Dissertação final - Marcus Losanoff agosto 2021.pdf

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIA E COTIDIANO MARCUS VINICIUS LOSANOFF REPRESENTAÇÃO, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA MUSICAL NO DOCTV AMÉRICA LATINA Rio de Janeiro 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIA E COTIDIANO

MARCUS VINICIUS LOSANOFF

REPRESENTAÇÃO, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA MUSICAL

NO DOCTV AMÉRICA LATINA

Rio de Janeiro

2021

2

MARCUS VINICIUS LOSANOFF

REPRESENTAÇÃO, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA MUSICAL

NO DOCTV AMÉRICA LATINA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Mídia e Cotidiano, Área de

Concentração Discursos Midiáticos e Práticas

Sociais, na Linha de Pesquisa 1 – Linguagens,

Representações e Produção de Sentidos, do

Instituto de Arte e Comunicação Social da

Universidade Federal Fluminense (IACS/UFF),

como requisito final para obtenção de título de

mestre em Mídia e Cotidiano, sob a orientação

da Professora Doutora Denise Tavares.

Rio de Janeiro

2021

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MARCUS VINICIUS LOSANOFF

REPRESENTAÇÃO, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA MUSICAL

NO DOCTV AMÉRICA LATINA

Texto da defesa apresentado ao Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano

(PPGMC), como requisito final para a obtenção de título de mestre em Mídia e Cotidiano, sob

a orientação da Professora Doutora Denise Tavares da Silva.

Texto da defesa apresentado em 19/08/2021

________________________________________________________________

Profª. Drª. Denise Tavares da Silva (PPGMC/UFF) - Orientadora

________________________________________________________________

Marco Schneider (PPGMC/UFF e IBICT/UFRJ) Membro 1

________________________________________________________________

Guilherme Maia (PósCom/ UFBa) Membro 2

Niterói

2021

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho não teria sido possível sem a contribuição direta ou indireta de inúmeras

pessoas, não apenas durante os meus dois (intensos) anos dedicados ao mestrado e à pesquisa

acadêmica, mas também no convívio cotidiano surgido em distintos momentos de minha

trajetória de vida, seja em caráter profissional ou, sobretudo, pessoal. Agradeço primeiramente

à Professora Dra. Denise Tavares e ao Programa de Pós-graduação em Mídia e Cotidiano da

Universidade Federal Fluminense, bem como às demais professoras, professores e colegas de

mestrado. Sou muito grato à Professora Denise, pois, como orientadora, se interessou por esta

pesquisa desde o processo seletivo, acolhendo o projeto em que pese a dificuldade inicial de

aderência do mesmo à linha de pesquisa; e, assim, logramos êxito em trabalhar a música e o

audiovisual latino-americano no mesmo objeto. Ademais, a professora Denise ministrou de

forma potente a disciplina Mídia e Cotidiano, e ofereceu conteúdo imprescindível para este

trabalho, além de me trazer à centralidade ao direcionar e, também, dar sentido às minhas ideias.

Sou igualmente grato ao jornalista Fernando Rosa, cujo trabalho e militância político-

cultural de décadas - tanto pelo intercâmbio e integração musical do Brasil aos vizinhos da

América Latina quanto por sua antiga luta pela democracia no País - têm sido motivos de

inspiração e aprendizado constantes para mim. Impossível não mencionar Manuela Carcelén,

Laura Brizuela e Andrés Pinzón, que me mostraram na prática cotidiana (desde Buenos Aires)

o que significava o conceito de integração latino-americana através do afeto e da amizade

inerentes a pessoas do Equador, Argentina e Colômbia. Laura inclusive seria uma das minhas

principais incentivadoras para que eu ingressasse em uma pós-graduação; assim como Carla

Sobrosa que, desde os idos de 2002, via o mestrado como um norte possível (de fato) para mim.

Gracias, Adriano De Angelis, por suas singulares (e plurais) “contribui-sons”. Agradeço

muitíssimo à Bianca Rosa por nossa linda amizade e parceria, além da sincronicidade de ideias

e visões de mundo enquanto grande jornalista, pesquisadora e pensadora; e ainda minha colega

e ouvinte mais próxima e empática durante o mestrado, mesmo desde outra instituição e estado.

Sou imensamente guiado e inspirado por Ana Caroline Palácios, presente (e um presente) em

minha vida há mais de duas décadas “apenas” sendo quem é, e isso é muito (é tudo, na verdade).

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Por fim, me faltam palavras para descrever o quanto minha companheira Ana Paula tem

sido importante para o meu crescimento como acadêmico, companheiro, pai e ser humano. Ana

representa todos os predicados descritos acima unidos à mesma pessoa, expressando, pois,

muito amor, generosidade, parceria, diálogo e inspiração; sempre acreditando em mim e há

quatro anos compartilhando a maior alegria da vida de ambos: nosso maravilhoso filho Martín.

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Dedico este trabalho à minha mãe, Marlene

Barcelos Lima (in memorian) e à minha avó,

Gilda Barcellos de Lima (in memorian), vivas

e presentes em mim - ontem, hoje e até o fim.

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RESUMO

A partir do estudo de três documentários produzidos na edição La Musica, do programa

DOCTV Latinoamérica (DOCTV América Latina, no Brasil), este trabalho tem por objetivo

discutir a linguagem e as narrativas destas obras levando em conta o histórico de resistência

e de busca por integração da América Latina. Para tanto, recupera, brevemente, os conceitos

e paradigmas que envolvem a criação do Programa e, de igual modo, procura discutir as

conjunturas que permeiam as estratégias de resistência cultural e de integração da região,

focando, especialmente, na música de protesto, em particular a produzida a partir de 1960. Tal

abordagem ocorre em paralelo às teorias da identidade e da construção da memória enquanto

norteadoras dessas representações presentes nesta edição dedicada à música do DOCTV

Latinoamérica. Em função do amplo escopo – ao todo, foram 18 obras produzidas nesta edição

- a dissertação foca os documentários Isabel, la criolla (Argentina); Hasta el fín de Delfín

(Equador) e “No gargalo do samba” (Brasil). A escolha deve-se à proposta de constituir uma

amostra que, além do Brasil, pudesse expressar a relação do país com os vizinhos do

continente: uma, de maior proximidade, que é o caso da Argentina e, outra, à distância,

inclusive geográfica (por não possuir fronteira com o Brasil), que é o Equador. O cotidiano

midiatizado e a função social do audiovisual fazem parte do cenário que contextualiza a

pesquisa enquanto estratégias de um território que busca afirmar a sua singularidade ancestral,

contrapondo-se a um processo histórico de esvaziamento da diversidade na cultura, sobretudo

a musical, através dos séculos. Entre os autores que balizam este trabalho estão Jesús Martín

Barbero, Ailton Krenak, Darcy Ribeiro, Stuart Hall, Catherine Walsh, Néstor García Canclini,

Agnes Heller e Nildo Viana. Em termos metodológicos, optamos pela revisão bibliográfica e

documental a partir dos eixos centrais da investigação somado às discussões sobre a criação

e demais produções do Programa DOCTV Latinoamérica.

.

Palavras-chave: 1. Representação social; 2. Resistência musical; 3. Identidade cultural; 4.

Integração latino-americana; 5. Documentários musicais

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ABSTRACT

Based on the study of three documentaries produced in the La Musica edition of the DOCTV

Latinoamérica program (DOCTV América Latina, in Brazil), this work aims to discuss the

language and narratives of these works taking into account the history of resistance and the

search for integration in Latin America. To this end, it briefly recovers the concepts and

paradigms surrounding the creation of the Program and, equally, seeks to discuss the

circumstances that permeate the strategies of cultural resistance and integration in the region,

focusing especially on protest music, in particular. particularly that produced since 1960. This

approach occurs in parallel with theories of identity and the construction of memory as guiding

these representations present in this edition dedicated to the music of DOCTV Latinoamérica.

Due to the wide scope - in all, there were 18 works produced in this edition, the dissertation

focuses on the documentaries Isabel, la criolla (Argentina); Hasta el fin de Delfín (Equador)

and No gargalo do samba (Brazil). The choice is due to the proposal of constituting a sample

that, in addition to Brazil, could express the country's relationship with the continent's

neighbors: one, of greater proximity, which is the case of Argentina and the other, at a distance,

including geographic (for not having a border with Brazil), which is Ecuador. The mediatized

daily life and the social function of the audiovisual are part of the scenario that contextualizes

the research as strategies of a territory that seeks to affirm its ancestral uniqueness, in opposition

to a historical process of emptying the diversity in culture, especially the musical, through

centuries. Among the authors that guide this work are Jesús Martín Barbero, Ailton Krenak,

Darcy Ribeiro, Stuart Hall, Catherine Walsh, Néstor García Canclini and Agnes Heller and

Nildo Viana. In methodological terms, we opted for bibliographic and documentary revision

based on the central axes of the investigation added to the discussions about the creation and

other productions of the DOCTV Latinoamérica Program.

Keywords: 1. Social representation; 2. Musical resistance; 3. Cultural identity; 4. Latin

American integration; 5. Musical documentaries

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RESUMEN

Basado en el estudio de tres documentales producidos en la edición La Musica del programa

DOCTV Latinoamérica (DOCTV América Latina, en Brasil), este trabajo tiene como objetivo

discutir el lenguaje y las narrativas de estos trabajos teniendo en cuenta la historia de resistencia

y la búsqueda de integración en América Latina. Con este fin, recupera brevemente los

conceptos y paradigmas que rodean la creación del Programa y, igualmente, busca discutir las

circunstancias que impregnan las estrategias de resistencia e integración cultural en la región,

centrándose especialmente en la música de protesta, en particular. particularmente el producido

desde 1960. Este enfoque ocurre en paralelo con las teorías de identidad y la construcción de

la memoria como guía de estas representaciones presentes en esta edición dedicada a la música

de DOCTV Latinoamérica. Debido al amplio alcance, en total, se produjeron 18 obras en esta

edición, la disertación se centra en los documentales Isabel, la criolla (Argentina); Hasta el fin

de Delfín (Equador) y No gargalo do samba (Brasil). La elección se debe a la propuesta de

constituir una muestra que, además de Brasil, pueda expresar la relación del país con los

vecinos del continente: una, de mayor proximidad, como es el caso de Argentina y la otra, a

distancia, incluso geográfica. (por no tener una frontera con Brasil), que es Ecuador. La vida

cotidiana mediatizada y la función social del audiovisual son parte del escenario que

contextualiza la investigación como estrategias de un territorio que busca afirmar su

singularidad ancestral, en oposición a un proceso histórico de vaciar la diversidad en la cultura,

especialmente el musical, a través de siglos. Entre los autores que guían este trabajo están Jesús

Martín Barbero, Ailton Krenak, Darcy Ribeiro, Stuart Hall, Catherine Walsh, Néstor García

Canclini, Agnes Heller y Nildo Viana. En términos metodológicos, optamos por una revisión

bibliográfica y documental basada en los ejes centrales de la investigación añadida a las

discusiones sobre la creación y otras producciones del Programa DOCTV Latinoamérica.

Palabras clave: 1. Representación social; 2. resistencia musical; 3. identidad cultural; 4.

integración latinoamericana; 5. documentales musicales

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Torres gêmeas (chroma key) - Fonte: Print de Hasta el fín de Delfín.

Figura 2: sala do apartamento de Delfín - Fonte: Print de Hasta el fín de Delfín.

Figura 3: fachada do comércio de Delfín Quishpe - Fonte: Print de Hasta el fín de Delfín.

Figura 4: cholos e cholas dançando junto a Delfín e Rosario - Fonte: Print de Hasta el fín de

Delfín.

Figura 5: Nereu Gargalo e a “Igreja dos Homens Pretos” - Fonte: Print de “No Gargalo do

samba.”

Figura 6: Nereu Gargalo em palco vazio - Fonte: Print de “No Gargalo do samba.”

Figura 7: Nereu Gargalo em frente a imagens sacras - Fonte: Print de “No Gargalo do samba.”

Figura 8: Nereu Gargalo em terreiro de umbanda - Fonte: Print de “No Gargalo do samba.”

Figura 9: Trio Mocotó anuncia carreira própria - Fonte: Print de “No Gargalo do samba.”

Figura 10: Isabel Aretz analisa performance de aluna tocando harpa – Fonte: Print de Isabel,

la criolla.

Figura 11: Mario Silva na varanda de sua casa - Fonte: Ptint de Isabel, la criolla.

Figura 12: arco-íris sobre os Mapuche no ritual Nguillatun – Fonte: Print de Isabel, la criolla.

Figura 13: Ramón Cayumil Pillén tocando Kul Kul – Fonte: Print de Isabel, la criolla.

Figura 14: formação dos participantes do baile chino – Fonte: Print de Isabel, la criolla.

Figura 15: automóvel alusivo a Isabel Aretz entre Mario Silva e Claudio Mercado - Fonte:

Print de Isabel, la criolla.

Figura 16: Claudio Mercado toca flauta Pfilca em baile chino - Fonte: Print de Isabel, la

criolla.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 11

2. MÚSICA, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA NA AMÉRICA LATINA ....................... 22

2.1 Breve histórico da música de protesto na região: psicodelia e rebeldes com causa ....... 22

2.2 Indústria Cultural e Identidade Cultural: distintas formas de (re)existência musical ..... 33

2.3 Representações sociais no cotidiano e identidades musicais latino-americanas ............ 54

3. UM OLHAR SOBRE AUDIOVISUAL LATINO-AMERICANO ........................... 69

3.1 Sobre o Nuevo Cine e o Neorrealismo cotidiano ....................................................... 71

3.2 Regulação e integração latino-americana: dos meios às imediações audiovisuais ......... 82

3.3 Do documentário à representação antropológica ............................................................ 91

4. ANÁLISE DE DOCUMENTÁRIOS MUSICAIS DO CAPÍTULO LA MÚSICA.. 101

4.1. Hasta el fin de Delfín: entre o hibridismo e a afirmação das origens andinas ............... 104

4.1.1. (Sub)representação em Hasta el fín de Delfín: ironia e auto-celebração .............. 106

4.1.2. Memória e identidade em Hasta el fín de Delfín: política e re-conhecimento ....... 112

4.1.3. Integração latino-americana em Hasta el fín de Delfín: concertos e afetos ........... 122

4.2. No gargalo do samba: estilo autoral, trânsitos musicais e religiosidade sincrética ........ 123

4.2.1. (Sub)representação em No Gargalo do samba: sonoridades e auras ausentes ....... 124

4.2.2. Memória e identidade cultural em No Gargalo do samba: ao redor das raízes ...... 128

4.2.3. Integração Latino-”amefricana” em No Gargalo do Samba ................................ 138

4.3. Isabel, la criolla: paralelismos temporal e musical ......................................................... 139

4.3.1. (Sub)representação em Isabel, la criolla: ausências e silêncios ostensivos ........... 140

4.3.2. Memória e Identidade em Isabel, La Criolla: imbricando presente e passado ...... 144

4.3.3. Integração latino-americana em Isabel, la criolla: memória presente .................... 157

4.4. Discutindo os resultados ................................................................................................. 161

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 171

6. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 178

7. FILMOGRAFIA ............................................................................................................ 190

8. MUSICOGRAFIA ......................................................................................................... 191

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1. INTRODUÇÃO

Pretendemos neste trabalho investigar como as representações sociais de identidade,

resistência e integração latino-americanas têm sido abordadas nos documentários musicais

produzidos atualmente na América Latina. Para tanto, analisamos as obras audiovisuais Isabel,

la criolla, da Argentina, Hasta el fin de Delfín, do Equador e “No gargalo do samba”, do Brasil,

que integram a edição La Música do Programa DOCTV Latinoamérica (DOCTV América

Latina, no Brasil). O foco no Programa justifica-se pelo mesmo ter sido criado a partir de

conceitos e paradigmas de incentivo à produção e teledifusão de documentários enquanto mais

uma estratégia de integração e de intercâmbio cultural da região. Quanto ao recorte da referida

edição, esta pauta-se pelo nosso olhar sobre o potencial da música como expressão cultural

potente da identidade e resistência dos povos, diagnóstico, aliás, afinado, à própria proposta

desta edição especial do DOCTV.

O cotidiano midiatizado e a função social do audiovisual fazem parte do cenário que

contextualiza a pesquisa enquanto estratégia de um território que busca afirmar a sua

singularidade ancestral se contrapondo a um processo histórico de esvaziamento da

diversidade na cultura, sobretudo a musical, através dos séculos. Dentre os autores que

fundamentam nosso trabalho destacamos Jesús Martín Barbero, Ailton Krenak, Darcy

Ribeiro, Stuart Hall, a estadunidense Catherine Walsh e o argentino Néstor García Canclini.

Também nos valemos, para as discussões sobre cotidiano e para a análise dos documentários,

de autores como Maya Da-Rin, Fernão Ramos, Lélia Gonzalez, entre outros. Em termos

metodológicos, optamos pela revisão bibliográfica e documental a partir dos eixos centrais da

investigação somada às discussões sobre a criação e demais produções do Programa DOCTV

Latinoamérica. E, finalmente, nos dedicamos à análise dos documentários musicais buscando,

em especial, construir uma amostra cuja referência-base seja o Brasil, além de duas outras

obras que a nosso ver expressam a própria relação do país com os “vizinhos” do continente:

uma de maior proximidade, que é o caso da Argentina, e outra à distância, inclusive geográfica

(por não possuir fronteira com o Brasil), que é o Equador.

Esta dissertação visa igualmente perceber se diálogos, cosmovisões e conexões

culturais aparentes e ocultas ocorridas entre países da América Latina no passado estão

representadas de alguma forma pelas lentes dos cineastas oriundos da região. Também busca

entender o recorte proposto pelos documentaristas no que tange à escolha dos cenários,

manifestações musicais e singularidades culturais. Pressupõem-se abordagens que

contemplem de igual modo o passado ancestral (e pré-colonial) e sua relação direta com o

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momento presente, bem como o papel das ancestralidades enquanto legado essencial (ainda

que despercebido) na formação e no cotidiano das sociedades latino-americanas

contemporâneas (CANCLINI, 2017); (RIBEIRO, 2014).

Os documentários musicais selecionados para esta pesquisa serão analisados e

discutidos considerando algumas questões que envolvem a ideia de uma integração latino-

americana possível na atual conjuntura midiático-cultural e geopolítica do século XXI. Um

cenário que retoma, de certo modo, observar as identidades culturais expressas a partir do

protagonismo musical popular e periférico enquanto possibilidade não apenas de geração de

afeto, identificação e representação, mas também como perspectiva de transformação social,

sobretudo no Brasil. Almejamos que isto seja potencialmente viável no País do ponto de vista

histórico, tanto na absorção da latinidade que dê sentido a uma – até o momento - fragmentária

identidade nacional, quanto na autopercepção do indivíduo sobre a sua identidade latino-

americana (RIBEIRO, 1995). Tal olhar nos fez buscar a gênese da criação do Programa

DOCTV América Latina que, segundo Orlando Senna1, além de ser o mais vitorioso de todos

os projetos desenvolvidos a partir do que foi iniciado em 2003 no âmbito do Ministério da

Cultura do Brasil, isto é, o DOCTV Brasil2, acrescentava a este a proposta de ajudar a

solidificar e dar uma forma mais visível à identidade latino-americana.

De todo modo, é o diagnóstico positivo da experiência brasileira de fomentar o

audiovisual e criar um mercado exibidor que levou Orlando Senna, em 2004, a propor à

Fundación de Nuevo Cine Latino-Americano, FNCL, criar um programa de fomento e

teledifusão de documentário na América Latina e Caribe. Em março de 2005, Gabriel García

Maárquez, então presidente da FNCL, enviou uma nota à Conferencia de Autoridades

Cinematográficas y Audiovisuales de Iberoamérica (CAACI), propondo uma versão similar do

programa desenvolvido no Brasil, mas expandindo-o para os demais países da região. Um ano

1 Em entrevista realizada para Roberta Perini, em 28 de setembro de 2011, para projeto de Iniciação Científica

intitulado “O audiovisual e as estratégias de integração latino-americana: o caso DOCTV América Latina”, com

bolsa CNPq (2011-2012), e orientado por Denise Tavares. Orlando Senna, um dos mais ativos cineastas do país

desde os anos 1960, foi Secretário do Audiovisual de 2003 a 2007, ou seja, desde o início do governo do presidente

Luís Inácio Lula da Silva. 2 Na verdade, o projeto DOCTV AL deve muito ao DOCTV Brasil, que lhe antecede e cuja matriz está ligada a

Mário Borgneth, cineasta e militante que de 1998 a 2004, à frente da TV Cultura de São Paulo, criou um horário

fixo (sábado, às 21 h), para o DOC Brasil, dedicado às co-produções e/ou produções nacionais recentes de

documentário. Essa faixa foi assumida pelas produções do DOCTV Brasil que, por sua vez, foi criado como uma

iniciativa da Secretaria de Audiovisual do Ministério da Cultura, em conjunto com a Rede Pública de Televisão e

a Associação Brasileira de Documentarista (ABD). Mais sobre a proposta e percurso do DOCTV em Maria do

Rosário Caetano (2011).

15

depois o programa é oficializado na cidade de Mar del Plata, Argentina, durante a XVI Reunião

Extraordinária da CAACI (MÁRQUEZ; CEDEÑO , 2011).

A primeira edição do DOCTV Ibero-América (como seria denominado

originalmente) contaria com a participação de 13 países (número ampliado para 18, nas

edições seguintes) e seria coordenada por uma unidade técnica baseada no Brasil. Através do

fundo de apoio ibero-americano Ibermedia (vinculado à CAACI) há aportes financeiros e

editais são abertos com foco nos produtores de cinema independentes oriundos dos países-

membros latino-americanos, além de Espanha e Portugal. A edição La Música foi a sexta do

Programa, e ocorreu em 2018. Nela, foram contempladas 16 produções documentais no

âmbito de 18 nações do continente ligadas atualmente ao DOCTV, tendo como países

participantes: Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Chile, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia,

Venezuela, Guatemala, Nicarágua, Panamá, Costa Rica, Porto Rico, República Dominicana,

Cuba e México. Vale mencionar que após selecionados os documentários são distribuídos para

as redes de TV públicas dos países coligados à iniciativa. No Brasil, até 2018, quando foi ao

ar pela TV Brasil (EBC) a edição do programa dedicada às obras documentais, a Agência

Nacional de Cinema (Ancine) e a EBC faziam parte do grupo de filiados à RED DOCTV.

Como já colocado, destacamos nesta edição três documentários. O argentino Isabel, la

criolla (dirigido por Marcel Czombos, 2018) tem como argumento-chave a defesa da América

enquanto continente musicalmente autônomo, propondo revisar o trabalho realizado pela

musicóloga argentina Isabel Aretz (1909-2005) na década de 1940. O etno-musicólogo

argentino Mario Silva e o pesquisador chileno Claudio Mercado são os dois discípulos de Isabel

Aretz responsáveis por promover a mencionada investigação. Já a produção equatoriana Hasta

el fin de Delfín (dirigido por Fernando Mieles, 2018) acompanha o cotidiano do músico

indígena Delfín Quishpe responsável pelo videoclipe Torres gemelas, fenômeno cultural

andino, com mais de 19 milhões de visualizações no YouTube até o momento3. E, finalmente,

o documentário brasileiro “No gargalo do samba” (dirigido por Águeda Amaral, 2018), conta a

trajetória do músico Nereu Gargalo, um dos fundadores da banda de samba-rock Trio Mocotó,

criada no final dos anos 1960. Nereu Gargalo é um dos fundadores do grupo paulistano Trio

Mocotó, em 1968, junto de Fritz Escovão (cuica) e João Parahyba (percussão e bateria). Gargalo

cooperou igualmente como músico de apoio de Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho e

3 Videoclipe da canção Torres gemelas (2006), do músico equatoriano Delfín Quishpe. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=NecoBo0BhEk >. Acesso em: 30 jul 2020.

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Cartola. Da mesma maneira, o Trio Mocotó se apresentou em shows com Jorge Ben e gravaria

em estúdio com o músico carioca a partir do sexto álbum de sua carreira, “Jorge Ben”, em 1969.

Admitem-se nas três produções audiovisuais definidas como corpus desta dissertação

possíveis camadas e quiçá contradições a serem exploradas através da perspectiva do

hibridismo cultural (CANCLINI, 2015). Um hibridismo que, no contexto das sociedades

multiculturais, configura-se como movimento historicamente antigo no que tange à identidade.

Consta, segundo Stuart Hall, que a migração e os deslocamentos dos povos (a partir do século

XV) teriam constituído sociedades étnica ou culturalmente mistas. Porém, para o autor, a

apropriação multiculturalista “privilegia a cultura e a identidade em detrimento das questões

econômicas e materiais” (HALL, 2003, p. 54). Existem críticas ainda sobre a existência de um

“multiculturalismo de boutique”, comercializado e consumista, “que celebra a diferença sem

fazer diferença” (idem). E esta ideia de um multiculturalismo acrítico, responsável por

privilegiar a estética e o consumo em detrimento da representação e do discurso, manifesta-se

amplamente sob a égide homogeneizante da indústria cultural. Esta apresentaria um “mundo

sensível que acabaria substituído por uma seleção de imagens que existem acima dele, ao

mesmo tempo em que se faz reconhecer como o sensível por excelência” (DEBORD, 1997, p.

29). Para Debord, um simulacro do real, portanto.

Desta forma, é presumível pensar que dentro do espectro da chamada música pop são

abundantes os exemplos multiculturalistas oriundos do universo dito latino, onde artistas se

apropriam da estética, discurso e representação (inclusive na questão fenotípica e idiomática).

Fatores como as identidades culturais e a perspectiva histórica de integração latino-americana

acabariam reduzidos a estereótipos que responderiam a uma estética de consumo colonizada e

fetichizada; qualificada, ainda, como mera reprodução – e subalternização - de um padrão

industrial-cultural hegemônico. Consideramos os termos hibridismo cultural e

multiculturalismo conceitos-chave desta pesquisa e, por isso, ambos serão desenvolvidos de

forma mais aprofundada nos capítulos subsequentes desta dissertação.

E assim como justifica-se pensar a resistência musical como essencial na construção

da identidade cultural de uma nação, consideramos adequado questionar o recorrente argumento

relativo à suposta barreira do idioma existente entre o Brasil lusófono e as demais nações

latinas, hispanófonas, a maior parte delas. Entendemos que a desidentificação do brasileiro com

a latino-americanidade não deve estar circunscrita à questão idiomática – negligenciando desde

eventos geopolíticos que remontam ao período colonial, até interesses de mercado referentes à

indústria cultural. Por outro lado, é sabido que desde os tempos pré-coloniais praticava-se na

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região a livre troca de saberes ancestrais entre povos de distintas etnias, línguas e culturalidades,

oriundos dos diversos espaços subcontinentais de uma terra até então sem divisas e fronteiras.

A jornalista Rosana Bond conta em documentário sobre a história do Caminho do

Peabiru como os povos guaranis criaram – antes do ano 1500 - um conjunto de caminhos

transcontinentais (Atlântico-Pacífico) com cerca de quatro mil quilômetros de extensão,

partindo do litoral de Santa Catarina até a costa chilena. Consta no referido documental4 que a

principal utilidade do Peabiru havia sido a conexão estabelecida entre os indígenas do Atlântico

com os do Pacífico, estes basicamente regidos pelo Império Inca. Tratava-se de povos geradores

de cultura, conhecimento e arte específica, influenciando tanto os nativos da costa andina,

quanto da Amazônia – bem como os situados hoje na região sul do Brasil. As singularidades e

cosmovisões expressas na fala, música e costumes das distintas etnias fixadas ao longo do

Caminho do Peabiru não foram impeditivos para que ali houvesse uma busca orgânica por

integração entre os indígenas. Uma troca de saberes gerada séculos antes da formação e

posterior divisão territorial da América Latina atual, via conquistadores europeus.

O historiador, filósofo e líder indígena Ailton Krenak (2019), por sua vez, relembra na

série documental Guerras do Brasil5 que os povos guaranis, do Brasil, se relacionavam

intensamente com os nativos da região dos Andes, de etnias quéchua e aimará. É plausível

afirmar, deste modo, que a busca por integração é subjacente, inerente e constitutiva do

indivíduo deste continente, e inclusive anterior à miscigenação europeia imposta sobre

indígenas e africanos, responsável por “criar” o assim chamado latino-americano. E, da mesma

forma, é possível supor que este sujeito latino – do sul da Argentina ao norte do México - seja

natural e ancestralmente vocacionado a integrar-se; não por conta de uma crença eurocêntrica

calcada no cristianismo missionário e evangelizador, mas para atender a uma cosmovisão dos

povos originários baseada na harmonia com a natureza e na percepção do “Outro”. (CASTRO,

2002).

É sabido que alguns eventos-chave tiveram participação destacada após a chegada dos

europeus e posterior criação da América Latina no que tange à luta por independência e na

busca por uma unidade geopolítica e cultural dos povos da região. O processo de

descolonização promovido por Simón Bolívar (1783-1830) e José de San Martín (1778–1850)

4 “Caminho do Peabiru – De Lá Pra Cá”, transmitido pela TV Brasil em 2011. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=7SojNJmu4NM >. Acesso em: 27 nov. 2011. 5 Guerras do Brasil (Capítulo I – Guerras da Conquista), disponível na plataforma de filmes Netflix Brasil, desde

junho de 2019.

18

nas ex-colônias espanholas da América do Sul, entre os anos de 1816 e 1824, é certamente um

marco histórico nesse sentido; assim como o conceito de Pátria Grande, que busca integrar e

unificar política, econômica e culturalmente os países da região, surgido tão logo as nações

recém libertas do subjugo espanhol se formaram. E houve, claro, outros movimentos

independentistas e insurgências históricas anteriores à ação lograda pelos libertadores –

igualmente significativos.

E hoje podemos perceber como as atuais resistências identitárias no continente latino-

americano evocam a riqueza cultural das civilizações seculares predecessoras à chegada dos

europeus, como o império teocrático dos Incas, que se encontrava em seu apogeu quando

espanhóis e portugueses aportaram à região. Os Incas estendiam o seu poder de influência

cultural sobre uma faixa territorial que abrangia Peru, Bolívia e Equador, além de parte da

Colômbia, Chile, norte da Argentina e da selva brasileira. Estas sociedades autóctones

deixaram, pois, “numerosos testemunhos de sua grandeza, apesar do longo período de

devastação (europeia)” (GALEANO, 2008, p. 63). Esta análise é, provavelmente, um dos

motivos que levaram o autor a defender uma nação latino-americana sonhada por Bolívar, a

despeito de ponderar sobre a falta de condição essencial para a construção de uma grande nação

única: a comunidade econômica (op. cit, p. 334). Em termos culturais, podemos igualmente

apontar a mentalidade dos invasores e a dos ameríndios como opostas em certo sentido quando

lembramos, segundo Susan Ramírez (2005, apud Ramos, 2010) que os pré-capitalistas

europeus tinham na propriedade a fonte máxima de valor e de identidade; algo que não seria

compartilhado - ao menos não com o mesmo grau de importância e lógica valorativa - nas

culturas indígenas.

Segundo Néstor García Canclini, a identidade cultural latino-americana pode ser

definida a partir de suas raízes indígenas, inspirando-se nos “múltiplos e duradouros

movimentos de resistência indígena, e tendo o indo-americanismo como a reserva crítica e

utópica de uma solidariedade rebelde latino-americana” (CANCLINI, 2007, p. 166). Canclini

refere-se aos movimentos de resistência ocorridos nos últimos anos (décadas de 80 e 90 do

século XX) em regiões da Bolívia, Equador, Brasil, Guatemala e México. E a recente onda de

protestos sucedida em países como Equador, Chile, Colômbia e Bolívia, em 2019, expõe, de

igual forma, o protagonismo e perseverança indígena - bem como a solidariedade rebelde latino-

americana - frente à opressão do Estado na região. No Equador, por exemplo, a revolta popular

contra o chamado paquetazo (pacote econômico imposto pelo presidente Lenín Moreno, via

19

Fundo Monetário Internacional)6 revelou uma expressiva demonstração de mobilização,

resiliência e protagonismo de cidadãos andinos nas ruas daquele país. E após acordo firmado

entre o presidente Moreno e líderes dos movimentos indígenas locais7, o pacote neoliberal

acabou revogado, por força das insurreições populares.

Darcy Ribeiro (1995) defendia que os latino-americanos do final do primeiro milênio

teriam, enfim, a capacidade de gerar um gênero humano novo, cuja latinidade seria

culturalmente constituída como contingente humano (resultado dos processos comuns de

exploração territorial, colonização e descolonização). Este estaria igualmente qualificado, no

futuro, para impor sua latinidade, inclusive frente a chineses, eslavos e britânicos. (RIBEIRO,

1995, p. 454). Este potencial de liderança latina emergente percebido pelo antropólogo

brasileiro pode ser compreendido estruturalmente sob um viés pós-colonial, que entende a pós-

colonização como parte de um processo global essencialmente transnacional e transcultural

(HALL, 2003, p. 109), sendo que este prefixo pós seria igualmente pensado para além do

cronológico, isto é, sobretudo como superação colonial (HALL, 2003, p. 118). É possível

imaginar, ainda, uma capacidade de descolonização tanto do território quanto do indivíduo em

si, dando voz aos colonizados. A linguista estadunidense radicada no Equador, Catherine Walsh

(2005), propõe um processo de decolonialidade, buscando a reconstrução dos seres, do poder e

do saber. Um conceito que encorajaria não apenas o pensamento crítico, mas a práxis crítica,

criando alternativas ao eurocentrismo, através de um “projeto de transformação social, política,

epistêmica e humana” (WALSH, 2005, p. 31). Os termos pós-colonização e descolonização são

igualmente conceitos-chave desta pesquisa e serão mais bem aprofundados no decorrer dos

capítulos da dissertação.

A superação da perspectiva colonial eurocêntrica imposta por séculos sobre as

populações da América Latina necessitaria propor, de igual forma, uma mudança sobre algumas

efemérides celebratórias historicamente consagradas na região. A partir de um ponto de vista

crítico, o dia 12 de outubro de 1492, defendido desde a época dos colonizadores como marco

da descoberta da América, tem sido ressignificado, por exemplo, na região caribenha da

6 O presidente do Equador, Lenín Moreno, apresentou no dia 1 o de outubro de 2019 uma série de medidas

econômicas denominadas pelos críticos como paquetazo (pacotaço - tradução nossa), que liberariam o preço dos

combustíveis; bem como reformas laborais que poderiam impactar negativamente o custo de vida do país.

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=lZ6iXrQMhlM >. Acesso em: 30 jul 2020. 7 Referência nossa à matéria jornalística intitulada: Lenín Moreno y los dirigentes indígenas encuentran una

salida conjunta para la crisis de Ecuador (Lenín Moreno e os dirigentes indígenas encontram uma saída

conjunta para a crise do Equador – tradução nossa). Disponível em:

<https://www.elmundo.es/internacional/2019/10/14/5da3cabbfdddff1e928b4660.html >. Acesso em: 30 jul 2020.

20

Colômbia. Decidiu-se no estado de Atlántico, em 2019, substituir o antigo festejo referente à

chegada do navegador Cristóvão Colombo à costa americana pela Semana da Resistência Afro-

indígena, oferecendo atividades culturais que exaltam a preservação das culturas, línguas e

costumes indígenas e africanos (EL ESPECTADOR.COM, 2019, s/p).

Contudo, na margem oposta do oceano Atlântico, de acordo com a pesquisadora

portuguesa Marta Araújo, o ensino de História disseminado nas escolas de Portugal do século

XXI ainda perpetua o mito do bom colonizador e banaliza a escravidão. Após coordenar uma

pesquisa sobre os livros didáticos portugueses publicados entre 2008 e 2012, Marta concluiu

que a escravidão nestas obras é naturalizada e o racismo presente durante o colonialismo

português é escondido (BARRUCHO, 2017). A mesma situação se verifica em instituições de

ensino da Espanha que mantém uma abordagem romantizada e ficcional sobre a figura dos

invasores europeus e suas supostas conquistas. Assim, os colonizadores são vistos como

aventureiros responsáveis por grandes odisseias e, consequentemente, bem-sucedidos em

civilizar o Novo Mundo (JIMÉNEZ, 2018). Pressupõe-se, portanto, que fatos históricos como

o genocídio indígena, a escravidão de negros sequestrados da África e o saque e destruição de

riquezas culturais da América Latina permaneçam majoritariamente ocultos ou atenuados por

uma espécie de pedagogia do opressor8.

A partir do olhar sob a perspectiva da música nativa, admite-se situar as misturas

rítmicas latinas responsáveis por inúmeros gêneros e subgêneros musicais e danças populares.

Algumas dessas manifestações culturais se expressam simbolicamente, inclusive, tanto no

campo da resistência musical, quanto da identidade nacional, estando diretamente relacionadas

ao respectivo país de origem. E, também, relacionadas ao violento processo de miscigenação

via escravização de africanos e indígenas; como o tango (originário da cultura negra)9, na

Argentina; o candombe, no Uruguai; a salsa e a rumba, em Cuba; a cumbia, na Colômbia e o

samba, no Brasil. E mesmo em face ao inevitável processo histórico de proibição, apagamento

e posterior apropriação e docilização da música popular promovidos pela indústria cultural - de

estrutura branco-institucional -, a memória e as tradições ancestrais seguem vívidas no

continente.

8 O termo “pedagogia do opressor” faz referência ao livro “Pedagogia do Oprimido” (1972), de autoria do educador

e filósofo Paulo Freire. O sentido do termo aqui é inverso ao conceituado anteriormente pelo autor. 9 Referência nossa ao artigo El origen negro del Tango (A origem negra do Tango) publicado no site do Ministério

da Cultura da Argentina. Disponível em: .< https://www.cultura.gob.ar/el-origen-negro-del-tango_6929/ >. Acesso

em: 12 jul 2020.

21

E seguem representando uma expressão de luta sociocultural frente ao esvaziamento

de sentido sistemático, mantendo-se ativas de forma fecunda e relevantes atualmente; seja, por

vezes, nos rincões de onde se originaram, nos espaços trincados à força dentro dos meios de

comunicação de massa, ou nos becos e vielas periféricos dos grandes centros urbanos. Tal

processo de concepção de um gênero humano novo por meio da latinidade poderia ser entendido

ainda – igualmente pelo viés de resistência musical - como a evolução do popular urbano no

cotidiano, onde as danças indígenas características do vale agora seriam acompanhadas de

“orquestras modernas” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 289). Para Martín-Barbero, o

folclórico se fez popular celebrando a mescla da cultura ancestral ao urbano, e, também,

exaltando a fusão das músicas andina, negra e européia na América Latina. O autor destaca as

festas indígenas na região “menos pela ruptura com a cotidianidade, e sim por sua apropriação

transformadora: enquanto afirmação do comunitário” (op.cit, p. 276). Um exemplo: atualmente,

na aldeia Teoka Pyal, localizada na região do Pico do Jaraguá, na cidade de São Paulo, os

rappers indígenas Wera (“trovão” em guarani) e Xondaro (“guerreiro”, no referido idioma

indígena - integrante do grupo Oz Guaranis) compõem letras politizadas em guarani e

português. Os músicos denunciam em suas rimas o colonialismo e defendem a demarcação de

terras indígenas. Representam com o hip-hop tanto a mescla de uma cultura ancestral ao urbano,

como a afirmação de uma identidade indígena em busca de integração, alternando as duas

línguas com discurso de conteúdo crítico, produzido na forma de versos e batidas modernas

(VIEIRA, 2019).

Este trabalho sugere inverter a mirada histórica sobre o mapa da nossa América10, e

propor um novo devir a respeito da relação ambígua de identificação do brasileiro com a região,

calcada hoje entre o desprezo e o desejo de liderança nata sobre os países vizinhos. Segundo

reportagem do site BBC Brasil, publicada em 21 de dezembro de 2015, apenas 4% dos

brasileiros se definiam como latino-americanos. Contudo, a média em outros seis países da

região pesquisados (Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru) era de 43%. Os

autores da pesquisa concluíram que:

A autoidentificação do brasileiro é tênue e ambivalente, marcada pela percepção de

pertencer a uma nação diferente dos vizinhos, seja pela experiência colonial, língua

ou processo de independência distinto. A primeira explicação é a colonização.

América Latina sempre se associou à colonização espanhola, e isso já gera uma

10

O trecho “Inverter a mirada histórica sobre o mapa da nossa América” refere-se ao livro Nossa América, um

ensaio filosófico e político lançado pelo cubano José Martí, em 1891. E remete também à “América Invertida”,

título de um desenho produzido pelo artista hispano-uruguaio Joaquín Torres García, em 1943. A imagem expunha

uma representação do mapa da América do Sul de forma invertida, com a parte sul no topo – desenho influenciado

à época pelas cosmovisões ameríndias.

22

divisão com o passado português do Brasil”, afirma o argentino Fernando Mourón,

pesquisador do Centro de Estudo das Negociações Internacionais da USP e

participante do estudo regional. (GUIMARÃES, 2015).

Apesar das diferenças constitutivas apontadas em torno dos acontecimentos históricos

ocorridos nas Américas hispânica e luso-brasileira durante o período de colonização (e após),

acreditamos que as representações de identidade, resistência e integração latino-americana

estejam, contudo, presentes no Brasil, mesmo latentes. Através da análise dos documentários

musicais produzidos na região, objetiva-se refletir acerca do processo de construção da

memória brasileira e latino-americana e, desse modo, propor imaginar coletivamente novos

caminhos do Peabiru, traçados por notas e ritmos originais e originários da América Latina.

Em sintonia, portanto, com o que colocamos até aqui, esta dissertação encontra-se

estruturada em três capítulos. O primeiro capítulo, “Música, memória e resistência na América

Latina” apresenta, de modo sucinto, um percurso político-cultural de eventos cruciais para a

canção popular e de protesto latino-americana. Movimentos como Nuevo Cancionero, Nueva

Canción Chilena e Tropicália, respectivamente surgidos na Argentina, Chile e Brasil a partir da

década de 1960 são parte desta cronologia organizada polifonicamente e sem uma preocupação

de abrangência totalizante, o que seria impossível em função do limite de espaço. Portanto, a

proposta é tentar destacar influências culturais como, por exemplo, a dos Beatles (a partir de

1967) e, ao mesmo tempo, indicar quando determinados movimentos de repressão promovidos

pelos governos e/ou ditaduras militares dos países sul-americanos impactaram a música jovem

produzida na região. A proposta dessa abordagem é discutir o que, para nós, evidencia

imbricamentos políticos que compõem muito da argamassa que tornou possível pensarmos

integração e identidade cultural em territórios entrecruzados, quando sob o olhar da

“resistência”. Isto é, entendendo resistência no sentido de colocar a produção musical frontal

ou mesmo em situações discutíveis (caso, por exemplo, da relação da música com o mercado,

como vamos tratar no capítulo) contra o que a maior parte da sociedade localiza como seu curso

natural. Em outras palavras, ao elegermos a edição La Musica como objeto do nosso trabalho,

interessa compreender como este tema é pensado em diálogo a um projeto como o DOCTV AL,

criado sob a égide da integração latino-americana, pautada, por sua vez, pelo menos pela

“sombra” de uma identidade comum.

Após, portanto, problematizar essas relações, focamos, no capítulo seguinte, em

distintos momentos da história do audiovisual latino-americano. Apesar de ser um dos períodos

provavelmente mais estudados do cinema produzido no continente, recuperar certos marcos foi

23

fundamental para criarmos uma ponte entre dois movimentos (digamos assim) desta trajetória

que no decorrer da pesquisa acabaram sendo basilares para a análise dos documentários.

Estamos falando do Nuevo cine latino-americano – incluído, aqui, o Cinema Novo brasileiro -

e o Neorrealismo cotidiano (RÍOS, 2021) uma denominação cunhada mais recentemente à

determinada produção audiovisual que circula no âmbito da mídia de massa. Mais uma vez esse

caminho metodológico foi construído considerando as premissas que orientaram a criação do

Programa que estamos discutindo. Aqui, novamente, não se pode ignorar o papel de Orlando

Senna, um cineasta ativo e militante nos dois tempos – anos 1960 e fiador do projeto DOCTV

AL junto aos países que aderiram à proposta. Por isso mesmo, e pela própria complexidade que

o projeto demanda em termos legais – a variação das regulamentações em cada país não é

desprezível – também apresentamos, no mesmo capítulo, conquistas e desafios da

regulamentação audiovisual em anos recentes, e da televisão pública no Brasil enquanto veículo

de difusão e integração da América Latina. Além disso, trazemos discussões sobre a produção

de obras etnomusicológicas (ficcionais e documentais), e sua relação com os povos autóctones

da América Latina.

Finalmente, no capítulo final da dissertação, analisamos e discutimos os três

documentários já citados a partir das questões trazidas nos capítulos anteriores. É importante

mencionar desde aqui que não faremos um estudo comparativo e sim um percurso centrado em

cada obra, em diálogo com as pretensões da pesquisa, isto é, a fim de observá-las sob a

perspectiva interdisciplinar, em pauta que se sustenta por um olhar quanti-qualitativo. A

metodologia foi definida em função das nossas pretensões de não só investigar o processo

criativo, mas sim compreendê-lo como expressão potente de um determinado campo histórico-

cultural e, também, da linguagem, estando essa em cotejo com as principais marcas que têm

definido o documentário contemporâneo.

24

2. MÚSICA, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA NA AMÉRICA LATINA

Para melhor entendermos a análise das representações sociais latino-americanas nas

produções audiovisuais definidas como corpus neste projeto, buscamos neste capítulo

apresentar diferentes aspectos relacionados à música produzida (enquanto produto e, também,

produtora de sentido) na região. Para tanto, escolhemos uma sintética apresentação de alguns

momentos de inflexão da chamada música de protesto produzida no continente latino-

americano e que carrega marcas do contexto e político da época, como, por exemplo, a

Revolução Cubana de 1959 e, também, os diálogos interculturais do período, especialmente

com alguns ícones da cultura de massa. Além dessa abordagem relacionada à contextualização

geopolítica em si, procuramos refletir igualmente sobre a representação de identidade,

resistência cultural e memória social da região, onde cotidiano e oralidade ancestral dos

oprimidos acaba por plasmar-se em canto e brado musical através dos músicos e compositores

de vanguarda. Trata-se de acordes que despertam gerações de indivíduos inspirados por canções

socialmente engajadas e críticas no discurso, ou mesmo revolucionárias esteticamente, por meio

de hibridizações e demais misturas sonoras.

Em função desses objetivos, iniciamos o capítulo recuperando, brevemente, algumas

matrizes do que estamos chamando de música de protesto, com o acréscimo da expressão

contemporânea, em sintonia com autores como Jesús Martín-Barbero (2003), Stuart Hall (2002)

e Michel ‘.(1998) Em seguida, construímos uma espécie de confronto entre a indústria de massa

e identidade cultural utilizando conceitos de autores como Gilles Lipovetsky, Jean Serroy

(2015), Guy Debord (1997) e Jean Baudrillard (1991), para tentar entender como se daria de

fato tal relação enquanto mediação e opressão. A proposta inclui refletir sobre potencialidades

e limitações da cultura popular nesse processo – e a perspectiva de representação social,

resistência musical e integração latino-americana - sob a égide de uma sociedade do (hiper)

espetáculo.

2.1 Breve histórico da música de protesto na região: psicodelia e rebeldes com causa

Movimentos musicais como Nueva Canción Chilena e Tropicália, surgidos na década

de 60 do século XX, lograram estabelecer, através da arte enquanto potencialidade, o resgate

da memória social, a crônica do cotidiano (lírica e político-ideológica) - seja reportando,

denunciando ou celebrando a efervescência cultural e as tensões sociais daquele presente - e

uma possível semente de luta e esperança futuras plantada no imaginário social e coletivo. Além

destes, também é possível apontar movimentos inspirados tanto por essa experiência de

25

integração realizada sob a ideia de identidade cultural via povos originários e diaspóricos,

quanto pela posterior busca por unidade geopolítica na região, agora sob a égide de militares

revolucionários (brancos), como resposta ao colonialismo.

“Tropicália”, originalmente uma instalação elaborada pelo artista plástico Hélio

Oiticica, e exibida pela primeira vez no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1967,

inspirou Caetano Veloso e Gilberto Gil a criarem o influente movimento musical e cultural de

mesmo nome no ano seguinte. A Tropicália, observou Oiticica (apud CALADO, 2000) em um

ensaio publicado em março de 1968, buscava, consciente e objetivamente, reivindicar uma

visão “obviamente brasileira e confrontá-la com ditos movimentos artísticos internacionais (...),

com intuito de combater o velho colonialismo infiltrado na cultura brasileira”. (CALADO11,

2000, p. 163). Hélio Oiticica afirma no mesmo texto que a sua intenção com a obra Tropicália

seria criar o que chama de “mito da miscigenação - somos negros, índios, brancos, tudo ao

mesmo tempo -, nossa cultura nada tem a ver com a europeia, apesar de estar até hoje a ela

submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela”. O artista plástico carioca defendia ainda,

que:

Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, (...) essa

herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela

negra e índia de nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria

dos produtos da arte brasileira é híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de um

significado próprio. (OITICICA apud CALADO, 2000, p. 163)

No início de 1967, Gilberto Gil demonstrava descontentamento com os rumos que a

música popular brasileira havia tomado à época. Segundo a visão de Gil, a já prestigiada MPB

soava preconceituosa (em relação ao uso da guitarra elétrica) e anacrônica. Por outro lado, o

músico baiano percebia que os jovens brasileiros, sobretudo os situados nos grandes centros

urbanos, ouviam música estrangeira como nunca. (CALADO, 2000, p. 97 e 98). Tanto Gil

quanto Caetano Veloso encontravam-se igualmente fascinados pelos Beatles e pelo mesmo som

de guitarra menosprezado por seus contemporâneos da música popular brasileira, vistos como

puristas por ambos. Gilberto Gil se interessaria, inclusive, em unir os timbres e notas da banda

de Pífanos de Caruaru, de Pernambuco, que havia lhe impressionado de igual forma à época,

com a sonoridade urbana, moderna e roqueira dos Beatles (CALADO, 2000, p. 97 e 98).

11

A utilização neste capítulo de jornalistas como Carlos Calado, Carlos Polimeni, Fernando Rosa, Marisol García,

entre outros, visa preencher lacunas não abarcadas por bibliografia específica; e cujas similaridades e distâncias

deste, digamos, momento musical, entendemos como importantes de serem demarcadas. Ao mesmo tempo trata-

se de algo fundamental para as pretensões desta pesquisa.

26

E se o movimento cultural conhecido como maio de 1968, marcado especialmente na

França, mostrou-se um símbolo para a juventude (não apenas) francesa daquele final de década,

há de se considerar o mês de maio de 1967 igualmente revolucionário quanto ao legado musical

e comportamental gerado pelos músicos dos Beatles. O oitavo álbum de estúdio dos britânicos,

Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Banda, lançado em 26 de maio de 1967, no Reino Unido,

seria responsável pela renovação da música jovem na América Latina. Um trabalho conceitual,

atravessado por influências psicodélicas e de fusões de gêneros e manifestações (e

hibridizações) culturais, como música clássica, indiana e, também, alusão ao universo circense,

entre outros. Por outro lado, especificamente quanto ao contexto musical brasileiro, os jovens

Caetano e Gil se veriam igualmente impactados culturalmente no mesmo ano de 1967 pelo

lançamento do quinto álbum do músico Jorge Ben, intitulado “O Bidú – Silêncio no Brooklin”.

Utilizando o grupo de rock e pop The Fevers como banda de apoio, Ben lograria neste trabalho

promover de fato misturas e hibridismos sonoros apenas teorizados ou intencionalizados (e,

todavia, não praticados até aquele momento) pelos dois músicos baianos.

Durante a década de 1960 Jorge Ben migraria estilisticamente inclusive de uma bossa

nova (por ele) afro-abrasileirada nos primeiros anos para o chamado sambalanço ou samba-

rock (espécie de pré-Tropicália), potencializado por sua estadia na cidade de São Paulo,

aproximando o músico da jovem guarda. E mesclando o samba brasileiro (eletrificado pela

guitarra) ao rhythm&blues estadunidense, algo considerado inaceitável pela MPB da época,

segundo Caetano Veloso (VELOSO, 1997, p. 196). Jorge Ben seria considerado, pois, além de

uma fonte de inspiração imprescindível para os tropicalistas posteriormente, em termos de

arranjos, melodias e formas inventivas e corajosas de se tocar um instrumento (no caso, a

guitarra elétrica), também um símbolo e mestre conceitual; bem como espécie de entidade

sonora capaz de sintetizar na música “Si manda” (sic) - mistura de baião e marcha-funk - a

incorporação e corporificação essencial (via transmutação) de gêneros musicais por meio de

atravessamentos e hibridismos culturais (VELOSO, 1997, p. 197 a 199). Sobre a canção e o seu

efeito na Tropicália, Veloso comenta:

‘Se manda’, com sua agressividade alegre (...) e sua musicalidade deixando à mostra

traços crus de samba de morro e blues numa composição de exterioridades

nordestinas, era a encarnação dos nossos sonhos. Parecia-me que minha ‘Tropicália’

era mera teoria, em comparação. Uma tentativa de tratado sobre aquilo de que ‘Se

manda’ era um exemplo feliz. (...) Gil e eu elegemos a faixa ‘Se manda’ por ser, nesse

sentido, extraordinariamente bem-sucedida, também porque as características

nordestinas a aproximavam de nós, baianos, mas o que foi dito aqui sobre essa

gravação se aplica a todo o LP O bidú, em que ela se encontra, e a todo trabalho de

27

Jorge Ben do final dos anos 60. Jorge se tornou um símbolo, um mito e um mestre

para nós. (VELOSO, 1997, p. 198 e 199)

Jorge Ben consolida-se, com este disco, como artista-ponte e modelo referencial e

utópico de um espírito livre para transitar entre sonoridades diversas, desde a MPB tradicional

até a música negra universal; da jovem guarda roberto-e-erasmocarliana (transformada em

jovem samba) até a nordestinidade agreste (baiana e pernambucana). Isto é, tanto guru quanto

alquimista sonoro para muitos, capaz de acessar os saberes musicais contidos no popular urbano

e tropicalizá-los genuinamente. Para Martín-Barbero (2003), a união, mescla ou alquimia

cultural de dois gêneros musicais considerados díspares entre si seria responsável pela

constituição de novas identidades sociais, produzidas por jovens à procura de uma forma de

expressão própria. E esta nova música gerada não existiria por mero abandono do autêntico,

mas pelo que o autor chama de “deformação profanatória”. (MARTÍN-BARBERO, 2003, p.

288 e 289).

Contudo, enquanto Martín-Barbero aponta em sua obra o preconceito contra músicos

andinos e seus gêneros inseridos no popular urbano (como cumbia e chicha peruana), no que

tange às ideias (e ideais) tropicalistas de Gil e Veloso as tais deformações profanatórias -

geradoras de repulsa nos tradicionalistas - viriam da adição da guitarra elétrica e do rock

europeu à música popular. Por outro lado, na prática, esta defesa se mostraria igualmente elitista

ao não considerar, inclusive, o que ocorria em cenários músico-culturais oriundos de outras

regiões do Brasil, excluídas do interesse comercial da indústria por situar-se longe demais das

capitais Rio e São Paulo. Ao Norte, mais especificamente, tanto a guitarra como semelhantes

instrumentos musicais eletrificados foram sendo integrados ou incorporados aos ritmos e

danças populares locais, sem o temor ideológico e pseudo-nacionalista de que isto macularia a

pureza de sua cultura.

Segundo o jornalista e pesquisador musical gaúcho Fernando Rosa (2019), que foca o

que chama de som do Brasil profundo, originário do norte brasileiro, o gênero carimbó, uma

manifestação de dança e música com influência indígena, africana e europeia, abriga artistas

como Pinduca, considerado o “Rei do Carimbó”, e outros artistas populares paraenses

contemporâneos que teriam sido responsáveis por modernizar e atualizar o gênero para novas

gerações nas décadas de 60 e 70 do século XX. De acordo com o autor, Pinduca, para gravar o

seu segundo trabalho musical, em 1974, teria radicalizado o uso de duas guitarras no carimbó,

em vez do tradicional banjo (ROSA, 2019, p. 10). Além disso, ainda de acordo com o

28

pesquisador, é possível traçar um paralelo geográfico e intercultural do Norte com a cena latino-

americana vizinha - e da mesma época:

Apenas duas regiões na América Latina têm a guitarra como um instrumento popular

e definidor de um movimento particular. A região selvática do Peru, com a cumbia

psicodélica, em que se destacaram grandes guitarristas. E o interior dos estados do

Pará e do Amazonas, com a lambada, rebatizada de guitarrada, que também projetou

alguns dos mais importantes guitarristas do país. (ROSA, 2019, p. 11).

É plausível ressaltar, inclusive, que os instrumentos utilizados na composição e

gravação de canções da MPB à época tampouco seriam originários do Brasil. Assim como

houve ainda quem escolhesse exaltar a inovadora batida de violão de João Gilberto, usando-a,

porém, como contraponto desafinado às supostas sanfonas cafonas12 de Luiz Gonzaga e outros

músicos populares. Sobre a controvérsia das mesclas musicais, Gilberto Gil comentou, durante

entrevista para o Jornal da Tarde, em 1967:

Na música pop de hoje, os Beatles passaram a utilizar todos os tipos de música e

instrumentação eruditas que não pertenciam ao que chamavam ‘iê-iê-iê’. Estão

evoluindo sempre, enquanto no Brasil a própria música chamada jovem se torna

conservadora. E na música popular brasileira o conservadorismo é muito pior. Se

pensássemos sempre assim, estaríamos tocando nossas músicas com instrumentos

indígenas. É preciso pensarmos em termos universais. O mundo hoje é muito pequeno,

não há razão para regionalismos. (CALADO, 2000, p. 131).

Por sua vez, tanto os músicos paraenses quanto peruanos oriundos da região amazônica

provariam ser possível combinar as sonoridades de origem europeia e indígena, através da

música extraída de instrumentos provenientes de ambas as culturas. E, em tese, sem ferir

ancestralidades autóctones, mas atualizando-as para que se mantivessem influentes na

cotidianidade de suas cidades. Inclusive quanto à celebração e reafirmação de resistência de

culturas periféricas da América Latina, atravessadas por hibridismos musicais, seja pela

aproximação de fronteiras fluviais limítrofes, ou de distâncias oceânicas apartadas, ou mesmo

através das ondas de radiodifusão. Em capítulo intitulado “A conexão amazônica em ondas

tropicais”, Fernando Rosa (2019) destaca que gêneros como mambo, merengue e cumbia, em

especial, faziam-se presentes na obra dos artistas brasileiros da Amazônia, tanto para nominar

12

Referência nossa ao comentário de Ruy Castro, autor do livro “Chega de Saudade: a história e as histórias da

bossa nova” (1991), sobre a influência do álbum “Chega de saudade” (1958) e do violão de João Gilberto sobre

os jovens da época, nos trechos: “Acabou também com aquela infernal mania nacional pelo acordeão (...). E o pior

é que não era o acordeão de Chiquinho, Sivuca e muito menos o de Donato – mas as sanfonas cafonas de Luiz

Gonzaga, Zé Gonzaga, Velho Januário, Mário Zan (...), num festival de rancheiras e xaxados que parecia

transformar o Brasil numa permanente festa junina.” (1991, p. 197).

29

canções quanto obras discográficas. Os guitarristas paraenses Aldo Sena e Mestre Vieira

comporiam músicas chamadas New cumbia e “Vamos dançar a cumbia”, respectivamente.

A influência latina nos artistas da região, especialmente nos estados do Pará e do

Amazonas, se deu por várias maneiras, a partir dos anos sessenta. Pelo intercâmbio de

partituras, inicialmente, e depois por discos, especialmente oriundos da região do

caribe, pelas mãos dos marinheiros, nos portos da região. Mas, principalmente, por

meio das rádios de ‘ondas curtas’ ou ‘ondas tropicais’. (ROSA, 2019, p. 27)

Assim como os Beatles, estes artistas latino-amazônicos, nativos do Brasil e Peru

profundos, recusariam estagnar-se criativamente. Deste modo permitiam-se observar e absorver

novos gêneros, bem como experimentar formas originais de expressá-los. Ao final deste

processo, lograram evoluir a sua arte de maneira fecunda em um contexto de pluralidade, com

hibridizações e ressignificações multiculturais.

Stuart Hall (2003) define o termo multicultural a partir das características sociais

apresentadas por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e

buscam construir uma vida em comum, sem abandonar, por outro lado, algo de sua identidade

original. Ainda segundo o autor, sociedades multiculturais são, por definição, culturalmente

plurais e heterogêneas. E por isso estas se distinguiriam do chamado Estado-Nação moderno e

liberal difundido no Ocidente, que se afirmaria sobre o pressuposto (geralmente tácito) de

homogeneidade cultural. Esta suposta homogeneidade estaria organizada em torno de valores

universais, seculares e individualistas liberais (HALL, 2003, apud Goldberg, 1994, p. 52). E a

mencionada visão não-ocidental – quiçá descolonizada, inclusive – teria se manifestado à época

na América Latina justamente enquanto ressignificação da produção musical britânica,

mesclada às tradições e abordagens locais, bem como ao contexto social. Uma sonoridade,

digamos, originalmente europeia ou anglo-saxônica, porém recebida, percebida e apropriada

por latino-americanos não apenas como mera assimilação passiva, mas também enquanto

objeto em processo de transformação e transmutação constante.

E podemos considerar as referidas apropriações como ampliação - no espectro estético-

discursivo - em relação às músicas ditas naïve do período da Jovem Guarda que, grosso modo,

preocupavam-se em reproduzir (via arranjos e melodias) canções que haviam logrado sucesso

anteriormente entre jovens europeus e estadunidenses - mas traduzidas para o português. Não

seria correto desvalidar, contudo, a importância cultural e mercadológico-industrial do “iê-iê-

iê” brasileiro enquanto fenômeno musical responsável por consolidar tal gênero “jovem” no

País; e isto ainda antes da chamada invasão britânica (Beatles e Rolling Stones) desembarcar

30

no Brasil e demais países da América Latina13. Por outro lado, podemos afirmar que Caetano

Veloso buscaria adotar um tom provocador semelhante ao de Gilberto Gil (que já havia criticado

o conservadorismo da MPB) ao clamar por uma espécie de heterogeneidade multicultural como

proposta artística, constatando a provável (ou nítida) estagnação-pós-consolidação da bossa

nova.

“Eu, pessoalmente, sinto necessidade de violência”, diria Veloso (CALADO, 2000, p.

117). Talvez o que o músico baiano desejasse ao mencionar o termo violência fosse a criação

de canções mais ousadas, urgentes e conectadas com a juventude da época; signos

flagrantemente identificáveis ao gênero rock e igualmente impossíveis de serem relacionados à

MPB vigente no Brasil de 1967. E assim como havia pensado Gilberto Gil, Veloso decidiria

mesclar expressões culturais díspares entre si, após ser apresentado a um obscuro conjunto de

rock argentino (então radicado em São Paulo) chamado Beat Boys. Caetano Veloso julgou a

banda perfeita para acompanhá-lo no festival da TV Record, enfatizando que o “tímido conjunto

de rock jovem-guarda de Roberto Carlos, comparado aos cabeludos argentinos, assemelhava-

se mais a uma banda evangélica” (CALADO, 2000, p. 120 e 121).

“Alegria, Alegria”, canção composta por Veloso e originalmente uma “marchinha pop”

nos moldes da antiga MPB, nas palavras de Carlos Calado (2000), era então acrescida de

guitarras elétricas em uma exibição considerada histórica no referido festival musical de grande

audiência e repercussão entre jovens brasileiros. É admissível afirmar que esta seja a dita

violência pela qual Caetano Veloso ansiava na música popular brasileira, considerada

estacionária pelo músico baiano. As imagens tele-difundidas em preto e branco durante a

apresentação de Veloso e os Beat Boys no palco do Teatro Record, situado na cidade de São

Paulo, provocariam, como reação primeira, apupos estridentes de parte do público in loco; quiçá

tratar-se-iam, inclusive, de ecos do protesto anterior levado à frente por músicos da MPB meses

antes do evento midiático-musical, em marcha contra a guitarra elétrica14.

13

Vale lembrar que anos antes, em 1955, o mercado fonográfico brasileiro já havia se interessado pelo estilo

musical oriundo dos Estados Unidos, ao produzir e lançar por meio do selo Continental o que seria o primeiro rock

gravado no Brasil: a versão de Rock around the clock, de Bill Halley (1954), na voz da cantora de samba-canção

Nora Ney, intitulada Ronda das horas (1955), também cantada em inglês (PEDERIVA, 2004, 112 – 117 apud

OLIVEIRA, 2011, p. 43). Ademais, os irmãos Tony e Celly Campello acabariam contratados pela gravadora Odeon

para regravar rocks estrangeiros em português, como Estúpido cupido (1959) (Stupid cupid, de Neil Sedaka, 1958)

(FRÓES, 2000, p. 23 apud OLIVEIRA, 2011, p. 44). 14

Referência nossa ao episódio conhecido como “marcha contra a guitarra elétrica”, ocorrido em 1967, e liderado

por músicos e demais representantes da chamada MPB, contrários à utilização do referido instrumento musical

“americanizado” na feitura de canções brasileiras àquela época. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=BHkJ3IBvFLg >. Acesso em: 12 mar. 2017.

31

Podemos supor, a priori, que a mescla inusitada provocada pelo semblante frágil e

acolhedor de Veloso, profanamente deformado pela presença sóbria e intimidadora dos

cabeludos argentinos, tenha causado reações quiçá distintas entre os telespectadores (TV em

preto e branco) e os espectadores situados no local (vendo aquilo ao vivo e em cores); e estes

acabariam passando pela vertiginosa experiência que partiria dos apupos enfastiados aos

aplausos efusivos durante a performance sinestésico-musical de “Alegria, alegria”15. Nas

palavras do músico baiano, os roqueiros argentinos já haviam sido vaiados pelos jovens

impacientes antes de sequer iniciada a apresentação, ou seja, enquanto ligavam os instrumentos

musicais e buscavam tomar posição no palco do teatro - ainda desacompanhados do cantor

baiano (VELOSO, 1997, p. 173).

Segundo relata Caetano Veloso (1997), a postura visual e estética dos argentinos Beat

Boys surpreenderia (negativamente) a plateia estranha àquele – em tese - ousado universo

rocker importado dos grupos ingleses e estadunidenses, representado naquela noite pelos

cabelos longos, roupas cor-de-rosa e guitarras de madeira maciça dos roqueiros portenhos. O

que ocorre a seguir, relembra o artista, seria:

(…) uma vaia irada que eu interrompi entrando em cena com uma cara furiosa antes

que meu nome fosse anunciado, o que assustou locutores, diretores, produtores e

público. Esse susto foi tanto maior quanto a constatação de que a não-observância da

tradição de usar smoking na gala desses festivais não se restringia aos meninos da

banda: minha entrada intempestiva era ainda mais chocante por eu estar usando (…)

um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê (…) laranja-vivo. (…) Os três

acordes perfeitos em estranha relação, executados por instrumentos elétricos, se

impuseram, e o silêncio da plateia, conquistado pelo susto da minha entrada, não foi

mais ameaçado: o que seria uma tumultuosa vaia se transformou em atenção

redobrada. (VELOSO, 1997, p. 173).

Este impacto midiático e (contra)cultural pode vir a ser explicado enquanto efeito de

“emocionalização das telas”, cujas narrativas e elementos visuais seriam concentrados nos

afetos (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 162). De toda forma, Caetano Veloso possivelmente

teria se aproveitado do estranhamento visual já esperado vindo do público do teatro para então

propor a referida violência (ou ruptura) estética em relação a uma MPB acusada pelo músico

de tornar-se estática, homogênea e autoindulgente e, assim, lograr subsequentemente abrir

caminho para as experimentações sonoras de tropicalistas contemporâneos, como Gilberto Gil,

Tom Zé, Os Mutantes, Gal Costa, entre outros.

15

Referência nossa à histórica apresentação de “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso e os Beat Boys, no Festival

da TV Record (1967), narrada pelo jornalista Nelson Motta no documentário musical “Uma noite em 67”.

Disponível em .< https://www.youtube.com/watch?v=BHkJ3IBvFLg >. Acesso em: 12 mar. 2017.

32

E através dos afetos gerados inclusive sobre parte considerável da audiência televisiva

do festival, formada por jovens mais interessados em Beatles e no rock estrangeiro em geral do

que em Dorival Caymmi ou Edu Lobo, seria possível materializar, enfim, o movimento musical

conceitualmente inspirado na obra de Hélio Oiticica. Pois as vaias dos nacionalistas

inconformados com as guitarras dos Beat Boys arrefeceram frente à euforia geral (CALADO,

2000, p. 143). A integração e o intercâmbio cultural responsáveis por combinar a voz melódica

- e aparência frágil e simpática - do cantor baiano com os timbres encorpados e performance

intimidante dos roqueiros portenhos, acabariam por representar, enquanto movimento musical,

o marco zero da Tropicália. Porém, outros tropicalismos seriam gerados no Recife, João Pessoa

e Natal quase simultaneamente o movimento contracultural de Caetano e Gil, mas sem receber

a mesma atenção dos músicos, do público ou da mídia de massa radicados na região sudeste

(TELES, 1991), isto é, no (posteriormente) alcunhado “Sul maravilha”16.

Esses debates acontecendo no Brasil também encontram similaridades em outros

territórios latino-americanos. Na Argentina, é considerada como pedra fundamental do rock

desse país a canção Rebelde (1966), do seminal grupo Los Beatniks, uma referência nominal

tanto aos Beatles quanto ao movimento de escritores da chamada geração Beat estadunidense

(período entre o final da década de 1950 e o início de 1960 do século XX). De acordo com

Kreimer e Polimeni (2006, p. 9), os versos de Rebelde refletiam a efervescência cultural, social

e política da época no país – e, também, na América do Sul em geral: Rebelde me llama la

gente, rebelde es mi corazón. Soy libre y quieren hacerme esclavo de una tradición (Rebelde

as pessoas me chamam, rebelde é o meu coração. Sou livre e querem me fazer escravo de uma

tradição - tradução nossa). Ainda segundo os autores, palavras como amor e coração, antes

limitadas ao romântico e nostálgico nas letras da música pop, passariam a se referir a um

sentimento contestatório e de inconformismo cotidianos pois, para além do protesto, seriam

canções capazes de abrir um canal de expressão e de afeto ligado a muitos jovens, em sua

maioria homens, e que discordariam tanto do sistema a eles imposto quanto dos que o

combateriam a fim de substituí-lo por outro que tampouco lhes contemplaria.

Assim como fizeram Gilberto Gil e Caetano Veloso em relação às suas experimentações

sonoras que culminaram na Tropicália, a nova geração de músicos argentinos também teria

16

“A expressão ‘Sul maravilha’, cunhada pelo cartunista mineiro Henfil no jornal O Pasquim, em meados dos

anos 1970, alude ao imaginário social de toda uma geração de migrantes provindos das regiões Norte e Nordeste

do país. Sujeitos em trânsito que se transladaram para as principais capitais do Sudeste movidos pelo desejo de

melhores condições de sobrevivência e pela atração da propaganda desenvolvimentista do regime militar nesse

período.” (HAUDENSCHILD, 2016, p. 34).

33

incorporado o sentimento de insatisfação da juventude urbana e da contracultura que vicejava

no mundo, logrando, assim, representar a força motriz para a criação de um movimento (e de

um mercado) inédito na Argentina. No entanto, também lá as chamadas kultura e intelligentsia

argentinas agarraram-se à defesa do que acreditavam ser um compromisso. Estes exaltaram o

tal compromisso com a literatura comprometida, a pintura social, o teatro realista, enfim, uma

militância através da arte. E por outro lado criticam o que consideravam ser, em tese, uma

atitude apolítica de muitos jovens, que estariam fazendo o jogo do capitalismo e do

establishment, “e cujos gritos distraem, mas não mordem” (KREIMER; POLIMENI, 2006, p.

20).

Podemos afirmar que a referida atitude apolítica, considerada pela intelligentsia cultural

argentina como mais estética do que discursiva dessa juventude, seja relacionável em algum

aspecto ao conceito de socialidade de Michel Maffesoli (1998). Sob esta visão, costumes

festivos e banais seriam possíveis no cotidiano enquanto formas lúdicas de socialização. Isto

sem que haja necessariamente um aprofundamento crítico enquanto discurso, e sem caráter de

arte militante, ou seja: sem compromisso. Seria, por outro lado, parte de habitus estruturados

em profundidade, mesmo não sendo verbalizados. A partir da socialidade, Maffesoli entende,

portanto, a vida como uma obra de arte coletiva (...) e manifestação de mass entertainment

(entretenimento de massa) contemporâneo. (MAFFESOLI, 1998, p. 113 e 114). Neste contexto,

a supracitada canção argentina Rebelde, de Los Beatniks, clamaria em seus versos por libertar-

se de uma tradição, em busca de novos habitus. Porém, tal liberdade desejada estaria

relacionada aos costumes de origem comportamental, e não propriamente a um brado engajado

ou explicitamente panfletário. Para Carlos Polimeni (2001), seria a ideia de rebeldia, bastante

difundida na década de 1960, permeada por contestações políticas e comportamentais e inserida

em certo estado de ânimo de uma geração cujos heróis do passado haviam envelhecido ou

pareciam insípidos, e que ainda se encontrava em processo de “criar seus próprios heróis”

(p.68).

Talvez Polimeni faça coro com Maffesoli por enxergar a rebeldia como uma ideia

poderosa e vanguardista e, consequentemente, responsável por “perceber a vida como uma

possibilidade de exploração constante, de aventura” (2001, p. 68). O jornalista argentino

entende, inclusive, que o conceito de rebeldia presente no rock argentino dos anos 60 teria sido

importado da obra audiovisual de ficção estadunidense Rebel without a cause (Juventude

Transviada, 1955), um típico fenômeno de mass entertainment do cinema estadunidense. A

película é protagonizada pelo ator James Dean (1931 - 1955), que representava à época um

34

ideal sintetizado no título original do filme - rebelde sem causa - e serviria como um arquétipo

de identificação simbólico-hedonista por parte da juventude ocidental. Assim como ele, Ernesto

Che Guevara (1928 - 1967) - espécie de espelho invertido de Dean – tornar-se-ia a

personificação da rebeldia entre jovens, mundialmente. Porém, no caso de Che, um rebelde sem

pausa17. Ernesto Guevara acabaria preso e morto na Bolívia em 1967, enquanto tentava

incansavelmente traçar um novo – e utópico - “mapa de todos”18 na América Latina

Para Litto Nebbia, vocalista da banda Los Gatos, outra pioneira do rock argentino

oriundo dos anos 1960, o contexto geopolítico e social daquele país estimula quemar los días,

salir de la rutina, quebrar las barreras del tiempo (queimar os dias, sair da rotina, quebrar as

barreiras do tempo). Assim, tanto a persona de James Dean quanto a de Che Guevara teriam

inspirado e afetado culturalmente, direta ou indiretamente, a intenção de jovens rebeldes por

queimar os dias ao invés de apagar aos poucos19. De toda forma, o simbolismo gerado por uma

Cuba livre e soberana de fato seguiria influenciando corações e mentes rebeldes décadas após

a revolução de 1959, a despeito da propaganda anticomunista, bloqueio econômico e das

investidas bélicas dos Estados Unidos (via CIA) intencionando o enfraquecimento ou

destituição do regime cubano. No entanto, sabemos que os anos 1960-70 são de profunda

inquietação e premência nos campos geopolítico e sociocultural, onde eventos, movimentos e

cenários contemporâneos exerciam influência sobre a América Latina. Entre eles, destaca-se, a

luta de movimentos feministas por igualdade entre os gêneros e dos movimentos negros por

direitos civis na América do Norte. E ainda os efeitos e afetos motivados pela beatlemania entre

os jovens, nos espectros musical e comportamental, seja no Ocidente ou no chamado Sul global,

pois, como dito anteriormente neste subcapítulo, tratou-se de um fenômeno cultural

amplamente difundido a partir de 1967.

Tanto é assim, que para melhor dimensionar a simultaneidade do fenômeno em vários

locais da América Latina, vale ressaltarmos, sinteticamente, os méritos do rock procedente do

17

O termo “rebelde sem pausa” é uma tradução livre nossa de Rebel without a pause (1987), canção do grupo de

hip-hop estadunidense Public Enemy, que, por sua vez, trata-se de referência irônica ao filme Rebel without a

cause (1955), protagonizado pelo ator norte-americano James Dean. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=-fN5RX15Zhw >. Acesso em: 5 jun. 2020. 18

Referência nossa aos versos Yo quiero romper mi mapa, formar el mapa de todos. Mestizos, negros y blancos

(Eu quero rasgar o meu mapa, formar o mapa de todos. Mestiços, negros e brancos – tradução nossa), presente na

canção “Milonga de andar lejos” (1973), do músico uruguaio Daniel Viglietti. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=04k4I5-5jMw >. Acesso em: 9 jul. 2007. 19

Referência nossa aos versos it’s better to burn out than to fade away (é melhor queimar de uma vez do que

apagar aos poucos - tradução nossa) contidos na canção My My, Hey Hey (Out Of The Blue) (1979), do músico

canadense Neil Young. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=i6RZY4Ar3fw >. Acesso em: 5 jun.

2020.

35

México por meio de seu pioneirismo como representação social e identidade (contra-)cultural

latino-americana, já que lá um momento-chave ocorre dez anos antes dos seus vizinhos, isto é,

em 1958:

En realidad hacia 1958 estaba naciendo formalmente el rock ‘n’ roll en México. Desde

mi punto de vista, la formalidad; implica la aparición de grupos juveniles locales,

con un rock ‘n’ roll interpretado por y para los jóvenes (…) Las primeras grabaciones

de grupos rocanroleros se realizaron en 1959, pero fue hasta 1960 cuando salieron

con toda fuerza al mercado y a la difusión radiofónica. En este sentido, 1960 fue el

año de la popularización masiva y el ‘inicio oficial’ del rock ‘n’ roll en México

(PALACIOS, s/n, p. 26-30 apud MARTÍNEZ, 2018, p. 38).

Apesar da celebração deste início, é preciso demarcar que os grupos musicais20 surgidos

naquele país durante a transição do final dos anos 1950 para o início dos 1960 produziram, em

grande parte, regravações de temas oriundos de cantores e grupos de rock estadunidenses, tal

qual sucederia com os músicos desse gênero em outros países latino-americanos – inclusive no

Brasil, via Jovem Guarda, como sabemos. E por contarem com tal característica os grupos

oriundos da, digamos, primeira fase do rock mexicano acabariam desprestigiados pelos círculos

roqueiros subsequentes por conta de sua suposta dependência e subserviência em relação à

indústria cultural. E isto ocorreria na prática desde o controle criativo em relação às letras de

suas canções até a imposição estético-visual sobre o vestuário, coreografias, resultando em

comportamento anódino das bandas e artistas (MARTÍNEZ, 2018, p. 38; apud AGUSTÍN,

1997, p. 40). Uma cena musical representada em seus princípios, portanto, por artistas jovens,

brancos e considerados meros reprodutores sonoros da matriz musical originária da Europa e

dos Estados Unidos. Ato contínuo, seriam artistas e grupos perfeitamente padronizados ou

domesticáveis pela indústria em termos midiático-comportamentais, posto que impulsionados

financeiramente por selos discográficos e gravadoras estrangeiras que atuariam comercialmente

à época no México, como: Musart, RCA, Peerless e Orfeón (MARTÍNEZ, 2018, p. 38). Embora

teoricamente docilizados via interesses corporativos, estes mesmos músicos e bandas de rock

do início dos anos 1960 seriam mal-recebidos pelo governo e por parcela mais conservadora da

sociedade mexicana, bem como os seguidores de tal estilo, vistos ou categorizados (e

estigmatizados) como rebeldes e transgressores dos bons costumes..

No contexto político-econômico e social, o período entre o fim da década de 1950 e o

princípio de 1960 representaria conjunturalmente a ebulição em cadeia de inúmeros eventos e

movimentos disruptivos naquele país que seriam considerados de igual modo imprescindíveis

20

Dentre eles, havia Los Locos del Ritmo, Los Teen Tops, Los Black Jeans, Los Rebeldes del Rock, Angélica

María y Julissa, e outros.

36

para a idealização ou (re)configuração de uma nova esquerda mexicana21 que, como ocorreu

em outros países, também impactou os anos seguintes, em especial 1968, quando ocorreu o

chamado Massacre de Tlatelolco (MELLO, 2018) quando cerca de 200 a 300 manifestantes

foram assassinados durante protesto liderado pelo movimento de estudantes mexicanos. Mas,

para além deste episódio que busca dimensionar a cena de protesto, resistência e juventude no

México, vale também recuperar aqui a inovadora corrente contracultural e contestatória

intitulada La Onda22 que irrompe na literatura desse país. O vocábulo onda era uma gíria

comumente relacionada à identidade coletiva de jovens populares urbanos do México, cujo

estilo de vida e visão de mundo buscavam contestar os ditos padrões sociais hegemônicos.

Influenciados, por vezes, pelos hippies estadunidenses, eram chamados de chavos de la Onda

(meninos da Onda, segundo a gíria mexicana) ou jipetecas (junção dos termos hippie e astecas)

(LARA DE ALEGRIN, 1999; apud GALVÁN, 2013, p. 5).

Não seria correto afirmar, no entanto, que o movimento hippie mexicano daqueles

tempos se expressaria como mera reprodução, paródia ou franquia do dito flower power (slogan

hippie dos anos 1960) estadunidense, posto que o termo jipetecas - referente aos jovens hippies

mexicanos - fazia alusão hibridística, por óbvio, ao império Asteca; ou seja, a uma civilização

pré-colombiana erguida entre os séculos XIV e XVI, e onde se encontra atualmente o México.

Na ótica de José Agustín (1997), um dos escritores-símbolo do movimento La Onda, era

necessário diferenciar o estilo dos tais hippies originais dos jipetecas:

(…) porque, se bem coincidiram no gosto por alucinógenos e na experiência do

ecstasy, os mexicanos se identificaram com os índios, pois consciente ou

inconscientemente, compreenderam que eles conheciam as plantas de poder desde

muitos séculos antes, o que lhes conferia o título de mestres. Ademais, ainda que

muitos jipitecas fossem de classe média e de pele branca, prontamente se

incorporaram ao grupo de jovens pretos e pobres, que com o cabelo comprido

pareciam índios porque praticamente os eram (…). Em um país fortemente racista

como o México, era uma verdadeira revolução que grandes setores de jovens se

identificassem e se solidarizassem com os índios (AUGUSTÍN, 1997, p. 42; apud

MELLO, 2018, p.4).

21

Além da ascensão do movimento estudantil houve ações do movimento dos maquinistas de trem (1959), o

movimento social camponês, ou movimento jaramillista (liderado por Rubén Jaramillo, de 1958 a 1962), e tanto

a greve dos professores (1958), quanto a dos médicos (1964). (GALVÁN, 2013, p. 4). Disponível em: .<

file:///Users/usuario/Downloads/8862-32462-1-SM.pdf >. Acesso em: 15 jan 2021.98. 22

O movimento literário contracultural denominado La Onda surgiria na segunda metade da década de 1960,

constituído por jovens escritores como Gustavo Sáinz, José Agustín, e Parménides García Saldaña. Suas obras

ensejariam um sentimento contestatório-comportamental em relação à desigualdade social, (anti-capitalista,

portanto), bem como às guerras e contrário a qualquer tipo de autoridade. E o termo onda - entre variadas acepções

- era utilizado pela juventude para designar festa, ambiente, plano ou estado de humor (GALVÁN, 2013, p. 5).

Disponível em: .< http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1385664405_ARQUIVO_estado_de.pdf >.

Acesso em: 15 jan 2021.

37

Ademais, o autor ressaltaria outra singularidade dos jovens jipetecas no que tange ao

hibridismo cultural no cotidiano: a utilização de roupas e artesanatos fabricados por indivíduos

indígenas (isto é, xales, saias, sandálias, camisas, calças, cobertores, ponchos etc.) com objetivo

de compor o seu visual. E buscando, deste modo, o que seria, na visão do escritor, um peculiar

e inconfundível estilo artístico-comportamental jipeteca (AUGUSTÍN, 1997, p. 42; apud

MELLO, 2018, p.4). Isto é, uma atuação no cotidiano esteticamente rebelde e anti-sistêmica

performada por meio das interpenetrações culturalmente híbridas estabelecidas entre o rock ‘n’

roll e os símbolos e tradições pré-colombianas inerentes ao contraditório contexto de

apropriações, apagamentos e demais opressões históricas na América Latina; estilo que tornar-

se-ia símbolo de expressão dos jovens oriundos das camadas médias e contrários ao

conservadorismo da sociedade.

Tal estética jipeteca daquela juventude roqueira quiçá buscaria mesclar a aspereza do

discurso crítico à vivência de uma socialidade hedonista, estilizando coletivamente um protesto

premente que tampouco se encerraria apenas em pregar a bondade e o amor23. Ou seja,

possivelmente reivindicando da mesma forma as representações social e política, amalgamadas

através da assimilação de identidades construídas especificamente no imaginário coletivo e

cultural de seu país. E, assim, mexicanizando o referido movimento (contra)cultural gringo, ao

invés de apenas mimetizar americanizadamente o mesmo. Por outro lado, Augustín (1997)

assinalaria que a onda psicodélica dos jipetecas consiste ainda no consumo cotidiano de

alucinógenos oriundos dos rituais indígenas24. Nesse sentido cabe refletirmos brevemente sobre

o uso recreativo feito por não-indígenas dos elementos medicinais e ritualísticos considerados

sagrados para os povos originários latino-americanos, sendo culturalmente apropriados e, por

fim, banalizados. Ou seja, saberes milenares cultivados ancestralmente pelos povos ameríndios

- como o tabaco ou a folha de coca, por exemplo – acabariam sofrendo procedimentos químico-

industriais de pulverização, bem como de branqueamento estético-identitário, tornando-se uma

23

O trecho “tal estética jipeteca quiçá buscaria essencialmente um discurso cujo protesto não se daria

simplesmente pregando a bondade e o amor” faz menção à canção intitulada Mi protesta (Meu protesto, 1968) do

grupo de rock mexicano Los Ovnis, nos versos: Es mi protesta vivir / Sin predicar la bondad ni el amor (É meu

protesto viver / Sem pregar a bondade e nem o amor – tradução nossa). Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=yj1ul1pC97I >. Acesso em: 15 jan 2020. 24

Os jipetecas consumiam alucinógenos de origem indígena no alto das pirâmides de Teotihuacan, Tula,

Xochicalco ou Monte Albán, buscando uma suposta imersão em um ambiente considerado sagrado, e onde no

passado havia sido igualmente território das ditas civilizações pré-colombianas (AUGUSTÍN, 1997, p. 42 apud

MELLO, 2018, p.4).

38

popular (e urbana) droga hedonista consumida de forma recreativa por não-indígenas ao final

do processo (ou viagem) turístico-fetichista25.

De todo modo, o mesmo vocabulário que marca o movimento literário também é

acionado na música: a partir da segunda metade da década de 1960 surge o la onda chicana (a

onda mexicana), representado por bandas de rock e suas canções originais (embora a maioria

delas ainda em inglês), buscando uma sonoridade igualmente mais arrojada, experimental e

psicodélica, por vezes. Nesta fase surgiram grupos como Los Dug Dugs, La Revolución de

Emiliano Zapata, Peace and Love, La Tribu, Javier Batis entre muitos outros. Espaços como

universidades e centros culturais eram utilizados para abrigar apresentações musicais dos

responsáveis pela onda chicana, afrontando a censura e reunindo parcela da juventude

mexicana - entre jipetecas e demais cabeludos advindos de distintos espectros contraculturais

do popular urbano. E no dia 11 de setembro de 1971 um evento denominado Festival de

Avándaro26 acabaria por tornar-se marco histórico bem como símbolo tanto do ápice quanto do

fim do período tsunâmico formado por ondas musicais e literárias jovens no México dos anos

1960. Isso porque a repressão do PRI após o festival culminaria, poucos dias depois, com a

gradual proibição do rock enquanto gênero musical, censurando sua veiculação em todo o país

(rádio e TV), bem como a realização de concertos musicais. Posteriormente, também a gravação

de novos discos seria proibida e os artistas e bandas passariam a ser perseguidos. Na prática, só

em 1986 haveria uma retomada do rock no México, mas em outros termos e condições27.

Mas, ainda em relação ao contexto político-social e anti-hegemônico latino-americano,

vale de igual modo recuperar a cena artístico-cultural presente no Chile da cantora e

compositora Violeta Parra. Nesse sentido, a chilena acabaria sendo considerada a representante

25

Todavia, como se sabe, a partir dos anos 1970, a chamada política de guerra às drogas posta em prática nos

Estados Unidos - e logo imposta pelos estadunidenses aos demais países do Norte e Sul global - resultaria no

aumento da criminalização do comércio de cocaína, da cannabis sativa (maconha) e outros, bem como na

recriminação dos que mantinham o cultivo das folhas e ervas para fins terapêuticos – e não recreativos. 26

Evento musical composto por 12 bandas de rock mexicanas, ocorrido nos dias 11 e 12 de setembro de 1968, e

considerado o Woodstock mexicano, por inspirar-se tematicamente no festival estadunidense Woodstock (1969).

Os organizadores de Avándaro esperavam 40 mil pessoas no evento, porém, mais de 300 mil jovens de distintas

classes sociais teriam se dirigido ao festival (La Historia Detrás del Mito, 2005, 8:50 a 12:00). 27 O rock acabaria tornando-se, de fato, uma (sub)cultura subversiva e underground do popular urbano do México,

censurada e relegada a subsistir na clandestinidade por 14 anos. Tanto músicos quanto público passariam quase

uma década e meia sem saber o que fariam, para onde iriam ou o que aconteceria com ambos no futuro. Até que

um novo movimento denominado Rock en tu idioma surgiu, em 1986, marcado pelo lançamento de um álbum

compilatório de mesmo título. (VALDÉZ; URIÓSTEGUI, 2015, p. 13). Disponível em: .<

https://www.redalyc.org/pdf/439/43933020006.pdf >.Acesso em: 27 jan 2021. No entanto, este movimento

consistia, na verdade, em uma campanha mercadológica de difusão musical promovida por selos discográficos

mainstream estadunidenses e europeus, trouxesse, a partir de 1986, o renascer de uma nova onda sonora (La

Historia Detrás del Mito, 2005, 28:20 a 30:33).

39

máxima da música popular daquele país, reconhecida por cantar as agruras cotidianas vividas

pelos indivíduos de origem simples e periférica. Violeta o fazia, inclusive, não apenas como

expressão artística, mas também como forma de ativismo político. Conforme Marisol García

(2013, p.40), seguindo os seus princípios, a artista entendia a denúncia das injustiças sofridas

pelos oprimidos como um dever de “mínima misericórdia”. No entanto, ao contrário da

intelligentsia crítica argentina e dos músicos ditos puristas e tradicionalistas da MPB, a elite

cultural chilena não se relacionava positivamente – em termos de ideário ou modelo político –

ao comprometimento ideológico e social(ista) de uma cantora de origem pobre, interiorana e

autodidata no canto e no uso que fazia de seu violão. Ao contrário, parte da imprensa daquela

época acabou por destacar (negativamente) as posições políticas de Parra afinadas ao

comunismo, bem como procurou vincular sua imagem a superficialidades cotidianas, como a

suposta aversão da artista ao uso de maquiagem, por exemplo (GARCÍA, 2013, p. 41)28.

Ainda no icônico 1967, ano-chave deste subcapítulo, aterrissou de forma definitiva no

Chile - e com escalas por toda América Latina em geral – o voo rasante da chamada invasão

britânica (e viagem psicodélica) através do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band dos

Beatles. Uma obra musical responsável por inspirar diretamente a primeira geração de bandas

de rock chilenas daquela época, entre elas Los Mac's, que editaram o disco Kaleidoscope Men

no final do mesmo ano, e cujo tema La muerte de mi hermano tornaria-se um êxito instantâneo

no Chile; além de marco histórico da nova música jovem do país sul-americano. O rock chileno

teria sido, inclusive, político sem propor sê-lo, posto que o gesto de montar uma banda de rock

eletrificada, bem como deixar o cabelo crescer e provocar embates cotidianos como forma de

contestação de uma ordem conservadora demandava um esforço tal - em meados dos anos 1960

- que por diversos momentos tornou-se desnecessário acrescentar ou cobrar dos mesmos um

chamado compromisso ideológico do jovem chileno para que este se propusesse a expressar a

sua vocação subversiva (GARCÍA, 2013, p. 69 e 70).

Para além das músicas de protesto da Nova Canção Chilena, influentes e relevantes em

toda a América Latina, surgiram no Chile dos anos 1970 um rock chileno “com um pé na

28

Ainda assim, é sabido que a figura-símbolo de Violeta Parra serviria como grande inspiração - concreta e pessoal

– para o movimento musical Nueva Canción Chilena (Nova Canção Chilena), que, entre outras mudanças

promovidas valeu-se de referências do folclore, da trova e do rock, além de se abrir a outras influências sonoras

oriundas da América Latina (MusicaPopular.cl, s/p) Em seu livro Canción Valiente (Canção Valente, 2013),

Marisol García conta que antes de seu suicídio, em 1967, Violeta Parra conseguiria se relacionar com grandes

figuras do movimento Nueva Canción Chilena (Nova Canção Chilena), incluindo os músicos Victort Jara, Patrício

Manns e Quilapayún, unânimes em incensá-la como “mestra”, ao associá-la a um modelo de ética artística.

(GARCÍA, 2013, p. 43).

40

psicodelia e outro no folclore latino-americano que possivelmente escolheu situar-se à margem

do debate acalorado que o circundava, sem que isto significasse propriamente abster-se de

manifestar sua opinião ou descontentamento (GARCÍA, 2013, p. 94). Havia de fato um

componente contestatório e de reivindicação por uma identidade própria em tal rock, ao buscar

experimentações sonoras unindo cultura regional à sonoridade do Norte global. Este rock

exploraria, deste modo, a preocupação político-regional de valorização folclórica da Nova

Canção Chilena em suas letras, combinadas com a rebeldia eletrificada e psicodélica do rock

como expressão musical jovem, popular e urbana, mostrando-se, assim, uma expressão

genuinamente latino-americana, embora forjada por elementos importados dos Beatles e de

outros artistas, posteriormente. Uma dita nueva ola (nova onda) cujas fluidificações

hibridísticas se fizeram notar amplamente - como já dito neste subcapítulo – no mercado

musical e na cultura popular da América Latina.

Na Colômbia, por exemplo, músicos da banda Génesis (1970–1992) lograram mesclar

rock e psicodelia à musicalidade e cultura andinas por conta das viagens empíricas realizadas

entre vales e cordilheiras, bem como do contato (ou intercâmbio) com sujeitos e culturalidades

(afro)indígenas, camponeses, ou concernentes ao popular urbano da região (ESCOBAR, 2008).

Como eles, outros grupos musicais acabariam por representar cotidianamente na Colômbia da

década de 1970 uma alternativa à realidade dos jovens locais no que tange à cartografia social

e cultural daquele país; seja na aposta estética pela espiritualidade e o hipismo, bem como no

discurso alheio ao comprometimento político-partidário; ou na defesa das minorias étnicas e de

classe, representadas nos versos de suas canções. E a forma com que os músicos encontraram

para expressá-lo - ou representá-lo - musical e esteticamente se daria através da inclusão de

instrumentos e sonoridades advindas tanto das tradições afro-diaspóricas e ameríndias, quanto

da cultura europeia inserida na região durante o período colonial, a saber: flautas dos Andes,

tambores da costa e tiples (violões de 12 cordas), amalgamando-se, pois, às guitarras elétricas,

baixos, baterias e teclados (CASTRO, 2016, p. 56 e 57).

Dessa forma é plausível supor que as experimentações estético-musicais da banda de

Liverpool teriam participação direta na formação de uma sonoridade de fato dotada de

identidade latino-americana - sobretudo a partir da segunda metade da década de 1960 - em

países como Brasil, Argentina, México, Chile, Colômbia e outros. Ou seja, assim como a

Tropicália não teria surgido nos moldes em que ocorreria em 1967 não fosse a audição e

posterior assimilação do trabalho exportado pelos ingleses naquele ano. Por outro lado, esta

relação intercultural, já mencionada neste capítulo, não teria se dado por mera ação

41

verticalizada e colonizadora de uma cultura musical europeia – e hegemônica - sobre a latino-

americana. Mas sim através de estratégias culturais responsáveis por combinar elementos

díspares e convertê-los em algo novo e capaz de promover a posteriori tanto o diálogo rítmico

entre Elvis Presley e Luiz Gonzaga, quanto lírico entre John Lennon e a garota de Ipanema29.

Quanto ao contexto de globalização e pós-modernidade, conceitos elaborados durante e

após a década de 1980 do século XX, Stuart Hall (2003) ressalta a luta pela hegemonia cultural

disputada por meio da cultura popular. Segundo o autor:

A hegemonia cultural nunca é uma questão de vitória ou dominação pura (não é isso

que o termo significa); nunca é um jogo cultural de perde-ganha; sempre tem a ver

com a mudança no equilíbrio de poder das relações da cultura; trata-se sempre de

mudar as disposições e configurações do poder cultural e não se retirar dele. (HALL,

2003, p. 339).

Em contrapartida, Martín-Barbero em defesa de uma já mencionada “deformação

profanatória” da música (no contexto do popular urbano), acabaria por descrever o processo de

reelaborações e montagens estabelecidos entre gêneros e subgêneros tradicionais e modernos

oriundos de culturas díspares - porém não desiguais - entre si. (MARTÍN-BARBERO, 2003, p.

288). Vale frisar que a própria psicodelia proposta pelos Beatles no álbum Sgt. Pepper's Lonely

Hearts Club Band seria fruto de perceptíveis processos de hibridização, por exemplo, em

relação à música originária da Índia. Algo musicalmente já trabalhado previamente nos dois

trabalhos anteriores dos quatro músicos de Liverpool, Revolver, lançado em 1966, e Rubber

Soul, de 1965.

Stuart Hall (2003) comenta, por outro lado, o fato de que tanto a música quanto a

subcultura dancehall (salão de baile) na Grã-Bretanha terem sido inspiradas na sonoridade e

culturalidade originárias da Jamaica, adotando, inclusive, muito de seu estilo e atitude (assim

como o dito raga rock de George Harrison havia se embriagado da fonte original indiana30).

29

Os referidos trechos “diálogo rítmico entre Elvis Presley e Luiz Gonzaga” e “lírico entre John Lennon e a garota

de Ipanema” aludem à canção “Let me sing, let me sing” (1972) de Raul Seixas, nos versos: “Eu vim rever a moça

de Ipanema. E vim dizer que o sonho. O sonho terminou.” Além da música “Garota de Ipanema” (1963), de Tom

Jobim e Vinicius de Moraes, Raul Seixas faz menção a “God” (1970), de John Lennon, no verso: “the dream is

over” (o sonho acabou). O roqueiro baiano propõe ainda a mescla de ritmos e sonoridades em “Let me sing, let

me sing”, onde alternam-se (no canto e nos arranjos) passagens de rock’n’roll inspiradas em Elvis Presley, com as

de cadência característica do baião de Luiz Gonzaga, representante máximo do referido gênero musical brasileiro

à época. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=9QKv0X-PS-0 >. Acesso em: 30 jul 2020. 30

A cítara, instrumento de música clássica indiana, foi descoberta por George Harrison, guitarrista dos Beatles,

que se viu fascinado pela cultura e religiosidade do país situado no sul asiático, aproximando-se do compositor

Ravi Shankar. E este, junto a outros músicos indianos, participaria das gravações de dois trabalhos discográficos

dos ingleses. E como resultado dessa hibridização cultural da musicalidade indiana feita pelo rock inglês, surge

uma nova denominação sonora: o “raga rock”, subgênero da música britânica com forte influência da Índia, tanto

nos timbres quanto na utilização de instrumentos do Oriente. (ESTADÃO, 2018). Disponível em: .<

42

Ainda segundo o autor, o dancehall tornou-se uma das várias músicas negras que conquistariam

os corações de alguns garotos brancos “quero ser” (wanna be) de Londres (isto é, “quero ser

negro!” - diz Hall) (HALL, 2003, p. 37). De igual forma, podemos supor que em relação ao

contexto da música de protesto latino-americana dos anos 1960-1970 (unindo resistência

político-ideológica e inovação estético-comportamental), é razoável afirmar que o temor por

uma suposta descaracterização das tradições locais via europeização teria sido deverasmente

injustificado. E isto tanto por conta do caráter das letras dos músicos latinos, responsáveis por

lançar trabalhos inspirados nos Beatles, a partir de 1967 – preocupados mais com suas

vicissitudes cotidianas do que em reproduzir versos naïve ou de estética aparentemente

sinestésica -, quanto pelo caráter hibridizado e, em parte, “quero ser” indiano do disco

Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band dos britânicos.

E o segundo álbum de estúdio de Caetano Veloso, gravado no final de 1967 e lançado

em janeiro de 1968, lograria ser o primeiro registro discográfico essencialmente tropicalista do

Brasil, permeado inclusive pelas influências psicodélicas hibridizadas via Beatles – desde a arte

da capa até às experimentações sonoras nos arranjos das canções. Além de “Alegria, alegria”

(gravada sem a participação dos roqueiros argentinos Beat Boys) encontram-se canções como

“Tropicália” (música-tema do movimento) e Soy loco por ti, America, descrita por Carlos

Calado (2000, p. 160) como “uma dançante fusão de mambo, rumba e cumbia”. A música

possui, ainda, versos cantados em espanhol e português, ensejando, em tese, uma integração

latino-americana, e teria sido composta por Gilberto Gil em homenagem ao revolucionário

argentino Che Guevara. E, por fim, a canção “Eles”31, que encerra o trabalho, e inclui sons de

cítara e, também, de tabla32 (instrumento percussivo de origem indiana), inseridos de forma

introdutória durante os 20 segundos iniciais da canção.

Voltando, portanto, ao início desta subseção, fechamos essas discussões enfatizando que

o movimento Tropicália, personificado nas figuras de Caetano, Gil, Tom Zé (e do próprio Hélio

Oiticica, entre outros), buscava, então, descolonizar a arte de forma antropofágica33, contudo,

https://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,como-george-harrison-descobriu-a-citara-indiana-conheceu-ravi-

shankar-e-criou-um-novo-rock,70002432685 >. Acesso em 25 abr 2020. 31

“Eles” é uma canção do segundo álbum de estúdio de Caetano Veloso, homônimo, lançado em 1968. Disponível

em: .< https://www.youtube.com/watch?v=8LY2UWSQ1q0 >. Acesso em 10 jun. 2020. 32

A utilização tanto da cítara quanto da tabla na canção “Eles” é analisada em artigo intitulado “A formalização

da derrota: sobre ‘Eles’ e ‘A voz do Morto’, de Caetano Veloso”, publicado por Daniela Vieira dos Santos

(Unicamp) na Revista do Instituto dos Estudos Brasileiros, da USP, em julho de 2015. Disponível em: .<

http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100764/99459 >. Acesso em: 20 abr 2020. 33

Referência nossa ao “movimento antropofágico”, criado por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral em maio

de 1928, e que tinha por objetivo repensar a dependência cultural brasileira.

43

sem submetê-la acriticamente à hegemonia cultural estrangeira exercida por outros artistas

estabelecidos como mass entertainment. E com perspectiva de celebração das identidades

nacional e latino-americana. E quanto ao legado e a influência musical (e comportamental) em

relação às gerações futuras, tanto a Tropicália quanto a Nueva Canción de América Latina

lograram oferecer novas referências estéticas, sonoras e discursivas à juventude e ao cenário

musical em caráter atemporal. E isto se daria através de uma radicalização da crítica (CALADO,

2000, p. 283). E, por vezes, trazendo um ritmo tão contagiante que, para além de uma mensagem

conscientizada, acabaria “convertendo-se (...) em um convite à dança. Política de apelação

direta às cadeiras” (GARCÍA, 2013, p. 138).

2.2 Indústria Cultural e Identidade Cultural: distintas formas de (re)existência musical

A celebração do mito da miscigenação entre negros, indígenas e brancos de Hélio

Oiticica, mencionado no subcapítulo anterior, remete ao conceito de identidade nacional

defendido na década de 30 do século XX pelo escritor Gilberto Freyre em suas obras literárias,

e analisado criticamente por Jessé Souza (2017, p. 28). Segundo o sociólogo, Freyre teria criado

um sentimento de identidade nacional brasileiro que permitiria algum orgulho nacional como

fonte de solidariedade interna, enquanto país (SOUZA, 2017, p. 28). Nesse contexto surgiram

“virtudes” do brasileiro que estariam associadas unicamente ao corpo e não ao espírito. E

servindo igualmente para singularizar o olhar do indivíduo sobre si mesmo, além do olhar

estrangeiro (eurocêntrico) sobre esse brasileiro, listado por Jessé Souza como detentor de:

sexualidade, emotividade, calor humano e hospitalidade, entre outros. Assim, para o sociólogo,

Gilberto Freyre buscaria em sua obra sintetizar uma identidade que pudesse ser compartilhada

por todos os brasileiros, de forma homogênea. Algo que Souza chamaria de culturalismo “vira-

lata” (SOUZA, 2017, p. 28).

Em 1968, logo após a criação da Tropicália enquanto movimento, representada pelo

lançamento do manifesto discográfico Tropicália, além dos trabalhos solistas de Caetano

Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, entre outros, o poeta Décio Pignatari faria uma defesa

efusiva do tropicalismo, comparando-o com a visão freyreana sobre a identidade nacional:

O nosso tropicalismo é recuperar forças. O de Gilberto Freyre é o trópico visto da casa

grande. Nós olhamos da senzala. Pois, como dizia Oswald de Andrade, não estamos

na idade da pedra. Estamos na idade da pedrada. Interessa é saber comer e deglutir,

que são atos críticos, como fazem Veloso e Gil. (CALADO, 2000, p. 201).

Esta fala de Pignatari, proferida durante evento no auditório da FAU (Faculdade de Arquitetura

44

e Urbanismo da USP), em junho de 1968, sinalizaria uma intencionalidade, ao menos no

discurso, de se buscar uma mirada social descolonizada sobre a questão da identidade cultural

brasileira (e latino-americana). Como ressalta Paulo Freire, para o opressor, a humanização dos

oprimidos coisificados (senzala) seria considerada uma subversão, bem como a sua liberdade

(FREIRE, 1987, p. 26). Nesse sentido, a suposta abordagem de Gilberto Freyre poderia ser

entendida, menos como uma ótica romantizada ou ingênua, e mais como espécie de reprodução

patriarcal(ista) e opressora da desumanização sujeitos negros e indígenas perpetrada (e

perpetuada) pelo indivíduo branco. Isto em que pese a suposta intencionalidade pré-existente

do autor referente a uma hipótese controversamente utópico-harmoniosa de miscigenação dos

povos. Por outro lado, entendemos que um ponto de vista gerado a partir do trópico da senzala,

ressaltada pelo poeta concretista, buscaria, em tese, libertar mentes colonizadas.

E a citação de Oswald de Andrade feita por Décio Pignatari quanto a uma suposta “idade

da pedrada” à época, nos remete à fala de Caetano Veloso do ano anterior relativamente à

necessidade de violência que o músico admitia sentir. Ambas seriam pedradas simbólicas, de

certo, capazes de refletir o sentido de urgência e sentimento de mudança em curso vividos

naqueles tempos, seja no Brasil e no continente americano, bem como no mundo; inclusive

entre os ex-colonizadores ibéricos, Espanha e Portugal, também submetidos por regimes

opressores de cunho fascio-ditatorial (o franquismo espanhol e o salazarismo português,

respectivamente) perpetuados por décadas durante o século XX. Isto nos remete, de igual modo,

ao conhecido apoio de Gilberto Freyre à ditadura salazarista, em Portugal. As teses de Gilberto

Freyre seriam demasiadamente apreciadas, inclusive, pelo Estado Novo português – sobretudo

a partir de 1950 –, e ensinadas posteriormente no Instituto Superior de Ciências Sociais e

Política Ultramarina (ISCSPU) com objetivo de produzir intelectualmente uma elite

responsável por administrar as colônias da época. (RAMPINELLI, 2014, p. 130). A doutrina do

sociólogo brasileiro – o lusotropicalismo – passaria, assim, a ser sistematicamente apre(e)ndida

em um estabelecimento de ensino superior, gerando inúmeros trabalhos teóricos e de campo de

cunho lusotropicalista. Nesse sentido, o colonialismo português acabaria historicamente

legitimado por tais conceitos, sedimentando um discurso baseado em um sistema de valores

culturais, pseudo-civilizacionais e cristãos próprios34.

34

Algumas obras escritas por Gilberto Freyre sobre o lusotropicalismo seriam: “Integração portuguesa nos

trópicos” (1958) e “O luso e o trópico” (1961), ambas encomendadas pelo regime salazarista. Tais escritos tornar-

se-iam material de propaganda para justificar a política colonial portuguesa. Freyre entendia o lusotropicalismo

como “o estudo sistemático de todo um conjunto ou de todo um complexo de adaptações do português aos

trópicos” (RAMPINELLI, 2014, p. 130 e 131).

45

Ainda sobre o falso mito da democracia racial lusotropicalista defendida por Freyre

durante o século XX, Nelson Werneck Sodré (1967) assinala que a defesa da dita miscigenação

enquanto fator suavizante das relações de raça e classe no Brasil se revelaria como “falsidade

transparente”, desprovida de qualquer significação objetiva (SODRÉ, 1967, p. 149 e 150). Para

tanto, o historiador destaca a importância do componente feminino (na grande maioria dos

casos) no contexto dos cruzamentos - e submissões históricas - entre indivíduos brancos e

negros na cotidianidade:

(...) sabemos bem que um dos traços mais nítidos da sociedade que começou a vigorar

na época moderna foi a submissão da mulher, de seu papel secundário, do plano

inferior em que foi sempre colocada. (…) Jamais acudiria ao espírito de um branco

colocar os seus descendentes brancos no mesmo nível dos seus descendentes mulatos.

Estes permaneciam na classe a que pertencia o componente negro, a escrava, a liberta,

a mucama, a mulata. (SODRÉ, 1967, p. 149 e 150).

Para além do olhar de Freyre e da escuta otimista de Martín-Barbero em relação ao

processo de mesclas sonoro-culturais, observamos que mesmo o desejo de integração das

Américas (defendido por Eduardo Galeano, Darcy Ribeiro e outros) também pode ser

atravessado pelo viés culturalista. Para Jessé Souza (2017), o culturalismo guarda traços racistas

em sua essência através da “separação ontológica” entre pessoas de primeira e de segunda

classe. Um racismo que, segundo Souza, hierarquiza indivíduos para assim garantir, ancorado

no culturalismo, uma sensação de superioridade e de “distinção para os povos e países que estão

em situação de domínio para então legitimar e tornar merecida a própria dominação” (SOUZA,

2017, p. 18 e 19). O autor ainda aponta a sensação de superioridade expressa por europeus e

estadunidenses frente a latino-americanos e africanos.

Para o sociólogo, o racismo culturalista no Brasil faz com que um indivíduo de classe

média que não apresente atitude abertamente racista, também se sinta em relação aos extratos

sociais mais pobres do seu país como um germânico ou um estadunidense se sentiria, segundo

Jessé, em relação a um brasileiro. Ou seja, esse indivíduo se esforça para tratar os outros sujeitos

como se estivessem todos “sob a capa de uma proclamada igualdade de fato, introduzindo,

contudo, sua sorrateira vantagem de direito”. (SOUZA, 2017, p. 19 e 20); (CASTRO, 2002, p.

117). Esta vantagem pode ser explicitada na visão que um antropólogo comumente faria sobre

um nativo indígena, ao não o ver como um sujeito outro, também chamado figura de “Outrem”,

46

e que antes de ser sujeito ou objeto, seria a expressão de um mundo possível, diz Eduardo

Viveiros de Castro. (2002, p. 117).

No que tange às identidades culturais dos indivíduos ou sujeitos inseridas nas relações

sociais do cotidiano, é possível supor que o chamado racismo culturalista poderia ser expresso,

em linhas gerais, através da perpetuação da identidade branca hegemônica, munida de carga

simbólica de opressão histórica. Esta identidade branca seria vista, inclusive, como universal-

padrão nas sociedades, a ponto de sequer existir, de fato, dado o grau de sua naturalização e

predominância estrutural - em detrimento das demais identidades oprimidas, estigmatizadas,

pertencentes ao “outro”. E no contexto das expressões culturais cotidianas (seja música, cinema,

literatura e outras), esta identidade universal branca e dominante (da “casa grande”), ao assumir

o referido papel de não-identidade, reduziria as lutas de categorias subalternizadas como sendo

meras pautas identitárias. (MANOEL, 2019).

Isto é, o chamado identitarismo enquanto expressão cultural estaria relacionado

(subjugado ou, se muito, fetichizado) exclusivamente às representações de identidades

minoritárias. Exemplos práticos podem ser trazidos do subcapítulo anterior no que tange às

identidades contidas na música popular sob a ótica da indústria cultural. Assim, a estética da

bossa nova, em linhas gerais, representaria uma identidade dominante, vista como símbolo

nacional e carregada de signos ligados à sofisticação, pureza, intelligentsia, além de uma

universalidade exportável e reconhecível enquanto padrão hegemônico, e branco – embora

contasse com imprescindível aporte musical de um músico negro, como Johnny Alf, desde os

primórdios do gênero (MIRANDA, 2020)35. Por outro lado, a sonoridade da banda de Pífanos

de Caruaru seria, em tese, identificada como música nordestina (folclórica, precária,

improvisada, primitiva, exótica e de caráter regional, circunscrita a sua localidade de origem, e

mestiça). Assim como a relação hibridizada entre o rock universal dos Beatles e a igualmente

exótica música indiana de Ravi Shankar e outros, teria relegado aos músicos do Sul global em

geral o rótulo estereotípico de world music (CANCLINI, 2005, p. 167).

Ailton Krenak ressalta como os povos originários da América Latina eram tratados

como bárbaros por colonizadores europeus, com o objetivo de transformá-los em civilizados,

35

Segundo a jornalista, Johnny Alf – cujo legado permaneceria atualmente desconhecido inclusive entre

brasileiros - comporia a canção “Rapaz de bem” (1953) alguns anos antes do lançamento oficial do álbum “Chega

de saudade” (1959) - considerado o marco zero da bossa nova - já incorporando elementos de melodia, canto e

ritmo que seriam consagrados posteriormente pelo gênero musical popularizado por João Gilberto. Para tanto,

Beatriz Miranda apoia-se no autor Ramalho Neto e sua obra “Historinha do Desafinado” (1965), onde este defende

que “Rapaz de bem”, de Johnny Alf, teria sido, de fato, a primeira canção de bossa nova a ser composta e gravada.

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=FkOiG5SUFmk >. Acesso em: 4 ago 2020.

47

que poderiam integrar o clube da humanidade. Krenak lembra ainda que grande parte dessas

pessoas não são indivíduos, mas pessoas coletivas capazes de transmitir através do tempo suas

visões de mundo. Uma experiência que, segundo o autor, acabaria sendo (mal) compreendida

por antropólogos enquanto traço meramente cultural; mas tratando-se, na verdade, de uma

estratégia de resistência e “memória profunda da terra”. (KRENAK, 2019, p. 14). A ideia de

pessoas coletivas para se referir à cosmovisão dos povos originários remete ao que Viveiros de

Castro (2002, p. 117) descreve sobre como o indígena, mais do que sujeito, representa também

a expressão de um mundo possível. E para que haja una real compreensão desta (cosmo)visão

não-branca e particular do “nativo”, seria preciso novamente um exercício de ressignificação –

seja do antropólogo ou do indivíduo branco em geral – antirracista e anti-culturalista. E não

apenas uma mudança existencial em relação à inclusão das identidades culturais do sujeito

“outro” indígena, mas também da descolonização dos espaços públicos nas cidades, no campo

simbólico e igualmente prático. Por exemplo, no ato de destronar estátuas de figuras antes

consideradas históricas, porém, ligadas ao racismo, escravidão e, também, ao genocídio de

povos originários nos continentes africano e americano36.

Já o geógrafo Milton Santos (2006) defende a força do que o autor chama de “homens

lentos” nas grandes cidades em contraponto aos ditos “homens velozes” que, historicamente,

detinham a inteligência do mundo. Segundo Santos, a tal velocidade (das classes superiores)

teria permitido que a Europa empurrasse a sua civilização para o resto do mundo. E,

consequentemente, se levantasse nas terras conquistadas bustos e estátuas para celebrar e

eternizar os feitos desses velozes heróis expansionistas, responsáveis por descobrir, colonizar e

civilizar povos nativos invadidos, impondo sua cultura (costumes, idioma e religião) e

apagando saberes, identidades culturais e tradições ancestrais. Pensando no contexto pós-

colonial latino-americano, mesmo com a referida expansão civilizatória europeia estes homens

lentos (pobres e migrantes), contudo, seriam igualmente capazes de propor novos usos e

finalidades para objetos e técnicas, bem como novas articulações práticas e novas normas, tanto

na vida social como afetiva. E, também, fortemente ativos, inclusive, no que tange à esfera

comunicacional, ao contrário das classes ditas superiores. Santos estabelece, então, um choque

entre as culturas objetiva, promovida por homens velozes, e subjetiva, oriunda dos homens

36

Ver “Estátua de Cristóvão Colombo é derrubada em Baltimore, nos EUA” – ocorrido durante os protestos

antirracistas iniciados naquele país em 25 de maio de 2020. Publicada em 5 de julho de 2020. Disponível em: .<

https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/07/05/interna_internacional,1162842/estatua-de-

cristovao-colombo-e-derrubada-em-baltimore-nos-eua.shtml >. Acesso em: 6 jul. 2020.

48

lentos, cujo resultado tornar-se-ia instrumento para a produção de uma nova consciência.

(SANTOS, 2006, p. 221).

Entende-se, pois, que a ocupação e interação de músicos populares em “não-lugares”

(BAUMAN, 2001), seja nos ônibus, trens, metrô, barcas ou praças, acabaria por gerar uma nova

– ainda que efêmera - função social para aquele objeto na vida cotidiana e afetiva das cidades.

Músicos ditos lentos de chicha peruana apresentando-se em frente a uma estação do metrô de

uma metrópole como São Paulo, por exemplo, seriam capazes de gerar “condensações

instantâneas (...) tão frágeis, mas que, no seu momento, são objeto de forte envolvimento

emocional” (MAFFESOLI, 1998, p. 107) e, quiçá, de integração. Por outro lado, imaginamos

que a derrubada de uma estátua ou busto de colonizador em meio a um ritual que incluiria dança

e canto, organizado por ativistas descendentes de povos nativos37 seria um ato carregado de

potência simbólica gerada por homens e mulheres igualmente lentos. Da mesma forma, estes

se utilizam da esfera comunicacional para dar novos usos e finalidades a um objeto (estátua),

além de reivindicar o resgate de sua identidade cultural, ressignificando uma peça do espaço

urbano e, assim, suscitar reflexões e debates sobre colonialismo, racismo, saberes e

cosmovisões ancestrais e identidades culturais latino-americanas.

Sobre os elementos constitutivos responsáveis pela construção de uma identidade

cultural, bem como do conceito de diáspora, Stuart Hall (2003) teoriza da seguinte forma:

Essencialmente, presume-se que a identidade cultural seja fixada no nascimento, seja

parte da natureza, impressa através do parentesco e da linhagem dos genes, seja

constitutiva de nosso eu mais interior. É impermeável a algo tão “mundano”, secular

e superficial quanto uma mudança temporária de nosso local de residência. A pobreza,

o subdesenvolvimento, a falta de oportunidades – os legados do Império em toda parte

– podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento – a dispersão. Mas

cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor. (HALL, 2003, p.

28).

E mesmo que se encontre em um ponto de não retorno, quanto menos inserido o

indivíduo (seja ele pobre, minoritário ou migrante), mais naturalmente o choque da novidade o

atingiria e a descoberta de um novo saber lhe seria, em tese, mais fácil. Portanto, ser um

migrante obrigado a reaprender algo nunca lhe havia sido ensinado naquele novo ambiente, o

faria substituir, aos poucos, a sua ignorância em relação ao entorno pela aquisição de uma

espécie de conhecimento, ainda que fragmentário. E, assim, através de um processo de

37

Conforme Native American Activists Topple Columbus Statue in Minnesota (Ativistas nativos estadunidenses

derrubam estátua de Colombo em Minnesota – tradução nossa). Membros do movimento indígena local realizaram,

ainda, uma performance, dançando e cantando em torno da estátua de Cristóvão Colombo derrubada do pedestal.

Disponível em: < https://hyperallergic.com/570626/native-american-activists-topple-columbus-statue-in-

minnesota/ >. Acesso em: 12 jun. 2020.

49

integração e de entendimento, o indivíduo recuperaria a parte do seu ser que parecia até então

perdida; a sua identidade (SANTOS, 2006, pp. 223 e 224). Por assim, seria capaz de gerar,

inclusive, formas inéditas de mesclas sonoras, combinando (ou reinterpretando) instrumentos e

gêneros musicais de uma cultura recém-descoberta, com o seu conhecimento sonoro e

musicalidade adquiridos e trazidos de seu território de origem.

Martín-Barbero, quando discorre sobre o que chama de povo e massa na cidade, defende

uma “percepção sobre o popular como trama, entrelaçamento de submissões e resistências,

impugnações e cumplicidades” (2003, p. 277). Sua colocação vem como contraponto ao que

ele mesmo chama de identificações maniqueístas. Estas, pois, representariam a ideia simplista

(ou dicotômica) sobre uma resistência intrínseca, espontânea, que o subalterno oporia ao

hegemônico. Enquanto perspectiva histórica, Martín-Barbero acreditaria que tal dinâmica mais

fluida em relação ao hegemônico conteria, em linhas gerais, as características fundamentais e

os traços do popular na América Latina. (MARTÍN-BARBERO, 2003, pp. 277 e 278).

Em relação especificamente à música popular latino-americana, produzida a partir da

segunda metade do século XX, é possível relacionar as assimilações, mesclas e hibridizações

sonoras realizadas por artistas - tanto do rock quanto da música regional -, com a visão de

resistência cultural defendida pelo autor. Não haveria, portanto, sob essa ótica, uma rejeição ou

disputa contra o hegemônico (ou, no caso, a indústria cultural), mas uma forma – entre o

submisso e o subversivo - de captar e adicionar novas frequências de forma atenta, como antena

parabólica enfiada na lama38. E a partir da década de 1950, segundo o autor, o cinema e o rádio

teriam se tornado os principais difusores de uma integração musical latino-americana, apoiada

“tanto na ‘popularidade’ de certos ritmos – o bolero, a rancheira, o tango – quanto na mitificação

de alguns ídolos da canção” (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 280).

A cultura popular passaria a ser apoderada, a partir dos anos 1960, por uma indústria

cultural cada vez mais extensiva enquanto influência sobre o gosto popular. O estímulo ao

consumo, o fascínio tecnológico, além do desejo por estilos de vida homogeneizados, e,

também, a execração do nacionalismo (ou soberania nacional), banido para uma etapa anterior

ao desenvolvimento tecnológico, se tornaram parte da proposta industrial-cultural; bem como

38

Referência nossa ao trecho “uma antena parabólica enfiada na lama”, retirado do manifesto “Caranguejos com

cérebro” do músico pernambucano Fred 04 (vocalista da banda Mundo Livre S/A), um dos precursores do

movimento musical Manguebeat, nos anos 1990. O objetivo desse movimento, na prática, seria criar um “‘circuito

energético’ capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop.”

(G1, São Paulo, 2009). Disponível em: .< http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1308779-7085,00-

LEIA+O+MANIFESTO+CARANGUEJOS+COM+CEREBRO.html >. Acesso em: 15 jul. 2020.

50

a apropriação de conteúdos sociais, culturais e religiosos à dita cultura do espetáculo

(MARTÍN-BARBERO, 2003). Em relação ao cenário da indústria fonográfica no Brasil, os

anos 1960 representam o princípio de um período de progressiva expansão do mercado de bens

simbólicos do País, elevando a produção discográfica, segundo dados da Associação Brasileira

dos Produtores de Discos (ABPD), de 5.5 milhões de unidades em 1966 para 52.6 milhões em

1979 (VICENTE, 2008, p. 101). Em paralelo a tal fenômeno, selos multinacionais se instalaram

no Brasil, como a Philips (1960), a WEA, pertencente ao grupo Warner (1976) e a espanhola

Ariola (1979). (VICENTE; DE MARCHI, 2014, p. 17).

Da mesma forma, grupos de comunicação brasileiros passaram a investir recursos

financeiros no ramo fonográfico, apostando no grande potencial comercial presente naquele

auspicioso mercado musical. Nesse sentido, a Rede Globo de Televisão criaria, em 1969, a

gravadora Som Livre por conta da repercussão positiva do público em relação aos Festivais da

Canção; assim como Tupi, Bandeirantes e Record lançaram os selos GTA, Bandeirantes Discos

e Seta, respectivamente (VICENTE, 2014, p. 69). A década de 1960 seria marcada ainda pela

maior difusão da televisão enquanto veículo de massa, consolidando-a como vetor central na

cultura da mídia do País, causando, assim, grande impacto em relação ao consumo musical do

brasileiro. A TV tornar-se-ia, pois, um veículo imprescindível na divulgação de uma nova

geração de artistas por meio de programas como O Fino da Bossa, Jovem Guarda, além da

transmissão dos Festivais de Música, todos surgidos em meados dos anos 1960. (VICENTE;

DE MARCHI, 2014, p. 17 e 18).

De volta ao impacto da Tropicália no cenário artístico-musical brasileiro, durante o

mesmo evento em que Décio Pignatari havia participado, no auditório da FAU, em 1968,

Gilberto Gil acabaria sendo confrontado por uma plateia dita nacionalista (e aversa ao apetite

antropofágico dos tropicalistas) por estar - segundo os descontentes - defendendo a

comercialização da arte. Em sua defesa, Gil argumenta sobre a intenção em ampliar a circulação

de sua música, sendo este o caminho possível para torná-la acessível a mais pessoas, o que não

implicaria, na visão do músico, em submetê-la à lógica das relações capitalistas, isto é,

transformando-a em mera mercadoria. (CALADO, 2000, p. 201).

Os tropicalistas estavam, portanto, com suas antenas direcionadas para o mercado

transnacional, embora reivindicassem ao mesmo tempo uma nova identidade nacional e latino-

51

americana - onde quiçá fosse possível, futuramente, que um tango híbrido39 argentino soasse

(tão bem ou) melhor do que um blues40. E a partir dos discursos tropicalistas podemos especular

que a relação aparentemente promíscua e subalternizada entre a Tropicália e indústria cultural

– bem como das nuevas olas (novas ondas) sonoras crescentes enquanto música jovem na

América Latina em geral - não promoveria de fato (ou como fim) o banimento do nacionalismo

através da suposta “homogeneização dos estilos de vida desejáveis” (MARTÍN-BARBERO,

2003, p. 280).

Em contrapartida, assim como tivemos movimentos musicais oriundos do Norte e

Nordeste do Brasil relacionáveis ao Tropicalismo e em paralelo à proposta de Gil e Veloso

(baianos radicados no Sudeste), vale resgatar o Movimento Armorial (de 1971) como

contraponto relevante de caráter popular, nacionalista e refratário à cultura de massa. Um dos

fundadores dessa iniciativa artística seria o escritor Ariano Suassuna, defensor de valores ético-

estéticos que podem ser considerados como desdobramentos culturais inspirados tanto no

Modernismo de Oswald de Andrade quanto na reverência regionalista de uma suposta

identidade brasileira cunhada por Gilberto Freyre - respeitadas as devidas singularidades

históricas. Já o Tropicalismo, como dissemos neste subcapítulo, elegeria, pois, extrair – ou

deglutir - a porção antropofágica do Modernismo dos anos 1920. (BEZERRA, 2009, p. 4).

Suassuna, por sua vez, exaltava – bem como sacralizava - o popular (em tese) puro, algo

explicitamente evidenciado em sua célebre obra O Auto da Compadecida, uma peça teatral

escrita pelo autor paraibano em 1955. As referências freyreanas são notáveis na criação artística

de Ariano Suassuna no que se refere à busca do dramaturgo, romancista, ensaísta e poeta pela

reinterpretação e revalorização das culturas populares (rurais e) urbanas do Nordeste; uma

estratégia realizada com intuito de (re)construção de uma identidade nacional a partir desse

prisma sociocultural. (BEZERRA, 2009, p. 5).

De toda forma, tanto o Movimento Armorial quanto o Tropicalismo buscavam ressaltar,

cada qual à sua maneira, as encruzilhadas filosóficas do pensamento popular e nacional(ista)

em suas trajetórias e isto ocorreria por meio da defesa, contraposição ou deglutição (e

hibridização) das manifestações culturais-nacionais. Porém, o desfrute deste caldo cultural seria

39

O termo “tango híbrido” faz referência ao álbum intitulado Hybrid Tango (Tango Híbrido, 2004), do grupo de

tango eletrônico argentino Tanghetto. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=eO7wldfDThs&t=1670s >. Acesso em: 15 jul 2020. 40

Referência nossa aos versos de inspiração tropicalista do cantor Belchior: “Ah, você sabe e eu também sei. Um

tango argentino me vai bem melhor que um blues”, contidos na canção “A palo seco” (1976). Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=esO4GmpJjPI >. Acesso em: 15 jul. 2020.

52

receitado em ambos os casos, de modo ou à moda coletiva e não individual (ou self-service);

isto é, duas receitas dispondo de ingredientes similares, e cujos temperos – embora distintos -

enriqueciam e respondiam à mesma culinária. E onde uma suposta pureza popular acabaria

(re)interpretada ou essencialmente ampliada em cada livre degustação, isto é: o puro visto ao

mesmo tempo como objeto liberto, desnudado e de sabor não categorizável frente às

convenções e (de)limitações estéticas, morais e mercadológicas da sociedade do

(hiper)espetáculo.

O produtor musical Manoel Barenbein, responsável por coordenar as gravações dos

primeiros discos tropicalistas de Caetano e Gil, vaticinou quanto a igualmente antropófaga

banda Mutantes a possibilidade de se criar uma música pop com feição mais brasileira, em

oposição aos “rockinhos primários e às versões açucaradas que infestavam a Jovem Guarda”

(CALADO, 2000, p. 159). Em contrapartida, não se deve desprezar o valor cultural (para além

do industrial) do movimento simbolizado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa por

conta do pioneirismo jovem-guardista em apresentar à juventude brasileira sua (sub)versão41

da beatlemania oriunda da Europa como alternativa de entretenimento de caráter (trans)nacional

no chamado “país do futebol” e no contexto industrial e mercadológico.

Igualmente menosprezada pela intelligentsia nacional, a Jovem Guarda, enquanto marco

zero de influência musical dos Beatles no Brasil, acabaria difundindo posteriormente artistas

de significativa relevância cultural e mercadológica no país. O dito roquinho primário serviria

ainda como ingrediente fundamental acrescido à receita da geleia geral tropicalista, tanto na

estética e irreverência (Os Mutantes, por exemplo), quanto na feitura das composições em si -

como vemos na homenagem explícita contida na canção “Tropicália”42. De igual forma, é

preciso neste caso situarmos e dimensionarmos sociopolítica e cultural-industrialmente a Jovem

Guarda (bem como os demais eventos de massa ocorridos à época) no contexto histórico em

que tal fenômeno se deu, isto é, durante os primeiros anos de regime militar no Brasil, pós-

golpe de 1964. Para Martins (1966), o refrão “Quero que você me aqueça neste inverno / E que

tudo mais vá pro inferno”, da canção “Quero que vá tudo para o inferno” (1965), sintetiza o

41

Além de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, destacaram-se na indústria musical brasileira artistas como

Wanderléa, Celly Campello, Tim Maia, Lafayette e Renato Barros – este o líder do grupo Renato & Seus Blue

Caps por seis décadas (1960 – 2020), responsável por compor e gravar diversas canções exitosas do período da

Jovem Guarda, bem como versões em português de músicas da primeira fase dos Beatles (1962 – 1965). Entre

elas, Love me do (1962), traduzida por Renato Barros para “Sou tão feliz” (1965). (HOWLETT, 1982, p. 61).

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=a8I23dbDh3k >. Acesso em 15 jul 2020. 42

A canção “Tropicália” (1968), de Caetano Veloso, faz referência à Jovem Guarda no verso: “Que tudo mais vá

pro inferno, meu bem”, aludindo a “Quero que vá tudo pro inferno” (1965), música de Erasmo e Roberto Carlos.

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=1Z1qNsm-NUk >. Acesso em: 15 jul. 2020.

53

desinteresse de uma geração de classe média frente aos padrões da sociedade (des)constituída.

A composição, por outro lado, não continha tal intencionalidade, embora incluísse uma frase-

sentimento ou brado capaz de afetar involuntária e diretamente o dito cidadão médio, que

acabaria se reconhecendo nos referidos versos como se estes fossem um pouco de sua autoria,

ou seja, sentindo-se igualmente coautor da música.

Nesse sentido, o ato de desejar que algo ou alguém vá para o inferno, no espectro das

expressões brasileiras utilizadas no cotidiano, expressaria, pois, o sentimento de impotência de

um sujeito desanimado, cansado ou quiçá frustrado ante a realidade, e consequentemente

desinteressado dela e que, embora mantivesse uma boa vida de playboy43, esta acabaria

perdendo o valor. Especificamente para os jovens, Rui Martins (1966) entende que a expressão

representaria:

(…) o retorno a uma posição individualista, de simples defesa dos próprios interesses.

Contraposta, portanto, à precedente atitude de preocupação coletiva da «bossa nova»,

caracterizada por uma oposição construtiva. «Vá tudo pro inferno» sintetizou a

posição do jovem que diante de problemas que lhe são apresentados, reage com um

«que me importa?», numa demonstração de uma precoce acomodação, de um

desinteresse por tudo aquilo que ultrapasse seu desejo de ser «aquecido no inverno»,

ou seja, de ter suas necessidades individuais satisfeitas.

Podemos supor que essa rebelião romântica (alienada e frustrada) supostamente

representada pela Jovem Guarda tenha sido re-conhecida (MARTÍN-BARBERO, 2003), pois,

como espécie de canção de protesto reacionária esvaziada e egoísta contra a situação política

vigente no Brasil. Isto embora seja uma rebelião originária justamente de um espectro da

sociedade responsável por incentivar o golpe civil-militar de 1964 no País. Em linhas gerais,

seria um tema com potencial de suscitar - ou quiçá sintetizar - o ressentimento, hedonismo e

comodismo de uma parcela da sociedade de meados dos anos 1960. Anos mais tarde, já durante

a primeira década do século XXI, tal revolta individualizada acabaria amplamente representada

(e midiatizada) nas grandes cidades por milhares de brasileiros oriundos das camadas médias e

de espectros ideológicos diversos (por vezes antagônicos entre si) em marchas que exibiam nas

avenidas - entre outros - inúmeros protestantes sem pautas específicas, mas aparentemente

“com muito orgulho e muito amor” de serem brasileiros44.

43

Referência aos versos: “De que vale a minha / Boa vida de playboy / Se entro no meu carro / E a solidão me

dói” da citada canção. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=GJ6aDjVAeJI >. Acesso em: 20 fev

2021. 44

Referência nossa ao canto “sou brasileiro / com muito orgulho / com muito amor” ouvido durante as

manifestações (ditas apartidárias) conhecidas como jornadas de junho de 2013. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=vEwLJ0WLCaA >. Acesso em: 20 fev 2021.

54

Por outro lado, o poeta Augusto de Campos, segundo relata Caetano Veloso (1997) em

suas memórias, defendia o que alcunhou de “folclore urbano” da Jovem Guarda enquanto

oposição aos “nacionalóides” da MPB que, envergonhados do avanço que teriam dado,

recorreriam a “superados padrões e inspirações folclorísticos e afetações populísticas”.

(VELOSO, 1997, p. 210). Contudo, embora saibamos que Roberto Carlos comporia (com

Erasmo Carlos) “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos” (1971) em solidariedade a Caetano

Veloso - obrigado a exilar-se em Londres após a instauração do chamado AI-5 -, eram notórias

as relações no mínimo cordiais (e colaborativas) entre o rei do iê-iê-iê e o regime militar - em

ritmo de ditadura (BORTOLOTTI, 2014). Ironicamente o termo jovem guarda, utilizado para

denominar um movimento musical brasileiro assumidamente despolitizado (ao menos

ideologicamente), teria sido extraído de uma frase atribuída ao líder revolucionário russo

Vladimir Lênin (ALABARSE, 2015).

Se há todo este debate em torno da identidade nacional no Brasil, também não é simples

discutir a identidade latino-americana. Néstor Canclini (2005), entre outros, ressaltaria a

complexidade existente na definição de latino-americano a partir das culturas originárias. já

que, apesar dos mais de 40 milhões de indígenas viventes na América Latina, existiria, há

séculos, a população de milhões de afro-americanos (ou afro-latinos), da mesma forma situados

(e escravizados) na região, via diáspora, durante ao período colonial – e após. Contudo, quanto

à música:

Existem estudos especializados - sobre a santería cubana, o candomblé brasileiro e o

vodu haitiano, por exemplo -, e ultimamente, as músicas que os representam são

valorizadas e difundidas pelas indústrias culturais. Mas raramente se incluem os

grupos que sustentam estas produções culturais na análise estratégica daquilo que a

América Latina pode ser. (CANCLINI, 2005, p. 169).

Isto nos remete ao conceito de “amefricanidade” proposto por Lélia Gonzalez (1988).

Uma categoria político-cultural que indica a plausível integração entre os indivíduos negros

provenientes da diáspora africana nas Américas - seja a do norte e sul, insular ou caribenha,

bem como as experiências que tiveram em comum após a chegada ao Novo Mundo. E para

justificar a referida reflexão (e convocação) referente à representação “amefricana” da

coletividade diaspórica na América Latina, Gonzalez baseia-se no racismo enquanto sistema de

dominação comum (ou seja, integralmente arraigado) à região a partir da escravidão. Embora

as pessoas escravizadas estivessem territorialmente estabelecidas em distintos (e por vezes

deverasmente distanciados) agrupamentos e, nesse sentido, mantivessem suas respectivas

singularidades concernentes às vivências cotidianas próprias e específicas.

55

Segundo a antropóloga, ao se assumirem como parte da chamada “amefricanidade”,

estes sujeitos seriam capazes de transcender uma visão fantasiosa ou mitificada da África e,

concomitantemente, buscar uma nova perspectiva acerca das múltiplas e complexas

experiências vivenciadas cotidianamente pelos “amefricanos” na região (GONZALEZ, 1988,

p. 78). Isto é, para além da exploração e do etnocídio impostos aos povos diaspóricos nas

colônias ibéricas, teria ocorrido uma igualmente intensa troca de saberes ancestrais referentes

às distintas raízes culturais de cada sujeito. E estas seriam, pois, transformadas (ou

hibridizadas), formando então novas relações cotidianas por meio das identidades culturais.

Talvez seja possível, da mesma maneira, associar tal experiência à dos migrantes nas grandes

cidades, teorizada por Milton Santos (2006), onde novas articulações, práticas e normas seriam

pactuadas entre os ditos homens lentos latino-americanos; tanto afetiva quanto socialmente. E,

assim, um embate dicotômico se estabeleceria entre a cultura subjetiva dos lentos (migrantes)

e a dita objetiva dos velozes (europeus e brancos). Em outras palavras, podemos supor uma

“razão” branca sendo contraposta a uma “emoção” negra (GONZALEZ, 1988 p. 77). Ou quiçá

uma miopia refletida na lente do opressor frente a uma utopia refletida via mente do oprimido.

A autora lembra que as alterações idiomáticas resultantes da presença dos africanos no

Caribe acabariam por transmutar (ou “amefricanizar”) tanto o espanhol quanto o inglês e o

francês falados na região. Gonzalez definiria ainda tal hibridismo como “pretoguês” enquanto

símbolo cultural da africanização do português falado desde o Brasil-colônia. Vale lembrar que

os colonizadores portugueses denominavam os escravizados oriundos da África como pretos e

os nascidos no Brasil como crioulos. Fenômeno colonialista similar ocorreria paralela e

concomitantemente em relação à língua espanhola falada na região caribenha. Semelhanças

percebíveis de maneira indubitável em tais processos quando a mirada e a escuta se voltam

igualmente para as músicas, danças, sistemas de crenças etc. (GONZALEZ, 1988, p. 70). Ou

seja, uma pátria grande “amefricanizada” e ressignificada por meio dos elos ancestrais-culturais

desenvolvidos entre sujeitos pretos e prietos45 na América Latina.

Lélia Gonzalez (1988) reivindicaria uma América africana, descartando uma latinidade

inexistente - segundo a filósofa e antropóloga –, baseando-se no histórico-cultural relativo ao

Brasil, cujas formações do inconsciente seriam tão somente europeias, isto é, brancas

45

Referência nossa à canção Somos los prietos (“Somos os pretos” - 2018), do grupo de hip-hop colombiano

ChocQuib Town, e em versos como: Somos los prieto. Afro de Colombia que representamos donde quiera. Te lo

digo de una vez, orgullosa de mi bandera (“Somos os pretos. Afro da Colômbia que representamos onde quiser.

Te falo de uma vez, orgulhosa de minha bandeira” – tradução nossa). Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=2wzqWhwt8zE. Acesso em: 2 nov. 2020.

56

(GONZALEZ, 1988, p. 69). A amefricanidade seria, pois, uma reivindicação exclusivamente

afro-centrada e não latino-orientada, bem como direcionada aos aspectos político-socioculturais

“amefricanos” presentes tanto nos sujeitos situados no Brasil quanto nos demais países das

Américas do Sul, Central e do Norte (incluindo os Estados Unidos). E, nesse sentido, se opondo

igualmente à reposição de uma hierarquização sociocultural e (geo)político-continental nas

Américas, isto é, evitando que afro/africano-americanos estadunidenses se impusessem à frente

ou acima de afro/africano-colombianos ou de afro/africano-peruanos, por exemplo

(GONZALEZ, 1988, p. 78). Talvez possamos imaginar – ainda assim - nuances relacionáveis

entre a categoria político-cultural de Lélia Gonzalez e a hipótese preconizada por Darcy Ribeiro

quanto ao chamado “gênero humano novo”: ambos como símbolos do desejo e da ação

emancipatório-transformadora lograda por meio de uma consciência pós-colonialista

compartilhada tanto por latino-americanos quanto por “amefricanos”.

2.3 Representações sociais no cotidiano e identidade musicais latino-americanas

Antes de abordarmos, de fato, as novas formas de integração musical através das

identidades culturais, bem como as possíveis mediações no popular-urbano frente ao processo

histórico, político, cultural e econômico na América Latina, entendemos como necessário

conceituarmos brevemente um dos termos-chave deste subcapítulo: as representações sociais

no cotidiano. Para Nildo Viana (2008), a discussão sobre representações sociais deve

considerar, primeiro, as questões propostas por Durkhein (1996, apud VIANA, 2008). Este,

ainda de acordo com Vianna, criou um vínculo entre os primeiros sistemas de representações

(que, para ele, seriam de origem religiosa), e a ideia de representações coletivas, sendo que

estas expressam, ao mesmo tempo, um caráter de coletividade e socialidade e variam de acordo

com a organização e constituição da sociedade.

As representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se estende

não apenas no espaço, mas no tempo: para criá-las, uma multidão de espíritos diversos

associou, misturou, combinou suas ideias e seus sentimentos: longas séries de

gerações nelas acumularam sua experiência e seu saber. (Durkheim, 1996, p. 23, apud

VIANA, 2008, p. 25).

Resumindo, segundo o que coloca Viana, as representações coletivas para Durkheim

disporiam de um caráter coletivo e sui generis, apresentando a sociedade como substrato e esta,

por sua vez, tendo no conjunto de indivíduos associados o respectivo substrato particular. Esse

arcabouço teórico teria, então, influenciado a teoria das representações sociais de Serge

Moscovici, o segundo autor que baliza as discussões de Viana. Este ressalta que tal base não

57

elimina diferenças importantes que existem entre ambas as teorias. Isso porque, enquanto as

representações coletivas referiam-se às tradições (enquanto saberes passados de geração em

geração) e tinham caráter homogêneo, as representações sociais de Moscovici explicitaram o

seu caráter marcado pela diversidade e pelo dinamismo (VIANA, 2008, p. 29).

Esta diferença se daria pelo fato de as representações coletivas terem sido produzidas

em um contexto de sociedades simples e estáticas, e as sociais, por sua vez, elaboradas em

sociedades contemporâneas e, por isso, trazem características delas. Tal contemporaneidade diz

respeito a uma concepção de sociedades modernas, dinâmicas e heterogêneas, caracterizadas

por seu pluralismo e pela rapidez com que as mudanças econômicas, políticas e culturais

ocorrem (FARR, 1997, p. 44 e 45, apud VIANA, 2008, p. 29).

As representações sociais são ‘teorias’ sobre saberes populares e do senso comum,

elaboradas e partilhadas coletivamente, com a finalidade de construir e interpretar o

real. Por serem dinâmicas, levam os indivíduos a produzir comportamentos e

interações com o meio, ações que, sem dúvida, modificam os dois (OLIVEIRA &

WERBA, 1998, p. 105 e 106, apud VIANA, 2008, p. 30).

No entanto, a partir de Sawaia (1995), Nildo Viana ressalta que a relação de dominação

e exploração existente na sociedade é ofuscada pelo ponto de vista da teoria das representações

sociais, pois estas são tomadas, como criações autônomas e sem ligação direta com o poder.

Sendo assim, o processo (de viés marxista) sobre dominação e exploração ocorrido na sociedade

moderna seria ignorado por Moscovici. Segundo Viana, a análise das representações

constituídas na sociedade precisa considerar tal processo, bem como a importância relevância

das classes e grupos sociais - e seus respectivos conflitos – para o desenvolvimento da

construção do saber cotidiano (VIANA, 2008, p. 48). O autor destaca, ainda, inspirando-se nas

teses marxistas, que as representações produziriam ações, de fato, e não apenas outras

representações, ou uma interpretação da realidade (p. 60).

Outro autor marxista citado é Ernst Bloch, que defende uma utopia concreta, cuja

função, enquanto pensamento utópico, é a transformação social. Uma visão que estaria em

desacordo (ou talvez servisse de complemento – ou alternativa teórica e prática) ao já citado

conceito de socialidade de Maffesoli, cuja ideia de “estar-junto” representaria perspectivas

místicas, poéticas e utópicas e estas seriam reverberadas através do ruído, da música e da

linguagem corporal. (1998, p. 113). O sociólogo francês propõe, assim, estilizar a existência

através da utopia e da ludicidade. Entretanto, para que as representações sociais (ou coletivas)

possibilitem uma transformação no cotidiano (através da resistência periférico-musical latino-

58

americana, por exemplo), seria admissível imaginar concretamente uma utopia em que se possa

tanto “dançar”46 quanto “caminhar”47, mirando um horizonte revolucionário; ou seja, uma

socialidade crítica.

A utopia nos devolve ao presente, mas com ímpeto de esperança. Isto é, de uma fé no

novo possível. A utopia não é mais um jogo intelectual, um sonho, uma obra de arte.

É uma ideia-força que provoca o nosso entusiasmo; excita as nossas aspirações e nos

faz voltar para uma ação eficaz, comprometida audaciosa (Furter, 1974, p. 150, apud

VIANA, 2008, p. 62).

Curiosamente, os dois símbolos maiores de identidade e cultura popular relacionados (e

amalgamados) ao cotidiano do Brasil - samba e futebol – estiveram vinculados, de maneira tão

marcante quanto episódica, no passado, à Cuba – expressando viés de representação social

latino-americana através de uma integração cultural e, de certo modo, igualmente política. O

autor e sambista Haroldo Costa cita na obra Salgueiro Academia do Samba a primeira viagem

internacional realizada por uma escola de samba, quando, a convite de Fidel Castro, a

Acadêmicos do Salgueiro se apresentaria em uma Cuba recém-libertada, em abril de 1959.

Segundo Haroldo Costa, a viagem faria parte de ações à época que buscavam afirmar um espaço

das agremiações de samba brasileiras quanto a sua relevância social, política e cultural

(COSTA, 1984, p. 94, apud. MOTTA FARIA, 2014, p. 26).

Apenas quatro anos depois do Salgueiro, em maio de 1963, o Madureira Esporte Clube

desembarcaria com seus jogadores no Aeroporto Internacional José Martí para disputar (e

vencer) cinco partidas de futebol em Cuba, como parte de uma excursão latino-americana da

equipe. A comitiva do chamado Tricolor Suburbano seria recepcionada por Che Guevara. E

para celebrar os 50 anos da visita do Madureira à Cuba, em 2013, o clube brasileiro de futebol

prestaria homenagem a Che, lançando dois uniformes comemorativos que aludem ao encontro

com o líder revolucionário argentino. Ambos reproduziam a icônica imagem de Guevara

fotografada por Alberto Korda, um deles tingido na cor grená, e o outro nas cores azul, branca

e vermelha, em uma versão estilizada (e verticalizada) da bandeira de Cuba.

(GloboEsporte.com, 2013). Portanto, enquanto manifestações (e representações) coletivas do

cotidiano, Salgueiro e Madureira evocaram a participação afetiva e lúdico-musical (no futebol

com cânticos, batucadas e charangas nos estádios) de milhares ou milhões de pessoas por meio

46

Referência nossa ao aforismo anarquista “se não posso dançar não é minha revolução”, atribuído à ativista

canadense Emma Goldman. (1869-1940). 47

Referência nossa à definição de utopia dada pelo cineasta Fernando Birre e recitada por Eduardo Galeano: “A

utopia está no horizonte’. ‘Caminho dois passos, ela se afasta dois passos. (...) Então, para que serve a utopia? Para

isso, serve para caminhar.” (tradução nossa) Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=9iqi1oaKvzs >.

59

da difusão via mídia de massa. Ambos ao mesmo tempo, emitindo símbolos e sentidos através

de atitudes justificadas pela “espontaneidade vital” do estar-junto que, em tese, assegura a “uma

cultura sua força e sua solidez específicas, capaz de produzir obras (políticas, econômicas,

artísticas)”. (MAFFESOLI, 1998, p. 115).

Agora, pensando em relação à estrutura da vida cotidiana, seria verossímil afirmar que

tais eventos ou afetos (ou obras político-artísticas) estimulariam no dito “homem inteiro” os

sentidos, bem como suas capacidades intelectuais, sentimentos, paixões, ideias e ideologias,

presumindo-se que não seria possível, igualmente, “aguçá-los em toda a sua intensidade”

(HELLER, 2008, p. 31). De igual modo, talvez seja possível sugerir que (escola de) samba e

futebol tenham potencial de ensejar, cada qual à sua maneira, justamente o que se entende neste

subcapítulo como socialidade crítica. Assim, o estar-junto vicejava uma representação política

emocionalizada e com perspectiva de integração latino-americana - além de uma identidade

nacional obtida através do cultural, sem excluir a dimensão adquirida por ambos no imaginário

coletivo e social enquanto grandes invenções brasileiras48.

No entanto, desde antes do fim das ditaduras na América do Sul, em países como

Argentina, Brasil, Uruguai e Chile, cresceria nos anos 1980 o mercado (ou indústria) musical,

gerando o que Lipovetsky e Serroy chamariam de “capitalismo artista”. Um cenário que, a partir

das indústrias de consumo, engendra uma verdadeira “economia estética” e uma estetização da

vida cotidiana que se caracteriza, segundo os autores, através do peso crescente dos “mercados

da sensibilidade” e do design process, que envolveria um método de “estilização dos bens e dos

lugares mercantis, além de integração generalizada da arte, do ‘look’ e do afeto no universo

consumista (...) do cotidiano”. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 14). Em termos geopolíticos

e econômicos, a era do capitalismo artista (ou criativo transestético) se insere perfeitamente à

ascensão e consolidação do neoliberalismo enquanto conceito e, também, doutrina ideológica

de defesa da liberdade total de mercado em detrimento do Estado, este relegado ao mínimo grau

de regulação da economia de um país.

Implantado primeiramente no Chile, durante a ditadura Pinochet na década de 1970, o

neoliberalismo teve como maiores representantes em termos geopolíticos, a partir da década

48

Referência nossa à canção “O mistério do samba” (2000) do grupo de manguebeat pernambucano Mundo Livre

S/A, nos versos: O termo “grande invenção” refere-se aos versos: “O samba não é carioca / O samba não é baiano.

(...) / O samba não é liberal / O samba não é chorinho / O samba não é regional / Como reza toda tradição / É tudo

uma grande invenção”. O tema trata-se de uma crítica sobre a representação fetichizada do samba pela mídia de

massa no cotidiano. Disponível em: ..< https://www.youtube.com/watch?v=oq8fhlG5HQg >;. Acesso em 20 jul.

2020.. Disponível em: 20 jun 2021.

60

seguinte, a primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher e o presidente dos Estados

Unidos, Ronald Reagan. Ambos governaram sob a ótica neoliberal, além de exportarem a

referida doutrina para as respectivas neo-colônias informais do sul global, como os países da

América Latina. Período de exacerbação do consumo e individualismo, desprezando inclusive

o conceito de sociedade, que representaria, do mesmo modo, segundo Lipovetsky e Serroy:

Um novo ciclo marcado por uma relativa desdiferenciação das esferas econômicas e

estéticas, pela desregulamentação das distinções entre o econômico e o estético, a

indústria e o estilo, a moda e a arte, o divertimento e o cultural, o comercial e o

criativo, a cultura de massa e a alta cultura: doravante, nas economias da

hipermodernidade, essas esferas se hibridizam, se misturam, se curto-circuitam, se

interpenetram. Uma lógica de desdiferenciação que é menos pós-moderna do que

hipermoderna, a tal ponto se inscreve na dinâmica de fundo das economias modernas

que se caracterizam pela otimização dos resultados e pelo cálculo sistemático dos

custos e benefícios. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 15).

A cultura pop, em linhas gerais, assimilaria a lógica neoliberal durante os anos 1980,

seja através da disseminação positiva do modo de vida yuppie (consumista e hedonista) no

cotidiano das grandes cidades, ou da massificação do individualismo meritocrático no cinema

de ação hollywoodiano, séries de TV e telenovelas latino-americanos. Por outro lado, Martín-

Barbero, ao analisar o melodrama enquanto cultura de massas, utiliza-se do que chamaria de

“retórica do excesso”, seja no folhetim, espetáculo em music-hall ou no cinema. Narrativa que

tenderia ao esbanjamento através de uma encenação calcada no exagero visual e sonoro, além

de uma estrutura e atuação dramáticas que exibiram afetiva e descaradamente os sentimentos.

Isto forçaria, em tese, reações do público igualmente intensas, seja na forma de riso, choro,

suores e tremores. O autor defende tal excesso como sendo uma vitória deste contra o que

chama de repressão, e contra uma determinada economia da ordem pré-existente. O peso do

drama, enquanto moral simbólica, ocasionaria um processo transicional do desconhecimento

ao re-conhecimento da identidade. (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 178).

Assumir esse ponto de vista talvez seja como ratificar a ideia de que o melodrama se

expressaria de igual forma enquanto representação e reflexo de uma sociedade. Ou seja, ao

mesmo tempo em que o popular-urbano é atravessado pela indústria cultural e seu aparelho

criativo transestético, o melodrama serviria como mediador efetivo (e eficiente) entre o folclore

(e, também, mazelas do cotidiano) e os produtos culturais expressos na sociedade do espetáculo.

Esta é certamente uma visão conflitante à de Guy Debord (1997), para quem a potência orgânica

do folclore ou cultura popular acabaria, esvaziada, sub-representada e fetichizada enquanto

mercadoria pela estrutura produtiv(ist)a capitalista contida no melodrama (seja por meio do

cinema, séries e novelas televisivas, ou espetáculos musicais ou teatrais de grande porte).

61

Debord apresenta em sua teoria a ideia de um mundo sensível que acabaria “substituído

por uma seleção de imagens que existem acima dele, ao mesmo tempo em que se faz reconhecer

como o sensível por excelência. Um simulacro do real, portanto” (DEBORD, 1997, p. 29). Tal

simulação melodramática, no entanto, poderia ser observada como um fenômeno do mundo da

pseudoconcreticidade que, para Karel Kosik (2011, p.15), apresenta-se sempre com um duplo

sentido: indica a essência do mundo real e, ao mesmo tempo, a esconde. Desta forma, seria

necessário que o melodrama, de retórica representada pelo excesso, também pudesse ser

percebido como em disputa entre a essência de uma cultura popular plural(ista) e espontânea

do cotidiano, e a sua aparente representação midiática estereotipada e esvaziada de sentido.

No entanto, segundo Jean Baudrillard (1997), este esvaziamento ocorreria, pois a

informação devora os seus próprios conteúdos, bem como devora a comunicação e o social.

Deste modo, o ato de (se) comunicar, na prática, se esgotaria na encenação da comunicação,

pois, ao invés da produção de sentido, seria consumido na simulação dele. Assim, os mass

media prosseguiram com a dissolução do real e, por conseguinte, não seriam produtores da

socialização, mas do oposto dela, responsáveis pela implosão do social nas massas. Isto

significaria, pois, a “implosão do sentido”, que seria incorporado – em todos os conteúdos,

sejam eles conformados ou subversivos – à “única forma dominante do médium”

(BAUDRILLARD, 1991, p. 105 - 107). Deste modo, a mediação entre a cultura popular e o

espetáculo se mostraria ineficaz no que concerne ao logro de fazer comunicar às massas a

essência da representação de resistência musical (e memória cultural) latino-americana no

cotidiano, e não apenas a sua versão esvaziada, caricata e estereotipada (ou implodida). E isto

poderia ocorrer tanto na música veiculada pelo mass entertainment quanto na vinculada à

contrainformação, como no caso, por exemplo, das chamadas rádios piratas populares e

marginais (BAUDRILLARD, 1991, p. 107).

É plausível conjecturar, por outro lado, que a versão brasileira do canal de televisão

estadunidense Music Television (propriedade da ViacomCBS), denominada MTV Brasil, de

programação dedicada exclusivamente ao público jovem, teria logrado em sua fase inicial (entre

1990 e 1994) tanto mediar quanto divulgar – e representar – um novo conjunto de artistas

independentes surgidos no país (embora estivesse submetida ao Grupo Abril). Isto em um

período entre décadas, considerado de entressafra do pop-rock, após o triunfo mercadológico

do gênero musical nos anos 1980, difundido na cultura de massa através de radiodifusão e

demais mídias. (ALEXANDRE, 2013, p. 45 e 46). Haveria, assim, uma apropriação (e não

apenas reprodução) antropofágica da emissora brasileira em relação à linha estética e editorial

62

da MTV original – sobretudo na escolha do conteúdo audiovisual e na autonomia (e liberdade

criativa) dos chamados VJs (abreviação de video jockeys) que demonstram conhecimento

musical. E essa lógica de adaptação do mercado estadunidense para uma feição mais (à)

brasileira traria uma abordagem, senão disruptiva, ao menos dialógica e aberta ao underground

mesmo como mídia mainstream.

Além da estética visual e comunicacional inovadora e irreverente trazida pelos

videoclipes (igualmente atraentes à juventude urbana da época), a MTV Brasil – ao contrário

da matriz estadunidense – atuaria como apoiadora formal daquela geração de músicos populares

urbanos (ALEXANDRE, 2013, p. 46). Entre outros grupos musicais oriundos do underground,

destacar-se-iam: Raimundos, de Brasília, responsáveis pelo autointitulado subgênero forrócore

(mescla de elementos do forró com punk e hardcore); Planet Hemp, grupo carioca de sonoridade

rap-rock, cujas letras consistiam na celebração do consumo e na defesa da legalização da

maconha, além dos neo-tropicalistas Pato Fu, de Belo Horizonte, e dos grupos Mundo Livre

S/A e Chico Science & Nação Zumbi, recifenses e criadores de um novo estilo chamado mangue

beat - mistura de “ritmos locais, como o maracatu, o pastoril, a ciranda e a embolada, com hip-

hop, funk, hardcore e outros” (CALADO, 2000, p. 300). O acesso restrito do público à emissora

vídeo-musical (exibida apenas na frequência UHF nos primeiros anos, e cujo sinal se

encontraria indisponível ou intermitente em muitos televisores) lhe conferia uma aura

independente, e na prática justificada pela baixa audiência frente aos canais concorrentes (estes

disponíveis em VHF). Em contrapartida, o poder de influência da MTV Brasil à época

(enquanto veículo da indústria cultural brasileira), mesmo sendo proporcionalmente mais

comentada do que assistida de fato, levaria essa a pautar tanto as atrações dos festivais de

música quanto a programação das rádios de rock e pop, “fruto das apostas da emissora”.

(ALEXANDRE, 2013, p. 45).

De toda forma, ainda que admitamos como quixotesca uma busca por disseminação das

identidades culturais latino-americanas através de meios (semi-)independentes inseridos no

popular-urbano (como rádio, TV ou internet) seria razoável supor que estes disporiam, natural

e essencialmente, de maior (ou alguma) liberdade, por buscarem o underground. E, assim, tais

meios desfrutariam, em tese, de maior autenticidade, conhecimento (do cenário periférico-

musical) e posterior capacidade de engajamento orgânico, bem como de suscitar perspectivas

utópicas concretas via socialidade crítica, frente à lógica financeirizada do capitalismo artista.

Entretanto, a lógica de financeirização desregulamentada da economia e dos costumes

sob a tutela e o vulto de um simulacro de democracia liberal duraria – em que pese eventuais

63

críticas recebidas via tensões político-sociais - até a chamada crise financeira de 2007-2008. Ao

mesmo tempo, o mercado musical se mostraria cada vez mais atravessado “por novas formas

de culto, de paixão, de efervescências coletivas e estético-econômicas”. (LIPOVETSKY;

SERROY, 2015, p. 212). Isto significaria a arte consolidada como (mais um) commoditty, uma

matéria-prima cujo valor seria mensurável a partir das vendagens expostas em planilhas de

executivos do entretenimento de massa. E referendada igualmente pelos prêmios conquistados

por artistas pop via eventos filiados (e fiadores) do monopólio cultural da indústria fonográfica.

Encontra-se como exemplo a cerimônia conhecida como Latin Grammy Awards, versão latino-

americana (e alegoricamente colonizada) da premiação estadunidense Grammy Awards.

Através de técnicas que lograram intensificar os gostos musicais e desenvolver

paulatinamente a sensibilidade musical de cada vez mais indivíduos, o capitalismo artista teria

sido capaz de engendrar idolatrias que provocaram, por vezes, a histeria entre muitos jovens. E

assim, municiado por dispositivos de reprodução em massa, como o cinema e os discos, o

capitalismo – para além de provocar a debilitação da “aura” (BENJAMIN, 1973) das obras

musicais - teria produzido novos ídolos, ambiências e “figuras mágicas”. (LIPOVETSKY;

SERROY, 2015, p. 212). De igual modo, após o advento e popularização da internet,

responsável direta pelo colapso financeiro das grandes gravadoras e posterior reorganização do

mercado musical no mundo, novas formas de capitalização artística foram buscadas em um

cenário onde, de súbito, o indivíduo deixaria de comprar discos físicos (ou seja, o produto-final)

de seu ídolo.

Supondo que a relação banal e dessacralizada entre público e artista (este enquanto

figura mágica) se mostraria, ao final, limitada frente a possibilidade de um consumo gratuito

(seja legal ou não), seria preciso, portanto, ativar distintas estratégias para manter o

encantamento (ou ilusão) funcionando. Nesse sentido, via-se como imprescindível a criação de

fãs-clubes com milhares de membros, bem como a fabricação de produtos derivados do artista,

merchandising, e a utilização de sua imagem na publicidade, apresentações na TV, em grandes

concertos, sempre com importante investimento financeiro e estético, tanto no aparato de palco,

cenário, como figurino, luz e som (LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 213). Isto é, um

espetáculo que pretende ser, enquanto fenômeno, uma experiência sincrética e sinestésica ao

máximo possível, escondendo a essência do artista sob a superexposição de imagens, timbres,

batidas e demais sensações sensorializadas, e que apelaria para o lúdico e para o re-

conhecimento da identidade enquanto fenômeno junto ao público. (MARTÍN-BARBERO,

2003, p. 178).

64

Além disso, as letras das canções devem expressar, eventualmente, mensagens

supostamente engajadas, (simplificadas como slogans - “memes”, ou breves textos em redes

sociais), estrategicamente fabricadas pelo marketing a fim de realimentar ou renovar

constantemente a relação de passionalidade e dependência do fã com o seu ídolo. Outra

estratégia com viés de invasão e conquista de corações e mentes consistiria na realização de

ações sociais (e assistencialistas) específicas, de cunho individual e amplamente publicizadas,

com intuito de fortalecer (ou reconquistar) a imagem positiva e supostamente altruísta desse(a)

artista global.

Esta invasão cultural buscava aproximar-se das massas através do que Paulo Freire

(1987) chamaria de comunicados, que seriam repositórios de mitos imprescindíveis para a

preservação do status quo. Freire ressaltaria ainda, lembrando a Roma antiga, sobre a ideia das

elites dominantes em relação à indispensabilidade de se dar “pão e circo” às massas da sala de

jantar (“ocupadas em nascer e morrer”49) para conquistá-las, amaciando-as (e moldando-as),

com o intuito de garantir a sua paz - e a do Império. Para Freire, variam os métodos utilizados

historicamente pela classe dominante na manutenção da conquista e subjugo (consentido,

inclusive) da massa oprimida. (FREIRE, 1987, p. 79). De toda forma, a estratégia de pão e

circo, igualmente utilizada pela indústria fonográfica, além da precariedade afetiva e orgástica

expressas em uma combinação estética ao estilo comida, diversão e arte (tendo no artista o

alimento a ser “devorado”), também poderia gerar no cotidiano eventual fome por uma “saída

para qualquer parte” (como versa o grupo de rock Titãs no tema “Comida”50, de 1987).

Presume-se que isto seria possível desde que houvesse meios concretamente utópicos

de se apresentar, por exemplo, na seguinte parábola: um alimento orgânico e nativo (pouco ou

nada afetado pela toxicidade do mercado), como alternativa soberana ao consumo oprimido de

comida processada e enlatada pela indústria (cultural). Sob o ponto de vista da resistência

musical latino-americana na cotidianidade, tal quebra de paradigma buscaria a valorização de

artistas cujas identidades culturais fossem de fato representadas no popular-urbano (e com

perspectiva de transformação social), em detrimento do consumo alienado de produtos culturais

sustentados por mitos estilizados. Para Fernando Rosa (2008), há um processo de alienação

cultural no Brasil com relação à música produzida nos demais países da América Latina.

49

Referência nossa à canção “Panis et circenses” (1968) da banda de rock brasileira Os Mutantes, nos versos:

“Mas as pessoas da sala de jantar / São ocupadas em nascer / E morrer”. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=ETqMNQw-a9M >. Acesso em: 29 set. 2020. 50

Menção nossa à canção “Comida” (1987) da banda de rock brasileira Titãs. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=94SR1WNOHcw >. Acesso em: 29 set 2020.

65

É incrível o peso de uma barreira que soma restrições estéticas, ideológicas,

econômicas e sociais, resultado das relações geopolíticas regionais e mundiais.

(...) Até os anos sessenta, e um pouco dos setenta, os brasileiros ainda ouviram música

“direto da fonte”, como a guarânia (essa até meio “aportuguesada”), o tango, o bolero,

o folk de protesto e até um pouco de rock. (ROSA, 2008, apud LOSANOFF, 2017).

Ainda de acordo com Rosa, a partir dos anos 1980, com o monopólio absoluto das

grandes gravadoras, o Brasil passou a conviver com uma espécie de ditadura (do mercado

musical), alcunhada pelo jornalista de “padrão Miami”. Ou seja, desde então, o que permitia-se

consumir no Brasil - industrialmente – no que tange à música popular de língua espanhola,

seriam artistas fast food como Menudo, Ricky Martin, Julio Iglesias, Shakira e Rebeldes. E,

mais recentemente, Luis Fonsi, cujo hit Despacito, lançado em 2017, teria contribuído para a

popularização do gênero reggaeton no Brasil (até então ignorado nas rádios, por exemplo). Para

Fernando Rosa, esta visão estratégica de mercado operada pela indústria fonográfica explicaria,

em boa parte, a resistência (ou preconceito) que o público brasileiro, em geral, nutria (e ainda

nutre) pelo rock cantado em espanhol. Uma antiga herança colonial, cuja mirada sobre o mundo,

inclusive musicalmente, seria mediada pelos olhos (ou faróis) do Império (atualmente, o

estadunidense), lançando luz apenas sobre o que lhe convém mostrar. (ROSA, 2008, apud

LOSANOFF, 2017).

Em oposição ao chamado padrão Miami certamente estaria a cantora e compositora

colombiana Lido Pimienta. Nascida em Barranquilla e radicada em Toronto, no Canadá, a

artista se declara identificada em sua representação social como afro-indígena e queer51. E a

partir desta alquimia ancestral, Pimienta experimenta unir elementos da música eletrônica com

os ritmos tradicionais de sua terra (HISPANIC POST, 2020, s/p). Da mesma forma, o mais

recente trabalho artístico de Lido, o álbum Miss Colombia (2020) acabaria sendo contemplado

pelo Polaris Music Prize, premiação que representaria a indústria cultural canadense. E neste

cenário artístico-capitalista, a cantora indica, de igual modo, uma preocupação estratégica em

conservar sua integridade artística:

O que eu tenho feito é aprender a ser melhor negociante porque isto é uma indústria,

isto é um negócio (...). Existe uma fórmula para tudo. Eu sei que música tenho que

fazer se quiser ir pelo “fast track” (caminho mais rápido ou fácil) aos Grammy e que

me deem um prêmio. Se quiser ter uma casa de dois ou três milhões de dólares em

Los Angeles, sei qual é o “fast track” para isso. Mas como na verdade sou artista e

não posso comprometer minha visão, pois vivo em um apartamento em Toronto, crio

meus filhos e estou na minha casa tranquila e feliz. (in HOLA NEWS, 2020, s/p).

51

O termo queer refere-se a indivíduos cuja identidade sexual se mostra “fluida” ou “em aberto”, além de

politicamente conter possível “significado radical anti-opressão e inclusivo trans.” Disponível em: .<

https://www.vice.com/pt_br/article/a3kg5a/o-que-significa-a-palavra-queer-hoje >. Acesso em: 21 jul 2020.

66

Enquanto cantora e compositora de origem colombiana, Lido Pimienta reivindicaria a

cultura, a natureza, os grupos indígenas e as negritudes advindas do país sul-americano. A artista

estaria de igual modo identificada como parte de um grupo cultural, étnico e sociopolítico e

socioeconômico que “sempre vive em estado de alerta”. (HOLA NEWS, 2020). No contexto da

música urbana latino-americana difundida pela mídia de massa, Lido teria visão crítica sobre a

atuação (ou encenação) artística de alguns representantes do novo pop cantado (ou não) em

espanhol. O músico de reggaeton - e compatriota de Lido Pimienta - conhecido como J. Balvin

(colaborador musical, inclusive, da cantora brasileira Anitta) seria, sob a ótica da artista, um

entertainer (animador). Em termos de representação de uma suposta latinidade, tanto J. Balvin

como Maluma (outro a gravar com Anitta) e Shakira, músicos latino-americanos inseridos no

mercado global na atualidade, causaram em Lido Pimienta, em vez de orgulho, vergonha. A

cantora de Barranquilla rejeitaria, ainda, o que entende como colombianidade pop latina,

expressa em versos esteticamente genéricos como papito papito, dame dame, mamita mamita

(idem ref. Ant.).

Em que pese estes artistas colombianos citados por Lido serem responsáveis por

exportar uma identidade e cultura (e música) do país sul-americano para o resto do mundo, é

adequado ressaltar, no entanto, que sua representação social seja de fato fetichizada e

atravessada por estereótipos e clichês comuns à mencionada latinidade. Isto se daria, por

exemplo, através de reiterada abordagem misógina e coisificada (ou animalizada) relacionada

ao sexo (latin lover); seja na estética, por meio da imagem vendida, seja no teor das letras, cuja

mensagem se mostraria, amiúde, aparentemente simples (ou simplista), e monotemática. E

musicalmente, a partir da mesma perspectiva, uma versão pasteurizada de ritmos populares

consagrados na região, como a salsa ou o merengue. Porém, isto não invalidaria eventuais

virtudes estético-musicais relacionadas - ou circunscritas - ao universo pop e do mass-

entertainment em uma socialidade (acrítica).

Não seria igualmente desprezível vislumbrar que por trás do olhar de cifrão da indústria,

quanto maior o valor como mercadoria (via capitalismo-artista), menor o valor enquanto

relevância – e resistência – musical (via popular-urbano), inclusive devido às concessões e

limitações artístico-criativas e contratuais comuns a esse meio. Contudo, é importante frisar

que, assim como o funk carioca, o reggaeton (de J. Balvin e Maluma, entre outros) possui

origem no underground periférico e marginal(izado); e suas letras tratavam, em princípios dos

anos 1990, de temas como política, pobreza, racismo e brutalidade policial. Posteriormente, a

67

hipersexualização e a misoginia presentes em demasia nas canções dos artistas de reggaeton

acabariam por estigmatizar o gênero porto-riquenho.

Por outro lado, quanto à representação social latino-americana, é possível afirmar que a

visão estética, político-social e identitária de Lido Pimienta difere-se, radicalmente, não apenas

da referente às dos músicos homens citados pela colombiana, como também de outras vindas

de algumas artistas femininas contemporâneas e de grande expressão oriundas da região, como

Anitta. A partir dessa ótica, presumimos que a cantora brasileira utilizaria de suas origens e

condições sociais (funkeira e natural do subúrbio carioca) como parte de estratégia de

marketing, estilizada, em tese, no uso simbólico de termos como empoderamento e diversidade,

e consequentemente forjada nos moldes do capitalismo-artista. Assim, um possível apelo

estético superficializado seria prevalente na obra de Anitta, eclipsando eventual discurso

pretensamente engajado ou ação extra-palco que aludisse a uma causa social (e publicizável).

Seria igualmente apropriado enfatizar, contudo, que tanto o funk como o reggaeton disporiam

na atualidade de artistas latinas com viés feminista, seja na estética ou no discurso (em temas

relacionados à identidade sexual e misoginia, no caso).

Desse modo, Anitta, enquanto fenômeno social (bem como os parceiros musicais J.

Balvin, Maluma e outros artistas pop latinos) estaria limitada, em tese, ao estético, e

perfeitamente adequada ao referido padrão Miami (a capital do reggaeton comercial)52. A

representação estilizada (e fetichizada) de tal latinidade, desprovida de discurso crítico referente

à denúncia de opressões e apagamentos étnico-culturais, por exemplo, bem como distanciada

de uma perspectiva de transformação político-social (ou superação colonial), remete ao que

Stuart Hall chamaria de apropriação multiculturalista. Assim, cultura e identidade seriam

superexpostas (com intuito estritamente comercial), encobrindo, desse modo, questões

econômicas e materiais. Ou seja, manifestando um multiculturalismo de boutique - termo

previamente citado nesta dissertação -, isto é, responsável por celebrar a diferença, porém, sem

fazer diferença (HALL, 2003, p. 54).

Silvio Luiz de Almeida (2019) escreve no prefácio da versão brasileira da obra

“Armadilha da identidade” (HAIDER, 2019) sobre o que considera tratar-se, em linhas gerais,

52A performance artística de Anitta - cantando em espanhol, inclusive – em videoclipes ao lado de reguetoneros,

parece suscitar menos um potencial de representação com viés de integração e resistência cultural latino-

americanas; e mais uma busca por nicho de mercado latino ainda não explorado pela artista pop em sua totalidade;

e de potencial de consumo inserido em uma nova onda global. In “Nova onda global, música latino-americana

domina festivais europeus”. Disponível em: .< https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/08/nova-onda-

global-musica-latino-americana-domina-festivais-europeus.shtml >. Acesso em 20 jul. 2020.

68

da essência da referida publicação literária: a distinção entre identidade e política de identidade,

com foco na identidade racial53.

Afastada de sua dimensão social, a identidade passa a ser, simultaneamente,

ponto de partida e ponto de chegada, colocando o pensamento em um loop

infinito de pura contradição. (...) A política identitária sem um horizonte de

transformação do próprio “maquinário social” que produz as identidades

sociais gera uma camisa de força que faz com que o “sujeito” negro, mulher,

LGBT possa ser, no máximo, uma versão melhorada e menos sofrida daquilo

que o mundo historicamente lhe reserva. (ALMEIDA, p. 8 e 9, apud HAIDER,

2019).

Em outra chave da resistência, o feminismo, é possível também traçarmos paralelos no

cenário contemporâneo em relação ao dístico música e resistência na América Latina. Neste

sentido, talvez um dos momentos mais contundentes tenha ocorrido durante a onda de protestos

anti-sistêmicos ocorridos no Chile, entre 2019 e 2020, quando o coletivo feminista chileno Las

Tesis lograria viralizar uma performance artístico-identitária e política, misturando dança

coreografada e canto falado, intitulada: Un violador en tu camino (Um estuprador no seu

caminho). A manifestação artística de apelo estético e igualmente contestatório das chilenas

representaria um brado contra o estupro de mulheres, o feminicídio e o patriarcalismo. Versos-

denúncia como o “Estado opressor é um macho estuprador” receberam apoio e adesão in loco

- e via redes sociais - de milhares de mulheres imediatamente representadas socialmente e,

também, engajadas politicamente àquela causa.

A performance seria posteriormente reproduzida em praças e demais logradouros

urbanos de diversas capitais e outras cidades da América Latina (incluindo o Brasil) e do

mundo. Ou seja, uma ex-colônia do sul global exportaria para outros continentes sua estratégia

de denúncia com viés feminista e de representação latina em forma de cultura, influenciando,

inclusive, mulheres oriundas de outros Estados opressores e neo-colonizadores ocidentais. A

lúdica e potente manifestação política de Las Tesis teria gerado (e seguiria gerando) debates

com viés de transformação do maquinário social, de maneira organizada e coletivizada. Por

outro lado, seriam incensadas (e publicizadas) pela mídia de massa como autoras de um novo

53 No contexto histórico referente à perpetuação do preconceito racial no Brasil, Nelson Wernerck Sodré (1967)

apontaria que a rotulação violenta contra os ex-escravos libertos (porém, não livres) mesmo após o fim legal da

escravidão, estaria diretamente atrelada à exploração do sujeito negro enquanto massa de trabalho prevalecente no

País. Isto é, nas palavras de Sodré, as “relações de raça jamais devem isolar-se das relações de classe” (SODRÉ,

1967, p. 147).

69

“hino feminista” global. O trabalho da antropóloga argentina Rita Laura Segato teria igualmente

servido de inspiração para a composição das artistas chilenas (PICHEL, 2019)54.

Buscamos propor neste subcapítulo uma breve reflexão acerca da importância referente

à representação social latino-americana expressa na cotidianidade, utilizando-se da música

como instrumento de resistência histórica e de resgate de uma memória ancestral. E, também,

com potencial de transformação social tanto no Brasil quanto nos demais países da região.

Pensando no contexto histórico e, também, no imaginário das relações sociais estabelecidas

entre sujeitos na vida cotidiana das Américas, não seria desprezível propor um exercício onde

houvesse a ressignificação etimológica do termo vira-lata - comumente associado de maneira

pejorativa aos animais sem raça definida (ou sem pedigree). Isto é, buscar-se-ia mudar a visão

“enlatada” (e colonizada) que o brasileiro projetaria sobre si mesmo, assumindo de forma

descomplexada55, a condição deste como “vira-latino,” se (re)descobrindo e se apresentando na

região como gênero humano novo- resiliente, impuro e mestiço; um perro mestizo (cão mestiço,

em espanhol), fiel a sua identidade e não a do antigo “dono”. É o “ser” latino-americano, tanto

verbo como sujeito. É reivindicar o “ser genérico, e jamais um homem sozinho, mas sempre a

integração” (HELLER, 2008, p. 36). É almejar não apenas o “estar-junto”, mas igualmente o

“ser”-coletivo, parte integrante (e integrada) de um povo unido que jamais será vencido56. É

celebrar o estético sem se render ao estático. É acreditar nas identidades musicais latino-

americanas como pontes para a criação de novos caminhos do Peabiru por meio (e mediação)

do lúdico, do encontro e da troca de sonoridades reconhecíveis e mescladas. É inspirar-se e

conectar-se, enfim, às novas ondas tropicais e atemporais do cotidiano; como “índios” latinos

com guitarra elétrica, e comunicando-se através da internet57.

54 Outras pautas consideradas mais transversais fariam parte das reivindicações do movimento feminista chileno

recentemente, incluindo demandas contra a precariedade da vida, por salários equitativos, e pelo fim da

discriminação no sistema de saúde; além do fim do assédio sexual e moral em todos os espaços. Segundo a

jornalista Yoselín Fernández Arce, porta-voz da coordenação nacional da Rede Chilena contra a Violência à

Mulher, o Chile estaria experimentado um salto de consciência em relação às questões políticas, sociais e culturais

da violência masculina (O GLOBO, 2020). 55 Referência nossa à expressão “complexo de vira-lata”, cunhada pelo escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues

para se referir a uma suposta baixa autoestima inerente ao brasileiro em relação aos indivíduos, símbolos e culturas

oriundos de países do chamado “primeiro mundo” – isto é, do Norte global. 56 Referência nossa para a canção El pueblo unido jamás será vencido (O povo unido jamais será vencido), gravada

pelo grupo chileno Quilapayún, em 1973, e considerada uma das mais representativas oriundas do movimento

Nueva Canción Chilena (Nova Canção Chilena), tornando-se hino internacional em defesa das minorias, e de

resistência contra ditaduras e opressões cotidianas em geral. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=OxnARSurEiA >. Acesso em 20 jul. 2020. 57 Referência nossa à canção “Nunca quise” (“Nunca quis”), composta pelo grupo de rock argentino Intoxicados,

nos versos: Somos índios latinos con guitarra electrica y comunicados a través de internet (Somos índios latinos

com guitarra elétrica e nos comunicamos através da internet - tradução nossa). Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=RU3b8RZoDCE >. Acesso em: 20 jul. 2020.

70

71

3. UM OLHAR SOBRE O AUDIOVISUAL LATINO-AMERICANO

Conforme colocado na Introdução, neste capítulo buscamos trazer algumas abordagens

referentes às obras audiovisuais enquanto mídia de massa no Brasil e na América Latina, com

foco, primeiro, sobre o chamado Nuevo cine latino-americano (bem como no Cinema Novo

brasileiro). Vale mencionar que sabemos que se trata de um dos períodos mais estudados e

discutidos do cinema da região o que, obviamente, se traduz em múltiplas versões, destaques e

até mesmo, distintas avaliações sobre origens, influências e valores que definem essa produção

Por exemplo, uma obra recente coordenada por Mariano Mestman (2016) se debruça apenas

sobre o ano de 1968, demarcando as possíveis rupturas e elos com a contracultura e a política

nas diversas cinematografias nacionais desse ano. Entretanto, esclarecemos aqui, não é nossa

pretensão discutir estes aspectos que envolvem, inclusive, os cineastas do período, autores de

diversos manifestos que enfatizariam, entre outros temas, os aspectos estéticos e narrativos

singulares que são premissas das realizações da época. O que nos interessa, na verdade - por

isso nos debruçarmos sobre este período foi relevante para a pesquisa -, é observar possíveis

pontes ou vínculos como o chamado Neorrealismo cotidiano, identificado por Torres (2011)

como uma produção característica da região nos anos 2000. Portanto, a decisão por tal foco, em

termos metodológicos, se pautou pelo propósito de tentar compreender as permanências e

rupturas que a ideia de integração e identidade latino-americana nos remetem hoje,

especialmente pela presença de diversos protagonistas do projeto DOCTV AL nos movimentos

que delinearam o Nuevo cine.

Outro aspecto relevante da nossa abordagem é o diálogo que fazemos com o contexto

cultural e político do período, conforme discutimos no capítulo anterior. Não à toa, portanto,

que trazemos de volta, mesmo que por instantes, a Tropicália, Nelson Rodrigues, entre outros.

Ou seja, para nós, destacar alguns eventos e questões do cinema e música da América Latina

nos anos 1960 (em especial) tracejam linhas mais claras para os debates que envolvem algumas

reflexões relativas ao cenário midiático e cultural-industrial contemporâneo. Deste, revelamos

particularmente o Brasil, em discussões que envolvem, sobretudo, novas miradas sobre a

legislação atual, além das disputas e interpenetrações de conglomerados de comunicação e

grandes empresas de tecnologia (Big Tech).

Outro aspecto que integra tal pauta e que trazemos aqui, é justamente o debate pertinente

à importância da TV Pública e das mídias independentes para a diversidade e a soberania digital

e comunicacional do Brasil, região (e Sul global). Afinal, este é o circuito básico para a

circulação fundamental do próprio DOCTV AL. Em outras palavras, buscaremos refletir sobre

72

os entraves do cenário presente e possíveis desimpedimentos pós-coloniais a serem

estabelecidos no futuro da região através das imbricações mídiáticas e de redes não apenas

sociais, mas socializadas, e não virtuais, mas, de fato, reais. E com perspectiva que visa, além

de inclusão, também uma integração digital, cultural e informativo-comunicacional; além de

uma integração cotidiana, isto é, construída no dia a dia entre indivíduos-ouvintes (espectadores

e ciber-indivíduos) latino-americanos. (LIPOVETSKY; SERROY, 2015).

Para tanto, entendemos como parte fundamental nesse processo nos somar às que

bradam pela ampliação das discussões sobre a democratização dos meios de comunicação no

âmbito da sociedade civil com intuito de cimentar a construção de uma identidade (de fato)

brasileira e latino-americana. No que tange à vinculação desse tema aos elementos-chave desta

dissertação, acreditamos na ampla difusão do audiovisual da região, tanto como estratégia

emancipadora de Estado-Nação do Brasil frente ao cinema comercial, quanto de potencial

despertar cultural “vira-latino” do País junto à América Latina. E não apenas quanto ao nuevo-

cinema documental (e musical) produzido no Brasil e nos países vizinhos, mas também em

relação à música popular da região e seus hibridismos e interpenetrações culturais e dialéticas

entre sujeitos que compartilham e se re-conhecem nas vivências tangíveis e fluidificáveis do

cotidiano. E o mesmo pode ser dito sobre os demais produtos e manifestações artístico-culturais

e informativo-comunicacionais existentes (como literatura, artes plásticas e outros).

Finalmente, em sintonia ao gênero que define o Programa, fechamos este capítulo

dissertamos brevemente sobre a evolução e a importância cultural-midiática do documentário

no âmbito antropológico e etnomusicológico, além dos hibridismos fílmicos e das possíveis

conexões, afastamentos e disputas interculturais realizadas no cotidiano entre indivíduos

brancos e descendentes dos povos originários. Vale esclarecer que neste último subcapítulo

apresentamos uma breve abordagem teórica sobre o documentário enquanto caracterizado pela

exploração (parcial e subjetiva) da realidade. A proposta, é óbvio, não tem a pretensão de

discutir o gênero, mas sim pontuar questões que estão vinculadas às temáticas dos três filmes

que analisaremos no capítulo seguinte, como a questão da biografia no documentário, o som e

as discussões que envolvem a representação da cultura indígena, entre outros pontos.

Em contrapartida, optamos – como já mencionado anteriormente - não abordar o

Programa DOCTV América Latina e tampouco pormenorizar sobre as especificidades do

próprio Capítulo VI – La Música, onde estão contidos os três documentários musicais

analisados (bem como os demais filmes latino-americanos contidos na referida edição do

DOCTV). Entendemos que essa opção seria coerente tanto pelo caminho percorrido durante a

73

pesquisa quanto pela intenção-chave deste projeto de analisar e refletir sobre um material

fílmico múltiplo, representado por obras audiovisuais produzidas em diferentes países da

América do Sul, que se fabulam por temáticas, narrativas, visões e características etnoculturais

diversas e ao mesmo tempo tão singulares em cada obra.

3.1 Sobre o Nuevo Cine e o Neorrealismo cotidiano

Como coloca Paulo Paranaguá, a renovação do cinema latino-americano nos anos 1950

“veio de fora, estimulada por fatores extracinematográficos, através de uma ruptura, mais do

que uma inacessível continuidade. Recomeçar de novo, sina dos cineastas latino-americanos,

foi de certa maneira o fruto de uma radicalização ou pelo menos de uma mudança política”

(1985, p. 67). O que o autor está querendo ressaltar, além da irrupção de movimentos políticos

como a revolução bolivariana de 1952, ou a onda nacional-desenvolvimentista Argentina, ou,

ainda, a Cubana de 1959 que se tornaria referência para todo o continente, é o impacto que o

neo-realismo italiano teve em diversas e variadas experiências renovadoras de cinemas

nacionais como o do Brasil e da Argentina, além de ser uma das escolas basilares para o cinema

cubano, entre outros lugares que influenciou.

Essa junção entre a inspiração italiana com as situações convulsivas nacionais, que foi

próxima, mas não sincrônica quando se observa cada país, permite perceber, grosso modo, um

cenário multifacetado de iniciativas que, a despeito de singularidades locais, pode ser

reconhecida como Nuevo Cine Latinoamericano. Sobre este, também vale apontar como faísca,

o Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma, na Itália, onde jovens cineastas como Julio

García Espinosa, Tomás Gutiérrez Alea, Fernando Birri, entre outros, costumavam se encontrar

nos anos 1950. De todo modo, ainda seguindo o mote do que coloca Paranaguá quanto às

influências externas, é possível afirmar que também foram referências cinematográficas

compartilhadas por aqueles que seriam os protagonistas do referido movimento, o surrealismo

de Luis Buñuel, a nouvelle vague francesa e o free-cinema inglês. (VILAÇA, 2002, s/p).

As abordagens presentes nas produções audiovisuais europeias da época serviriam,

portanto, como elementos de inspiração responsáveis por ensejar a elaboração de um novo tipo

de cinema a ser produzido na América Latina, norteado por um viés original e renovador. E,

para tanto, este deveria ser entendido através de visão - ou mirada - vira-latinizada, isto é, capaz

de trazer consigo as características, peculiaridades e complexidades sociopolíticas e culturais

inerentes e relacionáveis à realidade e cotidianidade latino-americana enquanto região cujas

feridas coloniais e suas consequências seguiriam não cicatrizadas.

74

Assim, a partir dos anos 1960, cineastas argentinos, chilenos, cubanos e brasileiros –

entre os quais estariam Fernando Solanas, Miguel Littín e Glauber Rocha (além dos citados há

pouco) - se incumbiriam, de fato, de pôr em prática esse novo cinema latino-americano. Neste,

as obras buscariam refletir sobre questões como o atroz subdesenvolvimento, a tirania dos

podres poderes e a perpetuada desigualdade social presentes na região. Isto em um contexto

geopolítico e (contra)cultural que abarcava tanto os ares revolucionários de Cuba (após a

Revolução Cubana de 1959) quanto convivia com os reacionários golpes civil-militares

ocorridos durante as décadas de 1960 e 1970, além dos outros eventos globais mencionados

anteriormente neste trabalho, como Maio de 1968.

A essas múltiplas referências, como não poderia deixar de ser, soma-se, como já

colocado, as visões e questionamentos que cada um dos cineastas que estiveram mais à frente

do movimento, destacava. Por exemplo, para Júlio García Espinosa um cinema dito perfeito -

no sentido técnico e artístico - resultaria quase sempre em uma peça reacionária.

Una nueva poética para el cine será, ante todo y sobre todo, una poética “interesada”,

un arte “interesado”, un cine conciente y resueltamente “interesado”, es decir, un cine

imperfecto. Un arte “desinteresado”, como plena actividad estética, ya sólo podrá

hacerse cuando sea el pueblo quien haga el arte. El arte hoy deberá asimilar una cuota

de trabajo en interés de que el trabajo vaya asimilando una cuota de arte. La divisa de

este cine imperfecto (que no hay que inventar porque ya ha surgido) es: “No nos

interesan los problemas de los neuróticos, nos interesan los problemas de los lúcidos”,

como diría Glauber Rocha. (...) El cine imperfecto es una respuesta. Pero también es

una pregunta que irá encontrando sus respuestas en el propio desarrollo. El cine

imperfecto puede utilizar el documental o la ficción o ambos. Puede utilizar un género

u otro o todos. Puede utilizar el cine como arte pluralista o como expresión específica.

Le es igual. No son éstas sus alternativas, ni sus problemas, ni mucho menos sus

objetivos. No son éstas las batallas ni las polémicas que le interesa librar (ESPINOSA,

2010, s/p).

Podemos supor que além de imperfeito o Nuevo Cine Latinoamericano apresentava-se

como um cinema que pretendia de fato ser impuro (ou sem pedigree), e por tal característica

vira-latinizada reivindicava-se como representante da arte popular (e não de massa) enquanto

símbolo artístico do gênero humano (do cinema) novo latino-americano. (RIBEIRO, 1995) É

pensado também como a expressão de um cinema-manifesto intelectual de inspiração

revolucionária, logrando reinterpretar gêneros fílmicos europeus de maneira hibridístico-

antropofágica. A partir dessa perspectiva, a arte popular retratada no cinema imperfeito deveria

ser culturalmente entendida como uma atividade inerente à vida do sujeito, realizada por este

não enquanto artista, mas como homem, indivíduo. Não obstante se situando em oposição à dita

75

arte culta, que seria desenvolvida não como atividade, mas enquanto realização de caráter

pessoal do sujeito.

E o documentário no Nuevo Cine latino-americano, enquanto gênero igualmente

“imperfeito” e “vira-latino”, seria influenciado pelo Cinema Direto estadunidense e pelo

Cinema Verdade francês. O primeiro estilo buscava registrar a realidade objetivamente, ou seja,

captando-a tal como ela fosse, de fato, em uma perspectiva muito sintonizada ao jornalismo58.

E o segundo propunha uma abordagem reflexiva, utilizando a câmera como instrumento de

provocação e problematização da realidade (e onde autenticidade, dissimulação e encenação se

mesclariam de maneira reveladora (BESKOW, 2016, p. 80). Embora padecesse de deficiências

técnicas, bem como parcos recursos materiais, o cinema documental da América Latina lograria

incorporar as novas tecnologias disponíveis, possibilitando, assim, maior espontaneidade na

interação do cineasta com o personagem real. Segundo Paulo Antônio Paranaguá (2003):

Las nuevas tecnologías favorecen una liberación de la palabra, descubrimiento inédito

que introduce un poco de polifonía en discursos hasta entonces perfectamente

controlados y unívocos (…) Además, las cámaras o grabadoras livianas y la película

de alta sensibilidad facilitan los intercambios, aumentan la duración de las tomas,

reducen las exigencies de iluminación, extienden el radio de intervencion, bajan los

costos (…) ‘Una idea en la cabeza, una cámara en la mano’, la consigna de Glauber

Rocha, no tiene sentido sin la invención de nuevos instrumentos. La renovación del

documental se desarolla en symbiosis con las búsquedas de lenguaje en el cine de

argumento, ambos se retroalimentan (PARANAGUÁ, 2003, p. 54 apud BESKOW,

2016, p. 81 e 82)

O Nuevo Cine como ideia-projeto acabaria naturalmente sendo atravessado por variados

movimentos e projetos à parte em alguns países latino-americanos, ou seja, contendo

características e especificidades bem definidas. O Cinema Novo (representado pelos cineastas

Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, León Hirzman, entre outros), como sabemos,

emergiria no Brasil a partir dos anos 1960, bem como o Grupo Ukamau, na Bolívia (1965), o

Cine Liberácion, na Argentina (1966), o Cine de la Unidad Popular, no Chile (1967) e o Cine

Rojo, em Cuba (1969). Por outro lado, a constante comunicação ou troca de informações

estabelecidas entre cineastas oriundos da América Latina à época, possibilitaria gerar debates

fecundos cujas ideias diversas seriam difundidas - por meio de festivais de cinema e através da

publicação de artigos em revistas especializadas – com o intuito de formular projetos futuros;

58

Conforme Silvio Da-Rin, a produtora Drew Associates, formada por Robert Drew e pelo cinegrafista Richard

Leacock, considerados os principais expoentes do cinema direto “não consideravam seus trabalhos documentários,

mas ‘cine-reportagens’ ou ‘jornalismo filmado’”. (2004, p.137)

76

ambos circulando entre os polos de produção cinematográfica situados em grandes cidades da

região (como Buenos Aires, Cidade do México e Rio de Janeiro). (VILLAÇA, 2002, s/p).

Após dirigir ”Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), Glauber Rocha criaria em 1965

o influente manifesto intitulado “Uma Estética da Fome”, publicado em julho daquele ano pela

Revista Civilização Brasileira, e tornando-se espécie de referência ou texto-base do Cinema

Novo enquanto movimento latino-americano. Na referida exposição textual, Glauber Rocha

situa o Cinema Novo à margem da indústria, pois, segundo o diretor:

(…) o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A

integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América

Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de

seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos

mais fracos aos mais fortes. (…) O cinema novo é um projeto que se realiza na política

da fome, e sofre por isto mesmo, todas as fraquezas consequentes de sua existência

(ROCHA, In: AVELLAR, 1995 p. 85).

Ainda no mesmo texto, o cineasta baiano apresenta sua estética da violência, que teria

para além de sua feição primitiva, uma função revolucionária (e didática). Nesse sentido,

segundo Glauber Rocha (AVELLAR, 1995), o colonizador somente seria capaz de compreender

de fato a existência do ser colonizado quando ele fosse conscientizado por este através da

violência, constatando, assim, mediante o horror, a potência cultural do sujeito explorado.

“Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo; foi preciso um primeiro policial

morto para que o francês percebesse um argelino” (ROCHA, In: AVELLAR, 1995 p. 85). No

entanto, a dita violência mencionada nesse manifesto-símbolo do Cinema Novo não estaria

relacionada ao ódio ou tampouco a um certo humanismo colonizador, mas ao amor cuja força

- nas palavras do diretor brasileiro - tratar-se-ia de algo tão brutal quanto a própria violência em

si; inclusive porque este não seria um amor “de complacência ou de contemplação, mas de ação

e transformação”. (ROCHA, In: AVELLAR, 1995 p. 85). Um amor violento e onde o fuzil seja

capaz de representar a rebeldia de quem busca impedir que pobres morram de fome59.

Segundo Caetano Veloso (1997) Glauber Rocha representaria em alguma medida um

símbolo-deflagrador do movimento Tropicalista, por conta do impacto que a obra audiovisual

“Terra em Transe” (1967) teria causado no músico antropofágico. Para o autor, o filme provoca

uma sensação sinestésica de arrebatamento que pode ser sentida durante a cena de abertura do

59

O trecho “onde o fuzil seja capaz de representar a rebeldia de quem busca impedir que os pobres morram de

fome” faz referência à seguinte fala do personagem Corisco contida na obra cinematográfica “Deus e o Diabo na

Terra do Sol” (1964), de Glauber Rocha: “Tá aqui o meu fuzil pra não deixar pobre morrer de fome” (1:09:25 a

01:09:30). Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=RyTnX_yl1bw >. Acesso em: 10 mar 2021.

77

referido longa-metragem, tanto através da trilha sonora, representada por um cântico de

candomblé, quanto pela tomada aérea do mar, aproximando-se da costa brasileira. (VELOSO,

1997, p. 99). Para o tropicalista, o Cinema Novo opôs-se:

(…) tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera Cruz quanto ao

primarismo das chanchadas. A vitória do prestígio do movimento sobre essas duas

tendências não foi atingida sem dificuldade, e não se pode dizer que a desatenção -

quase hostilidade – a produções como O Cangaceiro (Vera Cruz) ou O homem do

Sputnik (chanchada) não pareçam hoje francamente injustas. (VELOSO, 1997, p.

100).

Ainda na mesma obra literária, o músico destacaria outra cena de “Terra em Transe”,

quando - nas palavras de Veloso – o poeta (Paulo Martins, interpretado por Jardel Filho)

decretaria a “falência da crença nas energias libertadoras do ‘povo’, eu, na plateia, vi, não o fim

das possibilidades, mas o anúncio de novas tarefas para mim”. Isto é, Caetano teoricamente

escolheria mirar nas potencialidades e subjetividades constitutivas dos sujeitos que o artista

chamaria de povo, supostamente não percebidos ou compreendidos pelo personagem (um

poeta, jornalista e intelectual de classe média) do que simplesmente capitular e se entregar a um

conformismo elitista. E sua obra lírico-musical vira-latinizada parece, de fato, confirmar a

busca pela exaltação da cultura popular brasileira, tendo como foco ou objetivo não os cifrões,

grilhões ou amarras da ditadura financeira, mas uma dita “beleza pura”60 – inspirada por um

audiovisual “transcendental”.

Vale destacar, da mesma forma, entre os movimentos formados no contexto do Nuevo

Cine na América Latina, a proposta do Grupo Ukamau, criado em meados da década de 1960

por cineastas bolivianos preocupados em contribuir com a luta das camadas vulneráveis daquele

país sul-americano, em especial os povos originários oprimidos pelo regime ditatorial local.

Liderado pelo cineasta e docente Jorge Sanjinés, as perspectivas ideológicas e estéticas do

Ukamau seriam posteriormente detalhados na obra intitulada Teoría y práctica de un cine junto

al pueblo (Teoria e prática de um cinema junto ao povo - tradução nossa), publicada em 1979,

onde, na visão de Sanjinés, a arte cinematográfica serviria como ferramenta capaz de entregar

respostas ao povo sobre as causas e culpados por sua condição de explorado.

60

O trecho “tendo como foco ou objetivo não os cifrões, grilhões ou amarras da ditadura financeira, mas uma dita

beleza pura – inspirada por um audiovisual transcendental” refere-se à canção “Beleza Pura” (1979) de Caetano

Veloso, presente no álbum “Cinema Transcendental” (1979), nos versos: “Não me amarra dinheiro, não / Beleza

pura”. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=K_9KF7FopyQ >. Acesso em: 20 mar 2021.

78

E, assim como Glauber Rocha, o diretor boliviano acreditava no potencial

revolucionário do cinema latino-americano em benefício do oprimido ao expor na tela o seu

opressor em 24 frames por segundo (SANJINÉS, 1979, p. 38 apud RÍOS, 2021, p. 35). Através

do Grupo Ukamau Jorge Sanjinés buscaria, pois, reivindicar a memória ancestral e coletiva do

indigenismo dos povos originários de seu país, bem como a defesa dos direitos destes sujeitos.

Entre os desafios estéticos “vira-latinizados” do neorrealismo italiano, Sanjinés proporia que

em suas obras cinematográficas houvesse personagens interpretados por pessoas descendentes

das etnias andinas existentes na Bolívia (Aymara, por exemplo), incluindo a utilização de não-

atores. (RÍOS, 2021, p. 35). Deste modo, o Grupo Ukamau implementaria uma linguagem

considerada original naquele momento, inspirada na cosmovisão autóctone dos indivíduos com

os quais Sanjinés trabalharia.

Como resultado desta união e troca de fazeres e saberes entre cineastas e aymaras seria

concebido o chamado Plano Secuencia Integral (Plano Sequência Integral), gerado após a

absorção cultural da concepção Aymara responsável por uma lógica do tempo oposta à

ocidental, isto é, não linear, mas cíclica. Uma escolha que suscita novas possibilidades estéticas

a partir da temporalidade andina, objetivando plasmar tal cosmovisão no cinema com a maior

genuinidade possível (FLORES, 2005, p. 3 apud RÍOS, 2021, p. 36). O Plano Secuencia

Integral seria traçado em obras como La nación clandestina (A nação clandestina, 1989).

Segundo Jorge Sanjinés (1972), o cinema revolucionário deveria buscar a beleza enquanto meio

e não como fim, ou objetivo. Nesse sentido, a carência de una forma criativa refém da referida

beleza (ou estética) reduziria a eficácia da mesma, aniquilando a dinâmica ideológica do objeto,

limitado, pois, a uma superficialidade desprovida de essência, humanidade e amor - categorias

aptas a surgir apenas através “da expressão sensível, capaz de penetrar a verdade”. (SANJINÉS,

1972, p. 57 e 58 apud RÍOS, 2021, p. 36 e 37).

Em 1967 é criado no Chile o Festival Internacional de Cinema de Viña del Mar,

considerado um marco cultural definitivo para a formação do movimento de cineastas-

militantes naquele país intitulado Unidad Popular, e permitindo não apenas reunir diversos

diretores chilenos, mas também latino-americanos em geral – feitos inéditos na região. Podemos

resumir as conclusões obtidas por meio do encontro em Viña del Mar via três pontos

fundamentais: 1) desenvolver uma cultura nacional anticolonialista; 2) abordar os conflitos

sociais a fim de conscientizar as massas; 3) agir através de uma perspectiva continental

(NUEVO CINE CHILENO, 2018, s/p). Ou seja, tratava-se, em linhas gerais, de uma frente ou

coalizão (inter)cultural geopolítico-ideológica interessada em reivindicar a soberania dos povos

79

latino-americanos frente ao império do Norte global - além da preocupação com a desigualdade

social do continente buscando o viés da integração.

O chamado Nuevo Cine Chileno (1969) seria posteriormente incorporado ao Nuevo cine

latinoamericano em tempos de grande agitação político-revolucionária e contracultural tanto

no Chile quanto globalmente falando. O partido da Unidad Popular chega então ao poder com

a vitória de Salvador Allende nas urnas, em 1970, e o presidente recém-eleito empreenderia

uma campanha (ou estratégia) institucional de desenvolvimento político e cultural no país. Por

conta do referido incentivo estatal surgiria uma nova safra de cineastas, somando-se aos

participantes do festival de cinema realizado dois anos antes. Miguel Littin, Patricio Guzmán,

Raúl Ruíz, Helvio Soto e Aldo Francis foram os principais expoentes de um cinema de cunho

socialista. Já no início dos anos 1970 o grupo Unidad Popular criaria o chamado manifiesto del

cine de la unidad popular (manifesto do cinema da unidade popular – In RUA, 2010).

Entre as reflexões geradas em relação à condição do cinema produzido no Chile,

América Latina e, também, no mundo em tempos tão efervescentes quanto turbulentos, a

Unidad Popular afirmava que as formas de produção audiovisual tradicionais e o seu fazer

artístico-cinematográfico serviam, até então, como um muro de contenção frente a jovens

cineastas. (RÍOS, 2021, p. 46). E isto implicaria em uma nítida manutenção da dependência (ou

submissão) cultural-industrial latino-americana regida pelas nações dominantes do Ocidente,

posto que “suas ditas técnicas provinham de estética estranha à idiossincrasia de nossos povos”

- aponta um trecho do manifesto dos diretores chilenos. (RÍOS, 2021, p. 46).

Podemos supor de igual modo que a idiossincrasia citada na referida exposição político-

ideológica (e anticolonial) não apenas refletiria índoles, comportamentos, temperamentos e

particularidades da cotidianidade, mas representaria as identidades culturais e o seu caráter de

resistência histórica. A partir do dia 11 de setembro de 1973, que marca o assassinato de

Salvador Allende e a instauração da ditadura militar chilena, iniciou-se um processo de

desmantelamento ideológico do projeto de desenvolvimento cultural-estatal da esquerda,

afetando diretamente a Unidad Popular (ÁLVAREZ, 2013 apud RÍOS, 2021).

No que se refere especificamente à influência do neorrealismo italiano entre os nuevos

cineastas latino-americanos, esta seria definida por Jorge Sanjinés (2002 apud RÍOS, 2021)

como herança resultante de contingência histórica responsável por unir culturalmente tais

cinematografias:

80

(…) esa herencia, a nuestro entender prendió con fuerza en los cineastas

latinoamericanos no solamente por su magnitud intrínseca, por su propia fuerza y

magia, sino también porque algunas coincidencias históricas y sociales habían creado

el caldo de cultivo adecuado. Ambas cinematografías nacieron como producto de una

grave crisis social-histórica. El Neorrealismo como un nuevo cine de denuncia de la

situación social en la Italia de la postguerra y el Nuevo Cine Latinoamericano como

un nuevo cine de denuncia de la situación social, económica, política y cultural en una

Latinoamérica dominada y castigada por las oligarquías y militarismos dependientes

del Imperio.” (SANJINÉS, 2002, p. 3 apud RÍOS, 2021, p. 74 e 75).

Nesse sentido, podemos afirmar que o processo vira-latinizado de apropriação

hibridística do neorrealismo italiano consistia na exposição do drama individual do sujeito,

porém, ligado intimamente a dramas coletivos (ou coletivizados) (TORRES, 2011, p. 49 apud

RÍOS, 2021, p. 76). Outra consequência desta antropofagia latino-cultural e rebelde com causa

seria a busca por uma abordagem neorrealista, bem como de viés poético sobre a vida ordinária

e cotidiana - elegendo, esta, novos ambientes e heróis. A saber: os subúrbios de moradias

simples habitados por sujeitos humildes plasmados dramaticamente em personagens políticos

no contexto latino-americano, cuja vida privada perderia importância dado o seu valor nulo

como instrumento de transformação social. E (re)nasceria, consequentemente, um cinema

ligado ao indivíduo ordinário, embora imbricado à idiossincrasia nacional(izada), a fim de

“desarrumar o arrumado” (TORRES, 2011, p. 49 apud RÍOS, 2021, p. 76).

Isto nos remete ao chamado complexo de vira-latas nelson-rodrigueano (mencionado

brevemente no capítulo anterior deste trabalho), bem como a utilização do termo para designar

animais considerados “impuros”, ou sem pedigree. No que tange, pois, ao contexto

cinematográfico da América Latina, podemos imaginar cinema ou tais cinemas (posto que cada

país da região traria uma abordagem própria, singular) como vira-latinamente imperfeitos, isto

é, “feios, sujos e malvados”61 em sua estética, ao retratar com o máximo de realismo a sociedade

daquela época - mesmo quando lançava mão de elementos ou passagens oníricas em suas obras.

E tornando as limitações técnico-orçamentárias vigentes também a sua força fílmico-discursiva,

o seu trunfo, ou triunfo da latinidade sobre o triunfo da vontade, a vitória dos derrotados e da

arte dos degenerados enquanto celebração de um gênero humano culturalmente hibridizado.

Segundo Avellar (1995), os diretores do Nuevo Cine oriundos das décadas de 1950 e

1960 consideravam os gêneros ficcional e documental como linguagens opostas, antagônicas

(ou dicotômicas); assim, o primeiro traduziria, nas suas palavras, apenas uma inquietação

comercial e embaraçosa, enquanto o segundo suscitaria, de fato, o chamado compromisso com

61

Referência nossa à obra cinematográfica italiana intitulada Brutti, sporchi e cattivi (Feios, Sujos e Malvados,

de 1976). Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=FVajh8dEWFs >. Acesso em: 21 abr 2021.

81

a realidade. Em contrapartida, a partir do final dos anos 1970, documentário e ficção deixariam,

em tese, de ser considerados pelos cineastas como narrativas dicotômicas, mas sim

complementares. (AVELLAR, 1995, p. 131). Nesse sentido, o cinema sociopolítico produzido

após a redemocratização dos países da América Latina (nos anos 1980, 1990, 2000), embora

não fossem mais de cunho revolucionário, discutiria em tom de denúncia esse período histórico-

autoritário na região. Ademais, a disputa pela memória social e identidade nacional se faria

necessária como elemento constitutivo de construção simbólica dos países afetados por anos ou

décadas (no caso do Brasil) de censura, repressão e veiculação midiática de um simulacro

onírico-distópico de país; espécie de surrealismo fantasmagórico (ou estética do golpe) que

invocaria o ressurgimento da democracia,62 enquanto emergia uma ditadura.

A partir dos anos 1980, supomos que onde antes havia nuevos cines da América Latina

nasceriam obras fílmicas a dialogar entre si no que tange à sua estrutura narrativa, por conta das

similaridades socioculturais e geopolíticas já (sub)desenvolvidas e consolidadas àquele

momento. E isto se daria através dos processos mencionados brevemente neste subcapítulo e

em anteriores, com foco tanto na influência do neorrealismo italiano, quanto na estética musical

híbrida e “vira-latina” - exibindo um nuevo sonido latino-americano. E tais vínculos históricos

compartilhados em maior ou menor grau entre os países da região culminariam em produções

cinematográficas baseadas em grande parte – e para além do realismo “imperfeito” e cru

anteriormente exibido - em um miserabilismo estético, calcado na visão pessimista do

cotidiano; talvez como resposta involuntária ao aparente fracasso do projeto de transformação

social representado pelo Nuevo cine revolucionário.

A referida ressaca discursiva resultante do hiperbólico e antropofágico coquetel

contracultural (que mesclaria lutas ideológicas e viagens alucinógenas) se voltaria - após os

anistiados anos de chumbo - para o registro da violência e miséria urbana nas cidades

cotidianamente desiguais da América Latina. Isto em países que, além de submetidos ao

contrato colonial-social firmado e periodicamente renovado na região (seja por meios ditos

democráticos ou explicitamente ditatoriais), passariam a ser cobaias do experimento político-

econômico neoliberal. E assim, consolidando-se como (i)nações dependentes, privatizadas,

marginalizadas, e desiguais, onde brasucas e chicanos seguiriam suplicando auxílio aos fundos

monetários internacionais.

62

Referência nossa ao editorial do jornal O Globo em apoio ao golpe civil-militar no Brasil, intitulado Ressurge

a Democracia!, publicado em 2 de abril de 1964. Disponível em: .< http://memoria.oglobo.globo.com/erros-e-

acusacoes-falsas/apoio-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-12695226 >. Acesso em: 22 abr 2021.

82

E, nesse contexto em que o ocidente exalta o suposto fim das utopias (reforçado pela

implosão sistêmica e político-ideológica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em

1991), o microcosmos fílmico-cultural do chamado neorrealismo cotidiano buscaria

ressignificar linguagens e reflexões dos novos-velhos cines produzidos anteriormente

(TORRES, 2011). Desta forma, tais estéticas celebradas em outros tempos como sendo

vanguardistas se veriam reposicionadas em um cenário cinematográfico onde outros discursos,

identidades, manifestações culturais e artísticas estariam se expressando e desenvolvendo –

afetadas, portanto, não mais por uma guerra fria global, mas por inflamada guerrilha local. E

dando protagonismo a sujeitos desinteressados em teorias, “coisas do oriente ou romances

astrais”, e cuja “alucinação” se baseia em “suportar o dia a dia” e “delirar” vivenciando “coisas

reais”63.

Assim, ainda conforme Torres (op.cit.), tais representações cotidianas das sociedades na

América Latina não mais seriam associadas discursivamente ao chamado inimigo externo,

lançando luz e foco, pois, sobre temas e abordagens heterogêneas e constitutivas de uma

subjetividade latino-americana que tratar-se-ia do resultado da mescla entre várias linguagens

e imaginários responsáveis por atuar acerca de sua identidade cultural. Nesse sentido, podemos

afirmar em sintonia a Torres (op. cit), que o neorrealismo cotidiano teria como motivação

deslocar-se por distintas experimentações narrativas e estéticas responsáveis por revelar

histórias dos comuns, de pessoas que transitam pelo cotidiano e realizam ações mínimas, porém

valiosas, enquanto experiência humana. Da mesma forma, este seria um cinema cuja abordagem

passional ou épica seria quase nula, e onde tanto o personagem quanto suas histórias estariam

amenizados em sua dramaticidade, trazendo indivíduos do dia a dia, da porta ao lado, ou seja,

sem arcos espetaculares, tratando de registrar, portanto, a cotidianidade dos heróis menores.

Um retrato, em certa medida, dos ditos homens lentos de Milton Santos (2006), cuja heroicidade

se daria através de histórias (de vida) mínimas, despercebidos pelo olhar grandiloquente, míope

e viciado do dito progresso e dos hiperlinks e hiperespaços; ignorando os “clics modernos” dos

que não têm água no aquecedor e tampouco escrevem canções de amor, pois sentem o mundo

girar ao contrário com “olhos de videoteipe”64.

63 Referência nossa à canção “Alucinação” (1976) de Belchior, nos versos: “Eu não estou interessado em nenhuma

teoria / Nem nessas coisas do oriente, romances astrais / A minha alucinação é suportar o dia a dia / E meu delírio

é a experiência com coisas reais”. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=Lr7ywDnQjvY >. Acesso

em: 20 jul. 2021. 64 O trecho entre aspas faz referência ao álbum intitulado Clics Modernos (1983), do músico argentino Charly

García, e à canção Ojos de videotape (Olhos de videoteipe), nos versos: No tengo agua en el calefón / No tengo

que escribir canciones de amor (...) Te vas, el mundo gira al revés /

83

Uma das características cinematográficas mais recorrentes no neorrealismo cotidiano

seria a contemplação trazida quase como mirada testemunhal, com intuito de chamar a atenção

do espectador a fim de gerar um estranhamento que transcende a ideia do não acontecer; e que,

de igual modo, consiga transmitir por meio desses instantes de suspensão (ou deslocamentos

espirituais), bem como de monólogos interiores, momentos importantes da existência humana

através de seus personagens. (RÍOS, 2021, p. 84 e 85). No prólogo da obra de Galo Torres sobre

o, neorrealismo cotidiano, Christián León (2011) defende existir uma revalorização do presente

em estado puro, lograda por meio de uma sensorialidade responsável por trabalhar o caráter

escultórico do tempo; e cujas narrativas de contemplação se oporiam, por sua vez, às imagens

monumentais, utopistas, militantes ou miserabilistas das demais abordagens e estéticas fílmicas

construídas anteriormente na América Latina (LEÓN, apud TORRES, 2011, p. 13).

Em contrapartida, diversas obras cinematográficas inseridas nesse contexto cotidiano-

neorrealístico pareciam hibridizar estilisticamente documentário e ficção, ou mesmo buscar

gerar certa confusão no espectador quanto ao gênero apresentado em tela. Alguns exemplos

audiovisuais deste estilo hibridístico-documental de estética contemplativa e minimalista

produzidos na primeira década do século XXI seriam as obras La Libertad (2001) e Los Muertos

(2004), de Lisandro Alonso, e Hamaca Paraguaya (2006), de Paz Encina. Ademais, tais

processos capazes, em tese, de dilatar o tempo e o (sentido de) real em contraposição a um

tempo fílmico devem ser contextualizados como elementos possivelmente presentes na tríade

cinematográfica de objetos músico-documentais latino-americanos diagnosticados no capítulo

de análise.

Por fim, entendemos como importante incluir a discussão trazida por Denise Tavares

(2010) em relação ao audiovisual latino-americano quanto à questão da autoria e da militância

no documentário. Nesse sentido, partindo da obra do cineasta argentino Fernando Solanas, a

autora comenta sobre o diálogo proposto entre as imagens íntimas expostas pelo realizador (por

meio, inclusive, de memórias pessoais) combinadas às críticas dirigidas aos governos

argentinos, a partir de sua câmera participante enquanto filmagem subjetiva. (TAVARES, 2010,

s/p). A autora ressalta que as características fílmico-investigativas de Solanas relativas à sua

intenção em buscar respostas às perguntas geradas nas obras documentais do argentino

acabariam tornando-o, a cada produção, mais repórter e igualmente menos relacionado (ou

Mientras miras esos ojos de videotape (Não tenho água no aquecedor / Não tenho que escrever canções de amor

[...] Você vai embora, o mundo gira ao contrário / Enquanto você olha para esses olhos de videoteipe - tradução

nossa). Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=h9AHQV3pPn8 >. Acesso em: 25 mai, 2021.

84

relacionável) ao Nuevo cine argentino. Desse modo, é possível que a militância política inerente

a Fernando Solanas tenha contribuído para a sua inclinação político-documental à moda antiga,

se pensarmos no atual cenário “tão marcadamente inclinado à subjetividade e à valorização de

uma memória resguardada pelo recorte do espaço íntimo”. (TAVARES, 2010, s/p). A seguir, a

autora assinala que:

Solanas representa não apenas à volta a um modelo de documentário político que se

estruturou como ensaio, análogo a um livro em capítulos, didático em sua concepção

de informar e educar. Sua presença, na cena cinematográfica argentina, corroborada

pelo reconhecimento internacional, recupera um papel que o jornalismo investigativo

dizia ter, mas que, cada vez menos, apresenta: a capacidade de buscar dados e articulá-

los em um discurso claro, estatístico e sem pudor de revelar nomes. (TAVARES, 2010,

s/p).

Isto nos remete a uma frase do jornalista e realizador Geneton Moraes Neto (narrada

pelo ator Paulo César Pereio) presente no documentário de sua autoria intitulado “Canções do

Exílio: a labareda que lambeu tudo” (2011): “O jornalismo tenta copiar a vida, o cinema tenta

transcendê-la”. Ao menos no que se refere ao documentário, talvez uma abordagem fílmica que

aluda à minúcia apurativa do jornalismo investigativo (isto é, nos trazendo à chamada realidade

dura dos fatos) como elemento-chave, nos atente para a imprescindibilidade da ética sobre a

estética, e na função social da mídia de massa. Além de ressaltar nos tempos atuais que: mais

do que buscarmos incessantemente o olhar do outro, é preciso que olhemos atentamente ao

redor e profundamente para nós mesmos; sobretudo quando vida e arte, além de se imitarem,

parecem hibridizadas no cotidiano.

3.2 Regulação e integração latino-americana: dos meios às imediações audiovisuais

Após ressaltarmos aspectos da cinematografia latino-americana que são relevantes para

o desenho da nossa pesquisa, fizemos, agora, o deslocamento que, de certo modo, foi o apontado

pelo DOCTV AL, isto é, a percepção do papel da mídia de massa para a viabilidade do

Programa. Embora não seja objeto de enfoque teórico e analítico, o DOCTV AL, como

destacado na Introdução deste trabalho, objetiva difundir o intercâmbio cultural na região

através de parceria com TVs públicas dos países coligados. Porém, as limitações do formato

tornam-se evidentes, pelo menos quando as observamos pela perspectiva brasileira, ou seja, sob

a égide do marco regulatório atual da mídia e, consequentemente, em relação ao nível de

investimento e posterior difusão da TV pública vigente no País. Isto frente às experiências de

85

regulação já correntes em nações próximas na região, como Argentina e Venezuela, bem como

em países geograficamente afastados, como Estados Unidos e Inglaterra65.

No caso dos Estados Unidos, segundo a BBC, a regulação das telecomunicações (rádio,

TV aberta e a cabo, internet e telefonia) atualmente é gerida pela Federal Communications

Commission (Comissão Federal de Comunicações, ou FCC - sigla em inglês), uma agência

independente do governo estadunidense (e criada em 1934). A FCC atua sobretudo no âmbito

econômico, com função regulatória sobre o mercado, outorgando ou não novas concessões. É

vedada, nesse sentido, a propriedade cruzada dos meios de comunicação, não sendo permitida

a uma empresa que possua jornal impresso e estação de TV ou de rádio no mesmo município.

Além disso, a FCC limita o número de estações de rádio e televisão permitidos a uma mesma

organização empresarial enquanto negócio, com intuito de impedir que qualquer grupo de

comunicação obtenha o domínio hegemônico e absoluto da audiência em uma determinada

localidade.

Sabemos que no Brasil não existe, na prática, uma atuação regulatória satisfatória

quanto aos excessos ou abusos mercadológicos no que se refere à propriedade cruzada. Um

exemplo histórico de tal distorção se dá por meio das Organizações Globo e suas subsidiárias,

cujos tentáculos empresariais (para além de estações de rádio, TV - aberta e a cabo - e portais

de internet) se inserem no mercado de revistas e livros, além da indústria cinematográfica e da

fonográfica. Assim, por mais de 50 anos a gravadora Som Livre, criada pelo Grupo Globo em

1969, logrou possuir em seu catálogo inúmeros artistas (de Roberto Carlos, Gal Costa, Elis

Regina, Jorge Ben, Chico Buarque e Paulinho da Viola, a Xuxa, Luan Santana, Gustavo Lima,

Cesar Menotti & Fabiano e Wesley Safadão). Em abril de 2021 a Globo anunciou a venda da

Som Livre para a Sony Music Entertainment (G1, 2021).

Supomos que teria se consolidado através do referido conglomerado de mídia um

modelo de negócio que contribuiria por décadas tanto para a hegemonização quanto

homogeneização do mercado fonográfico mainstream no Brasil. E, para tanto, acionando a

totalidade do aparato noticioso e de entretenimento que a empresa dispunha (trilhas sonoras em

telenovelas, programas de auditório e de entrevistas etc.), a fim de promover massiva e

(inter)nacionalmente os seus artistas e grupos musicais. Por outro lado, gravadoras como Sony,

Warner, Universal e EMI disputariam o mercado lançando mão do chamado jabaculê, (ou jabá)

65 Ver reportagem publicada pelo site BBC Brasil em 1º de dezembro de 2014, intitulada “Como funciona a

regulação de mídia em outros países?” que mostra como teria ocorrido a regulamentação dos meios de

comunicação. em quatro países (Estados Unidos, Venezuela, Inglaterra e Argentina). Disponível em: .<

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/12/141128_midia_paises_lab >. Acesso em: 22 abr 2021.

86

termo jocoso e comum na indústria musical relativo ao suborno pago por selos (ou artistas)

musicais para que programas televisivos e de rádio, bem como serviços de streaming divulguem

ad nauseam as canções de seu elenco. Segundo o produtor musical André Midani, (2001) tal

prática teria se ampliado – ou radiodifundido – ainda nos anos 1970, após o mesmo ter

denunciado a cobrança de jabá:

Tive várias interferências no sentido de dizer "vamos parar com esse negócio". Em

78, na Warner, estava lançando Baby e Pepeu, que, como integrantes dos Novos

Baianos, haviam sido os protegidos do Chacrinha. De repente, recebo a notícia de que,

se não pagássemos, eles não iam aparecer em seu programa. Achei por bem denunciar.

Disse à imprensa que Chacrinha queria cobrar jabaculê. Isso me custou caro. Rádios

e outros programas de TV aderiram à causa e passaram a cobrar também (FOLHA DE

SP, 2021).

Entrando em um contexto (geo)político e institucional, a mesma reportagem da BBC

Brasil (2014) relembra a aplicação na Venezuela da Ley de Responsabilidad Social en Radio y

Televisión (Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão), conhecida como Ley

Resorte. A nova regulação entraria em vigor em 2005, três anos após o então presidente Hugo

Chávez ter sofrido uma tentativa de golpe de Estado, flagrantemente apoiada por veículos de

imprensa privados locais. Ato contínuo, massivas manifestações populares tomaram as ruas

venezuelanas cobrando a volta de Chávez à presidência. Tais protestos populares acabariam

sendo ignorados ou distorcidos pela cobertura midiática, impedindo que a versão dos defensores

da “revolução bolivariana” fosse televisionada66.

O evento acabaria, pois, inspirando a discussão e posterior elaboração de uma legislação

referente à regulamentação dos meios de comunicação naquele país sul-americano. Entre outras

medidas, a lei Resorte, segundo a BBC Brasil (2014), proibiria a hereditariedade do setor na

Venezuela (ou a perpetuação de uma concessão pública sob o controle de dinastias familiares)

e, desde 2010, também abarcaria a regulação da internet, prevendo punição a páginas digitais

que divulgassem (ou não coibissem) conteúdos de incitação ao ódio. A reportagem aponta tanto

o descontentamento da IPYS (Instituto Prensa y Sociedad – Instituto Imprensa e Sociedade)

com as medidas legais, quanto a aprovação delas entre movimentos sociais e ditos defensores

da democratização dos meios de comunicação e da expansão da mídia comunitária na

Venezuela.

66 Referência nossa ao documentário irlandês intitulado The revolution will not be televised (A revolução não será

televisionada, 2003) relativo à tentativa de golpe de Estado contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, em

2002. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=FppdfwqmImE >. Acesso em 22 abr 2021.

87

De todo modo, considerando a proposta de circulação do DOCTV América latina, vale

lembrar que a democratização dos meios de comunicação e a mudança da noção de ética na

profissão jornalística seriam dois cenários básicos considerados necessários para o estímulo do

direito à comunicação e à informação (KARAM, 1997). O primeiro contexto diz respeito a

romper com o cenário de concentração, monopolização de mídia visando maior pluralidade de

ideias, bem como a regionalização de produção jornalística. Isto é, descentralizar o poder de

influência da matriz sudestina, ou do “Sul Maravilha” (São Paulo e Rio de Janeiro) sobre as

demais regiões do País. E, nesse sentido, buscando descolonizar midiaticamente as ditas

emissoras afiliadas (ou “associadas”, na ótica estatal-estadual estadunidense-porto-riquenha),

ampliando perspectivas e exibindo novos ângulos, identidades e vivências representadas no

cotidiano de cada estado, município, bairro, esquina, sujeito, voz, olhar.

Pensando especificamente na cobertura cotidiana dos fatos na América Latina, é comum

vermos veículos de imprensa brasileiros atuando como se fizessem parte de outro continente,

reproduzindo abordagens (e interesses) estadunidenses e europeias referentes aos países

vizinhos latino-americanos, isto é, situados a poucos quilômetros de distância do Brasil. Um

exemplo nítido de jornalismo colonizado made in Brazil (em rádio, TV, internet, jornais

impressos etc.) está na dinâmica de atuação midiática dos chamados correspondentes

internacionais a partir dos países onde estes se encontram radicados. Em geral, apenas um

profissional de imprensa brasileiro é incumbido de realizar a cobertura distanciada dos fatos

sobre todo o subcontinente sul-americano, além de México e Caribe, guiando-se, para tanto,

por material de agências europeias ou estadunidenses, bem como de veículos latinos alinhados

editorialmente às pautas da dita grande mídia do Brasil.

O segundo contexto apontado por Karam (1997) diz respeito a um exercício de

conscientização por parte do jornalista de modo que o mesmo entenda o quão responsável é, de

fato, pela informação que produz e veicula, equilibrando-se (e conscientizando-se) em prestar

contas tanto ao local onde trabalha quanto ao público daquela empresa de mídia. Isto implicaria

ao profissional compreender o compromisso de mostrar a “própria ambigüidade dos gestos e

expressões humanas, e fazê-lo radicalmente, incluindo fatos e versões diferenciadas; evitando,

assim, que interesses particulares (econômicos, político-ideológicos e outros) o impeçam de

alcançar êxito em tal objetivo” (KARAM, 1997, p. 93 a 104).

Como afirma Venício Artur de Lima (2010), os papéis do Estado, do mercado e da

sociedade civil concernentes às regulações das comunicações encontram-se relacionados com

os conceitos de sistema estatal, privado e público da comunicação. E, respectivamente, à

88

atuação no setor de comunicação de órgãos vinculados ao governo, das empresas privadas de

mídia, e, por fim, de pessoas, grupos ou instituições que não fazem parte das anteriores – ou

seja, representantes da sociedade civil. Essa relação tripartite está prevista inclusive na

Constituição Federal, especificamente no “capítulo V – Da Comunicação Social”, no que tange

à atuação da mídia, devendo esta se pautar pelo respeito (entre outros princípios) à

“complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal” (Art. 23).

De toda forma, avaliamos ser fundamental ressaltar que a comunicação pública no

Brasil, assim como a saúde e a educação públicas, tem sido pouco compreendida e defendida

enquanto bandeira e projeto informativo-comunicacional, educativo, cultural e soberano para o

País, tendo como princípio básico de gerar conteúdos de interesse da população, livre das

amarras dos anunciantes. Sob essa perspectiva a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), criada

em 2007, teve como pretensão corresponder a essa representação pública, prestando serviços

de radiodifusão, bem como sendo a gestora das emissoras de rádio e televisão públicas federais

do País. E a TV Brasil, enquanto rede de televisão pública pertencente à EBC, contando com

50 afiliadas em 21 estados, teria por finalidade ampliar a oferta de conteúdo audiovisual, e com

abordagem informativa, cultural, artística, científica e cidadã, segundo consta no site da mesma

(TV BRASIL, 2021).

Não pretendemos pormenorizar neste subcapítulo sobre como tem sido a atuação das

redes de televisão públicas do Brasil ou mesmo comparar o modelo atual com o de outros países.

No entanto, é impossível ignorar que no país congressistas e seus familiares mantêm concessão

de rádio e TV (além de influência em jornais impressos), bem como igrejas (seja a católica ou

pentecostais), livres para difundir teorias e teses alheias à ciência e ao saber ou conhecimento

universal. Em contrapartida, movimentos sociais, representantes dos povos originários e da

sociedade civil em geral permanecem desassistidos nesse sentido. Por outro lado, boa parte das

rádios comunitárias, presentes tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina, têm

sido instrumento e voz popular de relevância histórica, embora não haja interesse do Estado

quanto ao incentivo e regulamentação desse segmento, mantendo o seu alcance (potência do

sinal) limitado.

Mas, enfim, se pensarmos em um contexto de integração latino-americana, a inclusão

da Telesur, rede de televisão multi-estatal (gerida por vários países da América Latina e com

sede na Venezuela) entre os canais de TV aberta ou a cabo na grade da programação televisiva

do Brasil por certo seria uma opção (ou um primeiro passo) no sentido de buscar pluralizar ou

democratizar minimamente o setor. E, consequentemente, ampliando a mirada, perspectiva e

89

representação latino-americanas no País, quiçá acelerando o processo de identidade (e

identificação) do brasileiro com os países vizinhos. E mesmo não sendo uma iniciativa

plenamente satisfatória quanto a democratização da área, ao menos propiciaria, em tese, ao

Brasil (e aos distintos brasis, incluindo o profundo, dependendo do alcance do sinal da Telesur)

um reencontro consigo mesmo através da miríade de miradas vira-latinizadas sobre os latino-

americanos - e sobre o mundo. E, embora as primeiras décadas do século XXI tenham sido

marcadas pelo advento da internet e das redes sociais, bem como do (pre)domínio das chamadas

Big Tech (empresas de tecnologia como Google, Facebook, Apple, Microsoft e outras) no

cotidiano digital não podemos desprezar o poder de influência da TV e do rádio nos lares do

Brasil.

Ressaltamos, pois, que muitas das altercações acaloradas que hoje movimentam os

trending topics (assuntos mais comentados) do Twitter ou que recebem milhares de

visualizações e interações no Facebook e no Instagram ainda partem de conteúdos produzidos

e publicados por meio de matérias jornalísticas e colunas de opinião em jornais, revistas, rádio,

TV e portais de internet de propriedade dos conglomerados midiáticos tradicionais. E quando

transferido para as linhas do tempo das redes sociais, o referido material (impresso ou

eletrônico) – seja ele político-noticioso, cultural ou de entretenimento - parece ocorrer um

estímulo ou ressonância virtual, nutrindo a demanda dos usuários online por horas; e, assim,

tornando-se, por vezes, o veículo ou jornalista a própria notícia em si – um “meme”, capaz de

prolongar sua “vida útil” no imaginário online. De toda forma, parece persistir uma

momentânea relação de interdependência e não apenas de superação do meio “antigo” pelo

“novo” na atual transicionalidade informativo-comunicacional, inserida no atual processo de

convergência digital e sua relação formato-conteúdo.

De toda forma, não podemos ignorar que a ação ou ativismo político cotidiano que busca

disputar narrativas em espaços virtuais com perspectiva real de transformação social esteja

sendo igualmente mediado e de-limitado no interior e ao sabor das Big Tech (onde a luta é

travada e tolhida). Podemos considerá-las conglomerados de mídia (embora não admitam sê-

lo) por disporem de meios de difusão de informação em ampla escala e minúcia - e livres de

regulação à altura -, capazes de determinar tanto os gostos socioculturais (de gastronômicos a

musicais) de alguns, quanto os político-ideológicos de numerosos ciber-indivíduos. E como

veículos de comunicação, as Big Tech devem ser reguladas pelo Estado por conta do volume

imensurável de conteúdos textuais e audiovisuais que estas disseminam (e ocultam). O que nos

leva ao chamado Marco civil, cuja Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 “estabelece princípios,

90

garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil” e determina as diretrizes para

atuação da União, dos estados e municípios em relação à mesma. Os artigos e incisos contidos

no documento talvez necessitem de uma temporalidade regulatória ágil - e móvel -, isto é,

acompanhando de perto as mudanças constantes no ambiente digital, que têm se mostrado

diárias (ou menos do que isso) quanto às empresas de tecnologia, plataformas, aplicativos e

outras funções.

Entendemos, sob essa lógica, que as leis devem não apenas salvaguardar a segurança

digital (privacidade) do usuário, mas também buscar coibir legalmente eventuais abusos das

empresas de tecnologia em relação aos direitos individuais e coletivos, bem como incentivarem

a criação de plataformas, redes sociais e serviços digitais que façam frente ao atual monopólio

das Big Tech. E, nesse sentido, pensando em parcerias integracionais com outros países latino-

americanos, inspirando-se nas TVs públicas para oferecer opções midiático-culturais soberanas

como alternativa ao colonialismo digital. Por esse prisma, pensamos que as mudanças

estruturais a - pelo menos - médio prazo, devem passar também, mas não apenas, por ações

legais efetivas do Estado (guiando-se, por óbvio, pela imprescindível pressão de movimentos

sociais e representantes da sociedade civil). E, no que tange à identidade cultural latino-

americana, os desafios se mostram grandes nos cenários digital e audiovisual. Especificamente

quanto ao corpus desta dissertação, entendemos que os documentários albergados no Programa

DOCTV Latinoamérica dependeriam de mudanças regulacionais (além de medidas transversais

educativo-socioculturais) no Brasil e nos outros países, para que pudessem ser desfrutados por

um número satisfatório de espectadores.

O PL 29 / 07, de 2007 (BOLAÑO, 2009), conhecido como o projeto de lei de

convergência tecnológica por buscar complementar a regulação da distribuição do conteúdo

audiovisual por redes de telecomunicações, entre outras ações, tem como um dos pontos

centrais a criação de cotas para produção nacional nas emissoras TV por assinatura - ainda que

estas sejam tímidas no tocante à produção independente (fala-se que pelo menos um canal deve

ser exclusivamente brasileiro e transmitido por, no mínimo, 12 horas diárias em todas as

plataformas de TV por assinatura). Outros pontos seriam incluídos posteriormente, como: em

cada pacote devendo haver, no mínimo, um canal de filmes nacionais, e a cada três canais em

pacotes de TV paga, ao menos um destes sendo de produtora brasileira; podendo chegar, então,

a 12 emissoras brasileiras por pacote; e, no caso de canal individual, pelo menos três horas e

meia semanais exibindo conteúdo brasileiro (em horário nobre); e pelo menos 50% compostos

por criações oriundas de produtoras independentes. E estabelecendo a ANCINE (Agência

91

Nacional do Cinema) como fiscalizadora das atividades de programação e elaboração dos

pacotes de TV paga (BOLAÑO, 2009, p. 9 a 11).

Apesar do nítido avanço apresentado nos últimos anos quanto à inserção de conteúdo

audiovisual nacional - e de outros países da América Latina – nas TVs a cabo do Brasil, parece

claro se tratar de ação ainda insuficiente para a construção de uma integração latino-americana

de perspectiva artístico-cultural (e fomentada pelos meios de comunicação) para um público

amplo. César Bolaño ressalta que relativamente aos projetos de lei – como a chamada lei do

Cabo - nota-se que os interesses do mercado seguem ditando a regulação, como no caso das

Organizações Globo, em detrimento dos interesses dos movimentos pela democratização da

mídia e dos produtores independentes (BOLAÑO, 2009, p. 9)

Segundo Martín-Barbero, a relação promíscua existente na atualidade entre

convergência e tecnologia - gerando concentração de poder - suscita a defesa da regulamentação

do setor. O autor afirma que a descentralização de comunicação prometida por políticas

neoliberais embasadas no novo cenário de convergência tecnológica, e endossada por

ideologias como “transparência comunicativa e tudo é comunicação trata-se, de fato, de

argumento favorável a uma desavergonhada concentração de meios de comunicação em

oligopólios” (2010, p. 224). Por outro lado, o autor reconhece o aumento da participação

popular na comunicação por meio da cultura digital, o que de certa forma, atua no sentido de

combater tais oligopólios, e cita o exemplo de grupos minoritários como indígenas e sujeitos

pobres que através da convergência tecnológica e do ambiente digital em geral têm conseguido

tanto disseminar quanto buscar conteúdos culturais e informacionais que escapem da égide e

do padrão globalizado difundido pelos grupos hegemônicos. E como solução para o cenário de

exclusão social historicamente evidente nos países do Sul Global, Martín-Barbero, ressalta

alguns pontos a serem apreciados referentes a políticas públicas, tais como: regulamentações

mais rígidas para o setor corporativo de mídia e menos rígidas para as ditas pequenas mídias,

como rádios e TV’s comunitárias. (MARTÍN-BARBERO, 2010, p. 226).

Por fim, observando pelo prisma do indivíduo comum em sua relação cotidiana com as

diversas mídias no contexto cultural-industrial e tecnológico-corporacional, notamos que, para

todos os efeitos (de sentido), a lógica da economia da atenção67 tem se refletido enquanto

67 Menção nossa à reportagem do site Hyperness intitulada “Economia da atenção: teoria diz que somos menos

felizes e produtivos porque estamos viciados”, publicado em 12 de fevereiro de 2020, e que entrevista a espanhola

Marta Peirano, autora do livro “O inimigo conhece o sistema” (2019). Segundo Peirano, “estamos mais infelizes

e menos produtivos do que nunca, simplesmente porque estamos viciados”. A autora defende, ainda, que objetivo

das empresas de tecnologia é fazer com que o público use seus produtos o maior tempo possível, gerando, assim,

mais dinheiro e, “consequentemente, roubando aquilo que temos de mais precioso: o tempo”. Disponível em: .<

92

espírito do tempo, seja na comunicação, arte ou entretenimento – e, concomitantemente, nas

relações sociais e perfis comportamentais. Em certa medida, tanto o indivíduo-ouvinte quanto

o indivíduo-espectador e o ciber-indivíduo têm sido levados progressivamente no cotidiano a

experienciar música e audiovisual mainstream (e as mídias em geral) de forma mais

“pirotecnicológica”, intensa, ansiosa e superficial. E no campo da apreciação sonora e

audiovisual das obras artísticas, vemos uma tecnologia que busca naturalizar (ou neutralizar) e

hegemonizar sinestesicamente corações e mentes, ao propor uma guerra do volume (loudness

war68) na indústria musical e cinematográfica; aproveitando-se, para tanto, dos avanços

tecnológicos responsáveis por produzir sons com maior amplitude e intensidade, isto é, em

volumes mais elevados e sem distorção. Contudo, as nuances musicais, detalhes e efeitos

sonoros sutis ou subjetivos, por exemplo, acabam negligenciados em diversos produtos

artísticos atuais por conta das explosões sensoriais e rítmico-vertiginosas oferecidas,

preenchendo à força espaços antes destinados ao silêncio e à interpretação do que é consumido

(ou sentido). E assim, com o objetivo de ganhar a atenção “no grito”, tais objetos artísticos em

tese suscitam no indivíduo (ouvinte e espectador) emoções (ou reações) primais e porno-

consumidas, cuja excita(ten)ção logra-se tendo muito o que mostrar e pouco o que propor; e

isto mesmo quando o que se diz (ou afirma) reflete, em tese, certos anseios (ou desejos).

Nesse sentido, o capitalismo artista (LIPOVETSKY; SERROY, 2015) e sua exacerbação

(ou sofisticação) de características previamente constitutivas desse star-system, como o

individualismo, o hedonismo e o hiper-consumismo acabam perpetuando cotidianamente

sujeitos mais autocentrados, auto-enganados, auto-publicizados e auto-precarizados em seu

lazer-trabalho. Desse modo, são igualmente estimulados a dar respostas inconscientes urgentes,

afetados, pois, por um objeto-desejo (hiper)espetacular capaz de causar tanto prazer quanto

horror ou torpor – mas, sobretudo, dependência imediata e permanente. Uma experiência cada

vez mais estética-estática (de alto impacto e baixa duração), banalizada e narcotizada como

fuga do agora e do real (ou de um real sensível). E a sofisticação de tais mecanismos

historicamente utilizados pela indústria para impor aos indivíduos em geral o quê, como e o

https://www.hypeness.com.br/2020/02/economia-da-atencao-teoria-diz-que-somos-menos-felizes-e-produtivos-

porque-estamos-viciados/ >. Acesso em: 21 jun 2021. 68 Menção nossa ao termo pejorativo loudness war (guerra do volume) que representaria - segundo produtores,

engenheiros de som e demais profissionais da área fonográfica - práticas consideradas prejudiciais quanto a

qualidade do áudio (pouca definição, compressão excessiva e alcance dinâmico reduzido), a fim de torná-lo

comercialmente competitivo (KATZ, 2014 apud PEREIRA, 2015, p. 4). Disponível em: .<

https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/20708/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o_Mestrado_Diogo_Pereira_3

70309010.pdf >. Acesso em: 15 07 2021.

93

quanto deve afetá-los, tem evidenciado tanto a exaltação dos chamados produtores hitmakers,

cujas canções levam poucos segundos até o refrão69, quanto a crítica de alguns diretores que

não vêem certos filmes como cinema70. Não nos caberia, contudo, defender antigos modelos de

negócio pré-existentes até o advento e a consolidação da internet enquanto lógica hegemônica.

Porém, nos parece crucial que haja levantes contrários ao colonialismo digital-empresarial e à

monocultura artístico-industrial, cuja precarização das relações e da diversidade de visões,

discursos, gostos e opiniões têm aprofundado uma experiência (dis)simulada de vida em

sociedade.

3.3 Do documentário à representação antropológica

Em linhas gerais, no que se refere ao gênero documentário e suas possibilidades

temáticas quanto ao olhar (seja ele histórico, contemporâneo, crítico ou contemplativo,

episódico ou biográfico) da sociedade, este se estabelece de forma nítida quanto à sua

identificação e diferenciação em relação ao estilo ficção (ou mesmo a reportagens de TV), por

exemplo. Vale lembrar que a surpresa – e fascinação – com o fazer cinematográfico-documental

encontra-se presente desde o momento em que Louis Lumière apresentou sua criação, o

cinematógrafo, em 1895, exibindo a saída dos operários da fábrica Lumières. Naquele momento

os espectadores puderam experienciar, de maneira inédita, espécie de duplicidade da realidade,

comparando sinestesicamente o que eles viam em tela – a sua representação fílmica - com o

que viviam na cotidianidade. (NICHOLLS, 2015, p. 16). Por outro lado, a invenção do

fonógrafo por Thomas Edson, em 1887 causaria impacto similar por conta de sua capacidade

de captação e reprodução relativa a qualquer som audível presente em um ambiente.

Nesse sentido, ainda segundo, Bill Nichols (2015, p. 16), os seres vivos, aparentemente

“embalsamados em um pedaço de filme (fotografia), de repente poderiam voltar à vida”, isto é,

repetir ações e reconstituir eventos que, até aquele momento pertenciam exclusiva e

69 Referência à reportagem noticiosa da revista estadunidense The New Yorker intitulada The Doctor is in: a

technique for producing No. 1 songs (O Doutor chegou: a técnica para produzir canções número 1 – tradução

nossa, 2013). Segundo o texto, o produtor musical estadunidense Dr. Luke consegue criar uma música que é

igualmente um plano de negócio. E nas palavras do próprio, embora aprecie artistas e bandas dos anos 1980,

acredita que as canções da referida década levavam tempo demais para chegar ao refrão. Disponível em: .<

https://www.newyorker.com/magazine/2013/10/14/the-doctor-is-in >. Acesso em 21 jun 2021. 70 Referência nossa a um artigo opinativo do jornal estadunidense The New York Times intitulado: Martin Scoscese:

I said Marvel movies aren’t cinema. Let me explain (Martin Scorsese: eu disse que filmes da Marvel não eram

cinema. Deixe-me explicar - tradução nossa, 2019), onde o cineasta assinala: Cinema is an art form that brings

you the unexpected. In superhero movies, nothing is at risk (Cinema é uma forma artística que traz a você o

inesperado. Nos filmes de super-herói, nada está em risco – tradução nossa). Disponível em: .<

https://www.nytimes.com/2019/11/04/opinion/martin-scorsese-marvel.html >. Acesso em: 22 jun 2021.

94

historicamente ao passado. Acrescentamos que não apenas os vivos, mas também os mortos

acabariam sendo eternizados por conta da consolidação temporal no cotidiano dessa ferramenta

considerada quase como portadora de poderes mágico-ilusionísticos em seus primórdios. De

certa forma, tal percepção de que os mortos podem reviver – ou melhor – de que aspectos

referentes aos mesmos, e capturados filmicamente, podem permanecer ao invés de perecer,

reforçam a importância do cinema – e sobretudo da cinematografia documental.

E tal fato torna-se constatável não apenas por lograr arquivar momentos e indivíduos e

sujeitos históricos, mas também suas ideias, qualidades, defeitos, estéticas e discursos tanto

político-ideológicos quanto artisticamente celebratórios ou contestatórios culturalmente, por

exemplo; por vezes apresentadas e hibridizadas intercalando ou mesclando as possíveis

distintas abordagens apresentadas em um único filme, cena ou frame audiovisual. E a partir de

tal experiência, podemos refletir e complexificar eventos e personagens históricos (sejam eles

ricos ou pobres, vilões célebres ou heróis anônimos), bem como gerar efeitos de sentido através

da representação enquanto identidade cultural e do re-conhecimento no outro como parte de si

mesmo e do universo – físico e existencial - onde ambos habitam. Uma relação possível de ser

consolidada entre a produção cinematográfica e o espectador tanto por meio dos diálogos e

imagens quanto do som ambiente ou pós-produzido, bem como da música - atuando

narrativamente como trilha incidental ou trilha sonora (canções, por exemplo).

No entanto, é preciso ressaltar que interpretações ambíguas ou labirínticas podem acabar

sendo geradas no espectador em relação à obra em termos artísticos e informativo-

comunicacionais; e isto por conta da inexistência de gêneros fílmicos ditos puros quando

pensamos nos estilos documental e ficcional. Sobre essa construção audiovisual baseada em

representações e narrativas subjetivas, cabe destacar a seguinte fala de Rondelli (1998):

No caso da televisão, os telejornais e documentários deveriam ser o reino dos

discursos sobre o real, enquanto as telenovelas e seriados, o lugar da ficção.

Entretanto, esses gêneros além de não serem puros no modo como narrativamente

constroem suas representações, convivem com uma série de outros gêneros que

transitam entre dois polos sem nenhum compromisso de serem fiéis ou coerentes com

a realidade ou com a ficção, e que ficam mergulhados numa região cinzenta

(RONDELLI, 1998, p. 29 apud MAIA, 2015, p. 33).

Isto nos remete em termos cinematográficos ao gênero híbrido conhecido

como docuficção, responsável – como sugere o termo - por transitar estilisticamente entre o

documentário e a ficção, o que resulta, na prática, da introdução de elementos ficcionais ou

fantasiosos a uma obra documental enquanto recurso atrelado à narrativa e com intuito de

95

reforçar a representação do real de maneira artística. Além deste estilo, cabe neste contexto

fílmico apontar a existência do gênero intitulado docudrama (ou drama documentário),

Segundo Ramos (CEAv Unicamp, 2012)., o docudrama se estabelece através do fato histórico

e utiliza-se da forma narrativa oriunda do chamado cinema de ficção. Isto é, comprimindo ou

adequando o acontecimento a uma narrativa própria do cinema hollywoodiano, por exemplo, é

possível tornar a obra documental dramatizada (ou hibridizada) por elementos ficcionais como

se fosse um documentário de fato para o público. O docudrama trabalharia, portanto, dentro dos

padrões das obras audiovisuais de ficção, ou seja, inserido no modelo de narrativa clássica dos

filmes que sabidamente dominam o dito “circuito” (indústria cultural) ao incorporar, por

exemplo, uma reviravolta, ou ponto de reconhecimento, bem como os chamados personagens

principais e secundários - o fato histórico transformado, pois, em narrativa fílmica (CEAv

Unicamp, 2012).

Por outro lado, ao reconhecer as interações entre os indivíduos como espontâneas e

encenadas - ou mascaradas (GOFFMAN, 2002) - tanto nas obras cinematográficas quanto na

cotidianidade, Guilherme Maia (2015, p. 33) relembra uma passagem do diretor Eduardo

Coutinho referente ao campo da representação. Assim, a pessoa entrevistada, segundo

Coutinho, seria capaz de inventar para o entrevistador uma persona existente apenas naquele

momento específico do encontro enquanto parte de uma produção não-ficcional. A partir dessa

lógica, o personagem criado para representar o indivíduo em tela, bem como a persona

resultante desse processo (seja intenso ou frugal) acaba por tornar-se mais extraordinário do

que a própria pessoa em si, por lograr sintetizar distintos tempos existentes na mesma e, dessa

forma, apresentando “momentos intensos de encontros que produzem até um efeito ficcional, e

que são ficcionais no sentido de que o dia a dia é uma outra coisa”. (MACDOUGALL, 2005,

p. 121 apud MAIA, 2015, p. 33).

Da mesma forma, a biografia (tanto no campo literário quanto audiovisual), mudaria

bastante ao longo dos anos. A genealogia biográfica a define como espécie de história que tem

por objeto a vida de uma única pessoa, trazendo um ilusório acesso direto ao passado através

da narrativa (CARVALHO, 2015, p. 121). De maneira geral, as narrativas biográficas

pretendem organizar os acontecimentos de uma vida de forma cronológica, ou seja, com início,

meio e fim. Pierre Bourdieu (2005, p. 185 apud CARVALHO, 2015, p. 121) alcunharia tal

prática (ou crença) de “ilusão biográfica”, capaz de compor “um (...) relato coerente de uma

sequência de acontecimentos com significado e direção. Para Bourdieu (2005), no entanto, o

ato biográfico carrega um caráter híbrido e impuro, trazendo consigo diversas abordagens e

96

inclinações narrativas ao longo do percurso histórico do referido gênero. Independentemente

deste conceito, o fato é que no campo do audiovisual, há uma profusão de produções no cenário

contemporâneo, em especial do documentário biográfico que “explicitam o esforço nítido de

abarcar a complexidade do sujeito, mesmo que esta signifique um recorte no ritmo do

cotidiano” (TAVARES, 2013, p. 114). Trata-se de uma farta produção que tem se apoiado nas

fontes da história e da memória, buscando

...nos rastros da primeira, o caminho para se viabilizarem. Nesse percurso, exploram

as imagens e sons de arquivo de modo que estes não sejam apenas registros, mas sim

matéria viva e aberta aos questionamentos e digressões do passado e do presente,

estabelecendo tensões produtivas entre as temporalidades, em pulsões que também

questionam a memória muitas vezes em conflito com a historiografia oficial.

(TAVARES, 2013, p. 135).

Não é, portanto, um acaso, que as biografias estão cada vez mais comuns em diversas

mídias e plataformas (e telas), destacando-se desse conjunto, no caso brasileiro, produções

documentais que escolhem temas e artistas pertencentes à historicidade musical do país. E nos

últimos anos as pesquisas realizadas para esse formato audiovisual (em especial no cinema) têm

se dedicado gradativamente tanto aos elementos técnicos e estéticos, quanto ao uso do som.

(CARVALHO, 2015, p. 123). Nesse sentido, a importância do som pode inclusive estar

desassociada à opinião (ou desconhecimento) pré-existente do espectador sobre, por exemplo,

um artista, gênero ou manifestação musical-cultural exibida nas telas (seja em documentário ou

ficção). E, assim, com a contribuição do som (e da música) para expressar ou traduzir momentos

e incitar sentimentos e conexões (in)conscientes - aliada à narrativa, ao roteiro e às imagens -

torna-se plausível imaginar que um indivíduo se sinta sinestesicamente afetado por sonoridades

desprezadas em seu cotidiano, seja o canto de um pássaro ou toque de tambor.

Apesar deste indicador, no que concerne aos estudos de trilha sonora para boa parte

deste subgênero (vamos chamar assim) que é o documentário musical ou sobre músico, há

relativa prevalência da voz em grande parte das obras músico-documentais, cuja montagem

busca guiar-se pela palavra, sobretudo por meio do recurso da entrevista; e esta acabaria por

substituir, de um modo geral, a narração, assumindo finalidade expositivo-informativa

referentemente aos temas. Desta forma, a construção biográfica de artistas e bandas musicais

nesse gênero cinematográfico se daria por meio da utilização do som direto oriundo de

entrevistas e depoimentos, bem como do som de arquivo (trazido de outros filmes e programas

de TV, por exemplo) (CARVALHO, 2012a, 2015, p. 124). E por conta disso, a trilha musical

seria preterida ou relegada a um patamar inferior.

97

Pensando nas características do gênero documental pelo prisma da antropologia (e dos

etnólogos), Pinheiro (2015, p. 39) traz distintos exemplos de manifestações culturais, entre eles

as rodas de Toré, dança ritualística disseminada entre etnias indígenas oriundas do nordeste

brasileiro; além dos encontros de comunidades rurais negras e quilombolas, presentes em

diversos estados daquela região; os cortejos e procissões, festas em terreiros e outros. A autora

aponta ainda a tendência predominante tanto nas ciências sociais em geral como na antropologia

de forma específica, em representar tais manifestações através da descrição textual, por meio

da “re-constituição” de movimentos corporais, gestos e, principalmente, dos sons (presentes na

palavra falada e cantada). E levando tais aspectos culturais para o cotidiano etnológico, é

plausível imaginar que na referida roda de Toré, o elemento textual da canção pode vir a ter

menos importância do que os demais (PINHEIRO, 2015, p. 39 e 40).

Isto é, para tornar-se possível transmitir de maneira satisfatória uma dança em ritual

festivo-celebratório, seria necessário explicar como os múltiplos sentidos dos participantes –

bem como do antropólogo - estimulam-se e coexistem através de fatores constitutivos, tais

como:

...o ambiente sonoro do espaço em que tal prática se dá, o ritmo percussivo, a escala

tonal do canto, o contato daqueles que dançam com o solo, o contato destes com os

demais corpos, o movimento próprio da dança, a ingestão de bebida fermentada, a

inalação de odores (de fumo ou incenso, por exemplo) e a escuta de palavras de ordem,

para citar apenas alguns elementos. Porque estamos falando de uma experiência que

é, por natureza, sensorial, não podemos restringir a tentativa de traduzir sua

vivacidade a uma mera descrição dos textos característicos do evento. (PINHEIRO,

2015, p. 40).

Nesse sentido, as representações expressas por meio do som e da imagem disporiam de

uma peculiaridade sinestésica que permitiria ao etno-antropólogo comunicar sensações

advindas de uma experiência corporal/corporificada, as quais normalmente estariam acima das

possibilidades de um texto escrito. (MACDOUGALL, 1998, 2006; MARKS, 2000; PINK,

2007; POSTMA; CRAWFORD, 2006 apud PINHEIRO, 2015, p. 41). Por outro lado, a

captação de imagens e sons em documentários etnomusicológicos são capazes de exteriorizar

as próprias experiências/vivências empíricas do pesquisador naquele espaço, por conta da

riqueza de associações pessoais, históricas e políticas responsáveis por apontar indivíduos

únicos em consciência e corpo, onde cada pessoa se mostra como distinguível das demais.

(MACDOUGALL, 1998, p. 259 apud PINHEIRO, 2015, p. 41).

A etnia indígena Kwakiutl, oriunda da ilha de Vancouver, no Canadá, é trazida de igual

modo, segundo assinala Joceny de Deus Pinheiro (2015), a fim de exemplificar a experiência

98

fílmica de captação de danças, jogos, bem como de vozes e também canções daquele povo

originário. Em seguida, a autora menciona o antropólogo estadunidense Franz Boas como um

dos primeiros em sua área de atuação empírico-reflexiva - e quiçá o primeiro cientista social,

nas suas palavras - a utilizar a câmera para gerar dados in loco referentes aos estudos do gesto,

do movimento e da dança (RUBY, 1980 apud PINHEIRO, 2015, p. 43). Pinheiro defende que

Franz Boas deveria ser considerado um dos precursores da chamada antropologia audiovisual,

por ter sido, segundo a autora, “parcialmente responsável por tornar o ato de fotografar e filmar

algo normativo na experiência de campo do antropólogo”. (PINHEIRO, 2015, p. 43). E por

consequência, contribuindo na evolução e consolidação do fazer etno-documental no decorrer

de mais de 1 século, gerando um acervo extenso e diverso de ensaios fotográficos e registros

fonográficos, assim como de filmes etnográficos. (PINHEIRO, 2015, p. 44).

Podemos incluir a produção brasileira Terras (2009), de Maya Da-Rin, relativamente à

função do áudio como elemento que busca não apenas tentar reproduzir o ambiente acústico

dos personagens e das culturas abordadas, mas também de provocar um engajamento e imersão

sensorial da audiência no ambiente e nas práticas captadas pela diretora. Segundo os

realizadores do documentário em questão, o objetivo deste seria explorar o impacto social e

ecológico-ambiental que emerge da tensão construída cotidianamente nos limites inter-

territoriais entre os indivíduos que vivem nos arredores das cidades de Leticia e Sabatinga.

Grosso modo, o espaço elegido por Maya Da-Rin como cenário natural de sua obra documental

trata-se de um entroncamento territorial e fronteiriço, situado entre Brasil, Colômbia e Peru, e

em uma região adensada pela floresta amazônica,

Durante entrevista para o canal TV IFB (Instituto Federal de Brasília) transmitido no

YouTube, a diretora Maya Da-Ryn revisita e debate o documentário Terras (2009), ressaltando

que a sua inspiração primeira para a feitura do projeto audiovisual-documental se deu a partir

do interesse pelas fronteiras do Brasil com outros países da América Latina e a possibilidade de

intercâmbio cultural gerado nesses espaços (TV IFB, 2020, 09:10 a 10:10). Da-Ryn comenta

ainda sobre como, na sua visão, o conceito de fronteira se complexifica naquela região, e o

quanto tal percepção a fez pensar nessa divisa não apenas como limite territorial, mas também

enquanto presença da mesma na vida de seus habitantes, atuando de diferentes formas no

cotidiano de cada indivíduo (TV IFB, 2020, 11:25 a 11:52). Em relação às diversas vozes

indígenas ouvidas no decorrer do documentário, a fronteira é vista pelos mesmos como uma

linha divisória estranha em seu cotidiano selvático-amazônico, ou seja, resultado da

perpetuação da colonização (e posterior opressão republicana) espanhola e portuguesa na

99

América Latina, bem como de suas ações danosas quanto a soberania dos indígenas e

descendentes. E, assim, eliminando possíveis vínculos comunitários, interculturais e com

perspectiva de integração na região.

Por fim, entendemos como relevante propor uma breve reflexão sobre o senso de auto-

importância etnocêntrica por vezes presente no que tange a certos traços contidos tanto no

cinema de ficção quanto no documental. Nesse sentido, estes buscariam apresentar culturas não

hegemônicas pelo viés do exótico, do primitivo ou do selvagem. Uma espécie de safari

cinematográfico mainstream em casos extremos, ainda que a intenção dos realizadores

teoricamente seja a de celebrar tal manifestação cultural enquanto música, dança, cinema,

literatura, poesia e artes em geral. Esse marcador hegemônico e estruturante - e por si só, racista

- equivaleria inclusive a já mencionada categorização intitulada world music, relacionada aos

gêneros e subgêneros musicais não originários do ocidente anglófono (sobretudo Estados

Unidos e Inglaterra), como os produzidos na América Latina e demais países não ocidentais,

por exemplo.

No contexto fílmico-industrial, veríamos tais representantes do Sul global limitados,

pois, a uma espécie de world movie ou ”outro” cinema (CASTRO, 2002) enquanto

(sub)categoria de representação à parte do cenário mundial - considerando as produções

cinematográficas existentes fora do eixo hollywoodiano. Assim, através de seus respectivos

epítetos, somos apresentados a obras audiovisuais não anglófonas (e não apenas pertencentes

ao Sul global) serem marcadas universalmente como cinema brasileiro, bem como cinema

argentino, cinema francês, russo ou iraniano. Além da categorização relativa na atualidade ao

chamado “cinema indiano” – porém mainstream – conhecido como Bollywood (referência

colonizada a Hollywood). Por outro lado, a indústria cinematográfica estadunidense - para além

de possuir artisticamente um dito cinema ”americano” (o que por si só já seria um termo

colonial-universalizante o bastante, em detrimento dos demais países do continente) - se vende,

afinal, apenas como ”o” cinema.

E quanto às representações não-brancas vistas no cinema (seja este documental ou

ficcional), entendemos como oportuno considerar, por exemplo, que o caráter atemporal da

cultura indígena (bem como diaspórico-africana e outras) não poderia torná-la circunscrita ou

aprisionada apenas como fenômeno do passado, através de uma espécie de culto à nostalgia

fílmico-fetichizada. De fato, atendo-se à ideia (ou intenção) de salvaguardar determinada

cultura, é possível que realizadores brancos incorram no erro de mantê-la ancorada

essencialmente a um passado idealizado e, como já dito, fetichizado (por não-indígenas), onde

100

saberes ancestrais seriam apreciados no presente como espécie de bibelô exótico e decorativo

(ou natureza morta). Ou seja, feito para adornar as prateleiras do imaginário kitsch de mentes

igualmente (e quiçá catolicamente) culposas em relação ao histórico de escravidão e extermínio

ameríndio.

E tal mirada de cunho protecionista seria suscetível a um esvaziamento (ou

embranquecimento) de sentido ou a uma categorização limitante por meio de uma visão

hegemônica que, grosso modo, não compreenderia as singularidades envolvidas. Estes

processos praticados (e herdados) consciente ou inconscientemente através de certo imaginário

ocidental e patriarcal fetichizado nos remete transversalmente, enquanto traço cultural, ao mito

iluminista do chamado bom selvagem, bem como a caracterização do “homem cordial”

(HOLANDA, 1995, p. 147). Estes evocariam, por consequência, uma suposta timidez, pureza

e inocência do nativo, impregnadas no imaginário europeu e cristão dos invasores instalados no

Novo Mundo. Além de aventar a bondade e hospitalidade intrínsecas (mesmo quando expressas

como estratégia adaptativa) enquanto suposição romântico-fetichizada e culturalmente

disseminada sobre a (re)ação dos brasileiros ao receberem visitas estrangeiras.

Assim, os indígenas (e outros povos não-brancos) seguiriam sendo vistos e retratados

cinematograficamente (e pela indústria cultural e sociedade em geral) na atualidade - a partir

do imaginário branco - como sujeitos dóceis, exóticos, ingênuos ou primitivos, provenientes de

um paraíso terrestre e tropical, cuja fauna e flora abundantes, perfumosas e virginais, manter-

se-iam intocadas até serem, enfim, conquistadas por seu descobridor civilizado. Embora o olhar

branco (do Oeste) selvagem e o humano-cordial se encontrem suposta ou aparentemente

dispostos em campos antagônicos ou equidistantes (inclusive temporalmente), entendemos que

ambos sejam relacionáveis - ou espelháveis - entre si a partir de uma visão limitante e limitada

(colonizante e colonizada) em relação ao chamado nativo. Isto alude diretamente ao conceito

de racismo culturalista (SOUZA, 2017) mencionado anteriormente neste trabalho, onde a

sensação de superioridade étnica (e eurocêntrica) se expressaria de maneira implícita - e

involuntária pelo indivíduo detentor destas características (seja na relação Norte-Sul global ou

branco não-branco individual).

Talvez possamos definir tal fenômeno culturalista da mesma forma como parte de um

pensamento ligado à (re)definição de colonialismo interno CASANOVA, (2006), onde a

população indígena perpetuar-se-ia como neocolônia submetida ao Estado-nação, desprovida

de direitos ou de autonomia sobre o território onde vivem. E raciocínio semelhante pode ser

utilizado ao observarmos o cotidiano sociocultural das grandes cidades nos últimos dois

101

séculos, tendo nas favelas e periferias urbanas espaços submetidos à violência do Estado por

meio da opressão policial, bem como da ausência de políticas públicas, exploração de trabalho

precarizado etc. Além de servirem como pólos de disseminação e posterior apropriação de

riquezas culturais enquanto territórios oprimidos, onde seriam reproduzidas internamente

práticas racistas e colonialistas, indissociáveis que são. E tanto o cinema quanto o audiovisual

em geral (incluindo a mídia e demais aparelhos do Estado) há muitos anos resumem centenas

de etnias, sujeitos, línguas e gramáticas a “Uga Uga”71.

Deste modo, a sofisticação do racismo latino-americano manteria indivíduos negros e

indígenas condicionados a segmentos subalternizados enquanto sujeitos explorados, por meio

de eficaz ideologia do branqueamento veiculada e disseminada pelos meios de comunicação de

massa e demais aparelhos ideológicos tradicionais. À medida que tal método reproduz e

perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente seriam os únicos verdadeiros

e universais, se estabelece de fato o racismo por denegação (ou disfarçado) brasileiro

(GONZALEZ, 1988, p. 73). Isto explicaria o mito impregnado no Brasil desde o século XIX

referente à defesa de uma ilógica superioridade intelectual do imigrante europeu em termos de

capacidade (ou sofisticação) laboral em relação ao trabalhador brasileiro (negro, em sua

maioria); escondendo em sua essência, ou teoria, a ideologia do racismo por denegação,

utilizada na prática como política eugenista de embranquecimento da população. E supomos

que uma dominação de corações e mentes via soft power (poder suave) (FOLHA DE SÃO

PAULO, 2018), substituindo o poderio bélico por estratégias ligadas à imposição linguística,

esportiva, religiosa, e cultural em geral. E a melhor forma de combater tal ideologia racista (ou

mesmo o dito poder suave) se daria através da resistência advinda da força do musical-cultural

(GONZALEZ, 1988, p. 74).

Torna-se patente afirmar, portanto, que o sujeito descendente de povos autóctones não

pode ser tratado como menos originário - ou maculado em sua essência - por ter escolhido (ou

obrigado) a se integrar à lógica e costumes socioculturais e cotidianos dos brancos, seja em

zonas rurais ou urbanas. Assim como os ameríndios que decidissem viver em separado - ou não

integrados aos brancos citadinos - deveriam, por óbvio, dispor deste direito, bem como do

respeito e liberdade do Estado. O próprio termo “isolado”, comumente utilizado pela mídia de

massa para descrever qualquer etnia que desconheça a existência ou se negue a interagir com

71 Referência nossa à matéria noticiosa “A figura do indígena no cinema: de objeto a sujeito das telas”, publicada

na Tribuna de Petrópolis (2019). A telenovela “Uga Uga” (2000-2001) é citada como exemplo de produção

estereotípica frente ao indígena: Disponível em: .< https://tribunadepetropolis.com.br/noticias/a-figura-do-indigena-no-cinema-de-objeto-a-sujeito-

das-telas/ >. Acesso em: 10 jul 2021.

102

descendentes de seus antigos algozes, demonstra a perpetuação de um branqueamento

ideológico através de linguagem (neo)colonizadora. Portanto, quando se diz em determinada

matéria noticiosa (ou em qualquer aparelho massivo-midiático) que uma “tribo” se

encontraria “isolada” da civilização, para além do afastamento físico-espacial, há uma

conotação arrogante. relativamente à autoexclusão ou alienação consciente de sujeitos

considerados, pois, despreparados para interagir com os autoproclamados evoluídos. E

desconsidera-se o fato de que os indígenas simplesmente não precisam (ou não dependem)

dessa (“outra”) cultura “branca” para existir.

103

4. ANÁLISE DE DOCUMENTÁRIOS MUSICAIS DO CAPÍTULO LA MÚSICA

Neste capítulo buscamos realizar uma análise de conteúdo dos três documentários

musicais latino-americanos elegidos como corpus e mencionados no capítulo introdutório desta

dissertação: Isabel, la criolla, da Argentina, Hasta el fín de Delfín, do Equador, e “No Gargalo

do samba”, do Brasil - tríade extraída do Capítulo VI - La Música, do Programa DOCTV

Latinoamérica. Trata-se de uma análise que, na verdade, pode ser pensada como circular: ao

conhecermos essa edição do Programa, fomos mobilizados pelos documentários para um olhar

sobre a América Latina que pode ser resumido por essas palavras-chave: representação social;

memória social; resistência cultural; identidade cultural e integração latino-americana.

Portanto, mobilizados por esses conceitos, empreendemos a travessia da pesquisa que

apresentamos nos capítulos anteriores. Em outras palavras, os filmes, como produtos potentes

da cultura, revelam-se expressões desta, mas, ao mesmo tempo, também a redefinem, a

transformam. Neste sentido, a análise que fizemos, valeram-se das seguintes categorias -

(sub)representação social; memória e identidade cultural; integração latino-americana – de

modo que as características singulares de cada obra pudessem ser observadas em suas

densidades já que, claro, não se trata de reproduzir aqui o percurso fílmico em sua totalidade.

Entendemos, portanto, que seja possível condensar a resistência cultural (enquanto

tópico) dentro do escopo de memória e identidade cultural, isto é, como uma categoria de

análise que suscita o respeito, valorização e reflexão em relação às culturalidades e

ancestralidades existentes (e resistentes) na região, a despeito do processo de violência,

apagamento e estigmatização histórico-estrutural sofridos pelos descendentes dos povos

originários e diaspóricos. E percebemos, por sua vez, a necessidade de incluir o tópico

(sub)representação social com o propósito de refletir sobre questões abordadas nos capítulos

teóricos quanto ao respeito às diferentes (cosmo)visões, lógicas e singularidades concernentes

aos distintos povos, etnias e dinâmicas socioculturais da região.

Vale também destacar, que a mesma categoria prevê ainda diagnóstico crítico referente

a uma eventual abordagem midiático-documental sub-representada. Isto é, fetichizada ou

superficializada (embora aparentemente acurada) quanto às produções latino-americanas em

relação aos atores sociais mostrados (ou mesmo como estes se mostram) em cena: do

protagonista aos demais sujeitos, objetos ou eventos exibidos para o espectador, além de

possíveis decisões narrativas ou estético-estilísticas apresentadas sob o prisma hiperbólico da

sociedade do (hiper)espetáculo (LIPOVETSKY; SERROY, 2015) e do mundo ilusório da

104

pseudoconcreticidade (KOSIK, 2011). De igual modo, consideramos relevante incluir a

integração latino-americana como categoria analítica por conta tanto da intencionalidade

enquanto objetivo final desta pesquisa – afinal, este é um trabalho de inspiração utópico-

realizável no que tange a ensejar a aproximação artístico-cultural e comunicacional do Brasil

com os países “vizinhos” da região, coadunando-nos, portanto, à proposta do programa

DOCTV Latinoamérica enquanto projeto de intercâmbio audiovisual ibero-americano.

Sabemos que um dos maiores desafios no que tange à implantação de uma integração

latino-americana de forma natural e ampla seria a incorporação do Brasil à América Latina de

fato, isto é, não apenas territorialmente, mas econômica, (geo)política e culturalmente falando.

A relação de proximidade histórica entre Estados Unidos e Brasil tampouco ajudaria na

concretização da utopia integracional na região, onde os demais países veriam tanto os

estadunidenses como herdeiros diretos do colonialismo europeu, quanto os brasileiros como

parte do que poderiam chamar de Vuestra América (Vossa América), fazendo aqui um paralelo

algo jocoso com a obra seminal do cubano revolucionário José Martí, Nuestra América (Nossa

América, 1891), que já aludia à separação político-ideológica e cultural da América Latina em

relação aos EUA. Ou, se quisermos ainda ser mais irônicos em relação a essa dificuldade de

reconhecimento do Brasil como parte integrante (e integrada) da América Latina pelos ditos

“vizinhos”, talvez estes ainda o percebam como sendo os Estados Unidos do Brasil72.

No entanto, a despeito da quase obviedade dos diagnósticos que acabamos de apontar,

o fato é que a mudança de visão quanto à correlação de forças global no âmbito das relações

internacionais (onde a antiga disputa Leste-Oeste se tornaria Norte-Sul) fez com que governos

da América Latina passassem a reorientar suas políticas e ligações estratégicas na região.

(CRESPO, 2006, p.21 apud ARAÚJO, 2017, p. 128). Nesse cenário, a integração latino-

americana se insere neste contexto fílmico como potencial gerador de re-

conhecimento (MARTÍN-BARBERO, 2003) regional entre os países ditos latinos e/ou ainda

como fator que explicita a dinâmica proposta entre os personagens e as manifestações músico-

culturais em cada obra audiovisual. Estas categorias resumem as reflexões teóricas que

tentamos apresentar desde a Introdução dessa dissertação e justificam os termos de classificação

que escolhemos. Outros elementos diagnóstico-discursivos presentes nesta pesquisa também

72

Menção nossa ao primeiro nome oficial do Brasil, “Estados Unidos do Brasil”, instituído durante a Proclamação

da República, em 1889, permanecendo até 1968, quando, após a promulgação da Constituição de 1967, passaria a

se chamar República Federativa do Brasil. Contudo, a antiga denominação estadunidense parece seguir viva no

subconsciente de alguns políticos liberais. Disponível em: .< https://sul21.com.br/ultimas-noticias-geral-noticias-

2/2012/03/serra-erra-nome-do-pais-e-diz-que-se-chama-estados-unidos-do-brasil/ >. Acesso em: 21 abr 2021

105

são trazidos com intuito colaborativo de possibilitar a construção de uma reflexão coletiva entre

linguagem e sociedade. E cuja concepção científica tem como finalidade inspirar, se possível,

a construção de olhares pluralizados sobre o real, conforme ROCHA (2005).

Quanto à opção pela análise de conteúdo, conforme já mencionamos na Introdução,

reforçamos aqui que a reconhecemos enquanto repositório de dispositivos metodológicos cada

vez mais sutis e em constante evolução e aprimoramento, bem como aplicáveis a discursos

(conteúdos e continentes) extremamente diversificados (BARDIN, 2016, p.15)73. Portanto, a

escolha específica pelos três referidos documentários musicais inseridos no capítulo La Música

do programa DOCTV responde ao que seria uma seleção dos conteúdos a serem submetidos a

uma análise denominada como “regra de pertinência, onde os documentos devem corresponder

ao objetivo que suscita a análise” (BARDIN, 2016, p.128). Decidimos, por outro lado, não

adentrar especificamente no método de Laurence Bardin (2016) enquanto análise

pormenorizada, isto é, optamos por nos ater a elaboração metodológica (e de um diagnóstico)

próprio sobre o corpus; respeitando, por óbvio, as categorias e palavras-chave elegidas para

esta pesquisa (estejam elas representadas ou não nas três obras documentais latino-americanas).

Por outro lado, sob o risco de estarmos nos alongando nos esclarecimentos sobre como

foi construído este capítulo, avaliamos que vale destacar que nos valemos também para a análise

da definição desenvolvida por Robert McKee (2013) para o conceito “cena”, com intuito de

buscar ampliar a mirada sobre as obras documentais. Segundo o autor, os limites de uma cena

não seriam determinados por meio da sequência de cortes utilizados durante a edição desta, ou

tampouco através das mudanças de planos visuais realizadas durante as filmagens. Estes seriam,

pois, expressos através dos objetivos narrativos contidos em cada uma das cenas. Nas palavras

de McKee (2013), a cena representaria uma estória em miniatura, isto é:

(...) uma ação através do conflito em unidade ou continuidade de tempo e espaço que

transforma as cargas a condição da vida do personagem. Na teoria não há limites para

a duração e a localização de uma cena. Uma cena pode ser infinitésima. (...) Não

importa a locação ou a duração, uma cena é unificada ao redor do desejo, ação,

conflito e mudança. (MCKEE, 2013, p. 222 apud BEZERRA, 2020).

73

Segundo Laurence Bardin, a análise de conteúdo contribui para solucionar o questionamento comum referente

a quem pesquisa um objeto: se o que este julga ver na mensagem (suas impressões, hipóteses e conclusões) de fato

estariam contidas e perceptíveis na mesma, permitindo que tal visão - a priori, pessoal - seja compartilhada por

outras pessoas (BARDIN, 2016, p. 36).

106

Vimos que, na prática, esta pode ser uma forma de compreensão da cena voltada para

os acontecimentos da trama em si, ao invés de nos fixarmos somente nos aspectos ditos técnicos

da obra (neste caso) audiovisual. De fato, esta dissertação pretende observar e refletir

primordialmente sobre as ações e reações dos personagens e fenômenos culturais abordados em

tela. Embora não consideremos desprezível ressaltar - quando relevante para a pesquisa e

estivermos, em tese, aptos para tanto - os aspectos técnicos (enquadramento, iluminação, trilha

sonora, edição etc.), bem como as intenções ou funções artístico-discursivas destes no objeto

documental - e a sua relação com a narrativa e com os acontecimentos em cada cena.

Não pretendemos, como já colocado, minuciar sobre eventuais escolhas em termos de

cortes ou recortes, por exemplo, para além das impressões apoiadas nas categorias de análise

previamente elegidas por esta (linha de) pesquisa, dadas as (de)limitações nos campos teórico

e prático que nos impedem de elaborar um diagnóstico acurado relativamente às tecnicidades

fílmico-cinematográficas das referidas produções documentais latino-americanas. Propomos

ainda para este capítulo analítico estabelecer um diálogo com a noção de “aura” relacionada ao

“objeto natural” utilizada por Walter Benjamin (1973, p. 226 - 228).

Para encerrar, no que tange ao hibridismo cultural (HALL, 2003), pretendemos refletir

- durante as análises propostas para este capítulo - sobre os processos históricos constitutivos

possivelmente responsáveis por uma vira-latinização sonora da música oriunda das Américas -

e “Améfricas” (GONZALEZ, 1988). Isto é, objetivando entender as mesclas de ritmos e estilos

musicais e manifestações culturais mais e menos aparentes registradas nas obras audiovisuais

elegidas, em contextos que sugerem estratégias (ou táticas) oriundas de descendentes dos povos

originários e diaspóricos africanos no que tange à defesa da herança e culturalidade da região.

Ademais, procuramos observar durante parte desta análise, dentro do espectro do hibridismo

ou sincretismo religioso, as perspectivas tanto da cosmovisão quéchua (ou quíchua) e Mapuche,

quanto da Umbanda e das ditas “macumbas”, bem como do “transe” e dos chamados

“caboclamentos” (e outros) (RUFINO; SIMAS, 2018). Apresentamos na sequência a análise do

corpus desta dissertação.

4.1. Hasta el fin de Delfín: entre o hibridismo e a afirmação das origens andinas

O documentário conta a história de Delfín Quishpe, um artista de origem indígena e

pobre do Equador transformado acidentalmente em celebridade instantânea em seu país e no

exterior, após publicar um videoclipe com poucos recursos financeiros e técnicos no YouTube.

A cinebiografia documental de Delfín (dirigido por Fernando Mieles, 2018), acompanha o

107

cotidiano do músico andino responsável pelo videoclipe Torres gemelas (2006), fenômeno

cultural equatoriano e global. Na sinopse do filme é dito que Delfín luta para não apagar a magia

de sua música popular em um mundo de estrelas efêmeras inseridas na era digital. Abaixo,

apresentamos uma tabela sinalizando os principais elementos de cena referente às categorias de

análise elencadas. Cada elemento será explicado a seguir, através do diagnóstico detalhado

desta obra audiovisual baseado nos tópicos: (sub)representação; memória e identidade cultural;

integração latino-americana, destacando-se que algumas identificações podem ser observadas,

concomitantemente, por um ou mais tópico, já que nossa “separação” deve-se a opção de

tentarmos ser mais “didáticos”, na perspectiva deixar claro o quanto as escolhas narrativas e

estéticas (no mínimo) carregam múltiplas possibilidades de percepção, produtos histórico-

culturais que são, além de, claro, desvelarem posicionamentos políticos, mesmo que à revelia.

Tabela 1 – Elementos de representação referente às Categorias de análise na obra 1

Categoria Elementos de representação (exemplos)

(Sub)Representação 1. Delfín vestido de cowboy chimboracense.

2. Atuação fetichizada em Torres gemelas.

3. Tecno-folclore andino (consumo irônico digital).

4. React video de youtuber espanhol (apropriação cultural, viés etnocêntrico).

5. Autocentramento artístico (narcisismo auto-celebratório).

6. Rosario e Delfín na igreja (sincretismo religioso imposto pela Igreja).

Memória e

Identidade cultural

1. Tecno-folclore andino (hibridismo musical).

2. Delfín vestido de cowboy chimboracense.

3. Jatun Pollo (restaurante).

4. Interação e reconhecimento com público popular urbano da região.

5. Representante da música popular do Equador.

6. Melodrama latino-americano.

7. Rosario e Delfín na igreja (sincretismo religioso).

8. Mulheres da família.

9. Cholos e cholas.

10. Carnaval de Guamote.

11. Discurso de Delfín e Rosario em língua quíchua durante o carnaval de

Guamote.

Integração latino-

americana

1. Personagem/protagonista reconhecido internacionalmente (shows na América

Latina e Europa).

2. Interação e re-conhecimento com público popular urbano da região durante

concertos musicais de Delfín Quishpe em distintos palcos.

Fonte: Quadro elaborado pelo autor

4.1.1 (Sub) Representação em Hasta el fin de Delfín: ironia e auto-celebração

108

Nos primeiros segundos de exibição, o documentário musical Hasta el fín de Delfín

(2018) apresenta um prólogo que consiste em imagens dos bastidores da gravação do videoclipe

da canção Torres gemelas, composta por Delfín Quishpe e com atuação do cantor. É mostrado

ao espectador o recurso estético utilizado pelo artista andino na referida peça audiovisual,

representando à frente de uma tela azul (chroma-key), vestido com a roupa autodenominada de

cowboy chimboracense (Figura 1). O termo cowboy chimborancense faz referência à província

de Chimborazo, onde se situa Guamote, o município-natal do músico andino. Delfín demonstra

estar autenticamente imbuído em sua interpretação de indivíduo que sofre a perda de pessoa

amada - segundo a narrativa do videoclipe de Torres gemelas -, mesmo aparentemente não

possuindo formação profissional relativa à atuação dramática.

Por outro lado, a dinâmica imagético-musical criada pelo artista, que une dança

coreografada à canção de ritmo tecno (sonoramente vibrante e comumente relacionado a

celebração hedonista) sugerem, aparentemente, alguma disparidade ou contradição estética

referente ao contexto calamitoso em que ambas estão inseridas. Em termos estético-sonoros, o

tema propõe a união do subgênero tecno a ritmos tradicionais identificáveis ao universo andino

de Quishpe, embora o resultado sugira uma gravação e execução musicalmente artificializada

(seja por conta de parcos recursos financeiros disponíveis ou por decisão estética, estilo lo-fi74

- ou quiçá pela junção de ambos).

Figura 1: Torres gêmeas (chroma key)

Fonte: Print de Hasta el fín de Delfín

74 Estilo de produção musical responsável por utilizar técnicas de gravação consideradas de baixa fidelidade (low

fidelity).

109

Nesse sentido, ocorreriam dois fenômenos em Torres gamelas a princípio antagônicos,

porém amalgamados e até confluentes. Isto é, um videoclipe capaz de expressar, por um lado,

a representação social do artista indígena sul-americano (flagrante para o espectador desde o

fenótipo de Delfín até o idioma do músico, bem como o hibridismo musical perceptível na

canção) - e sua consequente identificação frente à parcela popular urbana (e rural) de potenciais

espectadores. A cena, exibe, igualmente, uma suposta sub-representação por meio de estética

fetichizada e subalternizada do músico equatoriano apresentada na peça audiovisual (FREIRE,

1987), além dos possíveis efeitos de sentido gerados e exprimidos através do consumo irônico

de grande parte dos que assistiram ao referido videoclipe viralizado e majoritariamente

reprovado no YouTube – no que tange à relação likes versus deslikes, pelo menos (KLEIN,

2004). Enfim, um produto potencialmente causador de afetos distintos, a depender do olhar (e

da escuta) do indivíduo que o recebe - e o percebe.

Em seguida, há um corte na edição do documentário responsável por mostrar ao

espectador as consequências do fenômeno audiovisual gerado pelo alcance midiático e (da

indústria) cultural conquistado por Delfín através da disseminação em massa de seu vídeo-

produto e dos signos ali contidos. Um músico de origem sul-americana, andino, e de fenótipo

indígena, utilizando-se de um evento real - o atentado contra as chamadas torres gêmeas de

Nova Iorque, ocorrido em 11 de setembro de 2001 - para divulgar sua música. E, assim,

buscando efeito de sentido que afetasse emocionalmente o imaginário coletivo (representado

pela audiência do videoclipe), a ponto de sensibilizar (ou emocionalizar) e atrair

simbolicamente um espectro o mais amplo possível de público para seu produto artístico.

O documentário elege imagens que acabam por inteirar superficial e resumidamente a

audiência sobre a dimensão de uma relação de causa e efeito gerada pela peça vídeo-musical,

sem a utilização de artifícios narrativos didáticos (como o uso de legendas ou locução que

explicasse o contexto relativo à carreira musical de Quishpe). São vistos cortes rápidos de

câmera mostrando Delfín em diferentes palcos, apresentando-se para milhares de pessoas e

apoiado por uma estrutura de produção que contaria com figurino próprio, dançarinas e efeitos

visuais e cênicos (e circenses). Entre eles o uso dos chamados telões de LED no palco, além de

estrutura de cordas atada ao músico que o erguia simulando o voo de um pássaro sobre a plateia

embevecida – aludindo, inclusive, ao aparato utilizado pela companhia multinacional

canadense Cirque du Soleil; alto e distante dos Andes equatorianos.

Nas primeiras cenas documentais, de fato, isto é, atuais de Delfín Quishpe, este é

mostrado em um restaurante simples vinculado à venda de frango frito e derivados (e

110

visualmente inspirado ou emulado em sua estrutura física nas grandes companhias alimentícias

de fast-food como McDonald’s ou Kentucky Fried Chicken). Um estabelecimento comercial de

sua propriedade intitulado Jatun Pollo (Grande Frango - tradução nossa). De certa forma tal

ambiente nos remete – enquanto representação estética - à relação oprimido-opressor (FREIRE,

1987) expressa pela lógica simbólico-assimétrica de ocupação ou imposição de grandes pólos

(ou bases) gastronômicos estrangeiros (sejam eles norte-americanos, europeus ou asiáticos) em

solo equatoriano (andino e popular urbano), gerando, assim, demanda artificial por uma

culinária alheia às tradições daquele país e de outros que buscam preservar uma culinária

própria e diversificada.

Tornar-se-ia, da mesma forma, alusivo à estética presente no videoclipe de Torres

gemelas, ambientado - via tela azul - no (epi)centro financeiro de Nova Iorque. Em seguida,

ainda no interior do estabelecimento, a câmera (estática) parece propor por alguns segundos a

contraposição entre um cartaz da loja onde vemos um homem e uma mulher de fenótipo branco

– e presumivelmente oriundos da classe média - sorrindo junto ao filho. E ao lado destes, um

funcionário atendendo do estabelecimento pedido de outra mulher, acompanhada de uma

criança - provavelmente a filha -, ambas com feições indígenas - comuns à realidade de muitos

indivíduos (quiçá prevalecentes) naquela localidade urbana - podemos supor tal hipótese

através das imagens captadas pelas lentes documentais durante a exibição da obra.

A seguir, em Hasta el fín de Delfim, durante entrevista junto à imprensa local, vemos

uma bandeira dos Estados Unidos bordada na jaqueta de couro usada por Quishpe, além do

característico chapéu de cowboy do músico, ambos acessórios exibidos na cor preta. Podemos

supor que as vestes do músico andino aludem simbolicamente - no contexto cultural-industrial

- tanto ao rebelde sem causa representado por James Dean quanto aos vaqueiros ou pistoleiros

do cinema western (faroeste) estadunidense. Estes últimos, como se sabe, personagens

caracterizados comumente como “heróis” brancos solitários, antagonizados por “vilões”

indígenas (e desumanizados) prontamente combatidos - e, não raro, assassinados. E quando não

eram vilanizados pela indústria cinematográfica, os temidos peles vermelhas encontravam-se

retratados em tons de submissão e docilidade, como os bons selvagens do Oeste Selvagem75 -

igualmente puros e condescendentes com seus algozes, os chefes brancos. Assim, a figura do

indígena acabaria por converter-se gradual e milagrosamente de alvo a ser atingido para um ser

75 "Oeste selvagem" (ou Wild West) refere-se ao termo "Velho Oeste", que representa o período histórico

ambientado durante o expansionismo territorial estadunidense entre os séculos XIX e XX, e responsável pelo

extermínio de etnias ameríndias e apagamento de sua cultura ancestral.

111

tingido de alvo - isto é, um quase-pele branca, ou se nos inspirarmos em Fanon (2020), em pele

vermelha de máscara branca.

Em momento subsequente da obra audiovisual, Delfín assiste com um amigo, por meio

de uma tela de aparelho de telefone celular, o vídeo gravado no YouTube por indivíduo

comentando ou reagindo ao videoclipe de Torres gemelas. Nas palavras descontentes do

youtuber natural da Espanha 76 (supõe-se por conta da pronúncia deste), o vídeo de Delfín

Quishpe seria ao mesmo tempo engraçado e bizarro, pois sob o ponto de vista do crítico digital,

o artista cantaria e atuaria igualmente mal, compondo uma canção de péssima qualidade, nas

suas palavras. Ainda segundo o jovem espanhol, o videoclipe seria “atroz” ao sugerir que Delfín

supostamente estaria representando os atentados de 11 de setembro de 2001 em tom de pilhéria,

mesmo que involuntariamente. Durante a sequência documental, o músico andino é mostrado

em meio a risos incontidos frente aos comentários do youtuber, divertindo-se, ao que parece,

com as reações tão indignadas quanto jocosas e dramatizadas (e calcadas no exagero) do

suposto espanhol.

Presumimos, por outro lado, que o crítico europeu de Delfín demonstra se expressar tão

melodramaticamente - em sua descontente e exclamatória atuação hiperbólica - quanto o

próprio conteúdo criticado pelo youtuber, algo costumeiro em vídeos opinativos do tipo

encontrados na referida plataforma, bem como nas redes sociais em geral. Isto é, onde os

chamados produtores de conteúdo costumam opinar crítica e pejorativamente sobre a obra de

terceiros. E tais espaços virtuais, como sabemos, acabam por transformar-se muitas vezes em

arenas ou tribunais, onde grupos se (re)unem com intuito de encurralar e constranger os alvos

com julgamentos de cunho moral. O objetivo final do youtuber espanhol parece ser, pois,

assemelhar-se ao do músico equatoriano: gerar o máximo de visualizações (e as chamadas

monetizações) de espectadores conectados à internet - e no caso do europeu, de maneira meta-

parasitária, ou seja: explorando com viés etnocêntrico a estética audiovisual contida no

videoclipe de Quishpe para então julgá-lo e categorizá-lo colonialmente como ser inferior,

exótico e aculturado. E, assim, obter atenção e re-conhecimento (isto é, views e likes) de parte

do público on-line, exibindo o índio recém re-descoberto pelo pseudo-neo-conquistador

espanhol como troféu kitsch e suposto exemplo de bizarria primitiva e prepotente (por

supostamente zombar em Torres gemelas da traumática efeméride estadunidense).

76 Refere-se à publicação audiovisual onde jovem espanhol critica jocosamente o videoclipe Torres gemelas, de

Delfín Quishpe, por meio de um recurso conhecido no YouTube como video in react (vídeo com reação).

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=epTwxTIj7sI >. Acesso em: 10 dez. 2020.

112

Nesse sentido, entendemos que se trata curiosamente de uma apropriação cultural

consumada em caráter exploratório-digital e neocolonialista, cuja lógica de publicação de sua

sobrevivência ou razão de existir enquanto formato de programa no YouTube, depende

originalmente da força estético-criativa e artística produzida por terceiros. Neste caso

específico, por um artista-hospedeiro sul-americano. Em linhas gerais, tal produção midiático-

parasitária seria de igual forma relacionável à cultura antropofágica, porém, enquanto espelho

invertido, posto que sua função se limitaria ao ato de sorver os nutrientes culturais do objeto

hospedado sem, no entanto, buscar transformá-lo, hibridizá-lo, transcendê-lo, superá-lo, enfim,

criativizá-lo em algum nível e cuja reprodução (ou disseminação em rede) geraria meros

consumidores irônicos e repetidores (ou compartilhadores) daquele formato parasitário-digital

nas redes sociais.

Observamos que Hasta el fín de Delfín exibe nesta cena - através das reações de Quishpe

às críticas recebidas em ambiente virtual - que o humor e a autoironia estariam particularmente

contidos na figura do músico. E tais atributos talvez o levariam inclusive a rir de si mesmo

como mecanismo de autodefesa. Isto é, atenuando o efeito negativo (re) produzido pelos que o

vêem como ser inferior, sem alma, cultura e autonomia artística. Assim, acabaria por contribuir

para que alguns indivíduos (majoritariamente brancos) e consumidores de entretenimento

digital passassem até mesmo a admirar Delfín Quishpe. Porém, isto se daria possivelmente de

forma comiserativa e autoindulgente, onde o usuário do vídeo de Torres gemelas perdoaria a si

próprio por se permitir entreter e desfrutar durante o consumo de um certo conteúdo artístico-

musical considerado nos círculos onde se informa e se relaciona socialmente como (sub)produto

de baixo valor cultural. Enfim, algo “tão-ruim-que-chega-a ser-bom” (KLEIN, 2004, p. 103).

Em cena subsequente, vemos Delfín ensaiando brevemente na sala de sua casa antes do

próximo concerto, aparentemente sem ter lançado mão previamente de uma estrutura de estúdio

profissional ou de músicos de apoio a praticar, apenas cantando, pois, sobre bases instrumentais

pré-gravadas em seu aparelho celular. A câmera em contra-plongée situa Delfín entre dois

objetos em destaque: à esquerda, um enorme troféu (oriundo de premiação musical recebida

pelo músico) e à direita, uma pintura transformada em quadro ilustrando a imagem do artista

andino – e cujo rosto é reproduzido em proporções igualmente agigantadas.

Esse recorte visual sugere o suposto contraste entre o método de trabalho lo-fi de

Quishpe e os logros conseguidos pelo músico atuando desta maneira. Além do caráter auto-

celebratório em relação à exibição narcísica de sua persona no quadro, bem como o aparente

autocentramento manifestado, posto que o equatoriano não contaria àquele momento com

113

outros músicos ao vivo em seus shows - ao menos durante o período em que a produção

documental o acompanha. Nos instantes finais desta cena, Delfín anuncia para os presentes na

sala de seu apartamento (Figura 2), incluindo a equipe técnica do documentário - e, por óbvio,

para o espectador (isto é, entre quatro paredes e para a quarta parede): “Vamos, amigos. Vai ter

show de música popular” (tradução nossa).

Figura 2: sala do apartamento de Delfín

Fonte: Print de Hasta el fín de Delfín

O documentário aproxima-se da metade de sua duração quando vemos Delfín Quishpe

em cena tocando brevemente uma flauta de pã, instrumento musical conhecido como antara

pelos povos quíchua e relacionada culturalmente aos andinos em geral. Além do referido

instrumento de sopro, o artista apresenta-se com a característica indumentária-persona de

cowboy chimboracense (assemelhando-se, porém, mais a um xerife quíchua do que chefe

indígena). Em seguida, o músico se apronta para uma sessão de fotos em estúdio a fim de

produzir o material promocional de seu próximo disco. A flauta antara parece inserida naquele

contexto como mero adorno estilístico enquanto objeto de (sub)representação midiática da

tradicional cultura andina e equatoriana.

Na parte final da obra documental, Delfín e Rosario, sua companheira, são mostrados

durante cerimônia em uma pequena igreja católica de sua cidade natal, Guamote. Ambos são

enquadrados de perfil para as lentes de Hasta el fín de Delfín, em plano americano, mediados

114

pela imagem centralizada do padre, ao fundo. Podemos supor que tal cena (sub)representaria

historicamente (no contexto latino-americano) uma sociedade submetida cotidianamente a

rituais religiosos hegemônico-opressores e igualmente mediada presencialmente por um

autoproclamado representante de uma deidade espiritual-ancestral de poder eurocêntrica.

Pois, embora os andinos tenham sido aparentemente capazes de manter parte de suas

raízes ancestrais vivas e estrategicamente adaptadas, bem como tenham se mostrado resistentes

ao esvaziamento e apagamento cultural-estrutural e institucional(izado) durante os séculos, é

inegável estarmos em um continente historicamente subjugado também pelo processo de

dominação marcado pela atuação (lá no início da colonização) da Igreja Católica. Tal situação

ecoa na dominação intra-ortográfica imposta aos andinos, que carrega em sua história uma

violência simbólico-cultural e sociopolítica pois, ao se (em)pregar teorias, doutrinas, costumes

e valores ibérico-cristãos comunicados no cotidiano mediante oralidade declamada (e

cerimonial) em quíchua, naturaliza-se a disseminação e sobreposição de lógica opressora

estranha às raízes culturais e cosmovisões oprimidas77.

4.1.2 Memória e identidade cultural em Hasta el fin de Delfín: política e re-conhecimento

Logo nos primeiros instantes de Hasta el fín de Delfín, enquanto a produção nos

revelava os bastidores da gravação do videoclipe viral de Torres gemelas (2006), identificamos

na peça uma espécie de melodrama latino-americano cuja retórica do excesso (MARTÍN-

BARBERO, 2003) estaria calcada no exagero sinestésico. Ou seja, visual e sonoramente

falando, a atuação hiperbólica de Delfín seria suficientemente exitosa em estimular a

identificação em parte expressiva da audiência através do re-conhecimento via identidade

cultural. E supomos que a memória ainda recente dos atentados terroristas nos Estados Unidos

- o vídeo de Torres gemelas seria publicado apenas cinco anos após o evento (em 18 de

dezembro de 2006) - contribuiria igualmente para a rápida propagação da obra audiovisual na

internet. Vale lembrar que o videoclipe se dissemina digitalmente em uma época cujo impacto

77

Curiosamente, conforme Marleen Haboud (1998), a Igreja Católica e outros grupos religiosos (sobretudo

protestantes) teriam contribuição histórica na conservação da língua quíchua, embora de maneira imposta-

negociada; assim, o antigo idioma dos Incas teria se tornado (e instrumentalizado como) o principal meio de

evangelização indígena durante o período colonial, a partir de uma espécie de acordo tácito colonialista forjado

entre opressor e oprimido. No caso do Brasil, um exemplo nos mesmos termos é referenciado por Navarro, Ávila

e Trevisan (2017), quanto à constituição da língua nheengatu (ou língua geral amazônica), originária do tupi antigo

em aldeamentos missionários no século XVI, servindo de ferramenta de comunicação (convencimento), conquista

e posterior povoamento da região norte do Brasil.

115

gerado por um produto audiovisual potencialmente controverso era teoricamente maior e mais

duradouro no ambiente virtual, dada a incipiência da plataforma que o abrigava: o YouTube

contava com pouco mais de 1 ano de existência à época e da chamada Web 2.0 no geral, no que

se refere à velocidade de conexão, hiperlinks e estímulos múltiplos (e dispersáveis); bem como

a inexistência das ditas redes (ou mídias) sociais de amplitude e domínio global, como

Facebook, Instagram, Twitter e outras.

Para anunciar o fim do prelúdio e o início do documentário musical de fato, surge a

tipografia do título da obra audiovisual, Hasta el fín de Delfín, exibindo uma identidade visual

propositadamente inspirada nos elementos gráficos (logomarca) da plataforma YouTube. Tanto

o cartaz que promove o documentário quanto a edição e seleção de imagens que preenchem o

preâmbulo introdutório do personagem Delfín suscitam, através de cores vivas e frase de efeito

como a do próprio subtítulo contido no encarte promocional do documentário musical

equatoriano que interroga “O mundo ri dele ou ele ri do mundo?” 78, uma peça artística que,

esteticamente, poderia ser observada como bem comercial. Outra opção seria a intenção de se

criticar satíricamente a forma como o músico teria sido percebido, consumido e rotulado pelos

usuários de internet através da referida plataforma audiovisual enquanto produto do star-system.

Ato contínuo, assim que as lentes documentais introduzem o espectador às primeiras imagens

do (até então) artista-celebridade na atualidade, se estabelece o contraste entre o showbiz e a

realidade do músico andino: este é mostrado trajando avental e colaborando na cozinha do

restaurante intitulado Jatun Pollo (Grande Frango – tradução nossa). Após 16 minutos de obra

audiovisual vemos pela primeira vez em destaque a fachada do mesmo estabelecimento

comercial (Figura 3) de propriedade do músico Delfín Quishpe. A palavra jatun na língua

quíchua significa “grande”. É escolhido, portanto, um nome ancestralmente familiarizado à

memória cultural e à identidade locais, unindo o idioma espanhol ao quíchua - em vez de

simplesmente “importar” ou se inspirar, por exemplo, em franquias de conglomerados

alimentícios internacionais identificadas por estrangeirismo.

78 No original¿El mundo se ríe de él, o él se ríe del mundo?

116

Figura 3: fachada do comércio de Delfín Quishpe

Fonte: Print de Hasta el fín de Delfín

Nas cenas seguintes, Delfín Quishpe é mostrado viajando de avião sem que saibamos o

destino, pois não há elementos informativos contidos no documentário musical, sejam eles

gráficos ou sonoros (como legendas, locução etc.). A imprensa local o espera em um aeroporto

(de alguma cidade não creditada – em outro país da região, supomos). Delfín é recebido com

flashes das câmeras fotográficas e pedidos para que recite versos de sua canção mais re-

conhecida, Torres gemelas, responsável pela fama internacional da ex-celebridade musical

equatoriana (e também pela identificação-conexão ainda com parcela popular urbana latino-

americana). O documentário apresenta subsequentemente o cantor em um palco de casa de

shows entoando à capela (ou seja, sem a adição de instrumentos musicais) os versos de sua

supracitada vídeo-canção mais re-conhecida (MARTÍN-BARBERO, 2003). Vemos Delfín

sendo prontamente respaldado pelo coro harmonioso e intenso do público que o assiste no

concerto – representado, inclusive, em primeiro plano pelas lentes documentais. Este seria, em

tese, um sinal inequívoco de permanência do prestígio (ou apelo) artístico-industrial e

transestético (LIPOVETSKY; SERROY, 2015) de Delfín mais de uma década após o início - e

auge - da carreira do músico de tecno-folclore andino. E podemos supor que isto se daria via

conexão artista-público construída através de uma memória social resgatada e representada

orgânica e genericamente na figura do sujeito indígena (enquanto etnia e cultura). Assim,

supomos que este não apenas disporia dos tais 15 minutos de fama79, mas de séculos de

existência atemporal - e resistência cultural.

79 Referência nossa à famosa frase do artista plástico e cineasta estadunidense Andy Warhol referente às ditas

celebridades instantâneas: "Um dia todos terão direito a 15 minutos de fama".

117

Ainda durante o mesmo show, há uma sequência onde a câmera se aproxima de Rosario,

esposa do artista, de forma aparentemente fortuita, até mostrá-la em primeiríssimo plano por

alguns segundos. Neste momento revela-se em Rosario uma expressão fisionômica de aparente

infelicidade - olhos marejados e mirada distante -, enquanto a música de Delfín ouvida ao fundo

sofre um efeito sonoro de desaceleração gradual de velocidade (técnica comum entre DJs como

recurso de transição entre o final de uma canção e o início de outra, espécie de versão estilizada

da técnica conhecida por fade out / fade in). Supomos tratar-se de recurso elegido neste contexto

para acrescentar à narrativa documental certa dramaticidade estética, isto é, como se Rosario e

Delfín simbolicamente estivessem pouco a pouco desligando-se ou apartando-se um do outro

enquanto casal, praticamente desconectados psicológica e emocionalmente, embora dividindo

o mesmo espaço físico àquele momento. Percebe-se no documentário, pois, a sugestão de

problemas inerentes à vida conjugal no cotidiano do músico equatoriano.

Ato contínuo, vemos Delfín de volta ao estúdio, em primeiríssimo plano (quase em

plano detalhe), gravando a canção (não creditada pela produção documental) intitulada Rosita

Rosario 80, cuja letra faz referência direta à sua (agora ex) cônjuge. Entendemos esta como uma

solução melodramática elegida pelo roteiro da obra audiovisual a fim de relacionar (e conectar)

emocionalmente o espectador ao cotidiano particular do cantor popular. Delfín lê com voz

embargada os versos confessionais escritos em letra de fôrma em seu caderno, relatando

detalhes episódicos supostamente realistas referentes à partida de Rosario, que o teria deixado.

Em tom abertamente sofrido, o cantor implora pela volta de sua amada, relacionando Jatun

Pollo, alegoricamente, ao ninho de amor de ambos, conforme os versos da música: "Rosinha

Rosario, o que aconteceu, minha filha? Por que você foi embora de Jatun Pollo? Você sabe que

eu te amo, sabe que te adoro. Volte comigo, fique do meu lado. Dezessete anos vivendo juntos

no nosso ninho, ninho de amor”81. O músico, por outro lado, acaba por desabafar expondo-se

ainda mais intimamente nos versos seguintes, alegando que a ex-companheira o teria

denunciado à polícia - e segundo as suas rimas lamuriosas, de maneira desnecessária.

Neste momento, a edição da obra documental equatoriana opta por intercalar - narrativa

e melodramaticamente - imagens do andino cantando ainda a mesma canção de amor partido

em estúdio à partida de funcionários de uma empresa de mudanças, após desmontarem as

estruturas e bens comerciais (e sentimentais) do Jatun Pollo, colocando-os em um carreto. A

80 Menção nossa à canção de Delfín Quishpe intitulada Rosita Rosario (2017). Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=PGBFzpiWgZk >. Acesso em: 25 nov 2020. 81 No original: Qué te pasa hijita? Por que te marchaste desde Jatun Pollo? Sabes que te amo, sabes que te adoro.

Regrea conmigo, vuelve a mi lado. Diecisiete años vivíamos juntos en nuestro nidito, nidito de amor.

118

sequência simboliza, portanto, não apenas a desconstrução físico-espacial do referido ex-ninho

de amor do casal Delfín e Rosario, mas também o momento de desunião físico-espiritual vivido

por ambos. E ao mesmo tempo em que aciona novamente o melodrama (MARTÍN-BARBERO,

2003) enquanto recurso estético-narrativo, Hasta el fín de Delfín parece revelar artisticamente

um músico capaz de conciliar (ou alternar) a emoção genuína representada no canto - e flagrada

pelas lentes documentais - à preocupação artístico-profissional com elementos sonoros relativos

à mesma canção. Isto ocorre de fato quando Delfín Quishpe é mostrado na cena seguinte

consultando o técnico de estúdio em relação a detalhes referentes à performance musical.

Admitimos da mesma forma que o artista de tecnofolclore andino tenha se permitido

sentimentalizar durante a captação vocal no estúdio de gravação com intuito consciente de

emocionalizar sua obra esteticamente (LIPOVETSKY; SERROY, 2015); acessando

profundamente em sua memória emotiva experiências pessoais e trazendo-as à tona durante a

gravação da canção. E, assim, o artista buscaria afetar cotidiano-midiaticamente o indivíduo

ouvinte (que o ouve tanto quanto o escuta), utilizando, da mesma forma, do melodrama, a fim

de mediar a recepção por meio de matrizes culturais contidas na obra artística de Delfín

Quishpe. (MARTÍN-BARBERO, 2003).

Tais matrizes culturais seriam aplicadas como elemento discursivo com fins de re-

conhecimento (e identidade) cultural do público em relação ao artista, como, em tese, na

referida canção popular melodramática de amor partido dedicada a Rosario. E valendo-se, como

(ou)vimos, de minúcias (quiçá constrangedoras) provenientes das relações sociais íntimo-

pessoais de Delfín e Rosario, transformadas simbolicamente em estratégia emocionalizada pelo

artista. Do mesmo modo, é plausível supor que a representação midiática de Quishpe como

músico latino-americano encontre dificuldades históricas e socioculturais de afetar as classes

médias provenientes dos centros urbanos e conduzidas a reproduzir certa lógica eurocêntrica

(ou embranquecida pela indústria cultural, no caso dos latino-americanos autointitulados

brancos).

Na já citada cena em que Delfín traz uma antara, bem como exibe as características

vestes de cowboy chimboracense durante sessão de fotos, entendemos que o instrumento – além

de adorno estilístico sub-representado (como já dito neste subcapítulo) - pode ser visto

simbolicamente como emblema étnico-cultural do músico; isto dependendo da mirada (ou seja,

da ampliação desta) que fazemos relativamente ao objeto observado. E podemos sugerir o

mesmo quanto a indumentária vaqueira, utilizada como representação de um artista alheio ao

mainstream - e originário do andes-ground. Delfín Quishpe, enquanto músico periférico e

119

independente sul-americano, costuma de fato alcunhar-se como vaqueiro chimboracense,

oriundo das serranias andinas do Equador (Medios Publicos EP, 2017). Supomos tratar-se,

portanto, de uma estratégia (ou tática) de adaptação natural (aliada à resistência histórica)

incorporada através de hibridização cultural. E esta lhe permitiria, em tese, apropriar-se de

símbolos esteticamente associados ao folclore europeu e estadunidense (e mexicano, via charro

82) - das vestes à música -, e traduzi-los para as tradições andinas, sem necessariamente abdicar

ou disfarçar suas características originárias.

E talvez isto se dê com relativa consonância simbólico-alegórica quanto aos costumes,

valores e vivências socioculturais estabelecidas cotidianamente nos meios rural e campestre dos

países envolvidos (sul dos Estados Unidos, norte do México e centro andino do Equador). Nesse

sentido, Delfín Quishpe nos remete inclusive ao estilo jipeteca mexicano dos anos 1960, mas

como espécie de espelho invertido (e involuntário), ou seja, em vez de um indivíduo branco a

se apropriar – e fetichizar - vestes dos povos originários, trata-se, pois, de um sujeito indígena

a ressignificar as roupas e símbolos (e simbolismos) referentes, em tese, à cultura branca e,

mais especificamente, à estadunidense (cowboy).

Aos 33 minutos de produção documental vimos a única entrevista direta com Delfín,

pedindo que o músico mostrasse um caderno (ou diário) onde escrevia suas letras. Em seguida,

o artista é perguntado pelo (supomos) documentarista sobre a possibilidade de tocar uma de

suas canções em um teclado sintetizador. Quishpe o faz revelando uma tecno-cumbia de lírica

possivelmente inspirada novamente em Rosario, e interpretada em canto que varia entre a

lamúria e o choro (real) via memória emotiva; e onde o artista tenta manter, em vão, a afinação

melódica da voz enquanto as mãos tocam o instrumento. Nesse ínterim, vemos cortes

intercalados na montagem da obra audiovisual que buscam revelar imagens de Delfín junto a

Rosario, ambos participando de encontro festivo (quiçá matrimonial) ao ar livre.

A edição de imagens sugere tratar-se de um momento relativo ao passado recente de

ambos (posto que captado para o documentário musical), onde estariam aparentemente

82 A inclusão do termo charro (cowboy mexicano) no texto refere-se à era de ouro do cinema do México, influente

tanto no Equador como em toda América Latina entre os anos 1930 e 1950 através das obras audiovisuais do

subgênero intitulado comédia rancheira - versão mexicanizada do chamado western estadunidense. Todavia

seguiria em disputa a primazia em relação à origem das figuras do cowboy ou charro no imaginário da América

do Norte. O cinema estrangeiro no geral exerceria de fato grande influência na vida sociocultural do Equador.

Entre as ditas classes médias e proletárias urbanas o cinema ”subcultural” mexicano, por exemplo, se tornaria a

atividade recreativa mais importante do país sul-americano, bem como o western e outros. As elites culturais

equatorianas, contudo, consumiriam o dito cinema de vanguarda ou tradicional, ambos detentores de suposta “alta

qualidade estética” - em geral francês, inglês, italiano e estadunidense, bem como de países socialistas europeus

(MOREIRA, 1977, p. 40).

120

renovando os votos de casamento. É estabelecido, pois, um contraste onírico-emocional(izado)

em Hasta el fín de Delfín ao associar esteticamente a união oficial (encenada?) dos dois a uma

espécie de recordação melodramaticamente simulada do músico andino; algo reforçado por

meio do filtro em tom sépia elegido para filmar o casal, gerando efeito ou sensação pretérito-

temporal.

Em seguida, o documentário acompanha Delfín durante novo show de caráter popular

realizado pelo cantor em uma espécie de galpão. A câmera se movimenta abaixo do campo de

visão do palco, serpenteando por entre o público que é mostrado dançando o ritmo musical de

Quishpe. Notamos o caráter heterogêneo em termos de sexo biológico (homens e mulheres) e

de idade (adolescentes e adultos) da plateia, incluindo alguns jovens cuja identidade visual (a

saber: roupas, corte de cabelo etc.) em tese seriam mais facilmente associáveis a concertos de

música pop - e até de rock independente ou underground. Mas que talvez se sintam neste caso

naturalmente identificados a um artista indígena independente e popular urbano justamente por

conta da inusitada apropriação da música tecno junto à cumbia equatoriana trazida por Quishpe;

e, também, desprovidos de um consumo irônico ou purismo elitista-tradicionalista

relativamente ao equatoriano. E em meio ao público composto por centenas de pessoas

dançando extasiadas durante a festa de caráter popular, a câmera busca em primeiro plano a

imagem de Rosario, em perfil estático e situada na lateral do palco, produzindo rima visual com

a última cena em que a companheira de Delfín havia sido mostrada no documentário –

suscitando semblante mais circunspecto desta vez do que disperso ou infeliz.

Em outro show que ele realiza, agora em Quito, capital do Equador, o documentário

elege enfocar as filas mais próximas ao músico e apresenta uma parte da plateia composta por

indivíduos que notadamente se viam afetados e re-conhecidos no cantor andino. Isto talvez

ocorra por meio da representação social de Quishpe relativa à identidade cultural (identificação

fenotípica consciente e memória ancestral inconsciente) compartilhada com muitos fãs situados

naquele espaço, além da consciência do lugar de classe oprimida e periférica, pressionada a

criar uma estratégia cotidiana de socialidade citadina.

De fato, um show de música popular (urbana). Quishpe é mostrado em cena subsequente

atravessando as ruas de bairros populares a bordo de um carro de som simples, bem como

distribuindo e autografando cartazes com a imagem do artista estampada, a fim de promover o

seu último produto musical em Compact Disc (CD). Trata-se de uma obra possivelmente

autofinanciada e seguramente difundida de forma independente pelo cantor - presumido por

conta da ausência de elementos visuais referentes a selos ou gravadoras multinacionais

121

inseridos nos objetos de divulgação de sua arte. E, também, pela inclusão de números de

telefone (via WhatsApp) nos mesmos produtos, oferecidos para o contato (direto) do músico

com eventual futuro contratante para shows.

A cena de Delfín publicizando sua (auto)imagem e misturando-se presencialmente aos

moradores (incluindo jovens e crianças) de uma zona popular urbana do Equador nos remete

da mesma forma a ação de alguns políticos durante campanhas eleitorais, em busca de votos

em áreas periféricas latino-americanas (no Brasil, inclusive). Nesse sentido, os CDs vendidos

(por 1 dólar cada peça) diretamente em mãos (ou corpo-a-corpo) para a potencial audiência

seriam como os panfletos (ou santinhos-andinos, no caso) de candidatos a algum cargo político,

onde cada canção contida nesse objeto antes chamado disco representaria um projeto ainda

chamado discurso – ou promessa - de campanha eleitoral. Embora Quishpe, na prática, não

compre e sim venda voto - de confiança - através da força criativa de um artista independente

com o objetivo final de afetar corações e mentes. De toda forma, vende-se sonhos para o

potencial ouvinte-eleitor.

Delfín Quishpe, de fato, acabou por amplificar posteriormente o seu campo de atuação

na sociedade ao se filiar a um partido político e se candidatar em 2018 ao cargo de prefeito em

Guamote (terra natal do músico andino). Vinculado ao Movimiento de Unidad Plurinacional

Pachakutik (Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik), partido autointitulado

indigenista de esquerda (em tese) anti-neoliberal, o autor de Torres gemelas se elege alcaide

com uma plataforma política em defesa da causa indígena em sua cidade. A referida agremiação

política criada em 1995 e representante partidária da Confederación de Nacionalidades

Indígenas del Ecuador (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador – CONAIE)

tem na interculturalidade crítica uma de suas bandeiras. Vale lembrar que esse projeto político,

iniciado desde os anos 1990 tem o intuito de transformar a realidade dos representantes dos

povos originários e do conjunto da sociedade, convocando os indivíduos que sofrem com a

submissão e subalternização históricas desde a colonização europeia na América Latina, bem

como os setores que lutam em conjunto “pela refundação social e descolonização; pela

construção de outros mundos” (WALSH, 2007, p. 5).

Contudo, nos últimos anos, a atuação política do Movimento Pachakutik tem se

mostrado dúbia no que tange à defesa pública de causas e políticos responsáveis por contrariar

frontalmente algumas pautas ideológicas originais (ou originárias) – em relação ao (combate na

122

teoria e defesa na prática) do neoliberalismo, por exemplo83. Por outro lado, não nos caberia

cobrar que partidos ou políticos indigenistas sigam determinada corrente ou linha ideológica

específica (para além da coerência na relação teoria e práxis), posto que a defesa dos povos

originários deve - ou deveria, pelo menos - estar arraigada às agendas político-institucionais de

qualquer agremiação ou movimento social, embora saibamos que isto não ocorra de fato.

Mas, voltando ao documentário, vale retomar aqui a cena que nos mostra o momento

festivo em cortejo que tem como protagonistas - por óbvio - Delfín e Rosario. Ambos surgem

carregando de modo solene espécie de redoma de vidro ou resina usada para abrigar imagens

sacras do catolicismo. Junto ao casal, soma-se à marcha uma banda de músicos (ao estilo

charanga) tocando canções populares entusiásticas (profanas?) e valendo-se, para tanto, de

instrumentos de sopro aliados ao ritmo de tambores, enquanto homens e mulheres dançam

exibindo coreografias alusivas às tradições locais (isto é, naturais da região andina - e de origem

latino-miscigenada, assim presumimos). Em destaque vemos as roupas simbólico-

representativas dos presentes, cujas mantas (ou ponchos), bem como saias (ou polleras) além

do sombrero (chapéu) de copa alta e aba reta caracterizam a paradigmática figura rural e de

religiosidade festeira dos chamados cholos e cholas (Figura 4), isto é, o indivíduo

autodenominado "de raiz rural, envolto em sua manta, trabalhador e reservado, que diz sentir-

se orgulhoso pelo que possui de espanhol e de ”índio” (...) É a expressão da vida no campo, sua

simplicidade, sua proximidade com a natureza e sua religiosidade festeira" (MORA, 2002, p.

25 - tradução nossa) 84. Uma breve amostra documental de cunho popular urbano: o cerimonial

cristão hibridizado culturalmente tanto às tradições indígenas pré-coloniais quanto aos

atravessamentos culturais latino-americanos oriundos do século XX. E quiçá capaz de inspirar

a busca por uma “cholonização” musical latino-americana 85 na atualidade.

A seguir, as lentes documentais exibem Delfín Quishpe durante a celebração do que

parece ser o carnaval de Guamote, que é uma festa folclórica tradicional ocorrida no mês de

março, durante oito dias, e cuja imagem-símbolo é representada pelo patrono San Carlos, a

83

Referência nossa a Yaku Perez, candidato às eleições presidenciais do Equador em 2021 pelo Movimento

Pachakutik, e acusado por (sub)representar um ecossocialismo capitalista pelo site jornalístico Brasil de Fato.

Disponível em: .< https://www.brasildefato.com.br/2021/02/10/el-candidato-ecosocialista-de-ecuador-yaku-

perez-apoya-golpes-de-estado >. Acesso em: 22 fev 2021. 84 No original:"de raiz rural, enfunfado en su poncho, trabajador y reservado, que dice sentirse orgulloso de lo

que tiene de español y de índio (...) Es la expresión de la vida de campo, su simplicidad, su cercanía con la

naturaleza y su religiosidad festera" (MORA, 2002, p. 25). 85 Menção nossa à canção intitulada "cholonización" ("cholonização" - um jogo de palavras que une os

termos cholo e colonização, ou colonização chola), composta pelos rappers Guanaco (Equador) e Emicida

(Brasil), e lançada em 5 de novembro de 2018. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=PWxuAbU3axQ >. Acesso em: 5 nov. 2018.

123

quem são atribuídos milagres e, por conta disso, recebe homenagens de seus devotos e procissão

religiosa em meio à folia andina (Ecuador TV, 2018). Nesta, o músico andino se apresenta em

um palco ao ar livre cantando temas (inclusive) em quíchua, sua língua mátria e herança. Ou

seja, parte da memória de uma tradição ancestral e viva na busca por caminhos para além dos

saídos das estações de trem turístico-exploratórias, a fim de construir novas pontes sobre as

ruínas tanto dos muros incas quanto dos incapazes86.

Vale ressaltar, no entanto, que Delfín não é um precursor na escolha (ou estratégia) de

cantar música popular em idioma quíchua (ou em outra língua originária da região), e tampouco

pioneiro no que tange às fusões rítmicas e hibridismos sonoros andino-eletrônicos os quais

costuma promover. Por exemplo, Renata Flores, oriunda de Ayacucho, no Peru, desde 2015

canta em língua quéchua, acompanhada de arranjos musicais que mesclam gêneros como soul,

rap (e trap) com ritmos ancestrais de seu país, como a música afro-peruana e, também, letras de

engajamento político. O videoclipe de Tijeras, por exemplo, denuncia o feminicídio contra

mulheres peruanas.

Figura 4: cholos e cholas dançando junto a Delfín e Rosario

Fonte: Print de Hasta el fín de Delfín

Mas, retomando, o cortejo católico-andino-carnavalizado de Delfín Quishpe, Rosario,

parentes, amigos e charanga mostrado na tela logo é acrescido de uma carreata pelas ruas de

86 Impossível não remeter ao que já vimos em “Diários de Motocicleta” (2004), onde um jovem guia turístico de

Cuzco, no Peru, apresenta às versões ficcionais de Ernesto "Che" Guevara e Alberto Granado dois muros, um Inca

e outro espanhol, e comenta: “este é o muro dos Incas e aquele é o dos incapazes, que são os espanhóis”

124

terra da região montanhosa, e culmina com novas imagens das festividades populares em

Guamote. Sobre o palco do evento, Delfín, a ex-celebridade que em tese não se reivindica herói

enquanto cowboy cumpridor da lei (seja a lei de mercado ou, futuramente, municipal, como

“xerife” eleito da cidade natal), e sua companheira, Rosario, discursam em espanhol e, também,

quíchua. E no derradeiro momento de Hasta el fín de Delfín, as lentes documentais mostram o

músico à distância em um dia nublado, sozinho e dançando na entrada de uma modesta casa de

madeira. Ao ritmo da dança, Delfín entoa notas em uma flauta quíchua similar à usada

anteriormente pelo artista como adereço promocional e, assim, parece atuar tal e qual cavaleiro

solitário estrelando um faroeste caboclo, como diriam, talvez, os integrantes da banda de rock

brasileira, Legião Urbana.

4.1.3 Integração Latino-americana em Hasta el fin de Delfín: concertos e afetos

Ao ser recebido calorosamente pela imprensa em aeroporto de cidade situada

possivelmente em outro país latino-americano que não o Equador - embora tal informação não

esteja presente em Hasta el fín de Delfín -, supomos que haja, enquanto representação midiática,

algo de re-conhecimento local relacionável à integração latino-americana. Os flashes das

câmeras fotográficas e pedidos para que o artista recite alguns versos de Torres gemelas

justificariam tal conexão do músico-celebridade equatoriano além de suas fronteiras. A seguir,

em breve cena cotidiana do documentário musical passada em salão de beleza situado em uma

zona urbana do Equador (possivelmente Riobamba), o músico relata à funcionária que o atende

os concertos que teria realizado em países da América Latina (e, também, da Europa) no auge

da carreira do artista enquanto fenômeno fugaz.

Em outro momento da obra documental, a versão de Torres gemelas cantada à capela

(ou seja, sem acompanhamento de instrumentos musicais) por Delfín, vemos o artista ser

prontamente respaldado pelo coro harmonioso e intenso do público que o assiste no concerto -

representado inclusive em primeiro plano pelas lentes documentais. Este seria, em tese, um

sinal inequívoco de permanência do prestígio (ou apelo) artístico-industrial e transestético

(LIPOVETSKY; SERROY, 2015) de Delfín mais de uma década após o início (e auge) da

carreira do músico andino. Quando vemos e ouvimos Quishpe em casa de shows entoando os

versos da supracitada vídeo-canção mais “re-conhecida” (MARTÍN-BARBERO, 2003),

supomos que, de fato, cria-se uma conexão artista-público construída através de uma memória

cultural resgatada e representada orgânica e genericamente na figura do andino (enquanto etnia

125

e cultura). Assim, este não apenas disporia, portanto, dos tais 15 minutos de fama 87, mas de

incontáveis séculos de existência e resistência cultural.

4.2. No Gargalo do samba: estilo autoral, trânsitos musicais e religiosidade sincrética

A obra conta a trajetória do músico brasileiro Nereu Gargalo, um dos fundadores do

grupo de samba-rock Trio Mocotó, fundado no final dos anos 1960 (dirigido por Águeda

Amaral, 2018). Nereu Gargalo é um dos fundadores do grupo paulistano Trio Mocotó, em 1968,

junto de Fritz Escovão (cuíca) e João Parahyba (percussão e bateria). Gargalo acompanhou

intérpretes como Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho e Cartola. Após se apresentar em

shows acompanhando Jorge Ben, o Trio Mocotó gravaria com o músico carioca o sexto álbum

da carreira deste, intitulado Jorge Ben, em 1969, além de produzir em estúdio temas de samba-

rock mesclados ao jazz em parceria com o trompetista estadunidense Dizzy Gillespie, em 1974

- lançados oficialmente apenas em 2010. Conforme fizemos no subcapítulo anterior, inserimos,

a seguir, nova tabela apresentando os elementos de representação enquadrados em nossas

categorias de análise para, na sequência, desenvolvermos cada uma delas.

Tabela 2 – Elementos de representação referente às Categorias de análise na obra 2

Categoria

Elementos de representação (exemplos)

Sub-

representação

1. Execução e performance musical de Nereu Gargalo são limitadas a um ambiente

em tese asséptico e de estética demasiadamente controlada (sala vazia ou estúdio

de gravação).

2. Influência da Igreja Nossa Senhora do Rosario dos Homens Pretos no cotidiano

de Nereu Gargalo enquanto espaço (histórico) de encontro espiritual do músico.

3. Centralidade dos terreiros de Umbanda na formação musical e

(sincrético-)espiritual afro-indígena de Gargalo, bem como no estilo de tocar

pandeiro do sambista.

4. Importância histórico-musical do Clube Jogral (mistura de gêneros e subgêneros

da MPB e jazz, gerando hibridismos musicais).

5. Performance aclamada de Nereu Gargalo em show sem registro audiovisual-

documental, apenas declaratório, através de relato de produtor musical.

Memória e

Identidade cultural

1. Nereu Gargalo: estilo particular de tocar pandeiro e tamborim.

2. Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

3. Irmandades Negras: espaço de liberdade de culto para pessoas escravizadas.

4. Antiga relação com a Umbanda (sincretismo religioso afro-indígena).

5. Memória social cotidiana de Nereu Gargalo (família e religiosidade).

87

Referência nossa à famosa frase do artista plástico e cineasta estadunidense Andy Warhol referente às ditas

celebridades instantâneas: "Um dia todos terão direito a 15 minutos de fama".

126

6. Oralidade: Nereu Gargalo conta histórias de vida também por meio de suas

canções (letras confessionais e cotidianas).

7. Cenas em preto e branco teatralizadas reproduzindo a infância de Nereu Gargalo.

8. Cenas exibidas em preto e branco representam ou o tempo passado de fato

(infância, juventude) ou símbolos de herança cultural para o músico na atualidade

(“igreja dos homens pretos”, ruas antigas ou quadra de escola de samba).

9. Fotografias antigas de Nereu Gargalo fazendo “malabarismos” com o pandeiro.

10. Identidade musical: estilo único de tocar pandeiro.

11. Clube Jogral (mistura de gêneros e subgêneros da MPB e jazz, gerando

hibridismos musicais).

12. Samba-rock: percussão brasileira tocada com ritmo dançante alusivo ao rock.

13. Moisés da Rocha: se a classe média dançava o rock, o negro dançaria o samba-

rock.

14. Bailes familiares: reuniões festivas realizadas em residências ou terreiros de

Umbanda (resistência cultural).

Integração

latino-americana

15. Irmandades Negras (Igreja dos homens pretos): integração

diaspórico-”amefricana”.

16. Clube Jogral enquanto espaço que mistura gêneros e subgêneros da MPB, do jazz

e blues, gerando hibridismos musicais “amefricanziados” (GONZALEZ, 1988).

Fonte: Quadro elaborado pelo autor.

4.2.1. (Sub) Representação em No Gargalo do Samba: sonoridades e auras ausentes

Ainda nos primeiros minutos da obra audiovisual, Nereu é mostrado indo à igreja

(Figura 5) que diz frequentar há muitos anos, denominada pelo músico como “igreja dos

pretos”, em referência a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, construída e

custeada por pessoas negras escravizadas por indivíduos brancos durante o período colonial no

Brasil ( SANTOS, 2017). O documentário, porém, não contextualiza ou informa ao

espectador detalhes sobre a igreja que o sambista frequenta, tampouco sua importância histórica

como símbolo de resistência cultural afro-brasileira, além de elemento presente no cotidiano e

na formação espiritual e de identidade cultural (integração sincrético-diaspórica) de Nereu

Gargalo.

Figura 5: Nereu Gargalo e a “Igreja dos Homens Pretos”

127

Fonte: Print de “No Gargalo do samba”

“No Gargalo do samba” aposta em Nereu Gargalo como guia carismático e experiente

na arte, tanto do improviso musical quanto da retórica bem-humorada e geradora de afeto junto

ao público/espectador, confiando, assim, grande parte do roteiro do documentário às memórias

e relatos pessoais e espontâneos do sambista (e dos demais entrevistados). Contudo, a escolha

da produção por captar as performances musicais do artista em uma sala, estúdio de gravação

ou palco vazios (Figura 6), parece limitar a potência rítmico-sonora e performática do sambista

(bem como a “aura” do pandeiro e do canto de Gargalo) a um ambiente (em tese) asséptico ou

quiçá melancólico, suscitando estética demasiadamente controlada - ou contrastante – frente ao

estilo criativo, dinâmico e (aparentemente) imprevisível do sambista carioca.

Figura 6: Nereu Gargalo em palco vazio

Fonte: Print de “No Gargalo do samba”

128

Por outro lado, quando os três artistas-fundadores do Trio Mocotó mencionam o clube

Jogral, este é definido como um pequeno, porém fundamental espaço de formação e

aperfeiçoamento musical (jazzístico, inclusive) tanto de Nereu Gargalo quanto de João

Parahyba e Fritz Escovão; uma espécie de CBGB da MPB e do samba-rock88, aberto a músicos

independentes e iniciantes de diferentes estilos musicais. Contudo, para além de algumas

imagens de arquivo referentes à época mostradas em “No Gargalo do samba”, talvez se fizesse

necessária uma abordagem documental mais atenta, sensível e informativo-contextual em

relação ao lugar descrito como pioneiro em sua época.

Isto se daria no intento de buscar reproduzir (ou simular) algo da “aura” (ou mística)

musical supostamente inerente ao Jogral para o espectador. Um lugar que em termos de

memória e identidade cultural viria a se tornar historicamente tão marcante para os sambistas

que por ali passaram quanto diretamente responsável por, senão gestar, ao menos difundir o

samba-rock enquanto subgênero inovador da música popular brasileira e independente. Embora

admitamos que, na prática, “No Gargalo do samba” apresenta-se como obra assumida e

exclusivamente centrada na história de vida do sambista Nereu Gargalo. Tanto é assim que

Jorge Ben é apresentado ao espectador quando a produção documental se aproxima da metade

de sua duração, porém, apenas através de imagens de arquivo e menção de Nereu Gargalo e de

outros personagens entrevistados para a obra audiovisual. Embora não seja de fato o músico

biografado para o documentário brasileiro, Ben é relembrado por Gargalo como elemento

artístico e pessoal imprescindível para a própria formação (criação do nome do grupo e junção

deste em trio) e, consequentemente, para a trajetória do Trio Mocotó – primeiro como músicos

convidados a excursionar e gravar com Jorge Ben no Brasil e na Europa, e depois em voo solo,

trilhando carreira própria.

Entendemos, pois, que a despeito das eventuais dificuldades logísticas da produção em

se entrevistar o músico carioca, talvez tenha faltado ao roteiro buscar (sons e) imagens relativas,

por exemplo, ao período em que Jorge Ben e o Trio Mocotó tocaram juntos (seja no Brasil ou

na Europa), algo mencionado majoritariamente de forma declaratória (e fotográfica, com

pouquíssimos registros em vídeo) pelos entrevistados. Ou seja, a abordagem documental-

cinematográfica tanto neste caso quanto no do clube Jogral, por exemplo, não exprimiria

88

O CBGB (1973-2006) é pequeno clube musical estadunidense localizado em Nova Iorque, e responsável por

abrigar os primeiros shows de artistas pioneiros do gênero punk e new wave, como Ramones, Patti Smith, Blondie,

Talking Heads e outros. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=1-BKnMmlwMc >. Acesso em: 2

nov 2020.

129

diretamente uma sub-representação de Nereu Gargalo enquanto identidade artística, mas

lateralmente (ou até transversalmente) em relação aos referidos episódios vistos em cena.

E aproximando-se do final do documentário, o engenheiro de som Carlos Lima relembra

detalhes relativos à gravação de DVD do Trio Mocotó em um teatro de São Paulo, em que o

público teria aplaudido efusiva e especificamente a performance de Nereu Gargalo, isto após a

apresentação apenas da primeira música dos sambistas no referido concerto. No entanto, o

relato receberia de “No Gargalo do samba” um tratamento novamente sucinto e declaratório,

embora o registro audiovisual da dimensão artística de Gargalo naquele momento (representada

pelo magnetismo estético e qualidade musical do músico) suscitasse grande potencial

simbólico. Supomos que isto possa ter ocorrido ou por opção narrativa, problemas jurídicos

relativos aos direitos de acesso do material, escassez de prazo, ou algum outro motivo qualquer.

Por fim, em brevíssimo comentário durante cena exibida ainda na primeira metade do

documentário musical, Nereu Gargalo rememora a fase de sua carreira onde, além de se

apresentar em shows, contracenava com o ator - e vizinho - Grande Otelo (ambos então

moradores da Ladeira dos Tabajaras). Nesse momento, Gargalo menciona o apelido que

recebera à época - aparentemente de outros músicos e artistas com os quais trabalhou: blecaute

(ou blackout, em inglês). Contudo, o breve registro da fala do sambista não vem acompanhado

narrativamente de qualquer questionamento da produção ou comentário crítico em relação à

forma chistosa pela qual o artista havia sido alcunhado à época. Supomos que o termo blecaute

- referente à escuridão provocada por perda momentânea de luz elétrica - tenha sido empregado,

contudo, em razão da tonalidade de pele de Nereu Gargalo. Isto possivelmente teria se dado

devido à naturalização no emprego de apelidos, expressões ou insultos racistas comumente

emitidos por sujeitos brancos relativamente aos não-brancos durante a formação histórica e

sociocultural do Brasil; um país forjado sob o véu do racismo por denegação (ou disfarçado)

(GONZALEZ, 1988).

Vale relembrar, da mesma forma, a existência de outro célebre representante da música

popular brasileira - e predecessor de Nereu Gargalo - denominado Blecaute (1919 - 1983).

Otávio Henrique de Oliveira receberia o apelido considerado de cunho racista ainda no início

de sua carreira (SANTOS, 2020), nos anos 1940. Tal prática, ainda conforme o autor, seria

recorrente e naturalizada na esfera da MPB (branca) e demais círculos racistas da indústria

fonográfica e da radiodifusão brasileiros. É o caso, também, de Djalma de Andrade, ou Bola

Sete (1923 - 1987), destacado inclusive por ter sido o primeiro músico a inscrever o termo

samba-rock no rótulo de um LP (Long Play), ao lado da canção “Baccará”, em 1957. Andrade,

130

aliás, é um guitarrista (re)conhecido globalmente por estilo virtuoso e eclético (transitando com

intimidade - e “amefricanidade” - por gêneros como jazz e blues, como faz, por exemplo, na

canção de 1961, “Eu vou de samba rock”)89.

Mas, além deles e apenas para não deixarmos de realçar o quanto esta cultura racista

estava presente no período, vale lembrar outros destacados artistas do período, também

“batizados” por identificações “discutíveis” (digamos assim), como Noite Ilustrada”, Mário de

Souza Marques Filho; Mario de Oliveira Ramos, ou "Vassoura"; Antônio Monte de Souza, ou

"Gasolina", além do conjunto "Os Cinco Crioulos", composto originalmente por Anexar do

Salgueiro, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nelson Sargento, Paulinho da Viola

(substituído mais tarde por Mauro de Andrade (SANTOS, 2020. Além destes, outros artistas

seguiriam (e seguem) sofrendo cotidianamente o mesmo tipo de preconceito no País. De todo

modo, vale ressaltar que muitos desses lograriam responder ao racismo liricamente, como

fizeram os citados “Os cinco crioulos” na canção "Quatro Crioulos" (1967), cujos versos “São

quatro crioulos inteligentes / Rapazes muito decentes / Fazendo inveja a muita gente" revelam

não estarem alheios à situação discriminatória que viviam 90.

4.2.2 Memória e Identidade Cultural em No Gargalo do Samba: ao redor das raízes

Logo nos instantes iniciais do documentário musical brasileiro “No Gargalo do Samba”,

ouve-se em off um comentário não creditado sobre a música do sambista Nereu Gargalo

supostamente servir de antena capaz tanto de unir quanto transmitir de forma comunicacional

a autenticidade da música de raiz do Rio de Janeiro à cultura global. A seguir, o músico surge

defendendo ser o criador de um estilo particular de tocar pandeiro e tamborim. E tal feito teria

conferido a este uma identidade musical e cultural própria, a ponto de Nereu Gargalo conseguir

triunfar e se estabelecer como ícone do subgênero musical conhecido globalmente como samba-

rock.

Por outro lado, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, frequentada por

Nereu Gargalo (e exibida ainda nas primeiras cenas de No Gargalo do samba) remonta o período

colonial, como já dito, e tornara-se um espaço onde sujeitos africanos trazidos à força para o

Brasil lograriam manter suas raízes e memórias culturais mesmo sob a imposição ibérica da fé

católica. Para tanto, estes indivíduos acabariam se organizando e implantando as chamadas

“Irmandades Negras”, uma alternativa criada para que estes pudessem exercer a sua

89 Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=VZnIW1cUzdI >. Acesso em: 27 dez. 2020. 90 Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=QVGH--nFZwM. >. Acesso em: 27 dez 2020.

131

religiosidade em um espaço com liberdade de culto. Um movimento que é destacado por Santos,

para quem

(...) Ainda que houvesse a expectativa de se apagar a herança cultural destes negros a

partir da imposição de uma nova crença, é incontestável que as identidades se

revelariam no solo brasileiro quando estes africanos se encontrassem com outros

negros de mesma origem, principalmente nos espaços das irmandades. (...) O negro

escravo acabou compreendendo que, mesmo que as irmandades não lhe conferissem

igualdade social com os brancos, elas seriam um privilegiado espaço de liberdade.

(SANTOS, 2017, P. 244).

De todo modo, o filme não se furta a mostrar Gargalo, que se diz devoto de Santo

Expedito e de Nossa Senhora da Aparecida, revelando sua fé - ele reza em frente às imagens

das referidas imagens sacras, em cena mostradas em preto e branco (Figura 7), justamente no

interior dessa construção que continua marcando o cenário da cidade do Rio de Janeiro,

confirmando essa ambiguidade que cerca, de algum modo, a relação com a religiosidade

imposta e o modo como se foram fabulando as resistências dessa população trazida à força, no

que hoje é assumido como “diáspora negra”, principalmente pelos movimentos negros. Tal

inclusão ganha fôlego, se pensarmos na estratégia narrativa de marcar o sincretismo religioso,

quando se observa, na cena seguinte, o músico no teatro vazio, como já citado. Isto porque, é

ali que ele interpreta uma canção que logra mesclar sonoramente as badaladas dos sinos

católicos às batucadas dos tambores da Umbanda: a canção “Santo Antônio na linha de

umbanda” (2005), de Nereu, Mocotó e Swing, cujos versos “Santo Antônio na linha de

umbanda é Ogum, é o meu protetor. Santo Antônio que é meu padrinho, neste mundo do nosso

Senhor” explicitam os vínculos que apontamos.

Tal e qual o sincretismo idiomático-cultural e “amefricano”, capaz de representar ao

mesmo tempo Changô e Xangú, Oxalá e Obbatalá, Iemanjá e Yemanyá, Oxum e Oshún, enfim:

Orixás e Orishas. Isto é, nos permitindo traçar um paralelo entre a canção “Os orixás” (2001)

do grupo de samba-rock Trio Mocotó, cujos versos “Eu já pedi a Oxalá, meu pai Ogum e

Iemanjá. Mamãe Oxum e todas as crianças (...) Oiá ô Xangô, oiá ô Xangô”91 podem dialogar

com “Tire os colares que chegou Xangô, Xangô. Ei, irmão Exú, Xangô, Oxalá, Iemanjá,

Oxum”92, da canção Represent, do grupo de hip-hop cubano Orishas (“Orixás” em espanhol),

lançada em 2000.

91 Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=c5Wuq7Lgja8 >. Acesso em: 5 nov 2020. 92 No original: Saca los collares que llegó Changó, Changó. Hey bro Elegguá, Changó, Obbatalá, Yemayá, Oshún”

(tradução nossa). Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=1T5E9CBtMdQ >. Acesso em: 5 nov.

2020.

132

Figura 7: Nereu Gargalo em frente a imagens sacras

Fonte: Print de “No Gargalo do samba”

Essa ênfase na religiosidade marcante do músico é ainda mais ampliada ou explicitada

no documentário pois, após o percurso igreja-palco, o músico participa intensamente, tanto

cantando quanto dançando - em enquadramento que enfatiza seu protagonismo e relação íntima

com os rituais de uma cerimônia umbandista (Figura 8), além de também destacar a exuberância

simbólica dos múltiplos objetos que integrados ao local, incluindo a predominância do branco,

em contraste vivo com as históricas e escuras vestes que marcam o imaginário quanto ao uso

predominante dos sacerdotes católicos. Na mesma sequência, Nereu Gargalo também relata se

consultar regularmente com o guia (espiritual) conhecido como boiadeiro. Na religião

Umbanda (cujo sincretismo combina tradições do catolicismo, iorubá - orixás africanos - e dos

povos ameríndios), os boiadeiros representam entidades ligadas ao campo (ou zona rural), entre

vaqueiros, laçadores, peões, cangaceiros e violeiros. Estes são denominados como caboclos

sertanejos ou caboclos de couro, e considerados os autênticos “mestiços brasileiros” (isto é, a

síntese da mescla dos distintos povos historicamente estabelecidos no País). (BARROS, 2013,

p. 9).

Figura 8: Nereu Gargalo em terreiro de umbanda

133

Fonte: Print de “No Gargalo do samba”

O vínculo profundo do músico com a religião é, pelas escolhas narrativas e estéticas do

documentário, profundamente enfatizadas: Nereu Gargalo é mostrado em primeiríssimo plano,

explicando emocionado (às lágrimas) sua antiga relação com os chamados centros de Umbanda,

sobretudo o terreiro frequentado por sua mãe, onde o músico teria aprendido sobre a religião.

O testemunho dá gancho a passagens recordatórias resgatadas na fala de Gargalo relativas à

memória sociocultural (família e religiosidade) do músico brasileiro, e considerada como base

de laços afetivos imprescindíveis para a construção do caráter do sambista enquanto sujeito

inserido na cotidianidade.

Assim, a obra audiovisual lança mão da mesma forma da oralidade e dos versos

musicais de Nereu Gargalo enquanto efeitos estilístico-narrativos, a fim de que o músico possa

contar suas histórias de vida também por meio de suas canções, constituídas ora de letras

confessionais, ora cotidianas. Há, no audiovisual, momentos de rememorações em que Nereu

se apresenta oficialmente para o espectador e comenta sua relação no dia a dia, desde a infância,

com os parentes mais próximos (mãe e irmãos), e relata o primeiro instrumento adquirido, um

pandeiro de plástico regalado pelo irmão - uma referência familiar para o músico. O que é

descrito por Gargalo é um cotidiano simples (e pobre) no qual o artista havia sido criado,

vivendo na comunidade Ladeira dos Tabajaras - situada no bairro de Copacabana, no Rio de

Janeiro. O documentário ainda nos informa que no início de sua carreira profissional o sambista

especializou-se em fazer o que qualifica na obra documental como malabarismos com o

pandeiro, chamando, assim, a atenção do público. Tais performances malabarísticas, em “No

Gargalo do samba”, são apresentadas como fotografia da época (em preto e branco), flagrando

Nereu Gargalo junto aos demais músicos do grupo Trio Mocotó.

134

No entanto, a cena performática do grupo não logra captar por meio de um momento

congelado o que seriam (ou como se dariam) as aparições diferenciadas do músico. O que

permite evocar que a performance (extra)musical e estilizada do sambista em seus primórdios

representaria, inclusive, a ideia de estar-junto enquanto socialidade (MAFFESOLI, 1998) - com

ludicidade poética, utópica e mística -, através de sua linguagem corporal inusitada, instintiva

e sinestésica. E assim, o artista teria sido capaz de transcender o cotidiano ao criar um estilo

único de tocar pandeiro, responsável por dar-lhe, pois, identidade musical - nas palavras do

próprio Gargalo.

Uma identidade cultural performática, inovadora e quiçá mítica (e mística) dessa relação

músico e instrumento, como, por exemplo – para fugirmos do gênero musical aqui focado –

tinha o músico estadunidense Jimi Hendrix com a guitarra elétrica, por vezes lúdica, intuitiva e

igualmente não usual - e (quase) transcendental, ao tocá-la com os dentes ou queimá-la

ritualisticamente no palco durante os shows. Isto é, se divertindo como se encarnasse uma

criança-vodu 93. Nossa evocação é sustentada pelas imagens teatralizadas em preto e branco de

Nereu Gargalo em versão infantil caminhando pela quadra vazia da escola de samba Unidos do

Peruche e olhando fantasias expostas no local, até encontrar um pandeiro deixado sobre uma

cadeira. Na sequência, o jovem Nereu caminha em direção ao centro da quadra com o assento

e o pandeiro em mãos; e ao dar o primeiro toque no instrumento um corte abrupto na edição

traz a versão atual (e real) do sambista no lugar do menino (ou “erê”) do passado, simulando

um passe de mágica (ou de Umbanda) na quadra (ou “terreiro”) da referida escola de samba;

um espaço que une a memória, resistência e identidade cultural.

Mas, para além dessa relação íntima com o instrumento, o documentário também

ressalta outros elos que seriam cúmplices da construção tão singular desse músico. Por isso

mesmo, Nereu Gargalo e outros músicos, como Fritz Escovão e João Parahyba (a tríade

responsável pela primeira formação do grupo Trio Mocotó) vão mencionar às câmeras de “No

Gargalo do Samba” o clube musical Jogral, idealizado pelo músico Luiz Carlos Paraná. O local

seria considerado uma “faculdade” para os sambistas, nas palavras de Parahyba. Isto devido à

mencionada variedade e qualidade musical de artistas vistos como hábeis em apresentar (e

“ensinar”) gêneros e subgêneros (re)produzidos e “amefricanizados” na casa paulistana.

Essa mistura sonora e sincrética teria propiciado aos sambistas as condições necessárias

para que estes lograssem acompanhar - na função de músicos de apoio - artistas oriundos de

93 Referência nossa à canção Voodoo Child (Slight Return), 1968, do músico de rock estadunidense Jimi Hendrix.

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=IZBlqcbpmxY >. Acesso em: 15 jan. 2021.

135

uma miríade de estilos e matizes sonoros àquela época. E foi através do palco do Jogral que

Marcus Pereira, entusiasta da cultura popular brasileira, extrairia para o selo musical homônimo

(Discos Marcus Pereira, 1973 - 1981) de música independente - além do próprio Trio Mocotó -

artistas e grupos como Cartola e Banda de Pífanos de Caruaru, entre outros. Através desta

gravadora que Cartola lançaria, inclusive, o seu primeiro álbum, em 1974, já com mais de 60

anos de idade naquele momento.

Em depoimento para o documentário musical, Fritz Escovão admite, inclusive, ter tido

o primeiro contato (ou aula, digamos) com as canções de jazzistas como Duke Ellington, Ella

Fitzgerald e Oscar Peterson por intermédio do clube Jogral. Ao testemunho, cabe a prova: são

mostradas, na cena seguinte, novas fotografias de arquivo do Trio Mocotó ainda jovem -,

provavelmente oriundas da época da casa de shows. Ato contínuo, João Parahyba relata que

embora não dispusesse de formação musical jazzística, Nereu Gargalo era capaz de adaptar-se

ao gênero estadunidense utilizando o seu pandeiro, caso fosse necessário. Entendemos tal

característica, pois, como claro exemplo de “amefricanidade” musical (GONZALEZ, 1988). O

percussionista comenta ainda que Fritz Escovão teria igualmente conseguido traduzir para o

som da cuíca o improviso do jazz, criando solos com esse instrumento. Em tom anedótico,

Parahyba relembra que Gargalo e Escovão pareciam possuir um chip de world music

implantado capaz de fazê-los tocar qualquer estilo musical, dada a versatilidade e a facilidade

de ambos em hibridizar-se com outros ritmos.

Em fala subsequente para a obra documental brasileira, é acrescentada a fala do

“especialista”, um recurso recorrente do jornalista que este e outros documentários também se

valem: o jornalista e musicólogo Zuza Homem de Mello opina que os sambistas oriundos do

Jogral disporiam de uma maneira de tocar percussão brasileira cujo ritmo (dançante)

aproximava-se do rock, e originando, assim, a expressão samba-rock. Uma mescla de dois

gêneros musicais aparentemente díspares, porém, naturalmente assimilada por conta das

experimentações sinestésico-sensoriais de Nereu Gargalo e demais músicos do grupo Trio

Mocotó. Estes seriam, pois, afetados musical e culturalmente pela variedade e fecundidade de

ritmos, acordes, escalas, harmonias e arranjos presentes no referido clube musical. Zuza

Homem de Melo veria o samba-rock como manifestação cultural de características próprias,

dentre as quais a mais marcante delas seria a chamada “rítmica dançante”.

De todo modo, é pela voz dos sambistas entrevistados que se reforça a ideia do convívio

fecundo e eclético com músicos como Manezinho da Flauta (sobrinho do flautista, saxofonista,

e compositor Pixinguinha, grande expoente do gênero musical chorinho e da música popular

136

brasileira), além dos artistas da chamada música caipira, do jazz, blues e outros. Ademais, a

casa de shows paulistana receberia uma quantidade imensurável de intérpretes e compositores

em seus tempos áureos, desde o próprio Trio Mocotó — criado no Jogral — até Jorge Ben, na

esfera do samba-rock. E outros artistas em ascensão no país, como: Chico Buarque, Caetano

Veloso, Gilberto Gil, Renato Teixeira, Martinho da Vila, Paulo Vanzolini e Adauto Santos.

Nesta versão de um cenário tão ampliado é possível conjecturar que o Jogral teria logrado

sedimentar enquanto símbolo de valorização da música popular brasileira independente - bem

como do jazz e blues estadunidense - um espaço responsável pela curadoria e divulgação de

novos artistas populares a uma intelligentsia culturalmente interessada no País. E mesmo

contando com a mediação de terceiros para que conseguissem estabelecer a mescla estilística e

cultural “amefricanizada” com outros artistas (brasileiros e estrangeiros), uma gama de músicos

populares urbanos graduar-se-ia na referida faculdade Jogral entre os anos 1960 e 1970.

Para além desse diagnóstico, o documentário também não deixa de demarcar, como já

colocamos em outro momento, as tensões que persistiam em relação à consciência que se tinha

quanto às linhas divisórias entre brancos e negros, a despeito do território Jogral se apresentar

aberto à multiculturalidade em termos musicais e à diversidade racial. Neste sentido, destaca o

radialista Moisés da Rocha que enfatiza, durante sua fala, um marcador importante em termos

raciais presente naqueles tempos: se a classe média (branca) dançava o rock, o negro dançaria

o samba-rock.

Sabemos de igual forma que o próprio rock (ou rock and roll) corresponde a um gênero

musical criado por músicos negros, como Chuck Berry, Little Richard e Rosetta Tharpe, mas

que, posteriormente, foi legitimado e mercantilizado na mídia de massa através de cantores

brancos, como Elvis Presley - artista que, embora morto não se tornaria rei posto, entretendo

“massas-escravas” a venerá-lo em seu “túmulo´, como fez questão de enfatizar a canção Elvis

is dead (“Elvis está morto”, 1990), do grupo de rock estadunidense Living Colour (com

participação do músico Little Richard) nos versos: “Agora as massas são suas escravas /

Escravas? / Sim, escravas / Mesmo em seu túmulo”94. Mas, voltando a Moisés da Rocha, este

também comenta no documentário, nesta mesma proposta de marcar as discriminações (e

separações) raciais, sobre os chamados bailes familiares, reuniões festivas realizadas

geralmente em terreiros de Umbanda ou residências, e promovidas por pessoas negras

94 No original: Now the masses are his slave / Slave?/ Yeah, slave / Even from the grave (tradução nossa).

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=8nvpRkn_R5g >. Acesso em: 5 dez. 2020.

137

impedidas de frequentar os ditos grandes salões – isto é, espaços reservados exclusivamente

para os brancos.

A situação descrita pelo radialista nos leva a considerar que os bailes familiares seriam

estratégias ritualísticas de resistência cultural, elaboradas por sujeitos oprimidos (libertos,

porém não-livres) a fim de manter suas tradições - ou mesmo construir novas culturalidades (ou

“irmandades” de “homens pretos”, digamos) por meio das relações ali transformadas (e

transformadoras). Isto nos remete, igualmente, às origens do hip-hop no Brasil nos anos 1980,

enquanto manifestação de identidade e resistência cultural da juventude negra marginalizada da

cidade de São Paulo (e do Brasil em geral). Neste cenário teriam surgido os primeiros chamados

b-boys (dançarinos de break) e rappers brasileiros, reunidos no Largo São Bento para dançar e

produzir rimas improvisadas. A região havia sido anteriormente ocupada por adeptos do

movimento punk, bem como por skatistas (ambos outsiders igualmente alijados de espaços

culturais privados durante aquele período) e logo territorializada pelos rappers e b-boys

(SOUZA; BERNARDES, 2018, p. 153). E, se pensarmos historicamente, em termos

socioculturais o Largo São Bento (onde encontra-se o Mosteiro de São Bento) serviria de espaço

(ou palco) para intensas deformações profanatórias (MARTÍN-BARBERO, 2003) criativizadas

pela juventude marginalizada afro-brasileira (e paulistana) naquele momento.

Ou seja, por meio da dança e da música (do ritmo e da poesia) traduzidas diretamente

dos bairros pobres nova-iorquinos para a desigual zona central paulistana, tais jovens

manifestaram reverberar as tradições do rap e hip-hop enquanto gênero musical e movimento

sócio e contracultural. E o fizeram também discursivamente, por meio de letras capazes de

relatar um cotidiano urbano e periférico. Ora, a partir da epistemologia das macumbas, podemos

supor que os terreiros, esquinas, rodas e barracões de escolas de samba (e por que não as casas

de show, clubes, teatros e demais espaços “amefricanizados”, como a igreja dos “homens

pretos”) expressariam a inventividade e as sabedorias dos afetados pela experiência da

“dispersão” e do “não retorno” (RUFINO; SIMAS, 2018, p. 42). Isto é, podemos supor que os

bailes familiares de São Paulo citados no documentário, bem como os bailes black (e funk) do

Rio de Janeiro, além de concertos de caráter popular em geral (do samba-rock à tecno-cumbia)

seriam de fato espaços de resistência cultural latino-amefricana via transe musical.

Este vai e vem cultural, ou melhor, estas apropriações, conforme o documentário do

diretor Amaral é um movimento que atravessa os tempos e até garante que o processo sincrético

resulte em algo novo. Pelo menos é este o depoimento do rapper Rappin Hood que aponta o

samba-rock como um ritmo exclusivo do Brasil, ao mencionar como exemplo a batida de violão

138

sui generis de Jorge Ben acompanhada dos músicos do Trio Mocotó. O mesmo Rappin Hood

promoveria - décadas após o advento do samba-rock (ou sambalanço) - um encontro

hibridístico-musical entre hip-hop e samba de partido-alto, sendo alcunhado por isso como

partideiro do rap 95. Nereu Gargalo então comenta o seu primeiro encontro com Jorge Ben após

este ter sido convidado a conhecer o Jogral, onde os músicos do Trio Mocotó se encontravam

trabalhando como músicos contratados da casa naquele período.

Segundo Zuza Homem de Melo, logo se descobriu durante a tal reunião artístico-

informal entre os músicos, que Nereu Gargalo, Fritz Escovão e João Parahyba disporiam do

complemento rítmico necessário para a levada de guitarra de Jorge Ben. E esta junção de

vivências músico-culturais, relata Parahyba à obra documental, teria inclusive, senão definido,

ao menos cimentado parte das reconhecidas identidades sonoras audíveis tanto em Ben, quanto

em Benjor e, atualmente, Ben Jor (o músico carioca muda de nome artístico por duas vezes, em

1989). De igual modo, o documentário mostra como Nereu Gargalo e os demais músicos do

Trio Mocotó logo buscariam carreira como banda (Figura 9), isto é, à parte de Jorge Ben,

reivindicando identidade musical própria.

Figura 9: Trio Mocotó anuncia carreira própria

Fonte: Print de “No Gargalo do samba”

95 Referência nossa à canção “Sou negrão” (2001), que incorpora elementos do samba ao hip-hop. Composta pelo

rapper Rappin’ Hood e com participação da sambista Leci Brandão, nos versos: “O rap é o novo partido. Rappin’

Hood que é o partideiro. Salve o samba. Salve o rap brasileiro.” Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=xFFrtYlbJIM; https://www.youtube.com/watch?v=xFFrtYlbJIM >. Acesso em: 5 dez. 2020.

139

Afinado à ideia de que a autonomia seria um passo relevante para consolidar a carreira

do músico, sem deixar de ressaltar a importância da religião para suas decisões, o documentário

musical relata o convite recebido por ele e o Trio Mocotó para que regravassem uma canção

inédita composta por Erasmo Carlos intitulada “Coqueiro verde”, lançada em 1970 pelo autor.

Pois antes de dar a resposta, Nereu conta que submeteria a regravação do referido tema ao

terreiro de umbanda de sua mãe, e esta, após incorporar a entidade chamada Vovó Cambina,

teria garantido ao sambista que “Coqueiro verde” em não muito tempo se tornaria o primeiro

êxito comercial do Trio Mocotó no Brasil.

Isto de fato ocorre (ratificando a previsão, digamos, espiritual da entidade) e a versão

registrada, além de apresentar a mencionada “rítmica dançante” singular dos samba-roqueiros

(mais acelerada e “suingada” que a original), acabaria incorporando da mesma forma a

estridência sônica das guitarras elétricas 96 - isto é, hibridizada tropicalística ou

antropofagicamente pelo Trio Mocotó. Outro sucesso do Trio destacado na narrativa ressalta o

elo deste com Jorge Ben, cuja estreia se daria no IV Festival Internacional da Canção, em 1969.

E assim como havia ocorrido dois anos antes com Caetano Veloso e os Beat Boys no Festival

da TV Record (em episódio mencionado anteriormente neste trabalho), a apresentação de

“Charles Anjo 45” defendida por Jorge Ben, Nereu Gargalo, João Parahyba e Fritz Escovão

teria gerado reações contrastantes do público presente no Maracanãzinho.

Ou seja, haveria por parte da plateia tanto aplausos calorosos quanto apupos intensos à

performance (MELLO, 2003, p. 231). A divisão do público poderia ser creditada à letra

transgressora, pois para Zuza Homem de Mello a temática da música remete a uma crônica

quiçá intitulada “Robin Hood dos morros”, em especial pelos versos “Charles, Anjo 45 /

Protetor dos fracos e dos oprimidos / Robin Hood dos morros / Rei da malandragem.” 97. De

todo modo, para o musicólogo, a referida canção se revelaria igualmente como uma canção

insubmissa à métrica cujas rimas, quase que inteiramente declamadas por Ben, fariam do autor

brasileiro, no futuro, espécie de precursor ou preconizador do gênero rap (MELLO, 2003, p.

230). Contudo, é sabido que o cantor Jair Rodrigues havia composto e gravado alguns anos

96 Menção nossa à regravação da canção “Coqueiro verde” (1971) realizada pelo grupo de samba-rock Trio

Mocotó, composta originalmente por Erasmo e Roberto Carlos. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=cp3ooB2rxpQ >. Acesso em: 5 dez. 2020. 97 Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=tfg9_rD5EXI >. Acesso em: 7 dez. 2020.

140

antes de Jorge Ben (em 1964) um samba de canto falado e métrica relacionável de maneira

ainda mais direta ao estilo criado (ou aperfeiçoado) e consagrado a posteriori pelos rappers98.

Por último, é preciso destacar ainda uma chave relevante na trajetória do sambista que

o documentário apresenta, considerando, em especial, as intermitências identitárias que rondam

as tipologias dos sambistas, ora encaixados em ideário de malandros afinados a uma vida

boêmia, ora desenhados por laços íntimos tradicionais, bastante articulados a uma vida em

comunidade. Enfim, no documentário o que existe é a “musa inspiradora” do sambista, sua

esposa Silvia São José que o vê como sujeito bastante apegado às tradições familiares. A fala

de Sílvia é proferida enquanto o casal prepara o café da manhã na cozinha, em uma cena que

busca retratar a cotidianidade do músico junto aos familiares; e logo vão surgindo outros

parentes de Gargalo, creditados como “família Nereu Gargalo” (filho e nora do sambista). Um

diálogo extrovertido é exibido em tela entre os presentes, referindo-se à futura celebração de

aniversário de casamento do músico com sua companheira, reforçando o caráter de harmonia e

de tradição familiar presentes, bem como de respeito à memória cultural e aos rituais

domésticos dos envolvidos.

4.2.3. Integração Latino-”amefricana” em No Gargalo do Samba

Percebemos que à exceção da menção feita por Nereu Gargalo ao músico Jair el Cubano

– que teria chamado o sambista para substituí-lo como ritmista na escola de samba Unidos do

Peruche (onde Nereu viria a ser diretor de bateria) –, não há no conteúdo fílmico elementos

claros que acenariam direta e coletivamente à integração latino-americana. Vemos, porém,

partindo da perspectiva de Lélia Gonzalez (1988) a ocorrência de um intercâmbio latino-

“americano” no Clube Jogral, onde Nereu Gargalo e outros artistas brasileiros de distintas

origens e estilos se integravam, por exemplo, com músicos negros estadunidenses. E assim,

misturando, pois, gêneros e subgêneros contemporâneos, tradicionais e populares do Brasil ao

jazz e blues e outros – gerando hibridismos sonoros “amefricanizados”.

Nesse sentido, a breve passagem documental em que Nereu Gargalo visita a Igreja

Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, ainda nos primeiros minutos de No Gargalo do

samba, suscita a potencial manifestação histórico-simbólica de integração “amefricana”

naquele espaço religioso; e esta teria sido estabelecida cotidianamente entre sujeitos trazidos à

98 Referência nossa à canção “Deixa isso pra lá” (1964), de Jair Rodrigues, considerada por artistas ligados ao hip-

hop (como Emicida) e críticos musicais como o primeiro rap brasileiro gravado. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=LRkyLtoITNc >. Acesso em: 7 dez. 2020.

141

força de distintos países da África (com suas respectivas línguas, costumes e demais

singularidades socioculturais abarcadas). E podemos supor que teria sido igualmente mantida

posteriormente pelos seus descendentes já nascidos na “Améfrica” (GONZALEZ, 1988) e,

especificamente, no Brasil-colônia, sendo, pois, a Igreja dos Homens Pretos espaço de culto e

resistência cultural – e de integração diaspórico-”amefricana”.

4.3. Isabel, La Criolla: paralelismos temporal e musical

Na sinopse do documentário musical argentino Isabel, la criolla (dirigido por Marcel

Czombos, 2018) é proposto um resgate da música pré-hispânica da América Latina e a

elaboração de um mapa sonoro de uma região situada hoje entre Argentina e Chile. Isabel, la

criolla tem como argumento-chave a defesa da América enquanto continente musicalmente

autônomo. A obra audiovisual revisa o trabalho realizado pela musicóloga argentina Isabel

Aretz (1909-2005) na década de 1940, no que se refere à gravação e documentação das

manifestações culturais autóctones provenientes de músicos da etnia Mapuche bem como os

chamados chinos. O argentino Mario Silva e o chileno Claudio Mercado são os dois

pesquisadores-discípulos (ou legatários) de Isabel Aretz responsáveis por promover a

mencionada investigação. Conforme apresentamos nos dois subcapítulos anteriores, aqui

também sistematizamos, nessa que é a última tabela (inserida abaixo), os elementos de

representação específicos deste documentário, que se enquadram nas categorias de análise

criadas para a investigação empírica desta dissertação.

Tabela 3 – Elementos de representação referente às Categorias de análise na obra 3

Categoria

Elementos de representação (exemplos)

Sub-

representação

1. Não há informação relativa a permissão do espalhamento das cinzas de Isabel

Aretz em solo Mapuche.

2. Valor cultural dos Mapuche e chinos perde espaço no documentário para a

abordagem dos musicólogos Mario Silva e Claudio Mercado sobre Isabel Aretz

3. Músicos e entrevistados indígenas não creditados pela produção.

4. Abordagem pouco detalhada e aprofundada sobre os músicos e danças Mapuche

e os bailes chinos frente a uma visão emocionalizada sobre as referidas culturas

5. Carece de contextualização político-econômico e sociocultural relativamente a

disputa histórica entre os Mapuche e o Estado.

Memória e

Identidade cultural

1. Apresentação musical de dois (2) músicos ameríndios de Zapala.

2. Entrevista com indivíduo de etnia Mapuche.

3. Ritual Nguillatun (música e dança transcendental).

142

4. Semelhanças e diferenças (mudanças e permanências) entre as experiências de

viagem de Isabel Aretz, nos anos 1940 e de Mario Silva, em 2018 na mesma região

(Lonquimay).

5. Fala de descendente indígena Ramón Cayumil Pillén em defesa da cultura

Mapuche. Instrumentos mapuche de sopro e percussão tocados por Ramón

Cayumil Pillén.

6. El Hombre Pájaro: mimetiza o canto e o caminhar (dança) dos pássaros da região

mapuche. Congregação de chinos intitulada Virgen de Andacollo.

7. Casa do etno-musicólogo argentino Mario Silva (memorabilia de Isabel Aretz)

8. Pesquisador Claudio Mercado detalha a estrutura do baile chino do qual participa

dançando com os nativos locais.

9. O pesquisador Mario Silva destaca o baile chino como manifestação de

resistência cultural, e cuja música, nas suas palavras, ressoa na atualidade da

mesma forma como há 500 anos.

10. A etno-musicóloga Isabel Aretz afirma que entrar em contato com tal música

tradicional da Argentina - e da América - arraigada à terra pode servir de ponto de

partida para iniciar um desenvolvimento musical autônomo na região.

Integração

latino-americana

1. Amizade entre Mario Silva e Claudio Mercado atravessada pelas pesquisas etno-

musicais de Isabel Aretz.

2. Mario Silva dançando em sua casa o som de música pré-colombiana.

3. Imagens de arquivo de Isabel Aretz interagindo com indivíduos Mapuche e

chinos, bem como filmando os músicos locais

4. Mario Silva e Claudio Mercado participando das festas Mapuche e chinas junto

aos músicos locais.

5. Documentário mostra a música oriunda da América, África e Ásia e em toda a

humanidade como um suposto condutor para o transe e para a mudança de estado

de consciência.

6. Pesquisador Claudio Mercado detalha a estrutura do baile chino do qual participa

dançando junto aos músicos locais.

7. Imagens de arquivo mostrando uma aparente integração cultural entre os músicos

descendentes dos povos originários e a pesquisadora argentina (Isabel Aretz).

Fonte: Quadro elaborado pelo autor.

4.3.1 (Sub) Representação em Isabel, La Criolla: ausências e silêncios ostensivos

Logo no início do documentário, ouvimos a voz de Isabel Aretz, ainda em off, comentar

sobre as músicas autóctones da América Latina como: las grandes ausentes de los estúdios

musicales de entonces, centrados solamente en la música europeia (as grandes ausentes dos

estudos musicais de então, centrados somente na música europeia - tradução nossa). Enquanto

isso, há um corte de edição exibindo uma fotografia em preto e branco de Isabel Aretz junto a

provável aluna tocando harpa (Figura 10): duas mulheres brancas e louras, aludindo esta

imagem à cultura europeia, erudita ou clássica (isto é, uma música aprovada pela dita

intelligentsia cultural). A cena parece corroborar (ou ilustrar) a fala anterior e, também, à

seguinte de Isabel Aretz, onde a pesquisadora critica a música ensinada (por imposição) pelos

autoproclamados “conquistadores” europeus aos povos originários e descendentes após invasão

143

e colonização das Américas, ignorando, assim, uma cultura ancestral que, nas palavras de Aretz,

havia reunido por milhares de anos músicas responsáveis por desenvolver as populações

viventes naquelas terras. Segundo relata Mario Silva para a Coleção Isabel Aretz do Museu

Chileno de Arte Pré-colombiano:

Isabel descubrió que en América, así como en Europa y Asia, también se había

desarrollado una particular estética musical, que los pueblos americanos crearon sus

propias músicas, com conceptos distintos a los que ella aprendió desde que comenzó

a tocar piano a los cinco años (SILVA , 2019, p.2).

Figura 10: Isabel Aretz analisa performance de aluna tocando harpa

Fonte: Print de Isabel, la criolla

Através do diálogo entre os pesquisadores - seja este natural ou encenado - o espectador

é levado a crer que o argumento da produção audiovisual estaria sendo construído naquele exato

momento. Existe ainda a adição de um possível elemento cativador (e de suposto mistério)

inserido ao roteiro referente ao que esperar na chegada a um território onde - de novo, em tese

- não haveria registro (sob a ótica de lentes brancas, digamos) de sua existência há pelo menos

setenta anos, segundo é dito por Claudio Mercado a Mario Silva. Isto nos remete a certas

análises empíricas oriundas de sujeitos dito brancos (via relação tão emocionalizada quanto

etnocentricamente verticalizada) no que tange a fenômeno cultural de representação oriunda de

outra identidade (isto é, não branca), tendo como exemplo o olhar antropológico sobre as

culturalidades dos povos “nativos” (CASTRO, 2002).

O problema, de fato, neste caso, não estaria em ver o nativo como objeto, assim como

a solução não seria simplesmente tê-lo como sujeito (que de fato o é). Em termos de perspectiva,

144

seria preciso compreender – como já·mencionado brevemente em capítulos anteriores - que

para o antropólogo (ou etnomusicólogo) não indígena, este outro sujeito na verdade trata-se de

um sujeito outro. Ou seja, um indivíduo detentor de lógica (cosmovisão, dinâmicas étnico-

culturais) própria e subjetiva. E o respeito do pesquisador em relação a essa “outridade” (ou

alteridade) relativa aos povos originários tornar-se-ia imprescindível enquanto utopia realizável

na busca não apenas por tolerância, mas por compreensão das representações e identidades

culturais existentes, inclusive sob uma perspectiva de integração latino-americana (CASTRO,

2002, p. 117 a 119).

A partir deste momento estaria sendo incorporada à peça audiovisual uma espécie de

saga pessoal e ritualística de Mario Silva a fim de transportar as cinzas de Isabel Aretz até o

antigo (e ancestral) solo estudado pela pesquisadora argentina. E quiçá seja simbólica e

inconscientemente uma ida ao “Eldorado Mapuche”, cuja riqueza músico-cultural de existência

supostamente incerta na atualidade – segundo é dito no documentário – seria o lugar elegido

como repouso eterno dos restos materiais de Aretz, seja enquanto homenagem ou mesmo em

cumprimento a um derradeiro desejo pessoal (não mencionado na obra) da investigadora.

Podemos questionar se o espalhamento das cinzas da etnomusicóloga em área Mapuche

não acabaria involuntariamente impondo-se sobre o desejo por respeito e autodeterminação dos

indivíduos oriundos daquela região. Sabemos que tal ato se dá com indubitável intuito de honrar

a figura de Aretz e o seu trabalho de resgate memorial por meio de captação, catálogo e estudo

de material audiovisual autóctone, bem como de defender uma herança ancestral. Vale lembrar,

contudo, que se trata de grupo étnico atravessado por invasão territorial colonialista, seja

imperial (espanhola) ou republicana (chilena e argentina). Isto nos remete ao apontamento

referente ao choque de reflexões e fazeres entre o que de fato pensa (ou faz) o indígena, e o que

o pesquisador supõe que esse sujeito estaria pensando - e a posteriori, o que faz o sujeito não-

indígena com sua percepção empírico-dedutiva (CASTRO, 2002, p.119). Enfim, não há no

documentário menção explícita referente à legitimidade, aceitação (ou possível rejeição) do ato

simbólico de Mario Silva em esparramar as cinzas de Isabel Aretz enquanto representação

corpórea da pesquisadora a fundir-se ao espaço Mapuche. Isto talvez tenha se dado por escolha

narrativa da obra documental (estando implícita, portanto, a ideia de que há consentimento dos

povos locais à feitura deste ritual). Outra hipótese seria a opção por ação unilateral do

pesquisador argentino (por distração ou despreocupação), considerando não haver necessidade

em se ponderar previamente sobre a perspectiva dos descendentes originários – embora donos

do território e dos rituais circunscritos a sua cultura.

145

No entanto, outra interrogação aparece quando Mario Silva se pergunta, pouco depois,

se a música pré-hispânica seguiria viva na América. A referida indagação feita pelo musicólogo

enquanto relato durante sua viagem direcionada ao dito desconhecido (descrito anteriormente

por Aretz) parece servir ao roteiro de Isabel, la criolla como elemento místico de suposto

mistério para o espectador. Embora talvez fosse mais adequado, por exemplo, se questionar

especificamente quanto à preservação, na atualidade, de tal manifestação sonoro-cultural

descoberta (sentido etnocêntrico) por Isabel Aretz na década de 1940, ao invés de se ampliar o

escopo, universalmente, para todo o continente em sua fala aparentemente essencialista (ou

generalista). Vale ressaltar que até este momento da peça documental (15 minutos,

aproximadamente) nenhum dos sujeitos indígenas exibidos via imagens de arquivo em preto e

branco havia sido nomeado ou creditado. Tampouco houve menção (ou informação) ou

aprofundamento sobre especificidades relativas às manifestações culturais (danças,

instrumentos, gêneros musicais) oriundas dos mesmos sujeitos autóctones.

Ou seja, os músicos Mapuche e chinos talvez pudessem ter recebido uma abordagem

mais interessada e igualmente informativa – e não apenas emocionalizada - por meio da obra

audiovisual (e tampouco para fins de mera categorização). Seria, assim, uma visão empática e

aprofundada tecnicamente à identidade local, abordando (mesmo que brevemente), sua origem

e contexto histórico e relevância sociológica bem como político-discursiva enquanto resistência

cultural. Isto serviria, em tese, como complemento inclusive ao preâmbulo documental, que

destaca a genuína admiração e afeto demonstrados pelos pesquisadores-condutores da história

relativamente ao material captado por Isabel Aretz. De toda forma, entendemos como

igualmente importante destacar a constante presença de uma musicalidade autóctone -

possivelmente gravada por Aretz, inclusive – a fazer parte como fundo sonoro durante o

documentário musical.

Os três pesquisadores latino-americanos se juntam então para assistir e comentar - em

frente a um computador - as mesmas imagens captadas anteriormente em vídeo e áudio por

Isabel Aretz as quais o espectador já se encontraria previamente intimizado. Enquanto arco

temporal, o espelhamento visual que a narrativa propõe quanto à repetição dos olhares

deslumbrados e elogiosos sobre o mesmo material já observado anteriormente reforçaria a

existência de uma obra cinematográfica produzida quase que exclusivamente sob a ótica

(empírica e empática) dos ditos acadêmicos brancos em relação aos indígenas. E ainda que o

documentário também busque flertar esteticamente com o, digamos, onírico e o transcendental

em sua abordagem fílmica, a narrativa parece apoiar-se majoritariamente a uma espécie de saga

146

(não ficcional) de retorno do homem branco (escudado pelo espectro de sua eterna mestra ou

mentora espiritual) ao místico lar dos “bons selvagens”.

Um enfoque indubitavelmente positivo sobre os sujeitos ameríndios e a sonoridade

manifestada por estes em sua localidade. No entanto, nos parece uma perspectiva de pouca

abertura à oralidade ou discurso referente a identidade cultural, resistência musical e memória

ou herança ancestral dos envolvidos. Além do pouco interesse em destacar a representação

originária dos que, em tese, seriam os protagonistas capazes de relações singulares com o

espaço adentrado e, também, ao redor de si, bem como entre as árvores e pedras, ou mesmo

entre a sua terra e os eventuais estranhos ao local.

4.3.2 Memória e Identidade Cultural em Isabel, La Criolla: imbricando presente e passado

Os já citados instantes iniciais do documentário musical argentino Isabel, la criolla, que

contempla a narração em off do etnomusicólogo argentino Mario Silva, serve de justificativa,

em termos narrativos, para introduzi-lo tanto como protagonista quanto como fio condutor entre

o legado das obras captadas in loco pela pesquisadora musical Isabel Aretz e o espectador. Silva

enfatiza a importância histórica de Isabel no campo científico enquanto musicóloga

especializada no estudo e na vivência das chamadas manifestações folclóricas sul-americanas.

O pesquisador argentino revela ainda ter sido - segundo suas palavras – surpreendentemente

escolhido para seguir o trabalho deixado como herança por Isabel (que não teve filhos) e,

sobretudo, como memória musical do subcontinente. Segundo o Museu Chileno de Arte Pré-

colombiano, Isabel Aretz:

(…) fue una compositora, pianista, etno-musicóloga y docente argentina de amplia

trayectoria. Radicada en Venezuela, fue pionera en la investigación etno-musicológica

en América del sur y Centroamérica, presidiendo desde su creación (1970) y durante

más de 15 años el Instituto Interamericano de Etno-musicología y Folklore (INIDEF),

actual Fundación de Etno-musicología y Folklore (FUNDEF). (MERCADO;

VILLALOBOS, 2019, p. 2).

Ainda durante os primeiros minutos documentais surgem imagens de arquivo (em cores)

de Isabel Aretz, provavelmente captadas na década de 1970 ou 1980 (supõe-se estes períodos

pela aparente idade amadurecida da musicóloga, além da textura do vídeo - embora não seja

especificado no filme), concedendo entrevista televisiva sobre sua trajetória musicológica. Em

seguida, o documentário escolhe lançar mão de novas imagens de arquivo de Isabel Aretz (agora

em preto e branco), seguramente mais antigas que as anteriores, onde a etnomusicóloga é

147

mostrada em ação, isto é, captando através de equipamento de gravação os sons (e sonoridades)

gerados por músicos a tocar instrumentos de sopro ameríndios.

Enquanto vemos os referidos sujeitos situados, ao que parece, em comunidade rural

(incluindo idosos e crianças), bem como mulheres a tocar instrumentos percussivos, a voz em

off de Isabel Aretz surge como recurso de fundo narrativo, relatando que sua mãe havia levado

a (futura) etnomusicóloga para uma conferência de música autóctone pré-hispânica. E nesse

local teria ocorrido então o primeiro contato da jovem Isabel Aretz com tal manifestação

cultural autóctone ameríndia (e pré-latino-americana).

Notamos que os primeiros minutos de Isabel, la criolla são utilizados para nos

apresentar cronologicamente Isabel Aretz, cuja história de vida e relação com a sonoridade

autóctone do continente é contada pela própria musicóloga através de sua oralidade resgatada

via recurso estético-audiovisual proveniente de material de arquivo. Esta relação entre os sons

ditos naturais - isto é, de “aura” intacta (BENJAMIN, 1973) - e a forma de captação artificial

destes é sugerida visualmente por meio da aproximação das lentes documentais sobre um

equipamento similar ao utilizado por Isabel em décadas passadas. O aparelho, todavia, se

encontra aparentemente adaptado - ou atualizado - para a tecnologia do século XXI, posto que

o gravador de áudio (ou captador de ondas sonoras) que vemos é digital, recurso inexistente na

primeira metade do século XX, como sabemos.

Ao exibir, pois, a reprodução dos sons captados na década de 1940 por Aretz na

atualidade - e por meio de uma aparelhagem que remete diretamente à original -, podemos supor

que se estabelece visualmente nesta cena uma relação de espelhamento temporal, atravessando

mais de sete décadas de estudos etnomusicológicos desde então, além da permanência da

essência cultural congelada em receptáculos eletrônicos. Um aspecto que ressaltaria,

igualmente, tanto a irrefreável evolução tecnológica na forma de captação e reprodução de

áudio, quanto a inalterável representação de identidade, memória e resistência musical dos

descendentes de povos originários latino-americanos. Ainda que, para Walter Benjamin, as

técnicas de reprodução de um objeto (artístico-musical, neste caso) causariam a desvalorização

de seu hic et nunc (aqui e agora) isto é, o atingiriam em sua autenticidade original enquanto

poder de testemunho histórico (BENJAMIN, 1973, p. 225).

Mario Silva comenta na cena seguinte, ainda em off, que esteve por cinco anos

restaurando pacientemente, junto a Isabel Aretz, os áudios gravados pela pesquisadora,

organizando em ordem cronológica o vasto trabalho de campo realizado na região situada entre

Chile e Argentina. Na sequência, o musicólogo é mostrado convidando por telefone o

148

pesquisador chileno Claudio Mercado para que este tomasse conhecimento de material

supostamente inédito de Isabel Aretz (e gravado nos anos 1940) junto a sujeitos de etnia

Mapuche. Enquanto Mario Silva fala ao telefone, o enquadramento o mostra de pé, mirando

uma parede contendo diversas peças ditas folclóricas, bem como fotografias de prováveis

registros de incursões passadas de Isabel Aretz, possivelmente em localidades onde a

pesquisadora produziria através dos anos a sua pesquisa etno-musical. Em seguida, vemos

ambos assistindo ao material gravado em preto e branco por Isabel Aretz, Claudio Mercado se

diz maravilhado com as imagens captadas dos músicos mapuches cantando e dançando, além

do chamado baile chino oriundo dos Andes (nos anos de 1941 e 1942).

Em cena subsequente, Mario Silva escuta a voz gravada de Isabel Aretz por meio de

fones de ouvido embutidos em aparelho de telefone celular. A pesquisadora relata suas

primeiras impressões ao entrar em contato com as músicas originárias do sul e do norte

(provenientes de uma região localizada entre Chile e Argentina, presumimos), bem como

oriundas também do Peru:

(…) pensei que havia encontrado um novo mundo musical, um ponto de partida que

poderia servir para a minha criação incipiente: entrar em contato com as raízes do meu

país (Argentina) e de meu continente. Tive que ir ao seu encontro. E entrar neste novo

mundo que me servisse de base para a minha criação99. (Isabel, la criolla, 2018, 12:33

a 13:05).

A cena indica, através das palavras de Aretz, o interesse genuíno da musicóloga em não

apenas analisar empiricamente as sonoridades autóctones e relatar posteriormente suas

impressões (bem como conclusões) referentes ao objeto investigado, mas sobretudo em

conectar-se àquela cultura a ponto de utilizá-la como fonte de inspiração de sua obra. Logo

depois, vemos Silva sozinho, sentado na penumbra de seu quarto. Entendemos que o

pesquisador argentino talvez estivesse se concentrando psicológica e espiritualmente para a

futura imersão empírica - e quiçá transcendental – que estaria prestes a experienciar em

território ancestral e sagrado, buscando ainda incorporar, resgatar ou se inspirar na memória-

presente de Isabel Aretz (como parte de um ritual preliminar ou preparatório).

A hipótese ritualístico-introdutória desta análise seria sensorialmente reforçada no

instante imediatamente após, quando Mario Silva é exibido sentado na varanda de sua casa

(Figura 11), ao lado de uma vasilha de alumínio (conhecida no Brasil como cuia) e de uma

99 No original: (...) pensé que había escuchado un nuevo mundo musical, un punto de partida que podría servir

para mi creación incipiente: entrar en contacto con las raíces de mi país y de mi continente. Tuve que ir a su

encuentro. Y entrar en este nuevo mundo que me serviría de base para mi creación (Tradução nossa).

149

garrafa térmica, ambos símbolos típicos do chamado mate argentino (similar ao chimarrão no

Rio Grande do Sul). Uma mangueira ligada esguichando água de forma contínua é igualmente

perceptível no centro da imagem, enquanto o antropólogo toca (ou sugere tocar) uma flauta de

sonoridade andina, mesclada ao som liquefeito a escorrer pelo chão de porcelana acinzentado

daquele ambiente. Assim, o espectador seria sinestesicamente estimulado por meio de efeito

sonoro capaz de simular ou insinuar - enquanto identidade cultural - o quão organicamente

arraigados (ou hibridizados) estariam os referidos elementos ou símbolos reconhecíveis à

natureza da região ao cotidiano urbano do musicólogo argentino. Mesmo que o som alusivo ao

fluir de riacho entre as pedras produzido em cena tenha sido obtido - via sonoplastia - por

mangueira de água (enquanto objeto cênico situado na varanda).

Figura 11: Mario Silva na varanda de sua casa

Fonte: Print de Isabel, la criolla

Em momento subsequente, digamos, onírico da obra documental, Mario Silva dança e

simula tocar uma flauta imaginária – cuja sonoridade é ouvida pelo espectador como música

extragiegética durante a cena, acompanhada por instrumento percussivo soando em ritmo

minimalista. Enquanto isso, a voz espectral de Isabel Aretz ressurge a explicar o processo de

captação e gravação das músicas, cujas possibilidades técnicas lograram documentar em

formato de áudio e vídeo o passado musical autóctone. Estaria claro naquele momento que o

resgate da memória musical dos Mapuche e dos chinos dividiria sua relevância e valor cultural

(enquanto abordagem documental) com a celebração do trabalho (e figura) de Isabel Aretz e

com a jornada pessoal (e espiritual) de Mario Silva. Tanto é assim que o citado ritual das cinzas

150

espalhadas é apresentado desde a saída de Silva do crematório privado em Buenos Aires com

urna de cerâmica em mãos, quando enfatiza que: hoy tengo la oportunidad de esparcir parte de

ella en las tierras por donde ella anduvo (hoje tenho a oportunidade de espalhar parte dela nas

terras por onde ela andou - tradução nossa).

Trata-se, portanto, de uma estrutura que recorre à presença da protagonista sempre

vinculada a Mario Silva, seja com este carregando a matéria etérea (as cinzas), seja criando

paralelos entre ambos. Uma sequência ilustra bem esta junção: um trecho sonoro-visual de

arquivo, onde a musicóloga descreve (em provável entrevista para a TV) o que seria a sua

primeira viagem realizada em dezembro de 1940, quando entraria em contato com tradições

músico-ancestrais da região. Tal relato de Aretz, realizado em tom romântico-aventureiro, com

ênfase à sua partida guiando um pequeno carro “em busca do desconhecido” (nas suas

palavras), isto é, rumo ao sul da Argentina, é entrecortado pela imagem de Mario Silva dirigindo

um automóvel por uma estrada vazia, com as nevadas cordilheiras andinas no horizonte e a tal

urna da etnomusicóloga no porta-malas. Ou seja, o documentário parece apresentar, de forma

reverente e emotiva ao espectador, elementos de dramaticidade na construção de seu roteiro nos

primeiros 15 minutos de produção, e estes remetem ao conceito de melodrama de Martín-

Barbero (2003) quanto à chamada retórica do excesso, citada anteriormente neste trabalho.

Nela, se buscaria, neste caso, uma reação emocionalizada do público, conectando-o com a obra

por meio de inserção à narrativa da (hibridizada) relação profissional e afetuosa entre a

pesquisadora Aretz e o assistente Silva - remetendo igualmente ao gênero folhetim (MARTÍN-

BARBERO, 2003).

Contudo, entendemos que Isabel, la criolla não teria acionado, ao que parece, artifícios

explicitamente caracterizáveis como sensacionalistas ou demasiadamente apelativos, digamos,

seja em sua estética ou discurso (por meio da trilha sonora, narração ou depoimentos de

indivíduos relacionados à Isabel Aretz, por exemplo). Dentro do arco narrativo proposto pelo

documentário, se estabelece, em tese, um espelhamento temporal - ou ponte músico-

antropológica - entre as duas viagens de mesmo destino, para que o espectador faça uma

construção mental (e emocional) em paralelo (ou transversal) do que seria o motivo principal

do roteiro: refazer o caminho de Aretz (através de suas memórias e elementos de identidade

captados) e descobrir se os sujeitos da região mantêm a cultura pré-colombiana viva quase oito

décadas após a primeira viagem da musicóloga. Tal busca vale-se da trajetória da pesquisadora,

articulando, deste modo, uma narrativa que permite contemplar o passado como “presente”,

avivando – digamos assim – a relação de valor que a pesquisadora delimita aos seus encontros.

151

Este aparece, graças aos muitos registros acionados, pela narração pretérita-espectral da

pesquisadora. Ela nos conta, entre outros relatos, que no município argentino de Zapala gravara

a música de um cacique local. Os ameríndios daquela região, segundo Aretz, cantavam aos seus

deuses para afastar “espíritos maus” causadores de enfermidades e outras calamidades.

Ademais, cantavam para se apaixonar, se despedir ou receber um viajante. Essa ambiência

sonora faz uma ponte com o presente: dois músicos locais, de pé, em um campo florido, tocam

um instrumento de sopro e uma caixa percussiva, bem como cantam e dançam. A indução é

imediata: trata-se da primeira imagem atual de possíveis descendentes dos músicos

anteriormente gravados por Isabel Aretz. Ambos estão vestidos com indumentária, digamos,

branca, isto é, camisa social de manga curta e calça jeans, porém, adornados com parte dos

elementos referentes às suas tradições, aparentemente. Resultado da mescla cultural sucedida

(e imposta pelos brancos) pelo menos a partir do século XX na localidade, mas fruto também

de prevalência - e resistência - da cultura dos povos originários na região.

Pouco antes dos 20 minutos de Isabel, la criolla, ocorre a primeira entrevista direta do

documentário realizada com um representante dos Mapuche (não creditado pela produção); este

se diz orgulhoso de sua origem e do estilo (ou forma) de vida enquanto descendente do referido

povo originário sul-americano. Mario Silva menciona, então, a cerimônia Mapuche Nguillatun

(ou Guillatún) realizada anualmente no Chile e na Argentina – com duração de quatro dias e a

céu aberto, segundo o pesquisador. Em novo depoimento, outro participante relembra a crença

de seu falecido avô ao mencionar que, segundo o seu antepassado, a sonoridade dos

instrumentos musicais autóctones seria capaz de expulsar as forças negativas e atrair as

positivas em um sentido espiritual.

A fala é precedida por imagens do ritual Nguillatun e segundo comentário de um de seus

participantes, a cerimônia tem por objetivo facilitar a conexão do sujeito com o “grande espírito

do universo” por meio de danças, ritmos, gritos e canções responsáveis por gerar uma onda de

energia e de equilíbrio, em suas palavras. A música revelaria, pois, uma função não recreativa,

mas transcendental. As lentes documentais exibem mulheres e homens Mapuche participando

em número equânime em termos de representação ritualística destes gêneros e, segundo Silva,

o canto sagrado dos indivíduos dessa etnia seria entoado exclusivamente por mulheres, e, dessa

forma, “visceral como parir um filho”.

Não há, porém, elementos informativos suficientes no documentário relativos ao

comentário de Mario Silva sobre as características da dança e de seu simbolismo (e dimensão)

para a cultura local. Contudo, podemos supor que a referida fala combinada às imagens dos

152

participantes dançando e se movimentando (a pé e a cavalo) em sentido - digamos - anti-horário,

seja uma forma sutil e breve do documentário em aludir às diferentes (e distintas) visões de

mundo constituídas entre a cultura branca (e ocidental) e a cosmovisão Mapuche e, também,

indígena em geral - detentoras de lógicas “outras” quanto à relação espaço-tempo100, como já

mencionamos em capítulos anteriores. (CASTRO, 2002).

Essa percepção se acentua quando ouvimos de um dos participantes do ritual mapuche

que a música oriunda da América, África e Ásia e em toda a humanidade seria um condutor

para o transe e para a mudança de estado de consciência, por meio de uma sonoridade monótona

(no mesmo tom) aliada à dança, e aos rituais locais. Em certa medida, tal perspectiva relaciona-

se com elementos inerentes à música popular emergente na América Latina surgida a partir da

segunda metade da década de 1960, no que se refere ao hibridismo antropofágico-musical

aliado à psicodelia e experimentação. Isto é, as transcendências via drogas psicoativas (da

maconha ao LSD), bem como a influência dessa estética músico-experimental (e lírico-

vivencial) inspirada nos Beatles a partir do álbum Sgt. Peppers (1967), e a uma vibrante e

aflorada contracultura latino-americana, conforme já discutimos anteriormente.

Mas, voltando, ainda para o ritual Mapuche, Mario Silva ressalta em tom supostamente

místico que existem fenômenos impossíveis de serem descritos em palavras, e estes seriam

igualmente comuns em cerimônias das quais o argentino costumava participar. Ato contínuo,

ao presenciarmos um canto em homenagem à chuva, o cenário externo - composto por céu claro

e azulado - dá lugar, de súbito, a nuvens escuras e pluviais. Isto sugere, claro, o teor enigmático

de causa e efeito referente à reunião Mapuche e a sua aludida conexão com a natureza local.

No entanto, há de se considerar que a montagem - por meio da edição de imagens via pós-

produção de Isabel, la criolla - possui meios técnicos capazes de induzir o espectador a crer em

tal suposta relação de causa e efeito abstrata, bem como de sugerir uma suspensão voluntária

da descrença quanto à cena. De todo modo, logo em seguida à chuva vemos a formação de um

arco-íris em plano aberto (Figura 12), e a partir do enfoque visual elegido pelas lentes

documentais, entendemos que o fato do fenômeno climático se encerrar sobre os participantes

do ritual Mapuche parece insinuar justamente uma espécie de conexão meteorológico-

transcendental e ancestral entre os indígenas daquela etnia e a natureza, bem como sobre o

território onde habitam e a eles pertenceria.

100 Referência nossa à matéria jornalística publicada pelo Portal G1, intitulada: “Estudo identifica tribo

amazônica que não conhece conceito de tempo” (2011). Disponível em:

< https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/05/110521_triboamazonia_tempo_pai >. Acesso em 10 nov 2020.

153

Figura 12: arco-íris sobre os Mapuche no ritual Nguillatun

Fonte: Print de Isabel, la criolla

O documentário não se furta em apresentar o pesquisador argentino possivelmente

emocionado enquanto abraça integrantes do ritual mapuche, alguns destes às lágrimas. Não

bastasse, Mario Silva é mostrado tocando um instrumento de sopro (provavelmente originário

daquela localidade) em frente a um lago - testemunhado pelas cordilheiras andinas, ao fundo.

E momentos depois, enquanto o pesquisador argentino seguia viagem, em Lonquimay (Chile),

a voz em off de Isabel Aretz revelava que a musicóloga e sua equipe haviam sido tratadas como

delinquentes na Alfândega local ao chegarem à cidade. Isto porque, nas suas palavras, nenhum

automóvel havia se atrevido a passar por ali até aquele momento. As imagens exibem

concomitantemente à fala pretérita de Isabel, o carro de Mario Silva cruzando a mesma estrada

(na entrada de Lonquimay) no presente, sem que houvesse, no entanto, qualquer abordagem

hostil da aduana chilena sobre o viajante. Isabel, la criolla.

E, com isso, acaba por estabelecer, por meio de paralelo temporal de mais de 70 anos

entre os dois eventos, as semelhanças e diferenças (mudanças e permanências) referentes às

duas experiências de viagem, tanto em termos de cenário (a disparidade entre os meios rural e

popular urbano), quanto das populações locais. E assim, logra-se transmitir ao espectador,

apoiando-se sempre nas recordações de Aretz, as possíveis (más) condições de deslocamento

encontradas à época pela pesquisadora em sua investigação na primeira metade do século XX

154

e o contraste visual (espelho invertido) em relação a Mario Silva conduzindo um automóvel da

atualidade e trafegando com facilidade por uma estrada asfaltada e sinalizada.

Isto é, um caminho gradativamente sendo urbanizado ou modernizado (sob uma

perspectiva branca) com o passar dos anos, como reflexo do inevitável avanço do Estado sobre

aquela região. Embora em outros momentos do documentário exista da mesma forma uma

espécie de diálogo ou sincronicidade narrativa de infortúnios durante a viagem envolvendo

Isabel Aretz (no passado) e Mario Silva (na atualidade), como problemas mecânicos com o

automóvel e dores físicas ocasionadas pelos longos percursos a pé, as aparentes coincidências

presentes sugerem a essa sequência, em termos de memória cultural, uma sensação tanto de

déjà-vu em Mario Silva, quanto de cumplicidade no espectador em relação às supostas

características místicas atemporais daquela localidade.

Para além desses aspectos centrados na ênfase ao paralelismo entre os pesquisadores -

a pioneira e o atual – há, como estamos ressaltando, a outra camada narrativa ocupada, mesmo

que com possíveis questionamentos como já colocamos, pelos “representantes” dos povos

originários. Apesar de ser uma presença algo ilustrativa em alguns momentos – como os dois

músicos referenciados – houve espaço para algumas manifestações mais contundentes,

vinculadas a atual situação dos povos originários. Uma delas ocorre aos 29 minutos do

documentário, quando o descendente Mapuche, Ramón Cayumil Pillén (informação

disponibilizada nos créditos finais do documentário) acaba sendo profere um breve e

contundente relato em tom de denúncia de cunho social, referentemente à preservação da sua

cultura, bem como enfatiza a opressão histórica do governo sobre aquela etnia indígena:

Estamos em um trabalho interessante de resgatar e reinterpretar a nossa própria

história desde uma perspectiva nossa, Mapuche, especialmente porque estamos nesta

condição atual depois que o Estado chileno nos despojou de nosso território; e esta é

a parte da história que não se conta e nós tratamos de recuperá-la e voltar a contá-la

(Isabel, la criolla, 2018, 29:00 a 29:32 - tradução nossa).

A luta pela valorização e preservação da memória social, identidade cultural e

sonoridade oriunda de gerações passadas (e oprimidas), tanto do Chile quanto dos demais países

sul-americanos, nos remete igualmente à cantora e compositora Violeta Parra (mencionada em

capítulos anteriores desta dissertação) e à pujante pesquisa musical feita pela artista chilena.

Um extenso trabalho de investigação empírica realizado por quase todo o território chileno e

servindo, paralela ou transversalmente, como a mais importante formação musical recebida por

Parra. O processo de pesquisa praticado pela cantora envolvia entrevista, anotação, gravação e

155

registro fotográfico de cantores e guitarristas oriundos de aldeias e zonas camponesas. Uma

elaboração análoga, enquanto método, à desempenhada por Isabel Aretz como musicóloga e

compositora junto aos Mapuche, salvaguardando as possíveis diferenças existentes entre a

música autóctone e camponesa enquanto fenômenos músico-culturais (GARCÍA, 2013, p.

27)101.

Mais do que pesquisar e catalogar as manifestações culturais camponesas, Violeta Parra

buscaria, na prática, dar voz a artistas invisibilizados através do seu canto e reflexão crítica,

denunciando a exploração do trabalho e demais injustiças e opressões do Estado. O fascínio

demonstrado por Violeta Parra no que tange ao resgate da memória musical e da poesia popular

chilena ocuparia a artista por mais de uma década, incluindo estudo, recriação e difusão de

cantos e versos mantidos até os anos 1960 por meio da divulgação oral de cantores e cantoras

naturais dos rincões do Chile (GARCÍA, 2013, p. 27 e 28). Parra lograria, assim, romper uma

tradição proveniente da música popular de seu país, habituada até então a cantar

majoritariamente sobre o amor e outros costumes cotidianos. A cantora acrescentaria ao folclore

da região, portanto, o sentimento sufocado de indignação popular contra as desigualdades no

Chile e na América Latina em geral, inspirando inúmeros artistas e plateias pelo continente; e

estes sujeitos acabariam se envolvendo como planta no muro e brotando como musgo na

pedra102.

Assim, apesar do documentário ter como foco vida e obra da pesquisadora argentina e,

como o seu trabalho reverbera hoje, é inegável especularmos o quanto a perspectiva espraiada

por Parra de uma música que evoca a resistência, não impacte as diversas obras que, como

Isabel la criolla, atravessam este território. O próprio documentário que estamos aqui focando,

acentua, mesmo que não tão fortemente, essa inevitável junção, pois logo após o curto discurso

101 É difícil não lembrar que, concomitantemente ao trabalho de Isabel Aretz, o escritor, musicólogo e historiador

Mário de Andrade, temendo o apagamento da cultura popular brasileira frente à mass media (representada pela

crescente difusão do rádio no Brasil), promoveria uma missão etnográfica com o propósito de catalogar

sonoridades da região norte e nordeste. Assim, a expedição promovida por Mario de Andrade lograria registrar

ritmos como emboladas, cocos, catimbós, repentes e sambas, bem como cantigas de roda, bois-bumbás, frevos,

cerimônias religiosas (como alguns rituais indígenas e os sincretismos do candomblé), entre outros. O material

registrado durante a chamada “Missão de Pesquisas Folclóricas”, em 1938, geraria posteriormente o documentário

intitulado “Mário de Andrade – Primeiros filmes etnográficos” (1997). Disponível

em: .< https://www.youtube.com/watch?v=ZwKWC_GmGtA >. Acesso em: 10 jun 2021). 102 Menção nossa à canção Volver a los 17 (1966) da cantora chilena Violeta Parra, nos versos: Se va enredando,

enredando / Como en el muro la hiedra / Y va brotando, brotando / Como musguiito en la piedra (Vai se

envolvendo, envolvendo / Como no muro a trepadeira / E vai brotando, brotando / Como musguinho na pedra –

tradução nossa). Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=3DKR4gb73Yg >. Acesso em: 20 dez 2020. E referência à

apresentação ao vivo da cantora argentina Mercedes Sosa junto a Caetano Veloso, Gal Costa, Milton Nascimento

e Chico Buarque de Holanda interpretando a referida canção em especial de TV (1987). Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=krEMw8E5ZAg >. Acesso em: 20 dez 2020.

156

de resistência cultural de Ramón Cayumil Pillén, apresenta ao espectador (ou seja, mirando

diretamente para as lentes documentais - em plano médio e fechado), instrumentos oriundos da

cultura Mapuche, explicando suas origens e tocando os mesmos, na sequência. Alguns desses

instrumentos mapuche de sopro tocados por Ramón seriam a flauta Pfilca, o Kul Kul,

proveniente do chifre de boi (Figura 13), a Trutruca, de sonoridade próxima à família dos metais

(trompete); além do Cultrún, instrumento percussivo dos mais simbólicos daquela cultura,

segundo Ramón. Esta sequência específica de Isabel, la criolla, buscando enfatizar a resiliência

político-musical protagonizada - sonora e discursivamente - por um dos descendentes diretos

daquela localidade, portanto suscita abordagem histórica mais qualificada para o espectador

sobre a identidade, a memória e a resistência cultural da etnia Mapuche.

Figura 13: Ramón Cayumil Pillén tocando Kul Kul

Fonte: Print de Isabel, la criolla

Além desse aspecto, há também a ênfase à relação dos Mapuches com a natureza,

confirmando um fluir harmônico com a vida que sustenta muito dos discursos críticos ao

chamado processo civilizatório, que teria perdido este lastro. Assim, apesar de um certo tom

anedótico de Mario Silva, este resgata um comentário alusivo à Isabel Aretz no qual a

pesquisadora se refere aos pássaros como os primeiros professores de música que os homens

tiveram. E estes teriam sido emulados através da observação de uma humanidade hábil em

aprender, enfim, a produzir sua própria música e melodia. Especificamente em relação aos

Mapuche, Mario Silva relata que para além do canto, a dança dos povos dessa etnia também

havia sido construída por meio da imitação-observação dos pássaros oriundos da região. Neste

momento, o sujeito ameríndio creditado na obra documental como El Hombre Pájaro (O

Homem Pássaro - tradução nossa) reproduz ou representa o que seria o resultado da

mimetização e interpretação do canto e do caminhar (tornando-se dança para os indígenas) dos

157

pássaros, lançando mão de exemplos do cotidiano. Trata-se de traços de identidade cultural

provenientes de uma herança Mapuche transmitida por meio dos ancestrais atentos à escuta do

canto dos pássaros e à fala dos animais em geral. Identidade assumida, inclusive, pelo grupo de

hip-hop Mapuche Wechekeche ñi Trawün, na canção Mapudungunfinge (2015). Esta, em versos

traduzidos para o espanhol, afirma: “Nossos ancestrais escutavam atentamente todas as formas

de vida / O canto dos pássaros, a fala dos animais” – tradução nossa 103.

Completados 41 minutos de produção audiovisual, os chamados bailes chinos enfim são

apresentados ao espectador. Nas palavras de Isabel Aretz, uma congregação de chinos intitulada

Virgen de Andacollo teria sido encontrada pela etno-musicóloga, e qualificada pelo feminino

china (ou chinita). Conforme Ciudad e Rohner S. (2014), a palavra chino não possui relação

direta com o chinês, sendo proveniente da língua quéchua, significando servidor, servente (ou

empregado, criado) e referia-se, originalmente, à região andina ao norte do Peru, estendendo-

se, posteriormente, aos demais países hispano-americanos.

Ainda de acordo com os autores, consta que as primeiras menções de chino presentes

no léxico colonial da região referem-se justamente ao trabalho da mulher enquanto “criada”,

expressão possivelmente herdada do Império Inca pelos colonizadores espanhóis no trato

(depreciativo) dispensado aos indígenas da região. Isto nos remete à menção feita em capítulos

anteriores deste trabalho, em relação à origem etimológica (e colonial) do termo “brasileiro”,

que denotaria - de forma igualmente desdenhosa - a profissão do sujeito submetido

laboralmente à corte portuguesa como mero extrator de pau-brasil, em vez de ter sido

considerado, de fato, um sujeito pertencente (enquanto nascido) àquela terra.

No entanto, as relações sociais presentes na vida cotidiana (pós)colonial acabariam

historicamente por tornar o Brasil de fato habitado por “brasileiros”, bem como a terra do samba

e do pandeiro e não apenas do pau-brasil. Assim como a antiga e desprezada criada china

passaria com o tempo a ser cortejada e convidada para dançar, como ressaltou o grupo de

cumbia peruana Los Mirlos na canção Chinita, ven a bailar (Chinita, venha dançar), de 1978,

cujos versos reforçavam o prazer desta atividade: Chinita, venha dançar / Chinita, venha

desfrutar 104. Ou seja, o referido vocábulo não tardaria em adquirir matizes afetivos e positivos

103 No original Nuestros ancestros escuchaban atentamente a todas las formas de vida / El canto de los pájaros,

el hablar de los animales. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=h1-OzMy7hpY >. Acesso em:

10 jun 2019.

104 No original: Chinita ven para bailar / Chinita ven para gozar. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=1q5DZAeSNRQ >. Acesso em: 20 dez 2020.

158

(CIUDAD; ROHNER S., 2014), o que a sequência do filme de Claudio Mercado projeta ao

detalhar a composição do baile chino (Figura 14) em enquadramento que valoriza a formação

das duas filas de flauteiros, dançando e tocando o instrumento de sopro, enquanto, ao centro,

músicos portando tambores vão dar o ritmo (ou pulsar) da dança. Segundo Mercado, o cântico

chino seria similar ao da chamada música ocidental, embora seus participantes não entendam

tal manifestação sonora como sendo música, mas sim algo proveniente de uma visão própria

ou peculiar acerca daquele fenômeno celebratório. Nesse sentido, os integrantes tampouco se

consideram músicos, mas chinos - isto é, de fato vivendo desde uma lógica-”outra” (CASTRO,

2002).

Figura 14: formação dos participantes do baile chino

Fonte: Print de Isabel, la criolla

É portanto, criando essas camadas narrativas alternadas, ora reverenciando o coletivo,

ora garantindo o protagonismo dos pesquisadores, que o filme articula sua narrativa que se

fecha, em seus instantes derradeiros, com uma cena ficcionalizada que, para nós, parece servir

de epílogo para o documentário musical: um automóvel antigo (“chevrolet imperial”, datado de

1935) na cor preta atravessa subitamente o caminho de Claudio Mercado e Mario Silva, levando

ambos a se afastarem para que o veículo pudesse seguir caminho em linha reta. (Figura 15). Em

tom de homenagem, a cena busca reproduzir simbólica, memorial e ludicamente, a pioneira

viagem de Isabel Aretz à região, na década de 1940. E, ao mesmo tempo, parece acionar tal

recurso estilístico e dramático com o intuito de representar - a partir da simulação ficcional -

uma suposta atemporalidade presencial (ou permanência espiritual) de Isabel naquela (estrada

de) terra na qual a musicóloga argentina se identifica. Além de simbolizar narrativamente o

“encontro” entre passado e presente, anteriormente alternado (ou hibridizado), desta vez há

159

interação de fato, pois mentora e discípulos “dividem” (ou atuam) na mesma cena. É como se

Aretz reexistisse não apenas por conta do uso extensivo de imagens de arquivo da pesquisadora

a permear – ou atravessar - os mais de 50 minutos documentais, mas também como espectro

(via encenação) enquanto aparição lírica e utópica de uma figura cuja relevância dentro dos

estudos da música pré-hispânica transcenderia as noções conhecidas (na cultura ocidental, pelo

menos) de tempo e espaço. Não à toa, o enquadramento muito aberto, valoriza o amplo espaço

natural, projetando, idilicamente, a ideia de infinitude, ou “sem-tempo”.

Figura 15: automóvel alusivo a Isabel Aretz entre Mario Silva e Claudio Mercado

Fonte: Print de Isabel, la criolla

4.3.3 Integração Latino-americana em Isabel, La Criolla: memória presente

Como já destacamos, nos primeiros minutos do documentário são exibidas cenas de

arquivo em que vemos Aretz interagindo com a população da região. O contraste visual em

relação ao fenótipo e a indumentária dos indígenas e da musicóloga de origem branca revela,

porém, uma aparente integração cultural entre as partes ou, pelo menos, uma certa intimidade,

confiança e respeito mútuos, conquistados, seguramente, após seguidas visitas da

etnomusicóloga argentina àquela localidade, presume-se. Isto se justificaria na cena seguinte,

onde vemos uma mulher sentada e posicionada em frente ao microfone (em pedestal), e

deixando-se captar pelo equipamento de gravação de Aretz, que estaria possivelmente em busca

do canto, relato ou poesia provenientes de uma culturalidade oral inerente àquela artista - ou

entrevistada - nativa (não creditada pela obra documental). Ou seja, há uma lógica de encontros

160

que o documentário aciona para construir sua narrativa, algo que, de certo modo, pode ser

observado em outras cenas desde o início, como a que Mario Silva apresenta Claudio Mercado,

antropólogo e musicólogo chileno, bem como conhecedor e estudioso da obra de Isabel Aretz,

argumentando que esta seria para ambos uma ponte estendida entre o passado e o presente.

Mas, não se trata, apenas, de junção ou interlocução de pessoas: há, em Isabel, la criolla,

a valorização dos objetos ou produções que são sínteses concretas desse movimento em direção

ao outro. Em outras palavras, o documentário também age na perspectiva da visibilidade tanto

dos laboriosos trabalhos de recolhimento (e memória) realizado por Aretz – por exemplo,

quando coloca em cena as dezenas de caixas de isopor que estão no apartamento do argentino,

contendo fitas-cassete gravadas por Aretz durante suas incursões etno-musicais por Chile,

Argentina, Bolívia, Peru e outros países da América Latina. Assim, é possível supor que Silva,

como Aretz, se sentiria naturalmente propenso, de fato, a buscar uma conexão ou integração

com essa cultura ancestral, embora partindo de outra perspectiva vivencial e existencial.

O mesmo olhar pode ser dirigido a Claudio Mercado pois este, ao assistir pela primeira

vez parte do material audiovisual captado por Isabel Aretz durante suas pesquisas com Mapuche

e chinos nos anos 1940, demonstra estar especialmente interessado no resultado de um possível

nexo (enquanto troca e conexão ancestral, supomos) entre sujeitos chinos e mapuches. Isto, na

prática, caracterizaria tanto a ligação hibridística entre as referidas etnias quanto, quiçá, uma

integração pré-colombiana entre culturas autóctones da região.

Esse investimento em passagens que projetam o horizonte da integração latino-

americana é trabalhado no filme em várias sequências, especialmente naquelas em que Isabel

Aretz relata seus diversos encontros com os povos originários, como a visita feita ao filho de

um cacique em San Ignacio (Argentina). Como se trata, neste caso, de relato oral (em off), a

produção “cobre” sua voz com imagens de arquivo (em preto e branco), relacionadas,

provavelmente, à referida localidade descrita pela pesquisadora. Esta e outras cenas do

documentário que mostram a pesquisadora integrando-se aos indígenas, de alguma forma nos

remetem ao contexto brasileiro quanto às expedições realizadas pelos irmãos Villas Bôas no

dito Brasil profundo - também na década de 1940; isto enquanto rima visual, por meio de

imagens inéditas à época, captadas em preto e branco. Nelas, os sertanistas são mostrados se

integrando com distintas etnias indígenas até então desconhecidas por indivíduos brancos,

161

inspirando a criação do Parque Nacional do Xingu, nos anos 1960105. Por outro lado, a ação dos

irmãos Villas Bôas suscita críticas e contrapontos contundentes hoje, quanto ao papel histórico

dos sertanistas, comparados inclusive a capitães do mato do Estado, e cujo referido Parque do

Xingu, nesse sentido, representaria pejorativamente a atualização ou reprodução histórico-

alegórica da bíblica “Arca de Noé”, nas palavras de Ailton Krenak. Literalmente:

Os irmãos Villas-Bôas eram os capitães do mato do Estado, não queriam que os índios

voltassem a ser índios. Para os Villas-Bôas estava muito bom os índios do Xingu; as

17 etnias que eles tinham colocado na arca de Noé eram para ficar lá, os outros, o

dilúvio tinha que levar. Se não levou, é porque tardou demais. De certa maneira eles

achavam que foi um retardamento da modernização do Estado brasileiro, ter deixado

que tanta borda e periferia se esgueirasse pelas beiras de rios, igarapés, pés de serra e

continuasse resistindo (KRENAK, 2018, s/p).

Mas, a despeito de prováveis críticas similares à de Krenak quanto ao papel de Aretz ou

outros pesquisadores, o fato é que as lentes documentais mostram o pesquisador argentino – de

agora - dançando ao som de música pré-colombiana, rodeado cenograficamente por imagens

que remetem àquele universo (fotografias antigas em preto e branco de ameríndios). A

sequência, aparentemente ficcionalizada, talvez buscasse motivar no espectador uma percepção

ou sensação de que o antropólogo argentino não apenas atuaria (em termos cênico-ficcionais)

na referida sequência fílmica, mas também buscaria vivenciar (ou reviver) ludicamente tal

manifestação cultural, a fim de senti-la, experienciá-la subjetiva e teatralizadamente em seu

cotidiano (MAFFESOLI, 1998), sem delimitar, no entanto, uma fronteira entre o sentido e o

simulado, bem como entre o antropólogo social e o antropofágico musical.

Em tese, visando não impor uma interação, mas propondo (ou intencionando) de fato

uma abertura sinestésica à integração cultural latino-americana. Tal também nos parece quanto

ao já citado ritual Nguillatun, quando o musicólogo argentino Mario Silva é mostrado atuando

de forma integrada junto aos participantes da festividade Mapuche. É dito da mesma forma pelo

etnomusicólogo (e visto pelo espectador na tela) que os indivíduos ameríndios oriundos daquela

etnia dançam girando em círculos - e no sentido direita-esquerda, cronologicamente contrário

ao de um relógio. Entendemos, pois, que embora estejam partindo de lógicas e origens culturais

opostas, digamos (ao menos no que tange às noções branca e indígena relativas ao tempo), a

cena denota a possibilidade de conexão e integração cultural entre pesquisador e ameríndio.

105 Conforme produção da TV Câmara de São Paulo, intitulada: Orlando Villas Boas e a Construção do

Indigenismo no Brasil (2016). Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=heJLfHRjAmQ >. Acesso

em 20 dez 2020.

162

Do mesmo modo, ou seja, em processo que valoriza uma integração que se daria não só

pelo encontro, mas necessariamente pela vivência, é projetada pela impossibilidade da narrativa

oral conseguir traduzir as experiências. Por exemplo, na visão antropológica de Claudio

Mercado, existem características no baile chino impossíveis de serem explicadas em palavras,

sendo, portanto, preciso vivenciá-las enquanto experiência por meio do envolvimento direto;

isto é, atuando como observador participante, isto é pelo processo “no qual um investigador

estabelece um relacionamento multilateral e de prazo relativamente longo com uma associação

humana na sua situação natural com o propósito de desenvolver um entendimento científico

daquele grupo” (MAY, 2001, p.177 apud PROENÇA, 2017, p. 9).

Em sintonia, portanto, ao que afirma, o pesquisador chileno surge com as roupas

representativas do baile chino, dançando e tocando a flauta Pfilca junto aos demais integrantes

chinos, ambientado ao ritmo e à música (baseados na repetição exaustiva de notas, do

instrumento de sopro bem como da coreografia china) dos participantes da localidade (Figura

16). Deste modo, estaria o forasteiro branco a contribuir individualmente por meio de

integração local a partir de um hibridismo músico-cultural e empírico-participativo, deixando-

se envolver abertamente ao dito transe proposto pela cerimônia china, buscando, assim,

absorver a essência (a)temporalmente ancestral daquela manifestação de cunho transcendental.

E quiçá ensejando, através das lentes documentais, a observação participante do espectador.

Figura 16: Claudio Mercado toca flauta Pfilca em baile chino

Fonte: Print de Isabel, la criolla

163

Em tese, este seria o momento-ápice (ou pelo menos um dos momentos-chave) da obra

audiovisual argentina, isto é, quando as identidades branca e indígena confluem através da

música e da dança. Mario Silva considera o baile chino como resistência cultural pura, cuja

música seguiria ressoando no Aconcágua (Chile) como soara 500 anos antes. E conclui que a

sonoridade pré-hispânica permanece viva com os seus descendentes presentes na América

Latina atual. À sua voz, soma-se à de Isabel Aretz que, em derradeira participação oral, ressalta

(ou preconiza) que o ato de entrar em contato com a música tradicional da Argentina - e da

América - arraigada à terra, poderia servir como ponto de partida para se penetrar as raízes da

região e iniciar um desenvolvimento musical autônomo no continente. Asserções que são

simbolicamente seladas na última cena de Isabel la criolla: a imagem em plano aberto e

distanciada do pesquisador Mario Silva toma a tela espalhando, sozinho, as cinzas de Isabel

Aretz em solo Mapuche. Um último gesto que, aparentemente, buscaria eternizar uma

integração da musicóloga argentina relativamente à memória e à identidade daquele local.

4.4. Discutindo os resultados

Após analisarmos neste capítulo o conteúdo das três produções audiovisuais - apoiados

pelas categorias sub-representação, identidade cultural e memória social, e integração latino-

americana - inferimos que as obras de fato expressam (ou promovem) tais palavras-chave

fundamentadas e objetivadas desde a parte teórica desta dissertação. E partindo da observação

destas categorias representadas graficamente, logramos identificar, inclusive, tanto traços de

sub-representação quanto de memória, identidade (e resistência) cultural em uma mesma cena

ou elemento estético exibido em tela. Assim, a figura do cowboy equatoriano Delfín Quishpe

em Hasta el fín de Delfín mereceria duplo olhar analítico. Sabemos, contudo, ser possível

conjecturar tal paradoxo sob uma perspectiva histórica referente ao processo de formação das

identidades culturais manifestadas no popular urbano da América Latina. Um cotidiano de

sujeitos habituados a trafegar por não-lugares (BAUMAN, 2001), andando pelo mundo como

homens lentos (SANTOS, 2006) dispondo de remoto controle sobre suas vidas, mas capazes de

atrair opostos e acordes em desacordo enquanto transitam “entre dois lados de um lado”, como

assinalou Adriana Calcanhoto na canção Esquadros, nos versos: "Transito entre dois lados de

um lado / Eu gosto de opostos / (...) Remoto controle". 106

106 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ngu8kYgRH_o. Acesso em: 15 mar. 2021.

164

Porém, quanto ao episódio dos músicos descendentes dos Mapuche mostrados trajando

roupas brancas (digamos) em Isabel, la criolla, a conclusão parece mais simples. Isto é,

entendemos que a sofisticação do racismo latino-americano busca manter indivíduos negros e

indígenas condicionados a segmentos subalternizados e explorados por meio de eficaz ideologia

do branqueamento veiculada e disseminada pelos meios de comunicação de massa e demais

aparelhos ideológicos e culturais-industriais tradicionais. À medida que tal método reproduz e

perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente seriam os únicos verdadeiros

e universais, se estabelece de fato o racismo por denegação (ou disfarçado) brasileiro

(GONZALEZ, 1988, p. 73).

Isto explicaria o mito impregnado no Brasil desde o século XIX, referente à defesa de

uma ilógica superioridade intelectual do imigrante europeu em termos de capacidade (ou

sofisticação) laboral em relação ao trabalhador brasileiro (negro, majoritariamente) que

esconde, em sua essência, ou teoria, a ideologia do racismo por denegação, utilizada na prática

como política eugenista de embranquecimento da população. Além de dominação de corações

e mentes via soft power107, substituindo o poderio bélico por estratégias de imposição

linguística, esportiva, religiosa, e cultural em geral. E a melhor forma de combater tal ideologia

racista (ou mesmo o mencionado “poder suave”) se daria através da resistência advinda da força

do musical-cultural (GONZALEZ, 1988, p. 74).

Portanto, torna-se patente afirmar que o descendente de povos autóctones não pode ser

tratado como sujeito menos originário - ou maculado em sua essência - por ter escolhido (ou

obrigado, via colonialismo interno) a se integrar à lógica e aos costumes socioculturais e

cotidianos dos brancos. E isto, inclusive, em zonas rurais ou urbanas, como ocorre na cena do

documentário musical Isabel, la criolla, envolvendo músicos trajando camisa social e calça

jeans. Assim como os ameríndios que decidissem viver em separado - ou não integrados aos

brancos citadinos - deveriam, por óbvio, dispor deste direito, bem como do respeito do Estado.

O próprio termo “isolado”, comumente utilizado pela mídia de massa para descrever grupos

sociais que desconheçam a existência ou se neguem a interagir com descendentes de seus

algozes, demonstra um viés ideológico e racista quanto à autoexclusão ou alienação de sujeitos

tidos como involuídos - ou despreparados para interagir com os autointitulados evoluídos. E,

107 Referência nossa à matéria jornalística intitulada: “Soft power da cultura também é arma de países

colonizados, diz autor”, publicada na Folha de S.Paulo (2018). Disponível em:

< https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/05/soft-power-da-cultura-tambem-e-arma-de-paises-

colonizados-diz-autor.shtml >. Acesso em: 20 dez 2020.

165

assim, desconsidera-se o fato de que os indígenas não precisam ou não dependem

dessa outra cultura em sua cotidianidade.

Por outro lado, percebemos de igual modo diferenças entre os três documentários quanto

à formação de suas tabelas criadas para receber elementos de representação referentes às

categorias de análise. A sub-representação, por exemplo, apareceria em maior quantidade em

Hasta el fín de Delfín (6 vezes) do que em Isabel, la criolla e “No Gargalo do samba” (5 vezes

cada). Por outro lado, a memória e identidade cultural seriam exaltadas, em tese, mais

constantemente no brasileiro “No Gargalo do Samba” (15 vezes) do que nas obras equatoriana

(12) e argentina (10). E exemplos referentes à categoria integração latino-americana, por fim,

estariam aparentemente mais presentes em Isabel, la criolla (7 vezes) do que nos documentários

equatoriano e brasileiro (2 vezes cada).

Diagnosticamos, ainda, nas referidas peças audiovisuais, quanto ao contexto

cinematográfico latino-americano – bem como ao neorrealismo cotidiano (TORRES, 2001) -

características relacionáveis ao gênero híbrido conhecido como docuficção, responsável, como

sugere o referido termo, por transitar estilisticamente entre o documentário e a ficção. Isto é,

introduz elementos ficcionais ou fantasiosos a uma obra documental como recurso narrativo a

fim de reforçar a representação do real de forma artística. Isabel, la criolla nos parece

contemplar em certa medida tal conceito hibridístico-cinematográfico em momentos pontuais,

sobretudo durante a já citada aparição do automóvel ligado a Isabel Aretz, em tese um aceno ao

gênero docuficção enquanto recurso estilístico. Também observamos breves inserções de

elementos reconhecíveis ao gênero docudrama (ou drama documentário) nas demais obras

audiovisuais analisadas, em maior e menor grau (melo)dramático, respectivamente, a saber: de

maneira explícita e atrelada à narrativa em “No Gargalo do samba”, por meio da citada

utilização de atores contratados para representar tanto o protagonista real quanto outros, bem

como reproduzir dramaticamente situações episódicas relatadas por Nereu Gargalo e inseridas

alternadamente ao fazer documental em Hasta el fín de Delfín, especificamente quando Delfín

Quishpe e Rosario se deixam filmar interpretando a si próprios em cerimônia de votos

matrimoniais (ao que parece) de maneira aparentemente onírico-artificializada – como aparente

recurso de apelo dramático apoiado à narrativa (a ser acrescido durante a fase de pós-produção).

Vale lembrar que Delfín já havia atuado dramaticamente para o videoclipe de Torres gemelas

(2006), justamente a peça viral de sua autoria responsável por alavancar a carreira artística do

músico equatoriano globalmente.

166

É possível identificar em Hasta el fín de Delfín a aplicação de elementos referentes à

narrativa ficcional (e melodramática) para a construção do roteiro, sobretudo no que se refere

ao enfoque utilizado sobre o relacionamento entre Delfín e Rosario e às distintas dinâmicas

apresentadas pela direção ao abordá-lo e encaixá-lo na trama. Assim como ocorre em No

gargalo do samba, obra que exibe cenas teatralizadas, intercaladas por depoimentos reais (ou

melhor, referentes à perspectiva de quem os expõem) dos entrevistados e do próprio artista-

protagonista. No entanto, ressaltamos que tanto a peça audiovisual oriunda do Equador quanto

à do Brasil se apresentam inexoravelmente contidas no gênero documentário musical, embora

agreguem fundamentos ficcionais e dramáticos à sua estrutura cinematográfica hibridizada. Já

Isabel la criolla aparentemente busca construir uma narrativa de dramatização cíclica.

Ou seja, além da rima temporal proposta entre os caminhos traçados por Aretz nos anos

1940 e os re-traçados por Mario Silva e Claudio Mercado na atualidade, o roteiro documental

abarcaria à viagem um arco (ou caminho) de liber(t)ação das cinzas da etno-musicóloga. Assim,

Mario Silva teria se oferecido a atuar como condutor e ao mesmo tempo guia responsável pela

transição de uma espécie de prisão crematorial - pertencente ao mundo dos “brancos” – até o

encontro ou libertação do corpo e espírito de Isabel junto a uma terra dita sagrada, ou musical

e culturalmente “elevada” (mística) para os descendentes de povos originários locais. A obra

audiovisual argentina nos oferece a aparição constante do espectro de Aretz através de imagens

e áudios de arquivo e ao mesmo tempo que esta informa o espectador sobre o (seu) passado,

logra dialogar com os pesquisadores Mario Silva e Claudio Mercado no presente.

Assim, vemos a partir da narrativa documental construída em Isabel, la criolla o

pesquisador chileno buscando convencer o argentino a viajar até região patagônica do Chile a

fim de encontrar os Mapuche e chinos. E Mario, por sua vez, se valeria de tal convite-impulso

para espalhar os restos mortais de Aretz como ato simbólico, ao final da experiência naquela

região. Uma sequência de (f)atos, portanto, que sugere relação natural de causa e efeito entre

os musicólogos, embora abarque alguma ficcionalidade (ou artificialidade) por meio de

diálogos e cenas teatralizadas a servir como dispositivo narrativo. Ou seja, a produção buscaria

narrativamente convencer ao espectador de que o compartilhamento de material dito inédito

(em posse de Mario Silva) com Claudio Mercado bastaria enquanto mote para justificar a road

trip subsequente. Por outro lado, as reações do argentino - hesitando, inclusive, à proposta do

amigo chileno em (re)visitar os indivíduos ameríndios - parecem de fato naturais (isto é, não

encenadas), em que pese a abordagem estética melodramática utilizada pela produção

audiovisual nesse momento.

167

Entendemos, contudo, que assim como as demais obras deste corpus, Isabel, la criolla

não se enquadraria ao gênero docudrama, mesmo lançando mão de elemento (melo)dramático

em uma das últimas cenas exibidas no documentário musical, onde, de fato, se produz uma

brevíssima e explícita intervenção ficcional responsável por atravessar (hibridizar) o fazer

documental. Uma travessia literal, diga-se, quando somos expostos a um carro idêntico (quiçá

o mesmo) ao veículo manejado por Isabel Aretz durante as primeiras incursões etnográficas

desta na década de 1940, ressurgindo veloz e indomável, a cruzar o caminho de Mario Silva e

Claudio Mercado. Está claro, da mesma forma, que ambos participam de encenação montada

para o documentário, atuando por alguns segundos com intuito de homenagear a musicóloga (e

músico-inspiradora), enquanto caminham por estradas argentinas, chilenas, mapuche ou chinas

(ou por todas elas).

Supomos também que na exibição de algumas passagens externas - ou seja, com foco

na natureza local (representada na região mapuche entre Chile e Argentina) - Isabel, la criolla

buscaria transmitir ou reproduzir de alguma forma ao espectador parte da dimensão histórica e

da alegada transcendentalidade ritualística promovidas por etnias pré-colombianas, captando

igualmente saberes e manifestações culturais alheias ao conhecimento ou compreensão do

sujeito não-indígena. Talvez a mencionada cena apresentada nos instantes finais da obra

audiovisual (de novo: o chevrolet imperial de Aretz em movimento) seja uma simulação

simbólico-artificializada da “aura” de Isabel em ação.

Isto é, in loco e quiçá em espécie de eterno retorno (looping imperecível, desafiando a

relação espaço-tempo) às manifestações músico-culturais as quais a pesquisadora se manteria

espiritualmente devedora, bem como conectada - embora já corporificamente desconectada.

Assim como versa o grupo de rock equatoriano La Máquina Camaleón, celebrando essa

duplicidade indelével na canção Conectado (2014), nos versos “Eu estou conectado / porque

estou desconectado (…) não foi tão ruim, aprendi a ser mais leve” (tradução nossa)108. Ou,

talvez a cena quiçá buscasse representar a própria simulação quimérica de uma suposta essência

originária e atemporal tanto da região quanto dos respectivos povos que nela vivem, além dos

seus possíveis efeitos e afetos delirantes psicodélico-transcendentais ou transe-estéticos sobre

os etnomusicólogos argentino e chileno.

Em termos de conexão, digamos, virtual (via ciber-indivíduo), o fato da fama e “re-

conhecimento” (MARTÍN-BARBERO, 2003) do artista andino Delfín Quishpe terem se dado

108

No original: Yo estoy conectado / porque estoy desconectado (…) no fue tan malo, aprendí a ser liviano.

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=FgH2Ka0k2rE >. Acesso em: 15 mar 2021.

168

através da reprodutibilidade digital de sua música e vídeo (YouTube), acabou por conferir efeito

duplo (e equidistante) em termos de afeto à sua persona artística, como mencionado

anteriormente neste estudo. O aparente consumo irônico de uma classe média (majoritariamente

branca) urbana e conectada à internet estaria antagonicamente polarizado em relação ao

consumo identificado de uma classe popular (majoritariamente não-branca) urbana e conectada

presencialmente (in loco) aos concertos do artista andino. Talvez o que os sujeitos afetados por

Delfín Quishpe sintam, de fato, e através dos efeitos de sentido gerados pelo cantor de

tecnofolclore, seja a sua “aura” representada acima, atravessada ou à parte da própria música

em si (e não apesar, mas para além dela).

Ou seja, propondo uma identificação progressivamente (re)constituída através da

renovação das mesclas culturais (e histórico-ancestrais) “aludíveis” (alusivas e audíveis) à

cotidianidade. Isto propiciaria subsequentemente a Delfín, inúmeras apresentações musicais

nos âmbitos nacional e internacional. Ou seja, entre likes e (muitos) deslikes, o artista-produto

acabaria por receber avaliações diametralmente opostas a depender da origem do olhar (e da

audição), como uma Vênus de Milo (BENJAMIN, 1973, p. 228) “vira-latinizada” em “Andino

de Guamote”, esculpido no alto das cordilheiras equatorianas: ora cultuado, ora amaldiçoado.

Porém, embora consideremos que o público atual de Delfín Quishpe perceba a sua

“aura”, o cantor constantemente se apresenta (como demonstrado no documentário) em espécie

de show-karaokê, ou seja, cantando sobre uma base pré-gravada dos arranjos de suas canções

(seja por economia na contratação de músicos, com ensaios, transporte de instrumentos etc.).

Curiosamente os bares com karaokê são considerados passatempo preferencial dos moradores

da capital Quito (HARRIES, 2020, s/p). Uma característica local que talvez sinalize, para além

da aparente contenção de gastos e comodidade logística do cantor, também a reprodução de um

traço cotidiano presente no imaginário cultural do país. Podemos admitir que se a artificialidade

produzida pelas telas e janelas digitais responsáveis por promover artisticamente Delfín de fato

apagavam (ou filtravam) a sua “aura” (BENJAMIN, 1973), o público cativo de seus shows

tampouco encontraria a mesma na dita experiência hic et nunc (aqui e agora). Partindo de tal

lógica, a figura ou persona de Quishpe soaria igualmente artificializada tecnologicamente ao

vivo pelo auxílio dos reprodutores áudio-digitais em detrimento do uso de instrumentos,

digamos, reais.

Nesse sentido, Delfín Quishpe demonstraria uma dualidade existencial, hospedando o

opressor em seu cotidiano (FREIRE, 1987, p. 27), seja ao propor no videoclipe de Torres

gemelas uma abordagem fatalista - tanto lírica quanto visual - frente aos eventos ocorridos em

169

um país estranho à sua realidade de sujeito oprimido, ou na escolha por uma identidade visual

norte-americanizada. No entanto, é possível conjecturar que Delfín Quishpe seja um artista que

a despeito de ter se tornado ou não americanizado, tem logrado se apropriar de signos de forma,

digamos, antropofágica. Em certa medida, é possível dizermos que o vaqueiro oriundo de

Chimborazo talvez seja um autêntico herdeiro involuntário (ou natural) dos hibridismos sonoros

propostos tanto pelos pioneiros da Tropicália quanto por demais músicos populares latino-

americanos a partir dos anos 1960. Assim, o tecnofolclore seria, enquanto música pop ameríndia

(e não apenas andina) um exemplo de neo-antropofagismo cotidiano do século XXI – ou

melhor: uma autêntica re(a)presentação antropofágica cotidiana dos povos originários do século

XVI, capazes de preparar um histórico banquete que incluiria o consumo de Sardinha109.

Dialogando ainda com a perspectiva paulo-freireana, é plausível imaginar, por outro

lado, que a dinâmica oprimido-opressor inclua também a atuação do sujeito branco e de classe

média latino-americana no cotidiano. Em linhas gerais, é comum vê-lo buscando forçosamente

associar-se a um símbolo, objeto ou indivíduo oriundo de país hegemônico - sobretudo dos

Estados Unidos - a fim de suplicar pela simpatia e aprovação deste, além da clara intenção em

distanciar-se cultural e fenotipicamente dos próprios conterrâneos de origem étnico-regional

supostamente distinta à sua. Assim, imerso no american dream profundo e idíli-colonizado, ou

quiçá aturdido e ressentido com sua condição, acaba se desiludindo por não viver na ”Paris do

Caribe”, mas - inspirado aqui na fala de Sérgio, protagonista de em um dos marcos

filmográficos do cinema latino-americano dos anos 1960, “Memórias do Subdesenvolvimento”

(1968), de Tomáz Gutiérrez Alea -, onde acredita ser a ”Tegucigalpa do Caribe” 110.

É provável, pois, que tais sujeitos orgulhosos de suas supostas raízes europeias sejam

vistos por yankees, quando muito, como “mexicanos brancos”, como ocorre no brasileiro

“Bacurau” (2019), filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, em que um homem e

uma mulher brancos, oriundos do Rio de Janeiro e de São Paulo postulam ser incluídos

etnicamente junto a um grupo de estadunidenses, alegando serem originários de uma região rica

do Brasil, com colônias de origem italiana e alemã, em alusão às regiões sudeste e sul do País.

Os indivíduos estadunidenses contestam a afirmação dos brasileiros com risos incontidos e

109

Referência nossa ao primeiro bispo do Brasil, Dom Pedro Fernandes Sardinha, que teria sido devorado por

indígenas caetés em um ritual (ou banquete) antropofágico ocorrido no litoral nordestino em de junho de 1556.

Disponível em: .< https://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/report_1.htm >. Acesso em: 10 dez 2020. 110

Fala do protagonista Sergio: “E pensar que antes [da Revolução cubana] a chamavam [Cuba] de Paris do

Caribe (...) agora parece mais uma Tegucigalpa do Caribe”. (tradução nossa - 14:34 a 14:55). Disponível

em: .< https://www.youtube.com/watch?v=O_mHBlwnGPs >. Acesso em 20 abr 2021.

170

irônicos, e rebatem: “Brancos? olha o nariz dela, os lábios, não são brancos (...) eles são como

‘mexicanos brancos’, talvez”. 111

Quanto aos recursos estéticos e/ou estilísticos, avaliamos que em No Gargalo do samba,

a escolha em captar a totalidade das aparições musicais de Nereu Gargalo em sessões

aparentemente de estúdio ou em palco vazio (sozinho ou com banda) talvez tenha intensificado

na obra um caráter estético demasiadamente artificializado, isolando visual e acusticamente a

potência artística do sambista. Isto se agudiza ao compararmos a obra documental brasileira -

enquanto gênero cine-biográfico - às manifestações músico-culturais audiovisualmente

captadas em Hasta el fín de Delfín, obtidas de forma íntima (e emocionalizada) tanto no estúdio

de gravação quanto nas apresentações ao vivo, transmitindo, assim, a interação entre plateia e

músico.

Outro aspecto que também projeta uma escolha que dialoga, de certo modo, com clichês

que talvez merecessem ser mais problematizados em “No Gargalo do samba”, é a forma como

a obra esquematiza a escolha do protagonista pelo pandeiro, vinculando-a a uma travessia

biográfica que começa com cenas em preto e branco teatralizadas (e ficcionais), que buscam

reproduzir algo do passado cotidianizado de Nereu Gargalo desde criança - descendo, por

exemplo, a ladeira onde morava com bola de futebol em mãos. São sequências que vêm

acompanhada pela voz de Gargalo relatando que, no morro, as escolhas que lhe haviam sido

apresentadas o fariam - nas suas palavras - ou buscar um “emprego normal” (jogar futebol) ou

o “outro lado”, deixando implícita a oferta de envolver-se com atos ilícitos ou criminais. Ato

contínuo, em nova cena teatralizada (em preto e branco), um diálogo de forte teor simbólico é

travado entre Gargalo e o seu irmão mais velho, Máximo, resultando na escolha do pandeiro

por parte do futuro sambista ao invés de um revólver.

Através de um contexto hibridístico-cultural podemos correlacionar a escolha do

sambista-umbandista Nereu Gargalo pelo pandeiro enquanto instrumento-transe(estético) como

sendo o símbolo de futura união (ou mescla) entre as suas vivências sincrético-religiosas e

musicais-ancestrais erigidas no cotidiano. Ademais, este mesmo pandeiro (e o seu tocar

inspirado na umbanda) serviria como chave capaz de abrir caminhos por meio de

futuros “caboclamentos”112 sonoros através de uma suposta e aludida conexão músico-

111

Disponível em: .< https://www.cinemaescrito.com/2019/08/47-gramado-2019-bacuraru-o-homem-cordial/ >.

Acesso em: 15 ago. 2020. 112 A partir de uma perspectiva dita macumbeira, o caboclo é visto pelo enfoque do encantamento, existência e

natureza dos seres, denominado “caboclamento”; e este é definido através de um aparente paradoxo, onde a morte

171

cultural “transigente”113 (e transcendental) com os não-vivos e representando, pois, a

subjetividade e a (celebração da) vida cotidiana via sonoridade hibridizada de Gargalo. Em

contrapartida, o revólver oferecido a Nereu Gargalo (e preterido pelo sambista) simbolizaria

uma escolha “intransigente”114 e, portanto, exclusiva do mundo dos vivos (posto que não teria

utilidade entre os mortos), embora representasse inexoravelmente a objetividade e a morte –

decretando (histórica e socioculturalmente), como sabemos, sobretudo a morte de quem nasce

“amarelo, marrom, vermelho ou preto”115.

No que se refere à abordagem e escolha narrativa das três peças documentais, por mais

que haja opiniões de distintos entrevistados (do músico ao musicólogo), estas se mostram

homogeneamente positivas e confortáveis (e celebratórias) em relação a Nereu Gargalo e,

também, quanto à memória de Isabel Aretz, em Isabel, la criolla. No entanto, em Hasta el fín

de Delfín busca-se aparentemente um enfoque humanizado e menos controlado (em termos de

roteiro) sobre o cotidiano de ex-celebridade involuntária (e meme global) da internet em sua

rotina nos lugares onde seguiria popular (ou “re-conhecido” como artista). Nesse sentido,

somos apresentados a (melo)dramas pessoais, conflitos e fragilidades do artista durante a

exibição da obra audiovisual. Ademais, presenciamos, como já destacamos em outro momento

do trabalho, o próprio processo ou Método (DELDUQUE, 2012) criativo doloroso de Quishpe

ao transformar artisticamente as agruras familiares em versos de algumas de suas canções

recentes. Um autêntico arco dramático, cuja ruptura do casal ocorre na metade da obra e a

resolução dos problemas íntimos entre a esposa e Delfín se dá, de fato, no fim.

Finalizando, destacamos, por último, que em “No Gargalo do samba”, o momento mais

natural (e emocional), digamos, do artista, acontece ainda nos primeiros minutos documentais,

em um contexto de resgate de memórias cotidianas e de seu passado inclusive mais afastado

é entendida como possibilidade de vida, enquanto a vida, por sua vez, tornar-se-ia experiência cotidiana de morte

(RUFINO; SIMAS, 2018, p. 99). 113

Ainda sob o ponto de vista das macumbas, a morte física se abriria como oportunidade enquanto canal de

interação de um ente não vivo (chamado e trabalhador) para com os vivos, representado através de transe

manifestado pelo caboclo que, por meio deste, seria capaz de atravessar (e hibridizar) mundos, possibilidades,

práticas e perspectivas (RUFINO; SIMAS, 2018, p. 100). Não obstante, uma dita razão intransigente (refratária

ao transe) considera tal ato ou mobilidade como possessão, descontrole e irracionalidade. Por óbvio, os sujeitos

transigentes seriam os considerados dispostos ao transe (RUFINO; SIMAS, 2018, p. 100). Podemos conjecturar,

inclusive, que tal perspectiva macumbeiro-dicotômica se relaciona de algum modo às reflexões trazidas em

capítulos anteriores sobre “razão branca” e “emoção negra” de Lélia Gonzalez (1988), bem como a oposição entre

homens “velozes” e “lentos” de Milton Santos (2006). 114 Idem. 115 Referência nossa à canção Born dead (“Nasce morto”, 1994) do grupo de thrash metal estadunidense Body

Count, nos versos: Born yellow / Born brown / Born red / Born black / Born dead! (“Nasce amarelo / Nasce

marrom / Nasce vermelho / Nasce preto / Nasce morto!” – tradução nossa). Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=hyPzoZr9zP4 >. Acesso em: 20 jan 2021.

172

(embora notemos que bastante próximo e presente na fala emocionada de Gargalo). Já em

Isabel, la criolla, o musicólogo argentino Mario Silva também se comove e chora (no terço

final do documentário musical), porém não por dramas pessoais referentes ao seu passado ou

presente, mas supostamente por conta da beleza ritualística da manifestação de resistência

cultural indígena a qual estuda, observa e participa há muitos anos. Seria uma emoção

representada não apenas por elementos e símbolos resgatados através da memória, mas pela

memória contida em si mesma enquanto potência sociocultural, capaz de conservar e evocar

saberes e rituais (músicas, cantos, danças) tão pré-coloniais quanto atemporais.

173

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo destas páginas buscamos refletir, a partir dos corpora teórico e empírico

questões relativas à representação, identidade, memória e resistência cultural latino-americanas.

Entendemos que indagar sobre ser ou não ser latino-americano deveria dar-se como questão

superada entre os viventes da região. Tupy or not tupy? Yes, nós temos (uma República de)

bananas para dar e vender (e alugar) em um País onde a Amazônia ainda é vista como o jardim

do quintal – como tão bem “batizou” o cantor de rock brasileiro Raul Seixas116 - colonial.

Contudo, dialogando (e subvertendo) com um dos aforismos atribuídos a Millôr Fernandes

(1923 – 2012) é possível afirmar que o Brasil de fato possui um enorme passado pela frente.

Porém, nesse sentido, tal pretérito-horizonte deve ser confrontado e debatido no tempo atual

com intuito ou finalidade de sedimentar uma ainda claudicante identidade nacional e -

paralelamente – reivindicar sua latino-americanidade. Um país igualmente condenado a

esperançar, posto que contém em seu complexo e diversificado arcabouço (ou legado) cultural

as estruturas “outras” para derrubar outras “estruturas”, e não apenas táticas cotidianas para

moldar-se e sobreviver às lógicas pré-estabelecidas por meio das intempéries de passados,

presentes e futuros impérios liberais. Nessa trilha, o futuro também se encontra contido na

compreensão do passado e deve ser disputado no presente, ou seja, nas ágoras dos “agoras”

cotidianos.

Assim, ressaltamos que a escolha deste corpus, plasmado na tríade documental-musical

(oriunda do Brasil, Argentina e Equador) foi definido a partir da percepção do quanto eram

sensíveis e sensibilizavam – produtos culturais e artísticos que são - a atemporalidade das

heranças culturais, sejam elas indígenas-originárias, afro-diaspóricas ou hibridizadas da

América Latina, temas que discutimos nos primeiros capítulos do trabalho. Também são obras

que enfatizam, ou estão inseridas em uma proposta que visa enfatizar – na medida que ressaltam

o ideal da integração latino-americana - a relevância histórica, sociocultural e político-

ideológica na formação (em formação) das identidades dessas, digamos, “grandes pátrias”. Isso

porque entendemos que a única alternativa possível ao mainstream, por exemplo, seja a não

conformação ou não acomodação em meio às engrenagens da indústria cultural. E para tanto

há de se reunir forças - isto é, fazê-lo coletivamente - ensejando uma rebeldia com causa (e

efeito prático). Utopia de horizonte possível e tangível de se concretar, dar forma e materializar.

E o primeiro passo para tanto seria “vira-latinizar-se”. Sabemos, da mesma forma, que até o

116

Na canção “Aluga-se” (1980): “A Amazônia é o jardim do quintal / E o dólar dele paga o nosso mingau”.

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=sX3b_pNmS-w >. Acesso em: 15 fev 2021.

174

século XV nenhuma pessoa havia nascido latino-americana, mas, usando a expressão cunhada

por Simone de Beauvoir (1949), dizemos que acabaria “tornando-se” latino-americana por meio

de um processo histórico atravessado por violências, extermínios e uma dita mestiçagem

imposta por opressores sobre oprimidos de distintas origens e vivências. Estes últimos, por

outro lado, acabariam sendo culturalmente estigmatizados e relegados a subfunções e

submissões jesuíticas pré-determinadas por Estado e Igreja. Um “batismo de sangue”117

vertido das “veias abertas da América Latina” (GALEANO, 2008) e do ventre fecundo de Abya

Yala, expressão originária do povo Kuna que significa “Terra madura, Terra Viva ou Terra em

florescimento” e que, segundo Porto-Gonçalves (2009), vem sendo utilizada, supostamente

desde 1507, como autodesignação dos povos originários do continente enquanto contraponto

ao termo América.

Também assentada nesta trilha do contraponto, é preciso marcar que desde a

“libertação” e posterior formação das repúblicas e federações independentes no continente -

livres do subjugo imperial europeu, embora ainda submetidas à (neo)colonialidade britânica e

estadunidense (e outras) na atualidade - a “latinidade” tornar-se-ia bandeira

sociocultural, política e ideológica em defesa e afirmação da soberania ainda em disputa na

região e, no Brasil, especificamente, quanto à identidade. Também seria dispositivo de

autoestima e solidariedade entre povos oprimidos em condições tão singulares quanto

espelháveis e compartilháveis entre si - e não apenas na América do Sul ou Latina, mas em todo

o Sul global.

Por outro lado, a despeito da concretude do que acabamos de assinalar, é preciso não

esquecer que com mais de 350 anos de escravidão o Brasil mantém dívida histórica impagável

com os sujeitos pertencentes a variados grupos étnico-culturais do continente africano. E, na

impossibilidade de mensurá-la em dinheiro, tal dívida deve ser traduzida em respeito e

solidariedade118, e não apenas com perspectiva de auxílio, mas de ser auxiliado, de aprender,

colaborar, reforçar laços históricos e valorizar intercâmbios culturais, científicos, tecnológicos

e institucionais – isto é, via cooperação “Sul-Sul”, no contexto das relações internacionais.

117

Referência à obra literária intitulada “Batismo de Sangue: guerrilha e morte de Carlos Marighella” (1982),

escrita por Frei Betto. 118

Referência nossa a um trecho de entrevista coletiva concedida por Luiz Inácio Lula da Silva após discurso

realizado no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (São Paulo), no dia 10 de março de

2021 (2:17:30 a 2:18:45). Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=znVarc96evE >. Acesso em: 10

mar 2021.

175

Pensemos, portanto, em uma nova realidade racional e nacional para o Brasil, com foco

na consolidação de uma identidade e integração brasileira e latino-americana, capaz de

atravessar o discurso através de uma linguagem igualmente voltada para o campo memorial-

emocional, mesmo quando efetuada por sujeitos presenteísta-racionais e institucionais. Uma

narrativa que abarcaria – especificamente no Brasil - distintas formas de re-interpretação de

processos cognitivo-comunicacionais, sendo que estas atuariam tanto paralela quanto

transversalmente na vida cotidiana, com viés de transformação (do imaginário) social, seja na

cultura da mídia (música, cinema, TV, teatro, literatura), seja na educação (infantil, infanto-

juvenil e adulta), ou na (geo)política e economia (com foco na soberania nacional e regional, e

nas relações internacionais entre países do Sul global).

Então, em termos de aplicabilidade comunicacional de referida linguagem emocional,

propomos conceitualmente a reflexão sobre a possibilidade de inspirar-se nas teorizações

relativas ao suposto re-conhecimento melodramático latino-americano mencionado algumas

vezes durante esta dissertação e sua capacidade de afetar a coletividade e o senso comum. Isto

se daria no aprofundamento e aperfeiçoamento estratégico-ideológico da abordagem

emocionalizada no que tange à utilização tanto dos aparelhos midiáticos pertencentes à

hegemonia quanto dos independentes, ocupando trincheiras “vira-latinas” nos primeiros e

linhas de frente nos segundos, como táticas de combate nesses e demais ambientes em disputa

e cotidianamente inseridos nas chamadas guerras híbridas atuais.

A “vira-latinidade” entrincheirada serviria como espécie de ferramenta simbólico-

ideológica de pertencimento, memória e identidade histórica, racionalmente baseada em teorias

e epistemologias sociológicas, porém trabalhada com dispositivos culturais emocionalizantes

presentes no popular urbano e, na prática, implantados de maneira simples e orgânica no

cotidiano. Buscaríamos, assim, ações individuais e coletivas protagonizadas por sujeitos

socioculturais de diversas matrizes estéticas, tanto em relação à música quanto ao cinema

documental verde-”AmarElos”119, cuja lírica contenha crítica, bem como o texto contemple

contexto. Enfim, uma utopia concretizável de viés transformador que busque estimular o estar-

junto através de uma socialidade crítica.

Pensamos, inclusive, ser tão possível quanto válida - no âmbito do imaginário social e

cultural - arriscar a reinterpretação de algumas expressões tidas como basilares como

119

Referência nossa ao documentário musical intitulado AmarElo (2020), produzido pelo rapper brasileiro

Emicida e disponível na plataforma digital Netflix. Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=FQ9hCN0ZYSg >. Acesso em: 10 jun 2020.

176

construção de uma hipotética e alquebrada identidade nacional - a começar, talvez, pelo termo

saudade. Sem abandonar a crença na razão e na empiria, arriscar-se-ia, nesse caminho, substituir

no cotidiano a representação psicossocial melancólica atribuída à saudade como espécie de

nostalgia espectral, permanente e subordinada ao já vivido, por um acionamento memorial do

agora já passado, porém, igualmente presente. Isto é, suspenso e livre frente à cronologia

temporal ocidental, ao vivo e em cores (bem como aromas, sabores, texturas), além de material-

funcional, potencialmente inspirador-transformador.

Na visão do cantor e compositor Carlos Lyra:

(…) no meu entender, a saudade pode até ser triste, mas nunca melancólica como sua

contrapartida internacional, a nostalgia. Esta, ainda que provoque emoções, sempre

me deixa um gosto de algo incompleto, inacabado ou que não se encaixa, como já o

fez em outros tempos. (…) Assim é que tenho saudades de Vinícius e da época áurea

da Bossa Nova. Mas é a nostalgia que me bate quando lembro do Brasil nos anos 60,

o que poderia ter sido e não foi. E afinal, por melhores recordações que tenha de minha

adolescência e juventude, nunca aceitaria nenhum acordo que me fizesse voltar àquela

época a não ser que pudesse carregar comigo todo o cabedal de experiência acumulado

até hoje. Posso até sentir saudade do que já fui, mas não me arrependo de não ser mais. (LYRA, 2020, s/p)

Além da divisão que o músico estabelece entre a saudade (como memória positiva) em

contraposição à nostalgia (fator negativo e olvidável), nos parece interessante a condição

colocada por ele quanto à viabilidade de retorno ao passado, ou seja: apenas caso a referida

imersão temporal do músico lhe permitisse retornar ao presente com as experiências pretéritas

(da boemia bossa-novística à militância do Centro Popular de Cultura, digamos). E, assim,

aventando a possibilidade de reunir-se com o tempo, mas em outro nível de vínculo – vale

lembrar aqui, com Caetano e sua “Oração ao Tempo” (1979)120 -, ao invés de apenas murmurar

que já “chega de saudade”, chegar a outra visão fática sobre esse sentimento. Por outro lado,

entendemos que vazios ou apagamentos culturais e existenciais (e coloniais) perpetuados por

séculos contra sujeitos oprimidos poderiam vir a ser acessados com novas miradas e

preenchidos através do resgate das vivências e lutas cotidianas (via cosmovisões

“saudadeanas”, digamos) relacionáveis à vida social no Brasil e na América Latina e renegando,

dessa forma, o pesar “ibericanizado” do Velho Mundo que parece querer manter os indivíduos

em um déjà vu de lamento, tristeza, dor.

120

Destaco os versos: "Ainda assim acredito / Ser possível reunirmo-nos / Tempo, tempo, tempo, tempo

/ Num outro nível de vínculo / Tempo, tempo, tempo, tempo".

Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=qNlPLFsBNbc >. Acesso em: 10 jun 2021.

177

A nossa provocação passaria, pois, por incentivar a apropriação da referida expressão

originária de Portugal a fim de descolonizá-la e, por fim, “vira-latinizá-la”. Para tanto,

ensejamos, nesse sentido, identificar e superar, progressivamente, a reprodução acrítica e

histórico-verticalizada no cotidiano da lógica etnocêntrica (mesmo quando involuntária) dos

países autointitulados desenvolvidos sobre as nações latino-americanas. E quiçá promover uma

espécie de teoria da independência aliada às cosmologias libertadoras (na economia, política,

cultura e outros), suscitando uma ótica não submissa e individualista, mas emancipada e

coletivizada, alterando o desejo pelo chamado desenvolvimento de poucos pelo chamado ao

envolvimento de muitos. Entendemos, dessa forma, que “vira-latinizar-se” constitui-se em um

devir ou processo sociocultural (r)evolucionário de descolonização constante do sujeito via

conscientização do ser (verbo e sujeito) e não apenas do estar - ou star(-system) – coletivo. Isto

é, reivindicando autonomia e soberania frente ao mundo e entendendo que as soluções para os

problemas seculares da América Latina devem partir dos próprios indivíduos da região, isto é,

um autodescobrimento da América.

Esta, talvez, seja a chave que nos levou à edição do La Música. Como ponto de partida,

admitimos ao iniciar esse percurso que ainda havia a necessidade de subjetivar o conceito de

identidade latino-americana com intuito de buscar referências no imaginário (e na memória)

social da região. Assim, pensando para além de categorizações socioculturais e político-

econômicas, conseguimos supor que a musicalidade latino-americana esconderia espécie de

jogo de aparências cuja essência ou “aura” artística estaria por vezes imperceptível e inaudível

em seu estado supostamente natural e autóctone, intocado, como as danças indígenas nativas e

africanas trazidas via diáspora.

E isto valeria não apenas para ritmos como samba, cumbia, salsa, rumba, baião, mambo,

carimbó, forró e outros de representação afro-brasileira, afro-latina e afro-indígena, mas

também bossa nova, samba-rock, tecnobrega, cumbia psicodélica ou o próprio rock e pop

latino-americano. Ou, ainda, para gerações musicais inspiradas pelas hibridizações

antropofágicas promovidas pela Tropicália e demais movimentos contra-culturais da região. E,

talvez, até mesmo para os que renegassem tais influências, desde que estivessem buscando a

radicalidade de uma expressão artístico-sonora não-padronizada na estética e insubmissa no

discurso, embora comercialmente desejável enquanto peça de reprodução industrial-cultural

para o consumo de massa (popular e urbano) estimulado na região.

Seguindo este caminho, mas agora já atravessado pelo convívio intenso com o corpus

dessa dissertação – os três documentários – pudemos ir consolidando, enquanto debate com os

178

autores acionados e embate com as obras, que a vivência “vira-latina” estaria explícita no canto

(idioma, timbres, pronúncia) e na própria maneira de se tocar instrumentos musicais, embora

os arranjos elegidos para tanto sejam originalmente considerados importados do Velho Mundo

europeu ou dos Estados Unidos. É interpretada também por meio da lírica (neorrealista)

cotidiana, seja política ou confessional, inspirada tanto na oralidade de trovadores rurais quanto

no melodrama urbano (MARTÍN-BARBERO, 2003), muitos destes, inclusive, ainda

marginalizados e atuando nas frestas da cotidianidade. A identidade, assim, tornar-se-ia

organicamente audível e perceptível tendo como base a essência do artista enquanto sujeito e

ator social.

E nas sociedades onde tal música fosse disseminada, esta seria simbolicamente captada

e absorvida pelo indivíduo-ouvinte afetado à obra em seu dia a dia. Isto se daria justamente a

partir das fusões de culturas tão diversas quanto potencialmente confluentes, capazes de

conceber (sub)gêneros musicais “vira-latinamente” representativos da contemporaneidade

dessa região, sendo possível libertar a essência colonizada e fetichizada pelo já mencionado

“padrão Miami”. Um fenômeno decorrente, pois, de uma espécie de “racistocínio” estereotípico

estrutural, responsável por impedir que haja maior identificação imagético-sonora do brasileiro

junto às demais manifestações culturais oriundas da América Latina – plenamente possível a

partir da construção sinestésica e afetivo-memorial de uma inerente identidade cultural latino-

americana via ritmos derivados de mesclas dissonantes reconstruídas e re-conhecidas em toda

a região.

Em outras palavras, lembrando que havíamos pretendido com esta pesquisa diagnosticar

como as representações sociais de identidade, resistência e integração latino-americanas seriam

abordadas atualmente nos documentários musicais da América Latina (a partir da análise do

corpus), concluímos que o objeto evoca distintos símbolos, estéticas, abordagens e discussões

representativas sociocultural e politicamente na região. Ademais, os documentários musicais,

cada qual trazendo elementos inerentes à sua singularidade enquanto objeto fílmico, mostram-

se legítimos representantes do Programa DOCTV enquanto obras responsáveis por suscitar a

integração e o intercâmbio cultural latino-americanos através da teledifusão.

No que tange ao recorte sobre a edição La Música (de onde buscamos os três

documentários investigados), entendemos que as manifestações sonoras e culturais expressas

nas obras audiovisuais lograram apresentar aspectos do passado e presente da região - e que

remontam o período (pré)colonial -, como a música autóctone e o sincretismo religioso. Além

disso, expuseram (e celebraram) de forma bastante potente os traços e laços de identidade,

179

memória e resistência cultural presentes na cotidianidade latino-americana, em que pese os

séculos de opressão e apagamento (ou docilização) do Estado e da indústria em relação à cultura

popular da América Latina.

Em termos de função social, trata-se, pois, de documentários que propõem - entre outros

aspectos - tanto buscar uma reflexão quanto ensejar uma identificação do espectador latino-

americano (incluindo o brasileiro) sobre elementos constitutivos do passado, porém igualmente

vivos e pujantes atualmente na região. E cuja referida permanência (singular e plural, a

depender da mirada) é responsável por trazer hibridismos sonoro-documentais potencialmente

contribuintes para o “autodescobrimento” do brasileiro como sujeito latino-americano. E de

inspirar sujeitos utópicos-concretos a demolir hotéis121, alicerçados na exploração sistêmica dos

oprimidos e, enfim, dançar sobre os escombros122 das estruturas de concreto desarmadas e

descolonizadas das Américas; regalando ao presente a sincronicidade paradoxal de um “futuro

ancestral”123.

121 Como nos versos de Demoliendo hoteles (1984) do músico de rock argentino Charly García: Hoy paso el tempo

demoliendo hoteles, mientras los chicos allá en la esquina pegan carteles (“Hoje eu passo o tempo demolindo

hotéis, enquanto os jovens ali na esquina colam cartazes” – tradução nossa). Disponível em: .<

https://www.youtube.com/watch?v=DeMCz0O7-FM >. Acesso em: 5 dez 2020. 122 Menção à obra literária argentina Bailando Sobre Los Escombros: Historia Critica del Rock Latinoamericano

(Dançando Sobre os Escombros: História Crítica do Rock Latino-americano, 2001). 123 Menção ao álbum (2020) de mesmo nome do grupo colombiano Faraón Bantu y ChambetaMan, que

promove mesclas de ritmos colombiafricanos e versões remixadas de canções de gêneros e subgêneros como

champeta e afrobeat. Disponível em: .< https://palenquerecords.bandcamp.com/album/faraon-bantu-y-

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180

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minutos.

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Walter Salles. Duração: 126 minutos.

Emicida: AmarElo - É tudo pra ontem. Brasil, 2020. Documentário. Direção: Fred Ouro Preto. Duração:

89 minutos.

Hamaca Paraguaya. Paraguai, 2006. Ficção.Direção: Paz Encina. Duração: 80 minutos.

Hasta el fín de Delfín.Equador, 2018. Documentário. Direção: Fernando Mieles. Produção: DOCTV

Latinoamérica (Capítulo VI – La Música). Duração 54 minutos.

Isabel, la criolla. Argentina, 2018. Documentário. Direção: Marcel Czombos..Produção: DOCTV

Latinoamérica (Capítulo VI – La Música). Duração: 52 minutos.

La Libertad. Argentina, 2001. Ficção. Direção: Lisandro Alonso. Duração 75 minutos.

Los Muertos. Argentina, 2004. Ficção. Direção: Lisandro Alonso. Duração: 82 minutos.

La nación clandestina. Bolívia, 1989. Ficção. Direção: Jorge Sanjinés. Duração:128 minutos.

Mário de Andrade – Primeiros filmes etnográficos. Brasil, 1997. Documentário. Direção: Luis Saia.

Duração: 27 minutos. Disponível em: .< https://www.youtube.com/watch?v=ZwKWC_GmGtA >.

Acesso em: 15 jan 2021.

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Nación Rock – Historia del rock em Colombia. Colômbia, 2008. Direção: Museo nacional de Collombia.

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em: 15 jan 2021.

No Gargalo do samba. Brasil, 2018. Documentário. Direção: Águeda Amaral. Produção: DOCTV

Latinoamérica (Capítulo VI – La Música) Duração: 90 minutos. Duração: 90 minutos.

Uma Noite em 1967. Brasil, 2010. Ficção. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Duração: 93 minutos.

Terras. Brasil, 2009. Documentário. Direção: Maya Da-Rin. Duração: 75 minutos.

8. MUSICOGRAFIA

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