração
ou compatibil ização, inviabilizando processos de
georeferenciamento de maior precisão.
f . O Papel das Secretarias de Estado : é opinião corrente
entre os gestores municipais que os governos de estado têm
atuado de forma muito tímida nos processos que envolvem o
CadÚnico . Principalmente para os municípios menores,
parece importante o apoio e a participação mais ativa dos
gestores estaduais .
g. Sensibilização e Capacitação : alguns municípios se
ressentem da baixa frequência de ações do MDS visando
sensibilizar e capacitar as equipes - em especial as
assistentes sociais - para a relevância de se desenvolver um
banco de dados de qualidade, que facilite e potenc ialize suas
ações finalísticas. Menciona -se também a necessidade de se
adotar ações que visem sensibilizar os gestores locais de
primeiros e segundos escalões para a importância e o
potencial do CadÚnico .
h. Dificuldade de mensuração de custos : embora estudos do
MDS estimem que o custo por cadastro realizado varia entre
R$ 2 a R$ 7 (U$ 1,15 a U$ 4), os municípios alegam que
existem muitos outros custos envolvidos na operação, além
do mero cadastramento. Persistem inúmeras atividades
meio, relacionadas à operacionalização do sistema, além d
outras atividades correlatas ao papel das assistentes sociais
que se sobrepõe na prática cotidiana e que, portanto,
45
dificultam o processo de atribuição de custos. Por exemplo,
as equipes de assistência social que atuam nos CRAS, ao
mesmo tempo em que desenvolvem sua atividade finalística,
atuam na supervisão de casos de cadastros problemáticos ,
atualizam os cadastros quando realiazam o atendimento
social, etc. O mesmo se verifica quando o cadastramento fica
a cargo de agentes de saúde ou de profissionais de outras
áreas.
3.III.2. Aspectos Positivos
i . Amadurecimento Institucional : apesar das dificuldades
que persistiam na operacionalização do CadÚnico , é comum
entre a maioria dos gestores a opinião de que esse
instrumental , associado ao Programa Bolsa Família e à
regulamentação do SUAS (Sitema Único de Assitência Social)
induziu o desenvolvimento instit ucional da área de
assistência social nos municípios. Nota -se que quanto menor
o município, mais forte é esse processo de indução.
j . Alternativas de Operacionalização : considerando que, por
conta da autonomia política e administrativa, cada município
pode decidir a melhor maneira de executar as tarefas que lhe
compete na gestão do CadÚnico , há uma variedade de
procedimentos que são experimentados na gestão local.
Entre essas, têm destacada eficácia os processos de
cadastramento descentralizados, em especial q uando
realizados por agentes sócias ou por agentes de saúde da
família. Municípios que adotaram práticas como essa s
conseguem trabalhar com uma base cadastral de melhor
qualidade, seja porque os dados são mais fidedignos
(checados in loco), seja porque a freqüência de atualização é
46
significativamente maior. Além disso, essa forma de
abordagem é menos onerosa para os beneficiários e permite
otimizar os próprios recursos das secretarias municipais.
k. Intersetorialidade e usos alternativos : principalmente nos
municípios de maior porte é apontado que a base de
informações do CadÚnico , apesar de suas limitações, tem
atraído o interesse de outras secretarias (em especial
educação, trabalho e renda e habitação), seja para realização
de diagnósticos e ações de planejamento, seja na
identificação de beneficiários para outras políticas públicas.
Os gestores daqueles municípios apontam também que há
um crescente interesse de pesquisadores ligados à
universidades no uso das informações do CadÚnico .
IV. Considerações sobre o caso Brasileiro
Ao analisar o atual sistema de informações sociais – CadÚnico –
que serve como in strumental para o mais destacado programa de
transferência de renda do Brasil – o Programa Bolsa Família – e seus
impactos sobre os usuários finais é inescapável encontrar uma
grande diversidade de situações que, de certa forma, revelam um
tanto da própria história de desenvolvimento sistema. O fato da
presente pesquisa ter sido realizada em meio a um important e
processo de migração de uma versão a outra – talvez fosse mais
apropriado considerar que se trata de uma transi ção para um novo
sistema – amplificou ainda mais as disparidades, pois os municípios
se encontravam em diferentes estágios de maturidade e qualificação
para atravessar esse momento de transição . Porém, se por um lado
essa circunstância possa ter impedido o perfeito enquadramento do
objeto da pesquisa, por outro, permitiu a interlocução com atores
especialmente motivados para refletir sobre a monumental tarefa de
47
construção de um sistema de informações sociais da dimensão e
complexidade do CadÚnico .
Quando se analisa retroativamente os principais apontamentos
reunidos a partir das entrevistas com os gestores locais (cap III),
nota-se que muitas das questões levantadas foram enfrentadas e
equacionadas pela Versão 7, indica ndo razoável sintonia entre os
gestores das diferentes instâncias de governo em relação as desafios
colocados.
Claro que ainda persistem aspectos que precisam ser melhor
desenvolvidos, lacunas ou restrições que limitam seu uso em toda a
sua potencialidade . Os gestores locais vislumbram o CadÚnico
integrado a outros campos das políticas sociais – educação, saúde,
trabalho e renda – e até mesmo funcionando como “sistema local de
informações gerenciais” . Entre os apontamentos mencionados no
capítulo anterior, aqueles considerados nos itens “C” , “D” e “E” não
estão plenamente atendidos com a Versão 7. Entret anto, pode-se
dizer que com a nova versão estarão sendo vencidas as deficiências
críticas do sistema e que, portanto, após concluídas as etapas de
implantação e de adequação do sistema às singularidades locais,
teremos de fato um “sistema integrado de info rmações sociais” a
serviço dos programas destinados às populações de baixa renda .
48
4. Conclusões
A pesquisa comparada das experiências de desenvolvimento
dos “Sistemas de Informações Sociais” do Chile e do Brasil é
reveladora e simbólica daquelas diferenças a que se fez referência no
capítulo introdutório. Apesar disso, vencidas as etapas de
desenvolvimento propriamente dito dos SIS em cada país, parece
evidente que os produtos finais guardam muitas similitudes. Ou seja,
as trajetórias percorridas foram muito díspares, desde as etapas de
concepção, planejamento, implementação e consolidação, mas as
resultantes são bastante convergentes.
Aos que são apenas usuários dos sistemas (Ficha de Proteccion
Social ou CadÚnico) ou também àqueles que se dedicam à construção
das arquiteturas de T.I. , talvez baste conhecer as versões fina is de
cada qual. Não cabe imaginar que tenham interesse em vasculhar as
versões antigas e os malogrados processos de experimentação que
foram vencidos no percurso. Contudo, aos que lidam com o
desenvolvimento de políticas públicas, conhecer o contexto histórico,
a dinâmica política, institucional e tecnológica é tão ou mais profícuo
do que compreender o produto final. E é precisamente nesse sentido
que cotejar as experiências chilenas e brasileiras é um exercício dos
mais ricos.
O Chile, como vimos, é um país de radical singularidade. A
centralização política, por exemplo, com 98% das receitas tributárias
concentradas no governo central, expressa bem a baixa autonomia
dos governos subnacionais e, por conseguinte, a maior facilidade de
implantação de sistemas integrados e de abrangência nacional.
Comparativamente, os custos de transação no Chile são infinitamente
menores do que no Brasil, onde existem, por exemplo, mais de 5 mil
municípios com autonomia política, f iscal e administrativa e que,
portanto, configuram um cenário onde a pactuação política é das
tarefas mais desafiadoras.
49
Contudo, feitas as devidas ressalvas referentes às
singularidades de cada país, creio que a diferença fulcral entre as
duas experiências investigadas aqui diz respeito aos fatores que
estiveram presentes na gênese de cada uma das trajetórias de
desenvolvimento dos sis temas.
O percurso percorrido para se chegar à atual Ficha de
Protección Social é notável, tanto no que diz respeito a sua longa
cronologia, quanto à gradual modulação do sistema ante as
transformações tecnológicas e o amadurecimento das próprias
estratégias de políticas sociais implementadas no país - desde logo, o
fato de dispor de um Registro Único Nacional (RUN) e erigir , a partir
dessa base de identificação , um sistema integrado de informações
sociais, é um diferencial dos mais relevantes e, ao mesmo te mpo, dos
mais difíceis de serem transpostos a outros contextos nacionais.
No Brasil, por outro lado, desenvolveu-se o que chamei de um
sistema “ad doc”, no qual as urgências pontuais para implantar
diferentes ações de políticas sociais foram se somando num a
constelação de soluções tecnológicas parciais que, ao final, exigiram
um esforço institucional de grande monta para erigir um sistema de
informações sociais consistente, tal qual é a versão 7 do CadÚnico . De
início, porém, o CadÚnico foi se configurando não como um “Sistema
Integrado de Informações Sociais ” ou um “Sistema de Gestão de
Informações” propriamente dito, mas tão somente como um banco de
dados que além de armazenar as informações dos beneficiários,
permitia identificar, em tempo hábil, a client ela especifica para cada
programa. Tratava-se, assim, do que Wiseman (1999) denominava de
um Sistemas de Gestão de Informação “passivo”, cuja base de dados
não previa análises intertemporais – histórico dos casos - nem
tampouco possibilitava o registro de eventos ou a estratificação por
agrupamentos sociais específicos, definidos, por exemplo, por
similitudes socioeconômicas ou territoriais. Os sistemas de gestão de
informação do tipo passivo refletem uma determinada concepção –
50
passiva – da política de assistência social, que enxerga a atenção ao
usuário como uma ação pontual destinada a resolver uma
circunstância temporária. Dessa perspectiva, sempre que necessário,
o agente público demanda do sistema a relação de todos aqueles que
se encontram em dada circunstância considerada problemática. Uma
vez atendidas as necessidades, vencidas as circunstâncias ou o prazo
legal definido pelo programa, os registros perdem significância,
dando lugar às informações de nova clientela 37.
Em contraposição, um sistema de gestão da informação do tipo
ativo deveria permitir o fácil manejo do banco de dados para
subsidiar os gestores não só na solução de problemas pontuais, mas ,
principalmente, na formulação e na execução de políticas de médio e
longo prazos, que exigem um acompanhamento das trajetórias e
ferramentas mais acuradas de avaliação de impacto.
Nesse sentido, lembrando das atuais configurações da Ficha de
Protección Social e do CadÚnico , talvez caiba dizer que o primeiro é
claramente um sistema do tipo ativo e que o CadÚnico – que na atual
versão já inclui um “data-warehouse” 38 e disponibiliza alguns
aplicativos de “business intelligence” 39 – transita de um sistema
passivo para um ativo.
Cabe salientar também que na comparação entre os dois
modelos – FPC e CadÚnico – o do Chile encontra -se um passo a frente
na integração com bases de dados utilizadas por outras esferas
37 Em contraposição, Wiseman define como Sistema de Gestão da Informação ativo aquele que serve a uma abordagem situacional, na qual o indivíduo alvo da política de assistência é visto como agente da situação e, portanto, não se trata de ofertar um benefício apenas para resolver ou eliminar o problema, mas de definir eventos sucessivos que, junto com o indivíduo, farão modificar a situação. Nessa abordagem, o MSI deve necessariamente permitir o armazenamento os sucessivos eventos relacionados a cada indivíduo, tanto para que se possa analisar e gerir as trajetórias individuais, tanto para que se possa avaliar os impactos dos eventos em diferentes grupos sociais e avaliar a respectiva efetividade como fator de transformação da situação.
38 Termo utilizado pelos especialistas em Tecnologia da Informação para designar aplicativos capazes de armazenar informações múltiplas e intertemporais, de tal forma que se possa recuperar trajetórias de indivíduos ou de grupos sociais e manejá-las para atender distintas demandas por informações.
39 Refere-se ao processo de coleta, organização, análise, compartilhamento e monitoramento de informações que possam subsidiar os processos de gestão.
51
governamentais, isto que o RUN serve de chave comutadora para a
troca de informações. Já no caso brasileiro, essa integração é ainda
um grande desafio a ser vencido. Nas grandes áreas da gestão pública
federal existem outros tantos sistemas de informações sociais em uso
(CadSUS; INSS, RAIS, CAGED, entre outros), com qualidades similares
e usos bastante disseminados, cuja integr ação depende não só de
aspectos tecnológicos, mas também de definições políticas nada
triviais. Contudo, em um cenário de médio prazo, é possível
vislumbrar uma efetiva compatibilização dessas bases de dados, uma
vez que por iniciativa do Ministério da Jus tiça está sendo implantado
no país um número único de identificação individual – o Registro de
Identidade Civil .
Por fim, consideradas todas as particularidades de cada
experiência, creio que os trajetos tri lhados por Brasil e Chile para a
constituição de seus sistemas de proteção social compõe um acervo
bastante rico para aqueles que atuam nas distintas dimensões d o
desenvolvimento de sistemas de informações sociais. Ambos os
países tem hoje um instrumental especialmente calibrado para
atender aos programas sociais que requerem uma abordagem
minuciosa das múltiplas determinantes que afetam a vida das
famílias em situação de pobreza. Embora frequentemente associados
às ditas políticas de “focalização”, estes aparatos tecnológico são
antes ferramentas precisas que servem às estratégias minimalistas de
enfrentamento das vicissitudes que afetam as populações
contemporâneas. Nesse sentido, são fundamentalmente instrumentos
de grande relevância para a promoção da equidade no acesso aos
direitos sociais.
52
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