Deus Pátria Família - Google Groups

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Man is a credulous animal, andmust believe

something; in the absence ofgood grounds

for belief, he will be satisfiedwith bad ones.

BERTRAND RUSSELLO que já aconteceu é o que há

de acontecer;o que já foi feito há de voltar a

fazer-se.Não há nada novo neste

mundo.ECLESIASTES

O Salazar disse uma vez que«o poder só pode agradar

aos tolos ou aospredestinados.»

Esqueceu-se foi de acrescentarque apenas

um tolo se acha predestinado.DETETIVE CARDOSO

Sexta-feira, 14 de junhoNão é a primeira vez que Luís Paixão Leal se apresenta como

mensageiro de desilusões ou que contraria a fé dos crentes emmilagres. «Se era santa, deixou de o ser», explica o detetive,desmanchando aquilo que lhe disseram os peregrinos queencontraram a mulher. Um cadáver enrolado num lençol branco nãoé uma aparição da Virgem Maria.

«Talvez os beatos estejam a cumprir a penitência do jejum.Parece que não comer durante muito tempo provoca alucinações»,responde o detetive Cardoso, buscando motivos terrenos para ailusão sobrenatural dos fiéis que esperam, no exterior da ermida, aconfirmação da visita de Nossa Senhora. Cardoso tenta fazer umaanálise sem juízos, talvez até mostrar piedade com o aleijado que,quando encontrou ali a mulher morta, julgou ver uma aparição daVirgem e a possibilidade de ter, por fim, duas pernas do mesmotamanho. Mas Cardoso, para quem a relação com Deus éunipessoal e dispensa carnavais, é um polícia viúvo e barrigudo,com palpitações cardíacas, olheiras rugosas de vinho e de maussonhos. Não fala com a filha e vive com um rafeiro de três pernas.Tem por isso o costume de escarnecer das grandes esperanças doshomens: «Queres sítio melhor para um milagre do que este?»

Não são apenas as paredes da pequena Ermida da Memória, àbeira de uma escarpa dramática sobre o mar, que separam osdetetives do grupo de crentes que aguarda lá fora. Naquela pontade terra onde tantos navios naufragaram, os romeiros procuram aprova de uma visita divina. Já os polícias enfrentam o cadáver coma impassibilidade do mecânico que abre o primeiro capô do dia.

«Americano, faz as honras», diz Cardoso, maestro da filarmónicados homicídios, incendiando a ponta da cigarrilha com o fósforo queaproveita para acender as velas no chão e alumiar o breu daermida. Cardoso sabe que, na biografia nova-iorquina de PaixãoLeal, constam milhares de cigarros sem filtro e centenas de litros derum clandestino. Porém, no barco que o trouxe de regresso aLisboa, o detetive suou abstinência e dores nos ossos ao longo devários dias. Vomitou para um balde todo o sarro da América. Aopisar a terra firme portuguesa em 1934 — e especialmente depois

de conhecer Rebeca, a judia-ariana de todas as redenções —,Paixão Leal iniciou um período de limpeza e comedimento. Os seusórgãos estão hoje mais impolutos do que um bebé a maturar emágua benta. Um esforço meritório, julga Cardoso, mas isso não oimpede de espicaçar o colega com um disparo de fumo dacigarrilha.

«Queres que abra uma janela ou está bem assim para asenhora?»

O templo, com o tamanho de um quarto de hotel, não tem janelas.Só paredes de fortaleza e painéis com azulejos que retratam, a azule branco, a lenda da Santa do Cabo. Quando visto de fora, o teto daermida é um bolbo que conjura ascendências islâmicas em territóriocatólico. O chão intercala mosaicos vermelhos e brancos. Na paredecontrária à porta, deitada sobre uma placa de mármore que nãoalcança a cintura dos detetives, está a mulher que foi santa por umpar de horas.

Paixão Leal tira os óculos escuros, que servem para esconder arelíquia-memória da sua vida na América: um olho de vidro.Aproxima-se do corpo estendido como uma estátua num mausoléu.Apesar de morta, a mulher exala um perfume a sabonete. Sob omanto branco, que só deixa ver o rosto, não há uma peça de roupa,apenas um fio com uma medalha e a coleira de hematomas deixadapelas mãos do assassino no pescoço da vítima. O lençol, quetambém lhe cobre o cabelo, tem o aroma da roupa acabada deestender.

«O coxo não estava completamente errado», diz Paixão Leal, eentrega ao colega o fio com a medalha. «Pode não ser santa, masalguém a preparou como se fosse.»

Cardoso estuda o pendente, olha para o cadáver, volta a observaro perfil gravado em prata, dando-se conta das semelhanças entre amulher morta e a Virgem na medalha. «Um retrato para o obituário.»

Nos anos de trabalho em conjunto na Polícia de InvestigaçãoCriminal, os dois detetives habituaram-se a encontrar cadáveres demulheres. Primeira causa de morte: os homens. Por norma, osassassinos são desastrados no crime, como o resto dos humanosna vida de todos os dias. Cometem os mesmos erros uma e outra

vez, desabam sob pressão, mentem com a proficiência artística deum desenho de infantário. Quando um detetive ouve a confissão domóbil de um homicídio, esbarra com frequência em impulsosprosaicos e explicações levianas. Mata-se porque a mulher levantoua voz depois de avisada duas vezes. Mata-se porque elaencomendou à bruxa um mau-olhado para o marido. Mata-se comoquem faz uma birra. O castigo é sempre desproporcional à ofensa.Um poder mesquinho e sobranceiro, que lembra Paixão Leal damulher de Ló, transformada em sal porque Deus não admitia que elaolhasse para trás.

«Aposto que esta não entra na tua lista.»«Então?», pergunta Cardoso, que tem um inventário dos casos

com os assassinos mais idiotas. Há uma semana, acrescentou-lheum pedreiro bêbedo que justificou a morte do servente — a quemdevia dinheiro — dizendo que o rapaz tropeçara num atacador antesde bater duas vezes com a cabeça na pá do cimento.

«Há muito cuidado e preparação. Mas nenhum sinal de luta.Parece que lhe deram banho depois de morta.» Paixão Leal retiraum rosário das mãos da vítima, passa-o ao colega. «Entrelaçaram-lhe os dedos, como se estivesse a rezar.»

«O tempo está para coisas bizarras. Hoje li no jornal que osalemães içaram a bandeira nazi na Torre Eiffel.» Tal como oestandarte com a suástica, também o breviário dos assassinosimbecis, compilado por Cardoso, é um lembrete de que, na lista de«ismos» que os homens inventaram — fascismo, comunismo,nazismo —, o cretinismo quase sempre prevalece em todos eles.

Paixão Leal já se habituou ao descaramento de alguém que nãotem nada a perder. Conhece a crueza humorística de Cardoso, astiradas que rebentam os tímpanos dos pudicos e esvaziam oscorações dos otimistas. Mas a ideia da Gestapo em Paris, farejandoo rasto dos judeus em fuga pela Europa até vir abocanhar a suaRebeca numa rua portuguesa, atraiçoa o habitualmenteimperturbável olho de vidro.

«Só na última semana chegaram mais de mil refugiados aLisboa.»

«Resta saber se o Salazar vai fazer de Moisés e abrir-lhes o

caminho», diz Cardoso.Paixão Leal, que tem no ofício de polícia o salvo-conduto para

atravessar o pandemónio do mundo, decide afastar-se da conversasobre a guerra e de tudo o que escapa ao seu controlo. Abre umapasta de couro e tira uma máquina fotográfica. Cada gestoprocessual é uma forma de substituir o desconhecido por aquilo quedomina. Ser detetive não se resume a um emprego, é um repenteexistencial, algo tão inato como o tamanho do nariz ou a cor do olhosobrevivente. Paixão Leal foca a lente no peito do cadáver, numamancha que lhe parece a Europa. Com o primeiro disparo, umclarão branco apaga tudo. Rebeca costuma dizer-lhe que o trabalhopolicial é uma forma de cauterizar as feridas dos familiares dosassassinados — e, assim, as dele. Em segredo, o detetive regozijacom o reconhecimento da mulher sagaz que sempre quismaravilhar. Já Cardoso, pouco impressionável, acha que o colegase comporta como quem tenta salvar um paciente que se esvaiu emsangue. Paixão Leal jamais contemplaria uma metáfora paradescrever o seu ofício. Os morcegos não fazem figuras de estiloacerca dos sonares e, no entanto, sabem como navegar naescuridão.

«Com essa memória prodigiosa, não sei porque precisas damaquineta», diz Cardoso.

Tal como a câmara fotográfica que mandou vir dos EstadosUnidos, a capacidade de Paixão Leal para armazenar imagens efactos é, entre os colegas da Polícia, parte da pátina americana dodetetive. Um médico em Nova Iorque disse-lhe tratar-se de umdistúrbio raríssimo e ainda por estudar. Desde os quinze anos que amemória lhe permite recordar com precisão pormenores de cada diavivido. O que muitos considerariam uma dádiva não deixa de seruma aflição clínica. Os limites da memória humana existem por ummotivo, não são uma falha evolutiva, antes um sistema de proteçãoexistencial. É preciso esquecer para seguir adiante. Ao invés, quemse lembra de tudo, como Paixão Leal, corre o risco de nunca sair domesmo lugar. Os outros agentes da PIC — à exceção de Cardoso— pouco sabem sobre o passado do Americano. Apenas que entrou

para a Polícia portuguesa com uma cunha e que, em seis anos,chegou a detetive de primeira classe.

«Vou lá fora.» Paixão Leal cobre o olho de vidro com os óculosescuros. «Tomas contas dos peregrinos?»

Cardoso põe o chapéu na cabeça para dizer que sim. Sai daermida atrás do colega, fecha a porta e ampara-se na ombreira.Costas largas, mãos de bigorna, bochechas descaídas, a calvaperfeitamente redonda, projetada por um arquiteto renascentista.Cruza os braços e, com o fumo da cigarrilha, define a zona desegurança que os mirones não devem ultrapassar.

Paixão Leal avança pela estrada de terra junto às arribas, nadireção do Santuário da Senhora do Cabo, a uns quantos metrosdali — uma igreja e dois edifícios que há séculos albergam oscumpridores de promessas. No centro do terreiro há uma cruz empedra. O detetive tira fotografias às marcas de pneus e caminha deregresso à ermida. No seu lado esquerdo está o farol cravado nomastodonte de rocha que há milhões de anos se rasgou da crostaterrestre. Chamam-lhe Cabo Espichel, mas já deu pelo nome dePromontório Barbárico. Cardoso tinha razão. Um bom sítio para ummilagre. Ou para um sacrifício. Falésias cinzentas, listradas debranco e amarelo, mordidas pelas ondas com a brutalidade pacientede um cerco. E vento que fere os ouvidos, que nunca cessa, que fazvoar o chapéu da cabeça de Luís Paixão Leal.

Cardoso extingue a beata da cigarrilha com a ponta do sapato epensa na lenda contada pelos azulejos da ermida: dois homens queviram a Virgem trepar as falésias numa burra, com o menino aocolo, enquanto o animal deixava um rasto de pegadas esculpidas napedra. Também se lembra de um artigo que leu no Diário deNotícias, no qual um paleontólogo francês esclarecia que o milagredas patas da burra era, afinal, um conjunto de pegadas fósseis dedinossauros. Ao ver Paixão Leal correr atrás do chapéu,aproximando-se da ravina, Cardoso percebe que a fé do colega notrabalho de polícia — maníaca e inquestionável — se parece muitocom a fé dos peregrinos da Santa do Cabo. E, embora Paixão Lealacredite mais em dinossauros do que em aparições marianas, de

tanto perseguir a verdade não se dá conta do abismo que esta podeabrir debaixo dos seus pés.

Domingo, 23 de junhoCelebram-se em Lisboa os oito séculos da pátria mãe com a

abertura da Grande Exposição do Mundo Português. Estadistas decartola, clérigos engalanados e almirantes de medalhas ao peitosobem ao palanque em Belém para homenagear a longa glória daraça escolhida por Deus. Quando a banda toca o hino, uns batemcontinência, outros fazem a saudação romana. No púlpito, opresidente do Conselho discursa para os convidados de honra:«Passam séculos, e o português a expulsar o mouro, a afirmar afronteira, a cultivar a terra, a alargar os domínios, a apostolizar oOriente, a colonizar a África. Temos, como penhor que confirma anossa fé, a cruz que abraça a terra portuguesa.»

Lurdes, criada de servir, que ouviu parte do discurso na rádio,também participa no desígnio coletivo de um povo: esteve toda amanhã a lavar, a estender e a passar as camisas do patrão, comotantas compatriotas. Fez as camas, limpou as casas de banho e foiao portão buscar as garrafas de leite. Resta-lhe, antes da únicatarde de folga da semana, dar de comer às galinhas e aos coelhos.

Lurdes cruza o jardim cantarolando uma marcha dos SantosPopulares e, à vinda das capoeiras, pasma-se com uma andorinhano ninho, que alimenta as crias num beiral do palacete. Desde aperegrinação ao Santuário de Fátima, no dia treze de maio, que asoutras criadas lhe perceberam uma mudança de ânimo. Isaura, amais beata, suspeita que Lurdes foi tocada pelo amor de Jesus.Odete, a mais vivida, sabe que só a manipulação da carne, não doespírito, provoca aquele género de metamorfose. Dona Maria, agovernanta, ainda não se deu conta de que Lurdes já não quer quelhe chamem Lurdinhas.

Findo o serviço, troca a farda por um vestido que cobre osjoelhos. Usa meias opacas e um casaco que esconde o alvor dosbraços. Mas, assim que sai do palacete e começa a descer aCalçada da Estrela, desaperta o primeiro botão. Caminha com obalanço da noite em que, com o namorado secreto, dançou numclube noturno até o vestido ficar molhado nas costas. Não foi aoSantuário de Fátima, como acredita dona Maria, mas ao Arcádia,onde descobriu o desatino do jazz e a euforia do champanhe.

Lurdes entra na sala do Cinema Condes. Antes da projeção dofilme, vê as notícias a preto e branco, com o selo de garantia dasAtualidades do Secretariado de Propaganda Nacional. Na tela, opresidente do Conselho inaugura as grandes obras do regime eavisa o povo de que a administração pública deve ser tão simplescomo uma dona de casa modesta.

Juvenal chega atrasado. Mantém duas cadeiras de distância deLurdes. «Não é bom que nos vejam íntimos até anunciarmos onoivado», costuma dizer. Mas o seu decoro esvanece quando háuma cena noturna no filme e a sala fica mais escura. Estica o braçopara tocar a mão de Lurdes com a mesma audácia com que lhedespiu as meias e lhe beijou as pernas na noite do Arcádia.

Terminada a sessão, não saem juntos do cinema. Encontram-senuma rua lateral e despovoada, entre o trânsito dos Restauradorese o comércio das Portas de Santo Antão. Juvenal suga o filtro docigarro como um estivador que acabou o turno. Os comentários,esses são de crítico de cinema: «Onde é que já se viu um filmefranciú sobre um gângster de Chicago?» Juvenal tem sonhos quedeverão realizar-se nas Américas. A Europa, autofágica, velha eensandecida, não é território para as suas ambições. Quer ser ricono Novo Mundo. Se não for na Califórnia, que seja em BuenosAires.

Lurdes tira-lhe um cabelo da lapela do casaco. A carícia possível.Excetuando a noite em que dormiram juntos, tudo entre eles é umacoreografia de restrição.

Juvenal quer levá-la para as Américas. E Lurdes não é indiferenteao romantismo dos grandes gestos. Mas ter um emprego e um tetojá lhe parece regalos de sobra. As Américas são para os refugiadosque fogem da guerra.

Juvenal acende outro cigarro naquele que chega ao fim.«Vamos para minha casa?»Ela sente a tensão que, ao segundo copo no Arcádia, transbordou

na pista de dança — a mão dele nas costas suadas, os beijos nopescoço, o apartamento de Juvenal ali tão perto.

«E se alguém nos vê e conta à dona Maria?»«Essa papa-hóstias só tem olhos para o patrão.»

Lurdes contemporiza a heresia do namorado. Como criada nopalacete, já observou muitos homens, sabe que descartam osmandamentos religiosos com a mesma displicência com que deixamcair a cinza do charuto no tapete. Juvenal vê demasiados filmes eestá sempre a par do que acontece na guerra, acredita que oshomens não têm de resignar-se às limitações do cu do mundo ondenasceram. Para um dia poder comprar dois bilhetes numtransatlântico, trabalha como despachante, ajuda os refugiados notransporte das mobílias por navio, supera burocracias. Pelo dinheirocerto, até arranja um falso visto de saída.

Avançam pela Rua das Portas de Santo Antão. Ele vai algunspassos adiante. Anoitece devagar, como numa aldeia. Nas tascas,há uma apatia de bochechas por barbear, bocas que chucham ovinho de copos pequenos. Juvenal deixa-se apanhar por Lurdesassim que começam a subir as escadas. Quase duzentos degrausaté que, no topo do Beco São Luís da Pena, ele agarra os ombrosde Lurdes, gira-lhe o corpo e diz: «Quero que vejas o que nuncaviste.» Lá em baixo, uma nesga inédita da cidade abre-se do Rossioaté ao Tejo, de onde partem os transatlânticos para as Américas.Lurdes sente a ereção de Juvenal contra o fundo das costas. Elesegura-lhe as ancas. Puxa-a contra si. «Quero que vejas as coisascomo elas podem ser.»

Terça-feira, 9 de julhoSe o líder da Brigada de Homicídios da Polícia de Investigação

Criminal precisasse de uma testemunha abonatória, o seu gabinetena sede do Torel seria chamado a depor. Em poucos metrosquadrados, o chefe Ferrão montou uma réplica da suapersonalidade. Na secretária, uma fotografia da família. Na parede,outra, do presidente do Conselho. Dentro da segunda gaveta, duascamisas brancas e duas gravatas pretas. Há um cabide para ochapéu e o casaco, embora nunca ninguém o tenha visto emmangas de camisa. Não se pode fumar, nenhum papel à solta. Umadecoração de registo notarial, cujas obras de arte — um pisa-papéis, um afia-lápis e um arquivador — afirmam a prevalência dofuncionalismo sobre o desenrascanço. Nos tempos livres, o chefecoleciona mapas e lê enciclopédias. Jamais apanha uma gripe,levanta a voz ou diz um palavrão. Magro por natureza, não comegorduras e só bebe um Porto no Natal. É o funcionário exemplar dacausa pública. Sem carisma, cunhas ou alianças políticas, serviu-seda execução escrupulosa das suas obrigações para subir nacarreira. Não irá mais longe do que chefe de brigada, masdesempenha o cargo com a eficácia da sua coleção de agrafadores.

«Perdeu a cabeça, detetive?»«Já me informei dos preços, chefe, não é assim tão caro.» Paixão

Leal, de pé, faz o papel de vendedor. Quer publicar um anúncio demeia página no Diário de Notícias, com a fotografia do cadáver daSanta do Cabo encontrado há quase um mês na Ermida daMemória. «Pense bem, chefe, num só dia podemos chegar a maispessoas do que a brigada inteira num ano. Não vamos dizer queestá morta. Só desaparecida. Alguém a pode reconhecer.»

Ferrão abre uma pasta e saca várias fotografias da vítima.«Prefere esta, em que o cadáver tem um manto na cabeça? Ouesta, na mesa de autópsia? Deixe-me ver se encontro aqui algumaem que ela esteja de olhos abertos.»

«Esse cadáver tem uma mãe e um pai que não sabem que a filhamorreu.»

O chefe revira os olhos. Sofre náuseas sempre que o detetive lheserve as papas do sentimentalismo.

«Se esse é o seu último recurso, então, arquive-se o caso até queapareça algum elemento novo.» Ferrão arruma as fotografias nagaveta. Não quer correr o risco de olhar uma última vez para amulher que foi enterrada sem nome ou lápide.

Foram aquelas mesmas fotografias que Paixão Leal e Cardosousaram nas diligências. Mostraram-nas nas paróquias da capital eda região saloia, de onde sai a maioria dos romeiros para oSantuário do Cabo Espichel. Pediram ajuda às associações querecebem os refugiados, talvez a vítima fosse estrangeira. Visitaramlojas de artigos religiosos e ficaram a saber que a medalha e o terçoforam feitos por uma empresa de Coimbra, que os vende aosmilhares para todo o país. No santuário, os depoimentos dosperegrinos tinham-se resumido a «Não vi nada» ou «É um milagre».A autópsia decretou o estrangulamento como causa de morte. Eencontrou vinho, clorofórmio e uma matéria orgânica nãoidentificada (talvez pão) no estômago. Nenhum sinal de luta. Ocadáver tinha sido lavado e perfumado. Não reteve vestígios doassassino. As marcas de três tipos diferentes de pneus, na estradade terra, eram comuns a várias marcas e modelos.

«Dê-me alguém para ajudar com os automóveis.»«Se investigássemos todos os proprietários de carros em Setúbal

e Lisboa, esquecendo o resto do país... estamos a falar decentenas, de milhares de pessoas.»

«Por isso mesmo, o anúncio no jornal.»Outro chefe recorreria ao vernáculo, Ferrão suspira a paciência

dos burocratas.«A cidade está cheia de refugiados. A exposição vai receber

milhares de visitantes nos próximos meses. Temos muito trabalho epoucos homens.»

Numa Europa em guerra, a imagem de paz e ordem pública éuma prioridade para o regime consolidado, pronto a mostrar a todoscomo a sua grandeza antiga profetiza novas façanhas. Depois deinutilizar a oposição, tanto à esquerda como à direita, a PVDE andamais ocupada com os espiões estrangeiros e a possibilidade deinfiltração de comunistas nas colunas de refugiados que entraramem Portugal. Cabe, por isso, à PIC controlar o crime comum na

metrópole-cartão-postal e preservar a tranquilidade dosportugueses, uma obediência de espírito que o presidente doConselho cunhou como o «viver habitualmente».

Paixão Leal entende a mensagem do chefe, mas é-lhe impossívelsair dali sem a última palavra. «Não basta parecer, chefe. Não bastaparecer.»

Ferrão, cujo sorriso tem a periodicidade dos eclipses da Lua,fabrica uma gargalhada na subcave dos pulmões. «Não bastaparecer...» Levanta-se, apoia as mãos na secretária, como fazsempre que dispensa um agente do gabinete. «Não lhe antevejo umfuturo no teatro.»

Uma última resposta esperneia nas sinapses de Paixão Leal, masa voz de Cardoso puxa-o de volta para a sala da brigada. «Telefonepara ti, Americano.»

O detetive retira-se do gabinete, pega no aparelho. No outro ladoda linha, é Rebeca que lhe fala. Esteve a terminar os figurinos parao ensaio geral de uma peça e só agora vai sair do teatro. QuandoPaixão Leal desliga, Cardoso sai do ângulo morto do olho de vidrodo colega. Tem o casaco vestido, o chapéu na cabeça, os pésapontados para a saída. Segura a caixa-coração da sua guitarraportuguesa. «Estás com focinho de quem precisa de um copo.Como não bebes, faço-te esse favor e bebo por ti. Pagas a primeirarodada.»

Na sede da PIC, o ar estagnado conserva há anos amasculinidade de polícias e suspeitos. Cinzeiros, catarro e café,suor de perseguições e de interrogatórios. Mas assim que saempara a rua, passando diante das mansões no alto da colina do Torel,os detetives sentem-se rejuvenescidos pela clorofila dos jardins.Descem para a efervescência das luzes na Praça dosRestauradores. Táxis em fila de espera, porteiros de hotel com luvasbrancas, cartazes de cinema e todas as promessas de uma noite deverão. O anúncio na fachada do Olimpia Club informa: «Artistasbrancos e pretos.» São apenas nove da noite e, lá dentro, umadúzia de clientes escuta um desses artistas negros, sozinho empalco com uma viola, a cantar desgostos de amor numa plantaçãoda Geórgia.

«Chamam-lhe blues», diz Cardoso, e pede ao barman o copo devinho do costume. «Parece que é o fado dos pretos. Mas já devessaber isso, Americano.»

O cantor rasga os acordes com a dolência de um navio de tráficonegreiro. Palmas preguiçosas aqui e ali no final da música. O negrodo blues serve para ocupar o tempo até que, depois da meia-noite,o clube esteja lotado e a banda toque desalmadamente cançõesque exorcizam o terror da guerra. Nessas primeiras horas damadrugada, uma clientela multinacional bebe a rodos e abusa docorpo na pista de dança. Putas finas, espiões, artistas, refugiados,amantes excessivos e facilitadores de negócios ilícitos participam nostrip tease comunitário das inibições. A festa não acaba sem ascoristas mostrarem as mamas em palco.

Paixão Leal estuda os clientes na penumbra de veludos ecandelabros. Numa mesa ocupada por alguns estrangeiros, aofundo da sala, identifica o capitão Félix Aranha.

«O paspalho do teu genro está aqui.»«Deve estar armado em espião.» Cardoso mantém-se de costas.

O Olimpia é poiso de alemães, e o genro, chefe da secçãointernacional da PVDE, fez uma formação em Berlim, com osagentes da Sicherheitsdienst, o que implicou o compromisso daPolícia portuguesa de vigiar os judeus alemães em Portugal. FélixAranha é leitor dos editoriais elegíacos do Terceiro Reich no jornal AVoz. Aos fins de semana, marcha com o uniforme da LegiãoPortuguesa e gosta de citar os escritos de Charles Maurras: «Asletras conduziram-nos à política, mas o nosso nacionalismo começapor ser estético.»

O vinho fica azedo e Cardoso sente um desarranjo nos intestinos.«E pensar que os meus netos têm de beijar esse filho da puta todosos dias.»

«O Aranha não é do género pai extremoso. Mais depressa mandaos teus netos fazer cem flexões.»

Cardoso afasta o copo. Limpa a boca num lenço de pano. «Já vi oque tinha a ver.» Pega na caixa da guitarra. «Tratas da dolorosa?»

Na rua do Condes, Paixão Leal despede-se e Cardoso inicia opasseio que, a cada duas semanas, termina no mesmo lugar.

Atravessa a noite e sobe as escadas de um prédio no Cais doSodré. Num quarto de pensão, deita-se num divã de corpo e meiocom Heloísa. Nunca falam do trabalho de polícia ou de prostituta.Na verdade, quase não trocam uma palavra. Entrelaçam as mãossem que nenhum deles tire a roupa. Cardoso paga para sentir-seacompanhado. Hoje sai do quarto ao fim de trinta minutos porquetem hora marcada no Retiro da Severa. As noites em que tocaguitarra na casa de fados são as únicas em que não bebe paradormir. Mas a nitidez das manhãs seguintes, sem ressaca, éimpiedosamente reveladora. Basta que olhe para o lado vazio dacama — onde dormiu com a mulher mais de vinte anos — e faça abarba diante do espelho para perceber que o desterro da sua viuveznão tem volta, que para certas estirpes de solidão não se conhece acura.

Paixão Leal chega a casa, na Travessa do Jasmim, e encontraRebeca na cozinha, sentada à mesa.

«Os miúdos?», pergunta ele.«Já estão na cama.»Rebeca tem o jornal aberto em cima da mesa e o cabelo revolto.

O detetive atribui ao amor — e não à sua memória incomum —saber de cor todas as marcas da identidade física de Rebeca. Ocabelo loiro, espesso e ondulado que, em noites de estreia noteatro, ela passa a ferro. Durante o dia, prende-o com ganchos paradesencorajar os piropos dos homens e a censura das mulheres.Depois do sexo, as têmporas transpiradas de Rebeca cheiram asalitre e a laranja acabada de descascar. Na pele de alabastro, nosombros e no peito, o rasto de um cometa de sardas expande-se noverão e desbota no inverno. Pescoço comprido, pernas galgazes.Uma figura da mitologia nórdica, metade elfo, metade corça.Capilares azuis na transparência dos pulsos. Cartilagens queestalam quando, depois de horas a coser figurinos para o teatro, elase espreguiça e alonga o corpo como as bailarinas. O ranger dosdentes e os gemidos infantis, durante um pesadelo, que conjurammedos muito antigos: alguém a persegue na selva, ou em Munique,ou pela Europa afora.

Só que, por vezes, como agora quando a beija no pescoço, foge

ao detetive uma compreensão dos estados de alma de Rebeca. Osinstintos do polícia parecem não funcionar. Nunca lhe ocorreu usaras técnicas de interrogatório para descobrir o que ela não conta.Talvez porque, ao contrário do que acontece quando questiona umsuspeito, é Rebeca quem leva vantagem sobre o detetive. Logo noinício da relação, num assomo de purga, Luís contou-lhe quem eraantes de chegar a Lisboa, descreveu os episódios mais sórdidos eviolentos sem esconder nenhum. Estendeu-lhe um rol de culpas eremorsos onde não faltou a morte do pai e o abandono da família.Julgou que só a honestidade descarnada merecia o perdão quenunca pedira a ninguém. Este sou eu, jogado a teus pés, aceitatambém o pior de mim. Rebeca recebeu tudo sem fazer juízos,servindo-lhe de sacerdotisa da expiação. É testemunha únicadessas dores de crescimento e conhece ao pormenor as duasdinastias da vida de Luís Paixão Leal. O antes e o depois de NovaIorque. Não o desertou, embora lhe saiba os segredos e osdesaires. Rebeca é a cidade a que um homem chega para começarpela segunda vez.

Tarde Paixão Leal se deu conta de que aquele tipo de exposiçãotinha um preço. Não consegue mentir-lhe e sente-se em dívida,pelado como uma peça de caça. O desequilíbrio é notório. Há trêsanos juntos, Rebeca não lhe contou muito acerca da sua vidaprévia. Tinha oito anos quando a Grande Guerra terminou. Nasocasiões em que fala sobre a sua infância, em Munique, não háórfãos esqueléticos ou ex-soldados a pedir esmola nas ruas de umacidade a convalescer dos disparos de artilharia. Mas há casas dechá, aulas de violino que lhe deixavam uma marca de sanguepisado no pescoço. Os vestidos com franjas douradas e as toucascom pérolas da mãe, quando os pais iam dançar nos cabarés. Oscasacos de peles e as noites de ópera. Uma paisagem de avenidasimperiais e bosques para piqueniques. O pai, quando não estava acaçar, presidia uma fábrica de automóveis. A mãe organizavaserões de música de câmara e bailes de máscaras. Rebeca rejeitoua faculdade para ser estilista e figurinista de teatro, aproveitando ofinanciamento paterno para abrir um ateliê. Era a visionária dosvestidos de noite, a coqueluche precoce da alta-costura, a criadora

da moda da estação para as artistas prestigiadas e as senhoras dasociedade da Baviera.

O despontar de Rebeca coincidiu com o rasgo artístico e a solturados costumes durante a breve República de Weimar, quando aexperimentação e o prazer sobrecompensavam o sofrimento daguerra e as privações no seu rescaldo. Sem chegar a ser umavanguardista, posou despida para pintores, namoriscou umtrompetista e, regressando a casa ao raiar do dia, cunhou a certezade que a juventude é uma folga de leveza para a seriedade do restoda vida. Apesar do apelo boémio, Rebeca nunca se afastou do portoseguro das suas origens, mantendo-se perto de uma existênciamais convencional, casando-se com um economista quefrequentava os círculos tradicionais — se bem que nuncaretrógrados — da mesma classe e estatuto que ela recebera dospais.

O realinhamento com aquilo que esperavam de si foi umaresposta ao impacto da Grande Depressão. No dia vinte e quatro deoutubro de 1929, em Nova Iorque, alguns investidores redecoraramas paredes dos seus escritórios com a bala de um revólver e ospadrões da massa encefálica. Wall Street era o paciente zero docolapso bolsista da Quinta-Feira Negra. A vaga destruidora haveriade chegar a Munique. Lojas fechadas, hiperinflação, milhões nodesemprego, sopa dos pobres, o dinheiro tão desvalorizado, que erapreciso uma mala de viagem a abarrotar de notas para pagar ascompras da semana. Até a família de Rebeca teve de fazer ajustes.O pai vendeu a casa de férias, reduziram o número de empregados,a mãe cancelou as festas temáticas nos jardins da mansão.

Perturbada pela perda das vantagens com que crescera, e queantes pensava inalienáveis, quando pela primeira vez ouviu falar deAdolf Hitler, também Rebeca acreditou no discurso da restituição dagrandiosidade alemã. Talvez a euforia liberal precisasse mesmo deser garroteada pelo pulso forte da nobreza germânica. Por fim, apósanos de complacência e de silêncio cobarde, alguém tinha a valentiade gritar. Mas, no dia um de abril de 1933, casada e grávida doprimeiro filho, Rebeca chegou ao ateliê e tinham escrito na montra apalavra Jude, ao lado de uma estrela de David. Um cartaz colado no

vidro dizia: «Alemães, defendam-se! Não comprem aos judeus.»Milicianos nazis das SA fiscalizavam nas ruas o boicote impostopelo partido.

No início, não foi a escolha dos judeus para explicar os males daAlemanha que mais a afligiu, mas a injustiça daquela denúnciapública que lhe custaria clientes. Rebeca não pensava em si comojudia. Tinha um sobrenome alemão, aparência ariana e, em suacasa, Deus e a observância religiosa não constavam dos interessesda família. Mesmo quando pilhas de livros ardiam em milhares defogueiras por todo o país, a sua estupefação não tinha origem napreferência de obras de autores judeus para alimentar as labaredas,mas na barbárie da ignorância sobre a primazia do conhecimento.Até que, certo dia, uma das suas clientes limpou os dedos com umlenço depois de a cumprimentar e Rebeca descobriu que aabstração das ideias podia ser algo tão físico como o nojo. Passou ausar luvas quando trabalhava, apresentando-se apenas com oapelido alemão da família, evitando dizer o nome próprio, que numsegundo denunciaria a sua origem judaica.

«Está tudo bem?», pergunta Paixão Leal, na cozinha.«Estava só a ler as notícias.»O detetive senta-se e pega no Diário de Lisboa, aberto num texto

sobre os detalhes da capitulação francesa há cerca de duassemanas. Lê que Hitler mandou colocar a carruagem de comboio —na qual os alemães tinham assinado a rendição na Grande Guerra— no preciso lugar, no bosque de Compiègne, a norte de Paris,onde o marechal francês Fochs virara as costas aos oficiaisalemães e deixara as negociações para os subalternos. Em 1940,Hitler fez exatamente o mesmo que Fochs fizera em 1918.

O detetive fecha o jornal sobre a mesa e dá-lhe uma palmada,como se pudesse selar o mal e proteger Rebeca. Pega-lhe nosdedos, prende-lhe uma madeixa atrás da orelha numa manobra decarinho e distração. Mas ela, em silêncio desde que foi deitar osmiúdos, prefere um ouvinte a um solucionador de problemas: «Orancor é uma doença que passa de pais para filhos. Saí de Muniquequando percebi que não lhes bastava castigar-nos, que não ficavamsatisfeitos com a nossa humilhação. Este é um tipo de rancor sem

cura, faz parte do novo homem alemão. É muito triste admiti-lo, masé mesmo assim. Chama-se Schadenfreude. Quer dizer o prazer e afelicidade com as desgraças e o sofrimento dos outros. Eles nãoquerem apenas ganhar a guerra, querem eliminar-nos. Só sentirãoque venceram quando nos apagarem de vez.»

Paixão Leal levanta-se e atira o jornal para o lixo, aproxima-se dapia, lava a tinta que lhe tingiu os dedos na esperança de que osabão faça com o Führer aquilo que ninguém ainda conseguiu, semperceber que o congénito medo dos judeus, como o rancor dosnazis, também passa de pais para filhos.

Quarta-feira, 10 de julhoOs sintomas de dona Maria de Jesus, governanta e madre

superiora das criadas, agravaram-se à medida que os alemãesmarcharam pela Europa. Dinamarca, Holanda, Bélgica, e agora, quejá se instalaram em Paris com armas e pilhagens, a frase domotorista do palacete — «Com a bisga que trazem, só param noTerreiro do Paço» — transformou-se num presságio maldito. DonaMaria não apresenta indícios de desagrado ideológico ou sequerreceia uma tirania estrangeira. Só não quer que o conflito chegue aLisboa. Lembra-se do racionamento durante a Grande Guerra, dosmotins na rua por causa da fome, da Revolta da Batata. O seu gostopela poupança tem a mesma pertinácia dos exércitos em oposição.Todos os restos de comida são reaproveitados, nenhuma roupa sedeita fora, há mais pés de tomate no jardim, mandou comprar fitapara cobrir as janelas em caso de bombardeamentos aéreos.Quando faltar a luz, existem sacos com cotão, colhido pelas criadasnos cantos do palacete, com o fim de atear as lareiras.

Há semanas que Lurdes não entra no Cinema Condes oucomunica com Juvenal. Dona Maria declarou recolher obrigatório e,com a desculpa de haver mais trabalho, foram suspensas as folgasdas criadas. A única exceção acontece esta manhã, após a missana Basílica da Estrela, quando o padre Rafael pede ajuda paraentregar roupa aos refugiados e a governanta oferece Lurdes comovoluntária.

«Vais num pé e vens noutro.»«Posso ir cortar o cabelo?», pergunta a criada. «Os ganchos já

não dão conta desta juba.»«Mas isso rápido. Quando voltares, prepara as tuas coisas.

Depois de amanhã arrancamos para o Norte. O doutor quer visitar amãezinha. Com esta coisa da guerra, não vai lá há meses.»

Lurdes junta-se ao grupo do padre Rafael: um professor decatequese, colaboradores da Comunidade Israelita de Lisboa,beatas filhas de boas famílias e alguns representantes da LegiãoPortuguesa que, apesar de participarem em várias atividades daparóquia, estão mais interessados em vigiar os estrangeiros do queno trabalho benemérito com os refugiados.

Os passageiros que chegam ao Rossio a meio da manhãestiveram vários dias parados na fronteira de Vilar Formoso. Naplataforma da estação há um linguajar babilónico entre aqueles queos esperam. Conta-se que, em território espanhol, havia agentesalemães que queriam forçar o regresso dos judeus aos países deorigem; mas também havia populares portugueses, que foramoferecer comida e bebida aos viajantes. Comenta-se que qualquerpassageiro referenciado como comunista pela Gestapo ou pelaSeguridad espanhola será detido em Lisboa. Lurdes não conseguiriaidentificar criminosos políticos nos corpos desgrenhados no interiordas carruagens. Seria incapaz de diferenciar um judeu de umcatólico, um comunista de um anarquista. Mas os olhos perdidosdaquela gente, sondando um lugar que desconhecem, são comouma língua franca que todos entendem. No rosto dos miúdos queviajaram sem os pais, metidos à pressa no comboio, Lurdes percebeo mesmo abandono de quando, aos oito anos, entrou na casa ondeserviria pela primeira vez.

Os bagageiros preparam-se para recolher as malas daqueles queas enviaram sem conseguir embarcar. Há um quarto na estaçãorepleto de bagagem não reclamada. Os refugiados que já vivem emLisboa, e que esperam algum familiar, aproximam-se do comboio.Um PSP sopra o apito. Com gestos de dirigir o trânsito, informa queos passageiros devem manter-se no interior das carruagens. Oimpasse gera novas especulações na plataforma. Talvez sejaapenas um trâmite burocrático, duas ou três perguntas, qual odestino final da viagem. Outros garantem que há um dissidentecomunista a bordo. Lá dentro, os passageiros, habituados àperseguição, revivem a expectativa da captura que os acompanhouao longo da Europa — o chefe de família demitido por causa dasLeis de Nuremberga; a filha única que deixou a casa dos paisporque só havia dinheiro para uma passagem de comboio; o casalque hesitou entre partir para outro continente ou existir com medo edesonra, na esperança de que tudo passasse um dia.

Lurdes descobre o perfil de Juvenal entre a multidão e começa aandar como se tivessem chamado o seu nome numa entrega deprémios. Sente no corpo a mesma amotinação que conheceu pela

primeira vez na noite do Arcádia. As mãos morenas de Juvenal nacurva branca da mama, afastando-lhe as coxas com a perna. Ocuidado dele durante e depois, a forma como a envolveu no lençol,pensando que os tremores eram de frio. E, no fim, a ressurreição deLurdes, que logo de seguida queria mais, porque afinal o seu corpotinha outras funcionalidades além de apanhar cotão das carpetes eovos em capoeiras.

«Nem acredito que estás aqui», diz ela.«Vim receber o familiar de um cliente», diz Juvenal. «Queres

passar lá em casa mais logo?»«Não posso, vou cortar o cabelo. Como aquela atriz de que tu

gostas.»«Qual?»«A do filme de espiões.»«A Greta Garbo?» Lurdes acena que sim. «Mais uma razão para

passares lá em casa. Assim, mostras-me o novo penteado.»Lurdes ruboriza, tons de vermelho-desejo e encarnado-vergonha.

Olha sobre o ombro. Os legionários observam-na, tão portugueses ameter o bedelho como na prática da quadrilhice.

«Tenho hora de chegar. O doutor e a dona Maria vão para a terrae eu vou com eles. Tenho muita coisa para fazer antes.»

«Quando é que vão?», pergunta Juvenal.«Depois de amanhã.»«E ficas lá quantos dias?»«Não sei.»Os refugiados começam a descer das carruagens.«Desculpa, tenho mesmo de ir.» Juvenal despede-se, tocando no

chapéu, e vai em busca do cliente, desaparece na teia de apertosde mãos e abraços que cobre a plataforma. Lurdes só pensa em sera Greta Garbo. Depois de entregar a roupa aos refugiados, desertada comitiva da paróquia e sai para a praça do Rossio, sobe aoBairro Alto, onde visita a rapariga que sabe cortar o cabelo igual aodas atrizes americanas e das refugiadas estrangeiras, mulheresmodernas, fumadoras, clientes dos clubes noturnos e que, aindaassim, tal como Lurdes, continuam a precisar dos homens parachegar às Américas.

Lurdes regressa ao palacete depois da hora. Ao cruzar os portõespara o pátio, vê dona Maria que, sem largar a supervisão dojardineiro de volta dos vasos de jasmim, ordena à criada: «Vai direitapara o quarto. Já falamos.»

O quarto é uma camarata esconsa, com a luz baça dos sótãos evárias camas alinhadas. O cheiro da lixívia oblitera os vestígios dascriadas que ali dormem. Mesinhas-de-cabeceira partilhadas.Nenhum espelho. Um altar com pagelas e santinhos. Sentada nocolchão de palha, Lurdes espera, sem conhecer ao certo qual a suaofensa, embora já negoceie a penitência. Se a reprimenda se deveao atraso, deixará o dinheiro de um bilhete de cinema na caixa deesmolas da igreja. Se a governanta souber que ela não foi naexcursão a Fátima, só volta a dormir com Juvenal quando foremcasados.

Dona Maria entra sem bater. Coloca-se diante da rapariga,prepara-se para adicionar uma terceira acusação. Olha para ocabelo da criada e diz: «Que preparos são esses?»

Lurdes imita o gesto de alguém que, já no elétrico, procura nococuruto o chapéu esquecido em casa. Depois esconde o rosto nasmãos. Tem as orelhas quentes, a boca seca. No penteado faltacabelo e sobra sem-vergonhice.

«A Odete vai no teu lugar.»«Eu posso usar uma touca.»«Vamos ao cemitério. Não é um desfile de carnaval.»Dona Maria resgata do campo raparigas como Lurdes, bichos-do-

mato que chegam ao palacete infestadas de piolhos. Mas aexigência com o serviço não lhe permite ser a Santa Casa daMisericórdia. Se não é preguiça, é um homem. Se não prestam, vãoa andar. O choro do arrependimento das criadas é o pão nosso decada dia.

«Enquanto não te crescer o cabelo, não sais do quarto.»«Obrigada.»«Não deites já os foguetes. Não te vou pagar esses dias.»«Sim, senhora.»Um minuto mais tarde, pela janela do sótão, vê a governanta

outra vez no pátio. No vidro escurecido, Lurdes encontra o seu

reflexo. Greta Garbo ou criada a cumprir pena? O que é bonito épara se mostrar e só falta dia e meio para a dona Maria viajar com odoutor. Governanta fora, noite pagã na casa do Juvenal.

Sexta-feira, 12 de julhoDona Maria observa o patrão recortado na contraluz da paisagem

de granito e pinheiros. Com as feições emolduradas na janela docarro, o presidente do Conselho parece o seu retrato oficial,pendurado aos milhares nas esquadras e repartições do país.Semblante de professor que podia ter sido cardeal. Nariz de ave derapina, que eleva a seriedade da expressão. Dois riscos a lápis nolugar dos lábios, a voz de dicção sibilada e tom quebradiço, a subirpara o falsete. Na memorabilia da propaganda oficial também seencontram postais com a sua cabeça de presidente do Conselho nocorpo de Dom Afonso Henriques. Com direito a espada, escudo edivisa: Ditosa pátria tais filho tem.

No banco traseiro do automóvel, dona Maria dá-se conta de que,cansado da viagem e dos anos ao serviço do país, o patrãoadormece com um papel no colo. Os olhos miúdos, escuros, quesabem muito bem o que querem e para onde vão, começam afechar-se. Desde que saiu de Lisboa, não parou de ler documentosdo Governo e cartas pessoais. Tomba-lhe a cabeça sobre a janela.Uma madeixa liberta-se da disciplina imposta pelo pente váriasvezes ao dia, aconchega-se na testa. O presidente, repara agovernanta, está grisalho, com olheiras, menos magro do que emoutros tempos, mas ainda enxuto para que os fatos talhem aelegância do porte. Tem uma meia enrodilhada no tornozelo,revelando a brancura da canela. Esse pedaço de pele,desprotegido, sem honras de Estado, é a fragilidade que só donaMaria julga conhecer e que tem o dever de resguardar. Só ela sabeque o presidente de aura messiânica cabeceia de cansaço no carro,tem flatulência depois do cozido e se baba durante o sono. Ela é asombra, a escudeira, a ama, o fio condutor que dissemina pelopalacete de São Bento a disciplina e os humores do seu patrãovitalício, o seu santinho doméstico. Seja a escolher a neutralidadena guerra ou o melhor sítio na cozinha para guardar as compotas, osenhor doutor tem sempre a última palavra.

O papel cai-lhe da mão. Dona Maria apanha-o e, por instinto deproteção, jamais por curiosidade, lê as primeiras linhas da carta deuma mulher que costuma enviar rosas ao doutor: «Que grande pena

para a Humanidade que homens como vós só apareçam ao fim devinte séculos.» É apenas mais uma entre as centenas deadmiradoras que lhe escrevem missivas demasiado perfumadas.

Dona Maria prende a carta entre os estofos e o chapéu que asepara do patrão no banco traseiro. O motorista abranda. Há umrebanho de ovelhas a atravessar a estrada e, a toda a volta, a terracrepita com o calor. Lajes de granito e a secura dos pastos. Do carroda frente, já parado, salta um polícia. Olha ao seu redor e depoispara o outro agente que sai do automóvel na retaguarda dacomitiva.

«Vês alguém?»«Nada.»O presidente abre os olhos, desamparado no tempo e no espaço.

Ouve balir as ovelhas, percebe a luz do fim de dia. Arruma amadeixa rebelde com um gesto feminino, mas, ao sair doautomóvel, é outra vez o homem a quem o cardeal Cerejeira, amigode juventude, batizou como o Místico Apóstolo. De pé, na estrada,as calças voltam a cobrir a pele da canela. Também lhe chamam oPátrio Alguém, dizem-no protegido por Jesus, pela Virgem Maria.Confirmando o caráter sobrenatural e profético da sua liderança, umjornalista escreveu que o rosto do presidente pode ser visto nospainéis de São Vicente, pintados há duzentos anos.

Dona Maria não discorda dos elogios unânimes. Nunca conheceuhomem tão predestinado. Mas é ela que lhe prepara o chá decidreira para acalmar a tensão dos negócios de Estado — umamoléstia que, por natureza e lealdade, também a atormenta. É elaque recebe os gatafunhos da contabilidade caseira que o presidentenão prescinde de fazer. É ela que sabe quando os sapatos precisamde meias-solas e é ela que lhe abre as portadas do quarto todas asmanhãs. Conhece-lhe os estados depressivos, já lhe mediu a febree, ao contrário de todas as galdérias que lhe enviam flores, é elaque semeia e colhe, no jardim do palacete, as gerberas que lhedeixa na secretária de trabalho.

«Senhor presidente, fique dentro do carro, por favor.» O políciacaminha para a berma. O agente do automóvel da retaguardasegue-o, usa a mão como pala e varre a paisagem.

«São dois?»«Saíram de trás daqueles pedregulhos.»«O que é que o mais alto tem na mão?»«Um cajado», diz o professor, que se junta aos polícias. «Nunca

viram um pastor?» Levanta o braço para as duas figuras que seaproximam. Um velho de botas e varapau para guiar as ovelhas. Umrapaz descalço, com uma espingarda a tiracolo e dois coelhosmortos pendurados no cinto.

«Boa tarde, senhor Merendeiro. Olhe que as ovelhas já levamavanço», diz o presidente.

Os polícias colocam-se diante do Pátrio Alguém. Não tiram osolhos da espingarda do rapaz. Mas o pastor Merendeiro nem reparano alarme dos guarda-costas, tira o boné, já vem a sacudir as mãosdo pó para cumprimentar o Toninho da Maria do Resgate.

«Foi aqui o meu neto, doutor, tive de o ir buscar por uma orelha,só pensa em coelhos.»

«Mais vale criá-los do que caçá-los. Tenho uns quantos lá emLisboa.»

«Netos ou coelhos?»O presidente e o pastor riem, apertam as mãos. Conversam sobre

os vinhedos, a geada que caiu em abril e uma égua que morreudurante o parto.

«Depois passo em sua casa para deixar uns queijos», diz opastor.

O presidente belisca a bochecha do rapaz.«E tu, como é que te chamas?»«Timóteo, senhor.»Despedem-se, os polícias entram nos carros. O miúdo dá meia-

volta e corre para o automóvel do presidente, bate na janela.«É para o senhor. Que Deus o guarde.»O presidente agradece e dona Maria aceita nas mãos o coelho

morto. Vai cozinhá-lo para o jantar, com as batatas e as couvescolhidas na horta da casa que o patrão herdou dos pais. Um dia,quem sabe?, talvez se mudem para ali de vez. Ele de volta daprodução do vinho, ela com os afazeres da casa. Dona Maria olhapara baixo, procura a intimidade da canela branca. Mas o professor

já puxou a meia para cima, muito mais patriarca da nação do quemarido em devaneios campestres de governantas.

Sábado, 13 de julhoDe manhã, o presidente do Conselho senta-se numa cadeira de

lona, com vista para a horta e as vinhas. Aponta na agenda que omuro precisa de ser arranjado. Há que plantar mais feijão. Só depoiscomeça a rever o relatório do capitão Félix Aranha, da PVDE, sobrea vaga de refugiados em Lisboa. Foi detido um homem, na doca deAlcântara, com passaporte falso e referenciado pela Seguridad.Tinha um visto de entrada passado em Bordéus. Aperta-se a buscaaos subversivos estrangeiros que possam instigar o que resta daoposição nacional, uma vez que milhares de portugueses insurretosjá foram escorraçados para o exílio ou para as prisões nos Açores eem Cabo Verde. Félix Aranha recorda o presidente, por escrito, dealgo que já lhe comunicou antes: «Portugal não pode serconsiderado um país de refúgio. Só assim a PVDE desempenhará asua missão, sem suscitar nenhuma ofensiva da imprensaestrangeira judaica ou a seu soldo, de forma a desviar do nossopaís o perigo da criação de uma minoria. O judeu estrangeiro é, pornorma, moral e politicamente indesejável. A entrada e afixação dejudeus em território português caracteriza um grave perigo para anossa nacionalidade.» Na margem da página, o presidente escreve:«Concordo com a orientação sugerida pela PVDE.»

À medida que o presidente, na sombra do alpendre, despacha osmais pressurosos assuntos da nação, o povo vai passando aespaços pela estrada de terra, detendo-se para falar com o filho daMaria do Resgate sobre hortas e festas religiosas. Mostram-lhe ascouves na albarda do burro e ele aceita uma concha de água trazidada fonte. Gente de enxada ao ombro e mãos engelhadas, quenunca visitou a capital ou saberia dizer para que lado fica Espanha,portugueses inocentes que ele quer proteger da política como umpai decidido a que os filhos sejam para sempre crianças de colo.

O presidente despede-se, em pé, de mais um aldeão. Antes deregressar à cadeira de lona, congratula-se pelo viço da macieira noquintal. Entre a correspondência, uma mensagem do embaixadorem Londres dá conta de que os ingleses têm um plano para sabotaras infraestruturas nacionais caso os alemães ou os espanhóisinvadam Portugal, numa guerra que vai derrubando todas as

fronteiras. O povo é herdeiro de um temor que nem Aljubarrota nema Restauração conseguiram sanar, um padecimento de territóriopequeno e pobre, entalado entre o naufrágio marítimo e um paísmaior, mais rico, mais sanguinolento. Consta ainda que a tese decurso do generalíssimo Franco, na academia militar, tinha porpremissa a invasão de Portugal em menos de uma semana. Maisque tudo, o presidente do Conselho acha o seu congénere espanholum canastrão que, para impressionar Hitler, de bom grado alargariao mapa de Espanha até Lisboa.

Em caso de invasão, os britânicos estão dispostos a levar oGoverno português para a ilha de São Miguel. Chamam-lheOperação Panicle. Entre a espada e a parede, assim descreveriadona Maria a posição do presidente. No fio da navalha, diria ele,percebendo ser este, pelo menos por agora, mais um jogo deargúcia do que de força bruta.

Olha para as maçãs nos galhos da árvore e pondera comer uma,na esperança de resgatar alguma memória da meninice campestree de, mais tarde, no regresso à cidade grande, poder queixar-se dafalta que lhe faz a fruta da sua terra. Este enlevo pela singelezacampesina, onde tudo é mais limpo e intocado, não é exclusivo doPátrio Alguém, mas estimulado pelos acólitos e lambe-botas que lhefazem a corte, como o jornalista do Secretariado de PropagandaNacional que lhe enviou a carta na qual o presidente lê: «Mussolini,Hitler e Franco corromperam a benevolência da palavra ditador. Oditador não é apenas aquele que impõe, mas aquele que conduz e aquem o povo agradece a escolha do seu destino. O que os outroslíderes têm de ostentação e beligerância, Vossa Excelência tem dealtruísmo e humildade.»

Dona Maria aparece com um alguidar de água quente e salgrosso. O presidente abdica de apanhar uma maçã, distraindo-secom um par de melros que se digladiam sobre o muro. A governantadesaperta-lhe os atacadores e tira-lhe as peúgas, reivindicando atira de pele da canela e a intimidade dos pés descalços, comjoanetes e má circulação, manchas pardas e pêlos no dedo grande.Pés gastos e com artroses, pés que as mulheres lavam aos maridosdepois de um dia de trabalho.

«Sempre que aqui chega fica logo com melhor cor», diz DonaMaria. «É dos ares desta terra.» Enxuga as mãos num avental quejá foi da mãe do presidente e senta-se num degrau de pedra, adescascar vagens de favas. Ele não responde. Com os pés demolho, lê o telegrama do embaixador em Madrid. Há um cônsulrefratário em Bordéus, a esbanjar vistos para os refugiados, e agovernanta a papaguear: «Vou fazer uma favada para o almoço.Receita da sua mãezinha.»

A propaganda do regime mostra o presidente como o homem quesó quer o seu pedaço de campo, aquele que deve à Providência agraça de ser pobre e para quem uma sopa de nabiças contém muitomais verdade do que uma vichyssoise. O líder que prefere viver agovernar e que, terminado o seu mandato, nem a poeira dos bolsoslevará consigo. O português que celebra o recato do povo humilde,cuja tristeza lusitana é a cepa do seu caráter. Mas na aldeia ondenasceu e cresceu sente-se tão deslocado como nos bailes dasEmbaixadas.

No Vimieiro, onde não há ópera nem bibliotecas, é o Toninho daMaria do Resgate, o filhote da mamã, introvertido e beato. Nossalões do Estoril e da Lapa, onde entretém banqueiros e trocagalanteios com donzelas que falam francês, é o filho do feitor dasterras. Demasiado sofisticado para as Beiras, demasiado tacanhopara Lisboa. Só na política — arte de que é mestre, mas dizdesprezar — se sente inteiro. A pátria é o seu destino, o seusacrifício, a sua identidade. O que vê no espelho: o Toninho daMaria do Resgate ou o Infante Todo-Poderoso?

O presidente tira os pés da água morna. Dona Maria seca-os comum pano, calça-lhes as meias, dá um laço nos atacadores dossapatos.

«Diga aos homens que vou sair daqui a meia hora. Quero que umdos automóveis leve a correspondência à estação de SantaComba.»

No quarto, o presidente senta-se à secretária e volta aos papéis,ponderando o que fazer com o cônsul de Bordéus — Aristides deSousa Mendes distribuiu milhares de vistos e provocou uma torrentede refugiados em Vilar Formoso, obrigando ao encerramento da

fronteira. O cônsul alegou imperativos morais para salvar todaaquela gente, quis corrigir a História nacional, justificando queestava na hora de reparar a injustiça da expulsão dos judeus hámais de quatrocentos anos. Mas o presidente não suporta ahipérbole e as descompensações emocionais. Tem repugnância dosindivíduos que trocam o dever pela pieguice. Tão-pouco quercampos de refugiados na planície alentejana ou a Gestapo acapturar judeus em Lisboa.

O presidente pega na caneta e escreve.«Regresso imediato do cônsul de Bordéus. Instrução de processo

disciplinar. Um ano de inatividade com metade do vencimento.Aposentação forçada (?)»

Levanta-se e espreita pela janela: Dona Maria ainda descascafavas. Antes de sair para o cemitério, vai pedir-lhe que colhaalgumas flores para a campa dos pais.

O Citroën preto, que leva a correspondência, vira à esquerda nocruzamento, separando-se da comitiva. Na terra onde agora viaja,num automóvel oficial do Governo, o presidente do Conselho já foi obebé das quatro irmãs mais velhas, banhado nos mimos e no amorfeminino. Na rua, pouco falava ou brincava. O mais chorão dosrapazes da aldeia, o menos bruto. Melancólico como o poema deum tísico.

Passam pelos campos dos Perestrelo, seus padrinhos, a quem opai serviu como feitor. Trabalho duro, quebra-costas. Lama nasbotas e dores nas cruzes. Há quantos anos não vê Júlia, filha dosPerestrelo, primeiro amor nunca consumado sequer com um beijo?Chegou a dar-lhe explicações para os exames. Punha-a a estudarpassagens apaixonadas de Almeida Garrett e de Cesário Verde. Poressa altura, já tinha percebido, após os anos do seminário, que ocelibato não lhe servia. Mas o amor romântico era também algoespiritual e casto. Chegou a terminar, por carta, uma amizade comuma colega de faculdade, quando esta o incentivou a concretizar acorte que ele lhe fazia. Repreendeu outra amiga, cujo vestido viravacabeças na rua, uma vez que o despudor de uma mulher infeta areputação do homem que a acompanha em público.

Por alguns segundos, ao ver a casa dos Perestrelo, o presidente

do império volta a ser o filho do feitor. Um arrepio de vexame edesmerecimento sacode-lhe o corpo quando se lembra darepreensão da mãe de Júlia ao saber das lições da filha. «Se volta adar-lhe aquelas porcarias para ler», disse-lhe ela, «vou ter umaconversa com o seu pai, não, melhor, com a sua mãe.»

Os automóveis estacionam diante do cemitério. Um par deagentes fica ao portão, outros dois escoltam o presidente e donaMaria. Mais atrás vai Odete, a criada que carrega um balde, umavassoura e sabão para lavar o jazigo.

«Senhor presidente», grita um dos polícias, na entrada.Timóteo, o neto do pastor, aparece de espingarda a tiracolo e

segura uma trouxa de pano.O presidente faz sinal para que deixem passar o rapaz.Timóteo avança, pés descalços, temente ao doutor de fato com

risca de giz.Dona Maria dá instruções a Odete, que despeja água na pedra ao

redor do jazigo.Um dos agentes aproxima-se do presidente e faz sinal ao colega

para ir ao encontro de Timóteo.Odete começa a esfregar o mármore com a vassoura. As

moléculas do sabão misturam-se com o cheiro das flores podres nascampas e da bosta nos pastos.

«Mostra lá isso», diz o agente. O rapaz detém-se. Nunca recebeuordens de um polícia. Sente as ideias paralisadas. «Estás a ouvir?»,insiste o polícia.

Timóteo não responde, não respira. O agente arranca-lhe a trouxade pano das mãos, fazendo cair três queijos que rebolam pela terrabatida.

«Apanhe lá isso», diz o presidente ao polícia. Estende a mão parao rapaz. «Timóteo, não é?»

Um aceno de cabeça. Os dedos sujos do neto do pastor encaixamnos dedos com manicura do presidente.

«O senhor é rei?» Todos riem, menos o agente que recolhe osqueijos. «O meu avô disse que o Toninho da Maria do Resgate éque se senta no trono lá em Lisboa.»

Dona Maria transforma a inocência do rapaz em certeza

sacrossanta.«Não é rei, mas é como se fosse, que Deus o conserve e

guarde.»«Sou o presidente do Conselho.»O rapaz olha para o jazigo.«É a sua mãezinha ali dentro?»«E o meu pai.»«A minha mãe também morreu.»O presidente passa uma mão na cara do miúdo. Por mais que

tenha ouvido dizer que não há dor maior do que a morte de um filho,está certo de que a sua grande perda será sempre a morte da mãe.Tantas vezes, já no Governo, lhe levou caldos à cama e a acudiucom preces. Noites sem pregar olho, velando à sua cabeceira. Ofilho mais zeloso, o mais inteligente, o mais honesto. O eternomenino da sua mãe.

O presidente coloca-se diante da porta do jazigo e tira o chapéu.Dona Maria estala os dedos para que Odete pare de esfregar a

pedra.«Oremos», diz ele, benzendo-se e fechando as pálpebras. Todos

o imitam.Só Timóteo, que também tirou o boné e fez o sinal da cruz,

mantém os olhos abertos, uma heresia que será a sua glória.Timóteo consegue ver a silhueta dentro do jazigo, a mão que afastaa cortina de renda, a explosão do vidro da porta, o ar pulverizado depólvora e cacos. Uma nuvem encarnada deflagra na nuca dopresidente como na cabeça dos coelhos. Abre-se um buraco de balaonde antes estava o nariz de busto imperial, e os joelhos do PátrioAlguém cedem ao peso dos mártires que morrem pela causa. DonaMaria procura agarrá-lo por uma manga do casaco, para que nãocaia. Mas o presidente estatela-se na poeira da terra natal, comoquando os outros rapazes lhe passavam rasteiras no recreio. Um fiode urina desce-lhe pela canela, suja-lhe os pés que ela lavou.

Há uma explosão na entrada do cemitério logo após o primeirodisparo.

Do jazigo da família sai um homem aos tiros.Timóteo está novamente paralisado. Observa o sangue do

presidente, que salpicou a cara e as flores que dona Maria deixoucair.

Em poucas horas, alguém entrará numa redação de Lisboa aosgritos:

«Mataram o Salazar.»

Sábado, 20 de julhoPor muito que a foz do Tejo tenha inspirado os poetas da

mitologia dos Descobrimentos, a beleza do promontório onde a terraacaba e o mar começa não atenua o pessimismo do detetive. Notopo da colina, Luís Paixão Leal observa a coluna de fumo negroque se ergue lá ao fundo, em Belém. Tira os óculos escuros depiloto de carros, com proteções laterais em couro. Limpa as lentesna aba do casaco. Tem os olhos baços. O esquerdo, com sono. Odireito, de vidro. Não come nada desde o jantar. Toda a noite depiquete. Quando ia regressar a casa, disseram-lhe para apanhar oelétrico, subir ao Jardim da Tapada e levar o Pereira a reboque. Orapaz acompanha-o pela primeira vez numa ocorrência.

Após a morte de Salazar e as bombas que estouraram na GrandeExposição do Mundo Português, em Belém, o Governo declarouestado de sítio e a PVDE, a PIC e a PSP contam com membros daLegião Portuguesa, como Pereira, para ajudar nas infatigáveisdiligências. Batem a todas as portas, revistam casas e carros,garantem a ordem pública em caso de protestos ou greves. Unsforam requisitados por ordem governamental. Os mais idealistas, osvingadores e os fanáticos ofereceram-se ao serviço da nação. APereira, que esperava apanhar os assassinos do presidente doConselho, calhou ser o pajem de um polícia de homicídios zarolho.O legionário ainda não vira Paixão Leal sem óculos escuros.Observa-lhe agora a assimetria no rosto. O olho falso deforma asfeições do detetive e recorda o rapaz do avô que sofreu umatrombose. Quando se conheceram, na sede da Polícia deInvestigação Criminal, o jovem da Legião Portuguesa e estudantede Direito julgou que a alcunha do detetive — o Americano — sedevia à excentricidade daqueles óculos que usa mesmo dentro deportas. Salvo as mulheres estrangeiras, nas esplanadas do Rossio enas praias da Linha, só nos filmes americanos e nas fotografias dascelebridades da Ilustração Portuguesa o rapaz viu homens comlentes escuras.

Paixão Leal não se incomoda que Pereira o fite com indiscrição.Não é a primeira vez que aquele olho se torna uma entidadeindependente, o parasita que eclipsa o hospedeiro.

«Já alguma vez viste um cadáver, Pereira?», pergunta, voltando acolocar os óculos escuros.

«A minha bisavó, no velório. Parecia um anjinho.»Um disparo de canhão assusta o rapaz, que ainda não se

habituou à presença das fragatas de guerra ao largo do Bugio.«É um tiro de aviso», diz Paixão Leal. «Deve estar algum barco a

aproximar-se do vapor que saiu para o Rio de Janeiro.»«Serão refugiados, à luz do dia?»O detetive prefere fazer perguntas a providenciar respostas. Não

explica a Pereira que a sensatez não é uma competência dos aflitos.Desde que foi decretado o encerramento das fronteiras, negandoaos estrangeiros a saída do país, foram abatidas três embarcaçõesde pescadores que transportavam refugiados para o alto-mar, ondeestes tentariam subir ao convés dos transatlânticos.

A guerra na Europa. Os disparos da fragata. O fumo do incêndioem Belém. Bombas na capital. Talvez seja apenas o cansaço dodetetive, mas a manhã de céu impressionista e calor ocioso nãoaligeira a desdita do país órfão de Salazar.

Paixão Leal vira costas ao rio e encaminha-se para o portão doJardim da Tapada, seguido pelo legionário Pereira. Um homem saida casota do porteiro. Tem a manga esquerda da camisa dobrada epresa por um alfinete de dama. Olhando para a mão direita doporteiro, o detetive confirma tratar-se de um veterano da GrandeGuerra que ainda fuma, tal como Cardoso e milhares de soldadosapós o regresso, com o cigarro escondido na concha da mão paraimpedir que um franco-atirador boche o descubra na noite escura.

Paixão Leal quase não precisa de fazer perguntas, o porteirolidera o caminho, jardim acima, debitando que, no dia após ohomicídio de Salazar, o parque fechou ao público e que sóencontrou o corpo porque, numa das suas rondas, se deu conta daquantidade de gatos vadios no mesmo lugar. Restou-lhe usar ocasaco a fim de proteger o cadáver até que chegasse a Polícia.

Um esquadrão de periquitos em voo picado desaparece nasárvores e os gansos de peito insuflado vigiam o perímetro àpassagem dos forasteiros. No meio da mata, um pavão impõe-secom gritos de macho vaidoso. A Natureza alheia às atribulações dos

homens. Raízes e galhos que estrangulam os edifícios do antigocanil real. Os olhos das estatuetas cobertos de fungos multicolores.As larvas nos restos de tecido humano assim que Paixão Lealafasta os gatos necrófagos e destapa o cadáver. Não parece umanjinho, como a bisavó de Pereira. O detetive nota a palidez dolegionário, o seu esforço para suster a náusea. Já viu marmanjos debarba rija expelir as três refeições do dia em circunstânciassemelhantes. Mas Pereira aguenta-se, cobre o nariz com um lenço,talvez não seja tão flor de estufa como induzem as pernas degafanhoto nos calções da farda.

O polícia ajoelha-se ao lado do cadáver. Fala baixinho, uma preceforense: «Roupa de mulher. O tamanho do esqueleto e o corte decabelo também sugerem que a vítima seja do sexo feminino.Faltam-lhe os sapatos. Lama seca nos pés e na roupa.» O detetiveolha à volta, vê dois sulcos paralelos na terra, alguém arrastou ocorpo. Fecha os olhos e, conforme aprendeu ao longo dos anos, fazdesfilar o calendário da memória. Os colegas da Polícia acham quese trata de um atributo sobrenatural, de um truque de magia paramostrar aos convidados numa festa de aniversário. Perguntam-lhe oresultado de jogos de futebol com dez anos e pedem-lhe que recitepor ordem os reis da primeira dinastia. Ele já lhes explicou queapenas consegue recordar aquilo que se passou na sua vida.Dêem-lhe uma data, e o dia em questão organiza-se na sua mente.Por exemplo, treze de julho de 1940, esse é fácil: mataram Salazar;até um tipo com uma memória mediana é capaz de rememoraçõesespecíficas sobre dias incomuns. A notícia de uma morte ou de umacatástrofe. Um pedido de casamento ou o parto de um filho. Mastalvez um tipo com uma memória mediana não conseguisselembrar-se que a treze de julho choveu ao final da tarde, quandoRebeca enxugava a loiça e as crianças entraram na cozinha acorrer, vindas do pátio, reluzentes de suor, ofegantes de riso,pedindo copos de água e limpando a boca com as costas da mãoantes de dizer «Obrigado, mãe.»

Embora Paixão Leal consiga reproduzir partes de diálogos ou deinterrogatórios que aconteceram há anos, não sabe de cor cadapalavra que leu num livro ou numa notícia de jornal. Como acontece

com toda a gente, a sua memória é potencializada se houver umvínculo emocional ou sensitivo com as lembranças. A diferença éque, para Paixão Leal, essas recordações chegam com umavivacidade fora do comum, como se acabadas de acontecer. Commais facilidade um apaixonado decora a letra de uma canção deamor do que um burocrata fixa a sequência de algarismos nocabeçalho de um processo. Paixão Leal não seria capaz de replicaripsis verbis as previsões da rubrica O tempo que faz, do Diário deLisboa, que lê todos os dias. Mas está certo de que choveu pelaúltima vez na noite de treze de julho, não mais de meia hora, porqueMathilda e Chris voltaram do pátio salpicados pelas primeiras gotase, assim que parou de chover, os cheiros lá fora eram maisextravagantes, a terra mais acre e encorpada, os frutos maduros nafigueira mais doces.

«A que horas costuma fechar o parque?», pergunta o detetive.«Sete da tarde», responde o porteiro, que enxota os gatos com o

casaco-mortalha.«Quem é que estava a trabalhar no dia em que mataram o

presidente do Conselho?»«Eu. Até fechámos mais cedo.»«A que horas?»«Às cinco.»«Quantas entradas tem o jardim?»«Quatro.»«Os portões ficam trancados?»«O principal, sim, mas o lá de cima tem a fechadura estragada há

meses. E ainda há a entrada que dá para a igreja e outra naCalçada das Necessidades que só tem uma cancela.»

«Então não é preciso ter uma chave para se entrar aqui fora dohorário de funcionamento?»

O porteiro encolhe os ombros, é apenas o soldado raso numexército de recursos artesanais, já era assim na guerra e assim éhoje nos jardins da capital, nos hospitais ou na Polícia, o país épobre, ainda que bem-intencionado, decerto o detetive zarolhoconhece as limitações de um servidor público.

«Há um mapa do jardim?», pergunta Paixão Leal.

«Temos para aí umas plantas, em papel vegetal, mas sãoantigas.»

«Pode ir buscá-las?»«Sim, senhor.»O detetive regressa à sua ladainha post mortem: «Não veste

meias e tem as mãos entrelaçadas. Unhas partidas. Pele bastantedecomposta. Múltiplas marcas de dentadas, possivelmente dosgatos.» Paixão Leal levanta-se e olha para as copas das árvores.«Pouca sombra. Muitas horas ao sol.»

«O que está a fazer?», pergunta Pereira.«A tirar notas.»«Sem papel nem caneta?»«Gosto de ter as mãos livres.» Puxa do lenço e seca o suor do

pescoço. Tem a camisa empapada. No verão há sempre maiscrimes. E cargas policiais, revoluções, atentados. «Fica aqui.Ninguém toca em nada.»

Dois tiros de canhão da fragata. O estrondo supersónico viajapara as margens do rio, escala a colina, fica a pairar sobre a cidade.O fumo do incêndio, causado pelas bombas na Exposição, afasta-seno sentido da foz.

O detetive tira o casaco e começa a subir a ladeira. Vai passarrevista ao jardim e verificar as entradas. Não vê Rebeca há doisdias. Gostava de tomar um banho de mangueira no quintal daTravessa do Jasmim.

«Onde é que vai?», pergunta Pereira.«Vou chegar tarde a casa.»Sentado junto da janela, no elétrico que passa pelo bairro de

Santos, o polícia estuda o mapa do Jardim da Tapada. Durante abusca não encontrou quaisquer objetos da vítima. Nenhumacarteira, documentos ou sequer os sapatos. Mas a chuva de trezede julho explicaria os pés sujos de lama e os sulcos que fizeram naterra quando o cadáver foi arrastado. No mapa, Paixão Leal esboçaa lápis o possível percurso entre os portões e o cadáver.

O elétrico detém-se antes do destino final. A linha estáinterrompida por causa dos preparativos para o enterro de Estado.Todos os passageiros saltam no Corpo Santo. Paixão Leal mostra o

distintivo aos agentes da PSP que guardam a passagem para oTerreiro do Paço. A bandeira nacional está a meia haste no Arco daRua Augusta. Na praça monumental, os legionários ensaiamcoreografias militares para as cerimónias oficiais do luto. Centenasde homens fardados marcham e cantam o hino da Legião. Amanhã,dia de exéquias, haverá discursos de canonização do presidente doConselho, outros acerca da ofensiva comunista que o matou e quefoi responsável pela colocação de engenhos explosivos em Belém.

«Aonde é que vamos?», pergunta Pereira. Dezenas de horas deexercícios militares, a disparar armas, e agora serve de escudeiro aum agente que fala sozinho enquanto os colegas legionárioscelebram o Pátrio Alguém na praça imperial.

«Ao Torel.»Galgam a Rua Augusta, onde há quase tantos polícias como civis.

O Governo decretou luto oficial, impôs o recolher obrigatório a partirdas nove da noite e desencoraja os portugueses de sair à rua atéque sejam capturados os terroristas.

Um quarteirão antes de alcançar o Rossio já se ouvem as buzinase o chiar dos pneus. Há menos táxis, vendedores ambulantes eestrangeiros do que habitualmente, mas as conversas da cidade-refúgio ainda são atravessadas pelos pregões da Sorte Grande e dopeixe fresco. Homens com roupas tão pardacentas como asfachadas dos prédios espreitam as manchetes nos placards dosjornais: Franco e Hitler encontraram-se na fronteira franco-espanhola; Churchill garante que o Reino Unido está preparadopara enfrentar a Força Aérea alemã, mas não abrirá uma frente deguerra na Península Ibérica; Roosevelt recandidata-se à presidênciados Estados Unidos.

Junto ao Arco da Bandeira, os ardinas tentam despachar osúltimos matutinos, traficantes de preservativos garantem discrição e,caso seja a vontade do freguês, sabem de uma rapariga muitomeiga e asseada que recebe num quarto da Praça da Figueira. Aoredor do pedestal da estátua de Dom Pedro organizou-se umacoleta de fundos para os refugiados. Diante do Teatro Nacional, atropa vigia a praça, escoltada por um carro militar. Um punhado dehomens desbotados cobiça as estrangeiras instaladas na esplanada

da Pastelaria Suíça. O líder de um grupo de Lanças, da LegiãoPortuguesa, pouco mais velho do que Pereira, discute com umempregado do café.

«Não quero a via pública obstruída. Isto é uma pouca-vergonha.Um atentado ao pudor. Amanhã o desfile fúnebre passa por aqui.»

O hábito da esplanada, inexistente em Lisboa até que osrefugiados começaram a levar as mesas dos cafés para a rua,provoca ajuntamentos de portugueses que querem ver pernas nuase saias pelo joelho. A visão inusitada das estrangeiras leva-os aconfundir moda com deboche. Paixão Leal conhece alguns dessesmachos esgazeados. Noutros tempos, confiscou-lhes materialpornográfico quando o seu trabalho de polícia dos costumes eraapreender publicações obscenas e autuar cartomantes.

O líder dos Lanças toca com o cassetete numa mesa daesplanada para que os clientes se levantem. «Vamos, rápido, vite,vite, schnell, schnell, ala que é Cardoso.» Os estrangeiros levantam-se com o mesmo susto dos pombos na praça quando um tubo deescape soa como um disparo.

Na gíria da cidade, os bastões que o Governo espanhol ofereceuà Legião foram cunhados como «Pau de Franco», aludindo a umaanedota que se propagou pelos cafés após uma entrevista doditador espanhol ao Diário de Notícias, no rescaldo da morte dopresidente do Conselho: «A maior qualidade do professor Salazarera a modéstia», disse o generalíssimo, acrescentando que odefunto compreenderia a necessidade de uma união ibérica emcaso de invasão comunista da península e justificando assim aoferta dos bastões. Na anedota que começou a circular de imediato,Franco era o homem viril, Salazar a mulher complacente.

Nas Portas de Santo Antão, um soldado informa que a Avenidaestá cortada e o elevador do Lavra parado.

«Vem aí uma canalha de operários da Marinha Grande.»«Anarquistas?», pergunta Pereira.«Só sei que já estão no Marquês.»Paixão Leal decide subir pelo Beco de São Luís da Pena. Ao

estralejar de uma metralhadora, as gaivotas respondem com umarajada de asas em fuga dos telhados. A meio da escadaria, a terra é

sacudida por uma explosão. Os passos do detetive devoram trêsdegraus de cada vez. Pereira esforça-se para o acompanhar.Chegados ao alto da colina, podem ver as espirais de fumo queenlaçam a estátua de Dom Pedro e flutuam acima da estação doRossio.

Na sede da Polícia de Investigação Criminal, embora não sejaainda meio-dia, há uma modorra de hora de sesta: as portadas dasjanelas entreabertas, o rádio a tocar baixinho, partículas que cintilamnos feixes de luz como galáxias de pó. O edifício de dois andares,no Jardim do Torel, tem pouco mais de uma década, mas o telhadopinga chuva em dezembro e ferve em julho. O contínuo dormita nacadeira. Não tocam telefones. Os mosquitos perfuram o ar líquidocomo cardumes de enguias, cansam-se depressa, atracam osferrões nas bochechas do contínuo.

Pereira, sentado na cadeira de Paixão Leal, bate com o Pau deFranco na mesa, faz de baterista amador ao ritmo da música deBing Crosby que toca na rádio.

Cardoso levanta os olhos das páginas da edição do novo matutinoA Verdade. «Podes parar com isso?» Está em mangas de camisa edescalço. Volta ao artigo sobre o único detido pela morte dopresidente do Conselho. A GNR encontrou-o moribundo, dias apóso atentado, escondido num pinhal. No cemitério, um rapaz da terra,pastor e devoto de Nossa Senhora, Timóteo Merendeiro de seunome, tentou defender o presidente, alvejando com uma espingardade caça o comunista que haveria de ser apanhado pela Guarda. Opastor, ferido no fogo cruzado, recupera no hospital e recebeu avisita do presidente da República.

Pereira levanta-se, procura algo para fazer, anda pela sala,inquieto com o ressonar do contínuo e com as unhas grossas nospés descalços de Cardoso.

O detetive não tira os olhos do jornal. «Estás com a mosca oucheira-te a palha?»

Pereira cruza os braços atrás das costas. Vasculha aprocrastinação na sala. Faz uma pausa cénica. «Onde é que estátoda a gente?»

Cardoso fecha o jornal e atira-o para cima da mesa. «Na rua,

atrás dos bandidos.» Pega numa caixa pequena, tira uma cigarrilha,coloca-a atrás da orelha, observando Paixão Leal pela porta abertado gabinete de Ferrão. «Legionário Pereira, uma vez que estáimpaciente com o funcionamento da Polícia, que tal colaborar com oesforço coletivo de defesa da pátria?» Tira algumas moedas dobolso. «Podia fazer-me o obséquio de ir ao café do Fontes comprar-me uma sandes de queijo?»

Pereira demora-se a encontrar uma resposta. A preponderânciacrescente da Legião atribui-lhe o direito de fiscalizarcomportamentos desviantes, denunciar maldizentes do regime e darordem de prisão a infratores da lei. Mas o rapaz ainda não foiinteiramente tomado pela soberba dos poderes que lhe delegaram.Educado para respeitar as patentes e os mais velhos, não esqueceque Cardoso é um veterano de guerra e um detetive de primeiraclasse.

«Com todo o respeito, mas não sou moço de recados.»Cardoso levanta-se. Os seus pés descalços e as manchas de

suor nos sovacos não traem a seriedade do tom de camaradagemmilitar.

«É apenas um favor entre dois colegas ao serviço da nação.»Pereira aceita as moedas e sai da sala ao mesmo tempo que

Paixão Leal abandona o gabinete do chefe. Cardoso tira a cigarrilhada orelha, ri-se sozinho, balançando a pança. Uma nesga de carnetranslúcida aparece no lugar do botão que ele se esqueceu deapertar na camisa. Desde que a mulher morreu, Cardoso foicrescendo em banha e niilismo, crente apenas nos guisados combatatas, no vinho para adormecer e na inutilidade das grandescausas. Não perde tempo com espelhos, abdicou do resguardo e dadiplomacia social.

«Tiveste saudades minhas?», pergunta.«Suficientes para te escrever a letra de um fado», responde

Paixão Leal. «E a papelada, deu-te muito trabalho?»«Com o calor que faz lá fora, antes a tortura de preencher

relatórios.» Cardoso desliza a cigarrilha diante das narinas, respiraas folhas secas. «Espero que não te importes que tenha

despachado o teu legionário de estimação. Mas não gosto de bufosa cirandar à minha volta.»

Os detetives sabem bem que os legionários não têm a missãoexclusiva de ajudar a Polícia, também devem vigiá-la. Cardosoempurra o exemplar d’ A Verdade, em cima da mesa, na direção docolega.

«Um comunista outra vez, como em trinta e sete?», diz PaixãoLeal.

«É indiferente.» Cardoso tira as meias da gaveta. «O que lhesimporta é que o gajo cante alguma coisa antes que o velho vá parao cemitério.» Tenta calçar uma meia, debate-se com a barriga, nãoalcança o pé. «Esta noite devem ser presos mais uns quantos.»

«Como em trinta e sete.»Em 1937, a mulher de Cardoso ainda estava viva e Salazar

escapou de uma bomba. Nem a propaganda oficial escolheriamelhor frase de abertura para uma hagiografia ne varietur dopresidente do Conselho: «Salazar sobrevive a um atentado nocaminho para a eucaristia de domingo.» Se Dom Sebastião nãoregressava no nevoeiro, Salazar emergia de uma bolha de poeira,entre vidros partidos e tampas de esgoto atiradas pelo ar,abençoado pela Providência. Nessa manhã, sacudiu os detritos docasaco e disse aos presentes: «Vamos à missa.» Os jornaisgarantiram a presença de mulheres em lágrimas na capela junto aosinistro. Testemunhas comentaram a bravura do chefe do Governo.Não tinha apenas sangue-frio para as finanças, era um guerreiro. Dehóstia tomada e preces em dia, Salazar confirmou a tradiçãolusitana dos heróis singelos: «Como fiquei vivo, terei de continuar atrabalhar.» Nos dias seguintes, por todo o país, começaram asmissas de agradecimento e uma vaga de repúdio que uniu a nação,de militares católicos a editorialistas do Avante! De nada valeu aojornal comunista condenar o atentado. O papão vermelho foraescolhido havia anos pelo Estado Novo. A PVDE capturou cincopedreiros que assinavam de cruz e sem qualquer atividade política.Chamou-lhes «Terroristas do Alto do Pina». Entraram na sede daPolícia sem conhecer Karl Marx ou a dinamite, mas, ao fim de váriosdias de porrada, diziam-se filhos de Estaline e especialistas em

nitroglicerina. O diretor da PVDE encerrou as diligências com agarantia de que os pedreiros eram espiões a mando do Kominternsoviético. Só mais tarde a PSP haveria de apanhar os verdadeirosculpados.

«Desta vez é diferente», diz Cardoso.«Porquê?»Cardoso cala-se, deixando para o colega a contemplação das

inúmeras possibilidades iniciadas com a morte de Salazar. Corteja acigarrilha, beija uma ponta, aperta-a entre os dentes. «O que tedisse o chefe?»

«Que fosse para casa. Amanhã é dia grande. Estamos todos deserviço.»

«Mais valia esfolar-nos vivos. Ainda há bocado saíram daqui oBacalhau e o Pimentel para ajudar no Rossio.»

Paixão Leal pega no chapéu.«Vou passar pela morgue.»«O chefe não te mandou para casa?» Cardoso olha para os

sapatos por calçar como se fossem o décimo terceiro trabalho deHércules. «Vá, faz-me companhia na varanda.» Mostra a cigarrilha.«O chefe embirra quando fumo cá dentro.»

Pimentel, regressado do Rossio, entra na sala de supetão, com acamisa rasgada, os dedos em sangue, um lanho na testa.

«Foda-se, quando é que isto acaba?»«Ainda agora começou», diz Cardoso, mais preocupado em

conseguir meter os pés gordos dentro dos sapatos do que em pararrevoluções.

Na varanda do segundo andar, Cardoso chupa por fim acigarrilha, baforadas gordas, o peito encharcado de nicotina. Docume da colina, os detetives podem ver o eixo que vai do ParqueEduardo VII até ao rio. Colunas de fumo, a manifestação deoperários perseguida pelos militares, em debandada pela RuaGarrett acima.

«Percebes, Americano», pergunta Cardoso, «porque é que isto émuito diferente do que se passou em trinta e sete?»

——•——Na capital, os devotos do politeísmo lusitano acorrem ao Campo

dos Mártires da Pátria para visitar o milagreiro doutor Sousa Martins.Há flores e velas junto da estátua. Na pedra, colados com cera,bilhetes manuscritos agradecem curas inexplicáveis e pedem aintervenção fantasma do médico num cancro da mama. Sempre quevai visitar a doutora Catarina van Zeller ao Instituto de MedicinaLegal, o detetive quebra as leis de Deus e dos homens: olha para oslados e pilha o altar das oferendas. A médica-legista gosta decolecionar os bilhetes ali deixados pelos admiradores de SousaMartins. Quanto mais insólitos, mais valiosos.

Na sala de autópsias, a doutora Catarina segura uma mangueirae lava o chão. O cadáver que sujou a mesa já seguiu para afunerária.

«O que me traz hoje?»«Acho que não tem este.» Paixão Leal desdobra o bilhete e lê.

«Do apêndice agradecido.» Na maior parte das mensagens, onarrador que se dirige ao médico milagreiro é um órgão grato aodoutor Sousa Martins pela cura.

Forte de estômago e de nariz, o detetive aguenta o amargometálico dos restos de sangue na mesa de autópsia. Não enjoa coma carne morta, um fedor que lembra plantas podres e restos decomida a exsudar numa lixeira. Quando os detritos corporaisescorrem da mesa de autópsia para o ralo na pedra, a inquietaçãodo agente é mais existencial do que física. A visão daqueles restoshumanos, que entopem os buracos no chão, a caminho do esgotoda morgue, converteria um narcisista empedernido ao culto dairrelevância de si mesmo. Do ralo vieste, ao ralo voltarás.

Catarina fecha a torneira e limpa as mãos numa toalha.«Já tenho coração, pulmões e intestinos agradecidos. Mas

apêndice?» Vira-se para o detetive. «Bem, o Luís deve lembrar-semelhor do que eu.»

Quando, pela primeira vez, o detetive lhe explicou o rigor e aamplitude das suas recordações, a médica iniciou uma troca decorrespondência com Herman Herzog, o médico nova-iorquino dodetetive, e com ex-colegas da Universidade de Berlim. Umpsiquiatra austríaco informou-a do caso de uma violinista polaca quese lembra da hora, do dia e da sala de todos os concertos em que

tocou. Perguntem-lhe que dia da semana foi sete de abril de 1924 eela responde: «Quinta-feira, nevou, estudei Bach, a minha mãecortou o dedo a descascar batatas.»

Paixão Leal guarda o papel no bolso quando se dirigem para ogabinete da médica.

«Se bem me lembro, entreguei-lhe um apêndice em março,doutora.»

«Será que não há esfíncteres agradecidos?», pergunta ela,gozona.

Catarina van Zeller, a transgressora que estudou no estrangeiro, éa única mulher a trabalhar na morgue. Usa o cabelo curto e vestecalças. Tamanha ousadia é permitida, segundo alguns colegas, porser afilhada do ministro do Interior. Também concordam que, alémde pertencer à escola do nepotismo do Estado, ela está inscrita naOrdem do Lesbianismo. Se Catarina quisesse, bichanam entre si,faziam dela uma mulher a sério.

«Outro estrangulamento», diz a médica. Em cima da mesa dogabinete está um relatório de autópsia. Num país em que asprincipais causas de homicídio são o adultério, os ciúmes e a honra,as mãos dos homens estão entre as armas mais populares paramatar mulheres. Mãos despidas ou armadas de objetos. Catarina jácatalogou cintos que esmagaram traqueias, martelos queestilhaçaram dentições, anéis de mulher que, à boleia dos dedos,voaram da janela de um quarto andar. «Mulher adulta. Jovem. Oestado de decomposição impede o reconhecimento facial. Temequimoses no pescoço, frontais e posteriores. Também no rosto enas mãos. Fratura de dois dedos e vestígios de tecido humano sobas unhas partidas.» Catarina passa o relatório a Paixão Leal. «Estadeu luta.»

O detetive tira os óculos escuros, ajeita a aba do casaco como sevestisse uma bata de médico.

Contusões subcutâneas, com padrões

horizontais, acima da cartilagem da tiroide.

Lacerações, 3,5 cm x x 1,5 cm, no nariz.

Múltiplas lacerações, 0,7 cm x 0,6 cm a 2 cm

x 1,4 cm nos lábios. Contusões de 6 cm noprocesso xifóide. Contusões observadas no

terço superior do esófago, numa área de 6 cm

x 6 cm.«Devia ser um tipo forte e com mãos grandes», diz Catarina.Paixão Leal devolve-lhe o relatório da autópsia do cadáver

encontrado no Jardim da Tapada.«Havia marcas na terra que sugerem que o corpo foi arrastado.»«Lacerações post-mortem apontam para isso. E tinha uma hóstia

na boca, já bastante degradada, mas era uma hóstia.»O detetive roça a haste dos óculos escuros numa perna, morde o

lábio. Pode escutar-se a engrenagem no interior do crânio:«A matéria orgânica que a doutora encontrou no estômago da

Santa do Cabo, misturada com vinho e clorofórmio, podia ser umahóstia?»

«Penso que sim. Outro detalhe incomum é que a vítima do Jardimda Tapada, além de não ter meias, não tinha cuecas.»

«É normal as mulheres andarem sem cuecas?»A doutora Catarina sorri.«A experiência diz-me que não. Além disso, havia lacerações nas

coxas e nas ancas.»«O assassino tirou-lhe as cuecas.»«À bruta. Mas deixou o resto da roupa. E a saia pode dar uma

pista.»Catarina entrega-lhe a saia num embrulho de papel pardo e diz:«O doutor Herzog escreveu-me a dizer que encontrou outro caso

como o seu.»«Quem?»«O paciente de um psicanalista em Chicago. Corretor de apostas.

É uma profissão onde deve dar-lhe jeito lembrar-se de tudo.»«A doutora sabe que não é assim que funciona.»«O psiquiatra também sugeriu um nome para a sua condição.»«Qual?», pergunta o detetive.«Síndrome de supermemória.»Paixão Leal sorri, trocista da nomenclatura pomposa:

«Acho que isso diz mais sobre ele do que sobre mim.»

Domingo, 21 de julhoGustavo Soares Pereira, que tem uma vaidade milimétrica na

composição da farda, coloca a braçadeira com a cruz verde daLegião. Faz gala de ser o primeiro a acordar na casa do PríncipeReal, antes até dos criados. Essa é mais uma insígnia que, julgaele, destaca o seu esforço rumo à excelência. Sai do quarto com asbotas na mão e desce os degraus de madeira rangente, em bicos depés, porque não quer acordar a mãe. Com ela, inibe a propensãopara ser notado, escolhe a invisibilidade. Se o filho caísse pelasescadas, Margarida Soares Pereira, diretora da revista da MocidadePortuguesa Feminina, repreendê-lo-ia pela interrupção do sono.«Quem o manda andar descalço?» Mas jamais se daria conta docuidado do filho em não fazer barulho. Se Gustavo ganha algumaprova de atletismo, ela diz: «Não faz mais do que a sua obrigação.»Para Margarida, o exercício do dever não merece aparato. Não seaplaude um leão por comer uma gazela. O que distingue um homemé a nobreza do sangue, hereditária e discreta, que não se compranem conquista. Por mais que Gustavo se empenhe, a lotariagenética atribuiu-lhe a cara, o corpo e o caráter da estirpe paterna, eisso a mãe não esquece nem perdoa.

O rapaz aquece água para o café. Descasca uma laranja e come-a sobre o lava-loiças. A cozinha foi passada a água e sabão. Nasnoites de sábado, a mãe não janta e o pai tem os encontros com osamigos. Nem o recolher obrigatório imposto pelo Governo oimpossibilitou de sair de casa. Para alguma coisa há de servir ocargo de juiz.

A água ferve, a porta da rua bate. Jaime Soares Pereira, membropouco militante da União Nacional, aparece na cozinha. Move-secomo um louva-a-deus, passos angulosos, o gigantone que bebeudemasiado conhaque. Tal como o filho, tem pernas longas e braçosde borracha. É alto, ombros ossudos, um nariz que, por largadistância, é sempre a primeira parte do corpo a entrar numa sala. Opai é calvo, o filho tem as têmporas rapadas e um tufo no cocuruto,com um risco desenhado a brilhantina, ao estilo popularizado pelaJuventude Hitleriana. As sardas do filho serão um dia as manchasque alastram na cara do pai. Jaime e Gustavo têm a mesma voz de

baixo que leva as pessoas a dizer «Podia ser locutor de rádio», masque, na verdade, esconde o espanto quando descobrem que osesqueletos podem falar com a gravidade de um trombone.

«Ora bons dias.»«Bom dia, pai.»Jaime tira-lhe a laranja da mão e arranca um gomo. Mastiga,

satisfeito. Mesmo quando não está bêbedo tem a bonomia dos quepairam sobre a vida sem o nervo do drama ou a cruz daspreocupações. «Vai correr tudo bem» é o seu refrão quando oincomodam em casa ou no escritório. Nem sempre tudo corre bem.Mas os que renunciam grandes ambições não sofrem grandesdesaires. Jaime não beneficiou apenas da sorte que protege osprivilegiados. Também recebeu uma herança. Estudou com os filhosde militares, casou-se com a filha de um ex-ministro. Trocas defavores, compadrio e jantares em clubes exclusivos paracavalheiros.

Jaime rouba mais um gomo e entrega o resto da laranja ao filho.«Era mesmo disto que estava a precisar.» Trinca o fruto a pensar

nalguma coisa que mordeu nessa noite. O seu hálito de charuto ficamais doce. «Aonde é que vais tão cedo?»

«Ao funeral. Pedi ao pai que falasse com o diretor da Legião,lembra-se? Pelos vistos, resultou. Fui destacado para acompanhar ocaixão.»

«Parabéns.»Porque uma cunha do pai não deveria granjear congratulações,

Gustavo tenta algo mais meritório.«Ontem vi um cadáver.»«E daqui a nada vais ver outro.» A vulgaridade com que Jaime se

refere ao presidente do Conselho acentua-se quando segura a carade Gustavo com as mãos meladas de laranja, álcool e sexo de umamulher. «Meu filho.»

Se a mãe é indiferença e exigência, o pai é comprazimento efacilitismo. Quando o rapaz chegou ao quadro de honra do colégiode padres, ou foi campeão regional de salto em altura, Jaimetambém lhe agarrou o rosto com as mãos e disse «Meu filho». Tal

como faria se Gustavo descobrisse a cura para a poliomielite oudissesse que já conseguia atar as botas sozinho.

O rapaz, que nunca teve uma namorada, não entende o arranjoque os pais acordaram para coexistir na mesma casa, a hipocrisiado simulacro de um matrimónio. Mas também não percebe asimplicações de um contrato vitalício, assinado perante Deus e asociedade lisboeta, quando Margarida tinha dezassete anos e Jaimefrequentava o último ano da faculdade.

«Estás a fazer café?»«Estou é atrasado.» Gustavo quer livrar-se do pai, apaga o lume,

mas não deixa que o cheiro daqueles dedos o obrigue a infringir oprotocolo do respeito filial. «A sua bênção, pai.»

Na Praça das Flores, os candeeiros públicos ainda estão acesose atraem esquadrões de mosquitos que fazem Gustavo pensar naLuftwaffe sobrevoando a Inglaterra. Se Portugal entrar no conflito,será piloto de bombardeiros. Há três anos, foi ao aeródromo daGranja do Marquês ver a chegada dos Junkers trimotores, falcõesalemães de barriga prateada, com autonomia para bombardear osrojos em Madrid e voltar a Lisboa a tempo de receber uma medalha.

Desce para São Bento com aspirações épicas. Escala a Rua deSanto Amaro em passo rápido, sem perder o fôlego. Num país desubnutridos, onde gordura é prosperidade e saúde, a magreza évista como a maleita dos pobres e dos tuberculosos. Os outroslegionários subestimam a aparente fragilidade de Gustavo Pereira,não descortinam a sua ligeireza de galgo, a ambição silenciosa. Ocurso de Direito aborrece-o. Quer a ação que é devida aos jovensheróis. Tem um crachá de Afonso Henriques na lapela da farda daLegião. Acredita estar disposto a morrer pela pátria, a ser o MartimMoniz do Estado Novo.

O portão do Jardim da Estrela ainda se encontra trancado.Gustavo segue junto ao gradeamento, esperando que o quiosque daÁlvares Cabral esteja aberto. Não está, mas ele vê uma torre deexemplares do Diário da Manhã no passeio. Na primeira página, asparangonas estão sublinhadas pelo cordel que aperta os jornais.«Comunistas judeus mataram Salazar.» Ocupando uma parte menor

da primeira página, há uma fotografia do presidente do Conselho e otítulo: «O adeus de um Portugal agradecido.»

Em tempos, Gustavo tentou ler o livro de António Sardinha, Ovalor da raça, e a obra de Mário Saa, A invasão dos judeus, masdesistiu ao fim de algumas páginas, mais fascinado pelas fardasazuis dos nacional-sindicalistas e pelos desfiles militares. Nacoleção de exemplares de A Voz, que guarda no sótão, também leuos artigos de Vieira Borges em que o colunista se opõe à chegadados refugiados, alcunhando os judeus de «ervas daninhas que Hitlerarrancou da terra alemã». A verdade é que Gustavo só conhece umjudeu, médico e amigo do pai, tão português nos modos e feições,que poderia servir à mesa numa casa de pasto da Baixa.

O legionário Pereira não entende que, no dia das cerimóniasfúnebres do presidente do Conselho, o Diário da Manhã dê maisdestaque aos assassinos do que ao estadista. Irrita-se com aimpossibilidade de a missa do funeral acontecer no Mosteiro dosJerónimos, porque a Exposição do Mundo Português — oito séculosde História em jeito de parque de diversões — foi arruinada numa sónoite, após a morte de Salazar. As bombas rebentaram com oPadrão dos Descobrimentos, destruíram a estátua da Soberania,incendiaram as palhotas angolanas e as casas regionais de Trás-os-Montes. Maníaco dos símbolos e dos estandartes, Pereira chorou ejurou vingança quando, no ancoradouro de Belém, viu os despojoscalcinados da nau Portugal.

O legionário tira um exemplar do Diário da Manhã e deixa umamoeda sobre a pilha de jornais. O Sol levanta-se a oriente, ondemais longe chegou o império lusitano. Mas na manhã da metrópolecheira a merda de vaca. Ele olha para a estrada e vê a carroça quedesce para o Largo do Rato. Um velho dirige a mula geriátrica. Láatrás, uma mulher de preto, três crianças maltrapilhas, um rafeiro eum monte de estrume.

No sentido contrário, Gustavo vê a aproximação dos cavaleiros doExército. Dirigem-se para o cortejo oficial. Fardas de gala e alazõesfilhos de Pégaso. No seu rasto, trota a multidão chegada emcamionetas e no comboio. Milhares de portugueses de todo o país,roupas de domingo, farnéis, garrafões de vinho, bandeiras de

grémios e associações recreativas. Gustavo dobra o jornal,deixando à vista o nome de Salazar. Marcha para a basílica,imaginando-se escoltado pela cavalaria, liderando um povo que, tãopróximo e em grande número, lhe parece agora um rebanho mansoa caminho do matadouro que se tornará a Europa.

Depois das últimas despedidas na basílica, os ministros e osembaixadores dirigem-se aos automóveis, acompanhados pormulheres de luvas até aos cotovelos e véus negros, com estolas nosombros e olhos papudos de choro. No exterior e nas naves laterais,agentes da Gestapo, da Seguridad e da PVDE garantem a proteçãodas altas figuras do Estado. O ministro alemão da Propaganda,Joseph Goebbels, e o presidente espanhol, Francisco Franco,fizeram a costumeira pausa respeitosa diante do corpoembalsamado.

Mas, assim que o caixão abandona a redoma cerimoniosa dabasílica, no coche que outrora transportou o rei Dom Carlos para ocemitério, o luto do povo nas ruas dispensa formalidades. Famíliasbrandem lenços e atiram flores das varandas onde pendem mantosnegros. Homens trepam aos telhados para acompanhar o avanço docarro fúnebre que a custo perfura a turba — uma pelagem demilhares de cabeças com chapéus e lenços negros, um bichocompacto e ondulante. Não se vê uma pedra da calçada. Desmaios,falta de ar, gritos, chiliques das carpideiras e o hino cantado com aexaltação do Dia da Raça. Gustavo experimenta as reaçõesdecorrentes da espiritualidade das massas. Um arrepio nas costas,os olhos húmidos e um raro sentimento de pertença e êxtase.

Reconciliado com o povo rude, mas fiel ao líder, Gustavo segueatrás do coche fúnebre. Faz parte dos Lanças que protegem ocaixão. No rio, as fragatas disparam salvas de homenagem.Centenas de embarcações de recreio e de pesca fazem tanger asbuzinas. A brisa do Tejo impregna as bandeiras legionárias degasóleo, limos e esgoto. Já se pode ver o castelo conquistado aosinfiéis no alto da colina. Ao chegar ao Terreiro do Paço, o cortejodeixa para trás a populaça, recupera a solenidade das exéquias domaior patrono da História nacional. Na praça estão milhares desoldados e oficiais. Desfilam as fardas do Exército e da Marinha, as

túnicas com a cruz de Cristo que a Mocidade Portuguesa veste emdias de cerimónia.

O caixão é levado para diante do Arco da Rua Augusta, onde foimontado um palanque para discursos e uma bancada que senta osconvidados oficiais. O primeiro a falar é o cardeal Cerejeira, querecorda com ternura o presidente do Conselho, seu colega dequarto na Universidade de Coimbra. Segue-se Duarte Pacheco,ministro das Obras Públicas que, interinamente, substitui Salazar napresidência do Governo. Dá voz à gratidão do país pelo seuantecessor, mas demora-se a falar do futuro com palavras como«progresso», «industrioso» e «humanismo». Talvez por isso o pai deGustavo diga que a ala conservadora do partido único não osuportará muito tempo.

O general Óscar Carmona, presidente da República, aproxima-sedos microfones quando, na torreira do calor da praça, um legionáriodesmaia. Transportam-no para a sombra da bancada. Gustavoidentifica a silhueta que, sentada ao lado de Franco, se levanta paraajudar o rapaz caído. É Francisco Rolão Preto, celebridade doIntegralismo Lusitano e fundador do Movimento Nacional-Sindicalista. Os fotógrafos apontam as lentes para o homem queSalazar exilou em Espanha e que colaborou na escrita do programada Falange.

Carmona alonga-se nos cumprimentos protocolares. Chegada avez de mencionar o presidente espanhol, agradece-lhe o sacrifícioque impediu a infeção da praga vermelha na península. Relembraas igrejas incendiadas pelo inimigo comunista durante a guerra civilno país vizinho, quando os insurgentes gritavam que todos osconventos em chamas não valiam a vida de um republicano. Invocao mítico passado dos reis católicos que expulsaram os mouros:

«Num momento em que a cristandade vive sob a ameaça defariseus, libertinos e usurários, Portugal e Espanha são a lança danova reconquista. Duas nações irmãs, unidas pela lealdade e peladefesa da raça ibérica. Somos os herdeiros do Tratado deTordesilhas, que permitiu evangelizar o mundo. Temos comoobrigação manter esse legado intocável, luzindo como um facho quenos guia nesta ponta abençoada da Europa.»

O presidente Carmona faz uma pausa e olha para Franco,executando uma pequena vénia de reconhecimento. O feedbackmetálico dos microfones estala nos altifalantes. Franco levanta-se eespera um instante para que tudo se cale. O chicotear dasbandeiras, na imensa praça-coração do império, carrega o silênciode expectativa e de magnificência. O ditador espanhol dá um passoadiante e, em vez de retribuir com uma vénia, estica o braço ao céu,saudando César e os milhares de soldados diante de si. Rolão Pretolevanta-se e imita-o. Os legionários são os primeiros a responder.Em segundos, todo o Terreiro do Paço é uma só entidade de braçoestendido, unida pela coreografia que saúda os imperadores dacivilização ocidental.

Gustavo sabe que há homens que se comovem diante de quadrose que choram ao ouvir sinfonias. Ele é mais sensível à estética e àordem de uma grande causa. Tamanha manifestação, naquelapraça, serve para afirmar a superioridade de Deus, da pátria e dafamília sobre o indivíduo. Mas, ainda que Gustavo sinta que o seuego se dissolve no mar das aspirações coletivas, quando levanta obraço ao alto também sente o poder de quem atravessa sozinho alinha da meta em primeiro lugar. Um dia, Deus, pátria e todas asfamílias irão saber quem é o filho único dos Soares Pereira.

Agora, que o cortejo sobe a Rua Áurea, Paixão Leal devia estaratento a possíveis atentados, mas inicia uma prova de obstáculoshumanos quando reconhece uma cara naquela massa de gente.Afasta braços, pede licença às nucas, recolhe os cotovelos para nãotocar no peito das mulheres, acercando-se do bigodinho que parecea sobrancelha arranjada de uma corista:

«E eu que pensava que só escrevias ficção.»Fialho suspende a escrita no bloco de notas e levanta a cabeça.«Vossa excelência, senhor detetive.» O vinco na testa revela

genuína surpresa. A voz não esconde o sarcasmo. «O meu leitorfavorito.» O jornalista cumprimenta o polícia como se visse umprimo em segundo grau que só esperava encontrar no Natal.

Abençoado pela Comissão de Censura, Jorge Fialho foicorrespondente do Diário da Manhã em Espanha. Nas suascrónicas e reportagens, o viés pró-Franco e antiesquerdalhos só

tinha par na quantidade de adjetivos e superlativos com queengrandecia as suas ficções disfarçadas de jornalismo. A prosapublicada no matutino atraía muitos leitores que não duvidavam queas crianças espanholas eram trinchadas para o pequeno-almoçodos comunistas. Fialho escolhia uma aldeia ao calhas no mapa e,num quarto de pensão em Sevilha, descrevia o fumo dasespingardas dos republicanos após o fuzilamento de uma brigadade voluntários portugueses da Falange. Tudo inventado. Sempredevorou livros de espadachins e piratas, sabe que o público gostaque os bons sejam muito bons e os maus muito maus. Os seusrelatos ofereciam entretenimento e ultraje, instigavam o medo eapelavam às represálias. Incendiavam as convicções dos leitores.Se fosse chamado a opinar, Paixão Leal comentaria apenas queFialho escrevia mal e mentia muito.

«Ouvi dizer que viste a guerra espanhola alapado no bar dohotel», provoca o detetive.

«Os críticos são como os eunucos num harém. Já viram aquiloque um homem pode fazer a uma mulher. Mas não conseguemimitá-lo.»

«Devias escrever um livro de aforismos.»Fialho vai responder com outra graçola, mas o caixão aproxima-

se e alguém grita: «Chegou o professor.» Todos os homens tiram oschapéus e baixam a cabeça. Apenas Paixão Leal, que segura ofedora americano pela copa, junto ao peito, não tem os olhoscravados no chão. Procura suspeitos. Só vê rapazotes a brincar aossoldados. Entre eles encontra Pereira, seu novo colaborador noshomicídios, que desfila no cortejo segurando um estandarte e foca oolhar num ponto infinito, onde luz o tal facho que guia as naçõescristãs.

«Até na morte o professor é humilde», diz Fialho, e volta a cobrir ocabelo com o chapéu, uma melena tão negra que Paixão Lealconsegue cheirar-lhe a tinta. É impossível não sentir a ironia dorepórter quando este diz: «Um santo. Podia ir direito para oPanteão. Mas no testamento deixou claro que queria ser enterradona aldeia onde nasceu. Numa campa simples.»

«Foi isso que descobriste na tua viagem ao Vimieiro?»

Fialho agarra o braço do detetive para não ser arrastado nacorrenteza de pessoas. Tem de falar mais alto porque a multidão jásaiu do estado meditativo.

«Afinal, lês o que escrevo.»«Gostei muito daquele artigo O menino e a sua mãe. Sabes

quantas pessoas fizeste chorar? Um final fortíssimo. O corpo semvida diante do jazigo da família. E o professor amparado peloespírito da mãezinha antes de a sua alma subir aos céus.»

«A pietá das Beiras.»Quase se riem.«Podemos falar noutro sítio?», pergunta o detetive.«Vamos ao meu escritório.»Conheceram-se quando Paixão Leal entrou para a PIC e Fialho

era o único redator contratado pelo Crime. O jornal desapareceu em1936, mas o repórter continuou a escrever sobre a atualidadepolicial para outras publicações, destacando-se no ano seguinte,quando serviu de boneco de ventríloquo da PVDE durante acalamitosa investigação ao atentado contra Salazar. Nas suasreportagens, engrandeceu a Polícia política, ocultou erros, poliumentiras. Premiaram-no com uma estada em Espanha. Trabalhofácil e boas ajudas de custo. E agora, de volta a Lisboa, fundou AVerdade, desta vez como diretor.

Paixão Leal surpreende-se com o tamanho da redação. Esperavaum pasquim num vão de escada, como o Crime. Mas contabilizavários jornalistas, máquinas de escrever e telefones. Fialho apontapara o retrato de Salazar na parede:

«Desde que mataram o grande chefe, temos feito duas ediçõespor dia. Era suposto sermos um semanário, imagina, mas os nossosleitores querem tapar o buraco da incerteza, andam famintos dehistórias.»

«A propaganda do medo e do ódio abre muito o apetite», dizPaixão Leal.

O novo periódico é o filho editorial do extinto Crime com ARevolução, a antiga folha informativa dos nacional-sindicalistas. Dopai, herdou o sensacionalismo. Da mãe, recebeu o filão ideológico eos inimigos a caluniar. Na década de trinta, o Crime estava

autorizado a reportar os crimes mais sanguinários. Para melhorjustificar a repressão das liberdades, o Estado Novo precisava deexpor a desordem que a Primeira República criara. Quanto maior apústula, maior a necessidade de um punho forte que espremesse opus. Tal como o novo jornal de Fialho, o Crime afirmava-se defensordas Polícias e inclemente com os meliantes, tinha uma linguagempopulista, de faca e alguidar, com um livro de estilo que incentivavapontos de exclamação e porrada nos bandidos.

«A quem é que tiveste de baixar as calças para ser diretor?»«Tenho quem faça isso por mim.»«Mas o dinheiro vem de algum lado.»Fialho penteia o bigode-sobrancelha num só movimento, com o

polegar e o indicador, acentuando os contornos do sorriso defalsário.

«Aristocratas, industriais, deputados da nação.»Quando está com o detetive, Fialho não tem de fingir reverência

ou passar-lhe o pano da bajulação no distintivo. Por sua vez, napresença do jornalista, Paixão Leal abdica da neutralidade e dosbons modos. Pode ser tudo o que foi na sua vida americana. Omacaco devolvido à selva. Mais primário nos instintos, mais cínicona apreciação do mundo, mais vulgar na linguagem. Quando seencontram, criam uma zona livre de juízos. Não precisam de fingir.São apenas o oportunista que pinta o cabelo, sempre do lado dosvencedores, e o polícia de língua amarga, tantas vezes desdenhosoda humanidade que jurou proteger. Nenhum deles diria que sãoamigos. Mas há algo que os une e que jamais é referido.

Semanas antes de Fialho ser enviado para Espanha com osgalões de correspondente do regime, Paixão Leal, ainda agente nabrigada de Costumes, fez uma rusga numa gráfica clandestina queproduzia material pornográfico, instalada numa cave num bairro deoperários, com panos negros nas janelas rentes ao passeio e ummiasma de óleo e marmitas requeimadas. Além das páginas com anudez granulada de mulheres estrangeiras, o agente encontroupanfletos de propaganda contra o Estado Novo. Um quarto nastraseiras servia de refúgio a Tito Pulga, que, após três anos decadeia por participar na Revolta da Marinha Grande, se

estabelecera como pornógrafo e gestor de prostitutas sem livro dematrícula.

No quarto, Paixão Leal confiscou uma grafonola, discos, joias euma caixa de sapatos com vários blocos de apontamentos. TitoPulga alargara a sua área de negócios: usava as raparigas paralevar a cabo roubos nas casas de homens solteiros que viviamsozinhos, clientes habituais com hora certa e dia marcado napensão, quase todos sentimentais na cama, bêbedos desbocadosou glorificadores do seu sucesso. Fialho preenchia os trêsrequisitos. Certa noite, quando se deixava despir por uma raparigana Pensão Goa, Tito Pulga entrou na casa do jornalista para fazeruma limpeza geral. No espólio roubado estavam os blocos de notasque Paixão Leal devolveu a Fialho sem fazer perguntas e excluindoo seu nome dos autos da rusga. Caso se conhecesse tudo o queestava nos cadernos de Fialho, entre os nomes de agentes daPVDE e as notas de investigação ao atentado de 1937, talvez orepórter não tivesse embarcado para Espanha.

Fialho usa o proverbial recurso dos desconfiados: olha para umlado da redação, depois para o outro.

«Vamos antes para o meu gabinete.» Fecha a porta, senta-se àsecretária.

«Em que posso ajudar?»«Foram os judeus que o mataram?»«Se não foram, sabem quem foi.»«Refugiados?»Fialho encolhe os ombros. Paixão Leal senta-se, tira os óculos

escuros e desaperta o botão do casaco, pernas afastadas comonum saloon:

«Não achas conveniente que os gajos sejam apanhados um diaantes do funeral?»

«Coisas estranhas acontecem em tempos conturbados. Aanormalidade normaliza-se. O que antes era incomum...»

«Fuck that.» O detetive tem o hábito de praguejar em inglês. Oportuguês é a sua língua pastoral, da contenção e do respeito. Bomdia, boa tarde, como vai vossa excelência, vai-se andando, comoDeus manda. É no idioma americano de Lower Manhattan que

melhor protesta e insulta. «Foram mesmo judeus ou isto é umarepetição do que aconteceu em trinta e sete?» Dos pedreiros do Altodo Pina, acusados do primeiro atentado a Salazar, dois nãosobreviveram aos espancamentos. Os restantes ficaram presos umano, só foram soltos quando Baleizão do Passo, da PSP, desmontoua farsa da PVDE e apanhou os verdadeiros criminosos, umgrupúsculo de anarquistas a agir por iniciativa própria e sem apoiosinternacionais. O país vivia no engano, mas muitos portuguesesestavam ao lado de quem os enganava.

«O que me disseram foi o que publiquei. Quem matou o velhoforam judeus com ligações à Internacional Comunista.»

«Os teus amigos vigilantes não se descoseram com mais nada?»Para Paixão Leal, os polícias políticos são vigilantes. O apodo tem

dois sentidos. O primeiro é mais óbvio, afinal, são agentes daPolícia de Vigilância e Defesa do Estado. O segundo é maisrebuscado: em inglês, vigilante é alguém que age fora da lei e clamafazer justiça pelas próprias mãos.

«Repito: o que escrevi é o que me disseram.»«Como é que chegaram a eles?», pergunta o detetive.«O comunista ferido, que encontraram no pinhal no Vimieiro,

desbroncou-se antes de esticar o pernil. Bufou à Guarda onde osoutros estavam escondidos.»

«Extrema confissão in extremis. O pináculo do trabalho policial. Ea história do miúdo pastor, que baleou o tal comunista?»

«O quarto pastorinho?»«O quê?»«É assim que lhe chamamos aqui no jornal, os leitores adoram.

Está a recuperar dos ferimentos.»Tal como os assinantes d’A Verdade, também Paixão Leal se

deixou levar pela saga de Timóteo Merendeiro, o rapaz do campoque quis salvar o presidente do Conselho e se encontra numa camade hospital. Não fosse o seu disparo sobre um dos atacantes etalvez ainda não tivessem apanhado ninguém.

«Vamos supor que foram judeus comunistas que mataram oSalazar. São os mesmos que puseram as bombas na Exposição?»

Fialho sabe que o detetive vive com uma judia, que não está ali

para satisfazer apenas a curiosidade de polícia. Inclina-se sobre amesa e segreda uma revelação: «Estão mortos. A PVDE cercou-osnuma casa na Serra da Arrábida e aquilo foi um banho de sangue.Os gajos não estavam dispostos a entregar-se vivos. A notícia vaisair nos jornais em breve .»

«Mas eram mesmo judeus?»«Luís, não estás a perceber. Sejam judeus ou não, a PVDE quer

que se diga que foram os judeus.» O entendimento do detetiveresiste. Fialho mostra a paciência do professor com o alunobloqueado numa conta de multiplicar. «O Hitler e o Francoencontraram-se em Baiona. Falaram do futuro da nossa nação. OGoebbels esteve no funeral. O Duarte Pacheco vai ser despachadoem breve. O embaixador inglês não apareceu no funeral porque onosso Governo não desmentiu os jornais que acusam os britânicosde participar no golpe.»

Paixão Leal levanta uma mão, como se fosse contestar ojornalista, mas até uma criança obtusa acaba por decorar a tabuada:

«Fuck me.»«Esperemos que não chegue a tanto.»«Blut und Boden.»«Sangue e solo, como dizem os nazis.»Fialho acompanha o detetive através da redação e, tão

acostumado a entreter os leitores, despede-se nas escadas comuma nota cómica, não vá Paixão Leal sair do jornal apenas commás notícias:

«Sabes o que disse o Salazar ao despedir-se dos companheirosde missa, depois do atentado em trinta e sete?»

«O quê?»«Disse: ‘Tenho muita sorte nestas coisas’.» O bigode-sobrancelha

contorce-se num sorriso sardónico: «Dava um bom epitáfio lá para acampa do Vimieiro.»

Rebeca e os miúdos não estão em casa. No pátio, sem chapéu oudistintivo da Polícia, só de cuecas e com duas cicatrizes antigas noombro, Luís Paixão Leal pega na mangueira, deixa correr a águamorna retida há várias horas dentro da borracha à torreira do sol.Espera por um jato mais fresco, pressiona os dedos e as palmas

das mãos contra a rugosidade do muro. Sente os grãos da tinta deareia na pele. Tenta desligar o fluxo mental. Mas o cérebro articula ainformação que acabou de colher, procura solucionar a ansiedadeque lhe provocam as coisas incompletas. Num jantar, nos passeiosao Parque Mayer ou até na cama, Rebeca diz-lhe: «Estás outra vezcom cara de polícia.» A água arrefece e ele aponta a mangueira àcabeça, livra-se dos odores da cidade, o peixe frito, a fuligem napele dos carvoeiros, o sangue de cavalo nos matadouros, todos oscadáveres que já conheceu. Deixa que a água abra sulcos no courocabeludo e no suor das costas. Por alguns segundos, consegue serapenas olhos, ouvidos e tato. Sente o microcosmos ao seu redor: ossinos da basílica, o piar dos canários nas gaiolas dos vizinhos, ogotejar da água quando fecha a torneira, a fragrância dos figosmaduros que balouçam na única árvore do pátio ou que caíram efermentam no chão, ligados por carreiros de formigas quedesaparecem numa fenda entre duas lajes.

Um ribombar de martelo no prédio faz estremecer o quintal. Sópode ser o vizinho do primeiro esquerdo, que gosta de chegar aroupa ao pelo aos filhos. Cada estrondo incita a cólera do detetivecom aquilo que não pode controlar, todas as falhas do mundo que,já lhe garantiu Rebeca, ele não conseguirá corrigir à pancada. Massem a violência — que quase o matou — também não estaria vivo.Porque haveria de deixar de ser o homem que, ao soco e àcabeçada, conseguiu chegar até aqui? Afinal, num campo debatalha, um pacifista raramente se sai bem. Rebeca diz-lhe quenenhuma obsessão é saudável, mas Luís sabe que foi essaobsessão pela violência que o salvou. O veneno pode ser antídoto.Quem não se contenta com o papel de vítima, às vezes, tem de sermonstro.

Enfurece-se com cada martelada, uma compulsão que conhece.O magnetismo do descontrolo. A descarga da luta. O regozijo dajustiça ou da injustiça pelas próprias mãos. Sai do pátio, enxuga-senuma toalha e veste umas calças. Chega a agarrar a maçaneta daporta de casa, descalço e em tronco nu. Vai só avisar o vizinho,começar por dizer «boa tarde, desculpe incomodar».

O martelo cala-se.

Luís espera uns segundos antes de regressar ao quarto e fecharas portadas. Despe-se e tomba sobre os lençóis frescos. Enfia acara na almofada de Rebeca, no cheiro dela, nas partículas ao seuredor. Quando o vizinho volta a martelar, ele já desligou. Não háexplosões na cidade, lutas de punhos ou cadáveres na corrente doseu pensamento, apenas o apagar total da consciência, um curto-circuito, o mais perto que o sono de um homem pode chegar dodescanso eterno.

Quando acorda, cuspido do poço negro do nada, dói-lhe a cara ea clavícula que nunca recuperou por completo dos ferimentos deuma bala americana. Esqueceu-se de tirar o olho de vidro paradormir. A carne à volta da prótese inchou sob o peso da cabeçaesmagada no travesseiro. É noite lá fora. Paixão Leal não conseguever os ponteiros do relógio na mesa-de-cabeceira. Só uma linha deluz na base da porta. Passos no corredor, a maçaneta a rodar.

«Rise and shine.»Há alguns anos em Lisboa, Rebeca domina com agilidade o

português, mas o idioma dos filmes americanos ficou dos temposem que se conheceram. Usam o inglês durante o sexo e nasdeclarações de amor. A língua secreta do casal, só deles, que ascrianças não percebem. O português, embora materno, nunca foi alíngua dos afetos para o detetive.

Quando Rebeca abre mais a porta, a luminosidade do corredordesvenda o hematoma à volta do olho de vidro. Ela aproxima-se dacama. Beijos para aliviar a dor.

«Posso?»Ele diz que sim e Rebeca tira-lhe o olho de vidro, depositando-o

dentro do copo com água, ao lado do relógio. Vai buscar umapomada à gaveta da mesa-de-cabeceira. Esfrega o creme na pele elimpa o excesso com a bainha do vestido. Luís aproveita paraagarrar-lhe uma coxa, tira-lhe a bisnaga da mão, faz-lhe passar ovestido sobre os ombros e os braços.

«Os miúdos estão a dormir», diz ela. Não é uma desculpa, antesuma garantia. Rebeca vai abrir um pouco as cortinas, deixandoentrar a rutilância dourada que as janelas do prédio derramam nopátio. «Quero que me vejas.»

Agora, os dois corpos estão espalhados na cama e recuperam ofôlego, húmidos, ocos e com cheiro, os ossos e os músculos maisleves do que o ar, um estado de claridade que apura os sentidos dodetetive. Tudo lhe parece importante e belo: o ondular das sombrasna parede sempre que a brisa imita o movimento das marés nacortina, trazendo para o quarto as moléculas do carvão na grelha edos manjericos nas varandas. O silêncio da noite foi açambarcadopelos grilos, até que um cão ladra três vezes e alguém no prédiopõe um disco na grafonola. A agulha arranha o vinil e o clarinete deArtie Shaw abre alas ao Begin the beguine. Na cama, só nudez eabandono, a alquimia do sexo que obriga homens feitos a repetir asesperanças dos adolescentes: Quero ficar assim para sempre.

Mas o estado de graça e comunhão apresenta uma falha desdeque Rebeca e Luís foram para a cama pela primeira vez. Depois dosexo, ela não quer ser tocada. Diz que tem calor, que está muitosensível. Luís sente-a a viajar para uma dimensão à qual não temacesso. Uma outra vida, desconhecida, o mistério de Rebeca queele não ousa ou não pode desvendar. Na faixa que os separa noslençóis, nessa intransponível terra-de-ninguém, está a expressão detudo o que Luís não sabe acerca dela. Poderia escrever um atlassobre o corpo e os maneirismos de Rebeca, no entanto, nessesminutos pós-orgasmo, e porque ela não deixa, Luís não saberiacomo desbravar um caminho de volta para a ternura da pele compele.

O detetive levanta-se, veste umas cuecas e uma camisola dealças. Sai do quarto para beber água na cozinha. Abre a porta dopátio, senta-se virado para o exterior. Rebeca aparece poucodepois. «Tenho fome», diz, e vai apanhar figos no pátio, a ninfarecoletora do bosque, celebrada no quadro de algum pintorgermânico morto há séculos. Volta à cozinha e senta-se ao colo deLuís. Abre um fruto, oferece-lhe a polpa para morder.

«Esta tarde a Polícia apareceu na Cozinha da ComunidadeIsraelita. Levaram dois judeus belgas», diz Rebeca. O ato de lamberos dedos com restos de figo enfraquece a gravidade do relato. Sãoapenas mais um casal que saboreia a fruta enquanto comenta ospequenos acontecimentos do dia. Mas agora a banalidade

quotidiana inclui a detenção de judeus, uma guerra em expansão ea dramaturgia dos refugiados coibidos de sair de Portugal. Não sãoapenas mais um casal sentado à mesa da cozinha a comentar osacontecimentos do dia.

«Porque é que os levaram?»«Não disseram.»Rebeca ajuda várias associações de apoio aos refugiados. Traduz

documentos, encontra quartos de pensão para as famílias em fuga,faz de intérprete em visitas aos Consulados. Conhece de perto omedo dos que fogem, a desconfiança perante as autoridades. Comoeles, prefere o silêncio, mesmo em casa e sob proteção de umpolícia, porque uma palavra a mais, numa terra de bufos e devizinhos alcoviteiros, é uma possível assunção de culpa.

«Talvez tenha a ver com o atentado ao Salazar.» Dizendo em vozalta aquilo de que Rebeca não duvida, Paixão Leal abre o alçapãode um cadafalso que se estende até ao quarto das crianças. Mentepara a serenar: «Mas também pode não ser nada.»

Ela recebe a mentira piedosa como uma declaração deindiferença. Levanta-se e limpa as mãos num pano de cozinha,fustigando o tecido com a zanga que se manifestaria melhor numcopo atirado contra a parede. Está farta de contenção e paciência,cansa-se de saber o que aí vem quando os portugueses, até mesmoaqueles a quem a profissão exige antecipar as vilezas humanas,como Paixão Leal, continuam a assobiar para o lado, acreditandoque os apregoados brandos costumes lusitanos não permitem oradicalismo alucinado dos alemães.

Rebeca poderia invocar a Inquisição, ou o que acontece aospresos políticos do Estado Novo, com o tom de um procurador nopúlpito da acusação, mas conta-lhe a história de Grynszpan,usando-se da calma didática de uma professora de liceu. «Foi assimque começou», diz. Dois anos atrás, Grynszpan, um judeu polaco,escreveu um postal no sótão onde se escondera, em França. Odestinatário era a irmã, que fazia parte dos milhares de judeussitiados na fronteira da Alemanha com a Polónia. «O meu coraçãosangra quando penso na nossa tragédia. Tenho de protestar deforma a que o mundo inteiro nos oiça. Rogo o teu perdão», escreveu

Grynszpan, que depois entrou na Embaixada alemã e matou odiplomata Ernst vom Rath com cinco tiros. Nunca chegou a enviar opostal. Na prisão, terá percebido como falhara. Em vez de alertar o«mundo inteiro», ofereceu ao Partido Nazi a oportunidade de odeclarar como lacaio da conspiração judaica internacional.Grynszpan foi o pretexto para que numa noite se incendiassemcasas, lojas e templos judeus em toda a Alemanha. Polícias ebombeiros receberam ordens para não intervir. Milhares de judeusforam presos e, no rescaldo dos incêndios e da pilhagem, Goebbelsdecretou que seriam eles a pagar todos os estragos. Apesar daselvajaria e da aberração, alguém foi capaz de encontrar lirismo nosvidros das montras que cobriam as ruas e a essa jornada demagnífica violência deu o nome a Noite dos Cristais.

«O polaco matou o homem errado em Paris», diz Rebeca. «E,mesmo assim, olha o que aconteceu.» Quando foi assassinado porGrynszpan, o diplomata alemão estava a ser investigado pelaGestapo, suspeito de atividades antinazis. «Imagina que forammesmo os judeus que mataram o Salazar.» Rebeca cala-se, evitaimaginar novas formas de caos. «Vou dormir. Good night, my dear.»

Paixão Leal não consegue mentir-lhe, dizer que vai ficar tudobem. Ela beija-o e sai da cozinha. Outra vez os grilos, os latidos docão, a música na grafonola do vizinho. E também as gotas datorneira mal fechada. O detetive levanta-se e aperta a roscametálica. Sente uma presença atrás de si. É Mathilda, umaminiatura da mãe, que fez xixi na cama.

Paixão Leal abraça-a.«Não há problema.» Tira-lhe o pijama e enfia-a na pia da loiça.

Passa-lhe água pelo corpo e seca-a com o mesmo pano queRebeca usou para limpar das mãos o açúcar dos figos.

«Está peganhento.»«Espera», diz ele. Tira outro pano da gaveta.«Luís, não digas à mãe que eu fiz xixi outra vez.»Mathilda tem sete anos, Chris tem cinco. Nenhum deles lhe

chama pai.Rebeca contou-lhe que o marido morrera num acidente de carro a

15 de setembro de 1935, no mesmo dia em que foram aprovadas as

Leis da Proteção do Sangue no Congresso do Partido Nazi, emNuremberga. Pouco mais disse sobre o pai dos filhos, e Paixão Lealtambém não perguntou, sabendo que o silêncio é o refúgio dotrauma e que, caso a memória o permitisse, também ele prefeririaesquecer todas as mortes da sua vida. Competir com um morto nãolhe parece justo. Muito menos proveitoso. Rebeca nunca esqueceráo marido. Quem sabe um dia os miúdos possam trocar um paiirreparavelmente desaparecido por um padrasto que os beija todasas noites.

Rebeca ficou viúva quando estava grávida de Chris. Já não tinhao ateliê e, por ser judia, fora demitida de uma companhia de teatro.Os judeus tinham perdido os cargos na função pública, a cidadaniado Reich, o direito ao ensino, a casar com arianos e a içar abandeira alemã. Rebeca só tinha uma avó judia, pelo lado paterno,que nem chegara a conhecer. Na escala da perfeição eugénica,Himmler, Goebbels ou Hitler eram uma subespécie de corcundas epigmeus se comparados com Rebeca. Mas uma avó judia bastavapara que o teste Mischling, da pureza da raça, a declarasse mestiçade segundo grau.

Rebeca chegou a Portugal em dezembro de 1935 e deparou-secom o fim da Europa, o precipício à beira-mar plantado, o país becosem saída onde não conseguiu um visto para a América. Em Lisboareinava a paz, não se vituperavam os judeus e, mais importante,havia uma reverência obsequiosa pelos alemães de olhos azuis. Emretrospetiva, a escolha de ficar em Portugal talvez valesse a Rebecauma acusação de ingenuidade ou facilitismo. Ela foi esquecendo asdiligências para sair do país. As dificuldades burocráticas eraminversas ao afeto com que as pessoas tratavam os seus filhos narua, numa mercearia, quando era preciso deixá-los com umavizinha. Tão longe dos pais, em Munique, Rebeca começava aperceber melhor o adágio que garante que é preciso uma vila inteirapara educar uma criança.

No início de 1939, quando já vivia com Luís, encontrou na Baixaum refugiado alemão, amigo da família, em trânsito para o Rio deJaneiro, e ouviu o relato pessoal dos acontecimentos da Noite dosCristais. Nessa tarde, ao regressar a casa, Rebeca contou a Paixão

Leal que, após o pai ter sido levado para o campo de Dachau comoutros milhares de judeus, a mãe se matara. Não disse como.Talvez nem soubesse. Tão-pouco poderia confirmar a notícia. Pedirmeças na Embaixada alemã não era uma possibilidade para umajudia apátrida. O desconhecimento e a lonjura eram dois pregosmais no calvário dos judeus. Na manhã seguinte, sem nunca tercumprido um ritual religioso, Rebeca saiu do quarto onde dormiacom Luís, na casa da Travessa do Jasmim, tapou todos os espelhose decretou Shivá, os sete dias de luto dos judeus.

Até então, a mestiça de segundo grau tinha escondido a quartaparte do seu sangue hebraico. Em Lisboa, era apenas uma alemãque fazia roupa para o teatro e que nunca procurara outrosrefugiados. O seu secularismo, além de uma opção coerente, era amelhor maneira de passar despercebida. Mas, após a Noite dosCristais, órfã e viúva numa cidade estrangeira, apátrida e desprovidada nacionalidade alemã por força da lei, sem poder voltar ao lugaronde nasceu e cresceu, Rebeca convergiu para o judaísmo comoum amnésico para as fotografias da família. Se o Terceiro Reichtinha apagado a sua identidade e a excluíra da Volksgemeinschaft— a comunidade germânica da raça suprema —, ela perpetuaria olegado da avó judia de quem recebera o nome Rebeca, seria maisum veio nas raízes milenares do exílio e da resistência.

Não viu Deus num arbusto falante nem se tornou pia. A suaconversão oficiosa foi pragmatismo tribal. O povo eleito foradisperso pela Babilónia, subjugado pelos romanos, massacrado nasCruzadas, expulso pelos reis católicos, e agora, que a fuga já oslevara de Jerusalém a Manaus, de Moscovo a Tânger, na tabela deapostas o estoicismo dos judeus favorecia as probabilidades desobrevivência em mais um episódio da saga do êxodo e dapersecução.

Luís senta Mathilda na bancada de mármore. Seca-lhe um pé efaz-lhe cócegas. Rebeca aparece na cozinha, olha para a filha.

«Então?»«Mãe, desculpa.» O choro contido no lábio que treme. «Tive um

sonho mau.»«Ia vestir-lhe um pijama», diz o detetive.

Rebeca pega em Mathilda ao colo.«Obrigada. Eu trato do resto.» Leva a filha para o quarto onde

também dorme Chris.A fissura do lençol na cama partilhada por Luís e Rebeca alarga-

se por vezes a toda a casa, estende silêncios, impede um carinho,fecha uma porta. Ele na cozinha, a família Kraus no quarto. Odetetive já não ouve a grafonola, os grilos ou os latidos do cão. Só atorneira, que, por mais que a aperte, não deixa de gotejar.

Segunda-feira, 22 de julhoO rei morreu, viva o rei. Bem cedo, um dia após o enterro, Paixão

Leal — para quem o trabalho é um comboio expresso — faz abarba, veste uma camisa lavada, bebe café e afunda o rosto nocabelo de Rebeca, que ainda dorme, para levar consigo o cheiro e abênção das manhãs na cama. O empenho solar do detetive perde oembalo ao cruzar a Avenida da Liberdade. Após o luto das massas,as ruas estão vazias de gente e povoadas de lixo. Parece a manhãapós uma revolução ou um terramoto. Em vez de cadávereshumanos no asfalto, há esqueletos de frango assado, cabeças depescada a que chuparam os olhos, pombos que não olharam paraos lados antes de atravessar. Nenhum incêndio nem janelaspartidas, mas as folhas dos jornais do dia anterior voam como flocosde cinza. Sempre que pisa os cacos das garrafas contra o asfalto,Paixão Leal sente que os molares trincam areia. Os candeeirospúblicos já se apagaram e uma luz matinal de chumbo não sacudiupor inteiro a noite de domingo. Sobe a Calçada do Lavra com osóculos escuros no rosto. Um olho apagado, outro dirigido ao alto dacolina.

Na sede do Torel, antes de seguir para a Baixa, lê o jornal: aPVDE garante que os tentáculos do gigante polvo internacional docomunismo chegaram por fim a Portugal, com ajuda dos terroristasjudeus que mataram Salazar. A cabeça do bicho, claro, está emMoscovo. O detetive abandona o matutino e mastiga a informaçãoque recolheu na Medicina Legal enquanto Cardoso e o legionárioPereira reproduzem, na sala da brigada, as conversas de tabernasobre o passado e o futuro da nação.

«Sabes quem cunhou o Estado Novo de Salazarquia?», perguntaCardoso. «Foi o Rolão Preto.» O desmazelo do detetive com a suaaparência alastrou ao discurso, despojando-o das elementarescautelas num país de delatores e colaboracionistas. Tem umacolónia de caspa em cada ombro, um tufo de pelos no queixo, que alâmina ignorou esta manhã. Fala de política como se atirasse umabeata para o chão, explicando que, por duas vezes, Rolão Preto, olíder do movimento nacional-sindicalista, foi deixado na fronteiracom Espanha sem passagem de volta. Entre o primeiro e o segundo

exílio, ambos forçados por Salazar, voltou a Portugal para um golpede Estado. Tinha a seu lado o quartel da Penha de França e atripulação de um navio da Marinha. Se a Polícia política nãohouvesse descosturado o plano, Rolão Preto teria mantido Carmonacomo presidente da República, mas Salazar e os seus ministrosseriam presos.

«E agora o gajo aparece no funeral a cantar hossanas ao grandeestadista que foi o professor doutor António de Oliveira Salazar?Logo pela mão do Franco?», diz Cardoso. O detetive não é deindignações. Contenta-se com a ironia do mundo. Há uns anos,Rolão Preto definia o Estado Novo como uma oligarquia deparasitas que a censura protegia e Salazar sustentava.

«O Franco e o Rolão Preto são amigos», diz Pereira. «O RolãoPreto morou na casa do Primo de Rivera quando esteve emEspanha. Sempre foi um apoiante dos nacionalistas.»

«O Salazar nunca gramou o Franco. Homem pequenino? Ouvelhaco ou dançarino. Por acaso, já viste o Franco dançar?»

Enquanto a dupla acerta contas de uma década ibérica de golpes,fascínio por fardas, guerra, fuzilamentos, utopias ideológicas editaduras, Paixão Leal compara a sua memória com o mapa doJardim da Tapada aberto sobre a mesa. Do papel erguem-seárvores e relva e uma mulher morta. Além do embrulho que adoutora Catarina lhe entregou na morgue, nenhum objeto que possaajudar na identificação da mulher assassinada. Não levava carteira?Dinheiro? Uns brincos? O detetive olha para o papel, desenha umcírculo a caneta, e é como se a tinta vermelha sangrasse tambémno recanto microscópico onde o cérebro guarda o mapa do jardim.Sabe que tem de voltar à Tapada das Necessidades.

«Americano, estou a falar contigo», diz Cardoso. «O Estaline ou oMussolini?»

Paixão Leal não percebe a conversa dos politólogos amadores.«O quê?»«Numa porrada de rua, apostavas em quem?»«No Estaline», responde Paixão Leal. «Tem cara de talhante. O

Mussolini é muito agarrem-me senão eu mato-o.» Pega no embrulhode papel pardo e escuta a conversa entre o detetive viúvo e o

legionário filho único. Cardoso tem cinquenta e tal anos bem gastos,acelerados pelo luto. Córneas cinzentas e olheiras irresgatáveis. Sóse vestiu de negro no dia do funeral da mulher, mas os olhos sãouma faixa tão escura como o fumo que Pereira usa ainda na fardapor causa da morte de Salazar. Nas atualidades que passam nassalas de cinema, uma reportagem sobre Cardoso faria o serviçopúblico de alertar para os perigos da solidão masculina a partir dameia-idade. A sua vida parou. Só tem vislumbres do futuro quandoespia os netos no recreio da escola. Há quanto tempo a filha deixoude lhe falar? Ou terá sido o contrário? Por vezes, Paixão Leal temeencontrá-lo enforcado numa corda comprada na drogaria, abalançar num barrote. Mas Cardoso carece de autopiedade e nãofaz batota. O suicídio parece indigesto ao seu caráter. É um dessestipos para quem a bravura não é lutar pela pátria, mas aincumbência de acordar todas as manhãs e, sem grandesesperanças ou queixumes, ter duas ou três coisas que justifiquemque saia da cama enquanto tudo o resto vai perecendo aos poucos.

«Já viu a cabeça do Mussolini, detetive? Tem queixo de pugilista.Não é qualquer um que o manda ao tapete», diz Pereira. Perdeu arigidez dos legionários. Talvez acredite mesmo que o grandecombate ideológico do século pode resolver-se num mano a manoentre ditadores.

Se os jovens — extáticos de testosterona e imortalidade — são amatéria combustível que melhor arde nas caldeiras da revolução eda guerra, Pereira é a contagem decrescente para a detonação dabomba. Tanta energia precisa de um condutor. Provas de atletismo,masturbação, as marchas em que todos gritam «Legionários, quemvive? Portugal! Portugal! Portugal!» O aprumo da farda e do cabelonão revela apenas um encantamento pelo estilo da estação fascista.É assim que tenta impressionar as raparigas sem transparecer atimidez e a desordem impúbere da sua personalidade. Pereira nãoconheceu ainda os revezes que convenceram Cardoso e Macbethde que a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som ede fúria, que não significa nada. O seu fulgor é o género deingenuidade que lhe permite acreditar numa Nova Ordem, nummundo consertado a partir do bombardeiro de que será

comandante. Pereira é a ameaça do futuro, tem as certezas dossectários e quer viver in loco aquilo que outros só leem nos livros deHistória.

Este é o século em que as ideologias logram aquilo que só areligião alcançou: convencer as massas da existência de umParaíso. Os mecanismos são idênticos, substituindo-se Deus porum líder providencial. Mas, se a religião remete o bónus do Édenpara depois da morte, o fascismo e o comunismo garantem aconstrução desse lugar perfeito ainda em vida. Cardoso já antecipao descalabro de tanta ilusão e ortodoxia, a entrega com que muitosseguem um sistema de ideias como num culto suicida, sem umquestionamento que seja. O detetive não embarca em cruzadaspolíticas ou espirituais. Talvez seja o tempo que passou na guerraou os vinte anos de polícia ou a artéria que inundou a massaencefálica da mulher quando passeavam na Baixa — a verdade éque Cardoso não acredita em histórias da carochinha ou em líderessupremos. Um regime para durar mil anos? A raça superior? O fimda luta de classes? Da História? Do sofrimento? Para ele, sóquando um asteroide rebentar com o planeta.

——•——A meio da manhã, no Largo de São Paulo, a vaga de calor

fermenta o mijo dos bêbados noturnos. Um cantoneiro limpa osdestroços da batalha urbana. Vidros de montras, um pedaço detecido ensanguentado, vómito púrpura e um Pau de Franco perdidona calçada. Questionado por Paixão Leal, o cantoneiro relata o quelhe chegou aos ouvidos. Os legionários, responsáveis por fiscalizaro recolher obrigatório, quiseram tirar da rua um grupo de ingleses,tripulantes de um transatlântico, em busca de festa na noite defolga. Os estrangeiros estavam temerariamente bem regados devinho. E os portugueses, eletrizados pelo funeral de Salazar, jásabiam que o embaixador inglês, em sinal de protesto, nãocomparecera nas exéquias.

«Porrada de criar bicho, parecia que a guerra já aqui chegara»,diz o cantoneiro, analista da geopolítica do pontapé e do estalo.

Paixão Leal agradece e dirige-se ao lugar de destino, uma daslojas no largo.

«Shalom», diz o detetive gentio, pelo buraco na montra partida doalfaiate judeu que Rebeca lhe apresentou. Desde que vive com ela,debica pedaços de judaísmo para agradar à tribo da noiva. Tambémse vale do vocabulário iídiche e hebraico que aprendeu na juventudecom os filhos de emigrantes em Manhattan.

O velho David Abecassis olha para o legionário Pereira e, em vezde repetir a saudação, responde ao detetive em português, comsotaque lisboeta:

«Bom dia, senhor agente, entre, por favor, mas dê-me só umminuto.»

Diante do alfaiate está um homem pequeno, com a caraarrepanhada pela incerteza e pela resiliência que, ao longo demilénios, entre o cativeiro na Babilónia e a Noite dos Cristais,esculpiram a expressão dos judeus. A mesma que o detetive passoua ver em Lisboa, nas rugas e no olhar daqueles que esperam nasfilas pelos vistos de saída.

«Volte outro dia, hoje não pode ser, senhor Fuks», diz o alfaiate.O senhor Fuks mostra a perplexidade de Moisés quando, após

quarenta anos no deserto, foi informado de que não entraria naTerra Prometida.

«Trabalho. Hoje. Trabalho», roga o senhor Fuks, molhando assílabas portuguesas no caldo do iídiche. «Bite, mein bruder.»

O velho Abecassis coloca-lhe a mão no ombro, dirige-o para aporta, desvia-se dos cacos no soalho e acompanha-o à paragem doelétrico.

«O que se passa?», pergunta Pereira ao detetive.«Parece que o senhor Fuks precisa de um fato e gravata para

batizar o filho.» O humor sobre as antigas conversões forçadas dosjudeus passa despercebido a Pereira. O rapaz tão-pouco sabe queDavid Abecassis faz parte dessa genealogia de marranos que,durante séculos, comia a hóstia na missa e acendia a menorá emcasa. O alfaiate aproveitou as leis religiosas da Primeira Repúblicapara afirmar o seu judaísmo e agora usa uma quipá na sinagoga. Seos filhos foram registados como António e Maria, os netos já dãopelo nome de Esther e Salomão.

«Podemos falar em privado?», diz o velho ao detetive, assim que

regressa à loja.«Era isso que lhe ia pedir.»«Por aqui, por favor.»Paixão Leal e Pereira dirigem-se para a sala de provas.«Em privado, se puder, senhor agente.»Paixão Leal dispensa o legionário, atirando-lhe o osso de uma

tarefa com jargão militar:«Mantém a posição. Não deixes ninguém entrar.»Na sala de provas, as madeiras e a carpete exalam água-de-

colónia, pó de talco e a graxa dos sapatos dos senhores da capital.Há um quadro a óleo na parede. O detetive aproxima-se para ler apequena placa na moldura. Apesar do vaivém intercontinental que jálevou os judeus de Jerusalém até ao Recife, os filhos de Israel sãoconsistentes na tradição e nos ofícios. O quadro é o retrato de outroAbecassis, também alfaiate, no Brasil do século XVIII.

«Queira desculpar-me, mas o senhor Fuks meteu na cabeça queeu lhe ia dar emprego e...»

«Não sou da fiscalização laboral.»O detetive sabe que o velho auxilia judeus estrangeiros a

encontrar casa e sustento. Já deu emprego a alguns na loja,infringindo a lei que proíbe os refugiados de trabalhar em Portugal.

«Então está aqui por causa de ontem à noite? O seu amigolegionário veio pagar os estragos da montra?»

«Foi apenas uma cena de pancadaria, típica da rapaziada», diz odetetive. «O problema dos legionários não é consigo nem com a sualoja.»

«A ver vamos.»Paixão Leal compreende a desconfiança de Abecassis com a

farda de Pereira. Herdeiro de uma família que viveu durantegerações em modo furtivo, o velho supõe que os cacos da montrasão a paragem mais recente da vaga destruidora iniciada com aNoite dos Cristais. Na genealogia dos Abecassis, a Matança daPáscoa, em 1506, sempre serviu de fábula moral. Para as criançasda família nunca houve Papão ou Homem do Saco, mas uma turbade cristãos-velhos acicatados por monges dominicanos queprometeram indulgências durante cem dias a quem matasse um

cristão-novo. Não se tratava apenas de uma história de terror,apesar da bestialidade dos linchamentos ou dos bebés atiradoscontra as paredes. Entre os Abecassis, o relato servia de alerta paraa adoção obrigatória de uma conduta baseada no silêncio.

O massacre de Lisboa começara quando um cristão-velhoanunciou o milagre da presença de Jesus no altar da Igreja de SãoDomingos, onde as orações do povo clamavam o fim da fome, daseca e da peste. Um desavisado cristão-novo, mais metido comexplicações lógicas do que com as criativas manifestações do divino— santas que choravam lágrimas de sangue, Cristos projetadosnum altar —, esclareceu o engano da congregação delirante. Dissetratar-se apenas de um reflexo da luz do vitral. Foi o primeiro demilhares de mortos em três dias de carnificina. «De boca fechada,vives mais tempo», dizia o pai do velho Abecassis sempre queterminava a história. «Se abres a boca, pode ser a morte do artista.»

No mais fundo das pupilas negras do alfaiate sefardita, PaixãoLeal julga encontrar uma fagulha de rebelião. É talvez apenas oinstinto de sobrevivência, o milagre do óleo que durante oito dias fezarder a chama no templo da Jerusalém reconquistada.

«Preciso da sua ajuda.» O detetive apresenta-lhe o conteúdo doembrulho que recebeu da doutora Catarina.

«Não faço roupa de mulher», protesta o alfaiate, mas logoreconhece o tecido que aparece entre o papel pardo. «Pura lãinglesa.»

«E tem o seu nome.» Paixão Leal mostra-lhe a etiqueta.«Só conheço uma pessoa que é capaz de destruir os meus fatos.

Mas não tenho o hábito de comentar a vida dos meus clientes.»Paixão Leal fecha a cortina que separa a sala de provas do resto

da loja. Saca um bloco e uma caneta do bolso do casaco. Escrevealgo e arranca a página.

«Caso venha a ter algum problema com a Legião, ou com quemquer que seja, tem aqui a minha morada. Também pode ligar para asede da PIC.»

O alfaiate tenta resistir.«Não me faça isto.»«Estamos do mesmo lado.» O detetive pousa-lhe a mão no

ombro. «Diga lá quem é que anda a destruir as suas obras-primas.»David Abecassis desconsidera os ensinamentos do pai e

aproxima-se do ouvido do detetive. Espera que, ao dizer o nome emvoz baixa, não se confirme a maldição dos judeus que falam quandodeviam estar calados.

——•——Antes de começar a bater às portas, Paixão Leal dirige-se ao

Jardim da Tapada. Regressa a um trabalho inacabado.«De que estamos à procura?», pergunta o legionário.«Qualquer coisa que possa pertencer à vítima.»Pereira concentra-se no desafio que tem por diante. Puxa as

meias pela canela acima.«Se soubesse, tinha trazido umas luvas.»Está prestes a entrar no último círculo que o detetive desenhou a

vermelho no mapa: o Jardim dos Catos, que ficou por explorar naprimeira visita. É um labirinto de múltiplas espécies. Catos queparecem polvos petrificados, catos altos, baixos, vindos das selvas edos desertos americanos. Desde que Dom João VI mandouconstruir o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, a exibição da floramundial tem sido uma forma de mostrar a magnitude do império e odomínio dos portugueses sobre a Natureza. Se Bartolomeu Diaspassou o Cabo das Tormentas, Pereira não se acobarda face aospicos, espinhos e espigões que se lhe prendem na farda e na carne.

«Foda-se», diz o legionário.«Então?» O detetive, a uma distância segura das plantas, não

percebe se o palavrão de Pereira é uma queixa ou o momentoeureka. Os matizes do «foda-se» português permitem que a palavrasignifique as duas coisas em simultâneo. Pereira aparece com umcorte na face, uma cesta na mão e um sapato noutra.

O detetive recolhe a cesta e espreita o que tem dentro.«Vê se encontras o outro sapato.»Pereira volta a ser o explorador temerário e Paixão Leal tira a

carteira que está dentro da cesta, no meio de alguma roupa,guardando-a no bolso das calças.

«Este tem uma palmilha que diz Rei das Fardas.» Esgueirando-seentre os catos, Pereira ergue o troféu do segundo sapato.

Saem do jardim e descem para a Rua das Janelas Verdes,caminham até Santos sem que passe um elétrico. Estão a chegarao Cais do Sodré quando pulam para dentro do 25. No últimobanco, viaja uma mãe ariana e o filho. No corredor, em pé, está osósia adolescente do miúdo sentado. Os irmãos têm o mesmocabelo loiro, à escovinha, fardas da Juventude Hitleriana, olhos quedefinem a perfeição do azul nos manuais alemães de pintura eeugenia. Ao ver Pereira, o mais velho bate com os calcanhares e,de braço em riste, cumprimenta o legionário.

Paixão Leal sabe que há nazis em Lisboa. Na escola alemã, queafastou os estudantes judeus e não arianos, faz-se a saudação aoFührer desde que Hitler é chanceler. Nas festas e encontros doOrtsgruppe Lissabon — núcleo lisboeta do partido nazi —, osalemães vestem a farda castanha oficial e organizam-se recolhas defundos para apoiar a Wehrmacht. Os filmes da propaganda esgotamo Cine-Teatro Ginásio. Na estreia do Triunfo da vontade, a sala,engalanada com bandeiras da cruz gamada, era uma extensão doecrã no qual as massas veneravam os berros do líder no Congressode Nuremberga.

Sim, havia nazis em Lisboa, mas nunca antes o detetive vira umembrião da espécie ariana, sem cara para levar um estalo,comportando-se publicamente como se invadisse a França.

No elétrico, a família-modelo das Leis Alemãs de Proteção doSangue prepara-se para desembarcar. Paixão Leal ocupa o bancolivre. Pereira senta-se a seu lado e abre o Diário da Manhã. Nafotografia do jornal, Rolão Preto ajuda o legionário caído no Terreirodo Paço durante a homenagem fúnebre a Salazar. O olho funcionaldo detetive procura o título: «O bom filho à casa torna.» Estica umdedo para a foto.

«Afinal, quem é esse tipo?»«Não sabe?»«Vivi muito tempo fora.»«Ele também.»Pereira apresenta-lhe o resumo da vida e do exótico ideário

político de Francisco Rolão Preto, fundador do Movimento Nacional-Sindicalista, organizador de desfiles paramilitares com fardas azuis

e braços no ar, a Cruz de Cristo na manga, confrontos com a Políciae cinquenta mil filiados com as quotas em dia. Até que Salazar, queRolão Preto considerava um aborrecido académico centrista,mandou cancelar o baile de máscaras do fascismo revolucionário eo exilou em Espanha.

«O Rolão Preto é anticomunista, antiliberal, antidemocrático,antiburguês, anticapitalista», diz Pereira.

«E pró-bigodes.» Paixão Leal roça uma unha na fotografia dojornal. Talvez aqueles pelos aparados milimetricamente sejam averdadeira expressão das ideias de Rolão Preto: alguns centímetrosmais largos do que o bigode de Hitler, embora mais curtos do que apenugem de Franco. Quando o detetive regressou de Nova Iorque,a Europa pareceu-lhe um velho infantilizado que vestia calçõesmilitares para brincar aos tropas e pintava bigodes com a fuligem deuma rolha queimada. Nem a história de Rebeca ou sequer a guerrao convenceram da seriedade de homens tão dedicados ao rito dasfardas e à moda dos bigodes. «Então, a ver se não me engano. Osseguidores do Rolão Preto e os falangistas espanhóis têm camisasazuis. Os nazis, castanhas. Os fascistas italianos, pretas. E a LegiãoPortuguesa, verdes. Bons tempos para o negócio dos têxteis.»

Pereira ignora o sarcasmo e segue adiante.«Antes do exílio, o presidente Carmona recebeu-o várias vezes

em audiências oficiais. O Rolão Preto sempre teve apoio entre osmilitares. Mesmo depois do golpe falhado, em trinta e cinco.»

«E o Carmona é militar.»«General.»«Pois», diz o detetive, ativando o mesmo processo inquisitivo que

o leva a indagar álibis e relatórios de autópsia. «Que opinião oRolão Preto tem dos judeus?»

«Nisso, acho que é parecido com o Salazar.»«Podem passar por aqui, mas têm de seguir caminho.»«Se os poucos judeus portugueses estão assimilados, não há

porque deixar que os judeus estrangeiros se tornem um problema.Não é uma questão racial, mas de política interna e externa.»

«Entre nazis e judeus, não se mete a colher.»Paixão Leal sabe que há muito que a Inquisição resolveu o

problema do antissemitismo em Portugal. Não havendo judeus, nãohá problema. Também ouviu dizer, na sede da Polícia, que a PVDEpreveniu Salazar sobre o perigo de Portugal se tornar um país deabrigo. Os isolacionistas acreditam que uma enchente derefugiados, além de comprometer a paz, a neutralidade e osrecursos, possibilitaria a entrada de criminosos, espiões eagitadores políticos. Para o evitar, todos os vistos de entradapassaram a depender da aprovação dos vigilantes. Em junho de1940, com Salazar ainda vivo, a PVDE fechara as fronteiras parabloquear a entrada de judeus. Após o atentado, voltou a encerrá-las.Desta vez, interditando a saída.

«Quanto anos tens, Pereira?»«Vinte.»Paixão Leal está prestes a recitar o género de monólogo

paternalista que começa: «Quando chegares à minha idade, vaisperceber.» Mas o instinto do polícia prevalece sobre a tentação doevangelizador. Não vai discutir política com um legionário — aLegião já fez exercícios militares com a Juventude Hitleriana, tevecentenas de militantes a pelejar nas fileiras nacionalistas da guerrade Espanha, colabora na rede de informações da PVDE e é lideradapor um capitão que, além do bigodinho tirânico em voga, conhecetodos os espiões do Eixo na capital. Não é preciso ser marrano,como o velho Abecassis, para assumir que em cada legionáriohaverá um bufo.

«Vinte anos?», diz o detetive. «Já podes liderar uma missãosozinho.» Saem do elétrico e entrega-lhe a cesta que encontraramno Jardim da Tapada. «Vais ao Rei das Fardas e perguntas quem éque pode ter comprado os sapatos e as palmilhas. Encontramo-nosno Torel.»

Pereira, o sobrevivente ferido de uma luta com um gangue decatos, larga a correr para melhor desempenhar o que lhe pedem.Paixão Leal não sabe se aquele desejo do rapaz, de comprazerfiguras de autoridade, lhe provoca medo ou pena. De qualquerforma, é o seguidismo do legionário que faz de Pereira uma boavítima para as manobras de diversão do detetive.

Do bolso das calças, Paixão Leal tira a carteira que encontrou

dentro do cesto, no Jardim da Tapada. Cataloga as pistas no seuinterior. Um documento de identidade, dinheiro, vários papéis e umbilhete de excursão que tem escrito: «Paróquia da Lapa.Peregrinação Mariana.»

O padre Rafael desliza o dedo pela fotografia pendurada naparede, sobre a fila de raparigas do Grupo Mariano da Paróquia daLapa, até que encontra a que procura.

«É a segunda vez que a Polícia me pergunta por ela. Não me digaque ainda não deram com a garota.»

Em cima de uma mesa, há um presépio em construção. Dezenasde estatuetas de barro e uma panóplia de moinhos, pontes, capelas,uma Torre de Belém. As figuras humanas são oblongas e de finaespessura. Os corpos assemelham-se a efígies egípciasbidimensionais. Da Virgem Maria aos reis magos, todos têm corposjuvenis, com os pés, as mãos e as cabeças desproporcionalmentegrandes. Olhos fechados, feições andróginas e sorrisos beatíficos,de santinho embalsamado para peregrino ver. Já os animais sãoatarracados, constituídos por dois blocos geométricos, o cubo dacabeça e o cubo do corpo.

«É o meu projeto anual», diz o padre Rafael, percebendo ointeresse do detetive. «Começo no verão e só acabo em dezembro.Todos os anos fica maior e acrescento mais figuras. No Natalpassado, até esteve cá o Diário de Notícias para fazer umareportagem.»

«Original», diz o detetive, reparando na liberdade artística dosacerdote, que no seu presépio conta com um Santo António, umSão Vicente e um São Sebastião cravado de setas entre as costelasde rafeiro escanzelado. Os três reis magos são réplicas de DomAfonso Henriques, Nuno Álvares Pereira e Salazar. E há váriasNossas Senhoras, o que não espanta — as divindades são ubíquas,bem podem estar junto à manjedoura com o menino Jesus e nocabeço de um monte de papel machê, aparecendo aos pastorinhos.Paixão Leal conta cinco meninos Jesus e uma dúzia de reis magos.Nota o contraste entre as estatuetas pintadas — trajes garridos,olhos bem abertos — e os semblantes de uma paz sombria nasfiguras de barro cozido, ainda por pintar.

«É o senhor padre que faz tudo?»«Menos os bonecos, que encomendo e depois pinto.» O padre

Rafael mostra as mãos salpicadas de tinta. «Quem é que gosta deum presépio sem cor?»

Faltam poucos minutos para a missa e o sacerdote abre o armáriocom os adereços de palco. A garrafa sem rótulo guarda o vinho queele transformará em sangue de Cristo. Um frasco de vidrotransparente deixa ver a nudez do corpo do Messias distribuído porcentenas de hóstias. O detetive sente-se nos bastidores doespetáculo de Deus, o voyeur à espreita das coristas que mudam deroupa no camarim. Aquela podia ser a divisão onde o merceeiro fazas contas no final do dia. O quarto da casa onde um pai morreudepois de anos acamado. Mas um cheiro de velas, papel-bíblia eágua cediça em jarras de flores assegura Paixão Leal de que estánuma sacristia.

«Tem ideia de aonde ela possa ter ido?»O sacerdote tem trinta e poucos anos e a jovialidade dos

reformadores da Igreja. Deus é amor, Deus é paz, Deus é amizade.Decerto organiza excursões e acredita mais no perdão do que nocastigo. Talvez toque guitarra. As beatas criticam-lhe ainformalidade, mas cedem ao seu charme, fisgando-lhe as piadas eos galanteios. Juventude não é incompetência. Jesus atingiu o augeda carreira com apenas trinta e três anos.

«Digo-lhe o mesmo que disse aos outros agentes. Quando umadessas raparigas desaparece, ou voltou para a terra ou juntou ostrapinhos com alguém.»

«O que lhe parece mais provável?», pergunta o detetive.«As outras garotas dizem que ela estava de amores.»«Sabem quem é o namorado?»«Não me parece. Mas alguns paroquianos viram-na a falar com

um homem na estação do Rossio. Foi por essa altura que ela deixouo trabalho.»

«Não contou a ninguém aonde ia?»O padre abana a cabeça antes de se enfiar nas vestes da missa.

Volta a aparecer por entre a gola bordada a ouro.«Uma noite, pegou nas coisas e foi-se embora.»

«Sabe se ela participou numa peregrinação a Fátima, organizadapor esta paróquia, no dia treze de maio?»

«Que me lembre, não. Mas posso verificar.» Abre a gaveta deuma cómoda e retira um caderno de capa dura. «Temos quem nosorganize as excursões, mas eu guardo sempre um livro depresenças, cada participante deixa uma mensagem deagradecimento.»

«O senhor padre foi?»«Vou todos os anos desde mil novecentos e trinta e um.» Os

sinos da basílica tocam a hora certa e as beatas esperam-no para amissa. Entrega o caderno ao detetive.

«Se souber da rapariga, diga qualquer coisa. Sempre ficamosmais descansados.»

«Posso levar a fotografia?»«Se isso ajudar, esteja à vontade», diz o padre. «Sabe o caminho

de volta, certo?»O detetive espera que a porta se feche e procura o nome da

rapariga no caderno de capa dura. Encontra-o apenas nas páginasdedicadas às excursões de 1938 e 1939. Mas já tem elementos quepossam identificar a vítima, os mesmos que deveria entregar aosvigilantes, uma vez que sabe que dona Maria, a governantaassassinada a tiros no cemitério do Vimieiro, fanática do remendo eopositora do desperdício, tinha o costume de transformar a roupavelha do professor em peças de vestuário para as criadas. Quandofoi morta, Lurdes dos Santos tinha uma saia que já fora um fato dopresidente do Conselho.

O detetive desmonta a moldura para retirar a fotografia ondeaparece Lurdes na peregrinação de 1939. Ao guardá-la no bolso,percebe o olhar do Cristo, no crucifixo da parede, rogando-lhe ajudadepois de quase dois mil anos sem que o tenham alijado dospregos. Basta virar a cabeça e Paixão Leal transporta-se da mortepara o nascimento de Jesus. Observa o presépio na mesa e dá-seconta da tragédia familiar de São Bento. Num só dia, morreram trêspessoas que moravam na mesma casa. Uma família incomum, écerto. O pai cinquentão, casado com a Pátria. A mãe governanta,que ficou para tia. A moça adotada para servir no palacete. Mas o

arranjo familiar do presépio tão-pouco é ortodoxo. Um padrasto,uma mãe virgem e um bebé filho do Espírito Santo.

Com quinze anos, Paixão Leal, acabado de chegar a Nova Iorquee cioso de aprovação, ajudou os amigos judeus de Lower Manhattana sequestrar o menino Jesus do presépio da Trinity Church.Habituado a rezar numa capela gélida e de paredes descascadas,em Portugal, sempre julgara que Deus era modesto em todas assuas moradas. Na América, contudo, o Senhor tinha um palácio devitrais luxuriantes e abóbadas ossudas como o dorso dosdinossauros no Museu de História Natural. Havia tantas velas nointerior da igreja como lâmpadas elétricas lá fora. O Deus deManhattan, pensou o rapaz emigrante, não queria ficar atrás doshomens que prometiam chegar ao céu com prédios cada vez maisaltos. Na luz seráfica de uma nave lateral, os amigos judeusdisseram-lhe: «Louie, não temos um messias, rouba lá o teu paranós.» Ele beijou os pés do menino na manjedoura, junto do altar, ebenzeu-se, pedindo perdão ao Jesus adulto na cruz. Com o bebé aocolo, correu pela Broadway acima, ligeiro como um vulgar pilha-galinhas. Os miúdos judeus seguiram-no, aos gritos, festejando umDavid tomba Golias. Tanto alarde despertou a curiosidade de umpolícia de giro, que os perseguiu até Luís abandonar o meninoJesus numa carroça de laranjas. Quando o grupo convergiu para asegurança do Lower East Side, um dos rapazes deu-lhe um calduçode congratulação: «Tu bem que tentaste, Louie, mas ainda não édesta que os judeus festejam o Natal.» Esse dia subversivo com omais alto dos poderes deixou em Paixão Leal uma memóriainebriante. Sente-se compelido a regressar a esse momento desedição. Não prestar contas a ninguém, decidir sozinho a verdadeque mais importa.

Na sacristia da basílica lisboeta, entre as várias opções nopresépio, o detetive escolhe levar um menino Jesus por pintar,esguio e cabeçudo, sorrindo tristemente enquanto dorme. Enfia-o nobolso das calças, sai da basílica, desce a Calçada da Estrela e, aopassar pelos polícias que guardam o palacete de São Bento,esfrega os dedos no boneco de barro dentro do bolso. O tumulto doroubo abafa uma insubordinação mais perigosa. Agora, que tem

uma mulher, dois enteados e a bênção dos novos inícios, deveriaresistir ao justiceirismo e seguir pelo caminho mais rápido até àsede da Polícia política, onde contaria ter encontrado o corpo dacriada do presidente do Conselho. Porque conhece bem a violênciada carne baleada e dos ossos partidos — o boxe, o olho de vidro, osmafiosos da Lei Seca, os cadáveres suicidas da Grande Depressão—, o detetive desvaloriza o folclore das marchas dos legionários eas técnicas a mata-cavalo da PVDE. Julga tratar-se apenas depólvora seca: a criancice dos hinos e das bandeiras, a desfaçatezde chamar raça superior a estes pequenotes atarracados.Considera-se a salvo, o polícia que viveu na América dos homensverdadeiramente duros. Mas Paixão Leal confunde aparências comintenções, tropelias de garotos fardados com o lume brando dofanatismo. Enquanto a guerra não chegar a Portugal, outrosproblemas mais sérios se apresentam. E, tal como os líderesnarcísicos da Europa, que ele parodia e despreza, o detetive temum entendimento distorcido dos seus poderes, julgandodesempenhar uma missão que mais ninguém pode levar avante.Nem a fábula do menino de barro que tem no bolso, e que morreuna cruz, o alerta para o desfecho comum a todos os pregadores daverdade que juraram pôr ordem no mundo de uma vez por todas.Resta confirmar se, como os crentes de quem tanto desconfia,também ele precisa de uma certa dose de autoengano para lidarcom as pontas soltas da existência.

Sexta-feira, 26 de julhoEm menos de duas semanas, Rolão Preto foi empossado como

presidente do Conselho e Duarte Pacheco aceitou o exílio emLondres. A cada manhã, os jornais revelam mais informações queassociam o homicídio de Salazar à campanha de terror bombista.Foi anunciado o tiroteio entre os judeus sitiados numa casa, naSerra da Arrábida, e os agentes da PVDE. Enjeitada a rendiçãooferecida pelas autoridades, os judeus escolheram a morte a sercapturados. A versão oficial, comunicada pelo diretor da PVDE, dizque os subversivos pretendiam derrubar o regime e instalar umasucursal soviética em Portugal. Com a colaboração dosrepublicanos espanhóis, derrotados por Franco, espalhariam omicróbio marxista por toda a península. O general Carmona,presidente da República, discursou na rádio. Reforçou a vocaçãocatólica dos portugueses e garantiu um esforço conjunto dos paísesibéricos na anulação da ameaça estrangeira. E anunciou umareunião ministerial com o fim de reavaliar a neutralidade portuguesana guerra, uma vez que a nação está sob ataque.

Houve também um ressurgimento da propaganda do Eixo nosjornais. Colunistas germanófilos acusam Churchill de apoiar osterroristas judeus. Dizem que os ingleses pretendiam instalar emLisboa um Governo que declarasse o seu apoio ao Reino Unido eabrisse alas a um desembarque britânico. Como prova daconspiração, usam os boatos sobre o falhanço da secreta OperaçãoPanicle, posta em marcha após a morte de Salazar e que previa asabotagem de infraestruturas em território nacional, bem como otransporte do novo Governo para os Açores, caso as tropas do Eixoinvadissem o país antes da chegada dos ingleses.

Uns quantos, sempre à boca pequena, rumorejam nos cafés queos insurgentes não são judeus e sim espiões enviados por Hitlerpara acabar com a neutralidade portuguesa, justificando umainvasão que garanta ao Terceiro Reich centenas de quilómetros decosta para dominar o Atlântico Norte. Também correm boatos deque Estaline quis abrir uma frente de batalha a Ocidente, afastandoa probabilidade de uma agressão alemã à União Soviética. As

opiniões dividem-se, extremam-se, todos têm a sua versão de umaverdade inquestionável.

Há cada vez mais militares e legionários a patrulhar as ruas.Desapareceram as esplanadas dos cafés. Mantém-se o recolherobrigatório na capital e os judeus estrangeiros evitam sair daspensões e dos hotéis. Bandeiras com a cruz de Cristo começam aaparecer nas varandas e nas montras, são vendidas na rua e naspapelarias. Os portugueses respondem aos apelos da mui católicaLegião Portuguesa. Todos os dias, nas igrejas, em praças, diantedos rádios sintonizados na Emissora Católica, rezam o terço,criando um casulo divino, um estado de encanto e partilha.

Por tradição e modo de ser, desde o começo da guerra que boaparte dos portugueses torcia pelo Reino Unido, mas o embaixadoringlês não compareceu no enterro de Salazar e o Governoportuguês não aceitou a exigência do Foreign Office para negar,pública e liminarmente, a participação britânica no atentado aopresidente do Conselho. Figuras políticas, jornais, rádios e oSecretariado de Propaganda Nacional repetem as palavras «judeu»,«comunista» e «golpe de Estado». Defendem a homogeneidadecultural, religiosa e linguística da nação. Lembram que essaconvivência pacífica, do povo modesto e trabalhador, foi perturbadadesde que chegaram milhares de estrangeiros que não trabalham,que passam os dias nos cafés, trazendo consigo costumesdepravados, mulheres que fumam e andam sozinhas pela rua, semmeias, despertando a lascívia dos portugueses e os desvios moraisdas portuguesas.

Nos últimos dias, também o detetive Cardoso e o legionárioPereira elaboraram, na sala da brigada, uma panóplia de teorias ecenários. Escolhem um lado da barricada, radicalizam argumentospara ganhar o debate e impor a sua razão.

«Se o Estaline assinou um tratado de não-agressão com o Hitler,faz algum sentido que queira os sovietes a combater napenínsula?», diz Cardoso, usando o chapéu como leque. Não passadas dez e a sua papada já resplandece o suor da manhã.

«Sim, porque o Estaline nunca traiu ninguém. Desde quando sepode confiar num comunista?» Pereira trocou os calções da farda

por calças. Um legionário disse-lhe que tinha pernas de canivete. Amudança torna-o menos passível ao gozo dos colegas, disfarça-lhea imaturidade desconjuntada.

«Por que motivo os judeus haviam de fazer mal ao Salazar?Ganham o quê com isso?», pergunta Cardoso.

«Tanto os comunistas como os judeus sempre negaram Jesus.Estão apostados em destruir a cristandade.» Cardoso ri-se na carade Pereira. O legionário não vacila no púlpito: «Os judeus são umaraça sem terra. Os comunistas são gente sem Deus.»

«Eu também li esse editorial do Rolão Preto no Diário da Manhã.Só que em vez de o decorar, como tu, usei-o para apanhar a merdaque o meu rafeiro plantou no quintal.»

«Os judeus são nómadas, não têm raízes.»«Se são nómadas, porque não os deixam ir embora?»«Quando forem capturados todos os conspiradores, os judeus

podem partir.»«E se quiserem ficar?»Paixão Leal atira um lápis contra a mesa.«Fuck me. Parece que engoliram uma telefonia.»Cardoso sabe que o Americano não está apenas a queixar-se do

barulho. Há vários dias que os judeus fazem manchetes. PaixãoLeal acredita que o trabalho policial é o único remédio para aansiedade que cresce, todas as manhãs, no percurso entre a casaonde vive com Rebeca e o quiosque onde compra o jornal.Concentra-se na resolução dos dois homicídios com a tenacidadede um homem que usa um guarda-chuva para atravessar umdilúvio.

«Anda, faz-me companhia, que vou fumar», diz Cardoso aPereira. O legionário puxa de um maço do bolso da camisa. «Tuagora também fumas, rapaz?» Caminham para a porta.

«Sempre fumei.»Entram no corredor.«Deixa cá ver. Populares? Isso é tabaco de comunista.»O detetive Pimentel bebe café e lê o jornal na sua secretária. O

agente Bacalhau passa uma escova nos sapatos que se esqueceude engraxar em casa. Uma mulher-a-dias limpa os vidros das

janelas. Pássaros a chilrear no Jardim do Torel. Por fim, um sossegocaseiro a meio da manhã.

Nos últimos dias, fora do horário de expediente, para evitar afiscalização do legionário, Paixão Leal visitou o Cinema Condes.Levava consigo a fotografia de Lurdes que trouxera da sacristia etambém os bilhetes encontrados na carteira da rapariga, com asdatas e as horas das sessões. Que ela os tivesse guardadoindiciava algum tipo de apego. Talvez fossem a coleção de umacinéfila com dificuldade em deitar coisas fora. Ou as lembrançasmateriais de um diário romântico, como uma flor seca ou uma cartaentre as páginas de um livro. Um dos arrumadores da sala doCondes confirmou a segunda hipótese. Ao ver a foto de Lurdes,disse que ela se sentava sempre perto do mesmo homem e que osviu de mão dada na escuridão do cinema. Descreveu o presumívelnamorado, dizendo que ele também aparecia ali, todas as semanas,na companhia de uma mulher cega que costumava tocar acordeãona Baixa.

O detetive procurou a mulher cega durante dois dias. Por causada Exposição do Mundo Português, o Governo varrera pedintes evagabundos do centro da cidade. Perguntou por ela em lojas e cafésda Baixa, visitou a Santa Casa da Misericórdia e a Mitra, indagandoentre os indigentes o paradeiro da acordeonista. Deu com ela numquarto despojado de mobiliário na Madragoa. Era um espaçomínimo, onde só o instrumento musical e um penico com tampagarantiam que estava habitado. Numa pequena gaiola, sobre opeitoril da janela, um periquito afiava o bico num osso de lula. Ao vero polícia, o pássaro agitou as asas como punhos contra as grades,piando um escarcéu de ameaças e insultos.

«Ele julga que é meu marido, é muito ciumento», explicou a cegasolitária. Feitas as apresentações do agregado familiar, informou odetetive de que tocava em ranchos folclóricos e espetáculos derevista. Quando lhe faltava trabalho, ia para a Baixa com oacordeão, esperando as moedas. Tal como Paixão Leal, usavaóculos escuros. Pela lateral da armação, o detetive conseguiu ver-lhe as esferas brancas, a película das natas no leite fervido que asenvolvia.

A mulher chamava-se Irene e era prima de Juvenal Silvestre,despachante e namorado de Lurdes. Todas as semanas, o primolevava Irene ao cinema e contava-lhe o que via no ecrã. Ajudava-a apagar o quarto na pensão. Há quinze dias que Irene não sabia nadadele.

«O Juvenal queria muito emigrar com a namorada, não falava deoutra coisa», disse. «Andava a juntar dinheiro para a viagem. Masnão se ia embora sem me dizer adeus.»

O detetive visitou as agências de navegação, do Cais do Sodré aAlcântara, e não encontrou o nome de Juvenal nas listas depassageiros das últimas semanas. Quando chegou à morada queIrene lhe deu, no Beco de São Luís da Pena, e pediu ao senhoriopara lhe abrir a porta do apartamento de Juvenal, o desarranjo dacasa — gavetas abertas, roupa no chão, a cama revirada — apenasconfirmou a informação que já lhe fora transmitida pelo padre, peloarrumador do cinema, pela acordeonista cega e agora pelosenhorio: «A Polícia já aqui esteve.» Mais tarde ou mais cedo, osvigilantes ficariam a par das diligências do detetive.

Essa contagem para o flagrante delito de Paixão Leal terminaagora mesmo, quando o chefe Ferrão, acompanhado pelo agenteGouveia, da PVDE, entra na sala da brigada e lhe diz:

«Paixão Leal, no meu gabinete.»O detetive recebe a ordem para se sentar na cadeira diante da

secretária do chefe, que, tal como Gouveia, fica de pé.«Quer explicar?» A voz de Ferrão, por norma serena, está uns

tons mais agreste.«O quê?»«A miúda que apareceu morta no Jardim da Tapada. Porque não

me disse que era criada em São Bento? Não lhe passou pelacabeça que isso podia ser de interesse na investigação ao atentadodo presidente?»

«A morte da rapariga não é um crime político. O principal suspeitoé o namorado. Um despachante de segunda. Sem ligações amovimentos ou partidos clandestinos. O chefe sabe muito bem que,na maioria dos casos, o homicida é o marido, o amante ou onamorado. Foi essa linha de investigação que segui.»

O detetive preparou-se para o confronto. Fez demasiadosinterrogatórios para não saber que a mentira que melhor lhe serve éa mais próxima da verdade. Defende-se com os procedimentospoliciais da praxe. Não está ali unicamente para ludibriar o chefe esalvar a pele, também quer recolher informações.

«E não foi capaz de cogitar que as duas coisas podiam estarligadas?»

«Que duas coisas?»«A morte do presidente e da criada», diz Ferrão, como se

explicasse uma regra de três simples a um chimpanzé.«Chama-se Lurdes.» A correção irrita o chefe. O detetive sabe

que a exasperação leva as pessoas a falar mais do que devem. «ALurdes era uma rapariga simplória, que veio do campo, não se metianuma coisa dessas.» Prolonga o silêncio, obriga Ferrão a falarprimeiro.

«O tipo está preso por envolvimento no atentado e confessou quefoi a criada quem lhe disse que o Salazar ia ao Vimieiro.»

«Estamos a falar de uma patega das berças, chefe, não estamosa lidar com uma agente secreta internacional. É muito mais provávelque o Juvenal quisesse abusar da garota no jardim antes de se verlivre dela. Afinal de contas, era a única ligação que o gajo tinha aopresidente. E o estrangulamento sugere uma proximidade entre avítima e o assassino.»

«Aprendeu isso na América?»«Tudo aponta para o namorado, chefe.»«Mas não foi ele.» O vigilante Gouveia desencosta-se da parede.

Costas largas, bíceps torneados pelo tecido do casaco, olhos detoupeira raivosa atrás das lentes fundo de garrafa. «Nos teus papéisdizes que ela morreu a treze de julho, ao fim do dia, quando choveupela última vez em Lisboa. Sugeres isso por causa da lama nos pése das marcas na terra. O Juvenal foi detido na noite de doze dejulho.»

«Os meus papéis?»«A pedido do diretor da PVDE», diz Ferrão, «o caso está entregue

ao agente Gouveia. Já lhe passei a pasta.»Paixão Leal antevia este desfecho, não finge grande sobressalto,

dirige-se a Gouveia:«Como é que chegaram ao Juvenal?»O vigilante encaixa o chapéu na cabeça de gorila míope,

decretando o fim da conversa e saindo do gabinete:«Depois falamos.»Paixão Leal levanta-se, alisa as pregas das calças.«Por acaso, já o dispensei?» Ferrão é o pai adotivo que se

arrependeu de trazer para casa o rapaz problemático. «Tem noçãodo sarilho em que se meteu?»

«Chefe, polícia que espia polícia é criminoso a dobrar.»«Não quero ouvir as suas máximas estapafúrdias. Está suspenso,

sem vencimento.»«Tudo bem, não me paga, mas eu venho trabalhar na mesma.»«Não está a perceber, estou a suspendê-lo a pedido do diretor da

PVDE, pelo menos até que termine o inquérito que vão fazer à suainvestigação. Depois logo decidem se é apenas burro, mau políciaou se tem alguma coisa a esconder.»

Toldado pela monomania do ofício, Paixão Leal continua aacreditar que a sua defesa se faz pelo simples facto de se achar nolado dos justos. Até o vigilante mais obtuso perceberia a boa-fé dassuas intenções.

«Chefe, conhece-me há anos, sabe bem que só me interessadescobrir a verdade, prender criminosos, repor a justiça.»

«E foi por o conhecer que me responsabilizei por si, casocontrário, tinha ido já hoje com o Gouveia. Passava o fim-de-semana nos calabouços. Segunda-feira, às dez da manhã, tem deestar na sede da PVDE.»

Por esta não esperava Paixão Leal. Saiu-lhe cara a esperteza dese fiar na estupidez que atribui aos vigilantes. Uma reprimenda, sim,até umas horas numa sala de interrogatórios, como espectador doteatro do medo apresentado pela PVDE. Mas uma investigaçãooficial aos seus procedimentos policiais implica que podem entrar-lhe pela vida adentro, visitá-lo em casa a meio da noite, chantageá-lo com a segurança de Rebeca e dos filhos.

O detetive abandona o gabinete de cabeça baixa. O chefesuspira, grato pela rendição, mas equivoca-se, porque não lhe vê os

punhos cerrados pela fúria dentro dos bolsos das calças. PaixãoLeal agarra no chapéu e mete-o na cabeça — o gesto corriqueiroserve para escudar a revolta. Sabe que tem de sair dali, ainda quenão possa estabelecer já o destino dos seus passos. Consigo levatambém a miniatura do menino Jesus, talismã de insurreiçõespassadas e futuras. Lá fora, alguém terá de pagar pelo que acaboude acontecer no gabinete do chefe.

Paixão Leal julga ter a seu favor a dureza do corpo que, caso sejustifique, levará tudo adiante. Mais de uma vez a abnegação defazer o que estava certo teve consequências desastrosas. Começoua perceber isso quando a sua carreira de pugilista entrou para oregisto das promessas que nunca o foram verdadeiramente. Batiaforte e aguentava o suplício da fadiga. Os treinadores falavam-lhedaquilo a que os mestres do boxe chamam doce ciência, uma arteexpressa em milésimos de segundo, as esquivas, a guarda, adistância, um balé de métrica e potência, o equilíbrio perfeito entrebater e não ser atingido. Esse estado mítico não se alcança deforma racional, tem de tornar-se a primeira natureza do pugilista,algo tão orgânico como a corrente sanguínea.

Paixão Leal, o Fast Louie da Rua Sullivan, escutava todas essaslições, mas no ringue era mais brutamontes do que artista campeão.Se continuasse a lutar teria uma vida itinerante de motéis eautocarros, combatendo em cidades pequenas. Em poucos anos, ostalheres iriam tremer-lhe nas mãos, as lesões cerebrais empapar-lhea fala. Percebeu que desistir do boxe era a única forma deincorporar a doce ciência, de alcançar esse lugar ideal onde se batesem ser atingido. Só que a natureza de um homem não muda com aprimeira epifania.

Contrafeito e desasado, Paixão Leal desce a Calçada de Santana.Sente o efeito do calor do fim de tarde de verão na carne humana enos cheiros maduros da cidade. O limiar do dia promete a coberturaque a noite oferece aos contraventores. O detetive deixa-se tomarpor esse bulício e descontrolo, como se o seu corpo acedesse auma versão mais antiga de si mesmo, nas ruas de Nova Iorque,quando uma mulher na cama e uma garrafa de rum almofadavam osfalhanços, num festim ao esquecimento. Tudo mais simples e

intenso. A impunidade do já e do agora. Adiar o dia seguinte. Nesteestado sanguíneo, não pensa em Rebeca ou nos miúdos, vinga-sede si próprio. Barganha o primeiro copo, só um copo, depois irá paracasa. Vinho carrascão, numa tasca da Rua do Norte, que servirápara amansar os nervos e, por lhe saber tão mal, deveria demovê-lode continuar a beber. Procura Fialho no Bairro Alto porque, naredação d’A Verdade, lhe disseram que o diretor saiu para jantar eque já não voltaria. Agora, que o recolher obrigatório apenas seaplica aos judeus estrangeiros, ouvem-se outra vez as guitarras e osarabescos das vozes pelas portas abertas das casas de fado. Entranuma delas e pede outro copo de tinto. Um homem com capachinhotrina as cordas vocais da orfandade ou da viuvez, o lamento dequem chega a casa a desoras sem conseguir levar a chave à porta.

Paixão Leal volta à rua, onde alguém despejou água na calçadade escamas reluzentes. Desce para o Rossio e bebe o terceiro copoao balcão do Gambrinus, comendo um croquete para mitigar atransgressão e a azia. Escuta as vozes dos homens de fato egravata na sala do restaurante, uma clientela ostensivamentemasculina, gargalhadas retumbantes de poder e privilégio queecoarão ao longo da noite nos clubes e nos bordéis. Procura Fialhonos cafés da Baixa, no Parque Mayer, e senta-se no bar do HotelAvenida Palace, onde pede um rum duplo. Prova o ardor do líquido,o travo corpulento do açúcar mascavado, uma efervescência que seespalha pelas artérias e lhe sobe à cabeça, desbloqueandoinibições, trazendo à tona uma expectativa que, em tantos outrosbares e tantas outras noites, lhe anunciou algo de extraordinário,algo que, no tempo que faltava até ao amanhecer, o livraria dasolidão.

Uma mulher senta-se ao balcão, uma banqueta alta a separá-los.Tem um vestido de lantejoulas pretas, até ao joelho, e uma fita domesmo tecido na cabeça, com uma pena branca. Um visual datado.Ruiva de cabelo pintado, a mesma cor escarlate nos lábios,pestanas lustrosas de rímel, um traço egípcio no canto dos olhosclaros. Está sozinha, sem a escolta de um homem — mais umindício de que não será portuguesa.

Abre uma cigarreira. Com o cotovelo no balcão e um leve girar de

cabeça, exibe o cigarro fino e de filtro branco que, nos dedos semanéis, pede para ser aceso. É o previsível, mas sempre eficiente,primeiro movimento da dama em apuros. Quantos homens nãoterão iniciado a sua tragédia ao estender um isqueiro a umadesconhecida?

Ela pergunta:«Would you be so kind?» Paixão Leal diz que não tem lume e

aponta para o empregado. «Oh, of course», diz a mulher, simulandouma pequena desilusão, uma pequena afronta que ele deveráconsolar. O empregado de laço preto e casaco grená oferece-lhelume. Ela estica o pescoço pálido e atira o fumo para o teto,deixando a curvatura da garganta à mercê do detetive. «Obrigada»,diz, em português com sotaque, as vogais muito abertas, como sefizesse uma pirueta e esperasse o aplauso do público. Estende acigarreira aberta a Paixão Leal. Ele recusa a oferta.

A ruiva falsa cruza e descruza as pernas, tenta esconder umrasgão nas meias, uma amostra mínima da pele tão branca. Odetetive olha para o buraco na malha negra. Desde que conheceuRebeca, nunca esteve com outra mulher. Não se trata de umpostulado moral. Mas ele precisa de acreditar que o amor, tal comoa sobriedade, exige renúncia e que um homem tiranizado pelaspulsões é um escravo que se julga livre.

«What’s with the sunglasses?», provoca a ruiva.O detetive dá-se conta do desespero, da urgência, do

amadorismo, do desconforto de uma mulher que terá de se despirdiante de um estranho. Também percebe o sotaque quando ela falainglês, as solas gastas dos sapatos, a mesma fisionomia das irmãsdos seus amigos judeus do Lower East Side.

Paixão Leal tira os óculos.«Bistu yiddish?»O olho de vidro é menos assustador do que a pergunta. Claro que

ela é judia. Uma das mulheres que, depois de vender o pouco quetinha, trancada num quarto de pensão desde manhã ao fim da tarde,arrisca sair à rua apesar do recolher obrigatório. Pintou o cabelo,quer passar por gentia, oferecendo mais juventude do queelegância, mais inocência do que deboche, uma maciez e um

perfume pubescente que os homens que a levam para a cama sópodem sentir com as criadas ou quando pagam o preço de tabelanum quarto alugado à hora.

Ela responde em inglês, mente, diz que está à espera do irmão,que o seu passaporte não tem o J carimbado pelo Terceiro Reich. Odetetive mostra-lhe o crachá da Polícia que, por causa dasuspensão, está proibido de usar.

«Não deve estar na rua a esta hora», diz ele, em inglês. Indefesae desmascarada, ela julga que provocou um homem para quem osexo é a subjugação da mulher. Mas o detetive afasta o copo derum sem terminar a bebida. «Vá para casa», diz-lhe, emborapudesse estar a falar para um espelho.

Sai para a rua, inspira o ar da Praça dos Restauradores e éengolido pela pulsação da luz nas janelas dos hotéis, nos faróis doscarros, nos reclames luminosos das lojas. Procura apoio no troncode uma palmeira e, por castigo e precaução, enfia os dedos nagarganta. Limpa o vómito do queixo com um lenço de pano, cospe,pigarreia, volta a cuspir. Quando um PSP se aproxima, o detetivemostra-lhe o distintivo e não diz uma palavra. Dirige-se para oRossio, irradiando a violência dos justiceiros sem causa certa.

No relógio da sala de bilhares do Café Chave d’Ouro são dez paraa meia-noite. O estabelecimento está prestes a encerrar. Fialhosegura o taco com a mão esquerda, agacha-se para que os olhos,ao nível do pano verde, examinem a viabilidade de uma jogada àstrês tabelas. Na borda da mesa estão algumas notas prensadas porum copo. É uma partida a dinheiro. O seu adversário, sem casaco,tem as mangas da camisa arregaçadas, o nó da gravata desfeito,uma cicatriz no antebraço. Enrola um cigarro e, ao ver Paixão Lealde óculos escuros, avançando para a mesa de bilhar, diz algumacoisa ao gordo sentado numa cadeira, que sorri, arreganhando aboca escondida pelo bigode. Não há mais ninguém na sala.

«Preciso de falar contigo», diz o detetive.Fialho endireita o corpo, inclina-se para Paixão Leal e murmura:«Não é a melhor altura.»«Vamos.» O detetive agarra-lhe num braço e arrasta-o para um

canto.

«O que é que sabes do Juvenal Silvestre?»«Quem?»«O gajo que informou os terroristas que o Salazar ia ao cemitério

do Vimieiro.»«Fala baixo.»O homem da cicatriz no antebraço bate com o taco na mesa.«Demora muito?», pergunta, em espanhol.O detetive ignora-o, continua a apertar o braço do jornalista.«Quanto mais depressa falares, mais depressa me vou embora.»Fialho liberta-se. Faz sinal ao oponente do bilhar, pede-lhe que

espere. Vira costas à sala para que não o oiçam. O seu jornal,popular, alarmista, cresce em tiragem e tem sido o altifalante daPVDE.

«Foi apanhado numa rusga, a comprar vistos e bilhetes para oBrasil na candonga», diz o repórter. «Tinha mais dinheiro do que seespera de um despachante. No dia seguinte, o Salazar foi morto eos agentes acharam estranho que o gajo se quisesse pisgar do paísna noite antes do atentado. Onde há fumo há fogo. Pelo sim, pelonão, voltaram à cela, apertaram com ele e o tipo desbocou-se.»

Um empregado varre o chão, apagaram-se as luzes em metadeda sala. O espanhol da cicatriz e o gordo, situados no ângulo mortodo olho de vidro, estão a meio de um ataque de riso. Quando umpára, o outro recomeça. O gordo bate com a mão na mesa, oespanhol apoia-se no taco. Talvez nem estejam a rir-se de PaixãoLeal, mas o detetive gira o pescoço, fixa-se neles apenas umsegundo, como faz sempre que alguém fala nas suas costasdurante uma sessão de cinema. Os homens ignoram-no, continuama rir. O detetive volta-se para Fialho.

«O que é que o gajo contou?»«Passa amanhã no jornal, em minha casa, onde quiseres, mas

não faças isto aqui.»«Foram os judeus ou não?»O jornalista abdica das hipérboles e dos floreados dos seus

artigos de opinião. Fala como se quisesse despachar os dez cantosd’Os Lusíadas no tempo que um anúncio de pasta de dentesdemora a passar na rádio. Explica o funcionamento da rede que

matou Salazar e que fez explodir a Exposição. Havia doiscomandos. O primeiro comando apurou as rotinas, os trajetos e aagenda do presidente do Conselho. Seguiu e investigou pessoasque tinham acesso a Salazar: o sapateiro, o calista, o padre e,acidentalmente, Juvenal, o fanfarrão fura-vidas que contava aosclientes judeus os planos de emigrar com a namorada que servia nopalacete de São Bento. Sabendo das ambições de Juvenal, os tiposdo primeiro comando ofereceram-lhe dinheiro e um trabalho quandochegasse ao Brasil, isto se o despachante lhes providenciassealguma informação útil. O segundo comando estava sempre desobreaviso, caso fosse para avançar com o atentado. Por razões desegurança, o primeiro comando não sabia qual o refúgio do segundoe vice-versa. Comunicavam por rádio, com mensagens codificadas.

Nas semanas em que Juvenal colaborou com os terroristas, osseus contributos eram prosaicos, apenas as confissões domésticasde Lurdes. O professor recebia sacolas com legumes e enchidos deadmiradoras de todo o país. Tinha medo de andar de elevador.Obrigava o motorista a pagar renda pelo anexo onde vivia, nopalacete de São Bento. Até que, na estação do Rossio, a criadaofereceu a Juvenal o bilhete premiado. O velho ia visitar a mãe aocemitério. No dia seguinte, os dois comandos viajaram para oVimieiro.

«E a criada, estava metida no atentado?», pergunta o detetive.«O gajo disse que a rapariga não sabia de nada e que ficou em

casa enquanto ele foi comprar os bilhetes e os vistos com o dinheiroque tinha recebido dos judeus. Mas, quando a PVDE lhe foi revistara casa, nem sinal dela. Pensavam que estivesse escondida nalgumlado. Agora acham que foi morta pelos comandos.»

«Se não sabia de nada, porque a mataram?»O espanhol da cicatriz assobia uma ordem. Era assim que o pai

do detetive exigia a sua presença. Um assobio que tanto servia parachamar os filhos como os cães.

«Aqui joga-se a dinheiro, coño. Se querem dizer mal das vizinhase falar de vestidos, isso é nas casas de chá.»

Desta vez, é Fialho que segura o braço de Paixão Leal.«Escuta, a sério, vai-te embora. Não arranjes confusão. O gajo é

da Seguridad, tem as costas quentes.»Fialho vai para junto da mesa de bilhar. O detetive é o aluno

castigado no canto da sala, aquele que todos observam e gozam, opolícia suspenso e sem direito a salário, incapaz de resolver doishomicídios ou de proteger uma família que, de acordo com agenealogia do sangue, nem sequer lhe pertence. Uma judia casadacom um alemão morto, dois filhos que não têm o apelido PaixãoLeal.

O espanhol da cicatriz está a meio de uma jogada quando oempregado arruma a vassoura e se dirige aos jogadores.

«Desculpem, cavalheiros, mas temos mesmo de fechar.»O taco em movimento atinge a bola de raspão. O espanhol vira-se

para o rapaz da vassoura:«Estás a dever-me vinte escudos.»O empregado, um pau de virar tripas, com uma cordilheira de

acne a atravessar-lhe o rosto e um pano ao ombro, tem o queixobambo e o olhar atarantado de uma galinha no fio da faca.

«Desculpe?»«Distraíste-me e custaste-me esta jogada. Vou ter de cobrar o

dinheiro ao teu patrão ou vais pagar?»O gordo ri-se, um farfalhar de banhas e brônquios que chucham

dois maços de tabaco por dia.Fialho diz:«Esquece lá isso, Ordoñez, acabamos noutro dia.»«Não. Este imbecil custou-me dinheiro.»Paixão Leal tira os óculos escuros. Se corrigir aquele desaforo,

poderá aplacar a própria impotência. Se interferir, será o pequenosabotador das grandes injustiças, vingará um judeu capturado pelaGestapo em Toulon, os desalojados de uma Roterdão carbonizadapelas bombas da Luftwaffe, todas as mulheres estranguladas pelosassassinos à solta. Se agir agora, talvez impeça a versão do futuroem que Rebeca entrará num comboio em Lisboa, tal como o paidela viajou num vagão sobrelotado de Munique para Dachau.

«Eu pago-te os vinte escudos», diz Paixão Leal. Não soa a ofertade paz, porque o detetive deposita os óculos de sol em cima damesa de bilhar como se tirasse o casaco e arregaçasse as mangas.

O agente da Seguridad conhece o código do enfrentamento dosmachos. Entra na dança e entrega o taco de bilhar ao gordo.

«É a segunda vez que me interrompes.»«Sabes contar. Não estava à espera.» O detetive tira o chapéu,

lança-o para o pano verde.O silêncio é um sino a tocar a rebate para alertar da invasão dos

bárbaros, é o abatedouro vazio, segundos antes de se abrirem asportas ao primeiro gado do dia. O empregado julga sentir que otempo desacelera e que o espaço encolhe. Mas, para os doishomens frente a frente, cada segundo é apenas um segundo. Océrebro prepara-se para os reflexos simples e fundamentais. Não hásensatez, inteligência, abstração. São apenas homens a provarquem é mais homem. Tudo é imediato para os gorilas no matagal.

«Sabes com quem estás a falar?», pergunta o espanhol.«Isso faz diferença quanto ao que se vai passar aqui?» O detetive

conhece este prazer, quando a ira, cristalizada pela linguagem epela arrogância, se eleva a invulnerabilidade.

«Talvez estejas a tempo de pedir desculpa.» O espanhol tira asmãos dos bolsos.

«E um beijo na boca, queres?» Paixão Leal: o pirómano deleitadocom as emanações da gasolina; a faca abrasadora que cauteriza oburaco da bala; o pontapé na porta trancada.

O homem da cicatriz avança e Paixão Leal levanta a guarda,esquivando o primeiro golpe e o segundo. Os movimentosautomáticos, que repetiu milhares de vezes nos ringues, sãoressuscitados pela clareza da adrenalina. Mas, ao terceiro soco,sente a tontura do álcool e falha a distância. O espanhol aproveita odesequilíbrio do detetive, colhe-o como uma marrada e abraça-opela cintura.

Entalado contra a parede, Paixão Leal agarra o cabelo dooponente e expõe-lhe a cara ao castigo. Com a mão esquerda,esmurra-lhe o nariz, a cartilagem e o osso rebentam como aexplosão de uma carraça redonda de tanto sangue.

O espanhol recua dois passos e pisca os olhos, tem o corpofletido, pronto para a demolição. O detetive reforça a trajetória daqueda, lançando um gancho abaixo das costelas. A onda de choque

começa no fígado do espanhol e alastra-se aos pulmões, aodiafragma, impede-o de inspirar, destrava-lhe as articulações daspernas.

O gordo está em pé antes que o companheiro de bilhar chegue aochão. O traquejo de outros duelos, mais do que a velocidade demovimentos, leva-o a desferir o taco como se fosse um chicote. Amadeira parte-se ao meio na têmpora de Paixão Leal e, de acordocom alguma lei da física que relaciona massa e movimento, o olhode vidro é cuspido do crânio, rolando viscosamente pelos mosaicosaté embater no pé de uma cadeira. Desvalido, o detetive tropeça noespanhol da Seguridad, tenta agarrar-se a uma corda invisível, osdedos só apanham ar.

Dando bom uso ao que lhe resta do taco, o gordo assegura quePaixão Leal vai ao tapete com duas vergastadas. O sangueesguicha de talhos profundos no couro cabeludo do Americano, olíquido quente e pastoso cega-lhe o olho bom. Os filamentos doespírito começam a fundir-se.

O espanhol da cicatriz ergue-se, cambaleante, e rouba o taco damão do gordo.

«Te voy a pegar una paliza que no te va a reconocer ni la putaque te parió.»

«Ele é polícia», grita Fialho. Repete a frase mais duas vezes, umaviso que também é uma súplica.

O espanhol escarra sangue, cuspo e menosprezo nas costas dePaixão Leal. Solta o taco e sentencia, com voz nasalada de septoesborrachado:

«Ficas a dever-me vinte escudos, comemierda.» Pega no chapéue, vendo os óculos de sol em cima da mesa, guarda-os no bolso docasaco, com a haste para fora, mostrando que os despojospertencem aos vencedores. «Afinal, estamos de contas feitas.» Nocaminho para a saída, arranca o pano do ombro do empregado elimpa o nariz. O gordo segue-o, mas pára ao ver o olho de vidro nochão. Apanha o globo com o polegar e o indicador, roda-o à luzcomo se avaliasse o grau de pureza de uma gema preciosa. O olhoé um traste sem valor. Deixa-o cair, pisa-o até rachar o vidro edespede-se com um riso balofo de apneia e gases intestinais.

Fialho e o empregado içam Paixão Leal da semi-inconsciência,carregam-no em ombros para a praça do Rossio. O jornalista chamaum táxi com um braço esticado e enfia o detetive no banco traseiro.Durante a viagem, aperta um lenço com monograma, que comprouem Madrid, contra os rasgões da cabeça que lhe tomba no ombro acada curva do automóvel. Com o fato mortificado pelo sangue, ajudao polícia a sair do táxi e deixa-o à porta de casa.

«Queres ajuda para abrir a porta?»«Fuck you.»«De nada», responde Fialho, de regresso ao táxi.Sem chapéu, óculos ou olho de vidro, coberto de sangue e

trôpego das pernas, Paixão Leal debate-se com a fechadura até queRebeca, em camisa de noite, lhe abre a porta. O susto demora uminstante, logo ela recupera a frieza de espírito que a ajudou a evadir-se da Alemanha, a atravessar a Europa com dois filhos e a começaruma vida numa cidade estrangeira. Rebeca não faz perguntas,senta o detetive num banco da cozinha e, mais cirúrgica do quematernal, investiga-lhe o corte na cabeça. Vai buscar a caixa decostura e um frasco de álcool. Desinfeta a ferida e a agulha.Habituada a fazer bainhas e a criar vestidos, usa uma linha pretapara suturar o golpe, tão habilitada como os enfermeiros de serviçoque, após os combates de boxe, tantas vezes coseram a cara dePaixão Leal na América.

Rebeca corta uma fronha de almofada em tiras e liga-lhe acabeça. Ajuda-o a despir-se e a entrar na cama. Não o interroga,não o condena, não lhe diz que cheira a álcool. Também não o beija.

«Vou dormir no quarto dos meninos. Tenho de acordar cedo.»Fecha a porta devagar, o trinco faz ricochete nas paredes. Os

pontos com que Rebeca fechou o corte poderiam ser a prova dealgo tão monumental como todas as odes, todas as sonatas, todosos palácios jamais criados em nome do amor. Mas, sozinho noquarto, oprimido entre o exagero da bebedeira e o sentimento deculpa da ressaca, algo parece mais evidentemente doloroso aodetetive: em vez de proteger a família, está a pô-la em risco. Essacerteza é mais excruciante quando, de manhã, com hematomas nocorpo, numa casa de onde todos já saíram, Luís Paixão Leal entra

na cozinha para descobrir o pedaço de tecido negro, com um fio,que Rebeca costurou durante a noite. Uma pala de pirata, quedeverá cobrir o buraco negro de um homem tão zarolho na caracomo no coração.

Segunda-feira, 29 de julhoPereira retira-se da sede da PVDE e parece-lhe que todos na rua

estão a par da sua ingenuidade e do seu fracasso. Entrou na salade interrogatório como colaborador da Polícia política, pensandoque lhe ofereceriam um emprego. Saiu estupidificado pelacondescendência do agente Gouveia. Tal como os legionários que,desde a morte de Salazar, colaboram com as diferentes forçaspoliciais, Pereira tinha a tarefa de passar informação relativa ainvestigações que pudessem interessar à PVDE, bem comodenunciar possíveis dissidentes dentro da PIC. Gouveia perguntou-lhe porque não estava junto a Paixão Leal durante a visita ao padreRafael, ao Cinema Condes ou à casa da prima cega de Juvenal.Pereira jurou pela alma dos pais que não sabia a identidade deLurdes, que o detetive lhe mentiu e que efetuou diligências fora dashoras de serviço. Ao transferir a culpa para Paixão Leal, mais doque afirmar-se inocente, o legionário confirmou os juízos de Gouveiasobre a sua inépcia e candura: «És tão tenrinho. Talvez te safes nosescuteiros.» Em todos os momentos, Gouveia tratou-o como a umpalerma, assumindo que lhe faltava a argúcia e a coragem para quefosse suspeito de alguma coisa.

Pereira caminha pela cidade, sem rumo e adiando o regresso acasa. Ombros exauridos pela tensão e botas a arrastar na calçada.Está consumido pelo dramatismo dos jovens que, perante umdesaire, acreditam que os sonhos de futuro foramirremediavelmente destruídos. Pensa que perdeu o lugar na marchada nação triunfante, que nunca será piloto de bombardeiros, que éuma vítima do ardil daqueles que não se regem pela cartilha dodever. Homens mentirosos e traidores como Paixão Leal.

Quando se lembra que declarou a Gouveia, no início dointerrogatório, que o detetive era «um profissional exemplar», «umhomem muito dedicado ao trabalho», revive a humilhação e odesapontamento. O Americano tinha sido, para Pereira, oromantismo viril que embruxa tantos rapazes. O pugilista depassado incógnito, que falava pouco e praguejava em nova-iorquino. A figura no nevoeiro do cais, de gola levantada, judicioso eimperecível, conhecedor da solidão que as suas escolhas

implicavam. O vingador dos óculos escuros, do olho de vidro e damemória infinita. Vivia com uma loira, não bebia, não fumava,praticava a disciplina e a dureza, caminhava sempre com o afinco —a contumácia — de quem perseguia um assassino. Quandoconheceu Paixão Leal, Pereira decidira que o detetive não era umhomem comum e defeituoso como aqueles que vagueiam pelasruas de Lisboa, maltrapilhos, preguiçosos, destinados a umaexistência de mediocridade. Mas agora o legionário tem a certezade ter sido enganado.

No Terreiro do Paço, rebela-se contra a fila de refugiados que lhetapa o caminho diante dos Correios. O coro de idiomas despertanele a mesma irritação de quando o pai palita os dentes com alíngua. Ao reparar na farda da Legião, os estrangeiros calam-se,olham para a frente, abrem passagem. Pereira fica onde está,levanta o queixo e entrelaça os dedos atrás das costas, como sefosse passar revista ao pelotão. Consciente do desconforto que oseu olhar provoca nos refugiados e de todos os cenários nefastosque o seu comportamento conjura na mente daquelas pessoas,deixa-se ficar assim alguns segundos, o credor à espera que lhepaguem o que é devido.

Chega a casa de noite, os pais estão na sala, cada um na suapoltrona, o rádio a tocar um tango. Margarida lê uma revista, Jaimedormita, a mão segurando um cálice de uísque britânico.

«Quando não vier jantar, avise. Ainda há regras nesta casa», diz amãe, baixando a revista. Na capa, Rolão Preto aperta a mão aoministro dos Negócios Estrangeiros espanhol. Na contracapa, ossoldados alemães, primorosos e bravos, são figuras estilizadas numalmanaque de banda desenhada.

«Essa revista é minha», diz Pereira.«E quem é que pagou a assinatura?», pergunta Margarida,

responsável por entregar a mesada ao filho.«Fui eu», responde o pai, abrindo os olhos.A criada entra na sala com um tabuleiro. Entrega-o à patroa. Um

boião de vidro com uma pasta branca, uma colher e um frasco demel.

«O que é isso?», pergunta Jaime.

«Iogurte», diz Margarida. «É uma sobremesa dos judeus, muitofresquinho, e dizem que faz bem aos ossos.» Despeja uma colherde mel no boião. «É feito por um búlgaro. Ou russo. Sei lá, umdesses.» Entrega a revista ao filho. «A Natália que lhe sirva ojantar.»

«Não tenho fome.»A criada marcha para a cozinha e, na rádio, o locutor lê as

notícias. O presidente do Conselho, Rolão Preto, e o generalíssimoFranco encontraram-se em Tordesilhas para assinar um pactoibérico de não-agressão. Haverá por todo o país procissões,organizadas pela Legião, para louvar a padroeira de Portugal, pedir-lhe força e agradecer o seu amparo nestes tempos de conturbaçãoespiritual. A Marinha inglesa iniciou o bloqueio a Angola eMoçambique. O Clube de Regatas do Flamengo enfrenta o SportLisboa e Benfica no domingo seguinte, num jogo amigável.

«O Rolão Preto não descansa enquanto não nos meter na camacom os alemães», diz Jaime, provocando o filho sem se dar conta.Levanta-se e roda o botão do rádio através dos tropeços da estáticaaté estancar nos Nocturnos de Debussy.

Margarida, que raspa os restos de iogurte no boião, usa a colherpara dirigir o marido.

«Vá, diga-lhe.»Jaime baixa o som da música e descansa as mãos nas costas da

poltrona.«Filho, ontem encontrei o Lumbrales em São Bento. Falei-lhe de

ti. Disse-me para passares no escritório dele amanhã. Mas é apenasum pró-forma. Tens um lugar à tua espera nas Brigadas daDecência.» O pai explica que o diretor da Legião Portuguesaacabou de criar uma Polícia dos costumes, recorrendo aoslegionários mais jovens, uma unidade que apenas responderá aopróprio Lumbrales. Rejeitado pela PVDE, Pereira deveria alegrar-se,mas está seguro de que a mãe coagiu o pai a pedir uma cunha aodiretor da Legião. E de novo o tilintar da colher no boião de iogurte.Margarida lambe o metal côncavo, volta a esgravatar o vidro. Estaspequenas abjeções são os agravos imperdoáveis na intimidadefamiliar, matéria ardente para o ódio dos filhos pelas mães.

«O que é que se diz, Gustavo Maria?» Margarida pousa o boiãono tabuleiro.

Pereira não responde como a criança que sempre foi. O meninoeducado com «por favores» e «obrigados», que só saía da mesaquando o pai autorizava e que estava proibido de entrar na salaquando havia convidados nesse infindável território definido pelamãe como «isto aqui é só para crescidos».

«Se tiver tempo, passo lá», diz Pereira. Dispara escada acima,galgando os degraus de dois em dois, atacando a madeira com assolas grossas para encolerizar a mãe e não ouvir o suspirocontemporizador do pai.

«Gustavo Maria, não me falte ao respeito», diz Margarida.O filho deixa-a a falar sozinha, tranca a porta do quarto e atira-se

para cima da cama com as botas calçadas.Pai, mãe e filho. Um juiz, a diretora da revista da Mocidade

Portuguesa Feminina, um legionário com posto garantido nasBrigadas da Decência. A família orgulho do regime. E, ainda assim,tão diferente daquela que aparece, a cores, numa página da revistanas mãos de Pereira. Trata-se de um cenário domésticopopularizado pela propaganda. Na ilustração, o pai regressa a casado trabalho na lavoura, tem uma enxada ao ombro e o chapéu namão. A mesa está posta, há um crucifixo em cima do móvel. A filhapequena abre os braços ao pai, o filho levanta-se, respeitosamente,para o receber. A mãe, de avental, segura um tacho junto do fogo dalareira. No canto superior esquerdo: A lição de Salazar.

Pereira vira a página. A Esfera é uma publicação recente, aprimeira edição trazia Salazar na capa, sentado no seu gabinete, afalar ao telefone. Hitler e Mussolini surgiam como as estrelas dacontracapa. Alguns dos colunistas são legionários de alta patente.Homens de ação e pensamento. Pereira lê algumas linhas do artigoque questiona: «Vão vencer as democracias? Vão vencer osinstrumentos do bolchevismo sanguinário, do comunismo ateu, daanarquia bárbara? Glória eterna ao povo alemão, que foi o únicoque soube bater-se, de armas aperradas, pelos princípios quefizeram da Europa o lar admirável da civilização ocidental.»

Há uma reportagem ficcionada sobre a invasão de França, em

que os soldados alemães são «dotados de um extraordinárioespírito de sacrifício, honra e pundonor, próprio dos guerreiros como melhor armamento.» Em vários artigos, os judeus e os comunistasdão azo a insultos originais: estalínicos ortodoxos, cérebros decabaças, hidras democratas, percevejos heréticos. Expõe-se a«plutocracia dos judeus, o mais racista dos povos, os associais, oseternos estrangeiros que, por onde passam, despertam o ódio,desagregadores do cristianismo e da Humanidade».

Pereira usa a colcha da cama para tapar a fresta na base da portae abre a janela. Acende um cigarro, soprando o fumo para fora doquarto, não vá a mãe cheirar a infração. Avança pela revistapousada no peitoril, à procura da secção de desporto. Passa pelaspáginas de economia doméstica e de moda de senhora, pelo artigosobre jazz, que lamenta a desdita dos colonizadores bem-intencionados: «Se aquilo é música, se aquilo é arte, então a missãocivilizadora dos portugueses em África de nada valeu.» Seguindo alinha editorial da subtileza fascista, os quadrados negros naspalavras cruzadas da revista Esfera formam uma suástica.Margarida preencheu apenas uma palavra, a lápis: «Brasil.» Novevertical. País da América do Sul. Mais adiante, numa página inteira,surge a fotografia das raparigas da Fundação Nacional para aAlegria no Trabalho. Ninfas portuguesas a fazer a saudaçãoromana, com vestidos brancos que o vento cinge e levanta,revelando os joelhos e os contornos das coxas. Pereira toca o pénispor cima das calças e sente-se crescer dentro das cuecas. Apaga ocigarro à pressa, tonto e lúbrico de nicotina.

Volta para a cama com a revista, desaperta o cinto, baixa ascalças da farda, deixa cair um fio de cuspo na ereção. Escolhe umadas miúdas em primeiro plano, foca-se na fímbria do sovaco, napele branquíssima que espreita pela manga do braço erguido aCésar.

Não precisa de muito tempo. Gustavo Maria Pereira é ummasturbador apressado, de movimentos frenéticos. Retorce o rostovermelhusco e abre os dedos dos pés, uma veia engorda nopescoço, a franja cai-lhe para os olhos. Ao ejacular sobre afotografia das imaculadas filhas da nação, sente-se tão indestrutível

como os soldados alemães que aparecem na revista. A glóriaorgásmica é sempre breve. Ao grunhido animalesco de prazersegue-se, primeiro, o vexame de ter as calças em baixo e o pénis amurchar-lhe nos dedos pegajosos; logo depois é tomado pelapreocupação: tem de ver-se livre da revista antes que a mãedescubra as páginas coladas pela depravação seminal do filhoúnico.

Sábado, 10 de agostoPodiam ir a pé, mas o elétrico é o carrossel dos pobres. Os filhos

de Rebeca empoleiram-se na janela, dizem adeus às pessoas narua, são manequins miniatura da raça ariana. Cabelos quasebrancos, olhos que os lusitanos — deslumbrados com o que é loiroe claro — julgam ser azuis como o sangue dos entes superiores doNorte da Europa. Em casa, com a mãe, Mathilda e Chris falamalemão, embora dominem o português como qualquer miúdolisboeta. Riem-se ao dizer «chulé», «pum» e «papo-seco.» Desdeque outra bomba rebentou na Igreja de São Domingos, Mathildavoltou a fazer xixi na cama. Chris é demasiado pequeno paraperceber a intranquilidade dos adultos, ainda menos o simbolismodo atentado no lugar onde, há mais de quatrocentos anos, se inicioua Matança da Páscoa.

Rebeca tinha escolhido ser judia em Portugal após saber o queacontecera aos pais na Alemanha. Passou a ajudar na CozinhaEconómica da Comunidade Israelita e colaborou com a Comissãode Assistência aos Refugiados. Não se tratou de uma conversãoreligiosa, até porque os seus motivos não eram espirituais. Rebecaalistou-se à causa da resistência, quis fazer parte de umacomunidade. Mas, agora, os judeus, acusados do homicídio deSalazar e de oito cristãos na Igreja de São Domingos, começaram aser levados para zonas de residência fixa. No dia após a explosão,Rebeca decretou que, na escola, a filha não deveria dizer a ninguémque a mãe era judia. Não lhe passou despercebida a perversão:com o selo da casta perfeita, os filhos servem-lhe de escolta ariananas ruas de Lisboa, são motivo de elogio de todas as mulheres quelhes beijam as bochechas e celebram a sua beleza, embevecidascom os vestidos ao xadrez e os laços no cabelo de Mathilda. Tãoperfeitinhos, tão educados, puros e alvos como querubins.

Luís Paixão Leal ajuda Chris a descer os degraus do elétrico napraça do Camões. Há bandeiras com a cruz de Cristo nas janelas evarandas, a cidade engalanada para a grande procissão que tem ofim de demonstrar o apoio do povo ao Governo e agradecer a NossaSenhora a proteção que garante ao país há séculos. Descem a RuaGarrett, são apenas mais uma família, entre tantas no Chiado, que

aproveita o ócio matinal num sábado de verão. Os miúdos pedemum chocolate quando passam pela Casa Pereira. Osacontecimentos recentes obrigaram a uma redução dos gastos eoriginaram as primeiras filas nas lojas, mas Luís ignora a carestiaprovocada pelo bloqueio inglês, que se estendeu das colónias aPortugal continental, e vai comprar chocolates para as crianças.

Sem um olho de vidro suplente, continua a usar a pala de tecidocosturada por Rebeca. Já tirou os pontos da testa, o rostodesinchou e, terminada a suspensão, voltará ao trabalho nasegunda-feira. Após a visita à sede da PVDE, onde o interrogaramsobre o homicídio de Lurdes, pareceu-lhe que os vigilantes osupunham mais lobo solitário da Polícia dos homicídios do quecúmplice do atentado. No entanto, porque ninguém sai da PVDEsem uma nota de crédito, disseram-lhe que, mais tarde ou maiscedo, haveriam de cobrar-lhe a dívida. Talvez tivesse de denunciarum colega ou prestar-lhes algum serviço sujo.

Nos dias em que permaneceu em casa, impedido de ir trabalhar,Paixão Leal foi o penitente esforçado, o homem de família, dedicadoa consertar a torneira, a olear as dobradiças das portas e a pintar osmuros do quintal. Rebeca não lhe perguntou o que acontecera nanoite em que chegara a casa bêbedo e ensanguentado, mas adistância que antes os separava após o sexo alastrou-se para forado quarto. Ela propõe-se ser a companheira que não julga. Esforça-se por mostrar o entendimento que esperaria receber caso Luísvenha, um dia, a saber a verdade sobre a sua partida de Munique.Mas não basta querer ser justa. Há uma resposta nervosa do seucorpo, que ela tem dificuldade em restringir, um evitamento dotoque, as refeições mais rápidas e menos palavrosas, suspirosabafados atrás da porta da casa de banho, uma impaciência que,apesar de acicatada pela convivência conjugal, tem causas que vãomais além da presença e das contravenções de Paixão Leal.

Já o detetive, que gosta tanto de ter uma família (que quer muitoter uma família), deixa-se ludibriar pela ilusão de uma vida denormalidade e proteção, na qual compra chocolates aos enteadosem passeios pelo Chiado. Tão perspicaz nas horas de expediente,perde aptidões assim que passa a porta de casa. Julga ter cumprido

nestes dias a pena doméstica por bebedeira e desacato. E, comoem breve poderá usar novamente o distintivo de polícia, está certode que porá fim ao desalinho do mundo fora de portas.

O que Paixão Leal não percebe, e Rebeca não diz, é que umpolícia zarolho, o padrasto que não é pai, o gentio português no paísde origem jamais será capaz de sentir como seu o medo dosperseguidos que, por toda a Europa, multiplicam suicídios, traições,órfãos e calças ensopadas de urina segundos antes de as balasempurrarem uma fila de nucas para a vala comum. Rebeca senteagora, pela cidade de Lisboa, o mesmo sufoco que sentem asmulheres aprisionadas num casamento arranjado e semescapatória. O futuro não está nas suas mãos. É uma judiaestrangeira, com dois filhos pequenos, num país onde as mulheresnão podem votar e o antissemitismo passou de desconfiançacircunstancial a doutrina da propaganda do Estado. Depende de umhomem para o sustento da casa, da coabitação com um polícia paraevitar perguntas das autoridades. Tal como nos primeiros temposapós a fuga de Munique, voltou a sofrer terrores noturnos nos quaisé denunciada pelos berros dos vizinhos e arrastada pelos cabelos,sem roupa, para o meio de uma multidão justiceira que lhe chamaputa, judia, traidora. As noites interrompidas pelo medo agravam aparanoia de quem se esconde há tanto tempo sem que ninguémperceba. Até agora, tinha encontrado em Portugal as benesses doanonimato num lugar periférico onde conseguia dormir sem sonharque a apartavam dos filhos.

Como muitos outros estrangeiros em fuga, também ela, nachegada, encheu o peito mirrado com o fôlego da beleza da capital,da abundância e do acolhimento gentil, se não mesmo subserviente,dos autóctones que tentavam falar estrangeiro com as mãos. Omerceeiro dizia-lhe: «Paga quando puder, menina», apesar de oazulejo pendurado sobre o balcão avisar: Queres fiado? toma!

Essa sensação de alívio estendeu-se àqueles que desembocaramna capital já durante a guerra e atravessaram de comboio aEspanha das aldeias famélicas ou desertas, vendo o desfile decostelas expostas e de rostos escaveirados dos miúdos nus, à beirados carris, esperando uma esmola comestível. Para as mulheres

que partiram dos portos franceses sem saber dos maridos, quedormiram ao relento na beira de uma estrada de Castilha-a-Manchae que trocaram um felácio por um visto, bastava um prato de comidana Cozinha Económica da Comunidade Israelita, uma muda deroupa lavada e um sabonete para que Portugal se convertesse nooásis do leite e do mel. Até mesmo para aqueles que tinham viajadoem primeira classe e que voavam para a América a bordo dohidroavião Clipper, passando pelo casino sem precisar de vender asjoias — até para esses Lisboa era uma ilha farta de peixe, bolos efrutas coloridas, habitada por uma tribo descendente de mouros,judeus, bárbaros e romanos, europeus apenas na geografia,tropicais e dóceis como índios que acolhem o desembarque dosprimeiros brancos.

Antes da morte de Salazar, quando, nas outras capitais docontinente, todas as noites se apagavam as luzes para enganar asbombas, em Lisboa os candeeiros públicos e os reclames luminososeram uma miragem de futuro, a possibilidade de uma civilizaçãodesconhecida, resguardada da guerra, e que antes não constavanas cartas de navegar. Uma Atlântida que emergia da escuridão. Osclubes noturnos lotavam, vestiam-se trajes de gala no CasinoEstoril, e as estrelas de Hollywood eram fotografadas nas estreiasde cinema na Avenida da Liberdade. Nos hotéis de cinco estrelas,judeus e não judeus, despojados nas suas terras de todos osserviçais e salamaleques, voltavam a ter em Lisboa quem lhesabrisse uma porta e engraxasse os sapatos. Se nos jornaisportugueses o refugiado anónimo era uma ameaça de corrupção dopovo, já os ilustres aristocratas e os milionários estrangeiros quetinham atracado em Alcântara eram capa de revista.

Ao contrário da maioria dos refugiados, Rebeca não está depassagem, fala a língua e, há quatro anos na capital, é umespécime raro, um agente de contacto entre universos que apenascomunicavam durante a prestação de um serviço, quando umfuncionário do Consulado passava um visto, ou uma mãe alemãvendia bolas-de-berlim aos cafés lisboetas, ou uma judia dizia sercatólica para conseguir vender um casaco de peles.

Rebeca conhece estrangeiros e portugueses, judeus e cristãos,

atores e polícias. Até conseguir emprego como figurinista no teatro,deu aulas de Alemão, fez pão preto que vendia aos compatriotas efoi ajudante de modista. Integra a marcha burguesa dos passeiospelo Chiado, cruzando-se com senhoras enluvadas, de ombros ecabeça coberta. Mas não consegue livrar-se do medo nem darepulsa. Vê os machos de casaco puído e dentes cariados nasportas das tascas farta-brutos, que perseguem as estrangeiras narua, cercando-as com assobios e o som molhado, a borbulhar desexo, dos beijos para o ar. Vê as criadas de farda, com ordem desoltura para aviar uma lista de compras que não sabem ler, bichosdo campo amestrados pelas patroas, tão gratas por terem ondedormir e comer, que levantam as saias, inclinadas sobre umacómoda, quando o patrão as agarra pelas ancas. Vê as criançassem calças, sem sapatos, sem pai, sem mãe, sem um lenço para oranho do nariz. As crianças a engraxar sapatos, a trabalhar nasobras, a carregar as malas dos passageiros no porto de Lisboa. Tifo,tuberculose, sífilis, cirrose, ignorância epidémica, com sintomas depassividade e servilismo, pasmaceira e miséria. O que antes erapitoresco parece-lhe, agora, abjeto. Esgotada a exuberância dosprimeiros tempos, a fantasia da viajante foi esmagada pela realidadeda moradora. Rebeca quer regressar a casa, mas não há casaaonde voltar.

Na entrada dos Armazéns do Chiado, um cavalheiro de chapéuproíbe a aproximação de um mendigo com uma cuspidela para acalçada e diz «Tenha paciência». Rebeca, que já se cansou doselogios dos estrangeiros à magnífica luz de Lisboa, nunca ouviuninguém falar dos roncos da cidade. Uma cacofonia de escarros,ganidos, buzinas de automóveis, atropelamentos, gaivotasesganiçadas que cagam as praças, pregões de gente descalça e tãodesprovida de vocabulário como de meios para comer uma refeiçãoquente por dia. Os homens açambarcam as ruas, esperam nasesquinas, acotovelam-se nas praças. Quando Rebeca tentou beberum chá na Pastelaria Suíça, disseram-lhe que não serviamsenhoras desacompanhadas. As poucas mulheres que seapresentam em público carregam sempre alguma coisa —canastras de peixe e bilhas de água na cabeça, as compras da

patroa, os filhos no colo, os chapéus finos das bem casadas, asordens do pai ou do marido. Até a flauta do amolador parece aRebeca um hino à resignação da tristezazinha portuguesa. Detestadiminutivos e o som dos lábios dos carroceiros a incitar as mulas,esse trapejar de cuspo que os homens também usam para chamá-lana rua. Despreza a minoria de ricos que desdenha a pedinchice damultidão de pobres. Não suporta os atrasos, os almoços de trêshoras e quatro garrafas de tinto, o vossa excelência, o nepotismomagnânimo, que não beneficia apenas o filho do arquiteto comoainda arranja um biscate ao sobrinho do caseiro.

A família desce pelas escadinhas da Rua de Santa Justa, dirige-se ao mercado da Praça da Figueira. Rebeca sabe que Paixão Lealescolheu a rota que foge ao Rossio, evitando os peregrinos que,desde o mais recente ataque dos terroristas judeus, acodem à Igrejade São Domingos. O engenho explosivo deflagrou durante a missa,matando oito pessoas e ferindo dezenas. Movidos pela morbidez eciosos de um milagre, os curiosos querem saber onde tombaram osmortos e ver a cratera da bomba, na qual acreditam ver a silhuetade Nossa Senhora esboçada a negro pelas chamas na fachada.

Mas até o cuidado de Paixão Leal contribui para o cerco que acidade impõe a Rebeca. Há dias, na porta do teatro, um legionárioobrigou-a a apagar o cigarro acendido durante um intervalo dotrabalho. Chegada a casa, contou o episódio humilhante e o detetiveprontificou-se para retaliar, mas não mostrou nenhum entendimento.«Lembras-te da cara dele? Identificou-se? Se voltar a acontecer,ligas-me para o Torel e eu desço logo para o pôr na ordem.» PaixãoLeal também se ofereceu para a ir buscar ao teatro, sem perceberque, mais do que um guarda-costas, o que ela quer é sair à rua livreda proteção masculina, livre do medo. Nessa noite, Rebeca não lhedisse, como era costume: «Não vais corrigir o mundo à pancada.»

Mathilda e Chris gostam do mercado da Praça da Figueira, oedifício de ferro parece-lhes um castelo futurista. Há uma cúpula emcada vértice. Pilares altos e um teto distante como o céu. Lá dentro,uma pletora de odores: coelhos esfolados em ganchos de aço,molhos de flores e pilhas de fruta, o salitre do bacalhau, o fumo dasfarinheiras, as torradas e o café com leite da Manteigaria Zarco.

Hoje, contudo, há várias bancas vazias. A carne está pela hora damorte, falta peixe porque os barcos ficam nas docas, temem aMarinha britânica. O Governo decretou o racionamento de algunsbens. O custo de vida sobe, o desemprego cresce, não parou aindao êxodo campestre que, na última década, já tinha cuspido milharesna capital e arredores, deflagrando insalubridade e mortes no parto.As vendedoras de avental continuam a tratar Rebeca por «menina».Ninguém lhe disse ainda «Vai para a tua terra» ou «Cá, faz-seassim», tiradas mais populares desde que os judeus mataramportugueses e explodiram monumentos. Já nem as madamesparisienses ou sequer os cavalheiros cristãos da Baviera estãoeximidos dos remoques e da maledicência do povo. Os estrangeirossão tidos como os diletantes dos cafés, vivem de rendimentos,bebem muito, dançam noite afora a música dos pretos,inflacionaram as rendas, não falam a língua, comem manteiga semsal, dormem em hotéis de luxo, frequentam restaurantes comtoalhas de pano e talheres de prata enquanto os portugueseschegam a meio do mês com a despensa à míngua.

Numa revista acabada de estrear no Parque Mayer, para a qualRebeca fez os figurinos, há um número musical em que a varinaenlutada, de lenço na cabeça, ensina a estrangeira em fato debanho a comportar-se na rua. No final, já vestida de negro e mestrano português, a estrangeira canta a Marcha do cá faz-se assim,listando as regras e os hábitos a respeitar pela gente de fora. Desdeque estreou, a revista teve todas as sessões esgotadas.

No mercado da Praça da Figueira, os marçanos de buçoadolescente, nas suas camisas de manga curta, com a ponta dagravata metida dentro das calças, fumam encostados aos pilares,temem perder o emprego e ser chamados para a tropa. Falam debiscates, do que farão caso Portugal entre na guerra. Rebeca eMathilda seguem adiante. Paixão Leal e Chris ficam para trás,olhando uma cabeça de suíno exposta no talho. O miúdo perguntase pode tocar no focinho do bicho. O detetive não se dá conta daheresia e concede, fala-lhe da matança do porco, porque depequenino se enrijece o menino.

Uma dona de casa, de roupão e cabelo oleoso espalmado pelo

travesseiro, arrasta os pés de regresso ao lar, abraçada a um sacode pão. Rebeca indispõe-se com o chape-chape das chinelas contraos calcanhares gretados e amarelos. Há algo que a irrita, mais doque qualquer outra coisa, nos lisboetas remediados. Assim quechegam a casa, de manhã, de tarde ou de noite, vestem o pijamapara não gastar a roupa da rua. Ela sabe que há gente que só temum par de sapatos e duas camisas. A necessidade faz o poupado, eesta é a cidade-aldeia das hortas e das casas de penhores. Mas,numa ditadura com tantos presos políticos, mendigos e analfabetos,vestir um pijama assim que se chega a casa parece-lhe umarendição sem luta, o cúmulo do comodismo. Muito se lamuriam,pouco se sublevam. Para Rebeca, o verdadeiro emblema da naçãoque se diz tão grandiosa e imperial não é Salazar, nem a bazófiados Descobrimentos ou sequer Nossa Senhora de Fátima. Em vezda esfera armilar, a bandeira portuguesa devia ter um pijama.

Na letargia dos marçanos fumadores do mercado, nos cabeloscrespos das vendedoras, nas feições primitivas das crianças-mendigo que grunhem quando se lhes oferece uma maçã, Rebecaencontra a expressão arcaica desta nação submissa. Apesar dasluzes acesas na capital, vive-se na Idade das Trevas.

Rebeca deambula pelo mercado sem comprar nada. Não querouvir as frases feitas das vendedoras, «Como é para a menina,faço-lhe um desconto». Há semanas que evita interações comdesconhecidos. Se vai sair para o trabalho e ouve barulho nasescadas, espera com a orelha encostada à porta, evita cruzar-secom os vizinhos. Quando começaram a chegar os primeirosrefugiados, os portugueses receberam-nos como fariam com umbando de viajantes benignos em busca de abrigo numa noite detemporal. Mas agora, que aparecem nos jornais e na propagandacomo terroristas, prostitutas, agiotas e bandidos a mando dossoviéticos, os judeus que se alimentam do lixo dos restaurantes eque dormem por turnos em quartos de pensões provocam maisdesconfiança do que compaixão.

O embaixador português no Vaticano escreveu uma carta abertaao Papa, pedindo-lhe que, mais uma vez, ajudasse os cristãos alivrarem-se da usura hebraica. Depois de séculos de dormência, o

obscurantismo antissemita difunde-se em boatos e missas, na bocade curandeiros e nos panfletos anónimos que recuperam os libelosde sangue medievais. Voltou a dizer-se que, para atenuar as doresde parto, os judeus untam as grávidas com sangue de criançascristãs, o mesmo sangue que sugam de bebés batizados e queesfregam no sexo para procriar profusamente. Diz-se que todos osjudeus, homens e mulheres, menstruam e nascem cegos, depunhos cerrados. Só o sangue de uma criança cristã lhes remedeiaos olhos e desamarra os dedos. Rebeca julgava ter escapado dorancor daqueles que a obrigaram a fugir de Munique. Mas eleprospera de novo, indiferente ao lugar, como uma moda que semultiplica levianamente e que serve para explicar as desfeitas decada um com a culpa de terceiros. Rebeca viu como cresceram assementeiras do ódio na Alemanha, sabe que o ressentimentoapenas gera mais ressentimento. Com desgosto, antecipa omomento em que a malquerença — pelos alemães, pelosportugueses, pelos judeus colaboracionistas — seja tambémpredominante no seu peito. Chegará o dia em que odiará o outro.Por agora, Rebeca detesta sentir que, nesse mesmo dia, será iguala eles, que um caroço do rancor maligno já começou a gestar dentrode si.

Distraída com o monólogo mental das suas tribulações, não se dáconta de que a filha desapareceu nos corredores do mercado atéque ouve «Mãe», uma sílaba apenas, que Rebeca percebeensopada em choro. Mathilda está de mão dada com uma meninada sua idade, igualmente loira. Atrás delas vem um casal.

«Senhora Kraus», diz a mulher, em alemão, apontando paraMathilda. «Olhe o que encontrámos.» Sorri para desdramatizar aperturbação da mãe que perdeu a filha. Rebeca percebe tambémuma repreensão. Pega em Mathilda ao colo, limpa-lhe as lágrimas,os soluços do peito da filha procuram o seu.

«Obrigada», diz Rebeca, em português.«Não me está a reconhecer?», pergunta a mulher, na língua

nativa de ambas. «A Mathilda andou com a Ingrid na escola.»O medo de Rebeca conspira paranoias e perseguições. Ela tirou a

filha do Colégio Alemão quando se tornou obrigatório cantar o hino

nazi, antes da expulsão dos alunos judeus. Mas é possível que atenham visto a entrar na Cozinha Económica da ComunidadeIsraelita, Lisboa está cheia de espiões, há alemães que denunciamcompatriotas só porque bebem vinho do Porto produzido porbritânicos.

«Claro que me lembro», diz Rebeca, em alemão.«Ah, estava a ver que se tinha esquecido da nossa língua.» Outra

advertência, julga Rebeca, que também suspeita da armadilhalançada em seguida. «Hoje é o aniversário da Ingrid, vamos daruma festa lá em casa e gostávamos muito que a Mathilda fosse.»

A filha pesa nos braços de Rebeca e a mãe sente que a deixarácair. Mas não a largará à mercê daquela mulher, porque, se hácristãos que espalham rumores sobre os judeus, também há judeusque garantem que os cristãos começaram a retirar os filhos dasfamílias hebraicas e que, depois de as batizar, as entregam a casaiscatólicos.

«Hoje não.»«Não tem problema, depois o meu marido leva a Mathilda a casa.

Temos automóvel. Onde é que mora?»Mathilda espevita, afasta a cara do peito da mãe.«Posso andar de automóvel?»«Hoje não», diz Rebeca.A filha liberta-se dos braços da mãe. Em protesto, finca os pés no

chão, exibe o beicinho manipulador aos pais de Ingrid, rogando queintercedam por si.

«Por favor, senhora Kraus», adianta-se a pequena Ingrid, eestende a mão para Mathilda, que a aceita, um gesto de carinhoentre crianças que, no coração ressentido de Rebeca, é umsacrilégio e uma traição, como se a filha acabasse de escolher outrafamília, que tem um automóvel, pais casados pela Igreja e livres doslibelos de sangue.

«Hoje não», diz, pela terceira vez, tirânica no seu poder maternal.Para Rebeca, que não tem dinheiro, exércitos ou nacionalidade,

repetir «Hoje não» é o derradeiro ato de resistência, o grito noparedão do fuzilamento, frívolo e risível na face dos carrascos. Mastalvez tão digno como a recusa da velha Chava Sommer em comer

carne de porco quando, esfomeada, atravessou Espanha numacoluna de refugiados. Rebeca conheceu Chava no refeitório daCozinha da Comunidade Israelita e quis saber por que razão, a fimde respeitar um preceito religioso, a judia de oitenta anos arriscaramorrer à fome. «Não tem nada a ver com Deus», disse Chava.«Mas, quando querem destruir quem somos, continuar a ser quemsomos é a única maneira de não nos destruírem por inteiro. De queme valia estar viva, se me achasse morta?»

«Hoje não», diz Rebeca, pegando em Mathilda pelo braço. A filhasocorre-se do artifício da birra, tem de ser arrastada, solas à procurado atrito, uivos ondulantes como as sirenes dos exercícios depreparação para os bombardeamentos aéreos. O laço cai-lhe docabelo e Mathilda esperneia, implora, mas não convence a mãe aresgatá-lo do chão. Rebeca puxa do braço atrás e desfere umabofetada atómica na filha, mais eficaz do que qualquer preleçãosobre as encruzilhadas morais em tempos de vida ou morte. Amiúda cala-se. A mãe nunca lhe batera na cara.

«Eu só queria ir brincar», diz Mathilda.Rebeca podia explicar-lhe que, ao contrário da velha Chava

Sommer, a quem restam poucos anos de vida, ela é mãe de duascrianças e que pouco lhe importa o conflito entre a ética daconvicção e o princípio da obediência. Que se dane o derradeiro atodos resistentes. A Rebeca só interessa a vida dos filhos. Por eles,comia — e obrigava-os a comer — toda a carne de porco daPenínsula Ibérica. Cada vez mais cercada pelo fanatismo, sabe quesó o seu, o fanatismo da sobrevivência, lhe servirá para encontrar asaída do mercado, de Lisboa e da Europa.

Domingo, 11 de agostoQuem o veja a sair de casa naquela manhã, na cidade dos sinos

e das procissões, dirá que Cardoso vai à missa e depois aocemitério. Fato escuro e barba escanhoada de fresco, a papadafervilhante de after-shave. Na redoma da careca, o único chapéuque não recende suor. O alinho da aparência dominical assinala oesforço para parecer digno quando puser fim a uma relação quenunca deveria ter começado. A lista dos afazeres do dia tambéminclui perguntar a uma puta o que sabe acerca de outra puta.

No bolso interior do casaco leva o envelope com as fotografias docadáver da Santa do Cabo, agora identificada como Maria daConceição Fernandes, que não tinha ainda dezoito anos quando seescapou dos arredores de Viseu para a capital. Escrevia à irmã maisvelha todos os meses. Mas chegou julho, agosto, e nada na volta docorreio. Na última carta, enviada na véspera do dia de SantoAntónio, anunciava que o noivo a levaria num passeio à praia, a suldo Tejo.

Clotilde, a irmã mais velha, mulher casada e com filhos, nunca sefiou nos romances mitómanos, de cordel dourado, que Maria daConceição publicava em fascículos nas suas epístolas. Muito menosquando chegou de Viseu para procurar a irmã mais nova e deu comela morta nas fotografias da Polícia. Onde estavam afinal os bailesem palacetes, os passeios a cavalo, um pretendente doutor? Desdepequena que Maria da Conceição tinha a mania das grandezas.Imaginava-se com joias de senhora nos dedos de lavadeira que nãoconheciam sequer o pechisbeque. Todo o dia no tanque a enxaguar,a esfregar e a torcer. Dar o corpo ao manifesto, durante uma vidainteira, para não sair da cepa torta? Não. Ela tinha outros intentos, eo corpo era o seu único poder, não o sacrificaria para que outrosvestissem calças lavadas. Se um homem a fitava na rua como se nacama, Maria da Conceição não baixava a cabeça. Tinha a juventudeintacta que dá uma nova vida aos cavalheiros de meia-idade. Queriaum homem que a ajudasse, segura de que, em algum momento,Deus Nosso Senhor se daria conta do engano na distribuição dosdestinos. O dela não seria esfregar as cuecas dos maridos dasoutras.

Certa manhã depois da missa, com dezassete anos e acabada dechegar da cama de um viúvo, Maria da Conceição enfiou-se entreas mulheres que esbofeteavam a roupa no tanque público. Nãopegara ainda no sabão e já as lavadeiras das galés lhe faziam umdiagnóstico da alma.

«Tão novinha e tão puta.»«Antes puta que escrava», respondera ela.Clotilde confirmou essa escolha da irmã depois de a procurar no

endereço lisboeta que constava nos envelopes mais recentes.Pensão Genoveva, ao Cais do Sodré. Clotilde nunca acreditara nofaz-de-conta das cartas. Aquela caligrafia de terceira classe mal-amanhada, borrão de gatafunhos e caos ortográfico, não fazia suporum matrimónio com um herdeiro real. Mas tão-pouco que a irmãvivesse num pardieiro com raparigas de aluguer que acordavamdepois do meio-dia. Um cheiro a quartos com janelas fechadas elençóis por mudar, a sujidade das almas que nem benzendo-se trêsvezes Clotilde foi capaz de evitar. O dono do estabelecimento disse-lhe que tinha visto Maria da Conceição, pela última vez, a entrarnum carro preto, no dia de Santo António, e que, esgotada asemana sem sinal da rapariga, vagara o quarto para outra hóspede.

A caminho da Pensão Genoveva, Cardoso procura a sombra dospasseios, esquiva-se das ladeiras e refresca-se num chafariz. Acidade está febril, o ar é um caldo com aromas de sovaco emonóxido de carbono. Ao subir as escadas da pensão, o detetivesente uma derrocada no peito, arfa taquicardias e jorra suor. A suatosse é um tubo de escape. Escarra o muco das cigarrilhas no lençode pano. Daria um pulmão obstruído em troca de um elevador.Senta-se num degrau, afinando os ventrículos cansados de subirescadas e de informar os vivos acerca dos mortos.

«Tem a certeza que é ela?», perguntara Cardoso a Clotildequando esta apareceu na sede da PIC para reportar odesaparecimento da irmã após a visita à Pensão Genoveva.

«Está com o cabelo mais curto», disse a mulher, nesse breveperíodo de descrença antes do choque, fixando-se na fotografiatirada por Paixão Leal na ermida do Cabo Espichel, a mesma queCardoso leva no bolso do casaco. «Mas, sim, é a minha irmã», disse

Clotilde, já com a voz alagada. Não era incomum as pessoasmencionarem alguma característica física do morto quando tinhamde identificar um cadáver. Era uma forma de provar que era seu, deconservar uma intimidade para sempre perdida. Clotilde falou para afotografia como se a irmã estivesse ali: «Era para isto que queriasvir para Lisboa?» Todo o amor, toda a impotência e todo odesespero de uma última refrega. A obrigação da irmã mais velha,do anjo-da-guarda designado que não a conseguiu amarrar aotanque com a guita das raparigas honradas. Clotilde voltou a Viseucom a promessa de enviar para o Torel as cartas que a irmã lheescrevera.

Cardoso atira-se outra vez ao lanço das escadas da pensão.Durante mais de uma hora, faz uma ronda de entrevistas com asprostitutas, escutando variações do mesmo depoimento: «Essasirigaita não falava com ninguém», «Tinha a mania que era mais doque nós», «Só queria clientes finórios.» Cardoso fala com o dono dapensão que, desempenhando o seu ofício de pastor das hóspedes,sem julgamentos ou lamechices, também serve de segurançaquando algum visitante perde a linha e é preciso enviá-lo escadasabaixo com as calças nos joelhos. «Nada me espanta, já vi tudosem precisar de sair do Caixodré», diz a Cardoso, entregando-lheuma trouxa com aquilo que Maria da Conceição deixou para trás.«Mas nem toda a gente precisa de ver o que eu vejo.» O detetiveabre a trouxa e vê um molho de roupa de criança. «Percebe porquenão quis entregar isso à irmã da rapariga quando ela cá veio, senhoragente?»

Cardoso encontra ainda uma pagela de Nossa Senhora deFátima, uma revista de modas e uma caixa de costura. Pega numbibe aos quadrados azuis e brancos, com uma gola de renda.Mostra-o ao dono da pensão.

«Era ela que fazia isto?»«Não a imagino a pedir à modista que lhe fizesse vestidos de

menina para uma mulher crescida usar.»«Vestia-se como uma criança para os clientes?»«O que fazem no quarto é lá com elas.»«Não deixou mais nada?»

«O resto levou na mala. Entrou num carro preto. Deviam ser umascinco ou seis da tarde.»

«Viu a matrícula ou o indivíduo ao volante?»«Não.»«Ela disse aonde ia?»«Só faço perguntas quando não me pagam a renda.»Cardoso segue para o quarto de Maria da Conceição, que foi

ocupado por uma refugiada polaca de talha atlética e cabeleira loira.O dono da pensão diz à mulher que espere no corredor e comentacom o detetive a popularidade da «Russa» entre os clienteshabituados a peles e olhos mediterrânicos.

«As outras não a podem ver à frente. Se não fosse eu, já tinhalevado uma carga de porrada.»

«Então fique aí fora, caso a garota precise de um guarda-costas.»Cardoso fecha a porta. Não há um só objeto de Maria da Conceiçãono quarto, mas o detetive quer ficar sozinho para assumir o ponto devista da rapariga, reconstituir as últimas horas naquele cubículo comparedes de tabique e um colchão martelado por seis a oito homensem cada noite. No quarto contíguo, a cabeceira da cama bate naparede fina, gemidos e grunhos, qualquer coisa de luta, decapitulação. E depois de novo o silêncio no outro lado da parede, noquarto de Heloísa, a mulher com quem Cardoso se deita vestido, dequinze em quinze dias, a única profissional a quem ainda não fezperguntas.

Terminado o serviço, o cliente de Heloísa desce as escadas e, nasoleira da porta do prédio, faz um compasso de precaução antes depisar a calçada. Verifica os botões de punho como se rodasse acombinação do cofre onde esconde a vida dupla. Espreita a rua, nãová o diabo tecer um boato sobre o que fazia ali o senhor engenheiroantes do almoço de domingo com a família.

O detetive não o condena ou sequer se inflama. Apenas oobserva pela janela. Apesar das tentativas de Heloísa nos primeirosencontros — com a boca, com as mãos —, nunca houve maneira deresgatar o desejo à viuvez do detetive. Num quarto de pensão, comuma mulher mais nova do que a sua filha, Cardoso procurou agarantia mais primária da existência masculina — uma ereção que

fosse, uma, de vez em quando, para sentir-se vivo —, mas o lutoarruinou a forma como os seus sentidos percebem os estímulos. Jánão existe nada, no mundo dos vivos, que ressuscite nele aquiloque está morto.

Cardoso não é como essas viúvas do Oriente que se lançamnuma pira de fogo com o marido defunto. Todos os dias se levanta evai trabalhar. Se sofre algum achaque de melancolia, amarra-o nascordas da guitarra portuguesa e põe o instrumento a chorar (porquehomem que é homem, já se sabe, nem faz falta que se diga). Atéacredita que um dia os netos irão brincar com o seu cão perneta, nopátio da casa onde a filha cresceu. Quer estar vivo, mas algo nocorpo pifou. Como um rádio escangalhado, tudo lhe chegadistorcido. É verdade que as cigarrilhas lhe desbotam o paladar e oolfato; que os olhos já não conseguem entender as letras maispequenas do jornal; que o coração gorduroso o priva do oxigénio,tornando as cores mais baças e o ar menos puro. Faltam-lhepernas, fôlego e tesão. Estar vivo é pagar um preço, até aí elechegou. Em novo, julgava que seria o paladino da hombridade, opilar da justiça. Saiu para a rua com os republicanos quederrubaram a monarquia. Mas passados os cinquenta anos, cruzadaa fronteira entre dois séculos e três regimes — um regicídio, umaGrande Guerra, um presidente assassinado (e agora outro) —, tema lição aprendida. Quem procura a ordem na existência serácontinuamente cobrado. O caos é como um casino: a casa ganhasempre. Na sua carreira, Cardoso aprendeu que não há expedienteque consiga evitar o pagamento desse preço de se estar vivo. Ocombate é desigual, com mais derrotas do que triunfos. Emparticular para quem segue todas as regras. Por isso, com o tempo,Cardoso começou a permitir aquilo que antes era inaceitável: astareias que arrancavam confissões aos suspeitos, o silêncio quandoum colega fazia vista grossa ao desembarque de cigarros decontrabando, a indiferença quando um chefe o chamava para lhedizer: «Esqueça lá isso e não chateie mais o rapaz, sabe de quemele é filho?»

Pela janela do quarto que pertenceu a Maria da Conceição, aSanta do Cabo, e onde vive e trabalha outra prostituta, ex-

professora primária em Cracóvia, o detetive vê o cliente de Heloísaa afastar-se da pensão. Antes de virar a esquina, o senhorengenheiro fala com o miúdo que vende cerejas em cartuchos depapel. Pede uma dúzia. Mete a primeira na boca, trinca a polpasanguínea e sorri como se acabasse de provar o verão da infância.Depois cospe o caroço para o passeio, livre de penas e de aflições.Também o detetive queria trincar o verão. Mas não se ilude muitotempo com o saudosismo, sabe que na sua infância tudo era aindamais merdoso. Não vai na cantiga do antigamente é que era bom.

Cardoso, o protagonista solitário num filme mudo e a preto ebranco, sai do quarto e bate na porta do 206. Heloísa recebe-o como melindre que a luz do dia confere às infrações da noite.Desgrenhada pelos minutos passados na cama com o engenheiro,diz:

«A estas horas?» Voz roufenha e cigarro pós-coito na mão.Heloísa não está preparada para dar colo ao detetive de noventa eoito quilos.

«Deixa-me entrar», diz Cardoso.Ela fecha o decote do roupão que o detetive lhe ofereceu no

aniversário. Inclina a cabeça para o lado, pestaneja como quem fazbeicinho. Fala baixo, palavras de menina:

«Tinha tantas saudades, bebezinho.»Cardoso desvia-se dos seus braços, passa revista ao quarto com

um girar de cabeça. Vê um pedaço de colchão entre os lençóisdesalinhados, uma caixa de fósforos e um pires cheio de beatassobre o soalho.

«Senta-te», ordena o detetive.«Vou abrir a janela.»«Senta-te, já disse.» Cardoso saca uma cigarrilha, acende-a,

puxa um bafo longo, afasta as exalações do sexo com o fumo elevanta a janela-guilhotina.

Heloísa esmaga o cigarro no pires e tapa o colchão com o lençol.Deita-se na cama, agarra-se ao travesseiro com nódoas.

«O que é que me podes dizer sobre a miúda que desapareceu?»«Hã?»Cardoso não sabia que as putas podiam corar. Mas é a sua

Heloísa, a prostituta virginal que todos os homens danificadosquerem salvar, o lugar-comum da redenção.

«Não sei nada», diz ela, e bate com os dedos no colchão. «Vem,querido.»

O detetive até se deixa enganar sempre que Heloísa lhe pedemais cinco escudos do que o preço convencionado para ajudar amãezinha que está entrevada. Prefere não questionar se osdiminutivos do vocabulário da rapariga serão falsos como osgemidos do repertório que ela oferece aos clientes. Hoje, porém,Cardoso não pagará para ser espectador de teatro de alcova.

Heloísa não desmancha a personagem. Tem franja de BeatrizCosta e dentes tão pequenos que parecem de leite. É magra decarnes e carente de ancas. Um metro e cinquenta. Mamas que sãosó mamilos. O dono da pensão chama-lhe bonequinha. As colegasde ofício batizaram-na de mala de mão. Desde que um cliente lheperguntou a idade e lhe disse, ao saber a resposta, «Estás a gozar.Porra, não te dava mais de quinze», ela transformou a má genéticae a subnutrição dos primeiros anos de vida em mais uma opção nocardápio para a clientela. Nem todos os que preferem a miúdapetite, de pulsos delgados e lacinhos no cabelo, são impotentes einofensivos, como o detetive das banhas. Um comendador gosta deesbofetear-lhe as nádegas e de ver a palma da mão marcada norabo vermelho. Um capitão da Marinha Mercante exige-lhe quechore. Mas Cardoso, sem fetiches de registo, desistiu do sexo apóso constrangimento das primeiras sessões, substituindo apossibilidade de meia dúzia de minutos em posição de missionáriopor uma hora de mãos dadas na cama. É assim que apazigua asolidão e se convence que mais depressa daria o seu casaco aHeloísa, se ela tivesse frio, do que lhe pediria outra vez para tirar aroupa.

O detetive tenta finalizar a farsa que ele próprio montou naquelequarto durante meses, estabelecer a verdadeira relação de poderes:eu sou o polícia, tu és a puta.

«A miúda, a Conceição, o que sabes sobre ela?»Heloísa pega no resto de um cigarro apagado, entre as beatas no

pires, e recusa a chama do isqueiro de Cardoso, preferindo passar

três fósforos de seguida na lixa da caixa. Estabilizados os nervoscom a nicotina, assume a prudência que aprendeu enquantoveterana em rusgas policiais e enteada de um carteirista a cumprirpena.

«Não conheço ninguém com esse nome.»Cardoso tira a fotografia do bolso interior do casaco. Apesar das

pálpebras fechadas, o rosto lívido de Conceição fita Heloísa com aquietude acusatória dos cadáveres.

«Está morta?»«E enterrada. Numa campa sem nome e sem lápide.»Heloísa, absorta entre duas passas de cigarro, mastiga a tristeza,

o medo e a pena.«O que é que lhe aconteceu?»«Isso é o que vamos descobrir.»«Aqui, a Conceição chama-se Cláudia. Quer dizer, chamava-se.»

Sorri, desconfortável, como se acabasse de contar uma anedota demau gosto no velório da defunta. «Não chegámos a ser as melhoresamigas.»

«Mas foram vizinhas de quarto umas semanas, nunca falaram?»«Boa tarde, boa noite, se não chover está um lindo dia, arranjas-

me troco de dez escudos, esse tipo de coisas.»«Partilhavam clientes?»«Neste buraco não se partilha nada. Tudo se paga. Queres uma

toalha lavada? Abre o porta-moedas. Precisas que te emprestemum batom? Então passa para cá o teu rouge. Somos colegas, nãosomos sócias. Uma mão lava a outra, sim, mas o que é meu é meu,e o que é teu é teu. Porque esta gente não é de se fiar. Dás umdedo e ficam-te com o braço. Já dizia o outro: criados e bois, umano ou dois. Neste trabalho não é diferente, pouca confiança, que orespeitinho é muito bonito e quem não vê é como quem não sabe.»Heloísa, a petiz dos diminutivos e dos monossílabos que pairavamno ar como bolas de sabão, é afinal uma perita na arte da lábia parasalvar o coiro. «Cada uma sabe de si e Deus sabe de todas. Porquehoje és bestial e amanhã passas a besta.»

Cardoso abre a trouxa de Conceição, começa a atirar a roupa decriança para cima da cama:

«O que te perguntei foi: partilhavam clientes?»Heloísa pega no bibe de quadrados azuis.«O tipo de clientes que gosta de meninas pequenas?»«De qualquer tipo.»«Também te deitaste com ela? Estás preocupado que desconfiem

de ti?» Não é chantagem, apenas curiosidade. Talvez um pouco deciúmes, espírito de concorrência com a colega. Cardoso sempre lhejurara fidelidade, não era homem de pagar para foder, dizia-lhe. Emvinte e tal anos de casamento, até podia ter prevaricado um par devezes, mas ia sempre dormir a casa e nunca levantou a mão àmulher.

«O que queres dizer com isso, que desconfiem de mim?»Cardoso dá um passo em frente e, porque não é a primeira vez quetem de prestar contas a um homem, Heloísa encolhe-se:

«Desculpa, não queria dizer nada de especial, já cá não estáquem falou, cega, surda e muda.»

«Achas que sou como eles, é isso?»«Não, claro que não.» Essa garantia não impede que Cardoso

perceba o descabimento das justificações que se dava sempre queia visitar Heloísa: estás apenas a ajudar a miúda, nem sequer adespes, um dia destes ofereces-lhe guarida em tua casa, vais tirá-lada má vida.

«Alguma vez ela te falou de um noivo? Um cliente especial?»«Que eu me lembre, não. Mas também ela mentia com os poucos

dentes que tinha na boca. E não lhe cabia um feijão no cu. Quandose punha a falar de duques em palácios, eu só ouvia trolhas noquarto onde mijas num penico.» Heloísa olha para a trouxa abertano chão, apanha a pagela de Nossa Senhora. «E achava que falavacom os espíritos, que sabia coisas do Além. Tinha um santinho paratudo. Estava sempre a pedir favores aos Céus, a fazer promessas.Mas nunca punha os cotos na missa. Falava com o Espírito Santocomo se fosse um senhor que lhe podia montar casa. Quero unssapatos, compra-me roupa, leva-me ao dancing.» Heloísa sorri lutoe consternação, depreciativa das ilusões de todas as putas. Nem elanem Maria da Conceição serão alguma vez as esposas fidelíssimas

e casadas pela Igreja, com direito a retrato dos noivos e umapromoção ao cargo de donas de casa com filhos para cuidar.

Cardoso dá um piparote na cigarrilha, lançando-a pela janela.Puxa do lenço e livra-se do catarro com uma só cuspidela.

«Alguma vez te falou de algum cliente mais violento? Alguém quetenha tentado fazer-lhe mal?»

«Que eu me lembre, não. Mas gente bruta é o que não falta porestas bandas. Ainda o mês passado, uma das garotas pisgou-sedaqui com fogo no rabo porque um maluco qualquer queria que elacomesse hóstias.»

Cardoso tira um bloco e uma caneta do bolso das calças.«Escreve aí o nome da rapariga, que eu não trouxe os óculos.»«Não sei escrever», diz Heloísa, com o mesmo tom clínico com

que pede aos clientes para se lavarem antes da transação de cama.Esta é apenas uma das muitas coisas que o detetive não sabesobre Heloísa, puta sem matrícula ou chulo, Elisete Santos nobilhete de identidade, filha de um pai incógnito, de uma mãeentrevada, e sujeito da visita dominical de um detetive de homicídiosque não voltará a vê-la.

Quarta-feira, 14 de agostoEnquanto espera que o elevador do Lavra arranque encosta

acima, Paixão Leal sacode as folhas que ainda cheiram a tinta eanalisa, na primeira página do Diário de Lisboa, a fotografia do novolíder do Governo. Francisco Rolão Preto está sentado num banco dojardim do palacete de São Bento. Não se apresenta com a fardanacional-sindicalista com que dava comícios de rua. Deixou deparecer a caricatura marcial numa revista satírica. Em vez dascalças puxadas até aos mamilos e da gravata curta, veste um fatoclaro, de fino corte, que os mal-intencionados diriam ter sido furtadoao guarda-roupa que Salazar deixou na residência oficial. Mas onovo caudilho não tem a graciosidade do professor, dá-se melhorem desfiles paramilitares do que a posar para a fotografia. O casacoestá-lhe apertado no peito de nadador olímpico. O cabelo frisado,quase africano, não sucumbiu a três demãos de brilhantina queparece graxa. Sentada no joelho esquerdo do líder está uma meninade quatro ou cinco anos, de chapéu e luvas brancas. Ela escuta eaprende com o novo tutor, que lhe sorri, apontando para a página deuma Bíblia aberta sobre o joelho direito. Como pano de fundo destequadro familiar: árvores, flores e o céu numa manhã de verão.

O texto de primeira página do jornal confirma a intenção dafotografia: «Eis o retrato íntimo de Rolão Preto, que é também umdocumento psicológico. O chefe do Governo, numa hora de paz ede sol, segura nos braços Maria Antónia, a afilhada do ProfessorDoutor António de Oliveira Salazar, num momento de carinho. Apequenita, com os seus olhos expressivos, a sua boquinha de linhasenérgicas, a sua fronte alta e inteligente, como que encarna oPortugal de amanhã que o seu padrinho ajudou a modelar e queFrancisco Rolão Preto levará adiante. É um retrato sem retoques,flagrante, humano. Dir-se-ia que o fotógrafo foi, nesse momento, umpintor de almas, tocando o mais profundo da sensibilidade domodelo. Transparece o homem, singularmente luminoso, que lê oevangelho de S. Mateus, contando à petiz o milagre da multiplicaçãodos pães e dos peixes, numa expressão de ternura mas também defuturo.»

Há que suavizar o líder que, dez anos antes, gritava: «É preciso

que os mais ricos fiquem mais pobres para que os mais pobresfiquem mais ricos.» Agora, que os ricos estão do seu lado, é precisoamansar os pobres com a flauta encantada. Por mais que se tenteassegurar a transição do regime, entregando a Rolão Preto osencargos do professor — a nação, a afilhada e o crucifixo —, o atualpresidente do Conselho não exibe ainda as qualificações de Salazarpara a dissimulação. O professor era sibilino e de verbo académico,orquestrava o seu poder com rancores de porteira, era um mestredos disfarces: cardeal Richelieu nos corredores palacianos, homemhonestíssimo se discursava na rádio, aquele que sozinho sesacrificava por todos os portugueses. Estratega paciente dos ajustesde contas, mandava prender em voz baixa e encenava vingançasoperáticas que ninguém via.

Já Rolão Preto, apesar do retrato institucional, não parece terdeixado para trás os tempos de líder do Movimento Nacional-Sindicalista em que subia para cima da mesa de um café ediscursava para o seu público de milicianos com camisas azuis, numcrescendo que acabava com todos a levantar o braço e a gritar:«Isto irá, por Deus!»

Antes de comprar o Diário de Lisboa esta manhã, o detetive jáouvira falar daquela fotografia de Rolão Preto. No domingo, tarde dequarenta graus, quando os miúdos tomavam banhos de mangueirano quintal e Rebeca dormia uma sesta, o detetive procurava umaestação de rádio: ópera, teatro, até que, ao ouvir uma vozconhecida, parou de rodar o manípulo. «E se hoje Portugal está nasbocas do mundo, devemo-lo ao bastião anticomunista que é o nossolíder. Tenho comigo um exemplar da revista americana Life, onde ochefe do Governo aparece numa página dupla, cuidando da afilhadado doutor Salazar — que Deus o tenha e guarde —, prometendodefender-nos da peste soviética e da malevolência inglesa.»

Paixão Leal identificou Fialho na onda média, levantou o som e foiapagar o lume onde fervia o café. «Eles não querem que vocêssaibam, eles não querem que vocês se lembrem, eles queremroubar-vos outra vez. Mas eu lembro-me, meus amigos, eu nãoesqueço o ano da desgraça de mil oitocentos e noventa, nãoesqueço a humilhação do Ultimato Inglês, não esqueço que fomos

usurpados das nossas terras africanas.» Fialho falou então do hinonacional, informando a audiência de que os versos «contra oscanhões, marchar, marchar» tinham sido originalmente escritosacerca dos espoliadores do Mapa Cor-de-Rosa. «Contra os bretões,marchar, marchar, entendem? Contra os bretões! Não contra osalemães, não contra os espanhóis, não contra os italianos. Mascontra os bretões.»

Nessa tarde, o detetive percebeu que o estilo radiofónico deFialho era menos barroco do que a sua escrita. No programa,intitulado Toda a verdade, falava para o público, informal como umsindicalista, repetitivo como um estudante de oratória que acabou dedescobrir o poder da enumeração. Inaugurava a coloquialidade narádio, dizia «vocês», tratava os ouvintes por «amigos», punha ostelefonemas do público no ar e cunhou a frase «A vossa voz é aminha voz». Levava a estúdio vários artistas topo de cartaz. Nessedomingo, apresentou a fadista Maria do Carmo, que cantaria aPortuguesa — com bretões em vez de canhões —, acompanhadapelos Templários, o conjunto musical residente do programa:

«Que esta seja a primeira vez, de muitas, que se canta o hino talcomo o escreveram, porque hoje, meus amigos, dia onze de agostode mil novecentos e quarenta, no reino de Portugal e dos Algarves,vos peço para escreverem, educada e gratamente, ao senhorpresidente do Conselho, pedindo-lhe que nas nossas escolas, nosnossos quartéis, em todas as cidades e aldeias, do sol-nascente deTimor ao granito da serra do Gerês, das palhotas da ilha deMoçambique ao Santuário de Fátima, se volte a cantar contra osbretões, marchar, marchar.»

A campanha antibritânica não é uma ideia original de Fialho.Perante o embargo inglês, o novo executivo proibiu as emissões daBBC e a venda de jornais de língua inglesa. Também autorizou queDuarte Pacheco, ex-chefe de Governo interino — afastado pelogeneral Carmona —, aceitasse a oferta de asilo político da Grã-Bretanha. Na verdade, tratou-se de um presente envenenado, aprova que faltava à propaganda nacionalista e anti-inglesa: DuartePacheco ainda não tinha desembarcado em Londres e aspublicações portuguesas já o acusavam de ser um vende-pátrias e

de ter colaborado na, felizmente gorada, Operação Panicle, levada acabo pelo Reino Unido.

Era uma história conhecida, uma proposta que o Governobritânico fizera a Salazar: caso as tropas do Eixo se acercassem dafronteira luso-espanhola, os espiões ingleses em Portugal deveriamdestruir as infraestruturas militares, as pistas de aviação, as pontese as estradas. Ao mesmo tempo, o Governo fugiria para os Açoresem vasos de guerra britânicos. Salazar sempre recusara essahipótese. Nisso, Rolão Preto concordava com o antecessor. Quemse senta no trono de um império transcontinental não será lacaionum arquipélago.

Segundo a PVDE, a Operação Panicle foi desencadeada semautorização do Governo português e sem que houvesse tanques daWehrmacht no horizonte que a justificassem. Ao invés de proteger opaís e os seus altos dignitários, como previsto, a intervenção inglesavisava forçar uma mudança de regime, aproveitando a morte dopresidente do Conselho. Na versão oficial divulgada pelos jornais,os britânicos também haviam colaborado com os partisans judeusque dinamitaram a Exposição do Mundo Português e que mataramcidadãos portugueses na Igreja de São Domingos. Os espiõesinstigaram greves, protestos, motins, e a Marinha inglesa castigou opovo — inocente, trabalhador, temente a Deus, fiel ao tratado deWindsor durante tantos séculos — com um bloqueio naval queesbulhava os mercados e sobrelotava os átrios das igrejas compedidos de esmola. Apesar da ignóbil tentativa de golpe levada acabo pelos britânicos, a Polícia portuguesa conseguiu impedir osagentes internacionais de inutilizar vias e meios de comunicação,procedendo a uma série de prisões.

Em Londres, Winston Churchill negou o avanço da OperaçãoPanicle, ironizando que a alegada intentona seria tão útil ao esforçode guerra inglês como uma pedra de gelo num cálice de Portovintage. A tirada não apareceu nos jornais portugueses. O humordesagrada aos censores, não serve a propaganda, e a ideia de umatraição do Reino Unido é instrumental ao aparecimento de umsalvador.

No discurso de tomada de posse, Rolão Preto confirmou o

realinhamento da política de alianças internacionais, informando queaceitara o auxílio do Governo alemão para abastecer o país.Comboios e camiões militares carregados de combustível e víveres(cortesia do Führer) atravessavam Espanha nesse preciso momento(gentileza do Generalíssimo), replicando assim o milagre damultiplicação dos pães e dos peixes.

O elevador do Lavra dá um último soluço, anunciando a chegada.Os passageiros saem e o detetive deixa-se ficar. Algo naquelafotografia de Rolão Preto, no jornal, o transporta para uma tarde de1925, quando levou o irmão mais novo a ver o Circo da China numteatro da Rua 42, em Manhattan. O espetáculo contava com umhalterofilista de bigodinho, apresentado como Gengis Khan, quedobrava barras de ferro com os punhos e usava a testa paraestilhaçar tijolos. Joaquim Paixão Leal, com quinze anos, achava-sedemasiado adulto para aquele tipo de entretenimento, mas tinhacom Luís um dever de lealdade tão vincado como as semelhançasfísicas. Não fosse a barba cerrada do primogénito e as bochechasimberbes do caçula e poder-se-ia dizer que eram Rómulo e Remo.

O detetive dá-se conta de que Rolão Preto lhe lembra o imperadorda Mongólia na pista de circo em Manhattan. Dobra o jornal, nãochegando a levantar-se, porque, como em tantas outras vezes, amemória sobrepõe-se ao presente. Recua no tempo e tem outra vezvinte anos. Já não está num elétrico em Lisboa, mas a sair da meia-luz do teatro nova-iorquino e a entrar no turbilhão de faróis de carrose reclames de néon. O fumo dos motores, o cheiro a gasolina, ospainéis nos edifícios que piscavam modernidade, conforto e fortuna.Filas e filas de lâmpadas que ora diziam Chevrolet, ora gritavamSquib’s dental cream. Os restaurantes, com painéis iluminados,ofereciam máquinas de refrigerantes e batidos de chocolate. E oincessante matraquear dos automóveis e dos elétricos, travagens,buzinas, uma manada de bisontes mecânicos em fuga depois doprimeiro tiro.

O detetive desce os degraus do elevador do Lavra e seguedespegado do caminho e do compasso dos relógios. Entra peloportão da sede da Polícia de Investigação Criminal e o contínuoatira-lhe um «Bom dia». O detetive não ouve, está em Nova Iorque,

no dia quatro de julho de 1925. Mas ninguém no Torel estranha aexcentricidade do zarolho americano que fala sozinho. A suamemória é tida por uns como bênção divina, outros julgam tratar-sede um pacto com o diabo. Paixão Leal consegue recapitularinventários de provas sem olhar para o papel e recita depoimentosde suspeitos com direito a pausas entre duas bofetadas. Mas o seudomínio desse poder tem limites. Muitas vezes, é a memória quedecide o que ele deve recordar, obrigando-o a reviver o medo, orancor, o abandono, a culpa e a traição de noites e dias passados. Oseu purgatório é mais do que não conseguir esquecer. Paixão Lealrevive uma e outra vez o que já viveu e não quer lembrar.

Hoje, esse processo iniciou-se com a fotografia de um político quelhe pareceu o Gengis Khan circense. Em outras ocasiões, basta-lhealgo menos óbvio — uma lufada de maresia ou um sotaque numfilme americano — para ficar cativo no labirinto da memória. Todosos dias, o detetive volta a ser aquilo que deixou de ser, umamemória dentro de uma memória dentro de uma memória.

Paixão Leal entra na sala da brigada e nota na postura deCardoso, que segura uma cigarrilha na asa direita e desliga otelefone com a esquerda, o mau agoiro de um corvo obeso, dechapéu na cabeça.

«Podes dar meia volta, Americano, mataram mais uma santa.»

Quarta-feira, 14 de agostoPaixão Leal começa a descer o Beco do Quebra Costas, nas

traseiras da Sé, quando um elétrico que sobe para a Graça patinanos carris molhados. O som metálico das rodas parece-lhe umaescala de harpa num navio-fantasma. A água despenha-se do céude Lisboa e liquidifica a cidade. Há pouco menos de cinco minutos,a manhã escureceu num ápice. Por fim, a humidade do verãoofereceu a sua gorda jugular em sacrifício. A vaga de calor declarouque hoje é dia de matança: chove muito, nuvens barrentas, detemporal bíblico, formadas com a areia do Saara que submergecivilizações.

Paixão Leal afasta-se do cadáver no topo da escadaria, deixando-o sob vigilância de um PSP contrariado com as ordens que recebeu:faça chuva ou regresse o sol, tem de velar o corpo. Um detetive dehomicídios deveria estar acostumado com a morte, exercer asfunções desapaixonadamente, como um médico que passa acertidão de óbito, mas, no espaço de dois meses, esta é a segundamulher jovem que aparece amortalhada num lençol branco, aterceira asfixiada. Gotas infiltram-se entre o colarinho da camisa e opescoço de Paixão Leal, o estrondo da trovoada imita as bombasinglesas que, na noite anterior, foram despejadas em Turim e Milão.Se continuar a cair água desta maneira, haverá cheias emAlcântara, o lodo do fundo do Tejo galgará as margens e alagará oCais do Sodré. Hoje parece-lhe que a chuva não é apenas umfenómeno da Natureza, independente dos amuos e das ânsias deum detetive que pressente no temporal o ominoso espírito dostempos. Chove por causa da guerra e das raparigas assassinadas.Troveja porque, com centenas de judeus transferidos para Alfama,por ordem do Ministério do Interior, talvez de nada sirva a Rebecaviver com um polícia.

Paixão Leal tenta não escorregar na cascata de degraus,acanhado entre as paredes da escadaria e a eletricidadeatmosférica, oprimido pela sombra da Sé, edifício sobrevivente deabalos tectónicos e sepulcro de reis, escudo da pátria de antanho,por onde dizem ter passado as relíquias de S. Vicente e o cálice doSanto Graal. Mais um estandarte do regime que, colecionador e

falsário da memorabilia da reconquista cristã, mandou transformaras torres em ameias de castelo pilhado aos mouros.

Ao fundo das escadas está Cardoso, que, quando ali chegaram,depois de medir a olho a estreiteza e a inclinação do Beco doQuebra Costas, disse ao colega: «Já não tenho coração para tantosdegraus. Nem para tantos mortos.» Um canto da boca puxado pelocinismo, o outro pelo cansaço. É assim que sorri a viuvez dosdetetives de homicídios. «Vai tu, que eu trato dos mirones.» Nãoprecisou de espantar ninguém. Com o primeiro trovão, a miudageme as donas de casa esgueiraram-se para dentro de portas, osgarotos a segurar as boinas, as velhas apertando os lenços negrosna cabeça, benzendo-se três vezes, credo cruzes canhoto, JesusMaria José, que Deus zangou-se, mataram-lhe uma santa nastraseiras de casa e temos a roupa a encharcar-se no estendal.

Ao lado de Cardoso, fala o lingrinhas que encontrou o corpo damulher. Encostaram-se a uma fachada carcomida, tentando manter-se enxutos debaixo de uma varanda. «Isto já não é comoantigamente, eu lembro-me de ser catraio e andar sozinho na ruadepois da meia-noite.» É um desses homens acelerados e prolixos,tão aflito de ansiedades, que não tem tempo para engordar ou parasilêncios. Enquanto Paixão Leal escrutinava o cadáver e as suasimediações, «Donato Fogaça, um criado ao seu serviço» explicou aCardoso que o bloqueio naval o deixara sem trabalho no porto.Também não pode ir à pesca com o cunhado, restam-lhe osbiscates: ajudante de carpinteiro de manhã, remendador de telhadosà tarde. Mas agora, que o Governo ofereceu casas novas aosmoradores de Alfama, transferindo-os das vielas para as ruas devivendas pré-fabricadas na outra ponta da cidade, Fogaça ajuda oprimo, que usa uma carroça e duas mulas para fazer mudanças.Nos últimos dias, carregaram várias levas de trastes e famílias paraa Quinta da Calçada, o tal bairro novo que lhe parece distante eforasteiro.

«Há quem goste daquilo, casinhas de três a cinco assoalhadas,tudo em lusalite, terreno para uma horta», discorre Fogaça, a maçã-de-adão subindo e descendo no pescoço trinca-espinhas, um dedodo pé a espreitar pelo buraco das alpargatas. «Mas eu nasci aqui e

aqui quero morrer.» Fogaça tem a solicitude dos serviçais a quemapraz agradar às autoridades e aos licenciados, o senhor doutoristo, o senhor doutor aquilo. Não é todos os dias que se encontraum cadáver e se colabora com a Polícia. Este é o seu contributopara meter as coisas na ordem, partilhando o esforço nacional deproteger os nossos e conter o perigo dos judeus comunistas.

Por decreto governamental, os refugiados judeus compagamentos em atraso em pensões, hotéis e casas alugadas têmde mudar-se para umas quantas ruas de Alfama. Vivem três equatro famílias por apartamento, hábitos grotescos, comidas fétidas,línguas que ninguém percebe.

«O meu primo diz que os judeus pegam nos bebés de cabeçapara baixo e…» Fogaça assobia ao mesmo tempo que passa a mãodiante da braguilha para simular a faca da circuncisão. «Claro que jáhouve estrilho com esta maralha, isto é pior que o pessoal dasbarracas, mas com manias de ricos, doutor. Não estavam melhor lána terra deles?»

Paixão Leal chega ao fundo da escadaria e Cardoso interrompeas considerações antropológicas de Fogaça sobre os descendentesdas tribos de Israel:

«Vá andando, que preciso de falar com o meu sócio.» Fogaçaobedece e os polícias investem contra a tempestade, observadospelos vultos atrás das janelas.

«Ali o magrela nervosinho sabe quem era a judia e onde elamorava», diz Cardoso, informando o colega da próxima paragem.

«Judia?» Paixão Leal tenta encaixar esse dado na lógica dainvestigação: três mulheres estranguladas, todas de cabelo escuro ecurto, todas com algum detalhe religioso. «Tens a certeza?»

«Para ser mais exato, ex-judia. Foi batizada há pouco tempo.»Cardoso põe os óculos e abre o bloco de notas, os pingos da chuvaempapam a tinta e o papel. «Antes Helena Brus, agora HelenaBorges.»

«Cristãos-novos», diz Paixão Leal. «Isso explica o cabelo pintadode preto.»

Desde que a Igreja e o Governo brasileiros aceitaram receber umgrupo de judeus convertidos ao catolicismo, em trânsito da Hungria

e com passagem por Lisboa, centenas de refugiados acudiram aospadres portugueses, mas poucos tiveram acesso à pia batismal. Opároco da Sé, desobedecendo a ordens do Patriarcado, viu otemplo-fortaleza cercado pela PSP e pela PVDE quando, numa sótarde, esbanjou água benta pela cabeça de dezenas de convertidos.No dia seguinte, o cardeal mandou-o pregar para África. Oscristãos-novos da Sé não receberam qualquer oferta do Brasil eainda foram identificados à saída pela Polícia. Muitos tentam passarpor nativos da cristandade, arraçados de português. Os homensdeixam crescer o bigode, as mulheres escolhem roupa preta etingem o cabelo de azeviche, aparecem na missa com as cabeçascobertas por mantilhas.

«Qualquer dia até arrancam dentes para passar maisdespercebidos entre os desdentados», diz Cardoso ao entrar noprédio onde Fogaça respinga as escadas e aponta para a primeiraporta à direita.

O apartamento tem tetos baixos, com buracos por onde espreitamas vigas do andar de cima. A cada passo no soalho mal niveladorangem as ripas. Paixão Leal reconhece ali o mesmo cheiro dostenements do Lower East Side: fuligem de carvão, caldo de couve,casacos bafientos num dia de chuva. Uma mulher muda a fralda aum bebé na bancada da cozinha onde há um estendal com roupa.Na sala, vários homens, vestidos de negro invernoso, jogam xadreze fumam, aconchegados pela neblina do tabaco, caras obscurecidaspelas barbas e pelos chapéus de aba larguíssima.

Paixão Leal entra na sala:«Tsi ir visn Helena?»Sem desviar os olhos do tabuleiro, o matusalém dos jogadores de

xadrez responde com a indiferença e a teimosia dos velhos queacham que já deviam ter morrido e que, por isso, nem precisam deolhar para os lados antes de atravessar a estrada:

«Kibitzer.»Paixão Leal sorri.«O que é que o gajo disse?», pergunta Cardoso.«Kibitzer é um manda-bitaites. Quer dizer que estou aqui a mais,

que ele está a jogar e não me quer ouvir.»

«Talvez o barbas não queira ouvir a tua opinião. Mas eu quero adele.» Cardoso mostra o distintivo da Polícia. «Helena Brus? Diz-tealguma coisa, gimbras?» Toca-lhe nos peiot, os cachos de cabeloque parecem molas penduradas das têmporas. «Se quiseres,conheço um bom barbeiro aqui perto.» Um dos homens de negroprocura proteger o ancião das heresias dos gentios, chega a pôr-sede pé. O rabino afasta-o com três palavras em iídiche e a fadiga dequem anda a ensinar ignorantes há milénios.

«Com o velho, não vais lá assim», diz Paixão Leal, tal como podiater dito que tratar com um rabino de Volhynia, sobrevivente dospogroms ucranianos, não é o mesmo que apertar com um parricidaborra-botas da Madragoa.

Cardoso puxa o chapéu para trás, a calva precisa de fôlego pararecordar o que lhe disse o colega sobre os ortodoxos. Pede umaajuda:

«Estes é que são os ciganos dos judeus?»Os colegas espanhóis, com quem Paixão Leal trabalhou nas

obras em Nova Iorque, chamavam gitanos aos judeus ortodoxos;afinal, também vestiam de preto, arranjavam casamentos, tinhamninhadas de filhos e crenças místicas. Os polícias americanoschamavam-lhes porcos-espinhos, porque, fechados sobre simesmos, os ortodoxos eram inexpugnáveis à influência dos gentiose da modernidade. Detratores do Iluminismo e da Ciência,obedeciam com severidade à repetição dos preceitos maisancestrais. Deus manifestava-se no cumprimento das regras. Aobediência como fé. O ritual como sendeiro da salvação. Proibiamos livros — todo o conhecimento terreno e sobrenatural estava naTorá —, renegavam os jornais, o cinema e as escolas públicas. Nasyeshivas de Brooklyn, os miúdos de cabelo rapado e peiot rezavamcomo no Templo de Salomão.

«Faça o favor de tentar, detetive», diz Cardoso, endireitando ochapéu.

Paixão Leal prepara-se para pedir desculpa ao rabino quando amulher aparece na sala com a criança ao colo e faz sinal para que asigam. Abre a porta de um quarto. Entra e corre as cortinas nasjanelas. Aponta para uma almofada onde falta uma cabeça: «Helena

Brus». Depois para a mulher no chão, envolta num cobertor, umemaranhado de cabelos negros. «Ela conhecer Helena.»

O choro do bebé distancia-se no corredor, Cardoso entreabre ajanela, acende uma cigarrilha e vira costas para dar tempo a que abela adormecida vista um roupão sobre a camisa de noite. PaixãoLeal imita o colega.

«Nome?», pergunta Cardoso, espreitando as silhuetas alumiadaspor velas atrás das vidraças dos prédios em frente.

«Marta Oliveira», diz ela, com sotaque de quem não cresceu arezar ao Santo António.

«Fala português?», pergunta Paixão Leal.«Um bocadinho.»«Inglês?»«Yes.»O detetive olha para mulher que já foi loira e judia, agora com

cabelo escuro e um crucifixo ao peito. Não faz falta que lhe mostre ocrachá da PIC.

«Polizei», diz ela, mas não se trata de uma palavra, sequer deuma inferência. O som que vibrou nas cordas vocais — três sílabasapenas, na língua materna, sem subterfúgios de cristão-novo —condensa o pânico e a impotência que, há séculos, eram devidosaos inquisidores e que se reproduzem agora em milhares de bocasna cidade austríaca de onde Marta Oliveira partiu — quando aindase chamava Malka Plesser — e se estendem pela Europa, até estaassoalhada sem móveis na nova judiaria de Lisboa. O detetiveperscruta o quarto: malas de viagem, sapatos, malgas com restosde comida, lombadas de livros de Karl Jung e Stefan Zweig.

«Não se assuste», diz Paixão Leal, em inglês. «Não estamos aquipor sua causa.» Na impossibilidade de ser cortês, oferecendo aMarta-Malka uma cadeira que não existe, o detetive tira o chapéu,sorri e inicia o jogo da conversa fiada, sabendo que em algummomento chegará ao que interessa.

«Berlim?»«Viena.»«Professora?»«Psiquiatra.»

«Muito bem», diz o polícia, como se felicitasse um cavalo no finalde uma prova de saltos. «Quando viu a Helena pela última vez?»

«Ontem.»«Onde e a que horas?»«Talvez meia-noite, perto do rio.»«Perto do rio?»«Estávamos a trabalhar.» Não precisa de definir o ofício. Por

causa da vigilância das Brigadas da Decência nos hotéis, bares eclubes de dancing, as prostitutas judias escapam ao recolherobrigatório num ancoradouro do Tejo e pagam, com serviçosprestados a polícias e guardas-noturnos, a licença que lhes permiteentreter clientes dentro de um carro ou no vão das escadas de umprédio devoluto. «Vim para casa mais cedo. Aconteceu-lhe algumacoisa?»

Paixão Leal, tantas vezes mensageiro da morte, adia a notícia.«Ela tem família em Lisboa?»«Não. O marido e o filho conseguiram visto, estão no Uruguai.»Marta-Malka explica que Helena faz parte do grupo de judeus

batizados na Sé. Passou a frequentar a missa, esperando assim —uma vez convertida e comungando o corpo de Cristo — garantir umvisto para o Brasil. Mas no entretanto havia que arranjar dinheiropara a passagem, pagar a comida e a renda do apartamento.Forçados a mudar-se para Alfama e a dividir casas comdesconhecidos, os judeus, embora impossibilitados de trabalhar,têm de pagar uma renda ao Estado português. Em caso de dívida,podem ser recambiados para as cidades de origem.

«Ela regressou ao quarto esta madrugada?», pergunta PaixãoLeal.

«Não.»«Costuma ficar com clientes de um dia para o outro?»«Não.»«Tem amigos aqui?» O detetive aponta para a porta que dá para o

corredor. «Ou inimigos?»«A mulher com o bebé cresceu na mesma cidade que a Helena.

Mas, desde que começámos a trabalhar de noite, nunca mais nosfalou.»

«A Helena é ortodoxa?»«Não.»«O que ela fazia à noite incomodava os homens das barbas lá

fora?»«Sim, claro. Mas eles ignoram-nos como sempre ignoraram.

Nunca nos consideraram judias sequer. Ficam nervosos se noscruzamos com eles no corredor. Não nos podem tocar. Estamosimundas. E não é apenas porque somos as traidoras batizadas queaceitaram o falso messias e que fornicam com gentios.» Disse apalavra fornicam como se a lesse no Antigo Testamento: acondenação dos sodomitas e dos aduladores de bezerros de ouro.«Nunca nos falam nem entram na cozinha se estamos a comer.Para eles, estar na mesma casa do que nós é o preço que pagampela sobrevivência.»

«Isso seria suficiente para alguém querer fazer mal à Helena?»«Alguém lhe fez mal?»«Responda à pergunta.»«Eles acreditam que a vida se encarrega de nos castigar.» Marta-

Malka agarra uma lapela do roupão. Protege-se dos juízos. «Cadaum faz o que pode para chegar ao destino.»

«Nesse caso, qual é o seu destino?»«Sair disto viva.»«E o destino da Helena?»«O perdão.»«E a senhora, não precisa de perdão?»«Aqui ninguém me conhece, a minha família não conseguiu sair

da Áustria. Não sei deles há meses. A humilhação é só minha. Coma Helena é diferente, cresceu no mesmo bairro das pessoas quevivem nesta casa, tem uma família que a espera no Uruguai. Talvezpor isso goste tanto do vosso messias. Está sempre a falar de comoJesus perdoou uma mulher adúltera. Uma história qualquer compedras, não me lembro. Não é estranho?»

«O quê?»«Para sobreviver entre cristãos que não conhece, a Helena tem

de deixar de ser o que sempre foi.»O detetive compreende que esta mulher, que não troca uma

palavra com os habitantes da casa e que pouco falará com osclientes, se justifica diante de um estranho que se presta a ouvi-la.Não se trata de um pedido de piedade ou de um ato de contrição.Marta-Malka está a dizer-lhe Não sou apenas uma puta, li maislivros do que tu, tinha um consultório, não me conheces, só quandoestiveres no meu lugar saberás aquilo de que és feito.

«Diga-me, por favor, aconteceu alguma coisa à Helena?»Ao longo da carreira de polícia, Paixão Leal recorreu a várias

frases para transmitir a mesma coisa. Alternou entre «faleceu»,«pereceu», «finou-se» e usou eufemismos ineficazes como «nãoestá mais entre nós». Desta vez, só tem de dizer:

«Sinto muito.»«Mas como?»«Homicídio.» O detetive passa um lenço para a mão de Marta-

Malka, toca-lhe no ombro, aperta-o quase nada. «Sinto muito.»Retira do bolso o fio com a medalhinha de Nossa Senhora queestava no pescoço do cadáver no Beco do Quebra Costas. «Já viuisto antes?»

«É da Helena, punha-o sempre que ia trabalhar, não o usava aquiem casa.»

«Onde é que o arranjou?»«Um cliente.»«Sabe o nome? Alguma vez o viu?»«Não, mas era ele quem lhe contava as histórias de Jesus,

porque na missa é tudo em latim e ela não percebia nada.»«Recorda alguma coisa que a Helena lhe tenha contado sobre

esse homem?»«Levou-a a visitar uma igreja. Lembro-me disso porque ela não se

calava com a Paixão de Cristo. Disse-me que paixão queria dizersofrimento, que amar é sofrer e que Jesus sofreu por todos nós.»

«Sabe qual era a igreja?»«Não. Mas ela disse-me que era como ir ao cinema, havia

quadros que contavam a Paixão de Cristo. Jesus ressuscitava nofim, isso ela já sabia. A Helena gostava de fitas com finais felizes.Como é que não ia acreditar que um dia também ela seria salva?»

Cardoso, que do inglês só conhece alguns palavrões do repertório

do Americano, tem-se distraído a contar os segundos entre umrelâmpago e um trovão. A rua esteve deserta até ao instante em queduas figuras se aproximam, ocultas pelos chapéus de chuva.Homens, percebe-se pelas calças e sapatos. Polícias, deduzCardoso pelo andar. Quando fecham os chapéus de chuva paraentrar no edifício, o detetive afasta-se da janela e avisa:

«Vem aí o Dentista e o Toureiro.»No tempo que os vigilantes tardam a subir as escadas e a

atravessar o corredor da casa, Paixão Leal não consegue reagir.Falta-lhe a inteligência do improviso, o golpe de asa que já o safounoutras situações de aperto. Desta vez, os segundos precipitam-sesem que ele consiga desenvencilhar-se do colete de forças cerebral.Deu-lhe a travadinha, diria o Fogaça, que, assim que viu osvigilantes a entrar no prédio, sentiu o arrepanhar das entranhas eexplicou: «Sou português, não sou judeu.»

Durante anos a fio, a intrepidez de Paixão Leal levou-o a acreditarque tudo podia resolver-se num mano a mano. Sobreviveu a tareiasseveras e a ferimentos de bala, e o resultado foi uma perceçãoenviesada acerca da sua indestrutibilidade. Julga que um homemque já perdeu tudo uma vez — o pai, o tio, o irmão, o sonhoamericano, um olho — também não terá nada a temer. Só que,diante de uma mulher judia, que podia ser Rebeca — se a últimaesperança de Rebeca fosse converter-se ao cristianismo e àprostituição —, o detetive vive pela primeira vez o tormento que sesegue às palavras «Vem aí a Polícia política». Não é apenas omedo da tortura, mas a deformação do caráter. Os cobardes foramcatequizados para serem bufos. Os corajosos, para escolherem ainação. Todos os portugueses sabem o que podem e não podemfazer. Foram notificados há anos, ainda que só neste instante odetetive abra a carta com o seu nome.

«Meus senhores», diz o Toureiro, batendo com o calcanhar quenão é manco no soalho. Tiques de militar que nunca foi. Emsincronia, os detetives da PIC tocam a aba do chapéu. O Toureirofecha a porta atrás de si, enquanto o Dentista dá uma volta aoquarto, farejando tudo de cima a baixo. Só lhe falta alçar a perna emijar nos sapatos dos agentes da PIC.

«Vocês são rápidos», atira Cardoso.«Tu é que te deixas ficar para trás.» O Dentista finaliza a revista

ao quarto e encosta-se num canto. Enrola um cigarro, paciente, ajiboia a deglutir a cabra. O vigilante que vigia com deleite carnal.

«Tratando-se de uma vítima estrangeira, este caso está sobjurisdição da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado», diz oToureiro.

Tem uma cicatriz na bochecha, uma perna torta e calça um sapatocompensado — cortesias de um touro da ganadaria El Pilar, maisinteressado no traje de luces do que na muleta do matador. «Osacana do bicho era bolchevista, não queria marrar no vermelho»,costuma dizer o agente, se lhe pedem para relatar a colhida queconverteu um toureiro mediano num polícia coxo.

«Agradeço o vosso serviço, mas retirem-se, por obséquio», voltao Toureiro.

Cardoso dá um passo rumo à saída. O Dentista chupa o cigarro,cospe o fumo pelo nariz e provoca:

«Quando se trata de meter o rabo entre as pernas, já o gordo levafogo no cu.»

Cardoso sacode a mão como se fosse um leque, fingindo oscalores sensuais de uma donzela.

«Os teus piropos fazem-me corar.»Na capital do diz-que-disse, em que tanto fica escondido nas

entrelinhas, Cardoso não precisa de ser mais claro para referir aobsessão do Dentista com os invertidos e os sodomitas. Nacampanha moral levada a cabo pelo Estado Novo, o Dentista tem omaior número de detenções de homossexuais. Antes de levar osinfratores para a Mitra, onde ficam encarcerados com os mendigos,os chulos, os loucos e as prostitutas, empenha-se em tirar-lhes odiabo do corpo com sovas de criar bicho. Não confia na eficácia daterapia de choques elétricos que a instituição oferece aos seushóspedes.

O Dentista desencosta-se da parede, atira a beata para o soalho.«Queres-te magoar, gordo?»«Meus senhores», diz o Toureiro. Soa a ordem que se dá a

miúdos engalfinhados.

De acordo com os estereótipos das duplas policiais, Toureiro seráo cérebro e Dentista o músculo. O primeiro escolheu a PVDE com omesmo sentido de missão com que se apresentava diante dostouros. É um homem de porte aristocrático, que os colegas daSeguridad espanhola comparam com o matador Manolete. Tem umcerto desdém pela PIC, à qual cabe resolver crimes ordinários, defaca e alguidar, ajustes de contas entre chulos e putas, mulheresmaceradas pelos punhos de maridos cornudos. O Toureiroconsidera que um homicida pode assassinar uma vítima, talvez dezou vinte, caso sofra de uma patologia incomum. Já algumasideologias podem exterminar meia Humanidade. Essa diferença deescala entre a PIC, dos crimes passionais, e a PVDE, que evita ogenocídio comunista, outorga ao Toureiro a autoridade moral paradestruir o corpo e derrotar o espírito dos inimigos do Estado.

O Dentista é atarracado, tem a constituição dos levantadores depesos. Nunca refletiu sobre a missão de vigilância e de defesa doEstado que lhe foi confiada pela Polícia. Não recorre a um móbilintelectual ou de interesse coletivo para justificar o que faz a umpreso dentro de uma cela. A violência tem para ele um apelofamiliar, por vezes, até sexual. Cresceu em orfanatos, onde algo sepassou para que, em adulto, faça do castigo físico a sua maioraptidão. Chamam-lhe Dentista porque, sem precisar de utensílios, éum virtuoso na arte de arruinar dentições.

«Senhor agente», diz Paixão Leal, dirigindo-se ao Toureiro. «Sequiser, posso traduzir as suas perguntas. A rapariga fala inglês, eutambém.» Confiante de que a solicitude despertará a compreensãodo vigilante, o detetive bravio junta-se, por fim, ao rebanho dosplácidos.

«Temos quem faça isso na sede», diz o Toureiro.Resta a Paixão Leal o desespero de contar a verdade. Não a

verdade como bem comum, que aproveita a todos, mas a sua,aquela que ele descobre ou julga estar próximo de desvendar, o seuquebra-cabeças pessoal.

«Senhor agente, ao menos escute-me, tenho um caso muitoparecido, julgo que estão relacionados. E ainda há a morte da criadado doutor Salazar.»

«Essa foi apagada pelos judeus, para não abrir o bico», diz oDentista.

O Toureiro manda Paixão Leal prosseguir.«Três mulheres estranguladas, próximas na idade, com cabelos

curtos e escuros.» O detetive diz em voz alta aquilo que já articulouem pensamento: todas tinham os dedos entrelaçados, como assantas, duas apareceram embrulhadas num lençol branco, com umrosário e uma medalhinha da Virgem. Todas foram deixadas pertode lugares religiosos. O Santuário do Cabo Espichel, o Jardim daTapada, junto da Igreja das Necessidades, e agora a Sé.

«Não entendo o que têm as prostitutas a ver com a criada dodoutor Salazar», diz o Toureiro.

«São mulheres sozinhas, mais vulneráveis.»«A criada não estava amortalhada num lençol.»«Era a única, e apresentava sinais de luta, o que me faz crer que

esse crime foi improvisado, os outros, planeados.»«Senhor detetive, a PVDE já estabeleceu que a criada foi morta

pelos terroristas judeus.»Paixão Leal transparece desnorte:«Está a dizer-me que os homens que usaram armas automáticas

e bombas para limpar o sebo ao Salazar e mandar a exposição como caralho são os mesmos que estrangularam uma mulher e lhemeteram uma hóstia na boca?»

«Respeitinho aí com o chefe, ó zarolho», diz o Dentista, à procurade uma infração que exija os seus préstimos.

O detetive ajeita o elástico da pala negra junto das orelhas.«Desculpe, o que eu quero dizer é que foi a mesma pessoa que

matou as três mulheres. E que o fez de acordo com um ritual.»«Ou seja, está a afirmar, diante de testemunhas, que a PVDE se

enganou quanto a quem matou a criada», diz o Toureiro.«Não sou eu que o afirmo, mas os factos.»O Dentista ri-se e o Toureiro suspira, encolhe os ombros, abana a

cabeça, exibe a pantomima da condescendência para com aestupidez do detetive que não percebeu ainda como funciona aPolícia política.

Paixão Leal tenta emendar a mão:

«Só estou a dizer que as raparigas foram assassinadas damesma maneira.»

«Portanto, anda por aí um judeu a matar mulheres e a mascará-las de santas», diz o Toureiro.

«E eu que pensava que o zarolho morria de amores por essagentinha.» O Dentista aponta para a mulher de roupão. «Não tens láuma destas em tua casa?»

Para espanto de Cardoso, que já abriu a porta e se prepara paraarrastar o colega, Paixão Leal não reage. Felizes os que promovema paz, porque Deus lhes chamará Seus filhos. Outra vez subalterno,dirige-se ao Toureiro.

«Só lhe peço que mantenha a cabeça aberta. Posso passar-lheas notas do caso da rapariga do Cabo Espichel.»

«Se precisar de alguma coisa, sei onde o encontrar.» O Toureirosorri para pontuar o duplo sentido da frase.

O Dentista pega no braço da judia com o crucifixo ao peito. Elaolha para Paixão Leal, não roga ajuda, porque sabe que não a terá,mas confirma os efeitos da impotência do detetive. Há semprealguém mais poderoso e mais assustador. Polícia que manda empolícias é polícia a dobrar. Os olhos de Marta-Malka voltam a avisá-lo: Só quando estiveres no meu lugar, saberás aquilo de que ésfeito.

O Dentista estala a língua e pastoreia os judeus para fora doapartamento. Sem reclamar, os homens com sobretudos negros echapéus desmesurados seguem em fila pelas escadas abaixo, damesma maneira que outros, com igual obediência, avançaram parabecos na Polónia e comboios na Alemanha. A mãe do bebé ficapara trás, argumenta algo em iídiche, simula a urgência de alimentaro filho que não pára de chorar. Os berros da criança apoquentam oDentista, reavivando as memórias de fome, medo e frio em todos osorfanatos por onde passou. O agente puxa a judia pelos cabelos e,com um esgar de nojo, dá-se conta de que ficou com uma peruca namão.

«Que merda é esta?», pergunta-lhe, como se o tivessemenganado no troco da padaria. «Foda-se, só me saem duques e

manilhas furadas.» Lança a peruca para dentro de casa e empurra amulher para a saída.

«Ela não pode estar na presença de homens sem cobrir o cabeloverdadeiro», explica Paixão Leal, no patamar das escadas,oferecendo o casaco para a mulher esconder a cabeça.

«Foda-se, mas alguém te perguntou alguma coisa, zarolho docaralho? Toca a andar e bico calado.»

Na rua, o Toureiro olha para o céu, a luz menos fosca, nuvens quejá sobem o rio, rumando ao Norte. O agente levanta as golas docasaco, protegendo-se das goteiras dos beirais. «Parou de chover»,diz, como se, em vez de liderar uma caravana de judeus ortodoxos,com uma prostituta na retaguarda, informasse a esposa querida,entre a sobremesa e o café, de que vai sair para comprar a últimaedição do jornal.

O rabino começa um monólogo em iídiche, encadeandomaldições milenares contra o cadáver da cristã-nova que jaz numbeco de Alfama e por culpa de quem, mais uma vez, os judeusdesfilam, obrigados, pelas ruas de uma cidade. Pede que assanguessugas consumam as vísceras de Helena, que os seus filhosse transformem em pedras, que se case com o Anjo da Morte. Nosprédios, abrem-se as janelas. O que antes eram vultos atrás dachuva são matronas de bata, debruçadas nos parapeitos,segredando às vizinhas os postulados que os judeus não aprendem:

«Cá faz-se assim.»O Toureiro vira-se para trás, chama Paixão Leal, o seu novo

moço-de-fretes.«Não está a esquecer-se de nada?»O detetive podia dizer, sem exibicionismo, que nunca se esquece

de nada. Seria um lamento. Daqui a dez anos ainda estará aqui,nesta esquina, súbdito da memória como é do regime, revivendoesta tarde em que alguém lançou pela janela o recheio de umpenico à passagem dos judeus.

Paixão Leal entrega o terço e a medalha que tirou do corpo daJudia da Sé. O Toureiro volta a olhar para o céu, uma poalha de luzalastra sobre Lisboa, daqui a nada Alfama sairá da sombra.

«Um raio de sol, sinal de esperança», diz o Toureiro, seguindo

atrás do cortejo que sobe a rua.Os miúdos começam a sair de casa, também eles certos da

relação entre o estado do tempo e os seus próprios destinos, gratospela sabedoria do povo capaz de reduzir os princípios do Universo aaforismos que até as crianças percebem. Afinal, depois da borrascavem sempre a bonança, algo em que Paixão Leal, mesmo com o sola bater-lhe na cara, não está disposto a acreditar.

Nem sempre a verdade liberta. Mentir aos filhos, dizer-lhes, porexemplo, que um disparo de pistola na rua é apenas fogo-de-artifício, também é o dever de uma mãe. Rebeca continua a coseruma das sete saias de varina quando vêm dizer-lhe que as Brigadasda Decência entraram no teatro para escrutinar os ensaios darevista. Tenta que Mathilda e Chris não percebam que, denervosismo, a mãe já se picou duas vezes com a agulha. Os miúdosestão entretidos com a variedade de personagens oferecidas pelasala de guarda-roupa. Escondem-se nas ruelas fofas e compactasde charriots com figurinos de espetáculos passados. Roçam ascaras na seda de um quimono de gueixa, cheiram o pelo de carneironum chapéu farfalhudo de cossaco. Experimentam botas, capas emáscaras, viajando de continente em continente, de século emséculo, com uma liberdade de movimento vedada aos graúdos.Mathilda arrasta o véu de um vestido de noiva e Chris descobre umcachimbo no bolso das calças de um explorador colonial. São osprotagonistas, os intérpretes secundários e o coro grego das peçasque improvisam enquanto a mãe maneja tesouras e remata bainhassem desmanchar a fantasia infantil com o pânico da realidade.

«Estão aí os papa-hóstias», informa Manuel Prado, ator que dáautógrafos na rua, corpulento de humanismo e comédia, que fazpalhaçadas para os filhos de Rebeca com a seriedade de uma noitede estreia. «Parece que há rusgas em todos os teatros», diz, aindacom a roupa e a barba postiça do Zé Povinho com que estava aensaiar em palco.

Elemento fiscalizador daquilo a que a propaganda chamaSegunda Reconquista Cristã, as Brigadas da Decência foramcriadas por um decreto-lei que visa proteger os portugueses dasmás influências estrangeiras. A legitimidade das Brigadas foi

justificada pelo diretor da Legião numa cerimónia oficial: «Nostermos da Constituição, pertence ao Estado zelar pela decênciapública e privada, tomando todas as providências no sentido deimpedir a corrupção dos costumes, impondo normas adequadas àsalvaguarda da decência que as convenções morais e mesmoestéticas dos povos civilizados ainda, felizmente, não dispensam.»

À face do público, as Brigadas deveriam assegurar a boa condutados cristãos, proibindo as mulheres de frequentar cafés semcompanhia masculina, emboscando os namorados que infrinjam aproibição do beijo em lugares públicos. Mas na sua origem estãomotivos menos sacros e virginais. Nos anos que passou emEspanha, Rolão Preto afastou-se dos berros do nacional-sindicalismo e do egocentrismo do Terceiro Reich que se colocaacima de Deus. O atual presidente do Conselho foi testemunha davitória da Espanha católica, eficaz a expulsar os vermelhos comofizera com os mouros em 1492. (Nisso, mais uma vez, osportugueses foram pioneiros: duzentos anos antes, já os califassarracenos tinham saltado o estreito de Gibraltar, de volta a casa, noepisódio final da Reconquista Cristã). A admiração de Rolão Pretopela ideia de cristandade vem dos tempos em que os camisas azuisusavam na manga a mesma cruz de Cristo que tingira as velas dasnaus e que se exibe agora no uniforme das Brigadas. Os povosibéricos têm uma longa experiência de acato a Deus, devassalagem eclesiástica, e Rolão Preto não desperdiça o apoio daIgreja nem a rede de espiões-sacerdotes, gente que imponhaditames e denuncie pecados. É mais fácil e pacífico dar seguimentoa séculos de obediência cristã do que fazer uma revolução, algo deque o ex-seminarista Salazar se aproveitara sabiamente, quandofazia discursos sobre a ação civilizadora dos missionáriosportugueses em terras primitivas; ou quando, no lançamento dacampanha para a moralização das praias, se deixava fotografar comas representantes da Obra das Mães pela Educação Nacional.

A chacina da Guerra Civil de Espanha, que Rolão Pretoacompanhou de perto, ensinou-lhe duas coisas que ele consideraindispensáveis para governar o país.

Primeiro, que todas as crenças têm consequências que definem o

caráter e as ações dos indivíduos em momentos de vida ou morte,porque nada existe somente no domínio espiritual. Em Espanha, aortodoxia dessas crenças, atiçada pelo ódio e pelo ressentimento,resultou em valas comuns, denúncias falsas para ajustar contasentre vizinhos desavindos, fuzilamentos sumários por parentescoem segundo grau com um traidor. Nenhum sistema de ideias emconfronto, dos anarquistas aos comunistas, dos falangistas aosmonárquicos, se mostrou superiormente moral, ainda que todosalegassem uma justificação ideológica, retirada dos seuscompêndios de justiça e utopia, para a barbárie que grassava emtodas as fações.

Segundo, e uma vez que todas as crenças têm consequências edefinem o caráter e as ações dos indivíduos em momentos de vidaou morte, é mais proveitoso para quem manda que o fervor dessascrenças transcenda os homens e se concentre em Deus, em algosuperior, intocável, perfeito e intangível. Fascismo e comunismo sãocriações humanas, logo, suscetíveis de desvirtuamento econtestação. Deus, por sua vez, está imune a essas transversões. Éverdade que muita gente aceita morrer e matar por uma bandeira ouum ideal político, mas aquilo que as pessoas se dispõem a fazer —ou a não fazer —, de forma a agradar a Deus, a evitar a sua cólera,a satisfazer a sua inesgotável fome de adulação, tem umaabrangência e uma intencionalidade que nenhuma ideologiaalcança. Estar em concordância com Deus, ter as costas quentespelos poderes do sobrenatural possibilita fenómenos tãocontraintuitivos como o celibato e a autoflagelação, o jejum e aimolação pelo fogo. Por mais temível que seja um ditador, nenhumser terreno dispõe da condenação eterna nas chamas do Inferno.

Em oposição à Espanha fratricida, Rolão Preto quer um Portugalpaternalista. Mais uma vez, deve expensas a Salazar, de quemherdou um país sem oposição e cisões partidárias, onde omaterialismo dialético dos sovietes e a superioridade eugénica dosarianos nunca pôde competir com a Santíssima Trindade da paz eda ordem: O Grande Patriarca no Céu, o presidente do Conselho naTerra, um pai de família em cada lar.

Nos bastidores do teatro, o ator Manuel Prado começa a

desabotoar a camisa. Tem tronco de lobisomem e uma barrigaesdrúxula.

«Rebequinha, posso experimentar o casaco da rábula dosjudeus?» Ela levanta-se e ajuda-o a vestir o sobretudo cor de grafitesobre os ombros nus. O ator pega no chapéu de rabino,hiperbolicamente negro e largo. «Estes das brigadas são unscatraios, ainda têm os cueiros agarrados ao cu.»

Os miúdos riem-se, Mathilda aponta para o ator:«Mãe, ele disse cu.»Metade rabino, metade Zé Povinho, Manuel Prado abre a boca, é

a caricatura do arrependimento, bate com a palma da mão na testa,o chapéu de rabino tomba-lhe da cabeça. Pega numa tesoura efinge cortar a língua. Os filhos de Rebeca riem e o ator faz umavénia, pisca-lhes o olho, apanha o chapéu. É um desses gordos quelevita, sabe que vai morrer novo e feliz, a meio de um bifemalpassado ou entre as pernas de um dos seus jovens amantes.

«No outro dia, as Brigadas estavam à porta da Igreja daEncarnação a proibir a entrada das mulheres que não tivessem acabeça coberta.» O ator puxa as lapelas do sobretudo, ajusta aironia ao seu corpanzil: «Não te esqueças, Rebequinha, a mulherquer-se santa.»

No curto período da sua existência, em incursões a clubesrecreativos e casas de fado, teatros e cabarés, as Brigadas daDecência exibiram uma inclinação por estrangeiros, concedendoalguma tolerância aos cidadãos do Eixo. São as mulheres, contudo,quem mais vezes passa pela máquina purificadora do vexamepúblico. Não fumes, não cruzes as pernas, não desgraces areputação do teu pai e do teu marido. Para as mulheresportuguesas, ainda haverá esperança. São filhas, mães e irmãs dosnossos homens, criadas à imagem da progenitora virgem de Jesus,guardiãs da castidade, monjas do culto mariano. Já as estrangeirastrazem no andar e nos hábitos de vestir a mesma fatalidade do frutoda árvore do conhecimento comido por Eva. Se forem judias, então,nem a água batismal as desinfetará da obscenidade. Filhas do infiel,do outro, concubinas do Anticristo.

Nas Brigadas, ao contrário da Legião, não há mulheres. É a

tradicional separação das funções: elas são as cuidadoras, eles osguerreiros. Mas nem por isso escasseiam fêmeas de ação, mãesque engomam as fardas dos filhos, esposas que engraxam as botasdos maridos, uma nação de mulheres que serve os voluntários daSegunda Reconquista Cristã, armadas de sabão e tanque, terço ecolher de pau, a retaguarda do combate às desavergonhadas dasestrangeiras.

Manuel Prado coloca-se diante do espelho, levanta o queixoépico.

«No outro dia, quiseram prender um espanhol por blasfémia sóporque o ouviram dizer Me cago en Dios.»

O humor escatológico desmancha as crianças de riso. Rebecapica-se na agulha uma terceira vez, o metal quase a tocar o osso,os pulsos trémulos porque consegue ouvir os rapazes das Brigadasna sala contígua e o diretor do teatro a justificar a escolha artísticade um Pau de Franco com dois metros num quadro de revista sobrea amizade ibérica. Pálida e de mãos frias, ao ver o sangue entre aunha e a carne, uma gota apenas, Rebeca sente a cabeça oca, opeito transpirado.

«Garota, estás bem?», pergunta o ator, cuja preocupação demoraapenas um segundo. Assim que os agentes das Brigadas entram nasala de guarda-roupa, volta a ser uma personagem de rábula derevista. «Vieram prender o Zé Povinho ou o rabino?», pergunta.

Silêncio, a piada falhou. Nem um sorriso, a audiência é suspicaz,rapazes criados a sopas de com certas coisas não se brinca,conhecedores dos boatos sobre a promiscuidade dos artistas. Sãojovens cândidos nas convicções e de gostos influenciáveis.Partilham o mesmo corte de cabelo e fumam a mesma marca decigarros. Fiam-se em que as divisas nos ombros mostram amaturidade que a vida ainda não lhes impôs. Têm o olharvoluntarioso dos virgens que muito querem e ainda nãoconseguiram. Estão seguros de que as fardas são a varinha mágicapara fazer o bem e conseguir parceiras de dança no baile daparóquia.

«Identifique-se», diz um dos brigadistas.O ator tira o chapéu para mostrar a cara.

«Eu sou Bocage, venho do Nicola, e vou prò outro mundo sedispara a pistola.» Levanta os braços acima da cabeça, a pançahirsuta espreita pelo sobretudo desabotoado.

«É o Bocage», diz um dos rapazes. Por via das dúvidas, apontapara o cartaz colado na parede, da revista Balancé, sucesso debilheteira em 1939, na qual o ator interpretava o poeta do vernáculotransversal, que fazia rir doutores e magalas, senhoras e donzelas.Manuel Prado é rodeado pelos agentes, apertos de mão, assineaqui para a minha mãezinha, a camaradagem da palmada nascostas e da gargalhada.

«Isso são preparos para se estar diante de uma senhora?» Operfil de águia de Pereira levita acima de todas as cabeças. É omais alto e o mais velho desta brigada, vem acompanhado dodiretor do teatro. Tinha ficado para trás, decretando a proibição douso do Pau de Franco gigante na estreia da peça. «Queira deixar-sede palhaçadas e cubra-se.» Manuel Prado abotoa o sobretudo.Pereira olha para Rebeca. Faz a pergunta para a qual sabe aresposta:

«E a madame, é estrangeira?»Após a chuvada e de regresso ao Torel, Cardoso deixa as meias e

os sapatos a secar no peitoril da janela da sala da brigada. Recosta-se na cadeira para mais um exercício de construção dedutiva. O seuremanso mental serve de contraponto ao estado frenético dospensamentos do colega. Cardoso escuta a palestra, levantadúvidas, aponta imprecisões, serve de advogado do diabo compaciência de orientador académico, crédulo do potencial do aluno,indeciso quanto à tese: um homem matou três mulheres jovens,com semelhanças físicas; estrangulou-as, deixando os corpos emlugares de culto, ou perto deles, preparando ritualmente as vítimasde acordo com a iconografia das santas católicas: o manto branco, oterço, as hóstias, as mãos entrelaçadas. Não existem indícios deatos sexuais, violência com armas ou abundância de sangue, o que,a par dos dois cadáveres lavados e perfumados da Santa do Cabo eda Judia da Sé, ambas prostitutas, leva Paixão Leal a acreditar queo assassino, além do método e da premeditação, talvez tenha

intenções punitivas, limpando o que acredita estar sujo, purificandoo que lhe parece pecaminoso.

«Mas a criada do Salazar? Não era prostituta, não estava lavadanem apareceu enrolada num lençol», contesta Cardoso.

O contínuo entra na sala da brigada, seguido por um homem quecarrega uma caixa. Dirigem-se para o móvel com o rádio edesligam-no da corrente, removem o aparelho. Substituem-no poroutro, modelo Volksempfänger. Os comentários trocados entre ocontínuo e o homem que trouxe o rádio, sobre a excelência datecnologia alemã, perturbam Paixão Leal, que se distrai, compondoa pala do olho. Começa a organizar as folhas de papel em cima damesa para não perder o fio à meada.

«Há mais semelhanças do que diferenças entre as prostitutas e acriada. O estrangulamento, a aparência física, o corte de cabelo, asmãos entrelaçadas de santinha.»

«Foi encontrada num jardim»«Que fica ao lado de uma igreja.»«Não tinha o lençol, o terço ou a medalhinha da Virgem.»«Mas tinha uma hóstia na boca e as mãos entrelaçadas. O facto

de ter dado luta faz-me pensar que houve algo de improviso. Osoutros cadáveres não tinham sinais de violência além doestrangulamento, e o relatório da Medicina Legal indica vinho eclorofórmio no estômago da Santa do Cabo. Primeiro enfraquece-as, só depois as ataca. É possível que conhecesse as prostitutas eque a criada seja a exceção. Tanto a Santa do Cabo como a Judiada Sé não foram mortas no lugar onde encontrámos os corpos.Quanto queres apostar que a autópsia da judia revela que bebeuvinho e clorofórmio?»

«Esse caso já não nos pertence.»O contínuo liga o rádio novo e a estática irrompe pela sala.«Desliga lá essa merda», grita Paixão Leal.O contínuo baixa o volume.«Desculpe, mas são ordens.»Paixão Leal olha para Cardoso, que lhe diz:«Não sabes? O Governo alemão, benemérito e amigo, não nos

mandou apenas comboios com cereais.»

Depois de chegar ao poder nas eleições de 1933, o Partido Nazi,por intermédio do génio visionário do ministro da Propaganda,mandou desenvolver o Volksempfänger — o rádio do povo, tambémconhecido como Focinho do Goebbels. De produção barata eacessível ao orçamento da maioria das famílias alemãs, o aparelhopodia ser comprado a prestações e, ao contrário das outras marcas,apenas assinalava no mostrador as estações germânicas, mais umlembrete da proibição de sintonizar emissoras estrangeiras. Oscartazes que publicitavam o Volksempfänger recordavam a coesãonacional: «A Alemanha inteira ouve o Führer na rádio do povo.» Oaparelho distribuía a verdade no íntimo de cada lar, nos cafés e nasassociações onde o público aplaudia como no teatro. Os ouvintesfiscalizavam-se, apurando a fidelidade radiofónica dos vizinhos. E,na hora de vilificar os judeus, o povo convencido, ou temeroso,deixou-se conduzir pelo Focinho do Goebbels.

«Mas tem de estar ligado agora?», pergunta Paixão Leal.«São as ordens lá de cima», desculpa-se o contínuo, baixando o

volume.O aparelho, sintonizado na Emissora Nacional, transmite uma

valsa de Strauss, cordas sincopadas de violino e violoncelo queacompanham a exposição do detetive zarolho.

«Sabemos que o gajo tem uma pancada por miúdas novas e porreligião, até levou a Judia da Sé a uma igreja, para ver as imagensda Paixão de Cristo. É metódico, preparado, paciente. Dá-lhesbanho. Cuida delas antes de as apresentar.»

«Um cavalheiro.»«Repara, a Santa do Cabo morreu a treze de junho, a judia a

treze de agosto. E, como sugere a lama nos sapatos e a autópsia, acriada morreu a treze de julho.»

«Isso não te diz nada?», pergunta Cardoso.«Que há um rigor com as datas, talvez ele seja supersticioso.»«És mesmo americano. São as datas das aparições de Nossa

Senhora de Fátima.»«Fuck me.»A campainha do telefone metralha a valsa de Strauss. Paixão Leal

atende com o sorriso do vencedor da lotaria que, de tanto verificar onúmero premiado, não sabe ainda que tem a casa a arder.

O detetive escuta, desliga o telefone e diz:«Era do teatro. As Brigadas da Decência levaram a Rebeca.»Paixão Leal não se impressiona com os lustres imperiais ou os

frescos no teto. Pula os degraus de mármore cinza do Palácio Fozsem alcançar a ironia à sua volta: o antigo clube Maxim’s, pioneiroda boémia dançante e das salas de jogo clandestino na capitaldesde os anos 20, é agora a sede das Brigadas da Decência,aproveitando a vizinhança do Secretariado de Propaganda Nacionalno mesmo edifício. O Maxim’s, fechado devido a falência,encontrava-se sem uso há vários meses. O seu recheio foi leiloadoem hasta pública — da máquina de lavar loiça a quatro pianos decauda —, mas a ação depuradora das fardas azuis, com a cruz deCristo vermelha no braço, não fumigou por inteiro as memórias danudez das raparigas da trupe Soeurs Lungla em cima do palco,bailarinas contorcionistas patrocinadas pela Sociedade Lusitana deElectricidade com o fim de entreterem a alta sociedade lisboeta. Ospainéis de azulejos, que retratam o heroísmo dos portuguesesdurante uma batalha, ganham uma renovada pertinência, agora queos milicianos dominam o salão de dancing onde se celebravam osbailes de máscaras. Quando ali chegaram, os brigadistasencontraram os despojos do réveillon de 1939, a festa deencerramento do Maxim’s. Apanharam copos esquecidos atrás demóveis e fichas de casino calcadas nas carpetes. Varreramserpentinas e uma carteira de fósforos com o nome «Valentina»,escrito à mão, seguido de um número de telefone que não chegou atocar no dia de ressaca. Na casa de banho das senhoras, em cimada bancada, um par de meias rendadas foi colhido por um rapazpara inspeção em privado. Como se eliminassem as provas daexistência de uma civilização perniciosa, os brigadistas dedicaram-se à higienização meticulosa da sede antes de começarem a limparos costumes nas ruas.

Paixão Leal mostra o distintivo da PIC na receção.«Vai-me buscar a Rebeca Kraus.» O buço do brigadista inquieta-

se, uma centopeia esperneante, borbulhas na testa que ameaçam

rebentar, o nó da gravata feito pelo pai, o queixo bambo de quem seconfunde com a hierarquia dos poderes, ainda que o detetive sepreste a esclarecê-lo. «Estás a ouvir? Mexe-te.»

O rapaz pede-lhe que aguarde, levanta-se e, um minuto depois,regressa com a mensagem:

«A senhora Kraus não pode receber visitas neste momento.»«Leva-me ao teu superior.»«Desculpe?», questiona o rapaz, atormentado pelo remendo de

pano negro que cobre o olho do detetive.«À minha frente, vamos.»Paixão Leal segue-o, passam pelo fumoir, onde os sofás de

couro, castanhos e refulgentes, foram substituídos por mobiliário deescola primária. Bandeiras nacionais e estandartes cobrem asmanchas deixadas nas paredes pela ausência recente dos quadrosde Malhoa. E, apesar das cúpulas pintadas por artistas da escolaflamenga ou do teto que já esteve na capela do Mosteiro dosJerónimos, o pensamento afunilado do detetive só lhe permite ver aporta do gabinete que o brigadista abre após bater duas vezes ereceber a ordem:

«Faça o favor de entrar.»Lá dentro, Pereira levanta-se atrás da secretária, um gesto formal,

de rapaz bem-educado, mas também um reflexo defensivo napresença de um homem que, embora esperado, pode destruí-lo àpancada, na sala mínima, antes que os restantes brigadistascheguem para acudir o chefe.

«Senhor detetive, a que devo a sua presença?» Pereira finge asurpresa imprescindível à farsa que preparou.

«Onde é que está a minha mulher?»Toldado pelas ganas de amedrontar os catraios brigadistas,

Paixão Leal não identifica logo Pereira, o rapazola que havia poucoo assistira nos Homicídios.

«Não o sabia casado.» Na sua nova farda azul das Brigadas, comtrês botões dourados e bem polidos, cinturão grosso a vincar ocasaco, bivaque com a cruz dos Templários entalado nas divisas doombro direito, Pereira troca o receio inicial pela vanglóriaantecipada. «Sente-se.»

«Pereira?» Depois do reconhecimento e da surpresa, o detetivenão hesita em manifestar a desconsideração pelo adversário.«Deixa-te mas é de merdas e vai-me buscar a Rebeca Kraus.»

«Preferia que não me tuteasse nem dissesse palavrões.»«O quê?»«Sente-se, já lhe disse.»Paixão Leal demora-se a puxar a cadeira. Senta-se e o legionário

afasta-se da secretária, anda pelo gabinete com as mãos atrás dascostas, fazendo uma pausa intimidante entre cada passo.

«Deve estar enganado, senhor detetive. Mas deixe cá ver.Rebeca Kraus, Rebeca Kraus.» Aproxima-se da mesa e, simulandoignorância quanto àquilo que sabe de cor, pega nos papéis. «Ah,aqui a temos. Bem me parecia, a senhora Kraus declarou que eraviúva.» Pereira, o falso magnânimo, coloca-se atrás do detetive,olhando-o de cima para baixo, fitando a nuca desprotegida dopolícia zarolho. A técnica cabotina e a voz projetada, como no teatroradiofónico, expõem-lhe as intenções.

Paixão Leal move a cadeira, põe-se de frente para o legionário.Repara na faixa de couro oblíqua, sobre o casaco da farda, quetermina num coldre de revólver. Talvez esteja vazio ou guarde umabisnaga. Talvez isto seja o ensaio geral de uma peça de liceu. Tudoneste palácio lhe parece falso e picaresco: os rapazes, sem um pelono peito e de bochechas perfumadas pelo after-shave roubado aopai, que roem as unhas à passagem de uma mulher bonita; olegionário Pereira, que se apresentou em calções no primeiro dia naPIC e que agora, armado com uma pistola, emula os esbirrosmilitares num gabinete que já foi despensa de clube noturno.

«O que vem a ser isto?»«Isto, senhor detetive, é o país a entrar na linha.» Pereira fala

como se, após uma viagem de circum-navegação, avistasse, porfim, a Ilha dos Rancores. Passou pouco tempo desde que olegionário foi traído pelo detetive e desprezado pelo agenteGouveia. Essas foram semanas de ruminação mental tenebrosa,alongadas pelo drama da injustiça e da perda da honra. Servirampara que Pereira planeasse o desagravo, imaginando-se Menelau

ou o conde de Monte Cristo, cuidando viver a longa espera descritaem todos os livros de vingança jamais publicados.

Paixão Leal já não vê o rapazola que o acompanhou uns quantosdias no caso da criada de Salazar: o mancebo de calções,assustado com os tiros da fragata, avaro de um mentor, facilmenteenganado pelas manhas do detetive. O Pereira que regozija com osimples facto de ordenar a outro homem que se sente é a evoluçãodaquele que o detetive viu no elétrico, saudado pelo alemão dajuventude hitleriana, ou aquele que acompanhava o caixão deSalazar com os olhos postos num destino heroico, sacrificial,sangue na bandeira e tudo pela pátria.

«Está na hora de limpar a infestação que invadiu este país. Oinfiel será expulso, o traidor punido e o ímpio expurgado. É essa amissão das Brigadas da Decência.»

O detetive quase se ri da retórica do cavaleiro cristão. Mas algoameaçadoramente sério e genuíno se esconde nas frases feitas quePereira aprendeu na doutrinação oficial e na propaganda da rádio,algo que ele repete como no campo de batalha e que impedePaixão Leal de subestimar outra vez este rapaz que, de tanto quererser homem, estará disposto a morrer e matar para o conseguir.

O detetive já teve vinte anos, já prendeu rapazes de vinte anos ejá viu cadáveres de rapazes de vinte anos. Conhece a supremacerteza desses rapazes sobre todas as coisas, a desgovernadaatração pelo risco, pelas figuras carismáticas e pelas maiúsculas —Honra, Pátria, Deus, Coragem. Conhece o rompante da violência edo sexo, a forma como essas pulsões servem os desígniossuperiores. Um estado psicológico de tesão constante, imprudente,que tanto nutre pilotos de bombardeiros como assaltantes à mãoarmada. Paixão Leal viu miúdos que, ainda antes de estrearem aprimeira lâmina da barba, professavam o olho-por-olho e o códigode silêncio da máfia nova-iorquina. Viu soldados amputados nocorpo e na mente que, tendo apostado a vida no jogo da guerra,regressavam a casa sem um pingo do prestígio ou da virtudeguerreira que lhes tinham prometido na recruta. O próprio PaixãoLeal encontrara no boxe, e mais tarde na Polícia, aquilo que Pereira

consegue como brigadista e legionário. Talvez aquela pistola nocoldre da farda não tenha fulminantes nem seja uma bisnaga.

Com vinte anos, divisas na farda e voz de comando, GustavoSoares Pereira encontrou a forma de casar as suas ideias com oimperativo da ação. Os outros brigadistas respeitam-no, celebram oseu valor. Por enquanto, de perda, Pereira conhece apenas a queestá ao alcance dos mais jovens: aquilo que ainda não tem, masque quer e lhe foi negado. A rapariga que lhe recusou um convite, opai que decidiu que curso ele seguiria, os comunistas e os judeusque o impedem de criar a sociedade perfeita. Ainda não viveu temposuficiente para sentir outro tipo de perda, que Paixão Leal bemconhece, quando lhe for retirado aquilo que tem e não sabevalorizar.

«Só quero levar a minha mulher para casa.» Perante aimplacabilidade de Pereira, o detetive escolhe a prudência. «Nãosomos casados, mas vivemos juntos.»

«Um pecado aos olhos de Deus.»«Mas não um crime, de acordo com a lei.»«E acha que as defeituosas leis dos homens prevalecem sobre a

vontade de Deus? É por causa de gente como o senhor que o nossomodo de vida está em causa, que nos encontramos contaminadospela debilidade e pela libertinagem da miscigenação, queentregámos o Brasil e nos deixámos roubar pela Inglaterra, quepermitimos que os judeus e os comunistas matassem o nossopresidente e invadissem as nossas ruas.»

O detetive deixa-o fazer o discurso. Mas questiona-se: queressentimento provoca no rapaz aquela jactância, que amargorocasiona tanto desdém, que medos fazem florescer o ódio e avontade da eliminação do outro? Que mãe ausente ou pai tirânico?Que colegas cruéis ou timidez solitária? Como seria se Pereirativesse crescido com outra família? Se fosse filho de uma mulher-a-dias e de um operário naval? Se visse as queimaduras da soldagemnos braços do pai? Se a mãe só bebesse o caldo da canja para queo filho pudesse mastigar a carne branca e as miudezas? Seria umanarquista na clandestinidade ou continuaria a acreditar que,escorraçados os infiéis, se alcançaria o Paraíso na Terra? Haveria

algum remédio para tanta irredutibilidade? Outras causas capazesde nortear a fogosidade de quem teme passar ao lado da História?

«Rebeca. Com esse nome, não será judia?» Chegaram à clareirapara onde os cães empurram a caça, o destino final da lição quePereira ensaiou diante do espelho. «É curioso que o documentoalemão da dona Rebeca esteja caducado. E que tenha vindo paraPortugal justamente em mil novecentos e trinta e cinco.»

«Os documentos portugueses da Rebeca estão em ordem. Alémdisso, não cabe à PVDE fiscalizar a papelada dos estrangeiros?»

Pereira concede, sem responder. Não ignora o risco de quem seintromete no monopólio dos vigilantes. E tem na manga outrasformas de prolongar o calvário do detetive.

«Rebeca Kraus foi detida esta tarde por atentado ao pudordurante uma rusga, estava na companhia de um homem despido,com os próprios filhos como testemunhas.»

«Que homem?»Pereira aprecia a dúvida do macho num mundo em que ser corno

é anátema. Afasta-se da porta, vai para trás da secretária, mantém-se de pé. Paixão Leal roda outra vez a cadeira na sua direção.

«O ator Manuel Prado», responde Pereira.O desafogo do detetive, ao ouvir o nome do ator, prejudica-lhe o

bom-senso.«Então não há problema.» Podia não dizer mais nada, seguir com

cautela até ao momento em que Pereira lhe entregasse Rebeca. Sóque, não tendo já o destemor dos vinte anos, ainda lhe é difícilrecusar uma desforra. «Pereira, quando entrei para a Polícia,trabalhei nos Costumes, lidei com muito paneleiro. Se uma coisaaprendi é que todos os que parecem são. E ainda há os que nãoparecem e são. Se o Manuel Prado estava despido à frente daminha mulher, foi com certeza porque estavam a provar o guarda-roupa.»

O detetive saboreia o pasmo de Pereira quando este se entendeparodiado. Mas talvez o brigadista não seja assim tão verde,porque, onde Paixão Leal impôs um ataque, o rapaz encontra umachance de retaliação:

«Muito me conta. Se tem tanta certeza quanto às atividades

clandestinas do senhor Manuel Prado, levantaremos um processoao ator por sodomia. E teremos de o chamar como denunciante,senhor detetive. Será uma oportunidade para nos voltarmos aencontrar.» Pereira abre a porta e grita: «Antunes, traz-me a judiacom as crianças.» Depois dá uma ordem ao polícia zarolho:«Espere lá fora, não quero essa gente aqui dentro.»

——•——Podem cair bombas em Dover, Roma e Pequim. Podem torpedos

de submarino afundar navios no Atlântico. Podem fuzilar resistentesem França, construir um muro ao redor de um bairro de judeus emVarsóvia e gasear doentes mentais na Alemanha. No miradouro deSanta Catarina, Rebeca só vê a beleza ressuscitada do mundo.Tudo mais garrido, esse abalo metafísico que apura os sentidos e asprioridades, típico de quem sobrevive a um acidente de carro ouacaba de sair da prisão. Talvez Rebeca relativize as suascontrariedades, tendo em conta o estado da Europa. Talvez aliberdade, após a detenção pelas Brigadas, apure a sua gratidão etudo lhe pareça mais sublime: os filhos que brincam com outrosmiúdos, a luz dúctil estendida sobre o casario que se inclina para oTejo, os elétricos que faíscam nos cabos, o comboio zarpando paraCascais ou o avião da Pan Air que ganha altitude e recorta o lusco-fusco, afastando-se por entre os fiapos de nuvens num céu decobalto. Tal como o Sol, que encerra mais um dia, tudo tem umapromessa de movimento e de futuro.

Rebeca saiu do quartel-general das Brigadas da Decência e nãofoi esconder-se em casa. Pediu a Paixão Leal que passeassem peloverão da cidade. Compraram gelados no Rossio e Chris apertou abuzina da bicicleta do vendedor da Esquimaux. Uma floristaofereceu um cravo vermelho a Mathilda e a miúda prendeu-o naorelha, imitando as colegas que se mascaram de sevilhanas noCarnaval. Subiram a Rua do Carmo e, na esquina com a Garrett,nem a reabertura da loja de propaganda alemã embaciou oresplendor de Rebeca, tomada por um júbilo carnal, o corpogarantindo-lhe que estava viva ainda. Diante das montras comretratos de Hitler e fileiras de margaridas, uma aglomeração de

gente esperava o anúncio dos números vencedores do sorteio dedez rádios Volks.

Rebeca queria ver a foz do rio, o lugar onde acaba a Europacontinental e se inicia a rota para o Novo Mundo. Cruzaram a PraçaLuís de Camões e, ao olhar para a fissura que a Rua da Bica abrena muralha de fachadas, Rebeca teve o vislumbre de um escapepossível na corrente do Tejo. Permitiu-se imaginar outra versão de simesma, uma mulher sem filhos, mas com os pais ainda vivos, dezanos mais nova, fazendo escala em Lisboa, seduzida pelaextravagância das palmeiras e dos entardeceres longuíssimos. Umamulher apenas de passagem, cortejada pelos homens solteiros que,tal como ela, viajariam na primeira classe de um navio rumo aqualquer metrópole onde ninguém a conhecesse. Rebeca não achasequer despropositado que, após umas horas sob custódia dasBrigadas da Decência, encerrada com os filhos numa saleta doPalácio Foz, a sua imaginação responda com fragmentos gráficosdo seu corpo na cama com esses homens. Afinal, ela sempre sentiuque a petite mort é o mais próximo que se pode chegar da negaçãoda grande morte.

O Sol dilui-se no oceano e uma luz aquática, de lâmpadas depiscina, transvaza da superfície do rio para as margens. Nestemiradouro não há passado ou porvir, o Universo inteiro cabe nossons que chegam das janelas abertas das casas onde as famílias sesentam para jantar; ou revela-se num sino, no riso das crianças, nochilrear frenético dos pássaros que anunciam a noite de Lisboa, talcomo faziam durante a infância de Rebeca em Munique. Deve sergraças a esta perceção fugaz do cosmos — quando nos achamosparte de tudo e compreendemos que a beleza não se detém só paranós — que há gente capaz de escrever poemas ou de compormúsicas no meio de uma guerra.

Os seus pensamentos e planos são interrompidos por Luís.«Casa comigo», diz ele. Não é uma pergunta, sequer um pedido,

mas um pleito administrativo. «Casamos pela Igreja e batizamos osmiúdos. Se fores casada comigo, estás protegida.»

Esta noite cairão mais bombas em Dover, Roma e Pequim.Navios flamejantes despenhar-se-ão no fundo dos oceanos. Os

judeus de Varsóvia acordarão a meio da noite, com barrigas aborbulhar de fome, ouvidos à escuta das botas da Gestapo. Rebeca,contudo, aproveita a clarividência para decidir que não escreveráelegias ou réquiens, que não será capturada como o pai, nem sematará como a mãe.

«Sim», diz ela, sabendo que existem piores razões para casar doque a sobrevivência.

Quarta-feira, 24 de julhoChegar de fato de linho branco e chapéu de palhinha a uma festa

black tie já seria uma brecha na coerência de um homem quegarante discrição aos clientes. Que a festa aconteça na propriedadeonde viveu até aos catorze anos — e à qual não tinha voltado atéesta noite — aumenta a sensação de deslocamento com que essehomem evita os smokings e os vestidos de noite espalhados pelojardim. Para o anfitrião, ele será ainda o filho do caseiro e da criada,embora os concierges dos hotéis, os agiotas do casino e váriosmaridos em apuros testemunhem a favor da extrema sofisticaçãodos seus serviços. O cartão que entrega aos clientes diz «InácioCapote».

Decide evitar a porta principal da mansão. Escolhe a entrada deserviço, nas traseiras, que tantas vezes atravessou para encontrar amãe a lavar a tijoleira da cozinha. Sabe de cor o caminho quepercorre sem tirar o chapéu. Diante da porta dupla da biblioteca,olha para o relógio de pulso — pagamento de um serviço recente.Está dois minutos adiantado. Bate na madeira e dizem-lhe paraentrar. Inácio Capote abre a porta, a corrente de ar traz-lhe o cheirodo oceano no outro lado da estrada. As ondas que batem contra asrochas despertam no seu corpo um reflexo condicionado por todasas noites em que adormeceu num quarto minúsculo, na vivenda doscaseiros, com a canção de embalar da rebentação na Boca doInferno. Avança para a varanda, onde o espera Nuno Athaíde, tãocasualmente solene no seu traje escuro como um príncipe herdeiroque prefere os bailes de salão às obrigações do trono. Tem a seulado a irmã mais nova, Madalena, de turbante negro debruado aprata. Luvas e um véu da mesma cor. Cabelo loiro e olhos azuis. Napele, entre o pulso e o cotovelo, revela-se o domínio que ela temsobre o corpo, o perfeito equilíbrio da tentação. Há mulheres quenão precisam de se mostrar ou esconder.

Inácio Capote tira o chapéu de palhinha. Apesar da certeza dosgestos de profissional, ali convocado pelos seus talentos e recursos,este encontro tem reminiscências da infância em que removia oboné sempre que estava na presença dos donos da casa.

«Quando te vi com essa roupa, pensei que fosses o vendedor de

gelados», diz Nuno, recorrendo ao mesmo género de escárnio comque se recusa a jantar num restaurante sem uma boa carta devinhos.

«Boa noite», diz Inácio Capote, estendendo a mão a Nuno. Sente-lhe os dedos finos e macios, confirmando a sua superioridade físicade ex-presidiário sobre o playboy endinheirado da Costa do Sol.«Não me avisou que havia uma festa.»

«O excelso Francisco Rolão Preto tomou posse esta manhã comonovo presidente do Conselho, estamos a celebrar. Para a próxima,arranjo-te um smoking.»

«Obrigado, depois deixo-lhe as minhas medidas», diz InácioCapote, sorrindo e ciente de que, tantos anos mais tarde, Nunoreproduz ainda o pedantismo do rapaz apaparicado pelas criadas.Da sua infância, Inácio Capote lembra-se de um Nuno caprichoso everbalmente cruel, que praticava os tiques de classe com sentido depalco, por vezes órfão de mãe a pedir atenção, outras MariaAntonieta sugerindo que o povo faminto comesse bolos à falta decarcaças. Mas, agora, percebe que o primogénito dos Athaíde érefém da personagem que criou. Nas festas, na coleção de carros,na fleuma com que zombou do fato de linho branco, Inácio Capotevê uma personagem que não consegue representar outro papel.Nuno cristalizou-se no rapaz a quem, aparentemente não faltandonada, falta o mais importante. A sua birra é uma sentença perpétua.

Quando pega na mão de Madalena Athaíde e simula um beijo naluva, Inácio Capote é mais do que apenas o filho do caseiro.

«Nana», diz, evocando as tardes em que caçavam lagartixas nopinhal e visitavam as cavalariças onde estavam proibidos de entrardesde que um coice na cabeça do moço de estrebaria o chutarapara um manicómio na capital. Ou a tarde em que Madalena sofreuum ataque epilético nas dunas e Capote a carregou ao colo,recebendo os louvores das criadas e um par de sapatos dospatrões. Essa impressão de perigo e liberdade, cujo pináculo foiatingido com os mergulhos dados com Madalena na piscina vedadaaos empregados e à sua prole, tinha valido a Inácio Capote umaslambadas do pai, mas deixara nele algo vívido e sensorial, como

quando despertava de um sonho e se mantinha nesse estadoonírico ao longo das primeiras horas da manhã.

«Já ninguém me chama Nana», diz Madalena.Três pancadas na porta da biblioteca seguidas pela cabeça do

mordomo a anunciar a chegada de um convidado.«Está na hora», diz Nuno, entrando em casa para saudar o conde

de Zollern.Madalena sai da biblioteca e Inácio Capote examina a divisão. Um

homem de barba grisalha está sentado numa poltrona. Atrás dele,um guarda-costas, cujo pescoço taurino parece empenhado emestraçalhar o nó da gravata. Em inglês, Nuno Athaíde apresentaInácio Capote ao conde de Zollern e vai fumar para a varanda.

«Sente-se, por favor.» Traços de alemão no sotaque doaristocrata. «Foi-me transmitido que o senhor Capote é fluente eminglês. É um idioma simples e direto, apropriado para conduzirmoseste encontro, que urge em tempo e eficiência.» Inácio Capotesenta-se na outra poltrona. O corpo afunda-se num suspiro de courovelho e rachado. «Também me informaram de que a sua natureza elabor o impedem de ceder à sentimentalidade e aos juízos moraiscomuns aos seus compatriotas», diz o conde. «Posso esperar,portanto, que os nossos negócios sejam tão honestos comosigilosos.»

«O senhor apresenta-me um problema. Eu resolvo esseproblema. Se algum dia nos cruzarmos na rua, somos apenas umpar de estranhos que se cruzaram na rua.»

O conde de Zollern já era adulto na viragem do século, fala egesticula com a temperança de quem cresceu num mundo semcarros e aviões, só lhe falta uma bengala e um monóculo para estarnum clube social de Viena, comentando as infidelidades conjugais eas traições políticas na corte do imperador.

Capote fica a saber qual o problema que precisa de solução.Pergunta se um pagamento não bastaria para que o conderecuperasse o que lhe foi levado.

«O indivíduo em questão não carece de fundos.»Capote olha para o guarda-costas, sugerindo uma segunda via.«Isso tão-pouco, senhor Capote. Além de abastado, o indivíduo

em questão é um selvagem. Responderia à violência com maisviolência. Sou um estrangeiro no país dele. Para mais, um país emsobressalto. Não conto infringir a lei. Nem reagir primitivamente comrepresálias.»

Inácio Capote faz perguntas e recolhe os dados necessários parainiciar o seu trabalho. Acertam-se os honorários. Reforçam-se osvotos de presteza e silêncio. No andar de baixo, alguém faz umbrinde a celebrar o novo presidente do Conselho, aplausos eassobios. Copos ao alto. Os estilhaços da festa perturbam o conde,evidenciam as suas reservas quanto à natureza humana:

«Durante a revolução francesa, dizia-se que só comendo um dedodo pé, logo de manhã, não se encontraria nada mais nojento noresto do dia.»

Talvez o conde, acostumado a conversar com homens poderosossobre negócios e política, se refira à morte de Salazar e à guerra naEuropa, a segunda que testemunha em pouco mais de vinte anos.Talvez a felicidade naquela mansão desmereça o seu infortúniofamiliar. No adeus, tal como na apresentação, não desiste de ser ocavalheiro que, recusando as improbidades do presente, estádisposto a enfrentá-las com os princípios do passado:

«Eu não me importo de comer um dedo do pé, senhor Capote,desde que seja pelos motivos certos.»

O guarda-costas abre a porta e acompanha o conde. InácioCapote deixa-se ficar na poltrona. Prefere não ser visto em públicocom os clientes.

«Temos outro negócio para fechar», diz Nuno, regressando davaranda. «Bebes alguma coisa? Laranjada, um copo de leite?»

Uma hora mais tarde, Inácio Capote abandona a casa tãoimpercetivelmente como entrou, deixando para trás os metais e abateria de uma banda a tocar no jardim.

«Nana», volta a dizer quando dá com Madalena sentada aovolante do seu carro. Ela faz-lhe sinal para entrar pela porta dopassageiro.

«Vi-te em palco há uns tempos», diz ele.«E não me foste levar flores ao camarim?»«Prefiro cinema.»

«És um vândalo.»«Para dizer a verdade, fui espreitar os camarins. Mas a fila para

os autógrafos era muito longa.»«Se tiveres uma caneta e um papel, tratamos disso.» Inácio

Capote entrega-lhe um bloco de notas e uma Parker. Madalenaescreve e arranca a folha. «Também faço cinema. Comédiaspopulares. Talvez sejam mais do teu gosto.»

«Só vejo filmes de gângsters e caubóis.»«E eu que pensava que viver no estrangeiro instruía as pessoas.»O recorte dos ombros nus de Madalena no vestido decotado. Uma

madeixa de cabelo loiro presa entre a orelha e o turbante. Um denteterrorista, encavalitado ma non troppo, o suficiente para a fazertravessa sem lhe desfear o sorriso. A disputa de palavras querecorda Inácio Capote das picardias que tinham em criança. Talveza luta de classes se expresse melhor numa cama. Talvez a ideia deconsumar a sua primeira paixoneta, tantos anos depois, sejatambém a desafronta do filho do caseiro que já foi anarquista. Oupode ser que Inácio Capote, com trinta anos acabados de fazer,responda como qualquer outro homem descomprometido que gostade mulheres bonitas e do empolgamento da sedução. Pousa oindicador na pequena cicatriz entre as sobrancelhas de Madalena.

«Foi sem querer.»«Isso não é um pedido de desculpas.»«Claro que é.»«E nunca me agradeceste.»«Não devo nada a ninguém.»«Malcriado.»«Nem todos tivemos aulas de etiqueta com madames francesas.»«Se o meu pai soubesse que me tinhas dado uma pedrada

naquela tarde, o que é que te acontecia?»«O teu pai está morto e o meu também.»«Onde é que aprendeste a cortejar uma mulher? Na prisão?»Inácio Capote debruça-se para a beijar. Ela recua, deixando-o tão

pendurado como o homem que perde o último comboio da noite.«Quando parares de ser cretino, convida-me para sair.» Madalena

enfia a folha de papel no bolso do casaco de linho e diz: «Ficas

melhor de branco do que eles todos de preto.» Madalena sai docarro e regressa à festa na mansão. Inácio Capote passa para obanco do condutor. O mar que bate nas rochas, no outro lado daestrada, é o mesmo que levou o cadáver do pai. Mas essaconstatação não o impede de responder ao puxão físico dos ombrosbrancos, do cabelo loiro e da boca vermelha de Madalena. Eros eThanatos, pensa ele, depois de ler o bilhete que ela lhe deixou nobolso.

Sábado, 27 de julhoOs americanos têm uma palavra para aquilo que faz Inácio

Capote: fixer. O facilitador. O que resolve e providencia. Omercenário das insuficiências dos outros. Tudo executado com osigilo de um mordomo à paisana. Por vezes, a troco de umapercentagem — basta-lhe ajudar um refugiado a vender umautomóvel ou uma pulseira de diamantes. Mas, se necessário, podevaler-se da intimidação para reaver documentos ou inutilizar umchantagista. Hoje, para que tudo funcione, Capote começará porexpor o medo de um par de personagens secundárias, os primeirospassos do estratagema que começou a engendrar após o encontrocom o conde. Diz-lhe a experiência que a luxúria e a ganância sãoas principais motivações de quem requisita os seus serviços. Masnada deixa alguém tão dependente do seu engenho como aprivação da liberdade.

Os dois judeus de prestígio, que chapinham no mar da Praia doTamariz, escapuliram-se da França ocupada e esperam a reaberturadas fronteiras a fim de embarcar para a América. PeggyGuggenheim é a milionária vagamunda do modernismo e daboémia. Passou a década de trinta a colecionar arte no seuapartamento parisiense e pintores na cama. Norte-americana,descendente de asquenazes, recebeu o primeiro milhão de dólaresquando o Titanic atropelou um icebergue e o seu pai foi comidopelos peixes do Atlântico Norte. O quarto onde se hospedou, numhotel no Estoril, está repleto de quadros e malas com roupa.

O companheiro de viagem, Max Ernst, artista plástico alemão,vivia em Paris até ser preso e enviado para um campo deinternamento em França. Com ajuda de amigos influentes,conseguiu ser libertado. Semanas mais tarde, foi detido pelaGestapo, escapando mais uma vez. Tal como a amiga Peggy — «Etalvez amante», disse um bagageiro do hotel a Inácio Capote —,Max Ernst é um libertário do sexo e do romantismo multiamoroso.Viveu numa relação a três, com outro pintor e a mulher deste. EmPortugal, o estilo de vida dos judeus Peggy e Max deixa-osvulneráveis à fiscalização da moral e dos bons costumes.

No paredão da praia, Inácio Capote vê o cabo-de-mar munido de

apito e régua, junto das barracas de pano, procurando aqueles quedesrespeitam o código dos trajes de banho. É o minotauro da épocabalnear, com pernas desfocadas pela vibração do calor e camisa demarujo.

Peggy, um motim de cabelo negro e encaracolado, veste um fatode banho com calções mínimos, fulvo como um girassol de VanGogh. Max, que todas as manhãs puxa o penacho de cabelosbrancos da têmpora para tapar o cocuruto, tem o penteado desfeitopelas ondas. Peggy é carne e tesão. Max é ossos e surrealismo.

Quando o cabo-de-mar sopra o apito, Peggy caminha para aareia, pernas roliças e ombros escaldados do sol. Mais curiosa doque obediente, a amiga de Picasso e Duchamps dirige-se aoindígena de bigode e farda branca. Max mantém-se na água, um péno fundo do mar e outro apontado para a América, estimando se anova etapa da perseguição aos judeus será feita a nado.

O cabo-de-mar mostra a régua a Peggy e explica-lhe, sem queela perceba, que a escassez de tecido do fato de banho infringe alei. Max é chamado pelo apito e todos se deslocam para o paredão,onde Inácio Capote entra em cena, oferecendo-se para traduzir eresolver o problema. Em inglês, informa o casal que, sendo elesestrangeiros, a identificação tem de ser feita na esquadra, por umespecialista, porque há muitos passaportes falsos em circulação.Em nome dos portugueses civilizados e tolerantes, pede desculpapelo tratamento, terá todo o gosto em ajudá-los.

Na esquadra, Peggy e Max ficam encerrados no forno de umasaleta sem janelas. Três horas mais tarde, Capote aparece comcopos de água e, apologético como um filho dirigindo-se aoscobradores do pai defunto, explica que se sente envergonhado deviver num país tacanho. Diz que tentou tirá-los dali, aproveitando-seda reverência que, por norma, os portugueses mostram com genteimportante como eles, estrangeiros renomados do mundo das artes.Mas, desde o atentado a Salazar, a Polícia recebeu diretivas paraser mais zelosa com os judeus.

«O que é que eles querem?», pergunta Peggy, perspicaz pornatureza e pela experiência das noites passadas em bares deartistas que lhe pediam dinheiro emprestado.

«Querem ser pagos», diz Inácio Capote. «Ofereci-me paraadiantar o dinheiro, mas receio que, ao revelar a identidade dosenhor Ernst, despertei neles uma ilusão de fortuna fácil.»

«Por ser um judeu alemão? Querem extorqui-lo para não serdeportado?»

«Por ser um artista conhecido. Querem que o senhor Ernst lhesfaça um desenho e o assine.»

Peggy funga perplexidade. Mais uma história para as obrascompletas e rocambolescas das suas aventuras europeias.

«Nem pensar. Quero falar com a Embaixada americana.»Max levanta a mão fina e ossuda, o instrumento do seu talento e

libertação. Na longa história de artistas paupérrimos, mortos defome, em campos de trabalho, enterrados em valas comuns,quantos tiveram a oportunidade de salvar a vida com a sua arte?

«Traga-me papel e um lápis, por favor.»Horas mais tarde, diante do casino, aproveitando a sombra de

uma palmeira, Inácio Capote aponta no caderno de despesas ovalor pago aos polícias e ao cabo-de-mar. Tem na cabeça o chapéucor de café com leite, a condizer com o fato, e leva uma pasta emcouro, onde guardou o corvo desenhado por Max Ernst. Dá umagorjeta ao porteiro do casino e outra à rapariga dos cigarros. Vai nadireção dos escritórios, afastando-se da banda sonora da sala dejogo. O tiquetaque da roleta, fichas atiradas para o pano verde, ogritinho alcoolizado de alguém que ganhou aos dados. A secretáriadiz-lhe que pode entrar e Inácio Capote é recebido por um fragranteaperto de mão. O diretor do casino, sempre encharcado em água-de-colónia, é pintor nas horas livres. Cobriu as paredes do escritóriocom as suas aguarelas e as fotografias onde aparece emproado esorridente junto de uma coletânea de celebridades internacionaisque já visitaram o Estoril.

«Este é novo», diz Inácio Capote, apontando para o quadro deuma paisagem marítima. «Faz-me lembrar as praias de Gauguin.»O diretor, que diz ter «o bichinho artístico», e para quem a arte é acartola no fraque do gestor de negócios, também se interessa porequitação, música, ténis e corridas de carros. Mimetiza o estilo devida das pessoas que, não fosse a sua posição no casino, só

conheceria dos jornais e do cinema. «Sem dúvida, faz-me lembrarGauguin», diz Inácio Capote. «Já pensou em fazer umaexposição?» Capote entrega a pasta de couro ao diretor. «Talvezisto o inspire.»

«Um presente?»«Não, um negócio.»No parque de estacionamento do casino, Capote abre a porta do

carro e liga o rádio. Encosta-se ao capô com um sorvete de gelo,sabor a laranja. Escuta uma música francesa, acordeão e violinos, avoz de uma mulher que ele não entende, mas que o leva a pensarnum quarto de hotel ao fim do dia, ventoinhas de teto e o mar aofundo. Capote suga os corantes e o açúcar do gelo — a infinitudedas tardes de verão derretendo-se na sua boca. Maresia, luz, fruta,brisa, a alça de um sutiã capitulando nos seus dedos antes queanoiteça. O êxtase de Capote é sabotado pela água-de-colóniaagoniante, do diretor do casino, que lhe ficou na pele após doisapertos de mão. Uma nuvem mal-intencionada enturva o sol. Oparque de estacionamento é uma faixa de sombra, um breveprenúncio de chuva e tristeza. Ele senta-se ao volante e abre ocaderno para verificar um endereço. Antes de arrancar, desliga orádio e atira pela janela o gelado que lhe sabe ao perfume do diretordo casino.

——•——Inácio Capote, urbanita e detrator da vida no campo, não se

impressiona com a beleza do mato em Sintra. O microclima da serraderramou farrapos de nevoeiro nos galhos das árvores e no telhadoda mansão cor-de-rosa atrás dos muros altos. Nenhum disparo deluz solar foi capaz de transpor as nuvens. Não há claro nem escuro.As folhas, os pássaros, os portões de ferro — tudo gris, a cor deuma humidade crónica. Um pastor-alemão ladra assim que InácioCapote abre o portão e os sapatos rangem na gravilha. O cão pulade mandíbula aberta, até ser puxado de volta pela corrente queassobia ao longo de um cabo de aço com vários metros. O cãocorre, salta, sente o esticão na coleira. Uma e outra vez. Um animala ser animal. Capote não aprecia a honestidade da Natureza. Nãose pode corromper um castanheiro ou burlar um esquilo. Já o Homo

Sapiens julga-se o apogeu da evolução. E Capote prospera comessa prosápia.

«Benito, cala-te», grita Ricardo Melo, na varanda do primeiroandar, segurando uma bebida, enfiado num roupão de seda roxa,aberto para revelar o fio de ouro emaranhado nos pelos do peito.Ricardo atira o copo, que se estilhaça no muro e liberta no ar daserra um hálito de terceiro uísque do dia. O pastor-alemão foge paraa casota. «Esse só gosta de loiras», diz Ricardo. «Trouxeste aquiloou nem vale a pena abrir-te a porta?»

Inácio Capote tira um envelope do bolso e mostra-o no ar.«Muito bem. Quando é que posso lá ir?», pergunta Ricardo, que

acabou de chegar aos trinta anos, olhos verdes e pele morena,corpo seco e definido, o sultão no seu califado. Desde jovem que oexotismo dessa beleza lhe abriu portas e fechos de vestidos,germinando nele uma vocação para amante compulsivo e umdesdém pelo trabalho. Quando seduz uma mulher, diz-se hedonista.Com os amigos, apura a filosofia dos clássicos a um só princípio:Putas e vinho verde.

«Se quiseres, podes ir já esta noite», diz Capote.«Espera um minuto, vou descer.»O pastor-alemão sai da casota e ladra, ouve-se o escarafunchar

metálico da corrente no cabo, o puxão que faz estremecer o espaçoque o separa de Capote. A porta de casa é aberta e, ao ver amulher loira, que não acabou de vestir o casaco — uma manga combraço, a outra vazia e mole, de fantoche —, o cão deixa de ladrar.

«Eu não disse que o estupor do bicho só gosta de loiras?», dizRicardo Melo, segurando o braço da rapariga.

«Fräulein.» Inácio Capote leva uma mão ao chapéu, tem oenvelope na outra.

«Deixa-me cá ver isso.» O verde dos olhos de Ricardo é absinto emanipulação no sangue das raparigas. Mas Capote só vêmalandragem e um prazo de validade. Na melhor das hipóteses,prevê mais dez anos de diletantismo, até que o bon vivant esmifre aherança e o fígado falhe. Capote entrega a moeda de troca pelaloira. O bilhete perfumado, no interior do envelope, confirma a

autoria da assinatura. Ricardo larga a filha do conde de Zollern ebate com a porta, só tem olhos para o cartão do diretor do casino.

«Vamos, Constanze», diz Capote, em inglês. Podia explicar-lheque a paixão quase sempre é um logro, um delírio que prosperacom a credulidade dos ingénuos e que infantiliza os adultos.Entorpece a razão. Deturpa as evidências. Podia dizer-lhe que osexo também é parte dessa falácia e que Ricardo tem o livro deinstruções das raparigas impressionáveis, que muda de namorada acada mês. Se o conde esperasse mais uns dias, nem precisaria depagar a um facilitador para ter a filha de volta. Capote também podiaacrescentar que ninguém morre de amor, que os desgostosfortalecem o caráter, que os corações podem ser montados eremontados como um relógio. Mas não lhe pagam para reconfortardonzelas enamoradas de patifes. Diz apenas: «Eu depois venhobuscar as suas coisas.»

Às nove da noite, Inácio Capote entra no saguão do Hotel Palácioa caminho da infinitude das tardes de verão que imaginou durantetodo o dia. O quarto com as janelas abertas. A ventoinha no teto. Aalça de um sutiã antes que anoiteça. Madalena está imersa na águada banheira, o cabelo ainda com o cloro da piscina do Tamariz, ondefoi nadar.

Capote atira o casaco para cima de uma cadeira e desabotoa acamisa. Ela levanta-se para o receber. Pingos escorrem-lhe pelopeito, o cabelo longo e molhado, a nuca manobrada pela mão dele,que a puxa para si. Na banheira com pés de cobre, Madalena estáuns centímetros mais alta, boca a boca com Capote. Encosta-lhe osmamilos à pele suada. Primeiro passa-lhe a mão pela braguilha,depois desaperta-lhe o cinto e procura o calor da ereção.

«Pensei que não vinhas», diz Madalena, como se dissesse«Tinha a certeza de que vinhas.»

Anoiteceu e o quarto cheira a sexo. A rua entra pela janela aberta,sensória e quente: a relva do jardim do hotel, o iodo dos rochedos, agasolina dos carros na marginal. Madalena adormeceu nua, debarriga para baixo. Capote observa-lhe o declive das costas, antesdo promontório das nádegas. Pensa que, caso fosse artista, ao jeitode Max Ernst, definiria o que sente agora como inspiração ou furor

criativo. Levanta-se da cama com cuidado, para não a acordar, e vaipara junto da janela. No outro lado da rua, áleas de palmeiras epinheiros, a geometria das sebes. No topo do jardim do Casino estáo edifício branco, moderno, cujas enormes janelas, com vista para ooceano, são biombos de luz espelhados no lago artificial. Lá dentro,já se encontrará Ricardo Melo, sentado a uma mesa de bacará oude black jack, talvez diante do crupiê a quem, há seis meses,agrediu com um copo depois de perder as últimas fichas. No bolsodo casaco, Ricardo tem o bilhete do diretor do casino que, após alonga proibição, lhe permite entrar nas salas de jogo.

É possível que Max Ernst e Peggy Guggenheim estejam nus numquarto de hotel. Os cabelos endurecidos pelo sal da praia, umapomada para pacificar o escaldão dela. Mas nada — nem pomadas,nem álcool, nem sexo — apazigua a pressa que Max tem para sairde Portugal. Debaixo da cama, nos armários, encostada ao papel deparede, está uma fortuna em telas empacotadas. Paul Klee, Miró,Chagall, Magritte, Dalí. Sobre a cama, ela pendurou uma fotografiade Man Ray, que faz corar as empregadas e perturba a atenção dosbagageiros. É uma mulher nua, sentada sobre os calcanhares einclinada para diante, no ato submisso da oração. Peggy quer ir aobar do hotel. Max pediu que lhe trouxessem o jantar à suíte. Estanoite dormirão em camas separadas.

Na sua casa com quintal e um pedaço de horta, o diretor docasino mostra à família o corvo desenhado a carvão, aponta para aassinatura de Max Ernst e dá uma palmada nos dedos do filho queprocura tocar no bico negro do pássaro. Falsifica uma intimidadecom o artista que, diz ele, lhe ofereceu aquela obra em pessoa, eacrescenta que Ernst lhe confessou ter uma obsessão por aves.Mas a vaidade nem sempre significa estupidez. O diretor vaiesconder o desenho, talvez precise de o vender caso a guerrachegue a Portugal. Ou se algum dia desarvorar com uma amanteque ainda não tem.

Um quilómetro a oeste da janela onde Inácio Capote ausculta omundo dos outros, Constanze fechou-se numa suíte do HotelAtlântico. Três pisos mais abaixo, o pai janta no restaurante com umdiplomata. Constanze imagina o seu corpo a saltar da varanda, o

desgosto do conde no funeral da filha, mas sobretudo as lágrimas, aculpa e o arrependimento de Ricardo, que nesta versão de umatragédia clássica escolheria o suicídio após saber da morte daamada. Em vez de pular pela janela, Constanze pega numa revistade atualidades e moda, inicia a convalescença dos males dedesamor.

«Tenho sede», diz Madalena, ao acordar.Inácio Capote enche um copo com água na casa de banho.

Entrega-lho e volta para a janela.«Quando estava na prisão, trabalhava na biblioteca», diz ele.

«Não era o sítio mais frequentado. Mas havia um cliente habitual.Um inglês, autor de um dicionário, que gostava de inventar palavraspara impressões únicas. Havia uma palavra… Não me lembro qualera, mas descrevia aquele momento em que, numa estação decomboio ou na janela de um quarto de hotel, vemos uma figurahumana e nos damos conta da quantidade de pessoas que, comonós, estão vivas há milhares e milhares de dias. Um universo semfim de humores, jantares de Natal, ressacas, batismos e funerais.Depois pensamos nas pessoas que já morreram e essa impressão éainda maior. Milhões e milhões de vezes que uma mulheradormeceu depois do sexo e um homem foi para a janela olhar oque se passa lá fora e sentiu essa imensidão, sem que, no entanto,a pudesse abarcar ou perceber. Conheces alguma palavra emportuguês que queira dizer isso?»

«Perspetiva?», sugere Madalena, que nos últimos dias não lhetinha ouvido uma conversa séria, um detalhe biográfico, três frasesde seguida. Capote é um carnívoro esquivo. Até agora, tudo entreeles tem sido prazer e descomprometimento. Tensão e alívio. Elachama-lhe o seu namorado de verão.

«Humanidade?», pergunta Madalena. Ele abana a cabeça.«Vida?»

«É mais do que isso.»«Há algo maior do que a vida?»Capote não tem resposta, distrai-se com um grupo de hóspedes,

lá em baixo, a caminho do casino. Cantam e falam alto, são aspartículas do Universo sem fim, vidas que ele nunca poderá viver,

com as quais talvez nem volte a cruzar-se. Desde que saiu daprisão, a ideia de uma existência única oprime-o. Sente-se múltiplo,indominável, sem pais, chefe, mulher, filhos, tudo o que constranja asua liberdade.

«Porque estava preso o inglês que escreveu o dicionário?»,pergunta Madalena.

«Matou o autor de uma enciclopédia. Sabes qual foi a arma docrime? Um compêndio de Gramática.» Inácio Capote sorri,denunciando a mentira, afastando-se do deslize confessional dosúltimos minutos, que ela pode confundir com sentimentalismo, atémesmo amor.

Madalena senta-se na cama, as costas apoiadas na cabeceira,uma perna fletida. Está a perdê-lo, a honestidade foi breve e Capoteé um vampiro prestes a esconder-se antes que a luz do Sol entre noquarto.

«E tu, porque foste preso?»Ele faz o que Madalena esperava. Beija-a para terminar a

conversa. Depois mente-lhe:«Eu estava inocente.»

Domingo, 4 de agostoQuando se afasta do carro e entra na Mata de Monsanto,

Madalena convence-se de que representa mais um papel. Umacurta-metragem sem guião, suportada pelo improviso. Vestiu roupaesgaçada, pôs sapatos rasos e um lenço na cabeça para escondera opulência loira da cabeleira. Escolheu o figurino de umacamponesa numa peça de revista do Parque Mayer. Esfregou asunhas com terra e não toma banho há três dias. Na sua carreira, jáinterpretou Antígona em palco e a jovem tontinha nas comédiascinematográficas. É a estrela do teatro e a querida das colunassociais. Segundo um encenador com quem trabalhou, aabrangência do seu talento vai da puta à santa, da cigana que lê asina à princesa russa violada pelo Exército Vermelho. Madalenapassou a vida de atriz à procura daquilo que é originalmentesentido, em vez da réplica. E agora, que a sua prestação não contacom ensaios nem será premiada com aplausos, a emoção mais cruaé o medo. Espera onde lhe mandaram, atrás dos arbustos, longe daestrada. O chão de capim está raiado pelas sombras dos galhos dasárvores. O silêncio é um rumor de pássaros e folhas, a respiraçãodo mato.

O miúdo aparece nas suas costas. Bicho matreiro, tem a cara dosencardidos há gerações e gerações, ranho a titilar na narinaesquerda, umas jardineiras, a que falta uma alça, sobre o corpo nu edescalço. Faz sinal para que Madalena o siga. Ela observa-lhe ospés fossilizados de trampa e indigência a abrir caminho por entre aspedras.

Minutos depois, a clareira anuncia-se com um cheiro de tachosvelhos e lenha. Espalhados em pequenos grupos, os rostoslevantam-se para Madalena. O miúdo corre para uma das grutas narocha, deixando-a sozinha em cena. Nas suas atividadesbeneméritas, de artista famosa que ajuda os pobrezinhos, ela jávisitou a esqualidez de Alfama e a insalubridade do Bairro dasMinhocas. Mas não sabia que ainda havia gente a viver emcavernas nos arredores da capital. É um acampamento pré-histórico, cozinham-se batatas numa fogueira, a toda a volta umferro-velho de tralha, lonas esburacadas, crias esfaimadas, com

barrigas gordas de parasitas, que se escondem atrás das mães aover a forasteira.

Nos retratos de príncipes e rainhas nos museus, ou nas caras dealguns amigos com brasão de família, Madalena aprendeu areconhecer os sinais da consanguinidade dos aristocratas — esseolhar pós-anestesia cirúrgica, entre o tédio e o atraso mental, a queela gosta de chamar melancolia balofa ao ralenti. Hoje descobre quetambém a penúria se transmite de pais para filhos. Nos homenssentados ao redor do lume, ela vê os olhos fundos e os traçoschupados que, nos próximos anos, hão de secar o que ainda restade brandura no rosto daquelas crianças.

O miúdo que a guiou até ali fala com um homem que sai daobscuridade da gruta. O garoto recebe uma moeda e vai entregá-laa uma mulher sentada na rocha. O homem bate palmas duas vezese a mulher levanta-se, leva o filho para perto do fogo. Madalena échamada por uma mão peluda. O homem, com um fato-macaco deoperário, está demasiado limpo e saudável para viver nas cavernas.A sua roupa de trabalho é um disfarce. No meio artístico, diriam queele tem um rosto de época, esculpido para expressar o estereótipoda masculinidade mais crua — o algoz, o assassino, o mercenário.Olhos e sobrancelhas de um negrume arábico, o nariz achatado porum pai austero ou um cobarde num bar no cais. Uma boca larga quecome, bebe e beija com a mesma retumbância que projeta avibração das cordas vocais. Cada palavra é uma ordem. Madalenaobedece-lhe e aproxima-se. É tão pequena diante dele. Talvez sejaisto que a atriz procurava, o tal âmago de uma emoção, porquenunca, como neste momento, ela se sentiu tão tolhida pelo pavor —do homem, das consequências de ser apanhada ali, ou mais tarde,quando entregar a mensagem que está prestes a receber.

«Diz-lhe que o amigo dos espanhóis o traiu. Diz-lhe que agora aTerra Prometida é o primeiro barco que ele conseguir apanhar daquipara fora.»

Madalena não sabe o que responder, tão-pouco descortina osignificado do que acaba de ouvir. Tenta decorar as palavras. Talvezseja um código. O irmão implorou-lhe que ali fosse porque se

tratava de uma questão de vida ou morte. Para a proteger, contudo,Nuno não lhe poderia contar mais nada.

«Diz-lhe que o amigo dos espanhóis já escolheu os culpados damorte do messias. E que todos irão pagar por isso.» O homem abreo fecho do fato-macaco, pelos encaracolados, uma coronha nocoldre do sovaco, a pistola negra e lascada no cabo. «Se algumavez te mostrarem uma fotografia da minha cara, se nos virmos namesma sala diante da Polícia, tu vais fazer o que Pedro fez comJesus e negar que me conheces. Não três vezes, mas as que foremprecisas.»

Terça-feira, 6 de agostoHá três semanas que Isaías Henriques, nome de código Simeão,

está fechado numa casa de pedra onde não se acende uma veladepois de anoitecer. As janelas e as cortinas mantêm-seencerradas, sufocando as finíssimas tiras de luz exterior que seinfiltram nas divisões e as tingem com uma névoa luarenta. Isaíasliga o rádio à hora combinada. Deixou de ter notícias do outrocomando, escondido numa casa da Serra da Arrábida, e, apósvários dias de silêncio nas comunicações, ouve a mensagem: «Oamigo dos espanhóis traiu-te.» Confirma, desta maneira, que caiunuma armadilha. Entra na cozinha, onde Zebulom conta osenlatados no armário.

«Preciso que me faças uma bomba», diz o comandante Isaías,em francês, inquirindo sobre as reservas de dinamite e de granadas.

«Com que objetivo?», pergunta o judeu húngaro, especialista emexplosivos e mais preocupado com a escassez de comida.

«Temos uma nova missão.»«Qual?»«Faz o que te digo e vai acordar o Levi, o turno dele está a

começar.»Isaías afirma-se um judeu secular, ainda assim, atribuiu aos

partisans os nomes dos filhos de Jacó que deram origem às dozetribos de Israel lideradas por Moisés na fuga do Egito.

Zebulom conhece-o bem, serve de conselheiro da lucidez quandoIsaías troca os planos por um impulso. Também sabe como ocomandante é admirador da verve dos grandes líderes do cânoneliterário ocidental:

«Já não te lembras do discurso de Marco Aurélio no funeral deJúlio César?», pergunta-lhe. «Aos homens sobrevive o mal quefazem, mas o bem é quase sempre enterrado com os seus ossos.»

«Não foi o Marco Aurélio que também disse que é ténue a linhaque separa o resistente do terrorista? Que o insidioso de hoje é olibertador de amanhã?»

«Acho que não.»«Lá por isso, não deixa de ser verdade.»Privado do sol há tanto tempo, e restando-lhe apenas Zebulom e

Levi, o comandante Isaías já não age com a astúcia dos insidiososque se tornam libertadores, mas com a malquerença dosencurralados que levam consigo para a tumba o maior número deinimigos. Fecha-se no quarto e encosta-se à parede, sentado nochão, por baixo da janela onde uma tremulina de luz lhe permite ler.Quando decidiu adotar um nome de guerra e abandonar adiplomacia em troca da coerção pelas bombas, trouxe consigo trêslivros, que leu e releu nas semanas em que esteve escondido nacasa de pedra. O primeiro nem se pode chamar um livro, mas serve-lhe como álbum da infância. Os cristãos-novos em Portugal foipublicado como separata da revista Arqueologia e história, háquinze anos, por Samuel Schwarz, o polaco erudito que salvouIsaías de uma existência limitada numa aldeia beirã.

Schwarz é um engenheiro com interesses arqueológicos eetnográficos. Após ter vivido em diferentes países — fala oitoidiomas —, chegou a Portugal em 1915 para supervisionar as minasde estanho e de volfrâmio no Norte do país. As viagens profissionaislevaram-no a descobrir os cristãos-novos que, havia séculos,praticavam os rituais do judaísmo em segredo e que passaram a serconhecidos como criptojudeus. Entre eles, estava a família de IsaíasHenriques.

O comandante lê as palavras de Schwarz para regressar ao diaem que a avó, depois de muito estranhar que aquele polaco nãoescondesse a sua condição de judeu, lhe pedira que provasse aascendência rezando em voz alta. Schwarz explicou que as oraçõesque conhecia eram em hebraico. Mas os cristãos-novos, queusavam o ladino português nas cerimónias religiosas, desconheciamque havia judeus além daquelas aldeias ou sequer que tinham umalíngua própria. No seu livro, Schwarz escreveu:

«Ocorreu-nos, então, a feliz ideia de recitar a sublime oração deShemah Israel, base da religião judaica, que devia não poucasvezes ter ecoado nas sinistras masmorras da Inquisição e que osmártires judeus balbuciavam, decerto, enquanto exalavam as suasnobres almas nos suplícios e nas fogueiras dos autos-de-fé.

»Notámos, quando pronunciámos a palavra Adonai, que asmulheres tapavam os olhos com as mãos, e ao acabar de recitar a

breve oração, a anciã, que nos tinha convidado a rezar, disse, comautoridade, para as que a cercavam: “É realmente judeu, porquepronunciou o nome de Adonai!” Foi a partir desse momento quecomeçámos a ser tratados como correligionários.»

Nas suas viagens por Portugal, Schwarz notou que, séculos apósas conversões forçadas e os tribunais do Santo Ofício, persistia adiferença entre cristãos-novos e velhos, com desfavor para osprimeiros, ainda chamados de marranos, calmões, useiros evezeiros. Encontrou um libelo escrito, Sentinela contra os judeus, noqual se garantia que os cristãos-novos tinham «uns rabinhos quelhes saem do corpo do remate do espinhaço; outros lançam ederramam sangue de suas partes vergonhosas cada mês como sefossem mulheres». Em Belmonte, o dono de uma loja onde Schwarzcomprava provisões quis convencê-lo a deixar de ser freguês dooutro comerciante da vila. O polaco perguntou-lhe o motivo e ouviua resposta: «É judeu.»

O trabalho de recolha de tradições, ritos e preces dos criptojudeusseria publicado pelo engenheiro ao fim de uma década. Nesseperíodo, e graças a Schwarz, que lhe financiou os estudos, IsaíasHenriques entrou pela primeira vez numa sinagoga, em Lisboa,terminou o liceu na capital e foi estudar Medicina em Paris. Essesforam os anos em que aprendeu que o conhecimento liberta, masque também causa sofrimento.

O primeiro livro que Schwarz ofereceu a Isaías, da sua bibliotecacom milhares de obras, foi História dos judeus em Portugal, doalemão Meyer Kayserling, publicado em 1867. O texto despertou emIsaías um sentimento de continuidade e inclusão. Já não era omarrano oculto e isolado na serra, sabia-se descendente de tribosancestrais que tinham chegado a Sefarad séculos antes dosurgimento dos reinos católicos. Se Isaías era tratado por alguémcomo estrangeiro em Portugal, recordava que Afonso Henriques,filho de uma galega e de um gaulês, escolhera para conselheiro ojudeu Yahia bin Yahia, cuja linhagem ibérica se estabelecera muitoantes da fundação da dinastia afonsina.

O livro de Kayserling retratava outras figuras proeminentes deascendência judaica na corte dos reis portugueses: médicos,

inventores, cartógrafos dos Descobrimentos. Isaías ficou a conhecerAbraão Zacuto, Grácia Nasi ou Garcia de Orta. No entanto, o êxodode todos eles, ao longo do século XVI, ditara o fim de uma era deouro do conhecimento que fora tragada pelo negrume da ignorância,pela insanidade que acometera o Santo Ofício, que chegara aoponto de queimar os ossos de Garcia de Orta quando se descobriuque o brilhante médico, já morto e enterrado havia vários anos, erajudeu.

Apesar das dores e do desgosto, o livro de Kayserling e asconversas com Schwarz permitiram a Isaías compreender que oódio aos judeus era tão fundamental para o entendimento daHistória como a crucificação de Jesus. Não era à toa que lhechamavam civilização judaico-cristã. Os fundadores das primeirasseitas cristãs certificaram-se de que os judeus apareciam nosevangelhos como responsáveis pela morte do carpinteiro nazareno.Para que a premissa fundadora do novo culto vingasse — Jesus erafilho de Deus e o messias anunciado nas escrituras —, seria precisonegar a religião-mãe que não o reconhecia como tal. Quase doismilénios mais tarde, os judeus ainda esperam o verdadeiro enviadode Elohim e o antissemitismo continua a lavrar na Europa. Sempreque alguém fala da crueldade singular das medidas impostas pelosnazis, Isaías ri-se e atesta que, em tudo, Hitler é um embusteiro, aténo plágio dos cardeais dos concílios de Latrão que, nos séculos XI eXII, obrigaram os judeus a viver em bairros separados e a usar umaestrela na roupa.

Isaías arranca a tábua do soalho que descolou há vários dias comum canivete. Tira o caderno com o seu testamento. No topo daprimeira página escreveu: Index da infâmia em Sefarad — Sefarad,esse paraíso terreno mencionado apenas uma vez na Bíblia e queos judeus acreditam ser a Península Ibérica. Só nas páginas iniciaisse permitiu deambulações mitográficas, salientando o antigo vínculoemocional que os sefarditas têm com esta terra. Uns acreditam queTubal, neto de Noé, atracou no vale do Sado após o dilúvio. Outrosdefendem que os primeiros israelitas ibéricos pertenciam às deztribos perdidas de Samaria ou que haviam chegado em barcosconstruídos a mando do rei Salomão.

Daí em diante, o Index da infâmia em Sefarad assume o tom dasalegações finais de um procurador: os massacres de Navarra, em1320, de Sevilha, Córdova e Toledo, em 1391, ou de Lisboa, em1506; o imposto da sisa judenga, de trinta dinheiros, imposto aosjudeus por causa da traição de Judas; os ditames eclesiásticos que,desde os primórdios dos reinos católicos, atribuíam mais valor aotestemunho de um cristão, em tribunal, do que à palavra de umsefardita; a geringonça ilógica da condenação da usura, queestabelecia que os cristãos estavam proibidos de emprestardinheiro, deixando essa atividade suja aos judeus, o que levouIsaías a escrever: «Os papas e os reis hipócritas pediam dinheiroemprestado para as suas guerras e catedrais, mas abominavam osprestamistas, ao modo de um comensal que se delicia a comer umjavali enquanto insulta o caçador pelo bem que lhe sabe a carne emsangue.»

No Index da infâmia em Sefarad há menções ao judeu cobarde,cão e sodomita do teatro de Gil Vicente; à tradição dos ataques àsjudiarias portuguesas durante a Semana Santa; à extorsãomonetária de Dom João II aos que fugiam da Inquisição espanhola erogavam entrada em Portugal — judeus a quem foram retirados osfilhos até aos 10 anos para trabalhar em São Tomé, como relataKayserling no seu livro: «Muitas mães imploravam permissão paraacompanhar os entes queridos. Uma mulher agarrou o filho junto aopeito, atirando-se, desesperada, do navio ao mar, afogando-seambos (…) A ilha de São Tomé era uma selva perfeita, habitada porjacarés, cobras, lagartos e criminosos deportados por D. João. Amaioria dos meninos e meninas morreram nos navios ou foramdevorados depois pelos crocodilos e animais selvagens.»

Isaías escreveu no seu caderno sobre o fecho das sinagogas,sobre os cemitérios judeus convertidos em pastos e o confisco detodos os livros religiosos a mando de Dom Manuel. O rei portuguêsoferecera aos judeus duas opções: converter-se ou sair do país,embora lhes tenha arrebanhado os filhos, batizados à força, demaneira a dissuadir os pais — valiosos pelo seu dinheiro, pelo seuconhecimento — de abandonar Portugal.

Isaías copia um parágrafo dos escritos de Samuel Schwarz para o

caderno:«Foi assim que muitas famílias judias, postas na horrível

contingência de perder os seus filhos, se foram igualmentebatizando. Os outros, um punhado de bravos, insensíveis a tantasdores e violências, recusando abjurar a sua fé, dirigiram-se porordem do rei para a capital, com a promessa de que, emconformidade com o decreto de expulsão, lhes seriam fornecidosnavios para os conduzir a África. Mas assim que estes desgraçados,que eram vinte mil, chegaram a Lisboa, foram encerrados noacampamento do Estaos, onde, constrangidos pela fome e pelaviolência, se suicidaram e pereceram muitos deles, sendo ossobreviventes arrastados como feras, pelas barbas e pelos cabelos,às pias batismais.»

Os nazis não tinham inventado nada. Expulsão, confisco de bense anulação da nacionalidade? Impedimento de ocupar lugarespúblicos e de casar com cristãos? Tudo isso já acontecera aosjudeus nos reinos católicos de Sefarad. O antissemitismo estavacosturado nas raízes da cultura europeia, entranhara-se na psiquecoletiva. Mais do que um preconceito, era uma doença intelectual econspiratória que, latente durante alguns períodos de paz, ressurgiaimplacável nas épocas conturbadas da peste bubónica na PenínsulaIbérica ou da crise económica na Alemanha do século XX. A culpados judeus era de tal maneira antiga, ubíqua e irremissível, que,uma vez acusados de heresia pelo Santo Ofício, os cristãos-novoseram sempre culpados, mesmo que provassem a sua inocência.Para os inquisidores, o delito era racial e hereditário, transmitia-sepelo sangue. Os descendentes de um cristão-novo que tivessemarchado para o pelourinho, no meio de uma chusma odienta que oatacava com pedras e merda de cavalo, recebiam a culpa docondenado e, em qualquer altura, podiam acabar na sala detormentos da Inquisição.

Isaías pára de escrever. A falta de luz, o calor e o ar estagnadoprovocam-lhe o enjoo de uma viagem de carro numa estrada demuitas curvas. Levanta-se e entra na cozinha para apurar em quefase se encontra o trabalho de engenharia bombista de Zebulom. Ohúngaro descasca uma batata mole e engelhada. Vai cozê-la para o

almoço dos três partisans. A acompanhar, uma lata de sardinhas.Levi abriu uma nesga da janela e inala o mundo lá fora: o mar e ocheiro das estevas nas arribas de Sefarad.

«Fecha isso», diz Isaías, que tem a pistola enfiada nas calças.Não a tira dali nem para dormir.

Levi foi recrutado numa aldeia transmontana de criptojudeus. Éum garoto de dezoito anos e poucos estudos, seduzido pela TerraPrometida de Sião, um lugar onde os judeus possam construir oterceiro templo. Tímido e pálido, ninguém imaginaria que Levi,mestre da pontaria entre os partisans, disparou as balas quemataram Salazar.

«E a bomba?», pergunta Isaías.«Mais logo.» Zebulom atira a batata para a água a ferver no

fogão. «Queres almoçar?»«Não.»Isaías abdica da dose que lhe cabe em favor dos homens que lhe

restam. Zebulom aprecia o sacrifício do chefe, embora saiba que ojejum fomenta a insensatez e precipita a impaciência. Se Levisoubesse francês, gostaria de falar-lhe do Isaías estudante deMedicina que conheceu em França, há vinte anos, um rapaz quedescartou as promessas do Marxismo ao ler as palavras «ditadurado proletariado» e que Zebulom acompanhou nas tentativaspacíficas de criar um Novo Israel. Esteve a seu lado em Londres,1934, juntamente com Fritz Seidler e Ernest Meyer, judeus alemãesque procuravam recuperar o Projeto Bravo, concebido no início doséculo. O Daily Herald chegou a publicar que Portugal estariamesmo disposto a receber em Angola cinco milhões de judeus. Oterritório seria administrado pela Sociedade das Nações. O Governoportuguês, ocupado com a consolidação do Estado Novo e oesmagamento dos oposicionistas, apressou-se a desmentir.

Em 1912, a Primeira República tinha discutido no Parlamento,pela primeira vez, o Projeto Bravo. Caso chegasse a ser integradona Constituição, permitiria que milhões de judeus se mudassempara uma área equivalente a metade de Portugal, no planalto deBenguela. Nesse mesmo ano, a Jewish Territorial Organization —uma versão contemporânea de Moisés, que também procurava a

Terra Prometida — enviou uma expedição a Angola, liderada por umcientista, concluindo-se que a colonização do território, de tão difícil,trazia de facto reminiscências da travessia do deserto.

Zebulom esteve com Isaías na Conferência de Évian, em 1938,na qual se procuravam soluções para a crise dos refugiados judeus,debatendo-se a hipótese da criação da Eretz Yisrael no planaltoafricano. Portugal recusou com argumentos que seriam defendidosna edição de vinte e um de novembro do Diário de Notícias, onde seafirmava ser «um erro esquecer que o feliz aumento da nossapopulação nos aconselha a guardar as riquezas que temos paraexplorar (…) nos territórios que descobrimos e colonizámos». Dostrinta e dois países que participaram na Conferência de Évian,nenhum aceitou acolher refugiados judeus.

Em 1939, Zebulom esteve com Isaías em Lisboa. Pediram umaaudiência a Salazar na sequência da proposta do presidente norte-americano. Franklin Delano Roosevelt queria que Portugalrecebesse em Angola centenas de milhares de judeus. Tamanhogesto de compaixão, garantia Roosevelt, elevaria Salazar aopanteão dos heróis da Torá. Os judeus recitariam orações nas quaiso seu nome soaria entre os reis David e Salomão. QuandoRoosevelt foi advertido de que Salazar era professor de Finanças,acenou com um tesouro tributário. O novo Estado africano de Israelteria de pagar aos portugueses um aluguer anual pelo território.Salazar declinou a audiência a Isaías e a oferta de Roosevelt,respaldado por um Reino Unido temeroso de que os judeus, depoisde montarem acampamento em Angola, preferissem mudar-se parao esplendor das colónias britânicas, civilizadas a gim, quinino ehumor depreciativo.

Na casa de pedra, Zebulom entrega a Levi meia batata e umasardinha. Gostaria de falar-lhe do Isaías idealista e ponderado, queà mesa de um bistro parisiense explicava aos sionistas radicais aprioridade de um Estado democrático sobre um Estado étnico oureligioso:

«Ao contrário das falsas promessas dos totalitarismos, ademocracia nunca será um trabalho acabado, mas uma luta diáriapela liberdade e pelo funcionamento equânime das instituições. A

democracia exige compromissos em detrimento de imposiçõesmonolíticas. Não é um fito, mas uma viagem sem conclusão. Nuncapoderemos ser totalmente livres, mas podemos perder a liberdadeque temos. Nunca teremos a democracia pela qual esperávamos enem por isso devemos desistir de a procurar.»

Zebulom gostaria que Levi tivesse conhecido o encanto desserapaz em Paris. Mas o húngaro não fala português e tem umabomba para montar — uma bomba que, suspeita, confirmará amorte do idealista e a ressurreição do vingador.

——•——No liceu, em Lisboa, Isaías libertara-se das máscaras e do sigilo

dos criptojudeus. Mas só na capital francesa desvelou outrosegredo. Nuno Athaíde foi o primeiro a saber conduzir o desejo queIsaías sentia pelos homens. O primeiro não apresentava um gostoespecial em salvar os encalhados da virgindade; o segundo nãoatribuía ao debute romântico um terço da relevância da sua estreia adiscursar num comício de sionistas. Tanto um como outrozombariam de quem alegasse, com um suspiro e uma mão no peito,que não há amor como o primeiro. Ainda assim, sem prejuízo dosamantes a curto prazo de Nuno e do casamento de Isaías com apolítica, essa foi a relação mais duradoura de ambos.

Tal como Samuel Schwarz revelara a Isaías o universo judaicoalém das aldeias ermas de Sefarad, Nuno abriu-lhe as portas dossalões e das festas parisienses. Com vaidade, apresentou-o apolíticos e intelectuais que também dormiam com outros homens.Refinou-lhe o francês e o guarda-roupa, ensinando-o a esconder ahomossexualidade dos que podiam fazer-lhe mal e a usá-la juntodaqueles que a tinham como um passe exclusivo. Levou-o aconhecer a independência mais cabal, que nenhuma ideologia ousistema político alcança — a liberdade do prazer do corpo na cama.

Isaías era o contrário da frivolidade dos comparsas notívagos deNuno. Não se lhe conheciam caprichos e preferia fazer apenas umarefeição por dia a pedir dinheiro ao namorado. De intelecto feérico,encarava o trabalho como o servo modesto de algo maior. Tinhaossos largos, uma robustez no peito e a barba indómita de umrabino guerreiro. Era intransigente e violento com as injustiças do

classismo; sentimental com as crianças, os velhos e os animaisferidos. Para o ver corar como um garoto, Nuno dizia apaixonar-sepor ele de cada vez que o via descompor monsieurs quemaltratavam empregados de mesa. Nuno interpretava estaconfissão amorosa com a mordacidade de um beicinho, fazendo-sepassar pelo satirista que sacaneia o simplório. Era assim queocultava, o melhor que podia, a satisfação de ter na simplicidade deIsaías a única coisa de que não se fartava.

Mantiveram uma relação durante vinte anos. Nunca viveram namesma casa, sequer se prometeram uma fidelidade de matrimóniocatólico. Por vezes, o espírito dionisíaco de Nuno distanciava-o dadisciplina apolínea de Isaías. Nuno queria levá-lo para um mês deférias na Côte d’Azur. Isaías queria fundar um país. A política erainimiga do ócio. A boa vida não se coadunava com a frugalidade.

Em algumas ocasiões, o menino rico enfadava-se com osmeandros do pensamento do menino pobre. E, para chamar aatenção, dizia-lhe coisas como: «Os fascistas dão festas maischiques, mas os comunistas fodem melhor». Ou: «Claro queentendo a angústia dos sefarditas, o meu pai também me quisexpulsar de casa.»

Quando Nuno lhe perguntou porque levava sempre os mesmoslivros nas viagens que fazia pela causa do sionismo, Isaías mostrou-lhe o segundo presente que recebera de Schwarz: Consolação àstribulações de Israel, escrito no século XVI por Samuel Usque, umcristão-novo desterrado em Ferrara que, como tantos outros judeusibéricos, acreditava no regresso, romantizando dolorosamente aterra, o céu e o mar de Sefarad. Os milhares de judeus forçados aoêxodo, todos esses fugitivos da Inquisição, espoliados pelos reis epelos papas, falavam do azeite transmontano e das alfarrobasalgarvias com lirismo e suspiros. Durante séculos, o provérbioladino, Quien no vido Lisboa, no vido cosa bona, passava degeração em geração, tal como as chaves das casas que tinham sidoforçados a deixar em Sefarad. «Imagina que um dia te obrigavam air embora do lugar onde nasceste e sempre viveste», disse Isaías aNuno. «Imagina que tinhas de largar tudo, a tua casa, o teu dinheiro,os teus amigos, até os teus filhos. Imagina que amanhã alguém te

dizia “Tu não és português” e que, por mais que te sentissesportuguês e dissesses que amavas o teu país, que não queriascomeçar do nada num sítio desconhecido, te respondiam “Converte-te, marrano, e muda de amo”, sabendo que o batismo seria apenasa humilhação inicial, que estarias sob constante suspeita, parasempre perseguido e denunciado, tal como aconteceria com os teusfilhos e os teus netos.»

Em agosto de 1939, terminada a Guerra Civil espanhola, Nunolevou Isaías a passar uma semana na propriedade de um aristocrataandaluz, onde Francisco Rolão Preto também veraneava. Apesardas divergências políticas entre o nacional-sindicalista católico e osionista laico, algo mais poderoso os aproximou: o ódio que tinhampor Salazar. Nessa semana, ficavam à conversa até altas horas damadrugada, debatendo pensadores e opondo visões distintas daexperiência humana. Voltavam a discutir na noite seguinte,compelidos pelo raciocínio e pela articulação do antagonista, comose, por fim, depois de anos a discursar para um público mediano,tivessem encontrado um mestre à altura da própria inteligência —alguém que entendia um argumento contrário e era capaz de orebater com a mesma paixão e clarividência. Como músicosvirtuosos a improvisar em palco, esqueciam-se da audiência, e osoutros convidados recolhiam aos quartos por entre piadas quecomparavam o dueto de ideólogos a um par de amantes numromance francês do século XIX.

Discordando e admirando-se em igual medida, nos mesesseguintes trocaram dezenas de cartas, enviavam livros e artigos dejornal pelo correio. Isaías visitou Rolão Preto em Madrid algumasvezes. Os opostos que se atraem tendem a tocar-se. Tanto ointelectual judeu como o nacionalista revoltado ansiavam por umamudança em Portugal. Rolão Preto achava Salazar um oportunista eum burocrata de sacristia, um parasita acomodado no status quo,inepto para liderar uma revolução. Isaías execrava o ditador queprivava os portugueses do progresso mental e que vetara o ProjetoBravo, recusando aos judeus a recompensa de um remendo deterra africana pelas velhacarias impostas aos ascendentessefarditas.

Inimigo do meu inimigo, meu amigo é: Salazar tinha de morrer.Fecharam o acordo com um aperto de mão num apartamento daCalle Espíritu Santo, no bairro madrileno de Malasaña. Contavamcom o medo da guerra e o desconcerto emocional do povo, após oassassinato, para levarem a cabo o plano. Chegado ao poder, RolãoPreto recuperaria o Projeto Bravo, recompensando os sionistas como Novo Israel, em África. Pela morte de Salazar, Isaías receberia,por fim, um país para todos os judeus.

Só Rolão Preto conseguiu o que queria.Anoiteceu e, sem luz do Sol que se esgueire pelas frinchas das

portadas, Isaías não pode ler ou escrever. O jejum e a falta de sonoexacerbam a violência da traição. O intelectual é agora um vingadordescabeçado que deixou de acreditar nas palavras de SamuelUsque: «Vendo-se as pessoas em fadigas, devem cortejar os malesque atrás ficam com os presentes, e facilmente lhes achamconsolação.» O livro, escrito no degredo, serviu muitas vezes aIsaías para serenar a ira e manter a perspetiva. É verdade queUsque fazia uma descrição dos tormentos e das hecatombes dopovo de Israel desde que o mundo é mundo. Mas, ao contrário dasequência de horrores alinhada no caderno de Isaías, Usque nãoprocurava ofensas para justificar retaliações, preferindo lembrar aosseus contemporâneos desterrados que as adversidades do presenteestavam aquém daquelas transpostas pelos seus antepassados.

Com o lápis, Isaías risca duas palavras na capa do livro —Consolação às tribulações de Israel — e sai do quarto. De tantofazer o percurso às escuras, não precisa de palpar os móveis ou asparedes para encontrar o quarto de Zebulom.

«A bomba?»«Não sei o que vais fazer. Mas é uma missão suicida.» A voz do

húngaro, oráculo partisan que já foi professor de História daLiteratura, é ainda mais conciliadora na ausência de luz.

«Não te preocupes, vou sozinho. Sou português das Beiras,passo despercebido.»

«E se não voltares?»«Vêm buscar-te. O Nuno está a tratar disso. Os sionistas

americanos financiaram o plano de extração.»

«Podemos confiar neles?»Isaías entende a pergunta como uma crítica. Também confiaram

em Rolão Preto e têm a cabeça a prémio, há três semanas queestão enfiados num buraco negro.

«Quero a bomba pronta amanhã.»Com a mão sobre a coronha da pistola enfiada nas calças, Isaías

desaparece na escuridão. Não vai dormir a noite inteira,caminhando de um lado para o outro, sussurrando a frase que osseus antepassados convertidos murmuravam ao entrar numa igreja:«Marrano, convertido de nome, mas não de amo.»

Terça-feira, 13 de agostoQuando Nuno Athaíde recebeu a mensagem da irmã, ficou a

saber que o acordo de Rolão Preto («o amigo dos espanhóis») comIsaías era uma trapaça. Ainda assim, transmitiu as palavras pelorádio do sótão sem largar a hipótese de um desenlace feliz. A fugaestava a ser organizada, mais tarde juntar-se-ia a Isaías no destinocombinado. Passados os quarenta anos, estava disposto a trocar airreparável crise de meia-idade por uma aventura transatlântica. Odevaneio foi arruinado alguns dias após o envio da mensagem pelarádio, na manhã em que uma bomba matou vários portugueses naIgreja de São Domingos. O fracasso do plano da fundação de umNovo Israel, a troco da morte de Salazar, descambara numarevanche de Isaías. O desfecho ficou então mais claro: Rolão Pretoqueria todos os partisans mortos e enterrados com o seu segredo.

Nuno pensa escapar a salto pela fronteira espanhola. Projeta-seem cima de um burro, a varar o mormaço e a poeira da mesetaibérica, parando em aldeias onde ninguém o conhece e nas quaisbeberá água fresca, de um cântaro de barro, na casa da viúva deum republicano morto por falangistas. Também se vê capturado pelaSeguridad e devolvido à PVDE numa estrada secundária, junto dafronteira, onde lhe meterão três balas no peito e o cadáver numpoço abandonado. Sopesa alugar um barco que o leve aos Açores edepois para as Bahamas. Mas lembra-se de todas as embarcaçõesafundadas pelos navios alemães e ingleses desde o início daguerra. Não há fuga possível e, conhecendo Nuno a localização doúltimo comando partisan, confessará sem que precisem de ogolpear uma só vez.

Não o abalam dúvidas morais ou arrependimentos. Salazar eraum reprimido e um repressor, está melhor nas orações póstumasdos portugueses do que a governá-los. Nuno nem sequer setranstornou ao saber que Isaías causara a morte de inocentes naIgreja de São Domingos. Guerra é guerra e parece-lhe aceitável alógica utilitarista que defende a prática de um mal menor para lograrum bem maior. O seu amante é um libertador aguerrido, jamais umassassino. As preocupações de Nuno são pragmáticas eindividualistas. Sente-se demasiado velho para continuar a viver

excessivamente, como os artistas a quem tentou imitar o estilomaldito. Falta-lhe o talento e a tarimba de quem já viveu da mãopara a boca. Pushkin morreu num duelo, Caravaggio assassinou umhomem, Hemingway combateu na Grande Guerra. E o que fez ele,além de capotar um carro e ler os poemas dos outros?

Também se sente demasiado novo para passar o resto da vidanum campo de trabalhos de uma ilha africana, caso não morra logonos primeiros meses, desfeito pelo paludismo ou pela disenteria.Talvez os presos políticos do Tarrafal, inquebrantáveis defensoresdos seus princípios, não se importem de perecer de caganeira pelacausa. Mas Nuno Athaíde, cavalheiro que rejeita escatologias, nãotem outras causas que não ele próprio.

Nuno bebe e ouve música durante noite e dia, cheirando cocaínade uma caixa prateada de comprimidos. Por vezes, o vento navidraça ou o estalar de um barrote no teto assustam-no e presumeter chegado o momento. Depois continua a beber, a dançar e acheirar cocaína, preparando-se para o grande espetáculo.

O carro da PVDE chega à mansão com a primeira luz da manhã.Nuno sai para a varanda de modo a receber o público. O agenteGouveia abandona o automóvel e olha para o segundo andar. Comum lençol branco a servir de toga, desatinado pela droga e peloálcool, Nuno caminha como um funambulista no parapeito e recita:«Eran las cinco en punto de la tarde. Un niño trajo la sábana blancaa las cinco de la tarde.»

Gouveia, de mãos nos bolsos e suspiro resignado, é a mulheracordada a meio da noite para ir arrastar o marido bêbedo queapagou na tasca.

«Qual cinco da tarde, doutor Athaíde. Já são quase sete damanhã. Desça lá daí.»

Nuno não vê Madalena enquadrada na janela do carro. Atira olençol para cima de Gouveia. Nu, segura a pistola Luger que certatarde o pai entregou ao caseiro para acabar com a agonia do cãoque comera o veneno das ratazanas. A primeira perda do meninoque tinha tudo. Tenta lembrar-se do nome do cão. Só escuta o ecoda bala que nesse dia rachou o céu. Eran las cinco en punto de latarde. Olha para o mar diante de si: «Lo demás era muerte y sólo

muerte.» Encosta o cano da Luger debaixo do queixo. O cão era umrafeiro, de pelo negro e focinho branco, caçava coelhos e lançava-se das rochas para o mar. Mas como se chamava? A bala quematou o cão faz ricochete no tempo e fende o espaço. Escuta-seoutra vez na mansão, ao longo da costa, ressoa nas copas dospinheiros da casa. Nuno cai da varanda e Madalena tenta abrir aporta trancada do carro. Os gritos embaciam o vidro, têm o som dascoisas que submergem, as últimas palavras de um afogado.

Gouveia olha para o colega dentro do automóvel.«Barbosa, não a deixes sair e anda cá.» Com o lençol, cobre o

cadáver.Barbosa aproxima-se e consegue sugar um fiozinho de carne

preso nos incisivos desde o jantar da noite anterior. Cospe-o para ochão antes de escrever o epitáfio do morto:

«Porque é que as bichas são sempre tão dramáticas?»

Quarta-feira, 14 de agostoInácio Capote não se estreia numa sala de interrogatórios.

Conhece bem a preferência dos polícias pela decoraçãominimalista: uma mesa, três cadeiras, o ar decomposto e quente deuma divisão sem janelas, a memória odorífera do medo dos que jáali estiveram, a fotografia do presidente da República na parede. Nooutro lado da porta, o estertor das máquinas de escrever e ascampainhas dos telefones. Vozes de repartição pública, umanormalidade burocrática que não esconde a atmosferafuncionalmente sinistra do edifício-sede da PVDE. O agenteGouveia definiu este encontro como uma conversa de rotina, masninguém entra aqui pela primeira vez sem questionar o que seesconde atrás de cada porta fechada, quais destes funcionários deescritório são verdugos de alto gabarito assim que se roda o trincoda fechadura e se baixam as luzes. Inácio Capote escusa-se deprojetar o que acontecerá caso seja levado para uma dessas salasonde nem os anos que passou na prisão lhe serviriam de recruta.Concentra-se no desempenho das suas respostas.

Instalado o silêncio da coação, Gouveia levanta por fim os olhosda pasta aberta em cima da mesa. Bate duas vezes no tampo com oindicador amarelo de tabaco. O polícia-juiz que martela o início daaudiência.

«Como define a sua relação com a senhora Madalena Athaíde?»«Somos amigos.» Inácio Capote aplica os ensinamentos que, em

ocasiões semelhantes, lhe permitiram sair de outras salas pequenase sem janelas, com outros Gouveias, que falavam outras línguas.Respostas curtas, verdades que omitem, mentiras que são meias-irmãs dos factos.

«Que tipo de amizade?»«Do tipo que têm as pessoas adultas e solteiras e que, como o

senhor agente concordará, um cavalheiro não deve comentar.»«Eram noivos, portanto?»Capote não achava Gouveia capaz de subtilezas e ironias.

Subestimou a toupeira de lentes grossas que o interroga, deixou-seenganar pelas feições de contabilista em corpo de matarruano.

«Não diria noivos. O senhor percebe.»

«Percebo? Porque não me explica?»Inácio Capote não puxa de um cigarro nem procura divergir,

navega nas margens da verdade, segundo a qual Madalena nãoconhece, de facto, nada que o possa comprometer.

«Somos amantes há coisa de menos de um mês. Estivemosjuntos umas quatro ou cinco vezes.»

«Mas consta que se conheciam desde pequenos, que os seuspais trabalharam para a família Athaíde.»

«Isso foi noutra vida. Estivemos quase vinte anos sem contacto.»O agente pega na pasta:«Contrabandista de álcool, receptador de arte, facilitador durante

a Guerra de Espanha. Quantas vidas teve, senhor Capote?»«As suficientes para saber que esta, a que tenho agora, me basta.

As outras ficaram para trás, nos países onde já não vivo. Tenho ocadastro limpo em Portugal.»

«Por enquanto.» Gouveia limpa os óculos com a ponta do casaco,inspira fundo, expirando em seguida a certeza de que ninguém entrana cadeia como um criminoso e sai de lá beatificado. Volta a pôr osóculos. «Mas vamos ao que interessa. Sabia que a sua amante eramensageira de agentes internacionais?»

Inácio Capote ensaia um espanto sereno, de homem que já viutudo, mas que nunca se cansa do espalhafato do mundo.

«Não sabia. Suponho que foi por isso que me chamaram aqui.»«Conte-me coisas que eu não saiba.»«Tais como?»«Nunca conversaram sobre política?»«Nos nossos encontros, falávamos pouco. Jamais de política.»Gouveia olha para os papéis em cima da mesa.«Então quer dizer que, nas horas que passaram juntos, a

senhorita Madalena nunca lhe disse que era colaboradora dosinimigos do Estado?»

«Não vejo porque o faria. Imagino que guardar segredos é umadas condições necessárias para se fazer aquilo de que a acusam. Eeu, como deve saber», aponta para a pasta, «não me meto empolítica.»

«Esteve preso no estrangeiro.»

«Duas vezes. Nenhuma delas por questões políticas.»«Em Barcelona, mil novecentos e trinta e nove. Por colaboração

com a imprensa republicana.»«Só estive detido um par de dias.»«Consta que ajudou um escritor estrangeiro a produzir um filme

panfletário contra os nacionalistas.»«Nunca fui formalmente acusado de nada. O meu trabalho não

exigia de mim compromissos ideológicos.»«Explique lá isso.»«Servia de tradutor, arranjava garrafas de conhaque para um

aniversário, carros para reportagens. Mas nunca trabalhei com esseescritor.»

«O senhor é um homem da logística.»«Deixo isso para os militares. Diria antes que sou um moço de

fretes.»«Subiu na vida, é concierge dos ricos.» Há uma nota de despeito

na afirmação, a inveja de quem, acostumado a andar de elétrico,interroga o proprietário do Mercedes no qual Capote chegou àPVDE. «Mas diga-me lá, porque esteve preso em Barcelona?»

«Por causa de uma falsa denúncia quando as tropas nacionalistasjá tinham entrado na cidade. Um concorrente na minha área denegócios tentou vender a história de que eu tinha ajudado o escritorfrancês.»

«Um tal de André Malraux, esquerdalho. O filme chama-se…»,Gouveia procura o título nas folhas, «Espoir: Sierra de Teruel. Foiapresentado em Paris.»

«Isso não sei.»«E porque o denunciaram, se era mentira?»«A cidade tinha novos donos, havia muito dinheiro a ganhar com

a chegada de tanta gente. Marcos alemães, liras italianas. O delatorera um homem ambicioso, queria afastar os competidores.»

«Como é que provou a sua inocência?»«Mostrando que o meu delator não era inocente em questões

mais graves do que trabalhar para um escritor.»«E o que aconteceu ao seu concorrente?»«O mesmo que tinha acontecido aos presos falangistas, nas

zonas republicanas, depois de cada bombardeamento dos aviõesalemães.» Ao assumir que, para salvar a pele, entregou alguém auma execução sumária, Inácio Capote não exibe apenas aimplacabilidade com que executa o seu trabalho, coloca-se ao ladodos vencedores, tentando granjear a simpatia de Gouveia. «Comodeve saber», Capote volta a assinalar a pasta em cima da mesa,«passei os meses seguintes a colaborar com as forças do generalFranco.»

«E porque regressou a Portugal?»«Saudades da pátria mãe, foram muitos anos a viver no

estrangeiro. Também estava farto da guerra, queria viver num paísem paz.»

«E os negócios? Não disse que havia muito dinheiro a ganhar nareconstrução de Espanha?»

«Há mais dinheiro a ganhar durante a guerra do que quando elaacaba. A maioria dos meus clientes são estrangeiros. Tiveram de seinstalar provisoriamente em Portugal devido ao conflito na Europa,muitos estão de passagem, precisam dos meus serviços.»

«Gente com posses.»«Alguns.»«Tem ou teve clientes judeus?»«Não costumo perguntar qual a religião de quem me contrata.»«Não faz falta, os judeus são uma raça fácil de identificar. Não

seria capaz de encontrar um preto num café a abarrotar debrancos?»

«Tive alguns clientes que, imagino, podiam ser judeus. Industriais,banqueiros, médicos. Ninguém com atividades políticas suspeitas.»

«Como pode ter tanta certeza? Olhe a sua amiga Madalena, porexemplo, tinha uma vida clandestina e o senhor, supostamente, nemimaginava.»

«Tenho mais exigência com os meus clientes do que com asmulheres com quem me deito. E a política, como lhe disse, não fazparte dos meus interesses.»

«Faz muita questão de dizer que não se mete em política.»«Sou uma pessoa superficial, senhor agente, dedico-me ao meu

trabalho e aprecio as coisas boas da vida. A política só traz dores decabeça. E eu gosto de acordar tarde.»

Gouveia passa-lhe uma folha em branco.«Escreva aí os nomes dos seus clientes judeus.»Cordial, Inácio Capote recusa a caneta do agente, prefere a sua

Parker, que, tal como o panamá de palha de Toquilla, feito à medidana chapelaria Azevedo, expressa materialmente o estatutointangível dos seus clientes portugueses — deputados, diretores dejornais, militares —, aquilo que, no fim de contas, impede Gouveiade o tratar por tu ou de abrir o interrogatório ao chapadão.

«Por falar em nomes, quer explicar-me porque usa um falso?»«Não é falso, é artístico. Fica no ouvido. Os clientes gostam. Nos

meus documentos, mantenho o nome de batismo.»Gouveia prepara o ás de espadas, quer verificar a expressão de

Capote quando, por fim, o confrontar com algo que o interrogadoainda não sabe.

«E clientes sodomitas, teve?»«Tal como não lhes pergunto a religião, também não me interessa

saber com quem se deitam.»«Quando foi a última vez que esteve com o Nuno Athaíde?»«Final de julho, em casa dele, apresentou-me a um cliente. O

conde de Zollern, talvez o senhor agente conheça, é quadro doPartido Nazi, empresário e diretor logístico da ajuda alemã aPortugal. Responsável pelos comboios de mantimentos que tantoprecisamos.»

«E que tipo de trabalho fez para o conde?»«Problemas familiares, coisas muito pessoais, não gostaria de

quebrar o dever de sigilo que prometi ao conde. Mas talvez o senhoragente possa perguntar-lhe, ele está hospedado no Hotel Atlântico.»

Gouveia sorri do descaramento educado de Capote. Sente-secom a incumbência de dar banho a uma foca untada com azeite. Seao menos pudesse espetar-lhe já uns sopapos. Puxa do tãoaguardado trunfo.

«O doutor Nuno Athaíde matou-se.»Capote denuncia perplexidade com aquilo que ouve. É uma

reação sincera, que lhe permite esconder a sensação de alívio.

Nuno é a única pessoa que poderia comprometê-lo. A menos que,de facto, esteja morto.

A porta abre-se e aparece Barbosa, em cabelo e de mangasarregaçadas:

«Ó Gouveia, chega lá ali comigo um instante.» Tão urgente naretirada, que Capote quase não via os salpicos de sangue nacamisa branca. Gouveia levanta-se em esforço, arrasta a cadeirasobre a lousa do chão, um ruído que representa todas as suascontrariedades existenciais, o protesto pela azia das iscas quecomeu ao almoço.

«Deixe-se ficar onde está», diz Gouveia ao imprestável no outrolado da mesa, que saiu de Portugal filho de serventes da gleba eregressa envolto na capa do donjuanismo internacional, comedor deatrizes e capataz de confiança de uns quantos que mandam, ou quepodem pagar a quem manda.

Gouveia bate com a porta ao sair e Inácio Capote aligeira o nó dagravata de croché azul-marinho. É um gesto irrefletido, automático,como os pulmões sôfregos de oxigénio depois de um longomergulho. Gouveia abre a porta e regressa para apanhar a pastaem cima da mesa.

«Ia-me esquecendo disto.»Capote repete para si mesmo o credo do otimismo: Com as ganas

que tem de acertar-me o passo, se o Gouveia soubesse de algumacoisa, já me tinha posto a cantar o que lhe falta saber.

Mais de uma vez, teve a vida por um fio. Caçado por mafiosos ena mira de polícias, passou dois anos numa cela com invernos detemperaturas negativas, resistindo a pneumonias, cólicas renais,uma apendicite e três tentativas de esfaqueamento. Defendeu-se deum punhal improvisado com o exemplar de Grandes esperanças, nabiblioteca da prisão. Sobreviveu aos bombardeamentos da GuerraCivil, em Barcelona, e aos milicianos de dedo no gatilho. Mastortura? Inácio Capote não está apetrechado para a dor física queresulta da crueldade sistemática. Não é corajoso, mas matreiro. Nãoentende a liberdade como um bem comum, mas como um luxo queele pode comprar. Quer manter-se vivo e com saúde, esse, sim, omais velho ofício do mundo, o magistral engenho da evolução. Nem

precisariam de o levar para uma sala de tortura. Em menos de umminuto, Capote contaria o que sabe.

«Já cá venho», diz Gouveia.«Ao seu dispor, senhor agente.»Gouveia cruza o corredor com a serenidade de um ascensorista.

Só tem de apertar os botões porque o destino há muito que foidefinido por alguém de patente superior. Passa pelas salas com filasde carteiras pequenas, como na escola, e as janelas abertas paraarejar o fumo e a poeira do papel. Milhares de cartões nasprateleiras, minibiografias apertadas com elásticos, investigadas,perseguidas e denunciadas. O som datilografado de uma contra-fé,Queira apresentar-se no dia dezassete de agosto. O cheiro da tintanos mata-borrões, nas almofadas dos carimbos, o clique damáquina do selo branco. Nada que desperte a atenção de Gouveia,está ali todos os dias, só vê banalidade, não percebe a burocraciamacabra das pequenas tarefas que servem as grandes opressões.Sobe as escadas, entra noutro corredor, alguém deixou o chapéu-de-chuva na ombreira de uma porta, a água formou uma poça quefoi pisoteada, deixando um rasto cinzento de solas. Barbosa, com acamisa ensanguentada, espera-o no final do corredor.

«Despacha-te, caralho.»Gouveia acelera o passo, espezinha a água e percebe que o

colega tem na face o desarrimo da criança que pegou fogo àscortinas com a irmã no berço.

Madalena Athaíde está tombada de lado. Os pulsos, atados porarames na estrutura da cadeira, estão em carne viva. Tem bolhas desaliva avermelhada ao redor da boca, sangue e sucos gástricos, osolhos revirados, sem pupilas. O branco da agonia não é tão límpidocomo o da pureza.

«A gaja começou a espernear-se toda e a espumar da boca.»«Bateste-lhe com alguma coisa?»«Só com isto», diz o torturador, mostrando um porrete, menos

apologético do que orgulhoso. «Mas acho que a gaja bateu com acabeça.»

«Deve ser epiléptica, tenho um primo assim.» O diagnóstico deGouveia induz-lhe um bulício de mãos à procura de coisas nos

bolsos. O agente olha ao redor da sala, tira a pistola do coldre. Osespasmos de Madalena esmorecem, espaçam-se. Gouveia ajoelha-se, tenta abrir o maxilar trancado da mulher, enfia-lhe o cano dorevólver na boca.

«Aqui, estás maluco?», pergunta Barbosa.«É para ela não engolir a língua.»Gouveia desiste e pressiona-lhe a jugular com dois dedos.«Chamo o médico?», pergunta o torturador.Gouveia limpa o sangue e as secreções, que lhe mancham os

dedos, na saia de Madalena. Faz o mesmo com a pistola, queguarda no coldre. Põe-se de pé. O ascensorista a rodar a manivela.

«Médico? Só se for para ti, mas olha que a estupidez não temcura. Se esta sabia alguma coisa, deixou de saber. Bem fodidoestás com o diretor.»

Inácio Capote espera que anoiteça para sair pelas traseiras doprédio onde vive. Usa umas calças velhas e desirmanadas docasaco fora de moda, um chapéu de ardina e sapatos de caixeiro-viajante. Também transporta uma cesta em cada mão.

Troca de elétrico três vezes, até que salta em andamento noRossio, metendo-se pela Calçada do Garcia, olhando para trás eesgueirando-se pelos becos sem iluminação pública. Sobe aCalçada de Santana e volta a descer pela Rua das Pretas. Cruza aAvenida da Liberdade, onde o Exército tem baterias antiaéreas notopo de alguns edifícios. Planeou chegar ao Parque Mayer à horaque terminam as sessões de teatro, aproveitando para camuflar-sena enxurrada de espectadores e subir à Praça da Alegria, ondealuga um quarto de pensão.

Entre as onze da noite e as três da manhã, deita-se na cama,sobre a colcha, vestido e calçado, sem uma única vez fechar osolhos. Levanta-se a cada meia hora, a fim de sondar, por uma nesganas cortinas, se as palavras finais de Gouveia — «Talvezprecisemos de falar em breve» — não se materializaram já numadupla de agentes da PVDE no outro lado da rua, seguindo-lhe ospassos. De todos os bagageiros, motoristas de táxi, chefes de sala,empregados de bar e polícias a quem Capote já untou as mãos degorjetas e subornos, só o garoto que lhe engraxa os sapatos o

avisou de que a PVDE andava a fazer perguntas sobre os seushábitos, contactos e paradeiro.

De olhos postos no teto, ouve, paredes meias, uma tosse detísico, um escarro no bacio, o ressonar ao fundo do corredor, aflatulência dos canos do edifício, o ranger das juntas da caixapombalina, a porta da rua que se fecha. Os ruídos noturnos dapensão, masculinos e sórdidos, agravam a consciência que tem doseu próprio corpo em alerta, do batimento cardíaco nos tímpanos.Recordam-lhe os dois anos a penar numa cela. Não tira a mão dobolso das calças, sentindo o cabo da navalha de ponta-e-mola quetrouxe de Barcelona. Só a usou para descascar fruta, semprepreferiu a inteligência do engano ao desespero da violência. Masuma e outra vez desliza o polegar sobre o cabo, detendo-se sobre obotão que dispara a lâmina, seguro de que agora, se for caso disso,executará a promessa que fez na cadeia. Não será capturado. Antesmatar ou morrer. Antes o nada absoluto, do oblívio eterno, a duashoras de sol no pátio de uma prisão.

Às três e quarenta e cinco da manhã, pega nas cestas, sai dapensão e sobe as escadas na Rua da Mãe de Água. Se, pelocaminho, for questionado por um polícia de giro ou um soldado, seráapenas mais um dos madrugadores que abastecem a cidade. Vaientregar queijos e enchidos ao Mercado da Ribeira. Chega aoPríncipe Real e adentra-se na clorofila da praça, na fragrância dasdamas-da-noite, ou serão jasmins? De botânica não percebe,apenas que cresceu com esse cheiro numa casa junto ao mar eque, nas últimas horas, qualquer pretexto o obriga a convergir parao passado do seu descontentamento com a mesma insistência comque passou o dedo no cabo da faca. Tenta manter a frieza e o ardilque lhe permitem comprar bons chapéus e liberdade. Só tem deencontrar-se sem aviso prévio com um homem e, munido deargumentos sensatos que também podem ser entendidos comochantagem, convencê-lo a fazer o que lhe é pedido. Só que essehomem é parte de algo antigo e talvez irrecuperável, algo quereaviva as emoções mais puras do miúdo que Inácio Capote foi: omedo do abandono, do desamor e da traição.

Desce a escadaria da travessa, mantendo-se no lado mais

obscuro. Um cão dá pela sua presença e ladra no interior do prédio.Um vórtice abre-se nas entranhas de Inácio Capote, sugando-lhetoda a resolução e apagando as frases que ensaiou para inauguraro encontro. Um homem abre a porta e, porque dormiram no mesmoquarto durante anos, porque lhe conhece o sono leve e a fúriaquando o acordam, Inácio Capote identifica de imediato o vulto naombreira, de cuecas e camisola de alças, descalço e ameaçador.

«Estás a olhar para onde?», pergunta Luís Paixão Leal, dando umpasso em frente. «Põe-te mas é a mexer daqui para fora.»

Inácio Capote sai das sombras para a luz, tira o chapéu, olha parao detetive com um meio sorriso, como se fossem ainda os rapazesque se arreliavam num beliche da Rua Sullivan, como se nãotivessem passado já seis anos desde que se viram pela última veznuma cela, em lados diferentes da porta. Com o afeto provocatóriodos miúdos que não querem deixar de o ser, Joaquim Paixão Leal— também conhecido como Inácio Capote — pergunta:

«Isso são maneiras de receber o teu irmão?»

Luís tinha quinze anos quando se inteirou de como era distinto omecanismo das suas recordações. Julgava-se o falante único deuma língua secreta. Só muito mais tarde descobriria a existência deoutros como ele, em números tão escassos que sobravam os dedosde uma mão para os contar. Uma violinista polaca, um corretor deapostas em Chicago, um jornalista francês. Todos situavam odespertar do funcionamento da supermemória nos primeiros anosda puberdade. Todos apresentavam, já em adultos, comportamentosexcessivos. Mania das limpezas, acumulação de velharias, contasmonumentais em bares, propensão para o isolamento e para,obcecados com um problema, largarem tudo em favor da suaresolução. Mais do que a acuidade factual ou a nitidez fotográficadas lembranças, o processo decorria física e emocionalmente. Seuma memória regressava, Luís não era apenas o espectadorpassivo de fragmentos. Estava lá outra vez, os sentidos em ação.Sentia o medo, o calor, os cheiros, a euforia. «É como se vivessetudo de novo», explicou ao doutor Herman Herzog quando entroupela primeira vez no consultório do psiquiatra. Os testes eperguntas, ao longo de várias sessões num consultório no UpperEast Side, levaram o médico a concluir que Luís recordava milharesde dias com a mesma precisão de um indivíduo comum a quemfosse pedido para descrever o que fizera essa manhã.

Com ajuda do doutor Herzog, foi aprendendo a conhecer e adominar o método. Catalogava as memórias num jogo de infinitaspossibilidades que, além de controlo, lhe oferecia a satisfação dequem desvenda problemas matemáticos ou organiza a roupa numdegradé de cores. Luís era um acrobata mental. Um arrumador docalendário. Escolhia um ano e uma categoria. Mil novecentos e vintee oito: trinta e um dias de neve em Nova Iorque, cinquenta filmes emdoze salas de cinema, o primeiro, por ordem alfabética, Across toSingapore, e o último, What a night. Essa ginástica da regressão eraprimeiramente cronológica e estabelecia-se por ordem daimportância dos acontecimentos em cada dia. Mas Luís não era umguardião omnipotente das datas. Desviava-se do procedimentoestabelecido, arrastado pelas forças centrífugas da evocação. Umamemória despertava outra, e essa, outra, iniciando um redemoinho

que tanto o atirava para o resguardo dos braços da mãe como parao desamparo da queda do pai.

Mil novecentos e vinte. Sexta-feira de chuva. Dois de janeiro. Umpuxão na roupa da cama, o pai de pé, de samarra e boina, umabrasa de cigarro a palpitar no breu. E aquele cheiro que lembravaLuís dos homens a pisar uvas num tanque de pedra. Joaquim, oirmão mais novo, empolgado por fazer parte do clã de marisqueirosamadores, pulou da cama. Pai e filhos saíram da vivenda doscaseiros na propriedade dos Athaíde. Levavam baldes e espátulaspara arrancar as lapas das rochas. O mar bravo, um borrão denuvens que coava o sol-nascente. As ondas estouravam contra apedra e a espuma elevava-se vários metros acima da cabeça dosPaixão Leal, engrossando o aguaceiro dessa manhã.

«Não sejas maricas, pá», disse Chico ao filho mais velho, que nãocomeçara ainda o trabalho quando o irmão pequeno já deixara cairvárias lapas dentro do balde. Em vez de obedecer, Luís foi atrás docaleidoscópio da memória. Todas as vezes que o pai lhe dissera«Não sejas maricas, pá»: quando um cavalo saltara a cerca dopicadeiro; na tarde em que o pai disparara a Luger do doutorAthaíde para pôr fim à agonia do rafeiro que comera o veneno dasratazanas; sempre que Chico, seguindo a pedagogia do vai ouracha, largara Luís na rebentação da praia do Guincho para que ofilho perdesse o medo das ondas e aprendesse a nadar.

Chico Paixão Leal não era um bêbedo imprestável, jamaisaparecia tarde onde o patrão lhe dizia para estar. Tinha o fígadoestoico dos operários que madrugam com bagaço. Parco de léxico edébil de sintaxe. O silêncio da musculatura era o traço maiscontundente da sua presença. Fazia questão de ensinar aos filhosque, sem mais nada de seu que não fosse um corpo, só lhesrestava a galhardia física para conseguir o único tipo de sucessoque era possível a um homem da sua condição: o respeito de quemmuito madruga e não teme o trabalho.

«Não sejas maricas, pá.» Eis o epitáfio de Chico Paixão Leal, aúltima vontade do patriarca e a alínea do testamento dirigida aoprimogénito que nunca aprendera a nadar. No instante em que aonda devorou o pai, Luís percebeu que o Chico Caseiro, como era

conhecido, sentia o mesmo terror que ele próprio quando era atiradopara as ondas da praia do Guincho. Teve um vislumbre daquilo quesó perceberia muitos anos mais tarde, quando já interrogaracentenas de criminosos, de azarados e de incautos. Chico era aespora enlameada nas botas do capataz, um pobre coitado, oherdeiro da arraia-miúda cuja dureza era uma sina e o únicoexpediente conhecido para a conservação da espécie. A um tempoverdugo e vítima. O disciplinador que lhe partira dois dentes de leitecom as costas da mão e o cuidador que lhe passara vinagre na pelecrivada de ferrões de vespas. O pai a quem não se conhecia umsorriso, mas que, numa madrugada de pescaria estival, ofereceuuma gargalhada à pergunta do rapaz: «Os gatos também nadam àcão?» O pai que reservava os carinhos e as indulgências ao filhomais novo, mas que só ao mais velho ensinara a construir umaarmadilha para caçar coelhos. O pai que não sabia ler ou fazercontas, mas que, nas poucas horas livres do trabalho de caseiro, seoferecia para qualquer biscate a fim de aligeirar a carestia na mesade casa. O pai que um dia o levou à tasca e anunciou com orgulho avirilidade capilar do filho pubescente: «Então não é que o gaiato jápinta?»

Mil novecentos e vinte. Sexta-feira de chuva. Dois de janeiro. Umpuxão na roupa da cama, o pai de pé, de samarra e boina, umabrasa de cigarro a palpitar no breu do quarto e a apagar-se naescuridão do mar. O Chico Caseiro em queda, puxado pela correntemarítima. O oceano a cuspir na cara dos filhos todas as maldiçõesdos náufragos esquecidos.

Não sejam maricas, pá.Joaquim, que sabia nadar, quis contradizer a sentença. Ia lançar-

se entre uma onda e outra. Luís agarrou-o pelo cachaço. Joaquimtinha dez anos franzinos. Tentou bater-se com o irmão e perdeu.Não se matou a salvar um morto. Um filamento de sol vibrou nohorizonte e logo foi reprimido pela borrasca. O tempo não estavapara esperanças. Uma onda levou os baldes e as espátulas. Luísolhou em volta: naquelas rochas, diante de si, o irmão era a únicatestemunha da sua cobardia.

As mulheres da casa formaram uma sagrada equipa de

salvamento e acenderam as velas na capelinha da quinta. Rezarammanhã afora, tarde adentro, urdindo a trança imemorial da súplicafeminina ao Deus pai, de tal maneira que a tempestade amainou, asvagas murcharam e as gaivotas voltaram ao céu. O doutor Athaídejá chamara a Guarda. Os criados tinham-se juntado às buscasenquanto as mulheres oravam por um milagre. Os homens levavamcordas ao ombro e sabiam que, na melhor das hipóteses, só lhesrestaria içar um cadáver. Nas pausas do terço, Bernardina, a mãedos rapazes, socorria-se da litania das viúvas que enjeitam aadmissão dos vivos nos subterrâneos de Hades — «Meu queridomarido, meu santo marido, meu adorado marido.»

Ao entrar pela cozinha da casa grande, descrevendo à mãe o queacabara de acontecer nas rochas, o pranto de Joaquim fora tambémfúria e desvario contra o irmão que o proibira de acudir o pai. Talveza perda do marido tenha feito Bernardina sucumbir, de uma vez portodas, ao pensamento mágico, porque também ela, a par do filhocom dez anos, acreditava que o desaparecimento de Chico eraevitável, se não mesmo resolúvel, e assim que Luís entrou nacozinha, disse-lhe: «Por que deixaste o teu pai ir às lapas com estetempo?»

«Por acaso a mãe não lhe conhece o mau vinho?», respondeuLuís, e logo se calou.

Nos dias seguintes, arrependido e mudo, ouviu como a mãeeximia as faltas de Chico num suspiro: «Meu querido marido, meusanto marido, meu adorado marido.» Mesmo sem cadáver — ouprecisamente por isso —, Bernardina iniciou o processo decanonização do defunto. A mãe parecia atribuir ao primogénito afunção de difamador do candidato a santo. Afinal, as primeiraspalavras de Luís, após a morte do pai, estavam gravadas nos autose acusavam Chico de ser um bêbedo desprecavido, que levara osfilhos para a Boca do Inferno numa madrugada de temporal.

No dia do desaparecimento, Joaquim ficou com as mulheres nacapela e Luís acompanhou os homens nas buscas, regressandosem notícias do pai quando o raio luminoso do farol de Santa Martadeclarou que acabava o dia e começava a noite. Na cama quepartilhava com Joaquim, Luís sentiu-o tremer — de frio, de medo, de

choro — e engolfou o corpo pequeno com o seu corpo de irmãomais velho.

«Nós também vamos morrer?», perguntou Joaquim.«Não, nós nunca vamos morrer.» E essa foi a primeira vez que

Luís prometeu ao irmão aquilo que não poderia cumprir.O medo de Luís era cristalino como o assobio das balas no frio de

janeiro. O doutor Athaíde disparava a Luger da Grande Guerra, e ofilho do caseiro, supondo que tinham encontrado o cadáver do pai,anteviu-se despedido ou preso pela Guarda. O patrão aguçava apontaria no espantalho bolchevique que espetara no meio do pinhal.Entre cada tiro, garantia que, caso o Exército Vermelho daRevolução Russa chegasse a Cascais, não o arrancariam dapropriedade sem uns quantos mortos. Desde que perdera a mulherpara a gripe espanhola, o doutor Athaíde mudara-se com os filhospara a mansão de férias, na orla Atlântica, apostado em converter oluto naquilo a que os colunistas sociais chamariam excentricidadede gente rica.

O doutor mostrava a pistola a um GNR de suíças eriçadas. Ao verLuís, disse:

«Vais com o guarda Lopes.»«É por causa do meu pai, senhor doutor?»«Faz o que te digo e bico calado.»O posto da Guarda era uma saleta empestada de tabaco e três

fardas mofentas. Mandaram Luís esperar num banco corrido, dondepodia ver a única cela do posto. Lá dentro, havia um buraco no chãoa servir de latrina e dois homens em cantos opostos.

O guarda Lopes abriu a porta da cela e dirigiu-se a um dosprisioneiros:

«Desculpe, mas são ordens do doutor Athaíde.» Entrou na divisãominúscula, seguido pelos colegas. «Vamos lá curar estes rabetas»,disse o último da fila, calçando umas luvas de couro. Mais do queum castigo, a sessão de porrada deveria converter em homens asério aquele par de maricas apanhado aos beijos na praia doTamariz durante a noite.

Luís sossegou, não estava ali por causa do pai. Ficou de tal modoaliviado, que os gritos dos presos se tornaram distantes como as

cornetas da Revolução Russa, que, garantia o patrão, haveriam dechegar ao Portugal sem rei nem roque.

Ofegante, o guarda Lopes saiu da cela e dirigiu-se a Luís:«Vai ali à praça chamar uma tipoia para levares o filho do doutor a

casa.»Nuno Athaíde, primogénito varão do pai viúvo, regressara a

Portugal para as férias natalícias. Cursava Medicina em Paris,embora fosse menos estudante de Anatomia e mais discípulo doabsinto. Em Cascais, dormia o dia inteiro e disparava para Lisboa aoentardecer, crente de que o perigo e o rasto da velocidade prateadado seu Hispano Suiza descapotável, na noite escura, faria pela suareputação aquilo que o tráfico de armas em Harare fizera pelo mitode Rimbaud, o poeta aborrecido pelo génio literário precoce que foraem busca da emoção da marginalidade, fugindo da lei e doscredores, abandonando amantes entre Sumatra e Djibuti.

Nuno Athaíde saiu do posto como se a tareia mandatada pelo paifosse apenas uma ode menor na sua vida. Sorriu para os guardas.Sangue na boca, como batom, e o sopro de um beijo: «Boa noite,obrigado e até à próxima.» Para sobreviver, Nuno tinha deapresentar-se como um espécime invulgar, nunca o mais fraco. Umaaberração indomada, jamais um doente submisso. Antes morrer quequebrar. Ainda assim, todas as comendas exteriores dessa bravura— os olhos negros, os lábios inchados — não eliminavam o horrorde um veredito que ele tão bem conhecia: era mais provável queviesse a morrer sozinho do que a viver acompanhado.

O filho do caseiro pôs o braço de Nuno sobre o seu ombro eajudou-o a subir para a tipoia. Disse ao cocheiro para esperar ecorreu para o chafariz, onde molhou um lenço de pano e aproveitoupara lavar as mãos, porque, embora não reconhecesse grandesconhecimentos médicos ao jardineiro dos Athaíde, já o ouvira adissertar sobre o perigo de contágio dos trejeitos do filho do patrão.

O cocheiro estalou a língua e as rédeas. Nuno limpou o sanguena boca com o lenço húmido. Virou a cara para a costa após oestrondo de uma onda nas rochas, recebendo na cara os salpicosdas marés vivas.

«Isto ninguém me tira», disse, como se tivesse acabado de ouvir

uma sinfonia cósmica ou confirmado a existência de um deus belo emisericordioso.

A governanta, duas criadas e a irmã Madalena esperavam-nos.Ajudaram o filho do patrão a descer da charrete e, antes de seguirpara casa, Nuno devolveu o lenço ao rapaz, segurando-lhe a mão.

«Obrigado», disse. «Fico a dever-te uma.» Depressa recuperou amáscara do artifício. «Então, Geninha, é desta que tens pena demim e te casas comigo?», perguntou a uma das criadas.

A governanta peituda, abotoada até ao pescoço, entregou umenvelope a Luís.

«Dá isto à tua mãe e, assim que acabares o que tens a fazer nascavalariças, preciso que vás apanhar pinhas para as lareiras.»

O envelope tinha como destinatário o Chico Caseiro. Na partereservada ao remetente, Luís leu:

Domingos Paixão LealSullivan Street, 17New York City, New YorkUnited States of AmericaLuís não entregou a carta à mãe ou sequer lhe disse que vinha

acompanhada de uma passagem de navio. Tal como o paidesaparecido, que nunca falara daquele Domingos, ou dos planosde se juntar a ele nas Américas, também Luís Paixão Leal escolheufazer tudo na clandestinidade, cheio de pressas e rudimentar nospreparativos. Saiu de madrugada, um dia antes do embarque,depois de soprar ao ouvido do irmão sonolento que haveriam deestar juntos outra vez. À mãe deixou um bilhete, que teria de ser lidopela governanta, prometendo enviar dinheiro para a subsistência dafamília — o preço a pagar pela liberdade do primogénito, a bula dasindulgências filiais. Pernoitou numa pensão ribeirinha, sem pregarolho, agarrado ao bilhete, num cómodo partilhado com trêsdesconhecidos e o miasma aquoso do Tejo na maré baixa.

Já embarcado no transatlântico, o mar que lhe servira dehorizonte durante toda a vida, tão óbvio e irremovível como o céu oua luz do farol, era agora a massa perigosa que tragara o pai, aextensão que poderia separar Luís da culpa, unindo-o a uma terramais desconhecida do que o Paraíso ou o Inferno. Da vida depois

da morte, já ouvira falar muito, da América, ninguém lhe contara oque fosse. Nos dias passados a bordo do navio para Nova Iorque, ainexaurível memória forçou-o a reviver, uma e outra vez, o queacontecera nas rochas da Boca do Inferno. Aos quinze anos, Luístinha a certeza de que, tal como Judas Iscariotes ou Marcus Brutus,um só ato o definiria para sempre. Para que o filho chegasse àAmérica, fora preciso que o pai caísse ao mar. O Atlântico apertava-se ao redor do casco como um torniquete. Luís recusava subir aoconvés, temendo que o pai aparecesse a boiar no oceano ou quetivesse embarcado no vapor e o esperasse ao virar de uma esquinapara tirar satisfações.

Depois de transposta a alfândega em Ellis Island, não foi aEstátua da Liberdade, a altura dos prédios ou a quantidade de genteque mais assombrou a pequenez provinciana de Luís chegado àmegalópole do futuro. Na confusão das docas do Sul de Manhattan,deu de caras com o pai ressuscitado e ficou ali, imóvel, perdidonuma indecisão: fugir sem olhar para trás ou correr a abraçá-lo.

Logo no cais, foi recebido com um beijo na cara. Essaproximidade da pele, o toque áspero da barba e o hálito molhado acheirar a dentífrico — nunca antes Luís fora beijado por outrohomem — despertaram nele um reconhecimento profundo e ilógico.Porque confiava sem hesitações num estranho que se parecia tantocom o pai? Por que razão tudo naquela figura lhe era familiar e, aomesmo tempo, incógnito?

Sem duvidar que o rapaz era filho do passageiro por quemesperava, o homem perguntou: «O teu pai?» O beijo desarmaratodas as mentiras que Luís tinha preparado ao longo da viagem,caso alguém lhe perguntasse pelo Chico Caseiro. O afeto masculinorevelava-se incompreensivelmente persuasivo e comovedor.«Damn, boy, parece que estou a ver o teu pai quando nosdespedimos», disse o homem. «Nessa altura, ele devia ter mais oumenos a tua idade.» Luís nunca pensara no pai antes de ser seupai. Essa suposição de juventude, de uma outra existência que elenunca conhecera, tornou ainda mais insuportável a vidainterrompida pelas ondas de Cascais.

Tudo o que Luís mais queria era não chorar, denunciando a sua

imprestabilidade. Tentou dizer O meu pai está morto, caiu ao mar,nunca deu à costa. Deixou uma mulher e um filho pequeno, agoraalguém tem de ganhar o pão. Para o bem e para o mal, o que eradele é meu. Por isso estou aqui. Esta oportunidade é minha pordireito. Em vez de salvaguardar os deveres do chefe de família, ascordas vocais lascaram as primeiras palavras, «O meu pai está», ea voz esmigalhou-se até não ser nada, porque o homem lhe agarroua cara com ambas as mãos e disse: «Sou o teu tio Domingos, irmãodo teu pai, e, seja lá o que for que tenhas para me contar, agora jáninguém nos separa.» Voltou a beijá-lo, selando a promessa comuma palmada nas costas. «Vamos dar-te de comer e arrimar essaspernas de marinheiro em terra firme. Ninguém chega à Américapara passar fome.»

Domingos Paixão Leal era a cara chapada do irmão Chico. Umnada mais alto, mais velho e enxuto. Mas com idêntico cabelonegro, nariz arqueado e pele mediterrânica propensa a olheiras,herança ibérica de semitas e berberes. Os mesmos repentes, omesmo olhar, a mesma voz. Em Nova Iorque, tantas vezes lheperguntavam se era siciliano ou judeu sefardita como assumiam queLuís era seu filho. Domingos, solteiro quarentão sem descendência,apreciava a ideia de continuidade no sobrinho.

As semelhanças entre o pai e o tio de Luís ficavam-se pelafisionomia e alguns maneirismos. Chico sofrera de uma obediênciafeudal ao doutor Athaíde. Já contestar os patrões do mundo era umdos inúmeros pleitos de Domingos, o sindicalista anticlerical e pró-voto das mulheres, o anarquista anti-imperialismo e pró-integraçãode todas as raças por igual. Chico bebia muito, Domingosdeclarava-se abstémio e, ainda que contestatário do puritanismoreligioso, não se opusera à lei que proibia a produção e a venda deálcool em todo país. Domingos conhecia os efeitos degradantes dabebida na estima que os homens tinham por si mesmos e pelosoutros, os desacatos na rua, a indigência sem teto, osespancamentos de mulheres e filhos. O alcoolismo parecia-lhe tãoopressor como os turnos de doze horas numa mina de carvão.

Se Chico mal sabia assinar o nome, Domingos lia jornais,colecionava livros, frequentava o teatro, o cinema e os comícios

políticos. Habitante de Manhattan havia mais de vinte anos,começara por abrir valas com uma picareta e chegara a lídersindicalista dos trabalhadores da construção. Tinha o poder deconvocar greves e embargar obras. Havia tempo que era portadordessa perigosa arma do autodidata que nasce pobre: um cartão dasbibliotecas de Nova Iorque. No edifício central, na Quinta Avenida,metia conversa com estudantes e professores, intelectuais eromancistas, fazendo questão de os informar de que participara nacolocação de todo aquele mármore. Quando alugou uma cave pertode casa e pediu a ajuda de Luís na reconstrução, doutrinou osobrinho acerca da luta de classes, falou-lhe do valor do trabalhosobre o capital e, depois de mais uma marretada na parede,emergia da poeira para citar Bartleby, o resiliente escrivão de WallStreet, justiceiro de todos os empregados que se opuseram aospatrões: «Prefiro não o fazer.»

Luís ficou com o emprego que Domingos tinha arranjado ao irmãoChico, nas obras do Holland Tunnel, que ligaria o Sul de Manhattana Nova Jérsia, e deu-lhe guarida no seu apartamento da RuaSullivan, meia dúzia de quarteirões a norte do estaleiro daescavação. O rapaz tinha aulas de Inglês após os turnossubterrâneos e passou a lavar as mãos antes das refeições.Domingos queria elevar o garoto pacóvio a adulto instruído quecomia de boca fechada e recebia no correio a folha anarquista Lastman standing.

Nesses primeiros meses na América, nenhum ensinamento teveum poder tão visceralmente revelador como a noite de dezoito demaio de 1920, quando Luís entrou pela primeira vez numa sala decinema. Para um rapaz que crescera com velas e cavalos, havia,claro, a extravagância e a vertigem nova-iorquina das luzes elétricase da velocidade dos carros. Mas o que era a invenção do semáforode trânsito depois de um grande plano da boca da atriz OliveThomas? Os cabelos curtos, a fita de tecido tão justa no pescoço,os lábios que beijavam a boquilha de um cigarro. Não conhecendodo corpo feminino mais do que a roupa interior das criadas noestendal, Luís nunca vira uma mulher fumar. Ficou de tal maneira

excitado com a prevaricação, que, ao acender o primeiro cigarroapós o filme, voltou a ficar duro dentro das calças.

«O que quer dizer Flapper?», perguntou ao tio, tentando percebero título da fita.

«Desavergonhada, lambisgoia, sirigaita.» Mas os coloquialismosem português eram demasiado vulgares e insuficientes para abarcara impressão deixada por Olive Thomas no rapaz que, anos maistarde, ainda recorreria a essa lembrança quando se masturbava.

Dezoito de maio de 1920. A primeira vez que Luís viu um filme,que comeu um bife tártaro com uma gema crua e que entrou numspeakeasy. Para aceder ao bar clandestino era preciso entrar numatabacaria, dizer a senha — «Um maço de Velvets sem filtro» —,avançar para as traseiras, bater à porta de um suposto frigoríficoindustrial e cumprimentar o porteiro com uma nota na mão.Domingos tinha uma mesa reservada perto da banda de música. Opasmo de Luís, ao ver tantos negros no palco, passou para segundoplano por causa da estranheza da música que esses negrostocavam. Os clarinetes, os trombones e os trompetes eram tãofrenéticos, que, nos seus sermões, os pregadores brancosprescreviam exorcismos a quem os tocasse daquela maneira. Talcomo nas primeiras viagens nos autocarros de dois andares, apósuma náusea inicial, o corpo de Luís aceitou o estímulo da música eacabou na pista de dança, imitando os dandies e as flappers.

Nos meses e anos seguintes, Nova Iorque tornou-se umvolumoso compêndio de primeiras vezes. Muitas delasproporcionadas por Domingos, que lhe mostrava a cidade emlongos passeios a pé, falando ora como um guia de museuenamorado pelo seu local de trabalho ora como o exploradordestacado para estudar um habitat selvagem. Para o tio, NovaIorque era um ser vivo em ininterrupta mudança, o acelerador detalentos e desgraças, simultaneamente santuário e cemitério deambições, lugar de refúgio e recomeço para os descendentes dosescravos vindos do Sul e os católicos independentistas da Irlandado Norte, cada qual com a trouxa da sobrevivência ao ombro e umailusão de sucesso debaixo da asa. Solidão e multidões, todosaqueles que queriam ser esquecidos e todos os que procuravam, no

estrelato e na fortuna, o amor que lhes faltava. Fosse qual fosse arazão que levava um indivíduo a juntar-se ao formigueiro da grandecidade, advertia Domingos, «lembra-te que uma parte consideráveldo destino de um homem depende da sorte e do acaso. Concentra-te naquilo que podes controlar. O trabalho e a retidão de caráter. Aresistência e a dignidade. Mas nunca te esqueças que aqueles quenão têm escrúpulos vão aproveitar-se dos teus escrúpulos para tepassar a perna».

A mentoria de Domingos expandia-se através das temáticas e dageografia da cidade. Tanto levava o sobrinho a visitar o Museu deHistória Natural, iniciando-o na teoria da evolução das espécies,como o passeava pelos quarteirões ao redor de Wall Street,mostrando-lhe os seguidores do culto do casino bolsista,especuladores do capital que, sem nunca terem pregado um prego,construíam impérios sobre os costados daqueles que ganhavam avida de martelo em punho. Na sombra dos prédios com átriosforrados a mármore de Carrara, os mendigos vitalícios montavam assuas barracas de cartão provisórias. Na Bowery, rua que Domingosnomeara de «purgatório das almas à deriva», pejada de alcoólicossem casa e de bordéis de quinta categoria, Luís foi avisado de que,apesar da fé dos recém-chegados no êxito da sua aventura, apesarda juventude, da novidade e das promessas oferecidas por NovaIorque — uma espécie de frenesim do primeiro amor —, aquela ruanão era apenas uma prova de que a abastança não aproveitava atodos, mas um aviso pessoal: «Ninguém está livre de vir aquiparar.»

Nova Iorque e as primeiras vezes de Luís. A bebedeira iniciática,a virgindade perdida, a disputa de punhos com outro operáriodurante a construção do túnel, a estreia como objeto de desprezopor causa da sua fisionomia e sotaque — «Vai para a tua terra», aprimeira de muitas vezes que o fizeram sentir-se estrangeiro eindesejado, imundo por decreto e irrecuperável por condição.

Nas pausas para comer, durante as jornadas a esgravatar o túnel,os operários dividiam-se segundo uma paleta de cores e linguajares.«Os irlandeses são os pretos dos americanos, os italianos são ospretos dos irlandeses, os judeus são os pretos dos italianos, e os

pretos são os pretos de toda a gente», explicou-lhe um calabrês quenão se misturava com sicilianos. Quando Luís perguntou ondeestavam os portugueses na escala cromática, o outro disse-lhe:«Não estão.»

Treze de setembro de 1920: a primeira vez que o tio o envolveunos seus negócios e que Luís confirmou a natureza dúbia doshomens, o fio da navalha onde resvalam, a diferença entre aquiloque dizem e aquilo que fazem. Domingos passou-lhe uma chave edisse: «Vou viajar, preciso que ajudes o padre Hipólito, ele sabe oque fazer.»

O desamor do tio pela religião e por todos os seus burocratas —do sacristão ao sumo pontífice — não prognosticava que confiasseno pároco da Igreja de Saint Anthony, menos ainda que fizesse comele negócios ilegais. Essa dissonância foi rapidamente corrigida pelaadmiração que Luís tinha pelo tio. Afinal, a igreja ficava na rua ondeDomingos vivia, era frequentada pelos mesmos imigrantesportugueses a quem ele arranjava trabalho. Estranho seria que nãoconhecesse um padre seu vizinho e conterrâneo. Além disso,Domingos abastecia a paróquia de algo indispensável à eucaristia— vinho —, o que ajudava o sobrinho a relevar a inconsistência dotio abstémio, apologista da Lei Seca mas fabricante de álcool.

Na cave que Luís ajudara a recuperar, e da qual recebera achave, havia equipamento para fermentar as uvas e uma prensaque as convertia em tijolos, aos quais apenas era preciso juntarágua para que se tornassem vinho. Esta ironia milagreira nãopassara despercebida ao padre Hipólito.

Quando a Polícia bateu à porta, uns dias depois, perguntando aLuís pelo paradeiro de Domingos — que se encontrava emrepresentação do sindicato num congresso em Boston —, o rapazponderou se produzir vinho seria um pecado mais grave do que afalta do sangue de Cristo na missa. Devido às palestras do tio, jánão acreditava que o Universo fosse obra para terminar em seisdias. Mas ainda não estava pronto para as perdas da apostasia,deixando de acreditar num Deus que premiava os bons e punia osmaus. Depressa se deu conta de que os tijolos de vinho não eram omotivo de interesse dos polícias pela cave. Antes das reformas,

Domingos alugara o espaço a imigrantes acabados de desembarcare que ali dormiam por turnos. Entre eles, haviam estado osanarquistas italianos suspeitos do atentado em Wall Street.

Dezasseis de setembro de 1920: a primeira vez que Luís sentiu areverberação de uma bomba. Quarenta e cinco quilos de dinamite eduzentos de ferro em cima de uma carroça estacionada diante doBanco J. P. Morgan, em Wall Street. Os estilhaços mataram mais decem pessoas, feriram centenas, a onda de choque chegou ao túnelonde Luís trabalhava.

A Polícia nunca encontrou os culpados, embora desconfiasse dosGalleanisti, anarquistas que defendiam a violência como únicodetonador possível da rebelião popular e que já tinham feito explodiroutros símbolos do capitalismo.

No regresso a Nova Iorque, as simpatias políticas de Domingos,senhorio de dezenas de imigrantes que nunca tinham ficado mais deum par de semanas na cave, não constituíam prova suficiente parao ligar ao atentado e, ao final de duas horas de interrogatório, naesquadra, a Polícia deixou-o sair em liberdade. Talvez o tio, quetanto o avisara das complexidades morais dos homens, fosse algo ameio caminho entre o pequeno contrabandista e o defensor dosoperários explorados. Mas nunca cúmplice de uma matança deinocentes. Por via das dúvidas, Luís perguntou-lhe:

«Nestes dias que estiveste fora, fizeste alguma coisa que nãodevias?»

«Não», disse Domingos, referindo-se ao atentado, sem mencionarque, além da convenção em Boston, estivera na costa atlântica anegociar com pescadores açorianos um carregamento de uísquebritânico e vinho português.

Vinte e nove de setembro de 1920: a primeira vez que Luís foi aum funeral. O cadáver da atriz Olive Thomas — a sua paixãocinematográfica — chegara de Paris após semanas de escândalo emistério nos tabloides. Durante a segunda lua de mel de Olive como marido, Pickford, o casal viajara pela Europa. Depois de uma noitede boémia em Montparnasse, a atriz alcoolizada chegou ao quartono Hotel Ritz e ingeriu o remédio para as feridas do marido, sifilíticocrónico. Os jornais apresentavam distintas versões do sucedido.

Olive confundira o frasco de cloreto de mercúrio com água ou comum medicamento para dormir. Olive suicidara-se por causa dasinfidelidades de Pickford. Toldada pelo champanhe e pela cocaína,Olive fora ludibriada pelo marido e tomara o veneno depois de ocasal ter participado numa orgia parisiense. O móbil do homicídio:Pickford queria receber o prémio do seguro de vida da mulher.

No dia do funeral, em Nova Iorque, a Polícia criou um cordão desegurança ao redor da igreja. Luís estava entre as centenas deadmiradores e curiosos que esperavam ver Olive uma última vez. Ochoro alastrava, mas a compunção do rapaz pela morte da atriz,com apenas vinte e cinco anos, era mais do que a tristeza da perda.Nos olhos marejados, além da incompreensão da finitude, havia já afremência e a revolta que o levariam a ser polícia e a tomar para si opessoalíssimo compromisso de consertar todas as injustiças que selhe cruzassem no caminho.

As autoridades francesas tinham decretado a morte de Olivecomo acidente. Luís não aceitava que o acaso servisse deexplicação. Como podia o destino da estrela de Hollywood,agraciada pelo talento e pela fama, terminar de forma tão banal eestúpida? Era como se, após ter conquistado a Pérsia, Alexandre, oGrande, morresse engasgado com uma espinha no banquete dosvencedores. A cabeça de Luís, transtornada pela emoção do enterroe pelas tramas conspiratórias dos tabloides, estava ciosa de algoque confortasse as suas dúvidas. Tinha de haver um culpado, eesse deveria ser punido. Luís estava certo de que a inocênciafabricada de Pickford exigia uma retaliação, e por isso pediu a Deus,nessa mesma noite, que matasse o marido de Olive e o mandassepara o Inferno.

Pela porta entreaberta, Domingos viu o sobrinho de joelhos, noquarto, murmurando preces. Ao jantar, perguntou-lhe:

«Estavas a rezar porquê?»Luís corou como se acabasse de ser apanhado a masturbar-se.

Encolheu os ombros, enfiou uma batata cozida na boca, ruminandoa vergonha das convicções que herdara da mãe católica.

«Não é uma crítica. Nem um juízo», disse o tio. «Nunca te proibide praticares a tua fé. Mais do que certezas, tenho dúvidas. Só as

dúvidas levam a mais conhecimento. E o conhecimento faz-noscrescer. Se não me quiseres contar, tens todo o direito. Jamais tecobrarei isso, mas gostava de saber porque estavas a rezar.»

Luís fez um apanhado da tragédia de Olive Thomas e confessoucomo encomendara a Deus a condenação eterna de Pickford.

«Se Deus é todo-poderoso, vais dizer-me agora que se enganou?E que precisa que o avises do engano?»

«Lá em Portugal, o padre estava sempre a falar do mistério dafé.»

«E isso serve para quê?»«Há coisas que só Deus sabe, não é para a gente perceber»,

disse Luís, querendo terminar a conversa.O tio pousou os talheres como se arregaçasse as mangas a fim

de arrancar as sementes enterradas bem fundo pelo padre no medoe na ignorância do rapaz.

«Se Deus tem um plano para nós, e se nesse plano a OliveThomas tinha de morrer agora, por que raio haveria Deus de mudaro plano só porque tu lhe pedes? Deus é infalível, certo? Não achasarrogante da tua parte, e também inútil, dizer-lhe como deve gerir osnossos destinos? Por outro lado, se as tuas orações foremrespondidas, então, há que reconhecer que Deus também seengana.»

Sem argumentos para a lógica do tio, Luís protegeu-se nacarapaça dos bons sentimentos:

«Rezar faz-me sentir bem.»«Mas nem tudo o que nos faz sentir bem é verdade. O uísque

consola muita gente, isso não significa que seja a forma mais eficaze sincera de entender a realidade.»

«Irra, que és teimoso. Já disse que há coisas que não temos deperceber.»

«Há milhões de coisas que não percebemos, mas isso nãoimplica que tenhamos de as explicar com fantasias. Muitas daspessoas que morreram afogadas no Titanic eram tão decentes efiéis a Deus como aquelas que sobreviveram. Rezaram com amesma esperança dos que conseguiram entrar num bote salva-vidas. E, ainda assim, acabaram mortas e congeladas no mar do

Norte. Todos os dias morrem pessoas em acidentes como aqueleque matou a Olive. Crianças esmagadas debaixo de uma carroça.Bebés e mães durante o parto. Das duas uma: ou Deus é cruel ou éindiferente. Se tu, que és um garoto, não és cruel nem indiferente,se te sentes mal com o sofrimento dos outros, se farias tudo ao teualcance para acabar com esse sofrimento, porque é que Deus, todo-poderoso, não faz o mesmo?» Domingos voltou a pegar nostalheres, encerrando a lição com um incitamento: «Se queres mudaralguma coisa, não encarregues Deus, é imoral. Tens de ser tu a darconta do recado.»

Luís sentia os questionamentos como um ataque pessoal, uminterrogatório em que lhe pediam para denunciar aqueles em queconfiava. Deus, a ideia de uma ordem celeste, o Juízo Finalenquanto evento reformador dos defeitos humanos — tudo issoservia para que Luís se julgasse mais seguro no caos e na falta desentido. A morte do pai e a de Olive tinham de ter um propósito quelhe escapava, mas que lhe seria revelado como recompensa se, aolongo da vida, acumulasse suficientes méritos para ser recebido porSão Pedro nos portões do Paraíso.

Domingos tinha o papel de instrutor paciente, deixando que, raio araio, a luz erradicasse as trevas, fazendo uma espécie de desmamena transição do cérebro supersticioso do sobrinho para opensamento crítico. Providenciava as ferramentas para a resoluçãode uma farsa, deixando que fosse o discípulo a desvendar o x daincógnita por si mesmo. Mas o que Domingos tinha como educaçãoe esclarecimento, Luís entendia como chantagem. Se o rapaz nãopodia estar junto da mãe e do irmão, ao menos que pudesse ter porperto Deus, Jesus, Nossa Senhora, todos os anjos e santos. Umaguarda de honra invisível, que garantia o préstimo da vida de Luís eque havia estado tão presente no seu crescimento que ele a sentiacomo parte da família. Negá-la era deixar de ser quem era.Abandoná-la era esquecer a mãe e o irmão de uma vez por todas.

«Às vezes pareces tão ferrenho como os pregadores quecriticas», disse Luís.

Domingos sorriu. O rapaz apresentava destreza de raciocínio quebastasse. E o seu desconforto indiciava dúvidas. Só as dúvidas

podiam derrubar os dogmas. Mais tarde ou mais cedo, Luísdescobriria que o apego a uma coisa não valida a sua existência.Seria doloroso, como costumam ser todas as assunções de umengano, o instante em que, depois de tanto persistir, aceitamos quea pessoa amada jamais retribuirá o nosso amor, ou quandodescobrimos a traição de um amigo.

«Se calhar estás certo no que dizes, mas o meu trabalho é maisdifícil», respondeu Domingos. «Os pregadores religiosos têm umainstituição poderosa ao seu serviço e séculos de experiência na arteda burla. É muito mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que foram enganadas.»

A primeira vez que Luís viu o irmão Joaquim em Nova Iorque: diavinte e nove de março de 1924, um par de meses antes daassinatura do National Origins Act, a lei que restringia a imigração,para a América, de asiáticos, judeus, eslavos e originários do Sul daEuropa. Luís deixara o trabalho na construção do túnel porque, casoestudasse para fazer o exame do nono ano do liceu, o tio oferecia-lhe um emprego de secretariado na união sindical. Na iminência daentrada em vigor da nova lei, Domingos concedera-lhe umempréstimo para que pudesse mandar vir a mãe e o irmão. SóJoaquim desembarcou em Manhattan. A viuvez de Bernardinafizera-a reclusa das coisas conhecidas e controláveis — aslimpezas, os tachos, as novenas. Com o pouco que tinha, cozinhavapara o padre, achando que as boas graças de Deus aumentavam naproporção inversa da fome do sacerdote. O seu luto não era o pesarpela morte do Chico Caseiro, mas uma penitência que pedia oretorno do marido. Vestia sempre de negro, ia adquirindo acurvatura cervical das carpideiras e das mulheres dos pescadoresnáufragos. Velas, rosários, lenços no cabelo, procissões, jejum naQuaresma, choro antes de deitar e joelhos doridos de tantas preces.Com cada ritual, cada mortificação, Bernardina alertava os Céuspara o que lhe era devido. Como poderia ir para Nova Iorque se, emalgum momento, Deus reconheceria a servitude da viúva e, aochegar a casa, ela daria com o Chico sentado à mesa, esperandoque o jantar fosse servido? Os filhos podiam desistir e zarpar,

largando-a na solidão do luto, mas Bernardina não arredaria pé,porque o marido só poderia voltar ao sítio onde tivera sumiço.

Fosse por instinto de proteção ou pela culpa de privar Joaquim deoutro progenitor, Luís quis deixar o irmão a salvo das agruras dosrecém-desembarcados e do trabalho braçal. Estendeu os serviçosde uma explicadora, que o preparava para o exame do nono ano, àformação de Joaquim, esperando poder inscrevê-lo na escola noseguinte ano letivo.

Nesses primeiros meses de coexistência em Nova Iorque,partilhando um quarto e um beliche na casa do tio Domingos, osirmãos recuperaram a cumplicidade interrompida e não se largavamnas horas livres. Conhecedor dos perigos e das maravilhas dacidade, Luís, com dezanove anos, suscitava em Joaquim, aoscatorze, a predisposição dos rapazes mais novos para idolatrar osirmãos mais velhos. Luís ensinou-o a atravessar a rua através dotrânsito tresloucado, a desferir um uppercut ou a usar um telefone.Descodificava o calão nova-iorquino e a rede do metro. Era aqueleque já dormira com mulheres, bebera em bares clandestinos e queJoaquim imitava em todas as demonstrações de desenvolturamáscula: a boina enviesada, a forma de segurar o cigarro ou decuspir para o chão, o corte de cabelo e o andar apressado, decostas muito direitas, calcando os passeios com a assertividade — eum certo exibicionismo — daqueles que estão certos de alcançarum destino extraordinário. Havia entre os irmãos a lealdade dosjuramentos de sangue que leva um homem a dar a vida por outro. Ocredo fraternal da honra, do «contra tudo e contra todos, ninguémnos vai separar».

O irmão mais velho era o epítome do que era ousado e varonil.Usando-se do emprego no sindicato da construção civil, arranjadopelo tio, Luís elevou Joaquim à vertigem de um arranha-céus emobras para lhe mostrar a cidade a partir das vigas de aço soldadaspor imigrantes como eles. Cinquenta e seis andares acima dasuperfície terrestre, Luís acendeu um cigarro e usou-o comoponteiro para indicar os bairros lá em baixo, exibindo a mesmadescontração com que largava dois quarters na bilheteira do

cinema, moedas poupadas do salário semanal para levar o irmão àsmatinés duplas de domingo.

Luís ensinou a Joaquim que só os visitantes da cidade sedeslumbravam com os esquilos e a neve. Os nova-iorquinos denascimento e adoção não encontravam exotismo em coisas tãobanais. «Os esquilos são ratos com caudas peludas e podem pegar-te raiva», dizia. «A neve só tem graça quando cai, depois fica todamijada pelos cães e pelos vagabundos. Num par de dias, ospasseios são um lamaçal de mijo e porcaria.»

Joaquim, que entrara para uma turma de alunos mais novos porcausa do inglês iniciático, privilegiava atividades cerebrais queacelerassem a sua imersão na cultura americana. Mas até oscombates de boxe amador, quando temia pela vida do irmão, ou osjogos de beisebol no Yankee Stadium tinham um apelo intelectualpara o rapaz que acabaria o liceu entre os melhores da turma. Nomeio dos homens, fossem eles intervenientes ou espectadores dascompetições, Joaquim estudava os maneirismos da linguagem e docomportamento, a criatividade do vernáculo — «This fuckingcocksucker» — que tanto ameaçava violência com um oponentecomo revelava carinho com um aliado.

O botão do aparelho de rádio, em casa do tio, foi o primeiromotivo de discórdia. O mais velho preferia as notícias e os eventosdesportivos, o mais novo fascinava-se com os anúncios e osprogramas musicais. Joaquim concedia, por deferência hierárquicae porque, embora Luís o protegesse no exterior, dentro de portasnão abdicava dos privilégios da troça concedidos aos irmãos quenasceram primeiro. Durante anos, e depois de ter sido apanhado aexperimentar o foxtrot com uma almofada, Joaquim não foi capaz dedançar diante de Luís, que lhe disse: «Costuma ser o homem aconduzir, não a almofada.» Em seguida, porque assumira o posto doprogenitor ausente, atirou: «Não sejas um fucking pussy e vem masé comigo ao ginásio dar uns murros em alguém.»

Um ano após chegar a Nova Iorque, na primavera de 1925,Joaquim iniciou a mutação de rapazote para protótipo de homem.Em poucos meses, deu um pulo em altura e ganhou corpo,engrossou o buço e as patilhas. O que perdeu em doçura na voz

acrescentou em confiança. O rosto ficou mais anguloso, as mãos eos pés tornaram-se apêndices demasiado grandes que ele nãosabia conter, derrubando copos e tropeçando em carpetes. «Estásmesmo naquela idade em que não és carne nem és peixe», dizia-lhe o tio. O vaticínio de Domingos referia-se à transição física dosobrinho, mas podia aplicar-se também ao despontar da confusão eda ousadia da adolescência. Nova Iorque, a cidade mais populosa ecosmopolita do planeta, precipitava essa transformação, despertavaa curiosidade do rapaz com a interminável oferta de revelações eexperiências na ilha de Manhattan.

Aos poucos, Joaquim ia saindo da sombra do irmão, atrevendo-sea gostar de outros filmes e de outras músicas, tentando ler até aofim os livros que Luís recebera do tio e que abandonara — MobyDick, O apelo selvagem, O último dos moicanos, A ilha do tesouro.Seguia as tiras de banda desenhada nos jornais e estreara-se comoespectador de teatro vaudeville pela mão de Inácio Capote, filho deemigrantes portugueses, vizinho da Rua Sullivan e ajudante namercearia do pai. Mais velho do que Joaquim, Inácio Capotetambém distribuía os tijolos de vinho de Domingos. Era umdesenhador compulsivo, nunca se lhe viam as unhas sem carvão ouuma peça de roupa que não estivesse suja de tinta. Pintavacenários para companhias amadoras de teatro e levou Joaquim afestas em apartamentos partilhados por jovens que se proviam dacriatividade para manter o moral e justificar as privações da vidaartística na grande cidade. Todos tinham uma missão. Todos seriamreconhecidos pelo seu contributo. Queriam retratar e definir o seutempo. Faziam parte do salto civilizacional que surgira dosescombros da Grande Guerra e sob os quais definhavam, sem seextinguir, o constrangimento vitoriano e o puritanismo religioso.

Joaquim, arquétipo do irmão mais novo a quem o mais velho fez ofavor de derrubar barreiras e abrir o sendeiro para a liberdade,também se tinha aproveitado da ausência do pai severo quedisciplinara Luís. Durante quatro anos, na propriedade do doutorAthaíde, com o irmão em Nova Iorque, Joaquim fora o filho único deuma mãe viúva que o deixava à solta e lhe fazia todas as vontades.

Em Manhattan, pendurado nos elétricos que o levavam de um

comício em Midtown para uma sessão de cinema perto deWashington Square, à boleia das conversas do tio sobre religião ouescutando os discos de Gershwin e de Cole Porter que InácioCapote punha a tocar na vitrola, Joaquim falava com genica e agiacom arrojo, sendo amiúde designado como a alma da festa e osujeito dos palpites mais otimistas: «Este miúdo vai chegar longe.»

Cada um dos irmãos procurava a sua tribo e a sua história naAmérica. Luís revia-se no espírito industrioso dos arranha-céus edos aviões, no poderio militar, tecnológico e científico de um novoimpério. Seguia os avanços na medicina como se fossemconquistas pessoais. Quando soube o que era uma cesariana (ecomo se fazia), o seu espanto e gratidão podiam equiparar-se aodeslumbre de Joaquim ao ouvir Rhapsody in Blue pela primeira vez.

Luís partilhava a admiração do tio pela frase da Declaração daIndependência, que Domingos mandara emoldurar e pendurar noescritório do sindicato, após riscar duas palavras: «Consideramosestas verdades como evidentes por si mesmas, que todos oshomens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitosinalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procurada felicidade.»

Joaquim, depois de ouvir uma atriz recitar o primeiro verso de umpoema numa tertúlia na Rua Bleecker, visitou a biblioteca, pediu umlivro de Walt Whitman e traduziu para português, com ajuda dodicionário, as palavras americanas, tentando encontrar umaexplicação para o fenómeno espiritual que sentira ao escutar: «Eucanto o corpo elétrico/ Os exércitos daqueles que amo envolvem-mee eu os envolvo,/ Não me largam até que vá com eles, que lhesresponda.» Joaquim era esse corpo elétrico em marcha numacaravana de gente nova e diversa e revolucionariamente boémia,que se propunha a edificar, através da arte, a Nova América doséculo XX.

Por sua vez, Luís queria escalar os degraus da democraciaamericana, lançada pelos sábios pais da nação, um sistema deméritos, equilíbrios e justiças que, ele estava certo, tanto alçava umsapateiro de Cork a dono de uma rede de sapatarias em Queens

como o filho de um caseiro de Cascais a agente da Prohibition Unit,com direito a crachá dourado, coldre e revólver.

Aniversários em Nova Iorque. Quatro de julho de 1920: a primeiravez que Luís viu fogos de artifício. Quatro de julho de 1925: aprimeira vez que disse a alguém que se candidatara a prohi,alcunha pela qual eram conhecidos os agentes que fiscalizavam aaplicação da Lei Seca. Para celebrar o dia de anos, Luís convidou oirmão para beber um batido de chocolate, dando-lhe as novidadessobre o seu futuro profissional. Depois levou-o ao Circo da China,onde viram trapezistas, cães amestrados, cuspidores de fogo, aencenação acrobática de uma batalha entre índios e caubóis, e umsósia de Gengis Khan que dobrava barras de ferro. Joaquim achavao programa um tanto infantil e, após a apresentação dos palhaços,que não o fizeram rir uma só vez, deixou de aplaudir os artistas empalco.

«Não estás a gostar?», perguntou Luís. Havia algum tempo queJoaquim se sentia tratado como uma criança. O irmão não gostavaque ele fumasse ou bebesse. Tinha-o proibido de acompanharInácio Capote nas entregas dos tijolos de vinho.

À saída do teatro, Luís usou o indicador para delinear a colossaltesta do imperador mongol no cartaz que anunciava: Genghis Kahn,o homem mais forte do mundo.

«Uma coisa te garanto, kid», disse Luís. «Se houvesse umcampeonato de cabeçadas, fuck me se este chump não ganhava otítulo.»

Entre si, os irmãos falavam português e serviam-se do shit, dofuck ou do damn como pontuação da língua materna. Misturavam osdois idiomas, criando o dialeto atlântico dos Paixão Leal.

«Gostaste, kid?», perguntou Luís enquanto caminhavam no meioda multidão que celebrava o feriado da independência dos EstadosUnidos, vibrante de calor e patriotismo.

«Só não percebo porque é que os índios são sempre os bad guys,até no Circo da China», respondeu Joaquim. «E olha que oschineses bem que got fucked a construir o caminho de ferro destepaís.»

Cada vez menos convicto do encargo da obediência, embora

temeroso de confrontar ou desiludir o irmão, em segredo Joaquimfumava, bebia e distribuía o álcool produzido na cave do tio. Seguiao trilho ideológico de Domingos, um pé na resistência aosopressores, outro na defesa dos oprimidos. Também aderira à fasenativo-americana de Inácio Capote, que retratava os grandes chefestribais, em óleo sobre tela, como os mestres do Renascimentohaviam feito com os monarcas europeus. Na sua pesquisa, InácioCapote descobrira como a população indígena fora aniquilada peloscolonos e pelos exploradores. Decidira por isso inverter o papel doherói e do vilão no imaginário da conquista do Oeste. Inspirado peloquadro Fuzilamentos de três de maio, de Goya, Inácio Capotepintou um tríptico do Massacre de Red Fork, em 1865, quando osrangers comandados pelo coronel Moore mataram cento e quarentaíndios comanches, incluindo mulheres e crianças.

«Nunca ouviste dizer que a História é escrita pelos vencedores?»,perguntou Luís quando passavam por um bando de miúdosesfarrapados, com socas de madeira, que lambiam um bloco degelo sobre uma carroça. O cavalo estafara, o dono tinha largado acarga e um talhante afiava já um facalhão para esquartejar o animal.

«Dizes isso como se fosse uma coisa boa», respondeu Joaquim.O desejo de romper a costura da irmandade exprimia-se na

tendência de Joaquim para trazer para a conversa assuntos que osopunham. E agora, que Luís queria ser funcionário de uma Políciaque forçava o cumprimento de uma lei criada pela América puritanae anti-imigração, o irmão mais velho passara a representar tambémos poderes instituídos.

«Não é o fucking Darwin que defende a lei do mais forte?»«Não», respondeu Joaquim. «For fuck sake, se isso fosse

verdade, os dinossauros ainda cá andavam.»«Pareces o papagaio do tio, repetes o que ele diz palavra por

palavra.» Luís tinha o dom dos irmãos mais velhos para espicaçaros mais novos. Queria manter Joaquim no caminho que ele própriotraçara. Conhecimento e ciência, sim, mas também o respeito aohino, a gratidão ao país que os acolhera. Luís queria ser americanopor assimilação e conformidade. Joaquim achava que não havianada mais americano do que o direito à diferença e à sublevação.

Submergiram na estação de metro da Rua 42. Tinham combinadover os fogos de artifício na margem do rio. Suaram em silêncio atéque um bafo quente levantou as folhas dos jornais da plataforma esinalizou a chegada do comboio, acompanhado pelo cheiro do ferrooxidado, do óleo queimado e dos túneis húmidos. Dentro docomboio, Joaquim defletiu a tensão das ideias para o corpo. Jáalcançara Luís em altura. A novidade da sua compleição de rapaz-homem era mais um recurso no despique com o irmão. Comoacontecia com tantos rapazes da sua idade, estava programadopara pisar o risco das limitações e esticar a corda da intrepidez.

«Vê lá se consegues fazer isto», disse, antes de se agarrar aovarão da carruagem e, como os ginastas que vira no circo,suspender o corpo na horizontal, formando um ângulo reto com otubo metálico.

«Com uma perna atrás das costas, kid», respondeu Luís.Na estação da Rua 14, regressaram à superfície da ilha, que

entretanto anoitecera. Seguiram o rasto da brisa de salitre quechegava do rio. Na margem, os pés esbofetearam a madeira do caise Joaquim largou os sapatos, as calças, sempre em movimento,mergulhando no Hudson e rasgando a água com um grito de chefeíndio.

Luís viu o irmão desaparecer e encostou-se a uma estaca. Enfioutabaco entre a gengiva e a bochecha, contemplou os rolos de fumonegro das fábricas, em Hoboken, e das chaminés do SS Californiaque zarpava para a Europa. Era testemunha da supremacia doHomem e da máquina. Sentia-se parte dessa modernidade, já forauma peça na engenharia que continuava a esburacar o fundo do riopara chegar a Nova Jérsia. Trabalhara no túnel dez horas por dia,seis dias por semana, encardido de terra até aos dentes, músculosdoridos e rum anestésico entre e durante os turnos. Ele era apenasmais um entre os milhares que tinham chegado de aldeiaspiscatórias da Galiza ou dos latifúndios do Mississípi. Havia quemfugisse à revolução bolchevique ou à guerra na Irlanda. Judeusescorraçados da Europa de Leste no Lower East Side. Italianosameaçados pela ascensão de Mussolini na Rua Mott. Portuguesesfura-vidas na Sullivan. Avós que vendiam fruta na rua, netos-ardinas

a gritar as manchetes dos jornais, mães a coser roupa nassweatshops e pais que soldavam barcos nos estaleiros. E pluribusunum, diziam as notas de dólar. Havia riqueza e pobreza quechegasse para todos.

Que o aniversário de Luís coincidisse com o feriado nacional daIndependência era um daqueles sinais que o tio desconsideravacomo acaso e matemática: «A probabilidade de isso acontecer é deum em trezentos e sessenta e cinco. Há milhões de pessoas quenasceram a quatro de julho.» Mas Luís atribuía a essa coincidênciaa validação do seu americanismo. Era tão americano como asbandeiras de estrelas e listas, flácidas pela falta de vento, na popados barcos de recreio que boiavam no Hudson à espera dos fogosde artifício. Tão americano como os passageiros loiros a bordo, quefumavam charutos enquanto ele mascava e cuspia tabaco. Não setratava apenas da fé no excecionalismo da nação e dos seushabitantes. Ser americano também era um disfarce, a imunidadeconferida pelo anonimato no outro lado do mundo. Nenhumabagagem ou biografia prévia, apenas a tábua rasa dosrenascimentos. «Não interessa de onde vens», dissera-lhe o tio,«apenas aonde podes chegar.»

Umas dezenas de metros mais abaixo, na margem do Hudson,um grupo de negros acendia uma fogueira. Pescavam para comer.Já deveriam ter recolhido ao Harlem. E pluribus unum, sim, mascada unum na sua coutada. Os negros gritavam-lhe alguma coisa,apontavam na direção da água.

«Salta», disse um deles.Os primeiros fogos de artifício esburacaram o céu e desbordaram-

se sobre a cidade, espelhando-se no rio. Luís percebeu queJoaquim boiava de bruços, a cara enfiada na água, o corpo umaalforreca inerte que mudava de cor a cada explosão dos fogos. Nabeira do cais, Luís não conseguia mexer-se. Estava outra vez namadrugada de dois de janeiro de 1920. Sexta-feira de chuva. Umpuxão na roupa da cama, uma brasa de cigarro a palpitar no breu, opai em queda, sugado pela corrente marítima.

«Não sejas maricas, pá», berravam os negros. «Nunca vamosmorrer», exigiram-lhe. Não, nada disso. No exterior da memória que

encapsulou Luís na beira do cais, os negros gritavam apenas:«Salta.»

E ele pulou, sem saber nadar, porque o Hudson não era a Bocado Inferno, porque Joaquim não era o Chico Caseiro e porque umhomem raras vezes tem a oportunidade de reparar o que não logrounuma primeira vez. Mas sobretudo porque não podia falhar apromessa feita ao irmão.

Nunca vamos morrer.O corpo afundou-se na água e os pés tocaram no lodo. Luís

esbracejou para a superfície. A sua aflição foi recebida pelo riso deJoaquim, que afinal tinha pé e água pelo peito.

«Caíste que nem um fucking sucker», disse o mais novo,levantando os braços como o campeão das rivalidades fraternas. Otítulo era interino. Luís forçou-se contra a água, arcando com aculpa da morte do pai e com a zanga que lhe provocara aquelapartida de mau gosto, para se lançar sobre o irmão e lhe despejaruma saraivada de chapadões.

«Tanto queres ser meu pai que, olha, parabéns, és igual a ele»,disse Joaquim, estendendo o queixo em desafio. Se estava dispostoa dar a outra face, não era por mansidão cristã. Queria provar que asoldadura do seu caráter não era tão branda como supunha Luís. Oirmão agarrou-o pelo cabelo e arrastou-o para a margem. Os negrosaproximavam-se com passadas largas.

«Para casa, agora», berrou Luís.E então, quando os negros já estavam perto e puderam

reconhecer o baque de um punho fechado na cavidade orbital deum crânio, Luís sentiu a reverberação do soco de Joaquim comonunca acontecera no ringue. Homens muito mais fortes já o tinhamesmurrado. Nenhum o deixara tão aturdido — de surpresa, derebaixamento, de traição — como aquele fedelho que, sabendoarriscar a maior tareia da sua vida, estava pronto para asconsequências da falta de respeito pelos mais velhos.

«Fuck you. Não mandas em mim», disse Joaquim.Os irmãos como índios e caubóis. Uma ancestral linhagem de

antagonismo. Ivan e Aleksei Karamazov. Esaú e Jacob. Luís eJoaquim Paixão Leal na margem do Hudson, rodeados por um

grupo de negros que, sem conhecerem o laço de sangue dosoponentes, quiseram separar aquilo que só em família se resolve.

Luís não deixou que ninguém lhe tocasse. Correu para otorvelinho de luz da cidade. Não pôde ver como as pernas do irmãoruíram sob o soluçar do peito ou como os negros o ampararam comuma garrafa de aguardente. Chegou a casa encharcado e com umolho entumecido. Na cama superior do beliche, onde dormia,encontrou um embrulho com a letra do irmão: «Parabéns, sucker.»Lá dentro estava um almanaque artesanal, encadernado a cordel. Acapa, colorida, identificava Inácio Capote como criador dosdesenhos e Joaquim como escritor. Sob o título The passionbrothers, havia duas figuras parecidas com Joaquim e Luís, vestidasde índios e montando a cavalo. The passion brothers era a históriade um par de órfãos criados por uma tribo, longe de casa. Irmãosque nunca seriam completamente índios nem completamentebrancos. Exemplares de uma espécie única, leais por natureza econsanguinidade, forasteiros à deriva no Oeste inexplorado.Procuravam o antídoto para a maldição que lhes fora lançada pelofeiticeiro de uma tribo inimiga: no dia em que um morresse, o outromorreria também.

A ideia surgiu a Domingos assim que os jornais começaram anoticiar o que se passava em Dayton. Queria mostrar aos sobrinhosa paisagem e a beleza continental da América. Mas também ocisma entre progressistas urbanos e conservadores rurais. Estaseria a mais aventurosa das visitas de estudo. Em vez demonumentos em Nova Iorque, fariam a travessia de oito Estados epercorreriam quase dois mil quilómetros para que, numa pequenacidade do Tennessee, pudessem presenciar o julgamento queopunha os espíritos contrários da sua época e que, esperava o tio,decretaria de uma vez por todas a prevalência do pensamentocientífico sobre o obscurantismo religioso, da liberdade deexpressão sobre o dogma puritano.

Em maio de 1925, o professor John Scopes fora denunciado porensinar a teoria da evolução das espécies no liceu de Dayton. Dasescolas primárias às universidades — segundo a lei do Estado doTennessee —, era proibido lecionar outra versão da origem do

Homem que não fosse a consagrada na Bíblia. Seis décadas após ofim da guerra civil e da escravatura, o Sul fora vencido sem nuncater abdicado da mundividência que levara à sedição: Deus criara oUniverso havia meia dúzia de milénios e escolhera os cristãosbrancos para governar o planeta, as outras raças e os animais,corroborando assim a validade da supremacia do protestantismo docolonizador europeu. Além das inúmeras referências à escravaturade povos inimigos no Antigo Testamento, tinham a seu favor aspalavras do apóstolo Paulo no Novo Testamento: «Escravos,obedeçam cuidadosamente aos senhores que tiverem neste mundo.Façam-no com lealdade, como se estivessem a servir Cristo.»

A lei do Tennessee, justificavam pastores e congressistas,protegia as crianças do Sul da degradação moral do Norte, onde seensinava Darwin e onde as mulheres, que já podiam votar, cobriama cara com maquilhagem e bebiam em bares ilegais, escreviamcolunas de jornal com pseudónimos como Lipstick, advogando aspotencialidades do clitóris com a mesma impertinência com queEva, surgida da costela do primeiro homem, convencera Adão acomer o fruto da árvore do conhecimento.

Dezassete de julho de 1925: a primeira vez que Luís entrou noEstado da Pensilvânia, quando Domingos ministrava a Joaquim ocurso iluminista que se prolongaria durante boa parte da viagem decomboio e na curta estada em Dayton. O tio explicava as leissegregacionistas do Sul, conhecidas como Jim Crow por causa dapersonagem da cultura popular com o mesmo nome, interpretadapor atores brancos com a cara pintada de negro e que parodiava oescravo burro, mandrião e desonesto.

«No Sul, um negro pode ser preso por coisas tão disparatadascomo comportamento pretensioso», disse Domingos.

«Sim, porque em Nova Iorque os pretos vão onde querem e nãohá lojas com cartazes a proibir a entrada a cães e a judeus»,provocou Luís, que, no início do percurso, ainda tentou contestar aslições do tio, lembrando-o da convenção do Partido Democrata noano anterior, em Manhattan, na qual centenas de delegados setinham recusado a condenar a violência do Ku Klux Klan.

«E a marcha do KKK, já não te lembras?»

Um ano antes, vinte mil pessoas haviam marchado, em NovaJérsia, protestando contra a convenção do Partido Democrata, noEstado vizinho de Nova Iorque. Tratara-se de uma espécie depiquenique-manifestação, com casamentos e batizados celebradospor pastores do Klan e barracas de feira onde, por cinco centavos,se podia amassar uma esfinge do candidato democrata Alfred E.Smith com três bolas de beisebol. Sobre a relva e na sombra deárvores, avós, pais e filhos desfrutaram da supremacia branca numambiente pastoral, sem violência. O evento culminara, após o cairda noite, com o desfile de quatro mil encapuzados. Sem negros nasimediações que pudessem ser convocados para a festa, osmembros do Klan ficaram-se pelo tradicional atear da cruz,adorando a madeira flamante e a corda presa num galho que, paradesfeita de quem pagara bilhete, não balançava nenhumdescendente de escravo.

«Nunca disse que o Norte era perfeito», respondeu Domingos. «Oespetro da ignomínia não tem apenas duas cores. Nem sequercostuma ter fronteiras. No fundo, acho que tu e eu estamos domesmo lado.» Tinha razão. Entre o tio e o sobrinho havia maisconcordância do que discórdia. Luís entrara na era doesclarecimento em Nova Iorque, ao longo de vários anos deensinamentos sobre os artifícios dos homens que abusam do poder.Conhecia a importância do questionamento das verdadesasseveradas sem provas, algo que lhe serviria de bússola nacarreira de polícia.

O problema não eram as ideias de Domingos, mas a teimosiapanfletária — se não mesmo intelectualmente pedante — com que otio massacrava quem lhe desse uma abébia para debates epolémicas. Que o atual discípulo do Missionário da Razão fosseJoaquim — e que este assumisse o posto com um júbilo que oirmão mais velho nunca mostrara — só acentuava a irritação deLuís.

Quando Domingos, no comboio, começou a recitar os quatromandamentos do seu manifesto detrator da religião — «Ocristianismo é factualmente falso, moralmente repreensível,intelectualmente desonesto e objetivamente prejudicial» —, o amuo

de Luís converteu-se em tédio. Enfiou o chapéu na cabeça, inclinou-o para diante e procurou adormecer.

«Factualmente falso», disse Domingos, «porque, como é óbvio aoler a Bíblia, não foi Deus que fez o Homem à sua imagem, mas ocontrário. Os homens que escreveram a Bíblia não sabiam nadasobre o mundo, acreditavam que um terramoto era um castigodivino.»

Domingos começou a trucidar as inconsistências e as falácias dolivro de abertura do Antigo Testamento, citando Génesis 1-25:

«Deus criou todas as espécies de animais selvagens, animaisdomésticos e todos os bichos.» Apontou que, durante milhões emilhões de anos, não houvera animais domésticos no planeta, umavez que o Homo Sapiens nem sequer existia para os domesticar.«Imaginas um crocodilo a pastorear um cardume de atuns?»,perguntou a Joaquim. A ideia de que Deus amansara cavalos para ousufruto do Homem era tão ridícula como a tese da paternidade deNoé, pela primeira vez, ao fim de cinco séculos de vida. «Nãoconsigo entender como as pessoas do século vinte se regem por umlivro que foi inventado por cabeças da Idade do Ferro.»

Luís caiu no sono quando Domingos contrapunha o que a ciênciasabia sobre o aparelho reprodutor da mulher às palavras de Deusdirigidas a Eva após o debacle do fruto: «E à mulher disse: “Voufazer com que sofras os incómodos da gravidez e terás de dar à luzcom muitas dores. Apesar disso, sentirás forte atração pelo teumarido, mas ele há de mandar em ti.»

Luís acordou quando chegavam a Baltimore. Levantou-se ecaminhou até ao fim da composição, desentorpecendo os músculos.Domingos estava no capítulo Fabricações dos evangelhos de formaa baterem certo com as profecias do Antigo Testamento, alínea a: avirgindade de Maria. «Em Mateus e Lucas fala-se da gravidezimaculada, mas em João e Marcos nem uma referência. Não era deesperar que a pedra-base do cristianismo fosse mencionada emtodos os evangelhos?»

O calor escaldava os assentos, Domingos tinha o colarinho dacamisa encharcado e, de tanto falar, os cantos da boca estavamsecos, com uma mistela branca, lembrando Luís dos

evangelizadores alucinados que apareciam nas esquinas de NovaIorque a anunciar a segunda vinda de Cristo e o Armagedão.

«Hórus, deus egípcio. Mitra, deus persa. Krishna, deus hindu.Dioniso, deus grego», disse Domingos. «Todos nasceram de umavirgem e ressuscitaram três dias após a sua morte. O cristianismo éapenas um plágio mais bem-sucedido do que os originais.»

Na capital, Washington, tinham de esperar para fazer otransbordo. Saíram da estação à procura de um restaurante.Afortunadamente para Luís, a refeição manteve a boca do tioocupada com outras coisas além da Bíblia. No passeio com sombra,no outro lado da rua, formava-se um ajuntamento. Uma loja deeletrodomésticos transmitia a emissão radiofónica do julgamento deJohn Scopes através de um altifalante na fachada. O advento darádio unia o país dividido.

Domingos foi à casa de banho e, pela janela do diner, Joaquimobservou três raparigas que, como grande parte dos americanos,seguiam a emissão, em tempo real, do que acontecia na sala deaudiências em Dayton.

«Aposto um dólar contigo», disse Joaquim, «como consigo queuma daquelas baby vamps te dê um beijo antes de irmos embora.»

Luís riu-se e atirou-lhe a palhinha do refrigerante:«Já a formiga tem catarro.»Após o soco na margem do Hudson, os irmãos não se falaram

durante mais de uma semana. No quarto que dividiam, o olho negrode Luís era aquilo que ninguém queria mencionar. Só quando ohematoma se diluiu na pele morena trocaram as primeiras palavras,sem nunca referir o sucedido na noite de quatro de julho. Nessasinterações, faziam um cauteloso caminho de regresso ao quesempre tinham sido, mantendo-se dentro do perímetro das coisasque os aproximavam: as miúdas, o cinema, a música, o boxe, gozarcom os defeitos físicos de alguém conhecido. O arrependimento eratão doloroso como seria um pedido de desculpas. Ao menos odespeito ia sendo substituído pela expiação. No código daquilo quenão precisava de ser dito entre irmãos, constava o postulado Eu seique tu sabes que eu sei, mas não se fala mais nisso.

Joaquim saiu do diner, meteu conversa com as raparigas e

apontou para a janela, onde Luís respondeu ao aceno das babyvamps. Até que fosse hora de apanhar o comboio, o dueto PaixãoLeal apresentou o seu número de humor e engate, com Joaquim afazer o papel de Sancho Pança, vendedor da nobreza do Quixotepugilista. Enquanto o mais novo elevava o irmão ao Olimpo doslutadores — «Os jornais já dizem que ele é o próximo JackDempsey» —, inventando-lhe um combate no Tennessee contra ummatulão do Ku Klux Klan, Domingos pendurou-se nas notícias darádio. O locutor falava da escolha dos jurados que decidiriam aculpa ou a inocência de John Scopes: seis batistas, um metodista,um discípulo de Cristo e um cristão não praticante. «Num contextojurídico», disse o locutor, «talvez se possa dizer que este júri é justo,mas chamar-lhe imparcial seria cuspir no olho da razão.» A vozrelatou ainda como Clarence Darrow, o advogado de defesa deScopes, desistira de escolher os jurados após o seguinte diálogo:

Darrow: «O senhor já leu a A origem das espécies, na qual seexplica a teoria da evolução?»

Jurado: «Não consigo.»Darrow: «Por causa dos seus olhos?»Jurado: «Porque não sei ler.»Quando voltaram ao comboio, Joaquim enriquecera um dólar,

Luís levava o batom de um beijo na bochecha e Domingos apanharauma arreliação com as notícias do que se passava em Dayton:

«Onde é que já se viu? Uma mão-cheia de ignorantes a decidiruma questão científica. É o mesmo que entrar num hospital e, emvez de um cirurgião, dar de caras com um lenhador.» O fôlegohúmido e fervente das matas da Virgínia entrava pelas janelasabertas da carruagem e afrouxava o acinte de Domingos,afundando-o num marasmo suado e depressivo. «Se o Darrow nãoganhar isto, ninguém ganha.»

Clarence Darrow era um sessentão de feições teutónicas,têmporas rapadas e franja de prata. O hábito de vestir roupas porengomar em nada comprometia as prestações implacáveis numtribunal. Uma das suas alegações finais, num caso de homicídio emChicago, durara doze horas e tornara-se um sucesso de vendasquando publicada em livro. Opositor da pena de morte, e um dos

primeiros advogados a recorrer a testemunhos de psiquiatras, foracontratado pela American Civil Liberties Union como líder da equipade defesa de John Scopes.

O seu opositor na barra do tribunal — e amigo de longa data —tinha dons oratórios de profeta e apresentava uma tonsura defarripas grisalhas. William Jennings Bryan, contratado peloMinistério Público local, era um ex-congressista e ex-membro doGoverno. Figura proeminente do Partido Democrata, três vezescandidato perdedor a presidente, largara a política para se tornarmissionário da Bíblia, tornando-se uma das individualidadesreligiosas mais conhecidas do seu tempo. Os livros que escreviaesgotavam. Os sermões, no seu programa semanal de rádio, eramseguidos por milhares de famílias em todo o país.

Os jornalistas aproveitavam a notoriedade e o voluntarismo dosdois advogados para montar o espetáculo de massas. Pela primeiravez, as câmaras filmaram as sessões num tribunal e as imagenspassavam nos newsreels dos cinemas. «O julgamento do século»,gritavam os ardinas de Norte a Sul. As rádios e os jornaisarquitetavam um enredo de opostos que satisfazia o dualismoguloso dos leitores e dos ouvintes. O julgamento não era sobre umprofessor que infringira a lei. Era a exibição do duelo entre duasAméricas, o retrato da fricção e do equilíbrio inconciliável entre oantigo e o moderno. Esquerda e direita, branco e preto, retrógradose heréticos. Os conservadores temerosos do futuro contra osprogressistas negligentes do passado. A América dos latifundiáriosda Geórgia e a América dos bairros de lata de imigrantes em NovaIorque. A América dos abstémios contra a América dos bêbedos. AAmérica da congregação radiofónica de Bryan — para quem oentendimento não literal da Bíblia transviava os alicerces morais danação — contra a América que via em Darrow o porta-voz do SéculoAmericano das Luzes. «O medo de Deus não é o princípio dasabedoria», dissera ele. «O medo de Deus é a morte da sabedoria.»

Durante a noite, a temperatura deu tréguas e uma infusão dehumidade e clorofila soprou pelas janelas da carruagemadormecida, fazendo adivinhar no escuro uma extensão de campose arvoredo. Luís abriu os olhos num apeadeiro da Carolina do Sul. O

irmão tinha tombado a cabeça no seu ombro. O tio deitara-se nobanco, em posição fetal, as pernas encolhidas, o casaco a fazer detravesseiro, tão desprotegido no sono profundo, que o sobrinhoconseguiu imaginá-lo num berço, acabado de nascer. O quadro dafamília foi impresso numa cópia a cores, em papel fotográfico, namemória de Luís, juntamente com vários anexos olfativos esentimentais. Ferrugem de carris, vapor de locomotiva, brilhantinacediça na cabeça dos passageiros e um arroubo de amor, peloirmão e pelo tio. Sem saber precisar porquê, Luís antevia umafastamento para breve, o fim de um período que, dentro de muitosanos, lhe pareceria o mais feliz da sua vida.

Chegaram a Atlanta e tomaram o pequeno-almoço no UnionDepot Restaurant, na estação de caminhos de ferro. O tio tinhapressa de chegar a Dayton e negociou os serviços de um taxistaenquanto bebia o café ao balcão. Cruzaram uma cidade comelétricos e automóveis e cartazes publicitários e arranha-céus eestaleiros de obras. Uma cidade que não correspondia à imagemcom que Luís estampara o Sul. Não tinha visto linchamentos denegros, porcos à solta na poeira do fim do mundo, campónioslesados pela consanguinidade dos pais e dos avós. Deixando paratrás a cintura industrial de Atlanta, passaram por carroças quecarregavam famílias inteiras para a excursão de fim-de-semana àmetrópole. Viram rafeiros esmagados no alcatrão e prisioneiros queasfaltavam a estrada sob a vigilância de guardas a cavalo. De pésacorrentados, entoavam hinos religiosos com a mágoa dascantilenas dos escravos que pariram o blues.

Chegaram a Dayton a tempo de participar na feira que, desde oinício do julgamento, se montara à volta do tribunal. Bancas decachorros-quentes e de gelo, porcos assados no espeto evendedores de simiescos bonecos de madeira. Havia váriostratadores e trupes de chimpanzés que, vestindo fardas militares eacenando com bandeiras, atuavam para pais e crianças. Depois deos jornalistas terem esgotado o título O julgamento do século,entrara em uso O julgamento do macaco, que aludia ao despautériode Darwin. O homem não era filho de um chimpanzé, contestavamos religiosos, que tinham exultado com a decisão do juiz de vetar o

testemunho de cientistas chamados a depor por Darrow, com o fimde elucidar os mecanismos da evolução e desfazer a ideia de queDarwin defendia que o Homem era descendente dos chimpanzés.

Durante a viagem, o taxista dissera que o melhor do julgamento jáacontecera. Da centena de repórteres que havia improvisado umcentro de imprensa no armazém de uma drogaria, muitos tinhamabandonado a cidade após as alegações finais da acusação, certosda vitória da equipa de Bryan. O próprio arguido, John Scopes,confessara: «Não foi tanto o que ele disse, mas a forma comofalava. Quando terminou, eu estava hipnotizado.»

Foi exatamente Bryan que os Paixão Leal encontraram numpalanque, a meio da prédica de domingo, debaixo de uma faixa quedizia: «Leiam as Escrituras.» O tio pediu ao taxista para esperar edesceu do automóvel acompanhado pelos sobrinhos. De pronto,abanou a cabeça, anunciando o seu mal-estar.

«Não lhe chega que lá dentro as testemunhas jurem com a mãoem cima da Bíblia, também dá missa à porta do tribunal?» Oscomentários de Domingos acerca do sortilégio que cativava os fiéisprovocaram um crescente virar de cabeças, e os sobrinhosconvenceram-no a sair dali e a procurar alojamento. Não havia umacama livre na pequena cidade. Domingos combinou com o taxistaum valor para que dormissem no carro. Só não lhe disse que nopreço estava incluída a obrigação de ocupar o posto de ouvinteassim que os sobrinhos desertassem para a feira.

«O cristianismo é intelectualmente desonesto», disse Domingos.«Aproveita-se do medo e da insegurança dos homens, oferecendo-lhes a promessa de uma vida após a morte. Perpetua o desenganode geração em geração, entranha-se na mente influenciável dascrianças desde cedo, cultiva a fé cega em detrimento dopensamento crítico, como aliás afirmam os evangelhos: “Felizes osque creram sem terem visto.” Mas em que outra dimensão dasnossas vidas dispensamos o conhecimento em prol da devoção? Seeu dissesse que o seu táxi podia voar ou que o seu irmão andava aroubar-lhe dinheiro, o senhor não exigiria provas?»

Quando regressaram da feira, os irmãos encontraram o taxista aovolante, cabeceando de sono como uma esposa impedida de dormir

pelas lamentações do marido na cama. O tio não devia ter feitosequer uma pausa para beber água.

«É preciso ser-se muito arrogante para achar que o Universo foicriado para nós. E com que objetivo? Para que uns quantosmacacos pudessem matar outros macacos e ver quem acredita nodeus certo?»

«Vamos descansar, tio?», disse Joaquim, com uma paciência queo irmão esgotara algures entre o desembarque em Atlanta e o cercodas fações prosélitas que rivalizavam em Dayton.

Nessa noite, Luís não conseguiu dormir no espaço exíguo e durodo assento traseiro. Quatro homens num automóvel, a flatulência domotorista, o espernear dos sonhos de Joaquim, o ressonar deDomingos. Metralhado pelos mosquitos, sem poder fechar asjanelas por causa do calor, Luís procurou reviver o quadro familiarque conservava da noite no comboio. Mas a privação do sonodeixava-o irascível. Até uma memória feliz era motivo de zanga. Emvez do tio que dormira em paz numa carruagem de comboio, Luísvia mais um protagonista da orquestração do julgamento. De tantoquerer martelar a verdade na cabeça dos crentes, fascinado com osom da própria voz quando tinha uma audiência, Domingoscomportava-se com a mesma cegueira e intolerância dostrapaceiros que queria desmascarar.

De manhã, os Paixão Leal comeram numa das barracas da feiraenquanto senhoras tiravam retratos de fotógrafo ambulante com umchimpanzé que segurava um exemplar da Origem das espécies. Umhomem passou por eles com uma bandeira que dizia «Darwin temrazão» e anunciou que a audiência teria lugar no exterior do tribunal.Devido à sobrelotação da sala, as vigas tinham cedido algunscentímetros e, por segurança, o juiz ordenara uma sessão ao arlivre. Essa, porém, não era a grande novidade do dia.

Darrow executou uma manobra legal que deixou Domingosextasiado. Impedido de chamar especialistas que certificassem avalidade da ciência, o advogado de defesa, teatral e agarrando ossuspensórios vermelhos com os polegares, chamou a depor alguémque se prestasse a defender a veracidade da Bíblia: William

Jennings Bryan, o procurador convidado pela acusação e autoridademáxima das Escrituras Sagradas.

Darrow: «A Bíblia diz que Josué ordenou que o Sol se detivessecom o objetivo de prolongar o dia, certo? O senhor acredita nisso?»

Bryan: «Acredito que Deus poderia ter resolvido esse problema.»(…)Darrow: «Acredita que Deus fez com que um peixe gigante

engolisse Jonas?»Bryan: «Sim, um milagre é um milagre.»Darrow: «Para o senhor, é fácil acreditar nisso?»Bryan: «Se a Bíblia o diz… E olhe que a Bíblia não apresenta

assunções extremistas como as suas, como as dos evolucionistas.A vossa definição dos factos inclui muita imaginação.»

Darrow: «A sua definição dos factos exclui tudo, menos aimaginação.»

(Os leques agitavam-se entre as centenas de espectadores.Domingos sussurrou para os sobrinhos: «Imaginação não lhes falta,até gigantes há na Bíblia.»)

Darrow: «Acredita que o Sol foi feito no quarto dia e que houvemanhã e tarde, mesmo sem Sol, nos dias anteriores?»

Bryan: «Acredito na História da Criação como ela nos é contada,não consigo explicá-la, mas aceito-a.»

(…)Darrow: «Acredita que a história do dilúvio é literal?»Bryan: «Sim, senhor.»Darrow: «Quando aconteceu o dilúvio?»Bryan: «Não poderia estabelecer uma data. Mas há uma

estimativa.»Darrow: «Cerca de quatro mil anos antes de Cristo?»Bryan: «Essa tem sido a estimativa aceite.»Darrow: «Sabe quantas pessoas havia no Egito há três mil e

quinhentos anos, ou quantas viviam na China há cinco mil?»Bryan: «Não.»Darrow: «Alguma vez tentou saber?»Bryan: «Não. O senhor é o primeiro homem que oiço a manifestar

interesse sobre esse assunto.»

(Risos da plateia. Domingos voltou aos comentários, julgando-seassessor de Darrow: «Deus, o criador irrepreensível de todas ascoisas perfeitas, inundou o planeta porque, diz a Bíblia, searrependeu de ter criado a Humanidade e estava muito triste.»)

Bryan: «Meritíssimo, acho que posso encurtar este testemunho. Oúnico objetivo que o senhor Darrow tem é o de ofender a Bíblia.Quero que o mundo saiba que este homem, que não acredita emDeus, está a usar um tribunal no Tennessee para insultar a Bíblia.»

Darrow: «E o senhor insulta todos os homens de ciência e deconhecimento só porque não acreditam nos disparates da suareligião.»

No final, a alegria de Domingos contrastava com a indignação dosapoiantes de Bryan. Luís estava a meio caminho. Concordava comos argumentos de Darrow, mas desaprovava o estilo bélico, dearruaceiro eloquente. A posição de Luís podia ser veiculada pelocomentário do locutor da rádio presente na audiência: «Bryan foiquebrado, Darrow não o poupou. É algo de mestre, mas também dápena.»

Os Paixão Leal sentaram-se para petiscar à sombra de umaárvore e Domingos continuou a descredibilização de Bryan,reforçando que, face ao orgulho com que se gabava da suaignorância científica, de nada lhe valera a tese de conspiraçãosegundo a qual havia um movimento de enviados de Belzebu quequeriam destruir a religião e perverter o Homem.

«E era preciso humilhá-lo daquela maneira?», perguntou Luís. «Osenhor Bryan serviu este país no Governo e no Congresso, merecerespeito.»

«Talvez, mas não pelas suas ideias sobrenaturais eestapafúrdias», respondeu Domingos. «Tu, por acaso, respeitavasas minhas ideias se elas defendessem que, após a ressurreição,Jesus se mudou para a América para liderar os israelitas bons,neste caso, o homem branco, contra os israelitas maus, neste caso,os índios?»

«Isso é absurdo.»«Mas é nisso que os mórmones acreditam. E, como os cristãos,

não precisam de provas. Só de fé. Índios israelitas na América é

assim tão mais absurdo do que um homem em Jerusalém queprometia o fim do mundo e se dizia filho de Deus? Um homem queressuscitou depois de morto?»

«Gostas muito de esfregar aquilo que sabes na cara dos outros.Achas que é fácil estas pessoas perceberem o que Darwinescreveu? Para elas, a religião é uma esperança, um bálsamo paraa dureza da vida. Se lhes tiras isso, é como se lhes tirasses umparente querido.»

«Imagina que, em vez do respeitável senhor Bryan, o senhorDarrow tinha interrogado um feiticeiro que prometia a vida eterna aquem tomasse as suas poções mágicas. Também pedias ao senhorDarrow que tivesse clemência ou preferias que a falcatrua fossedesmascarada?» Luís não respondeu. «Todas as crenças têmconsequências, rapaz. Sabes quantas mulheres foram mortasporque os inquisidores acreditavam em bruxas? Quantos homensforam assassinados porque traduziram a Bíblia do latim? Quantascrianças são hoje privadas de uma educação porque o senhor Bryanacredita que o planeta tem seis mil anos?»

«O que eu sei», disse Luís, «é que estão todos a aproveitar-sedeste espalhafato. Era preciso tanto ódio e desprezo?»

«Nem sempre chegamos à verdade pelo caminho mais virtuoso.Nunca te esqueças que aqueles que não têm escrúpulos vãoaproveitar-se dos teus.»

«Isso aplica-se a ti?»Domingos parou de mastigar um pedaço de pão. Tinha apreço

pelas faculdades beligerantes do sobrinho — em parte porque sesentia responsável por elas —, mas naquela pergunta havia maiscondenação de caráter do que questionamento intelectual.

«O que queres dizer com isso?»«No início do mês começo a trabalhar como agente da Prohibition

Unit. E já arranjei um quarto onde ficar. Acho que está na altura deviver sozinho.» O que era o mesmo que dizer: Sei que os teusnegócios de contrabando de álcool se estenderam muito além dostijolos de vinho fabricados na cave, estás para aí a julgar os outros,mas pregas uma coisa e fazes outra, e agora, que consegui umtrabalho a fazer o que está certo, a favor de uma lei que tu apoiaste,

sou obrigado a deixar a tua casa e o meu irmão porque ser um prohicaloiro que vive com o tio contrabandista não augura nada de bompara o meu futuro. Criacionistas, evolucionistas, anarquistas,fascistas, contrabandistas, todos uma cambada de hipócritas a verse ganham o seu.

Ao contrário de Luís após levar um soco na margem do Hudson,Domingos não fugiu num rebuliço de cólera ao perceber o ataque. Otio era um domesticador dos nervos e das precipitações.

«Tu é que sabes», disse, imperturbável e sem juízos, reduzindo asua habitual profusão de palavras a um quarteto inequívoco.

Tu é que sabes.Não esperaram pelo dia seguinte para conhecer o veredicto do

julgamento. O taxista levou-os para Atlanta e apanharam o comboiode volta a Nova Iorque, justificando a ausência de palavrasdesavindas ou conciliadoras com o silêncio que se esperava de umaviagem noturna. Em movimento, vista pela janela, a América eramais bonita, mais transcendente e mais plácida do que a Américana rádio e nos jornais. No transbordo, em Washington D.C.,passaram pelo quiosque sem parar, olhando de esguelha asparangonas dos vespertinos. As tréguas mantiveram-se no resto dopercurso até Nova Iorque, apesar dos títulos de primeira página nasdezenas de jornais abertos na carruagem. Em Dayton, o júridemorara nove minutos a decidir que Scopes era culpado e o juizsentenciara-o a uma multa de cem dólares.

Uns dias mais tarde, Luís foi buscar as últimas coisas a casa dotio. Domingos esperou que o sobrinho batesse a porta, descesse asescadas, e só então ligou o rádio. Uns minutos mais tarde, onoticiário informou-o da morte de Bryan, durante uma sesta, emDayton, onde o pastor aproveitara os dias após o julgamento paraespalhar a palavra de Jesus.

«Matámos este son of a bitch», lamentou o tio, com sinceridade epesar.

«Ao menos agora», respondeu Joaquim, que nessa noite semudaria para o beliche superior, «o Bryan já deve saber se estavacerto ou errado.»

——•——

Nos primeiros tempos como prohi, tal como os crentes e osapaixonados, Luís foi movido pela idolatria. A dupla de agentes IzzyEinstein e Moe Smith representava, em carne, osso e biografia,aquilo que o levara a candidatar-se ao posto. Einstein era um judeunascido na Áustria, que chegara aos Estados Unidos com dozeanos. Vendera fruta na rua e trabalhara nos Correios. Baixo, gordo,com uma cara bojuda de taberneiro, mestre dos sotaques econhecedor de cinco línguas, entrava despercebido onde os outrospolícias eram topados à légua. Einstein vivia com a mulher, cincofilhos e cuidava do pai doente. Aos olhos de Luís, era um exemplo aseguir, um homem de lei e de família, um servidor do Bem.

Einstein convencera a Prohibition Unit a contratar Moe Smith paraseu parceiro. Smith, também ele ex-vendedor de fruta, tão-poucotinha aparência de agente da autoridade. Mas aqueles dois homens,de origens humildes e estudos precários, eram os heróis de Luís eos agentes com mais apreensões. Os seus retratos, fotografadosdurante uma rusga, apareciam nos jornais como homenagem. Eramos arautos incorruptíveis numa guerra contra o vício; eram aconfirmação da verdade americana que o tio Domingos converteraem versículo: «Não interessa de onde vens, mas aonde podeschegar.»

Um par de meses após receber o crachá, Luís teve o primeirodesgosto policial. Einstein e Smith foram afastados da ProhibitionUnit. Embora sem justificações oficiais, era conhecido que oestrelato da parelha incomodava as chefias. Não havia como negarque Einstein e Smith mantinham viva a relação emocional entre osjornais e os seus leitores. Deixavam dezenas de rusgas para odomingo, sabendo que as edições de segunda-feira, após acalmaria noticiosa do fim-de-semana, tinham mais espaço paradivulgar o folhetim dos prohis.

Luís, que tanto reprovara a manipulação da imprensa durante ojulgamento de Scopes, estava pronto a esquecer os pecadilhos deEinstein e de Smith. Numa instituição parca em recursos, comfuncionários mal pagos que cediam amiúde aos subornos, não lheparecia que a vaidade merecesse o castigo do afastamento.

Ao fim de um ano como prohi, o desgosto dera lugar à raiva,

depois ao derrotismo e, por fim, ao isolamento. Havia mil equinhentos agentes prohis para uma população de cento e quinzemilhões de americanos. Só em Nova Iorque, a Prohibition Unitestimava cem mil bares clandestinos. O país tinha dezoito milquilómetros de costa. Outros seis mil de fronteira com o México e oCanadá. Milhares de lares onde todos os dias se produzia álcoolartesanal. Centenas de grupos criminosos, com inúmeroscolaboradores, inclusive na Polícia, que cresciam em volume decontrabando, poder e violência.

Só por si, a grandeza dos números serviria para ilustrar o que erapedido aos prohis: soprem na direção de uma tempestade de areia.Mas, passada a excitação com as primeiras rusgas e com aconquista do lugar de topo na ardósia onde o chefe somava os litrosapreendidos por cada agente, Luís percebeu que eram as pequenasderrotas que melhor traduziam a inutilidade do seu trabalho.Madrugadas com temperaturas abaixo de zero e os pés congelados,esperando um desembarque que nunca acontecia porque alguémavisara os contrabandistas. Fechava um bar de finórios filantroposno Upper West Side e, na semana seguinte, outro abria noquarteirão mais abaixo. Prendia clientes que não tinham onde cairmortos, em covis que serviam aguarrás a cirrosos terminais, paraque estes voltassem às ruas dias mais tarde e morressem duranteum nevão de janeiro. Para explicar aos caloiros no que estavam ameter-se, os prohis mais velhos contavam que, logo na primeirahora após a entrada em vigor da Lei Seca, enquanto os religiososenchiam as igrejas para celebrar a purificação nacional, tinham-seregistado os primeiros roubos a destilarias e adegas. Desde oprimeiro instante se percebera que, por mais que uma parte dapopulação louvasse a abstinência, o país não deixaria de beber.

Não eram apenas as raparigas desavergonhadas e os agressoresde mulheres, os viciados no jogo e os imigrantes de modosbrutescos. Toda a gente bebia. E, ao contrário do que apregoara omovimento proibicionista, a cruzada para reformar as grandescidades não restaurara o país.

No segundo ano como prohi, Luís percebeu o que aconteciaquando se ilegalizava um produto com enorme procura e elevadas

margens de lucro, deixando-o nas mãos de criminosos. No início, onegócio fora tomado por pequenos gangues que dominavam asdocas ao soco e ao pontapé. Em poucos anos, o negócio do álcoolhavia criado organizações criminosas que funcionavam comoconglomerados empresariais e que beneficiavam do uso demetralhadoras para eliminar a concorrência. Tinham navios,camiões, redes de distribuição nacional, cadeias de speakeasies.Dominavam os casinos, as casas de apostas, a malha daprostituição. Compravam polícias e senadores. A violência entrerivais era a novela dos tabloides. As fotografias, cada vez maisgráficas, mostravam os cadáveres baleados dentro de umautomóvel ou de cabeça tombada na mesa de um restaurante. Porvezes, o mandatário do homicídio e o assassinado apareciam namesma edição do jornal. O primeiro, nas colunas sociais, após servisto num clube noturno com músicos e atores afamados. Osegundo, numa fotografia da secção de crime, com o rosto numapoça de sangue retinto.

O prohi Paixão Leal continuou a soprar contra a tempestade deareia todos os dias. Rusgas em speakeasies, destruição de barris àmachadada, milhares de litros lançados nas sarjetas. Apreendeuálcool escondido em carrinhos de bebé, dentro de pães, ovos,bengalas, tacos de beisebol e animais mortos. Desempenhava oofício como um autómato, eficaz mas descrente, porque um homemque não acredita em nada tem, pelo menos, de agarrar-se aotrabalho para não ir ao fundo.

Treze de novembro de 1927. A primeira vez que Luís faltou a umcombate. O dia em que desistiu do boxe. Há meses que ponderavaa decisão, sabendo que atingira o limite do talento, cansado de levarporrada. Mas o treinador convencera-o a enfrentar um bombeiroirlandês. Dias antes da luta, nos balneários do ginásio ondetreinava, Luís recebeu a visita do emissário de um apostadorinteressado no desfecho do combate. Dutch Schultz, contrabandistacélebre e bandido sanguinário, queria que o português fosse aotapete no terceiro assalto.

Não sendo uma proposta, antes uma ordem, Luís aceitou ocorolário daquilo que vinha a prorrogar: o boxe já não era um reduto

da glória e das boas intenções do rapaz que ele deixara de ser;como tudo o resto — a cidade, a família, o ofício de agente daproibição, o próprio corpo —, o pugilismo corrompera-se. Depois derachar costelas, partir o nariz, deslocar uma retina e de conhecertodas as caves e armazéns onde se organizavam combatesamadores, o Fast Louie perdera em velocidade o que ganhara eminconsequência. O boxe já não servia para afiançar o seu poderio ouconfirmar que pelo menos um talento ele haveria de ter.

Um dos conselhos do primeiro treinador, um pugilista aposentado,creditava à paternidade a ruína da sua própria carreira: «Desde quetive filhos, nunca mais fui o mesmo. O medo é inimigo doscampeões. Fiquei mais lento, arriscava menos. Não tenhas filhos.Para seres um grande lutador, não podes ter nada a perder.»Haviam passado sete anos desde que aquele judeu russo o vira acorrer, agarrado ao menino Jesus roubado na Trinity Church, e lhegritara: «Tens as mãos tão rápidas como as pernas?» Sete anosdesde que Luís entrara no ginásio improvisado num tenement doLower East Side, onde fora embruxado pelo concerto perfeito entrea graciosidade e a força. Os rapazes saltavam à corda num transede precisão e beleza; a cada golpe, o couro das luvas e dos sacosexplodia o compasso de uma marcha cardíaca que precedia aconsciência humana; ali havia disciplina, propósito e irmandade.Mesmo quando Luís perdia um combate, o adversário abraçava-osem pejo ou desconfiança, só suor, sangue e entendimento. Aquelaera a única circunstância em que se concedia aos homens a partilhadas emoções mais desgarradas, até o choro.

Nos treinos e nos combates, Luís atingira um estado mental ondenão existia o antes ou o depois, apenas o imediato, algo cabalmentecarnal, a natureza mais elementar dos primatas sem supermemória,sem pais desaparecidos no mar. O boxe fora uma libertação e umcurativo. Para seres um grande lutador, não podes ter nada aperder. Luís nunca seria um grande lutador. E não ter nada a perderparecia-lhe uma má desculpa para os vencidos da vida. Feitas ascontas, sete anos depois de ter entrado naquele ginásio, ainda tinhaalgo que não queria perder. E não era o boxe. Na noite em que orepresentante do mafioso Dutch Schultz lhe disse para burlar o

combate, Luís chegou a casa e socou o tubo maciço da caldeira,partindo dois dedos. A luta foi cancelada, Luís evitou ser cúmplicede um criminoso e, no domingo, com uma tala nos dedos, participounos festejos da inauguração do Holland Tunnel, que ajudara aconstruir.

Apanhou um táxi e fez a viagem até Nova Jérsia. No regresso acasa, sozinho no banco traseiro, deu-se conta de que não tinhaninguém com quem celebrar. À exceção do treinador e dasnecessárias interações com os colegas de trabalho, Luís passava amaior parte do tempo calado e só. Pior ainda: nessa tarde, viu-seincapaz de sentir alegria ou fascínio pela extraordinária façanha —cruzar de automóvel um rio através de um buraco escavado naterra. Não tinha amigos e vivia num quarto alugado, ouvia o rádio dareceção através das paredes finas. Deixava a roupa interior demolho na bacia onde lavava a cara. O seu único luxo era o cinema.Pouco via o tio ou o irmão, não se dava com os prohis fora doexpediente. As fileiras da Prohibition Unit estavam tomadas porindivíduos boçais, despreparados e corruptos. Luís pedira ao chefepara trabalhar sozinho, e o chefe, que estava a par da antipatia queele provocava nos colegas, concedera-lhe a vontade.

Treze de novembro de 1927. Após a inauguração do túnel, Luíspensou ir ao cinema. Os cartazes anunciavam um filme degângsters. Deu meia volta. Não participaria na moda da glorificaçãodos criminosos que inspiravam as fitas de Hollywood. Cruzou a ruae bateu à porta de um bar clandestino. Em vez da senha, que nãosabia, mostrou o distintivo de prohi para que lhe abrissem a porta.Lá dentro, a tempestade de areia: homens e mulheres de copo namão, a dançar ao som de um piano que emudeceu com a entradado agente. Luís sentou-se nas banquetas altas, lembrando-se dopastor que lhes chamara «assentos de Satã». Pousou o crachá emcima do balcão, exigiu um rum duplo e brindou, sozinho, ao fracassoda Lei Seca, que era também o seu. Bebeu o rum de um trago epediu outra dose. O barman disse-lhe que era por conta da casa.Luís virou a face do distintivo para baixo e bateu a nota contra amadeira do balcão.

«Isto é a América. Tudo tem um preço. Tudo se paga.»

Se aceitar a derrota era uma prova de sabedoria, então, nessanoite, Luís foi dormir mais sábio. E menos sozinho. Quando acordounum quarto de pensão, a rapariga já não estava na cama. Tão-pouco o dinheiro que ele tivera na carteira.

Vance White pediu transferência de Baltimore para estar maisperto dos pais e da irmã. A sua chegada ao quartel-general nova-iorquino da Prohibition Unit, entretanto renomeada Bureau ofProhibition, aconteceu dois anos após a tragédia financeira de 1929,quando a nova década já se definia nos rostos cavos queesperavam na fila da sopa dos pobres; quando o bucolismo doCentral Park fora ocupado pelas primeiras barracas de um bairroque não pararia de crescer. Após o estardalhaço da queda bolsista,com investidores lançando-se da ponte de Brooklyn e magnatas atrancar as portas dos Bancos na cara dos clientes espoliados, aAmérica começou a esfacelar-se sem gritos ou achaquesdramáticos. Os confiantes foliões dos loucos anos 20 deram lugar auma trupe de palhaços pobres, sem maquilhagem, com corposdescarnados de esperança. Em silêncio, os pais de famíliadesempregados enforcavam-se com o cinto das calças, osmendigos atapetavam os passeios, as fábricas eram desmontadas eos esqueletos dos edifícios interrompidos.

Neste cenário fúnebre, o otimismo de Vance fazia-o parecer meiotonto, um cachorrinho a tentar morder as ondas durante ummaremoto. Paixão Leal, obrigado a ter um parceiro pela primeira vezem muito tempo, achou que Vance acordara de um coma e queninguém o avisara do cataclismo que acontecera na sua ausência.Luís começava a pensar que talvez o tio Domingos estivesse certo.O fim do mundo não chegara pela mão de Deus, nem a desgraça daAmérica fora responsabilidade dos imigrantes. O apocalipse erafinanceiro e fora magicado — nas cúpulas dos arranha-céus do Sulde Manhattan, no linguajar demente da Bolsa, em jantares no Ritz-Carlton — pela incúria e pela ganância de homens de excelentereputação e heráldica capitalista.

Vance não parecia afetado pelo sinistro global, seguindo adianteem conformidade com o truísmo que garantia a relativização dascalamidades individuais quando se estava no epicentro de uma

hecatombe coletiva. O seu entusiasmo era, portanto, mais ambiçãodo que ingenuidade. Vance era pontualíssimo e de raciocínio afoito,rápido a preencher a papelada dos autos, resistente a subornos e,seguro de que a Lei Seca estava prestes a ser revogada, metera-sea estudar para as provas de agente do FBI, instituição que passaraa tutelar o Bureau of Prohibition.

Ao fim de vários anos a beber todas as noites, não foram asqualidades de Vance que inspiraram Luís a trocar os copos pelassessões de estudo para as provas do FBI, na casa onde o colegamorava com os pais e a irmã. Não se pode negar que os jantares àmesa dos White descontinuavam uma longa jornada de refeiçõesem delis e diners que começavam sempre com o aviso: «Mesa paraum, por favor.» Distante do tio e do irmão, também não era deestranhar que Luís se imaginasse adotado por uma famíliaamericana, achando-se o protagonista no clássico conto do rapazresgatado ao caminho da perdição. Como um missionário que sesente esquecido por Deus no meio da selva, o prohi atravessavauma crise vocacional. Mas nem Luís era tão desgraçado nem osWhite tão formidáveis. O que lhe faltava, aos vinte e seis anos, nailha do isolamento e da Grande Depressão, era uma aventurapassional, aquilo que certos homens procuram na política ou noenriquecimento, no perigo ou no sexo. Neste caso, só uma mulherbonita serviria de força redentora na história de autopiedade comque Luís justificava o seu desnorte.

Sete de dezembro de 1931: a primeira vez que Luís viu EleanorWhite, na tarde em que Vance o convidou para almoçar com a irmãnum restaurante próximo dos escritórios do Bureau. Eleanor erauma versão loira da atriz Olive Thomas e o seu apelido soava aredundância, uma vez que tudo na sua graciosidade de bonecapálida — que nunca sorvia o chá ou dizia um palavrão — lhegarantiria o primeiro lugar no concurso de Miss White Anglo SaxonProtestant da Nova Inglaterra. Luís ansiava ser arrebatado, e aelegância de Eleanor tinha os atributos encantatórios das mulheresque, sabendo-se inalcançáveis para certos homens, não abdicam desubstituir o sexo pela sugestão. Logo nesse almoço, ela riu-se daspiadas do rapaz moreno e pestanudo, com um sotaque invulgar e

uma fisicalidade — a forma como ele falava com as mãos earriscava inclinar a cadeira para trás em apenas duas pernas — queEleanor achou prevaricadora e cativante, na mesma medida em quesonhara uma vez ter beijado uma mulher na boca, sem que jamaisviesse a fazê-lo acordada.

Como é costume sempre que a perceção se deixa ofuscar pelopáthos da beleza, Luís começou a idealizar Eleanor assim que a viuchegar ao restaurante. Julgou que a curiosidade momentâneadaquela mulher seria um interesse duradouro; concluiu que umagargalhada, um dedo a enrolar o cabelo, uma cortesia — «O Vancetem de levar-te a jantar lá a casa» — eram o primeiro passo daescalada natural da sedução. No imenso espaço onde cabia tudo oque não conhecia acerca de Eleanor, Luís projetou aquilo que queriaque ela fosse.

A professora primária, que tocava piano aos serões para a famíliae que colecionava um enxoval desde os catorze anos, despertavanele uma ânsia de normalidade, aquilo que o tio Domingos chamariaentrar nos eixos, como se a própria Eleanor — e a sua classe,sotaque, estilo, passado familiar — fosse uma relíquia da Américacomo esta deveria ser, o amuleto contra uma outra América queficava aquém. Luís seria salvo pelo amor de uma americana, talcomo os imigrantes eram tirados da pobreza originária pelasoportunidades do Novo Mundo onde lhes estava prometido, na letrada lei, o direito inalienável da procura da felicidade. Se até osgângsters se preparavam para a legitimidade dos negócios após ofim da Lei Seca, porque não podia um prohi sair da sua GrandeDepressão pessoal e chegar a agente do FBI, casar com EleanorWhite, ter dois filhos, comprar uma casa em Long Island com vistapara o mar?

A partir daquele almoço, Luís convenceu-se de que, agregandoboas ações, alcançaria Eleanor no cimo do pedestal. A paixão nãocorrespondida forçava-o a ser outra coisa, a anular-se para agradar,criando uma personagem em permanente reconstrução que, emalgum momento, seria merecedora de amor. A persistência da cortesó podia ser paixão, com tudo o que esta tem de angústia edesmerecimento do apaixonado. Se Eleanor não retribuía os sinais

de interesse romântico, mas continuava a ir com ele ao cinema; se orácio da correspondência era de três cartas dele para cada umadela, mas um envelope no correio bastava para que Luísesquecesse o desequilíbrio; se a mãe de Eleanor lhe perguntou «Osportugueses são mulatos, Luís?», mas o convidava para jantar emfamília após as jornadas de estudo com Vance; se o pai dela,protestante, ferrenho das preces antes da refeição e da igreja aodomingo, tinha uma certa desconfiança para com os católicos do Sulda Europa, mas até lhe dissera «Pelo menos não és ateu»; então,Luís estava disposto a ser o mulato que finge acreditar no Deuscristão e que chegaria a agente do FBI, ombro a ombro com o futurocunhado.

A Grande Depressão voltou a abocanhá-lo nos últimos meses de1933, após uma série de malogros. Vance tentou animá-lo naprimeira derrota.

«Estavas bem preparado para os exames. Mas o FBI dáprioridade aos cidadãos nascidos na América. Tentas para apróxima.»

Vance White saiu do Bureau of Prohibition meses antes do fim daLei Seca e o novo trabalho afastou-o do colega. As cartas deEleanor deixaram de chegar, a mãe atendia o telefone a Luís e diziaque a filha estava fora, até que:

Quinze de outubro de 1933. A primeira vez que, na edição dedomingo do New York Times, Luís parou nas páginas de anúnciosde casamentos da ilustre sociedade da costa este. O cabeçalhodizia: «Eleanor White & John Strong.» Mesmo sem público quetestemunhasse o soco no coração e o assomo de vergonha, Luístinha de fingir desapego. Nem sequer se deu conta de que falavasozinho e ria da própria piada:

«White & Strong? Fuck me, parece um comício do Klan.»Charlie era o único prohi negro da brigada. A sua cor e a

misantropia de Paixão Leal aproximavam-nos na terra-de-ninguémquando se tratava de atividades pós-laborais com os colegas.Nunca eram convidados para o que fosse.

«Já alguma vez foste ao Cotton Club?», perguntou Charlie,

vestindo o sobretudo. «Então anda daí, que esta noite preciso dereforços.»

Charlie pegou num carro do Bureau e, ao cruzar a Rua 110,ofereceu o cantil de uísque a Luís.

«Não estamos em serviço?»«Digamos que isto são horas extraordinárias. Como não nos

pagam as horas extraordinárias, temos de ser recompensados deoutras maneiras.»

Luís aceitou o cantil:«Aonde é que vamos?»O Cotton Club, com um estilo de decoração que combinava as

plantações do Sul com a selva africana, contratava os melhoresartistas negros, mas só aceitava clientes brancos, a alta sociedadenova-iorquina que se atrevia a subir à Rua 142, no Harlem, comganas de exotismo e transgressão. Os empregados e os músicostinham de ser negros. Às dançarinas, todas com menos de vinte eum anos, era exigido um grau de mestiçagem que, embora lhesgarantisse o tratamento dispensado aos negros fora das portas doclube, oferecia uma considerável brancura de feições e de pele paracomprazer o público masculino.

«Mas podes entrar?», perguntou Luís, ao ver as letras luminosasna entrada do clube.

«Se fores um preto famoso ou se tiveres um destes», disseCharlie, tirando o crachá de prohi do bolso, «eles abrem umaexceção.»

Dezassete de outubro de 1933. A primeira e única vez que Luísviu Duke Ellington tocar ao vivo. No fim do espetáculo, Charlielevou-o pelas catacumbas que ligavam o clube a uma sala deconvívio, exclusiva aos músicos e seus convidados. Um clubedentro do clube. Nos corredores apertados, Charlie encostou-se auma parede para dar passagem a uma fileira de homens brancos.Atrás do primeiro guarda-costas, Luís identificou as cicatrizes e oolho preguiçoso de Lucky Luciano. As pálpebras bovinas nãoescondiam a truculência do homem que ordenara a morte de todosos inimigos, em apenas um par de meses, e que convencera ascinco famílias italianas rivais a criar um monopólio do crime.

Lucky Luciano tirou-lhes a pinta em meio segundo.«Senhores agentes, divirtam-se. Se voltarem lá para cima, a

primeira rodada é por minha conta.»No final da comitiva, antes do último guarda-costas, vinha

Joaquim, arrastando consigo o cheiro de quem acabara de fumarerva com os músicos. O sorriso não se desfez ao ver o agentePaixão Leal. Sorriu-lhe com a ternura do irmão mais novo. Umsorriso que mais ninguém poderia desencriptar. Um sorriso-abraço.Um sorriso-juramento de sangue. Não se viam desde o Natal do anoanterior, quando tinham passado a consoada com o tio. Nosespaçados encontros de família, jamais falavam do trabalho de cadaum. Mas Luís sabia que o tio tinha em Joaquim o seu braço direito.Eram parceiros de negócios dos Rato, uma família de emigrantesbeirões que soubera aproveitar, em Nova Iorque, a experiência decontrabando na raia com Espanha. Os Rato faziam parte da rede decolaboradores de Lucky Luciano, tinham trocado as mulasportuguesas por camiões da General Motors, os volumes de tabacopor barris de uísque e de gim.

Charlie saiu da sala dos artistas às duas da manhã, virado pelabebida e flutuante de erva. Luís carburava rum e catarro de fumador.Deram boleia a um percussionista, nome de guerra Bounce Babs.

«E agora o trabalho», disse Charlie, após estacionar o carro narua onde Babs morava. Luís ficara a saber que o músico vendiacocaína a uma seleta clientela de celebridades, gângsters, socialitese prostitutas de primeira. Babs conhecia as pequenas salas nastraseiras de uma festa onde o pó branco agigantava egos e apagavaacanhamentos. Em cada cocainómano havia um orador loquaz que,de tanto querer falar, acabava por dizer o que não devia. Babspassava essas informações a Charlie.

«Na semana passada, estive num casarão em Upstate,convidaram uns quantos da banda para tocar numa festa privada.Quando quis fumar a minha erva, fui dar uma volta pela propriedadee entrei no celeiro. O que vi talvez vos interesse.»

Fez-se luz na estrada de terra e os faróis dos camiõesapareceram nos binóculos. Charlie acercou-se do carro e bateu nachapa para acordar Luís no banco do passageiro:

«Hoje é um dia novo em folha. Um dia desejoso de ser vivido.»Do porta-bagagens do automóvel camuflado na mata, Luís tirou

duas espingardas e uma lanterna. Fez piscar a lâmpada, e asegunda equipa de prohis respondeu no outro lado da estrada.Charlie e Luís resvalaram pela neve da ladeira e esconderam-se navegetação da berma. Sem o mandado de um juiz para entrar namansão, teriam de parar os camiões antes que entrassem napropriedade. Luís ficaria com o automóvel que liderava a caravana,Charlie e os outros prohis tinham a seu cargo os dois camiões.

O lento rodopio dos flocos de neve. A alvura da estrada no meioda floresta. A primeira luminosidade no céu limpo de um dia frio denovembro. Uma paisagem onírica de paz e campo e pássaros. Obatimento cardíaco de Luís era o pêndulo de um relógio numa longagaleria de pedra, a contagem acelerada pela trepidação dosmotores cada vez mais próximos.

Luís saltou para a estrada como se a espingarda em riste fosseparte do seu braço direito. Segurando a lanterna na outra mão,avançou para o carro, que se deteve a uma dezena de metros doagente. Charlie emboscou a cabine do primeiro camião. Osrestantes prohis apareceram nas traseiras do segundo.

«Tudo cá para fora e de braços no ar.»O motorista do carro fez o que lhe mandaram e, do banco do

passageiro, um vulto correu para o que restava da noite, sumindo nabruma do mato. O primeiro tiro da espingarda dirigiu-se ao céu, osegundo, quando Luís se deu conta de que o homem nãointerrompera a fuga e que teria de o perseguir, rebentou um pneudianteiro do automóvel.

«Fuck me», disse Paixão Leal, metendo-se pela floresta, guiadopelas pegadas do desertor na planura da neve.

Os movimentos do fugitivo eram pesados, a cada passo afundavaas pernas até ao joelho. O sobretudo negro arrastava-se como umapata ferida e o chapéu caiu-lhe. Luís pisou-lhe a cauda do sobretudoe deu-lhe uma coronhada na cabeça. O homem caiu e um lanhoespirrou sangue sobre a neve. Luís pontapeou-o, para que sevirasse, apontando-lhe a lanterna e a carabina. A nuca empapadade sangue, o perfil definido pelo feixe de luz, os mesmos olhos

escuros e amedrontados do Chico Caseiro ao cair na Boca doInferno.

Domingos só percebeu que o sobrinho lhe apontava a espingardaquando Luís direcionou a lanterna para a própria cara. Nuncatinham falado da possibilidade de, mais tarde ou mais cedo, seencontrarem em lados opostos de uma arma. O impasse de Luís, aosegurar as algemas, seria o último momento entre um tio e umsobrinho antes que o agente federal prendesse o contrabandista.

Luís pousou a lanterna, ofereceu a mão a Domingos, que aagarrou e se pôs em pé. Cambaleante, abraçou-se ao sobrinho. Umabraço-improviso que era o abraço de sempre. Luís sentiu a pistolano coldre de Domingos contra as suas costelas — um aviso do quepoderia acontecer se o fugitivo recusasse a voz de prisão. Oscontrabandistas portugueses chamavam tira-teimas aos revólveres.

«És um homem de escrúpulos», disse o tio. «Às vezes, fazer acoisa certa obriga-nos a sentir a coisa errada.»

O primeiro disparo desenlaçou o abraço e resolveu o impasse.Mais tiros na estrada.

«O teu irmão», disse Domingos, vendo os clarões das armasentre a ramaria.

Luís apanhou o chapéu do tio, sacudiu-lhe a neve e passou-opara a mão de Domingos como se entregasse um bilhete só de ida.Correu para a estrada e encontrou os contrabandistas de joelhos,algemados com as mãos atrás das costas. Entre eles, Joaquim tinhao olhar fixo no cilindro luminoso dos faróis, onde melhor se via apoeira da neve e a condensação do último fôlego de Inácio Capote,baleado três vezes por um prohi com dedo leve no gatilho.

——•——Dezanove de novembro de 1933: a última vez que Luís viu o

irmão em Nova Iorque. Fechou a porta da cela e olharam-se pelaportinhola na chapa maciça.

«Não podias ter esperado mais um mês ou dois?», perguntouJoaquim, em jeito de piada. Na pergunta havia um comentário aodespropósito de, após vários anos desencontrados, Joaquim ter sidopreso quando se esperava para breve a revogação da Lei Seca. «OInácio Capote ia para a Califórnia na semana que vem. Queria

tentar a sorte como cenógrafo em Hollywood. Eu ia lá passar umatemporada com ele. Sabes como é, gângsters armados emartistas.»

O humor de Joaquim, escarninho das próprias ambições, tambémera um apontamento de luto pelo melhor amigo. Tal como osgângsters mais poderosos, que davam origem a personagens defilmes e que entendiam que o cinema lhes selaria a popularidadealém do submundo, Joaquim e Inácio Capote queriam serlegitimados pelos dotes artísticos. Joaquim enviara vários contospara a revista New Yorker, todos recusados. Quando soube que oescritor Scott Fitzgerald se inspirara em Arnold Rothstein, umcriminoso conhecido, para criar uma personagem do Grande Gatsbyque usa botões de punho feitos com dentes humanos, Joaquim quistranspor para um guião cinematográfico as suas peripécias comocontrabandista. Tanto ele como Inácio Capote tinham a aspiração defazer em Los Angeles aquilo que os serões de Gertrude Steintinham feito em Paris pelo modernismo e pela romantização daGeração Perdida.

Mas Inácio Capote estava morto, confirmando o aforismo de ScottFitzgerald: «Não há segundos atos nas vidas americanas.» Semsaber, o escritor também resumira a história dos Passion Brothersem pouco mais de meia dúzia de palavras: «Mostra-me um herói, eescrevo-te uma tragédia.»

Separados pela porta da cela, Luís e Joaquim eram duas faces damesma moeda. Uma moeda sem coroa, apenas com caras comunse anónimas. «Hacer las Américas», diziam os imigrantes espanhóisquando se lançavam para o Novo Mundo. «Time for the big apples»,diziam os músicos de jazz do Sul quando se mudavam para NovaIorque. Duas frases que afirmavam esperança e prosperidade, masque não apareciam cunhadas na moeda comemorativa dosperdedores. Joaquim ficaria dois a três anos na cadeia por causa deuma lei que já não estaria em vigor durante o cumprimento da pena.Luís passaria a ser apenas um fiscal de licenças de álcool, agoraque o FBI devolvera a tutela do Bureau of Prohibition à AgênciaTributária.

Em liberdade, Luís seria o irmão mais velho que prendeu o irmão

mais novo. Dentro dos muros da penitenciária, Joaquim seria oirmão mais novo que foi preso pelo irmão mais velho.

«É preciso que saibas uma coisa acerca da carga nos camiões»,disse Joaquim.

«Por razões óbvias, tenho de afastar-me deste caso», defendeu-se Luís antes de fechar a portinhola na porta de ferro. «Mas volto cáesta semana e trago-te uns livros.»

Essa foi a segunda vez que Luís prometeu ao irmão aquilo quenão poderia cumprir.

A vida americana de Inácio Capote só tivera direito ao primeiroato. Já Luís Paixão Leal iniciava o segundo só porque arrestarapouco mais de uma centena de barris numa estrada coberta deneve. O homem alto e vestido de negro desencostou-se doautomóvel parado diante do prédio do agente. Abriu-lhe a portatraseira e mandou-o entrar. Lá dentro, o tio Domingos olhou osobrinho com vergonha. Minutos mais tarde, voltaram a deixar Luísem casa com um encargo: recuperar os barris antes que o Bureauof Prohibition os destruísse nas fornalhas, lançando ao fogo mais deum milhão de dólares em ópio — propriedade de Lucky Luciano —que viajara do Império Britânico escondido em pipas de uísque. Oporta-voz de Luciano tinha um grupo de homens preparados pararesgatar a droga, mas seria preciso Luís usar o crachá de prohi paraque um roubo na calada da noite não aparecesse nos tabloidescomo: «Assalto à mão armada acaba em carnificina.»

Não era apenas a vida de Domingos que terminaria caso osobrinho falhasse. O prejuízo de perder todo aquele ópio justificava,sem hesitações, que Luciano ordenasse, sem ter de pensar duasvezes, o assassínio de um agente irrelevante ao serviço de umaorganização morredoura.

Domingos não falara durante as voltas que o automóvel dera aoquarteirão, enquanto o emissário de Luciano explicava a Luís o queeste tinha de fazer. Mas as últimas palavras que ele ouvira do tio, nomeio de uma floresta e com neve pelos joelhos — «Às vezes, fazera coisa certa obriga-nos a sentir a coisa errada» —, apresentavam-se tão dúbias como a protuberância da pistola no coldre deDomingos durante o abraço de despedida. Devia ter prendido o tio e

viver com a culpa? Ou deixá-lo ir, sabendo que, sem nunca teraceitado subornos, acabara corrompido pelo sentimento?

A dúvida surgia de novo a Luís, mas agora o preço a pagar seriamuito mais alto. Talvez estivesse na hora de fazer o que estavaerrado para sentir o que estava certo.

Quatro de dezembro de 1933. O último dia da Lei Seca e aprimeira vez, desde os quinze anos, que a memória de Luís PaixãoLeal apresentava lapsos de longa duração. Acordou com o protestodas gaivotas contra a tempestade no mar. Levantou-se demasiadorápido para que o ouvido interno lhe desse as coordenadas doequilíbrio. Teve de sentar-se no colchão. O quarto cheirava a mijonum penico, a maresia de inverno e a gaze com sangue ressequido.As pistas ajudaram-no a recuperar estilhaços do que se passara,centelhas que desapareciam num microssegundo, os disparos, ovidro, o homem de bata branca que o operou, o fogo de umalamparina com óleo de baleia, um conta-gotas despejando-lhe naboca uma folga das dores, as leituras do fantasma do pai àcabeceira daquela mesma cama. Há quanto tempo ali estava?Levantou-se sem saber se era dia ou noite. A chuva na vidraçadesfocava a escuridão lá fora e refletia o desastre do seu corpo. Obraço ao peito, o ombro enfaixado, um garrote de ligaduras, aoredor da cabeça, que lhe cobria o olho direito. Estava numa vilajunto da costa. Já ouvira a rebentação e as gaivotas. Olhou para amesa-de-cabeceira, onde estava uma cópia de Moby Dick comrugas na capa e os cantos revirados.

Sentiu um golpe de frio. O ranço gástrico do estômago inquinou-lhe a boca com o sabor do remédio que o fantasma do pai lhepingara na língua. Estava ferido, ressacado da droga. Já nãoaguentava o ar gélido no quarto nem as dores. Abriu o conta-gotas,dispensou o doseador e sorveu um gole pelo gargalo. O ópio queajudara a roubar era o seu maior consolo. Enrolou-se noscobertores e tombou a cabeça na almofada, aproveitando os últimossegundos de lucidez antes de cair no colo de um Orfeu perfumadocom extratos de papoila afegã.

Luís chegara ao armazém do Bureau num carro oficial. Osguardas tinham visto o seu distintivo de prohi e a guia de marcha

falsificada que autorizava a recolha dos barris. Os homens de LuckyLuciano tinham carregado os camiões sem problemas, até que umdos guardas começou a falar das contratações dos Yankees comum siciliano acabado de chegar a Nova Iorque entre osconterrâneos que reforçavam a expansão dos negócios das cincofamílias da máfia. O guarda estranhou que um prohi não falasseinglês e pousou a mão na coronha da pistola. O siciliano, sobpressão, compensou os limites do vocabulário com a contundênciade um revólver.

Luís não sabia quem disparara primeiro, apenas que correra parao carro e que, já de braço esticado para abrir a porta, fora atingidono ombro, o corpo catapultado para diante, a cabeça a atravessar ajanela, o globo ocular cravejado de vidros, o olho direito perdidopara sempre, o breu mais absoluto que, imaginou ele, deveria ser amorte dos que não acreditavam em Deus. Acordara numamarquesa, o homem de bata branca tinha-lhe removido o olho esuturava o ferimento da bala no ombro. E a carga? Tinhamconseguido recuperar a carga?

Dias mais tarde, no quarto junto ao mar, o ópio que bebeu dofrasco aconchegou-lhe as dúvidas e afastou-lhe o medo. Julgou-semorto, porque o espetro embaciado do pai analfabeto sentou-senuma cadeira e começou a ler-lhe em voz alta o livro que apanhoujunto da cama:

«Tratem-me por Luís. Há alguns dias — não posso precisarquantos —, sem outra alternativa que não fosse manter-me vivo emterra firme, vi-me obrigado a assaltar um armazém e a conhecer asobscuras águas do submundo. Era a única maneira que tinha paraafugentar a morte e sentir a tão procurada coisa certa na circulaçãodo meu sangue. De hoje em diante, sempre que sentir o ferimentoda bala no ombro e a ausência do olho direito; sempre que a minhaalma se transformar naquela noite de dezembro brumosa emolhada; sempre que der por mim a parar involuntariamente diantede agências funerárias, pensando no corpo exangue de InácioCapote sobre a neve; e, principalmente, quando o transtorno damelancolia e da raiva se apoderar de mim de tal maneira queprecisarei de todo o meu bom senso para não espancar os canalhas

que encontre na rua — então, recordarei este momento em quedecidi que estava na altura de regressar a casa tão cedo quantopossível.»

Na noite de consoada comeram bacalhau fresco, comprado aospescadores da ilha de Nantucket, e beberam vinho português. O tiodespejou as gotas de ópio num copo de brande, após o jantar.

«Para a sobremesa», disse, entregando o copo ao sobrinho.Lançou o frasco nas chamas da salamandra. «A partir de amanhã,acabou-se.»

A clavícula ainda não sarara, mas os orifícios de entrada e desaída da bala tinham fechado. Domingos retirara-lhe os pontos. Nasúltimas semanas, haviam sido o filho doente e o pai cuidador.Tinham os nervos aveludados pelo ópio de Luís e pelo vinho deDomingos. Os desentendimentos antigos revelavam-seinsignificantes na face da sobrevivência. Luís era procurado pelasautoridades e o irmão estava preso. Domingos planearadesaparecer durante uns tempos, após a convalescença dosobrinho, e convidara-o para ir consigo para a Flórida ou para Cuba.

O tio pegou no exemplar em segunda-mão de Moby Dick.Comprara o livro no centro de Nantucket. Desde os primeiros diasdo febrão de Luís, naquela casa, Domingos lera para o sobrinho.Cento e trinta e cinco capítulos de acordo com um calendário deleitura que deixara o epílogo, de página e meia, para a noite deNatal. Moby Dick também fora um dos primeiros livros queDomingos lhe oferecera e que Luís não acabara.

«Porque é que gostas tanto desse calhamaço?», perguntou osobrinho.

«O capitão Ahab é um homem destruído pelo ressentimento epela fé cega. Parece o líder de um culto religioso, e, ainda assim,sou capaz de sentir a dor-fantasma da perna que lhe falta, a dor dasua obsessão.»

«Nem no aniversário de Jesus deixas a religião em paz?»O tio foi aquecer o seu copo com brande junto do fogo.«Não te quero falar de religião. O que te quero dizer é que todos

nos enganamos, todos acreditamos em alguma coisa que provoca

sofrimento a alguém. No mundo, há mais gente enganada do quegente má.»

«Isso é o ato de contrição dos ateus?»«Dos contrabandistas.»«Entendo que sejas contrabandista, o que não aceito é a

hipocrisia. A diferença entre aquilo que me ensinaste e aquilo quefazes. O fariseu com roupa de profeta.»

«Quem é que nunca foi fariseu com roupa de profeta? Não somosinfalíveis, mas inacabados. O que não significa que tenhamos de serpara sempre o maior erro das nossas vidas.»

«Como o capitão Ahab, para quem o erro é uma cruzada.»«Como é que se diz na nossa terra?», perguntou Domingos.

«Cada um carrega a sua cruz.»«Estás a absolver-me ou a procurar absolvição?» Luís sorriu e

molhou os lábios no brande. «Gastaste horas e horas a explicar-mecomo o cristianismo é factualmente falso, moralmente repreensível,intelectualmente desonesto e objetivamente prejudicial — é assim,não é? Mas só deixei de acreditar em Deus de uma vez por todaspor causa de uma mulher.»

Luís contou-lhe o romance-fantasia com Eleanor White e decomo, na tentativa de ser outra pessoa, não percebera aquilo quenunca deixaria de ser aos olhos dela: o mulato estrangeiro ecatólico.

«Nunca é tarde para sairmos de um engano», disse o tio.«Mas é mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de

que foram enganadas.» Luís ergueu o copo: «Um brinde aoshomens descrentes.»

«Não bebas já», disse o tio, antecipando os efeitos do ópio naatenção do sobrinho. «Tenho uma coisa para ti.» Do bolso docasaco, tirou uma caixa. «É o modelo usado pelos pilotos decorridas. Mandei vir de Boston.»

O sobrinho abriu a caixa em pele, cujo interior aveludado serviade casulo a uns óculos escuros, com proteções laterais em couro.Luís colocou-os sobre as ligaduras que lhe cobriam o buraco nocrânio.

«Em terra de cegos, quem tem um olho é rei.»

Riram-se e beberam o brande.«Os pescadores vêm buscar-te de madrugada. Deixam-te na ilha

de São Miguel e depois o meu contacto em Ponta Delgada arranjamaneira de chegares a Lisboa.»

De pé, o tio beijou-o na cara como no dia em que o recebera emNova Iorque e lhe dissera: «Agora já ninguém nos separa.» Luís nãose lembrava de ser beijado pelo pai. Talvez quando era bebé, masas memórias dessa idade não lhe estavam acessíveis como asrestantes. Luís conhecia a pele que se encostava agora na suabochecha, o picar da barba, o cessar do medo da proximidade deoutro homem. O afeto masculino, persuasivo e comovedor, já nãolhe era incompreensível.

Noite de vinte e quatro de dezembro de 1933: a última vez que viuo tio, antes que o ópio transformasse Domingos no fantasma doChico Caseiro. Sentado junto da cabeceira da cama de Luís, o tiofez uma pausa na leitura e disse:

«Sempre me perguntei se o Ishmael voltaria aos baleeiros depoisde tudo o que lhe aconteceu. O que achas?»

O sobrinho, entorpecido pela droga, não respondeu. Também nãoouviu as últimas linhas da sua vida na América:

«No segundo dia, uma vela aproximou-se mais e mais e recolheu-me. Era o navio Rachel, errante, que, retrocedendo para procurar osseus filhos perdidos, apenas encontrava outro órfão.»

Quinta-feira, 15 de agostoNos primeiros minutos que passam na cozinha de Luís, no

apartamento da Travessa do Jasmim, os irmãos são apenassilhuetas recortadas pela radiância de uma lâmpada no pátio.Mantêm-se à flor do presente, evitando tudo o que o silêncio podeagitar no magma do passado. Fazem perguntas para respostas queconhecem — Tens filhos? E o trabalho? —, porque ambos dispõemde uma rede de informadores. Não se abraçam ou apertam asmãos, cada um no seu lado da mesa, amordaçando as vozes numdiálogo sussurrado para não acordar as crianças e Rebeca. Tendoem conta a hora tardia e as roupas do irmão — agora mais Joaquimfilho do caseiro do que Inácio Capote, o fixer galante com nomefalso —, Luís deduz que este não é apenas o regresso do parentepródigo. Ambos sabem que é tão brutal aquilo que os une comoaquilo que os separa, essa sintonia de amor e ódio que osdesprotege e torna manifestos quaisquer subterfúgios ou mentiras.

«Já ouviste falar do Projeto Bravo?», pergunta Joaquim.«Preciso de tirar apontamentos?», responde o detetive.«E do sionismo?»«Isso sai no teste?»«Fuck off. Não me disseste que ias casar com uma judia?»«Só te disse que ia casar.»«Não disseste que era alemã e se chamava Rebeca? Budista não

deve ser.»Joaquim explica ao irmão que, quatrocentos e dezasseis anos

após a publicação do édito real que forçou os judeus a sair do paísou a converter-se ao cristianismo, a Primeira República ponderaraaceitar o Projeto Bravo, que ofereceria aos judeus de todo o mundoum território em Angola.

«Por sentimento de culpa ou vontade de reparar injustiças?»«Nem uma coisa nem outra», diz Joaquim. «Os ingleses já tinham

ficado com parte da África portuguesa, os alemães andavam àespreita, era preciso povoar aquelas terras para as reclamar.Sempre fomos poucos. E os poucos que somos não querem mudar-se para o meio do mato. Caso a ideia fosse adiante, os colonosjudeus teriam de aceitar a cidadania portuguesa e aprender a língua

nas escolas, de a falar em casa.» Joaquim puxa de um cigarro, Luísproíbe-o com um gesto de mão, restabelecendo a hierarquia dosque nasceram primeiro. «Os sionistas tropicais queriam a soberaniade um Estado judeu», prossegue o irmão mais novo. «Mas emLisboa o Governo não estava disposto a isso.» Joaquim guarda ocigarro e apanha uma nêspera da fruteira. Trinca-a e relata a visita,em 1934, dos sionistas Fritz Seidler, Ernest Meyer e IsaíasHenriques ao embaixador de Portugal em Londres, na tentativa derecuperar o Projeto Bravo, que Salazar recusaria.

«Vieste fazer um peditório para o movimento sionista?», perguntaLuís.

«Então sabes o que é o sionismo.»«Stop fucking around. O que vieste aqui fazer?»Uma gaivota esgrouviada grita sobre os telhados. Joaquim olha

para a janela, pressente a claridade da aurora, daqui a nada umvizinho vai pôr uma cafeteira ao lume, ligar o rádio, inaugurar o dia.

«Temos de safar os judeus que mataram o Salazar.»«Temos?»«Se não me ajudares, nem o casamento salva a tua Rebeca.»Joaquim conta que, durante o exílio em Espanha, após uma

tentativa gorada de golpe militar, Rolão Preto fizera um acordo comIsaías Henriques, líder de um grupo de judeus de váriasnacionalidades. Se os partisans matassem Salazar, o antigo líderdos camisas azuis garantia suficientes apoios nos militares, naIgreja, no setor germanófilo da PVDE e até no presidente Carmonapara assumir o lugar vago. Além disso, em junho de 1940, quando aBlitzkrieg fulminava fronteira atrás de fronteira e milhares desoldados ingleses escapavam de Dunquerque por uma unha negra,a vitória da Alemanha e a superioridade das suas convicções erainquestionável. Se chegasse a presidente do Conselho, Rolão Pretocancelaria a neutralidade portuguesa, aproximando o país do Eixo edos prováveis vencedores da guerra. Tinha a ambição pessoal dese apresentar como o salvador da pátria, sem dúvida, mas tambémestava a par do que Serrano Súñer, ministro espanhol dos NegóciosEstrangeiros, dissera a Von Ribbentrop, o seu homólogo germânico:«A neutralidade de Portugal causa-nos preocupação. Ao ver o mapa

da Europa, é impossível não perceber que, geograficamente,Portugal não tem direito de existir.» Carmona e Rolão Preto tambémsabiam que, no encontro entre Franco e Hitler, fora discutida umapossível invasão do território nacional. Num pós-guerra em que osportugueses não tivessem um crédito de fidelidade ao TerceiroReich, Franco acrescentaria uma província ocidental à sua Hispâniae a Alemanha ficaria com Angola e Moçambique.

«Foi assim que, após a morte do Salazar, o Rolão Preto foivendido ao Carmona, à PVDE e aos patriarcas das fortunas danação: um homem capaz de preservar a independência e oimpério.»

«E os comunistas?», pergunta Luís.«Nesta farsa, os comunistas não meteram o dedo nem abriram o

bico. Só fizeram o papel do Homem do Saco para assustar apopulaça. São a horda do mal que tentou destruir Espanha.»

«E o tipo que foi ferido no cemitério e encontrado no pinhal,quando mataram o Salazar, não era comunista?»

«Tinha pertencido ao partido, mas deixara-se disso. Era maissionista que discípulo dos sovietes.» No complô, explica Joaquim,estavam metidos judeus franceses, alemães, húngaros, polacos eportugueses. Mas também cristãos e ateus. Havia anarquistas,comunistas, até um ex-banqueiro. «Entraram em Portugal nascolunas de refugiados», explica Joaquim. «Queriam recuperar oProjeto Bravo e fundar o Estado de Israel num pedaço de Angola.»

«Quem é que sabia?»«Pouca gente. O séquito do Rolão Preto. A liderança dos

comandos partisans. E o Félix Aranha, o germanófilo de coração naPVDE.»

«Aqui há uns anos, esse gajo meteu a Gestapo a treinar osvigilantes. Nunca foi grande entusiasta da neutralidade do Salazar.»O detetive repara como o irmão chupa o caroço da nêspera,passando-o de um lado para o outro da boca. «Não perdeste essetique. Fucking gross.» Estende-lhe a mão e Joaquim entrega-lhe umcaroço polido como um seixo no fundo do rio. Luís sente a saliva doirmão na pele e atira o caroço para o lava-loiças. «Onde é que tuentras nisto tudo?»

«Já lá vamos.» Joaquim volta a pegar na cigarreira, encolhe osombros para expressar a indispensabilidade da nicotina ao desfechodo seu relato.

O detetive abre a porta do pátio.«Sopra o fumo lá para fora.»«O Rolão Preto roeu a corda aos judeus num golpe de mestre.

Nunca teve intenções de criar um Novo Israel em Angola. Desde oinício que planeou usar os partisans. Não só teve quem lhe fizesse otrabalho sujo, como alguém que carregasse com a culpa da mortedo Salazar. Os judeus voltaram a matar o Messias, percebes osimbolismo dessa merda? É outra vez a Maldição do Sangue, doevangelho de S. Mateus.»

«Sabes que nunca fui muito de livros de ficção.»«Enquanto Pilatos lavava as mãos, o povo judeu gritava: “Que o

sangue de Jesus caia sobre nós e os nossos filhos.” Ao culpar osjudeus mais uma vez, e ainda por cima pela morte do Salazar, oRolão Preto caiu nas graças do povo, mas também do Hitler, quetão generosamente nos tem ajudado durante o bloqueio navalinglês.» Joaquim levanta-se e abre a torneira para apagar o cigarro.Volta a sentar-se. «Como estão as coisas na Europa, há melhorcordeiro de sacrifício do que os judeus? Se ao antissemitismojuntares o medo da guerra e o papão comunista, tens o povo namão.»

«O povo.» O detetive sorri a descrença de quem ouve um cego afalar da composição e do uso da luz num quadro a óleo. «Masalguma vez o povo deixou de estar na mão?» Os pássaros jácantam nas árvores. A primeira descarga de um autoclismo percorreas entranhas do prédio. «Daqui a nada, os miúdos acordam.» Luíslevanta-se e vai fechar a porta do pátio. «Duas coisas. E rápido.Como é que te meteste nisto e o que queres de mim?»

Joaquim percebe que está na hora e assume a persona dofacilitador Inácio Capote.

«Lembras-te do Nuno Athaíde?»«Foi ele que me arranjou trabalho quando cheguei a Lisboa.»«Mais generoso do que eu pensava.»«Digamos que foi o pagamento de um favor antigo.»

«O Nuno Athaíde contratou-me para organizar o plano de fugados partisans judeus se as coisas dessem para o torto. Transporte,subornos, contactos locais. Só que o gajo matou-se ontem.»

«Estás de luto ou desempregado?»«Ele era apenas um contacto de ligação. Quem me paga são os

sionistas americanos. O plano de fuga mantém-se. O pagamentotambém.»

«Como é que sabes que ele se matou?»«Fui chamado à PVDE.»Paixão Leal levanta-se, quase derruba a cadeira.«Estiveste na Polícia e agora estás aqui? Tu és maluco, queres

dar cabo da…»«Ninguém me seguiu. A única pessoa que sabia do meu

envolvimento era o Nuno. E está morto.»«Então chamaram-te porquê?»«Porque andei a dormir com a Madalena Athaíde.»«E ela sabia de alguma coisa?»«Não.»O detetive volta a sentar-se, desconfiado.«Mas, com o Nuno morto e a PVDE curiosa, preciso da tua ajuda.

Não posso meter o plano em marcha, porque corro o risco de estara ser seguido. Mais tarde ou mais cedo, Portugal vai entrar naguerra ao lado do Eixo. Os judeus em Portugal vão parar a camposde internamento, como em França, ou acabam recambiados para oslugares de origem, onde os espera a comissão nazi de boas-vindas.Podes casar com a Rebeca e batizar os miúdos, que isso não vaivaler de nada. Durante quase trezentos anos, os cristãos-novos atépodiam tomar banho com água-benta enquanto comiam chouriçocom torresmos. Nunca deixaram de ser perseguidos e castigadoscomo judeus. A história não se repete, mas rima. Se me ajudares atirar os partisans do país, embarcas daqui para fora com a Rebeca eas crianças. Podes recomeçar noutro sítio. Talvez junto ao mar,perto de um pinhal, onde não faça frio. Uma família, como nóséramos.»

No pregão de vendas de Joaquim, o detetive perscruta a ambiçãodo ex-contrabandista de álcool. Mas percebe também o apego a um

mar, a um calor e a um tempo que deixou de ser. Na praia doGuincho ou no areal de Rockaway, o Atlântico era o mesmo desempre. Joaquim atirava-se para fora de pé. Luís mantinha-se comágua pela cintura.

A Maldição do Sangue segundo S. Mateus, pensa o detetive, nãoé apenas uma praga lançada aos judeus, mas a sina ancestral dasfamílias. Essa tensão vitalícia entre as forças contrárias da fuga e doregresso, do amor e do ressentimento, da independência e dodever. Deveria chamar-se A dialética do sangue. Ou o puxão, ocastigo de Atlas, o círculo vicioso que se transmite de pais parafilhos desde que Abraão encostou a lâmina no pescoço de Isaac. Noirmão diante de si, Luís vê o pai e o tio. Toda a admiração e todo odesengano que lhe causaram. Não se trata apenas da semelhançade feições, instintos e personalidades. Mas a prova inelutável deque, por mais que tenha fugido de Cascais para Nova Iorque ou deNantucket para Lisboa, Luís não pode livrar-se do chamamento dosangue.

«O que é que tenho de fazer?», pergunta o detetive.Mathilda aparece na cozinha com a cara distorcida pelo terror.

Outro pesadelo. Por mais que Rebeca fiscalize as conversas e asemissões da rádio, a guerra está em todas as bocas e jornais, noracionamento do açúcar e do café, na desconfiança com osestrangeiros, nos postos militares com artilharia antiaérea nascolinas da capital ou nas batalhas que os miúdos ensaiam nosrecreios, onde já ninguém quer lutar pelos ingleses. Na lista deinjúrias à disposição dos alunos da escola primária ou do liceu —gordo, anão, vesgo, filho da puta — foi acrescentado o insulto judeusempre que alguém revela falta de asseio ou faz batota num jogo. ODiário da Manhã noticiou que, num recente baile temático da altasociedade lisboeta, vários casais apareceram mascarados de AdolfHitler e Eva Braun.

«Não vais apresentá-la ao tio?», pergunta Joaquim, olhando paraMathilda, tão estremunhada que não dá por ele.

«Escreve aí o que preciso de saber», ordena Luís, e pega emMathilda ao colo, leva-a para o quarto, deita-a na cama. «Como era

o sonho mau?», pergunta enquanto lhe pousa a mão nas costas,embalando-a devagar.

«Estavam a fazer mal ao meu pai.»«Quem estava a fazer mal ao teu pai?»«Os comunistas e os nazis.»«Lembras-te do que falámos sobre os monstros?»«Não existem.»«Os comunistas e os nazis também não.»Como em tantas outras noites em que adormeceu Mathilda, Luís

murmura-lhe uma canção e ela fecha os olhos, o seu corpoestremece ao despenhar-se no sono. Mathilda e o seu cheiro asabonete de alfazema. O pesadelo com o pai que Luís não é (quetalvez nunca venha a ser). A perna direita que ela destapa sempreque tem calor. Um corpo tão pequeno e destrutível na escala dasideologias e da marcha dos tanques. Um corpo tão indefeso nestacidade de estrangeiros confinados e mulheres assassinadas.Tivesse mais um olho e talvez Paixão Leal começasse a chorar. Maso que lhe é pedido não admite melancolia. Só lhe resta ser o talhomem disposto a atravessar o dilúvio com um chapéu de chuva.Beija a cabeça de Mathilda e, chegado à cozinha, a luz oblíqua damanhã anuncia a ausência do irmão e a presença, sobre a mesa, doúnico exemplar do almanaque de aventuras The passion brothers.

«Motherfucker», diz o detetive.Dentro do almanaque está um papel com uma lista de nomes,

lugares e instruções. No final do bilhete, a tinta da Parker de InácioCapote escreveu, na caligrafia familiar de Joaquim, a última frase dolivro de banda desenhada: Nunca vamos morrer. Paixão Leal rasgao papel e guarda a frase do irmão no bolso das calças. Queima nachama de um fósforo a outra metade, com as informações que jádecorou. Abre a torneira, e os vestígios calcinados rodopiam atédesaparecerem num vórtice de água negra.

Do ralo vieste, ao ralo irás parar.«Cheira a fumo», diz Rebeca quando aparece na cozinha.«Ia fazer café.»«Fumo de cigarro.»Toca o despertador da guerra. Ouvem-se as sirenes que treinam

os lisboetas para os ataques aéreos. O cão do vizinho começa aladrar. Mathilda chama pela mãe no quarto.

«Deve ser só mais um exercício», diz o detetive. Naimpossibilidade de garantir a Rebeca a observância da promessaque fez ao irmão há muitos anos, e que tem escrita num papeldentro do bolso, o detetive diz:

«Deixa-te estar. Eu vou buscar os miúdos.»

Quarta-feira, 21 de agostoDurante toda a viagem, no banco traseiro do táxi, Cardoso desfia

lamúrias sobre as condições de trabalho na Polícia. Faltamautomóveis, agentes, pistolas que não pareçam mosquetes deantiquário, verbas para as despesas correntes.

«Qualquer dia tenho de meter dinheiro do meu bolso», diz,lançando o toco mascado de uma cigarrilha pela janela.

Foram precisos vários dias até que o chefe da brigada lhes dessepermissão para alugar o carro de praça que transporta os detetivesestuário do Tejo acima em mais uma diligência do caso de Maria daConceição, encontrada morta no Cabo Espichel. Paixão Leal nãoouve o colega nem repara na paisagem ribeirinha de águairidescente ou nos apanhadores de amêijoas vergados entre acanícula e a lama. Repassa uma e outra vez as possibilidades que oirmão lhe deixou. Ficar ou partir. Falar com Rebeca ou agir nosilêncio. Afinal, ele é o chefe de família, cabe-lhe a última palavra.Compara os riscos. Levar Rebeca e os miúdos para um barco comos partisans que mataram Salazar parece-lhe um empreendimentoperigoso, se não suicida. Mas, caso as previsões do irmão seconfirmem e Portugal entre na guerra ao lado das forças do Eixo,Rebeca e as crianças ficarão em perigo. Sente que tem de protegera família. É polícia, o patriarca da casa, um homem capaz de usar aviolência em defesa do que é seu. Rebeca casou-se com umportuguês que serve o Estado e a pátria, e é apenas um quartojudia. Talvez Paixão Leal possa trilhar a via da obediência calada,como qualquer outro compatriota.

Ainda há uns dias, numa manhã tão solar que transformaria umasceta em epicurista, o detetive entrou na Basílica da Estrela epediu ao padre Rafael que celebrasse o seu casamento comRebeca e batizasse os miúdos. O sacerdote acedeu sem indagar apressa. Não era a primeira judia que casava com um cristão, elepróprio se juntava aos paroquianos para entregar comida e roupaaos judeus em Alfama. O padre confessou repugnância pelo queestavam a fazer aos refugiados. Não tinha sido Jesus Cristo umjudeu a viver num território ocupado por uma força totalitária? Opadre Rafael conferiu o sacramento do batismo a Rebeca e aos

filhos. Uniu depois o casal no santo matrimónio, Mathilda entregouuma aliança ao padrasto, Chris deu a outra a Rebeca. Não houveroupa de cerimónia nem marcha nupcial. A noiva viúva levava umvestido verde-água, com bolinhas e golas brancas. Apanhou ocabelo, cobrindo-o com um lenço alvo que pertencera à mãe. Ao vê-la em casa, antes de saírem, Paixão beijara-a na boca, confirmandoa intenção das suas palavras simples: «És tão bonita.» Não era umpoeta romântico, mas dizia a verdade. No altar, diante do padre,deram um abraço depois de serem abençoados.

Embora nesse dia o detetive tenha recorrido a uma dissimulaçãopara devolver o Menino Jesus que sequestrara na última visita àBasílica — «Pode mostrar o presépio aos miúdos, senhor padre?»—, recompor o quadro familiar da natividade e redimir-se de umfurto bizarro foi a maneira pueril que encontrou para prometer areforma da sua conduta.

Enquanto o padre Rafael mostrava aos miúdos o progresso naconstrução do presépio, Paixão Leal largou o Menino Jesus na pilhade figuras suplentes e, ao ver a alegria de Mathilda e Chris com osanimais de barro e os reis magos, pegou na mão de Rebeca parasentir-lhe a aliança no dedo. Estava certo da sua escolha. Seria fiele abstémio e cumpridor. Nunca bateria nas crianças. Respeitaria ochefe e os protocolos da Polícia. Trocaria a constante busca da suaverdade pela paz de espírito. Substituiria o ofício obsessivo dajustiça pela segurança incondicional da família. Engoliria o seuanticlericalismo com cada hóstia tomada na missa de domingo.Todas as guerras acabam um dia e os portugueses não têm aarrogância racial dos alemães, dizia a si mesmo. Há gente boaneste país, padres e cristãos que ajudam os refugiados. Osfanáticos fazem muita algazarra, mas são uma minoria. Háministros, juízes, militares, polícias, médicos que asseguram aprática do bem e do bom senso. Se dermos uma oportunidade àspessoas para responderem com integridade e compaixão —convencia-se o detetive na sacristia da basílica —, é isso que elasvão fazer.

«Acorda, Americano. Chegámos.»Os detetives saem do táxi e caminham ao longo de um carreiro de

terra ladeado por uma guedelha de canas endurecidas pelo sol.Sentem o odor pantanoso do Tejo, dos peixes secos e penduradosnuma corda como peúgas jurássicas. No aglomerado de barracas ede trastes de pesca na margem do rio, um par de homens lixa ocasco de um bote. Uma rapariga cose redes, sentada no chão.

«Lara Flores?», pergunta Cardoso.A rapariga parece estagnada na puberdade, sem peito, de

contornos andróginos, pernas de menina que salta ao elástico edesconhece as vilezas dos graúdos. Mas tem vinte anos e já viumuitos polícias. Confirma a sua identidade com um aceno decabeça. Olha para os homens que trabalham no bote. Não é umpedido de resgate, mas o olhar de pânico antes de uma calamidade.O pai e o irmão acreditam que ela serviu na casa de uma senhoralisboeta, não sabem que trabalhou na Pensão Genoveva, ao Caisdo Sodré. Obsequiosa e respeitadora dos homens com quem sedeitava, ao longo de meses Lara não deixou de perverter o modelomariano da mulher lusa, convertendo a sua inocência em isco paraclientes que gostavam de meninas.

O pai levanta o corpo mascarrado de sol e lodo. Olha para oshomens que falam com a filha. Paixão Leal mostra-lhe aidentificação da Polícia.

«Não se preocupe, só precisamos de conversar com a senhoritaFlores.»

Lara leva-os para dentro de uma barraca periclitante de chapas etábuas. Num alguidar há roupa de molho, o aroma do sabão éinsuficiente para disfarçar o rasto corporal dos homens que alicomem e dormem após um dia de faina no rio. Lara segue asindicações de Cardoso, senta-se numa caixa de madeira. Osdetetives ficam de pé e Paixão Leal pergunta:

«O que te aconteceu para saíres de Lisboa sem dizer nada?»«Não tinha ninguém a quem dizer o que fosse.» Lara aponta os

olhos ao chão, entrelaça os dedos sobre o colo, a postura resignadadas Madalenas arrependidas, mas nunca perdoadas. «Há coisasque é melhor uma pessoa esquecer.»

«Hoje vais ter de te lembrar», diz Paixão Leal. «O que aconteceu

nessa noite? A Heloísa viu-te chegar toda desgrenhada. Saíste unsminutos depois, nem fechaste a conta da pensão.»

O choro de Lara é um gato num colete de forças. O peito mirra, osombros soçobram.

«Levem-me presa, não tenho como pagar. Assim como assim,quando se forem embora, tenho a vida estragada.»

Cardoso compreende que, mais do que um par de polícias ouaquilo que aconteceu na noite em questão, o terror de Lara é cairem desgraça aos olhos do pai e do irmão.

«Não estamos aqui por causa da tua dívida. Se contares o que telembras e fizeres o que digo, ninguém tem de saber o que se falouaqui dentro.»

Cumprindo a promessa e findo o interrogatório, Cardoso chama opai de Lara quando saem da barraca.

«Em nome do presidente do Conselho, quero agradecer-lhe acolaboração da sua filha na defesa da pátria. Não lhe posso dizermais, a Lara também não. A divulgação de segredos de Estado éseveramente castigada. E nós somos apenas os soldados rasos deuma missão que nos ultrapassa.» Abre a carteira e entrega umanota de vinte escudos ao pescador. «Pelo serviço prestado pelaLara.»

Os detetives regressam ao táxi que os espera.«Discurso grandioso. Parecias o Rolão Preto», diz Paixão Leal.«Como podes ver, funciona.»«Quero é ver como vais explicar ao chefe que gastaste o dinheiro

do táxi para sossegar um pai desconfiado.»No percurso de regresso a Lisboa, os detetives esquadrinham o

depoimento de Lara Flores. Paixão Leal, sôfrego com as primeirasinformações acerca do possível assassino, desprende-se dosmeandros da guerra e dos judeus, tentando solucionar com o ofíciode polícia o que ainda não conseguiu como chefe de família. Laranão sabia o nome do homem que conheceu na rua ou sequeridentificar a marca do carro onde viajou três vezes. Mas o clientepedira-lhe que ela o tratasse por pastor e, nos dois primeirosencontros, levou-a a passear de automóvel. Falou-lhe de Jesus e daVirgem Maria, quis saber se ela tinha a primeira comunhão. Nada de

sexo, só espiritualidade e contemplação, porque o pastor dizia-sevidente.

«Era um homem novo, bonito, não precisava de pagar», disseLara. «Mas o que ele queria, bem, não é qualquer mulher que podedar.»

No táxi, Cardoso põe os óculos e olha para o seu bloco de notas:«Loiro, alto, trinta e poucos anos, olhos cor de lobo.» Lara não podiaprecisar a tonalidade — azuis, verdes, cinzentos? A sua descriçãodo pastor fazia prever um estrangeiro. «Mas olhe que ele falavacomo um português, nem sotaque tinha», explicara Lara, descrenteda suposição dos polícias. Nunca o ouvira conversar acerca detrabalho, família ou futebol. Nada de alianças de casamento oucicatrizes. «Sair com ele era como ter uma aula de catequese.»

No final do primeiro encontro, o pastor combinou o segundo,dando-lhe uma boa gorjeta. Pediu-lhe que trouxesse roupas que afizessem parecer mais nova. No segundo encontro, pagou o terceiroadiantado e reservou duas horas para a noite de doze de junho. Nadata combinada, fez questão de apanhar Lara na pensão após ameia-noite e subiu para a mata de Monsanto, onde estacionou numaestrada secundária. «Eu já o tinha visto com os olhos meioesgazeados, mais parecia um bruxo a chamar os espíritos doAlém», disse Lara aos detetives. «Metia-me impressão. Mas nessanoite, assim que ele parou no meio do nada, o que senti foi medo demorrer. Já levei porrada de clientes. Sei quando um homem me vaifazer mal. Mas aquilo era diferente. Ele queria por força que eucomungasse e bebesse vinho. Tinha levado hóstias, um cálice, até afarpela de padre. Só falava da transfusão ou da transformação, seilá.»

No seu bloco, Cardoso sublinhou a palavra transubstanciação.«Achas que é um padre?», pergunta ao colega, no banco traseiro

do táxi.«Pode ser um tarado que sente tusa a dar as hóstias à boca das

meninas.» Paixão Leal não se habituou à aliança de casamento.Está larga e ele desenvolveu o tique de a deslizar ao longo do dedo.«Talvez seja um gajo que gosta de se vestir de padre para entrar nopapel.»

No carro do pastor, Lara não dera conta de nenhum lençol branco,tão-pouco de um rosário como aquele que Paixão Leal lhe mostroue que estivera nos dedos dos cadáveres da Santa do Cabo e daJudia da Sé. Mas, ao ver o fio com uma medalhinha de NossaSenhora, disse que havia uma igual pendurada no retrovisor doautomóvel. Lara contou que o pastor consagrara o pão e o vinho,invocando o milagre da presença de Cristo na eucaristia — naquelepreciso momento, dentro de um carro, na mata de Monsanto —, eque recitara as palavras de Jesus na Última Ceia. «Pois o meucorpo é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida.»Lara não era dotada de uma religiosidade que lhe permitisse exultarcom o mistério da transubstanciação. Os tabefes que já levara dosclientes tinham-na instruído numa abordagem mais prática darealidade. Se até o filho de Deus fora torturado, pregado numa cruze morto injustamente, o que aconteceria a uma puta? Laraaproveitou o transe do pastor — os olhos revirados, a ereção nascalças — e saiu porta fora, correndo desalmadamente na direção damata. Ainda o ouviu dizer: «Isto é o meu corpo, que será entreguepor vós.» Lara só parou em Alcântara, depois de largar o sobretudoque lhe pesava e fazia calor, mas que também escondia as roupasde criança com que teve de caminhar no regresso à pensão.

O táxi detém-se num bloqueio militar antes de chegar a Lisboa,atrás de outros veículos. Paixão Leal abre a porta e avança até aooficial de comando. Identifica-se, explicando que está em serviço.

«O senhor detetive desculpe, mas vai mesmo ter de esperar», dizo oficial, sem que precise de apontar para a coluna de camiões quese aproxima do cruzamento. As carroçarias estrepitam no asfaltocomo a aliança no dedo. Os veículos pesados não trazem apenasvíveres em caixas com a suástica negra. Há camiões espanhóis detransporte de artilharia e de soldados que, mal acabada a guerracivil no seu país, já se preparam para outra.

Com a mão direita, Paixão Leal segura os tremores do anel deouro na mão esquerda. Esforça o sorriso ridículo de quem tentaadiar o diagnóstico negativo do médico com uma piada fora detempo.

«Queres ver que estamos a ser invadidos?», diz, como se

quisesse ouvir um desmentido oficial.«Pelo contrário, senhor agente, estes vêm cá para que os bifes e

os comunas não entrem por aí adentro.»Paixão Leal reconhece a chamada de Cardoso, vira-se para o

epicentro do assobio do colega.«Demora muito ou faz serão?» Cardoso tem a cabeça fora da

janela. «O taxímetro está a contar.» O detetive zarolho regressa aocarro, senta-se no banco traseiro, larga a aliança por um segundo everifica que ainda treme.

«Isto vai custar-nos caro», diz Cardoso, seguindo o avanço dacoluna militar. Paixão Leal gostaria de acreditar que ele está apenasa referir-se à corrida de táxi.

Chegados à sala da brigada, os detetives encontram a volta docorreio: um pacote com as cartas que Maria da Conceição, a Santado Cabo, escreveu à irmã mais velha durante a desventura lisboeta.Sentam-se para ler a correspondência embalados pelo rádio ligado:o Focinho do Goebbels rosna a sua litania de catecismo e cruzada,chegando a todos os recantos do país. Está na hora do terço. Secada cidadão perfizer a sua quota diária de pais-nossos e ave-marias em nome da Segunda Reconquista Cristã, como sugere olocutor, então, Nossa Senhora de Fátima manterá a sua predileçãopelos fiéis lusitanos e protegerá a pátria dos assassinos comunistase dos estrangeiros ímpios.

Paixão Leal descobre um envelope fechado no meio das cartas.Lá dentro, algum dinheiro e um bilhete no qual a irmã de Conceiçãopede aos polícias o favor de comprar um ramo de flores para acampa anónima da Santa do Cabo. Está longe, em Viseu, nemsequer pode visitar o cemitério. Cardoso lê o bilhete. O luto pelasvítimas não é uma competência exigida aos polícias de homicídios.Mas, por vezes, permite-se-lhes o silêncio respeitoso dos que nãochoram em público. Ou o protesto de um palavrão, um soco nosdentes da impotência:

«Foda-se, que coisa tão triste», diz Cardoso, percebendo que oseu abatimento só piorará se permanecer naquela sala de calorapoplético, onde soa o amém coral da rádio. Pega nas cartas daSanta do Cabo e no chapéu. «Vamos mas é almoçar, Americano.»

O Galego é uma casa de pasto entre a sede da PIC e o Institutode Medicina Legal. Seis mesas ocupadas por polícias, médicos ecangalheiros. Xuana, a mulher do proprietário, serve às mesas. Opróprio do galego nunca sai da cozinha. Ela é uma língua de trapos.Ele, o anacoreta fechado numa torre de panelas onde borbulha oarroz de polvo e frigem as pataniscas de bacalhau. Chegaram aLisboa em 1936, foragidos da guerra civil em Espanha. Emborasejam patrícios galegos de Franco, não se lhes conhece umaopinião acerca das forças que se mataram no seu país. Já asrefeições que serviram de graça aos refugiados do conflito indiciamque a aparente neutralidade ideológica não os isentou de acudir oscompatriotas.

Cardoso recusa o jarro de vinho.«Estou em serviço, Xuana», desculpa-se.«Não me faça rir, senhor agente», diz Xuana, deixando o tinto na

mesa.Os detetives gastam parte do almoço tentando encontrar algum

detalhe pertinente nas cartas de Maria da Conceição, escritas comletra de escola primária, mas repletas de devaneios grandiosos,passeios a cavalo, matinés de teatro com o noivo.

«Metade amazona, metade dama das Camélias», diz Cardoso,pinçando o canto da folha com apenas dois dedos para expressar asua inutilidade. «Estas gaiatas de hoje leem muitas revistas.» Nascartas da Santa do Cabo, o noivo é uma colagem de retalhos, acriação livre e incoerente da doutora Frankenstein-Gata Borralheira.Bonito como um ator de cinema. Fiável como um juiz. Rico como umindustrial. Umas vezes, é moreno de olhos pretos. Noutrasaparições, tem olhos azuis. Cardoso cansa-se do romance decordel. Por fim, serve-se do vinho, meia hora depois do café e dasbarrigas-de-freira. «Quem faz o que pode a mais não é obrigado»,diz, largando a carta que tem na mão. Bebe o copo de tinto como sefosse água da fonte. Vai em busca da sede perdida. O vinho é a suamadalena proustiana.

Do garimpo feito nas cartas, só encontram uma referência quePaixão Leal julga encaixar no quebra-cabeças. A Santa do Cabo dizque o noivo queria levá-la numa peregrinação a Fátima. O detetive

lembra que Lurdes tinha bilhetes para uma excursão ao santuário. ELara contou que o pastor lhe falava com frequência de NossaSenhora.

«Esse noivo nunca existiu», diz Cardoso. «E sabes quantaspessoas vão a Fátima todos os anos?»

«Nem todas acabam assassinadas. Era suposto a Lurdes ir aosantuário. E tens a Santa do Cabo a falar na mesma coisa nascartas.»

«Não recuso a paranoia ritualista do assassino», diz Cardoso.«Os cadáveres com as medalhinhas, os terços, os mantos alvos, asmortes a dia treze. Mas hesito em meter já a criada do Salazar nomesmo saco. A Lurdes não tinha medalha, terço, manto, nemsequer era prostituta. Além disso — não vá o meu caríssimo colegaesquecer-se —, essa investigação e a da Judia da Sé estão a cargoda PVDE.»

«Mas tinha a idade e o tipo físico das outras vítimas, e uma hóstiana boca. Foi assassinada num dia treze», diz Paixão Leal, sugerindoque, falhado o homicídio de Lara Flores, o pastor terá procuradouma nova vítima. O detetive recorda que Lurdes deixou o palacetede São Bento a doze de julho, o mesmo dia em que o namorado foipreso. «O gajo passou essa noite nos calabouços da PVDE,acusado de comprar vistos falsos e bilhetes de navio no mercadonegro. Só no dia seguinte, depois de se saber da morte do Salazar,deduziram que aquele chico-esperto, com pressa de sair do país,podia ter alguma coisa a ver com o atentado. Apertaram com ele.Quando lhe revistaram a casa, à procura da criada que tinha dadocom a língua nos dentes sobre a visita do Salazar ao cemitério, elanão estava lá. Era uma miúda sem ninguém. Tinha acabado de sairdo lar que a acolheu e das pessoas que cuidaram dela, só para ir nacantiga de um despachante manhoso. O Salazar e a dona Mariaeram o mais próximo que ela alguma vez teve de um pai e de umamãe. Quando o Juvenal saiu para tratar da viagem e não apareceuà noite, talvez a rapariga se tenha arrependido e quisesse voltar aopalacete.»

«O romantismo é muito bonito», diz Cardoso. «Mas um teto ecomida na mesa têm mais serventia.»

«É bem possível que o pastor se tenha cruzado com a Lurdesentre a casa do Juvenal e o palacete em São Bento. Talvez seconhecessem. Talvez tenham ido a Fátima na mesma excursão, noano passado.»

«Isso já é um grande salto.» Cardoso enche o copo com a últimaporção de vinho.

«Não custa nada fazer uma visita ao padre Rafael e perguntar-lhequem organizou a peregrinação onde a Lurdes não meteu os pés,ainda que tivesse um bilhete.»

«Por falar nesse padreco, não suspeitas dele?», perguntaCardoso. «Conhecia a Lurdes. E tem acesso ao equipamentoeclesiástico, hóstias, cálices, terços, etcétera e tal.»

«Não corresponde à descrição que a Lara fez do pastor. Émoreno e de olhos escuros.»

São agora os únicos clientes no restaurante. Xuana limpou todasas mesas, varreu o chão e juntou-se ao marido na cozinha. Há umapenumbra de pátio mourisco na sala, a frescura possível quando,pela fresta da porta encostada, a refulgência da tarde supõe trintagraus ao sol e homens empapados de suor na sonolência digestivade um escritório. Lá fora, um sossego de roupa estendida e patas decavalo a trotar na calçada. Não passa um carro. Mas ao longe ouve-se um rádio, que se cala, permitindo identificar esse momento emque a tarde desacelera, quando a loiça do almoço pinga noescorredouro, se correm as cortinas e é mais longa a ausência depalavras entre uma pergunta e uma resposta. Então, o silêncioengolfa tudo. Um silêncio sagrado para Cardoso, que Paixão Lealnão respeita.

«Estamos a esquecer-nos de uma coisa.» Cardoso quer protestar,mas o regaço do vinho só lhe permite um grunhido de bebé combirra de sono. «Se as aparições de Fátima começaram a treze demaio», continua Paixão Leal, «porque é que só encontrámosmulheres assassinadas a treze de junho, julho e agosto?»

Cardoso cofia a papada. Suspira como um bombardeiro comexcesso de carga que tenta descolar numa pista pequena. Seguraas laterais da mesa, alavanca o corpanzil, recuperando sem pressaa familiaridade com a sua condição de bípede vertical.

«Então, estamos a esquecer-nos de outra coisa ainda», dizCardoso, ativado pelo raciocínio do colega. Faz uma pausa. Menossuspense do que tontura etílica. «Houve seis aparições da Virgemem Fátima. Se o assassino for tão metódico e litúrgico como temsido, vamos ter problemas no dia treze de setembro e no dia trezede outubro.»

«Fuck me.»«E agora, se me permites, vou aliviar-me da água que bebi ao

almoço.»Cardoso enfrenta as escadas para a cave, apoia-se nas paredes

por causa das vertigens. Entra na casa de banho. De pé e braguilhaaberta, sem linha de visão para o pénis na sombra da barriga,espera que a próstata acione o motor de arranque. O jato tarda, nãoé contínuo ou certeiro. Quando Cardoso se desenvencilha dosgases intestinais do almoço, treme-lhe mais a pontaria e mija o aroda retrete.

«Fuck me», diz, imitando o sotaque do colega. Não quer queXuana limpe o seu descuido ou que comente com o marido aporcaria que o polícia gordo fez na casa de banho. Seca tudo compapel e sai para a base das escadas, onde enxagua as mãos e orosto num lavatório com sabão azul e branco.

Tira uma cigarrilha da caixa e mete-a na boca. Não a acende,adiando o prazer do fumo, a recompensa para quando alcançar oalto das escadas. Já não é o soldado nas trincheiras da Flandres.Vinte e dois anos após o final da Grande Guerra, outra incendeia aEuropa, separando mais uma vez os pios dos hereges, osencantadores de serpentes dos que escolhem a verdade, os heróisdos vilões. Mas Cardoso já deu o seu contributo para o culto domaniqueísmo. Sabe que a vida pode ocupar um sítio menosalvoroçado entre os extremos. A esta altura, não lhe cabe enfrentaro nazismo, o comunismo ou a invasão britânica da ocidental praialusitana. Para um cinquentão fumador, com quilos a mais egratamente desiludido com a política, o seu pior inimigo são asescadas que tem pela frente.

Cardoso conta os degraus, na subida, sem olhar para cima. Já vaia meio quando se lembra que deixou a caixa das cigarrilhas no

lavatório. Vira o pescoço e olha para o fundo das escadas. Na portado lado esquerdo, oposta à casa de banho, um crânio pequenoespreita o gordo em busca da caixa esquecida junto ao sabão. Orumor de uma reprimenda feminina nas costas do miúdo leva-o adesaparecer atrás da porta. Cardoso já não tem o vigor do soldado,mas ainda não se furtou da curiosidade do polícia. Desce asescadas, espreita pela porta, encontra uma bruma de teias dearanha, cachos de cebolas e alhos pendurados do teto, prateleirascom garrafões de azeite e banha de porco. Ao fundo daarrecadação, o grupo olha-o com a modéstia dos hóspedes que nãoquerem abusar do anfitrião. Mas também com a incerteza de quemvê um estranho que não entrou ali só para averiguar se as visitasprecisam de toalhas lavadas. As parecenças físicas denunciamtratar-se de uma família. Estão alinhados por alturas, sorrindo comonuma fotografia tirada por um raptor. Vestem roupas gastas pelaviagem, as feições confusas de quem se rendeu ao cansaço semperder a esperança. O miúdo diz algumas palavras numa língua queo detetive não identifica. A mãe aperta-lhe o ombro, o pai apressa-se a interrompê-lo, dirigindo-se a Cardoso:

«Bom dia, como está o senhor?» Replica foneticamente asaudação com que espera salvar-se desta cave, furar oencerramento das fronteiras e encontrar um país que acolha a suafamília. A sobrevivência tem tanto de digno como de patético, pensaCardoso, que faz uma vénia para que o homem não se sinta tãosozinho no desempenho das cortesias que escondem o medo eclamam misericórdia.

«Estou bem, muito obrigado, um bom dia para os senhorestambém.»

Cardoso recua e fecha a porta atrás de si. No topo das escadas,ofegante e vermelhão, encontra Xuana, que, pela primeira vezdesde que a conhece, não solta uma piada, uma provocação,qualquer coisa para entreter o cliente habitual. O detetive já ouviurumores sobre os lisboetas que albergam os judeus sem fundospara pagar quartos de pensão e que recusam mudar-se para a NovaJudiaria de Alfama. Cardoso sossega a galega estarrecida. Encostao indicador ao nariz.

«Não diga a ninguém que eu bebi vinho em serviço.» Pisca-lhe oolho. «Só a senhora é que sabe.»

Os detetives atravessam o Campo de Santana, seguindo o trilhodas sombras das árvores. Cardoso reconhece nos patos do jardim asoneira balanceada do seu próprio caminhar. Paixão Leal dápassadas largas, vai deixando o colega para trás sem dar-se conta.Cardoso tem notado o Americano mais tenso, com a inquietação dojogador endividado ou do bancário que prepara um desfalque.Cardoso opta por não mencionar o encontro com a família judia nacave dos galegos. Não é preciso ouvir clandestinamente asemissões portuguesas da BBC, a partir de Londres, para saber doscampos de internamento forçado onde se encerram os judeus emFrança. Não faz falta ser detetive para perceber que, caso osalemães desembarquem primeiro que os ingleses em Portugal, umacertidão de casamento pela igreja, com um português, nãoprotegerá Rebeca, a judia apátrida.

Ao chegar à sala da brigada, Cardoso está certo de que todas asmoscas confluem para a melena oleosa do Dentista. O agente daPVDE está sentado na cadeira de Paixão Leal, tamborilando notampo com as unhas amarelas, como se rufasse um tambor antesda execução. O Toureiro usou um código penal como degrau paraalcançar as prateleiras mais altas no armário de Cardoso. Equilibra-se na perna boa, o pé manco paira no ar, raquítico, incapaz desuscitar o condoimento devido aos aleijados.

«Fizeram um intervalo no almoço para nos dar as boas-vindas,senhores detetives?», diz o Dentista. «Isso de brincar aos políciasoferece-vos muito tempo livre.»

«O suficiente para deixar a tua mãe de rastos», provoca Cardoso,supondo que o Dentista é um truculento defensor da honra materna.

«O que é que disseste?» O Dentista levanta-se.«Há lá coisa mais inútil do que explicar uma piada.»«Repete o que disseste.»«Foda-se, além de grunho, és surdo?»Não há nada que os detetives da PIC possam fazer para bloquear

aquela intrusão. Paixão Leal percebe que, como já fez Cardoso, sólhes sobra o consolo de foder o juízo aos vigilantes:

«Passo a explicar, caro agente. Perante a insinuação de quetemos muito tempo livre, o detetive Cardoso justificou-se, dizendoque usava esse tempo para comer a senhora sua mãe.»

«Filho da puta.»«Prazer, Luís Paixão Leal.»«Da puta é nome de família», esclarece Cardoso.«Vamos lá fora resolver isto», diz o Dentista.O Toureiro bate com um molho de pastas na secretária.«Já tenho tudo o que precisamos. Deixa lá os garotos no recreio.»Face ao desplante, Cardoso e Paixão Leal escolhem ser imaturos,

desafiadores, virulentos, não lhes resta nada senão agarrar-se aobate-boca dos machos — o derradeiro recurso dos perdedores. Só ogrito do chefe detém a regressão etária dos seus detetives:

«No meu gabinete.»Ferrão informa-os de que o caso da Santa do Cabo passou para a

jurisdição da PVDE.«Se foram mortas pela mesma pessoa, como vocês acreditam,

faz sentido que seja a PVDE a conduzir as três investigações. Já látêm os casos da Judia da Sé e da criada do Salazar.»

Cardoso não contesta, gastou tudo o que tinha a subir escadas ea aferroar o Dentista. Paixão Leal ainda tenta:

«Chefe, temos novas pistas, íamos falar com o padre Rafaelsobre as excursões a Fátima.»

«Não me interessa. Se tem alguma coisa a acrescentar, escrevauma carta e mande-a aos estimados colegas da PVDE. Mas faça-ofora da hora de expediente e não me ponha o preço do selo nasajudas de custo. Esse caso já não nos diz respeito.» Paixão Lealprepara-se para intervir. O chefe levanta a mão que abençoa osilêncio: «Não quero ouvir mais nada. Tirem folga amanhã, estão aprecisar. É uma ordem.»

No caminho para casa, entre a descida da Calçada do Lavra e asubida da Mãe de Água, o detetive zarolho aprecia o que resta datarde de verão, a leveza da folhagem das árvores e a imensidão docéu. Algo se desaloja dentro de si, um glaciar que se solta da placacontinental. Pela primeira vez em muito tempo, Paixão Leal não sesente entalado entre a memória do que já viveu e a ânsia de

resolver o futuro. Essa súbita equanimidade contraria aquilo que otio Domingos lhe ensinou sobre os prisioneiros na caverna de Platãoou a supremacia do mundo das ideias sobre o domínio das coisassensíveis. Quando pára num bebedouro público para lavar a cara ematar a sede, Paixão Leal conclui que a frescura e a transparênciada água importam mais do que as ideologias que fazem movercolunas de militares espanhóis ao longo da costa. Decide que asegurança da caverna tem mais relevância do que a luz da verdadeno final de uma investigação. Deseja existir apenas no seumicrocosmos, desempenhando as pequenas tarefas, ao seualcance, que permitem o «viver habitualmente» professado porSalazar. Quer provar que, ficando na segurança da caverna, Rebecae as crianças não irão ao fundo, num barco com os comandospartisans em fuga, quando a Marinha incendiar a noite com tiros deartilharia pesada.

Começou a sentir a desopressão ao sair do gabinete do chefe.Fosse ainda religioso, teria visto um presságio divino. Como acreditaque o Universo não julga, castiga, premeia ou sequer escuta asreflexões de um detetive num pequeno planeta de um sistema solarna periferia da Galáxia, sabe tratar-se apenas de um acaso. Àpassagem de uma carroça desgovernada, quantos homens nãoevitaram um atropelamento porque, antes de atravessar, apanharamuma moeda perdida no passeio? Abandonar a investigação das trêsmulheres assassinadas é a sua moeda na calçada antes de cruzar arua. Viu-se ainda mais desafogado quando recusou o convite paraum café em casa de Cardoso. Desde o dia do funeral da mulher docolega que lá não voltou, receando o desconforto do visitante nacasa de um viúvo, o chumbo da solidão em cada fotografia eartefacto da defunta. Teme que o desleixo de Cardoso tenhatransformado a casa num mausoléu em ruínas, com peúgasencardidas no chão e pilhas de loiça por lavar.

«Fica para depois», disse-lhe. «Hoje quero jantar com osmiúdos.» Talvez fosse cruel evocar a família diante de um homemque tem por única companhia um rafeiro de três pernas e umagarrafa de vinho. Mas Paixão Leal não quer mais morte, mais luto.

Não basta uma guerra? A orfandade de Mathilda, que ainda sonhacom o pai alemão?

Numa sarjeta, o detetive descarta o bilhete da irmã da Santa doCabo que guardara no bolso com intenções de comprar flores essamesma tarde. Em vez da redundância da morte num cemitério, optapor fazer compras na mercearia e vai buscar o novo olho de vidroencomendado na farmácia.

Chega a casa mais inteiro, sem a pala negra e com um olho falsoque se apresenta ao público com a confiança de um verdadeiro.Mas o ângulo morto continua lá, o lado lunar. Os gritos de alegriadas crianças puxam-no para a luz macerada do fim de tarde. Saipara o pátio e vê os pequenos corpos histéricos sob o jato de águada mangueira.

«Chegou o pai», anuncia Chris, que, desde o batizado, começoua tratá-lo assim. Aquele quintal é a vida que vale a pena. A águafresca. O perfume da figueira ao anoitecer. A família que espera achegada do pai. No conforto pobrezinho do meu lar, há fartura decarinho.

Chris salta-lhe para o colo, toca-lhe as pestanas do olho de vidrocom uma falange curiosa. Paixão Leal oferece-lhe a pala e Chriscorre para ir buscar a espada de madeira que a mãe lhe trouxe doteatro. O detetive tira a mangueira das mãos de Mathilda e aponta-lhe o jato de água fria. No seu ângulo morto está Rebeca, a colocarfita adesiva na janela, agora denunciada pelos gritinhos de Mathilda:

«Mãe, ajuda-me.»Há dias que ele prometeu vedar as janelas e cobrir todos os

pontos de fuga de luz, para a eventualidade de umbombardeamento aéreo. Corriam rumores de que, nas cidadeseuropeias em guerra, até a chama de um fósforo alertava osbombardeiros inimigos. Homens tinham sido linchados por acendero cachimbo à janela. Outra vez a morte e a guerra. A diligência deRebeca e a fita adesiva lembram-lhe o que acontece fora dacaverna. Ressentido por ser forçado a abandonar o estado degraça, tira-lhe o rolo das mãos.

«Faz antes o jantar, que eu trato disto.»Rebeca beija o marido e entra na cozinha. Mathilda e Chris

ajudam-no a colocar a fita nos vidros e a pregar os panos negros nointerior das janelas. Não fosse a informalidade da criança com umapala de pirata e do padrasto em tronco nu, casado com uma judialoira, talvez o quadro familiar pudesse ser usado pelo Secretariadode Propaganda Nacional. Há modéstia, respeito filial, o amorexpresso no dialeto da família, feito de trava-línguas e diminutivos,ataques de cócegas e «só comes o melão se acabares a sopa quetens no prato».

Depois de levantar a mesa do jantar com a ajuda das crianças,Rebeca sugere que verifiquem a eficácia dos panos negros nasjanelas. Fecha todas as portadas e apaga as luzes no resto da casa,até que, na cozinha, ouve-se o clique do interruptor e a família éobliterada pela escuridão. Rebeca identifica uma risca luminosa abordejar a janela. Luís ajeita o pano negro várias vezes, semconseguir evitar que o mundo lá fora se derrame para dentro dacaverna. Acende a lâmpada do teto e martela mais dois pregos nacortina.

«Vê lá agora», diz.Rebeca apaga a luz e Mathilda assusta o irmão. O miúdo ri-se

com o medo de quem ainda só conhece perigos imaginários.«Não devíamos fazer ao contrário?» No escuro, a dúvida de

Rebeca é tão intrusiva como o fio brilhante de luz que o detetiveacabou de tapar.

«Como assim?», diz ele.«Temos de acender tudo cá dentro e depois ir lá fora ver se a luz

passa para a rua.»Rebeca pressiona o interruptor e a lâmpada materializa Paixão

Leal, descamisado e de ferramenta em punho, pronto para demolir aalegoria de Platão com o seu martelo de pai de família.

«Assim está bem», diz ele. «Se a luz não entra, também não sai.»

Sábado, 24 de agostoDepois de ter acompanhado o cadáver de um presidente do

Conselho assassinado por terroristas, Gustavo Soares Pereira temagora a graça de participar na proteção de um presidente vivo. Olegionário e brigadista integra os Lanças que seguem Rolão Pretona procissão de agradecimento a Nossa Senhora, que é tambémuma manifestação de apoio ao novo Governo. A fim de aparecer noevento, no final da tarde, o caudilho fez uma pausa nos deveres deEstado e, de forma espontânea mas enfática, dirão os jornais do diaseguinte, juntou-se aos portugueses que encheram as ruas dacapital rezando a uma só voz. Horas antes, encontrou-se emaudiência oficial e foi fotografado com a irmã Lúcia, única pastorinhasobrevivente das aparições em Fátima, que viajou da Galiza, onde émonja doroteia e onde, em 1925, diz ter recebido nova visita daVirgem.

Os rumores começaram logo após o encontro no palacete de SãoBento, espalharam-se pelos milhares de pessoas que seguem aprocissão e se preparam para a apoteose de um comício político.Diz-se que a irmã Lúcia revelou os segredos de Fátima aopresidente do Conselho. Um desses segredos confirma a chegadade um salvador da pátria em caso de guerra. E agora o enviadoprovidencial está no meio do povo crente, dando apertos de mão,recebendo beijos e abraços, autografando jornais, incansável esempre disponível, executando aquilo que prometeu no discurso detomada de posse: «O império é a interpretação da vocação popularde um chefe. Supõe uma irmandade absoluta entre os anseios dopovo e a vontade decididamente iluminada do seu condutor. Umpovo só marcha nas vias imperiais quando o clima da sua exaltaçãorealiza milagres de uma fé sem limite, dando-lhe confiança em sipróprio e uma disposição heroica para todos os sacrifícios.»

Gustavo Pereira faz parte desse povo esfaimado pelos milagresdo líder, é mais um fio vibrante na malha passional que une RolãoPreto aos seus apóstolos. O legionário entrega-se à espiritualidadedas massas. O estado emocional coletivo assemelha-se a umahipnose, um salto de fé, eu sinto aquilo em que acredito e todas

estas pessoas sentem como eu, logo, aquilo em que acredito sópode ser verdade.

Pereira já esteve na presença de Salazar, em comíciosanticomunistas e na inauguração da Grande Exposição do MundoPortuguês. Partilhou a comoção dos portugueses agradecidos nocortejo fúnebre do professor de Coimbra. Mas nada se compara aoêxtase deste momento, na mesma praça onde, a partir da varandado edifício da Câmara, tantas vezes Salazar se dirigiu aos súbditosno seu tom de nave de igreja, articulando com clareza as exigênciasde um catedrático no primeiro dia de aulas dos caloiros.

Embora Salazar fosse filho de um feitor, nunca se mostrou àvontade no corpo-a-corpo com as turbas. Já Rolão Preto, herdeirode uma família de latifundiários, é mais arrebatador quando estáimerso na arraia-miúda. A religiosidade de Salazar, ex-seminarista,era circunspecta e decorosa. Rolão Preto, sem que alguma veztenha sido o paroquiano mais assíduo na missa, acena ao povocomo se tivesse recebido de Deus a boa-nova da vitória na Batalhade Ourique. Salazar era o avô respeitado, o pedagogo espartano.No Natal, não ofereceria meias novas aos netos, se os tivesse,antes a agulha e a linha para que remendassem as peúgas velhas.Já Rolão Preto é o tio regressado de uma aventura além-fronteiras,que traz notícias do futuro, bênçãos do passado e que põe toda afamília a dançar um novo género de música.

Rolão Preto abdica da varanda oficial sobre a Praça do Municípioe salta para cima de uma carrinha de caixa aberta. Os agentes daPVDE rodeiam o veículo. Os legionários formam um segundocordão de segurança. Pereira executa as funções com o desvelo deum capataz. Por fim, sente que cumpre os estatutos fundacionais daLegião Portuguesa: «Defender o património espiritual da Pátria ecombater a ameaça comunista e o anarquismo.» Pereira encaixa osacolejar do povo galvanizado, milhares de homens espremidoscomo numa batalha medieval, urros, palavras de ordem, o bafoululante do suor ao final do dia. Rostos anónimos que começam aparecer-se entre si, cada qual com as suas dores e anseios,desilusões e exigências, uns escanhoados por barbeiros, outros quenão veem água há dias, mas que aqui encontram uma identidade

comum, juntos são um coágulo negro e compacto que palpita nasveias da capital.

Mas nenhuma mulher, uma só. Uma mulher que consiga apreciara importância e o poder dos brigadistas da decência e doslegionários, que perceba que Pereira — membro de ambas asorganizações — é primus inter pares na imposição da «irmandadeabsoluta» almejada por Rolão Preto.

Pereira está atento a ameaças e disposto a saltar para a frente docano da pistola de um judeu comunista, a dar a vida pelo líder. Nocaso da sua morte, está certo de que haverá uma homenagem, opresidente do Conselho depositará a bandeira sobre o esquife, asraparigas guardarão o seu retrato como as mães fazem com asfotografias dos filhos perdidos para a guerra. Um artista seráconvidado a esculpir um busto do legionário, que o presidenteCarmona desvelará numa praça renomeada Gustavo SoaresPereira (Herói Nacional).

Em cima da carrinha, António Pedro, intelectual do IntegralismoLusitano e novo diretor do Secretariado de Propaganda Nacional,segura um megafone. Tem a seu cargo o número de abertura. É ocuspidor de fogo que atiça as labaredas para a aparição do grandelíder: «Ao dia de hoje, nós, portugueses, só temos duas escolhas.Ou o fascismo revolucionário ou o comunismo dos ditadoresvermelhos. Por isso, pergunto: queremos um regime de liberdadefictícia e incompetente, que forme a nossa ruína? Ou queremos umGoverno que se liberte dos estrangeirismos e das sociedadessecretas, das clientelas políticas gordurosas e dos bandos dacorrupção? Queremos ser súbditos do rei de Inglaterra? Queremosvergar-nos aos judeus charlatães da finança, esses abutresapátridas que montaram ninho nas mesas dos nossos cafés e que,aqui chegados, não querem fazer nada, quando o nosso povo semata a trabalhar? Queremos o deboche ou a moralização dapolítica? Só conheço um homem capaz de fazer todas as escolhascertas. Figura abençoada e guia da mocidade garbosa nesta duraconquista de uma sociedade nova. Nunca me esquecerei daprimeira vez que o ouvi falar. De repente, era como se os cegosvissem e os paralíticos andassem. Demos, pois, graças a este

redentor que nos devolveu a irmã Lúcia, o único capaz de incorporaros segredos proféticos que a Padroeira de Portugal reservou para anossa raça. Eis o líder que fundará a Terceira República.»

O aplauso é bendito por uma chuva de panfletos, lançados davaranda da sede do município, que espalham a verdade oficial entreos que não sabem ler mas têm fé de sobra. Os panfletos sãocochichos sem rosto, com uma linguagem acusatória e vulgar.Sujam-se de mão em mão, viajam no banco traseiro de um táxi, sãoapanhados da calçada por quem espera o elétrico e confirma que araça semita é a causa do seu próprio cansaço, após doze horas detrabalho numa fábrica. Os panfletos mostram como os judeus sãoresponsáveis pelo bloqueio inglês, pelos apagões noturnos, pelajuventude perdida para os hábitos estrangeiros da libertinagem e dacodícia, pelas modernices antinatureza e antifamília, pelo sexo efilhos fora do casamento.

«O que vem esta gentalha fazer para aqui?», pergunta o título dopanfleto que cai aos pés de Gustavo Soares Pereira. Nos costadosda carrinha, Rolão Preto grita ao megafone:

«Somos um povo que prospera com ordem nas ruas, ordem nosespíritos, ordem em casa. Sem ordem, o Estado não pode viver. Épreciso levantar intensamente as energias dos portugueses,despertando-lhes o amor pela terra e o culto dos seus heróis. Épreciso proteger a família, promover a unidade moral, reintegrar apátria no culto da sua tradição violada — o culto das virtudes físicase domésticas, o culto da honra pública e privada, o culto dasgrandes figuras da ordem e da lei.»

Um homem na primeira fila grita:«Qualquer dia, cagam-nos em cima.» O hálito putrefato chega ao

nariz de Pereira. Cirrose, alho e tabaco barato. «Gente que não égente», berra o homem. «Era metê-los num barco e mandá-los parao buraco de onde saíram.» O legionário empurra o homem, a fim demanter o grande líder a salvo das pestilências e das platitudes dopovaréu. Enche o peito e ajeita a franja. Sente-se no lugar certo, nahora agá, seguro da sua presteza e do seu valor.

As palavras de Rolão Preto exaltam, mas também aconchegam.Nutrem as ofensas e oferecem proteção. Reduzem situações

complexas à compreensão simples do povo. Como um laxante daalma comprado ao boticário que também é vidente, prometem umaação imediata e eficaz. Rolão Preto tem um bordão para abrir osdiscursos: «Vamos a isto!» É o tiro de partida que já foi usado comomanchete de jornais e que serve de título a uma peça de teatro derevista. Os discursos do presidente começam sempre com a críticaà paz podre, para depois oferecer a necessária purga. Alertam paraa judiaria sanguinária e a pandemia bolchevique. Recordam oUltimato Inglês, o Mapa Cor-de-Rosa, o descaso com os veteranosda Grande Guerra. Então, o presidente do Conselho lança-se nacelebração das forças da autoridade. Já aprovou a compra dearmamento e a subida dos salários de militares e polícias,contrariando a política salazarista de emagrecimento orçamental edas aposentadorias antecipadas no Exército. Usa o exemplo dos ex-combatentes para motivar os mais novos, diz que só a juventudeinconformista pode bater-se pela defesa da nação e por um idealsagrado: «O novo regime será eficaz se as responsabilidades dasnovas engrenagens forem entregues a gente nova. Gente que tenhaa peito o triunfo dos princípios e dos novos métodos que ainspiram.»

Para travar a decadência moral e a desordem pública, promete orestabelecimento da pena de morte e a criação, em todas ascidades, de milícias fascistas que defendam os portugueses doscrimes comunistas. Confirma a manutenção da censura prévia eassegura que o catolicismo será sempre a religião oficial do Estado.Estão proibidos os divórcios e as mulheres desacompanhadas narua após as oito da noite. Dá o exemplo do trabalho feito pelosamigos internacionais que enviam pão e prometem lealdade aosportugueses:

«Hitler teve uma longa batalha contra as duas únicas forças quetentaram sabotar o Terceiro Reich: os judeus capitalistas e omarxismo peçonhento. Mas Hitler triunfou. Os soviéticos acabarama suplicar-lhe a paz. Os franceses renderam-se incondicionalmente.E os ingleses…»

«Não esperam pela demora!», grita alguém na multidão. RolãoPreto sorri e escuta como se propagam as vaias aos ingleses. Os

palavrões dos homens puxam a cerimónia do discurso presidencialpara o corpo-a-corpo no chiqueiro. Estes machos não queremapenas o idealismo dos artigos de jornal, mas os gritos de guerraantes da investida. Julgam-se cavalos selvagens, galopandovirilidade, exigindo ajustes de contas com o mundo por causa dosseus fracassos individuais. Há que lancetar o tumor que osconstrange, destruir ou pegar fogo a tudo aquilo que os impede deser quem gostariam. Procuram um bode incriminatório para largarna navalha da vingança. Escuta-se o ribombar dos pés antes damarcha final, a tensão dos músculos que se apertam contra a roupa,o sopro azedo da maralha. O presidente do Conselho levanta osbraços e todos se calam como cães ao estalar de dedos do tratador.Uma pausa. Silêncio. Depois da indignação, o alívio cómico.

«Sobre os ingleses, já vocês disseram tudo.»O público ri em uníssono.Rolão Preto é um artista do palanque, versátil na sátira ou na

farsa, mas também na tragédia. Lembra os soldados portuguesesque se bateram e morreram ao lado dos nacionalistas espanhóis naGuerra Civil. Lembra o apoio de Salazar a Franco, não apenas empalavras, mas abastecendo os falangistas de munições, permitindoque o armamento italiano e alemão entrasse em Espanha a partir dePortugal, devolvendo ao outro lado da fronteira os republicanos emfuga, como alguns daqueles que foram fuzilados na praça de tourosapós a Batalha de Badajoz.

«Temos um dever de prosseguir com a missão dos que morrerampara que a península não seja hoje uma União Ibérica Soviética.»Os alemães, os italianos e os espanhóis já varreram as respetivascasas e, com Franco prestes a entrar na guerra, juntos varrerãotambém os inimigos externos. Rolão Preto diz que a independênciade Portugal e a manutenção das colónias está pendente dodesfecho do conflito. O país tem de estar ao lado dos vencedores.«Só as formas totalitárias conseguem apaixonar os povos.»

Uma voz na multidão inicia uma marcha sincopada de três sílabasque se agiganta num grito comum, a sanha do clã:

«Por-tu-gal, Por-tu-gal, Por-tu-gal.»Depois do clímax, o povo precisa de alguém que abrace o

garanhão, que lhe passe os dedos pela cabeça, que elogie o seuesforço.

«Não escolhemos o nosso destino, fomos escolhidos pelaProvidência! E vamos cumpri-lo. Ninguém duvide. Hoje, após o meuencontro com a irmã Lúcia, sinto e sei que a nossa missão estáprofundamente ligada a Fátima. É este, talvez, o nosso grandesegredo enquanto povo.»

E então o caudilho remata o discurso como sempre faz: «Isto irá,por Deus.» Essa será a manchete d’A Verdade, que publicará naprimeira página uma fotografia de Rolão Preto com a irmã Lúcia.

O ímpeto patriótico da praça encontra a sua voz apoteótica nohino. Todos unidos numa só corda vocal de tenor, braços direitos aoalto, o ribombar da artilharia coral quando se canta o último verso:«Contra os bretões, marchar, marchar.»

A poucos metros de Gustavo Pereira, dois homens discutem. Atéos irmãos de sangue por vezes se desentendem. O problema dasgrandes causas é a pequenez de uns quantos que as servem parase irem servindo a si mesmos.

«Gatuno», acusa a cabeça com chapéu de coco.«Não lhe admito», responde a cabeça com boina de carvoeiro.Pereira vê um doutor e um carteirista. A vítima e o bandido que

representa a contra-revolução, os deploráveis, o desrespeito pelapropriedade privada. Pega no Pau de Franco e tenta avançar para olarápio.

«Deixem passar a autoridade», grita, mas vai tarde. O doutor e ocarteirista engalfinham-se, abrindo um rombo na malha dairmandade. O coágulo negro explode e a pancadaria alastra-se emondas concêntricas. Os bastões dos legionários tentam impor a pazsocial. A turba em debandada atropela Pereira, empurra-o para oasfalto, pisa-lhe uma mão, golpeia-lhe a boca e um sobrolho.

Os agentes da PVDE tiram Rolão Preto de cima da carrinha e oslegionários trocam a ordem pública pela proteção do líder. Pereirajunta-se à comitiva, que avança como um torpedo para a PraçaMarechal Saldanha. Um carro oficial espera o presidente doConselho. Apesar da pressa dos agentes da PVDE, que queremafastá-lo do tumulto, Rolão Preto aperta a mão a todos os

legionários e agradece-lhes a escolta. Chegada a vez de GustavoSoares Pereira, o caudilho aprecia-lhe as feridas, dá-lhe umapalmadinha na bochecha, a um tempo gentil e marcial:

«Valente, meu filho. Isto irá, por Deus.»Antes de entrar para o lugar do pendura, um agente da PVDE

congratula Pereira:«Muito bem, puto, já perdeste os três.» O legionário regozija.

Posto à prova no ritual iniciático da violência, Pereira deu a cara àsescoriações.

«Agora só te falta perder os outros três», diz Severino,comediante dos Lanças, dando-lhe um piparote nos testículos.Pereira contrai-se e leva a mão à braguilha. Os outros riem, falamdas legionárias com quem combinaram um encontro no miradourode São Pedro de Alcântara. Pereira bate com um pé no chão parachocalhar a dor. Num movimento contínuo, balança a perna até quea biqueira da bota atinge os testículos de Severino.

«Isto irá, por Deus!», diz, sobre o corpo do colega que tomba dejoelhos. Os restantes legionários abrem a boca com o pasmo juvenilque faz do suplício dos outros uma comédia própria. Uivam,assobiam, escangalham-se de riso.

Pereira estende o braço a Severino, ajuda-o a levantar-se:«Então, vamos lá ver essas miúdas?»Mas as miúdas não aparecem. Os legionários esperam até ao

anoitecer, reconstruindo o filme do comício a partir do ponto de vistade cada um. Elevam uma escaramuça a batalha campal contra osagitadores comunistas. Só que a repetição contada do que foi vividoesgota-se. Para a juventude, sempre ávida de mais, o problema dasgrandes emoções é a forma como evidenciam o fastio do dia sim,dia sim. Os legionários esperavam que a chegada das miúdasprolongasse a odisseia do viver intensamente. Mas só Pereiraassume uma rejeição pessoal, como se a sua noiva imaginária,compilada de retratos nas revistas, se recusasse a ser de carne eosso justamente numa tarde de tamanha glória.

«Estás com fuça de que toda a gente te deve e ninguém te paga»,diz Severino quando se despedem no Jardim do Príncipe Real.«Queres ir às putas?»

Pereira não percebe se Severino fala a sério. Não se atreve a daruma resposta. Tanto um «não» como um «sim» podem ser motivode ridículo. Retira-se com a imagem de um bordel na cabeça. Nasformações de Civismo e Moral, nas Brigadas da Decência, segue asinstruções superiores e ensina aos seus pupilos que o onanismosubtrai a coragem aos homens, afundando-os numa indolênciadepressiva e feminina. Há algum tempo que não se masturba. Nãotem sexo há quase dois anos, quando, ao contrário do que pensaSeverino, deixou a casta dos virgens e, nas palavras do pai brioso,se fez um homem. Até hoje, não consegue recordar bem o queaconteceu nessa noite. Mas sabe que, conjugado o destemor doconhaque com o que se passou no quarto, aprendeu algo que nãoconsta nos manuais das Brigadas ou da Legião, algo que JaimeSoares Pereira resumiu no momento de escolher a prostituta para ofilho: «Há certas alturas, em certos lugares, em que podemos fazertudo.»

Entra em casa esgrouviado de vergonha e tesão. O nojo quesentiu após a noite no bordel — pelo pai, por si mesmo — nunca foicapaz de extinguir o assombro do sexo e de tamanha promessa:«Há certas alturas, em certos lugares, em que podemos fazer tudo.»Em Pereira concorrem as forças antagónicas da culpa e da volúpia.O legionário é mais uma vítima dessa maldição que o Deus daBíblia legou aos homens: nasce doente, inacabado pelo pecadooriginal, mas ordeno-te que sejas são e inteiro, sob pena do castigoeterno.

Pereira avança para o quarto como o paraplégico a quem osanjos mandaram atravessar uma corda bamba sobre umdesfiladeiro. Rezar ou masturbar-se? Eis a questão.

«Gustavo Maria», chama Margarida Soares Pereira, da sala dejantar.

Pereira odeia que a mãe o chame pelos dois nomes próprios.«Já vou.»«Não é já vou. É vou já.»Pereira odeia que a mãe recorra com frequência a esta frase.«É a terceira vez que não avisa que não vem jantar.»Ao deter-se na ombreira da porta, sem entrar na sala, Pereira

odeia a obsessão da mãe com a sua presença à mesa.«Se não chego a horas é porque tenho coisas mais importantes

para fazer.»Margarida olha para o marido.«Jaime, vai deixar que o seu filho fale assim comigo?»Pereira odeia que a mãe, sempre tão disponível a impor a suas

escolhas, se finja escandalizada e carente da intervenção do maridoquando o filho afirma que tem vontade própria.

«Não fales assim com a tua mãe», pede Jaime, sem pousar ostalheres ou abandonar o naco de carne no prato. «Ela está muitomelindrada. Convidaram-na a sair da direção da revista daMocidade Portuguesa.»

Pereira odeia a complacência do pai, o fio de gordura que lhemancha a barba quando come, a personalidade balofa eacomodada no poleiro de juiz, o clube exclusivo para cavalheiros, acaricatura caquética do fim de uma era. Expressando a universalimpaciência dos filhos para com a estupidez dos progenitores,Pereira suspira desprezo:

«Alguma deve ter feito.»Jaime é avesso ao conflito, mas a sua leveza não significa

ignorância. Além da experiência de um homem de quarenta e oitoanos, casado, pai que também é filho, pode recorrer à enciclopédiasobre a natureza humana que foi colecionando como juiz. Estuda aferocidade do rapaz de farda diante de si e pensa que Sófoclesdeveria ter contemplado a possibilidade de outro desfecho paraÉdipo. Ademais de matar o pai, certas figuras masculinas sentem-secompelidas a matar a mãe. Jaime condescende, sabendo que oódio é um efeito secundário da juventude iludida com a suaindefetibilidade e certa do demérito dos outros. Pouco saber emuitas certezas. Sinto, logo existo. Quem não está comigo, contramim está.

É cedo para que o filho deixe de acreditar nas mentiras queintrujam os apaixonados. Seria infrutífero explicar-lhe acomplexidade, os nós e os matizes das relações entre as pessoas, aimportância do compromisso e da compaixão. Contudo, Jaime

decide subir a cortina diante do que está escondido para queGustavo possa ver pelos próprios olhos:

«Uma afilhada do novo diretor do Secretariado de Propaganda vaisubstituir a tua mãe na revista.»

«É preciso sangue fresco. Já diz o Rolão Preto: tudo aos novos.»«E em breve talvez seja eu. O ministro anunciou uma reforma do

sistema judicial, vai haver aposentadorias antecipadas, juízesatirados para lá do sol-posto.»

«Quem não deve não teme. E um homem tem de ir onde lhemanda a missão.»

Jaime gostaria de perguntar ao filho se engoliu um dos panfletosde propaganda do líder. Mas ainda tem reservas de paciência paraarrumar os talheres, tirar o guardanapo do colo e convencerGustavo de que:

«Um homem também deve pensar pela própria cabeça.»«Não estamos num tempo para pensar e sim num tempo para

agir. Os grandes chefes que libertaram as suas nações das ruínasvestem todos a camisa de combate.»

Palavras que decorou nalgum artigo de revista ou que ouviu nocomício, pensa o pai. Quem nunca se enlevou com uma música,uma ideia ou um poema, ao ponto de os sentir como seus? Jaimeretira-se da zona minada da política, tenta outra abordagem. Talvezum desgosto de amor tenha inflamado o zelota que o filho interpreta.

«Senta-te, Gustavo, passa-se alguma coisa?»«Passa-se, claro, só os pais, aqui fechados na vossa bolha, a

comer iogurtes judeus e a beber uísque inglês, é que não veem.Estão preocupados com os vossos empregos quando o país está àbeira de cair na mão dos comunistas e dos ingleses.»

«Se o Salazar fosse vivo, nada disto acontecia», queixa-seMargarida, procurando restaurar um mundo que se esfarela.

«Mas não está, e quem é que o matou?»«Se o problema de Portugal fossem os judeus…», diz Jaime.

«Ponho uma família judia a viver cá em casa em troca de nãoentrarmos na guerra.»

«Cobarde», grita Gustavo. «O que é que o pai já fez pela pátria?»«E tu, o que fizeste?»

Gustavo aproxima-se da mesa, entrando no cone de luz quepende do lustre no teto. Em silêncio, de mandíbula trancada, exibe olábio inchado e o corte no sobrolho.

«Mais do que o pai em toda a sua vida.»Sim, Jaime é avesso a conflitos, mas todos os homens têm um

limite de tolerância à ofensa. Outro pai não hesitaria em enchê-lo depancada. No mínimo, o tradicional bofetão que atira as crias de voltapara o seu lugar. Jaime nem se levanta, tornando a justificação maispatética aos olhos de Gustavo.

«Sou funcionário público desde que me formei. Sou pai de famíliae tentei educar-te o melhor que pude. Sirvo a nação como juiz háquinze anos»

«Um juiz que vai às putas.»Tanto se fala do pedaço de coração arrancado ao pai quando

entrega a filha no altar, mas desconsidera-se o choque da primeiravez que, impondo o impiedoso ciclo da vida, o filho se dispõe aviolentar o pai como se lhe dissesse: Numa luta de rua, eu já possocontigo.

Margarida levanta-se e tenta esbofetear Gustavo, que lhe segurao pulso.

«Não tenho idade para isso, senhora minha mãe.» Larga-lhe obraço. «Se me dão licença.»

Margarida não se move até ouvir a porta do quarto a fechar.Prevendo um monólogo, um sermão e um inquérito, Jaime

impede a mulher de abrir a boca, usando duas palavrasindisputáveis num casamento como Deus manda:

«Agora não.» Serve-se de uísque inglês e liga o rádio na proibidaBBC. É um situacionista do sistema, diria o filho, as suas insolênciassão luxos burgueses.

Uma criada aparece na sala para recolher os pratos.«Posso servir a sobremesa?»«Hoje é o quê?», pergunta Margarida.«Iogurte dos judeus com mel e amoras.»«Também quero», diz Jaime, na impossibilidade de fazer mais

pelos judeus do que comprar iogurtes.No quarto, de porta trancada, afundado na cama e na ressaca das

grandes emoções, Pereira ainda não conseguiu decidir como iráencerrar o dia mais importante da sua vida.

Rezar ou masturbar-se?Talvez desta escolha dependa o futuro da pátria amada.

Segunda-feira, 26 de agostoTodos os jornais da manhã trazem na primeira página a notícia da

morte de Madalena Athaíde. Dizem que o peito da atriz tinha umacruz de David crivada com a ponta de uma faca. Na sala da brigada,o Focinho do Goebbels vocifera uma edição extra de A Voz daVerdade, na qual Fialho acusa os assassinos judeus de ter matadojá quatro mulheres em Lisboa e arredores. Discorre acerca dasequência dos crimes, sublinhando que todas as vítimas eramcatólicas. Uma dessas mulheres trocara o judaísmo pelo batismocristão, o que, garante o locutor, confirma o móbil punitivo dosjudeus que assassinaram Salazar e os fiéis na Igreja de SãoDomingos.

Quando Paixão Leal, em Alfama, sugeriu ao Dentista e aoToureiro a tese de um único homicida, acrescentando que os crimesseriam ritualísticos, ofereceu aos vigilantes, sem perceber, a históriaperfeita para a propaganda antissemita. Nas notícias dos jornais,embora se fale dos terços, das medalhinhas com Nossa Senhora edos mantos brancos, não há referência ao lugar onde o corpo deMadalena terá sido encontrado ou ao dia da sua morte.

Considerando aquilo que Joaquim contou a Luís sobre os irmãosAthaíde e a PVDE, bem como o facto de Madalena nãocorresponder ao perfil das vítimas anteriores — era loira e maisvelha —, o detetive está seguro de que não foi morta pelo mesmohomem. A diatribe de Fialho na rádio reforça a sua convicção: «Osjudeus vingam-se de nós porque os expulsámos há cinco séculos,tal como mataram o professor Salazar porque recusou que Angolafosse o Novo Israel. Não se infiltraram apenas na metrópole, ondese vingam das nossas mulheres, que os acham repelentes comoratos. Também andam nas matas angolanas. Graças a Deus, oexército alemão já se prestou a juntar-se às nossas tropas emÁfrica.»

Na sala da brigada, Cardoso desliga o telefone e pede a PaixãoLeal:

«Vem comigo.» Na varanda do primeiro andar, com vista para abateria antiaérea montada no Jardim do Torel, Cardoso diz terrecebido o telefonema de um camarada do Corpo Expedicionário

Português, agora sargento da GNR. «O Azambuja leu o jornal estamanhã e ligou-me porque sabe que estou nos homicídios. Disse-meque, em maio, a Guarda encontrou uma rapariga dentro de um poçovazio. Estava enrolada num lençol branco. Se nos despacharmos,ainda apanhamos o comboio.»

«Para onde?»«Fátima.»Regressam à sala da brigada para pegar nos chapéus e o

contínuo espera-os com o telefone em punho. No outro lado dalinha, Paixão Leal encontra um homem em aflição.

«O senhor agente disse que eu podia ligar caso precisasse dealguma coisa.» O alfaiate Abecassis está a par da campanha contraos judeus e, numa algaraviada de horror e descomedimento,prenuncia a repetição do massacre de 1506. Diz que não apareceuum cliente na loja em toda a manhã e que está um grupo delegionários a patrulhar o largo.

«Disseram-lhe alguma coisa?», pergunta o detetive.«Ainda não, mas o senhor podia dar um salto aqui à loja, falar

com eles, perguntar-lhes se estão aqui por causa dos judeus.»«Estou de saída para uma diligência. Passo aí mais tarde. Fique

descansado. Apesar de tudo, Portugal não é a Alemanha.»Os detetives abandonam a sede da Polícia e saltam para o

elevador do Lavra, já em andamento, quando o contínuo aparece acorrer no topo da colina, esbaforido:

«O telefone, a senhora sua esposa, pede para ligar.»Mas o detetive já não o ouve.

——•——O poço onde encontraram o corpo fica a pouco mais de um

quilómetro do Santuário de Fátima, na propriedade da famíliaLobato, junto das ruínas de uma pequena capela. Os olhos azuis dosargento Azambuja brilham a boa disposição inabalável dos homensque vêm à vida a passeio. Cardoso contou que Azambuja fora oúnico soldado que ele não vira tremer durante ou depois da guerra.Nem medo nem traumas. Se havia homens com condiçõesneurológicas bizarras como a supermemória, talvez o sargento

carecesse da parte do cérebro onde Paixão Leal guardava todos osmortos.

«Foi um pastor de cabras que a encontrou, no final de maio, porcausa do cheiro», diz Azambuja. «O corpo estava em muito mauestado, desfez-se todo quando o tentámos tirar do fundo do poço.»

O solo é uma extensão de torrões secos, granulosos, a escassavegetação sufoca com as temperaturas de ataque cardíaco, não háuma nuvem que estenda a misericórdia de uma sombra na rudezado território.

«Passa por aqui muita gente?», pergunta Cardoso, depois de umsilêncio de vozes que permite ouvir o zunido das moscas obesas euma cigarra solista no meio da erva.

«A dona Josefa deixa os romeiros acampar na propriedade. Malchega o treze de maio, montam-se por aí uma catrefada de tendas.Mas é mais lá para baixo, aqui não costuma ficar ninguém.»

«E a autópsia?»«Não se fez. Os pais da rapariga vieram da terra com o padre da

aldeia, queriam levar a filha. Também de que valia escarafuncharmais a moça naquele estado? Não se aproveitava nada. Não fuicapaz de dizer-lhes que não.»

O sargento Azambuja usa o chapéu da Guarda para manter asvarejeiras fluorescentes ao largo do pescoço empapado de poeira esuor. Talvez o azul nos olhos não seja leveza, mas vacuidade.Cardoso fala antes que Paixão Leal acuse o sargento deincompetência.

«Há alguma ligação deste lugar com a rapariga?»«Em tempos, ela trabalhou para a dona Josefa.»«Já não trabalhava?»«Mudou-se para Coimbra.»«E fazia o quê?»«As más-línguas dizem que estava por conta de um doutor.»«Só disseram isso, as más-línguas?»«E que o doutor a tinha conhecido quando ela estava no batente.»«É verdade?»«Não consegui confirmar.»«Falaste com o doutor?»

«Disse-me que a rapariga era apenas inquilina numa das suascasas.»

«Não lhe perguntaste se ele tinha estado em Fátimarecentemente?»

«Esteve, sim. Com a mulher e os filhos. Na peregrinação de maio.Um dia depois de ter falado com ele, recebi uma chamada dogovernador civil. Parece que são compadres. Deu-me a palavra dehonra que o doutor nada tinha a ver com a morte da inquilina econvidou-me para o baile de Natal. Mas também podia ter dito que,se quisesse, me mandava para o posto da ilha das Berlengas.»

«O que é que achaste desse doutor?», insiste Cardoso.«Lembras-te da cara dos magalas quando viam o primeiro

cadáver? O doutor não sabia que ela tinha morrido até que lhe dei anotícia.»

«Quero falar com esse doutor», diz Paixão Leal. «Não temnome?»

Cardoso confia na intuição do sargento, a mesma que o ajudou asair vivo da guerra. Pergunta:

«E a dona Josefa?»«Disse-me que a rapariga a visitou no dia doze de maio. Trouxe-

lhe uns biscoitos e ficou uma meia hora à conversa com as outrascriadas na cozinha.»

«Então vamos lá conhecer essa dona Josefa», remata Cardoso.No cume do outeiro, a casa branca e térrea, de telhas cobertas

por líquenes amarelos, é tão despojada por fora como abundantepor dentro. O cheiro dos móveis encerados e da lenha propiciamuma ilusão de segurança e penumbra, vigas de madeira no teto,colchas pesadas nas camas, ensopados a apurar no fogão dacozinha. Paixão Leal deduz que não vive um só homem nesta casa.Apesar das janelas abertas e da corrente do ar do campo, oexcesso de móveis, jarras com flores e cortinas rendadas bloqueia aluz. Um raio solitário cruza a sala e refrata-se nas contas de vidro deum candeeiro de mesa. Na divisão atafulhada de bibelôs etapeçarias, os detetives escutam a matriarca da família Lobato, comroupa preta e cabelo branco preso num carrapito, que serve chá

encomendado em Londres e defende as suas criadas contra juízose boatos:

«Sabem lá os senhores o que muitas destas raparigas jáamargaram. A Elvira não queria passar o resto da vida a servir, edepois, qual é o mal? Andava metida com um homem casado, éverdade, mas, se um não quer, dois não podem. Ela obrigou-o aalguma coisa? Talvez o contrário seja mais provável. Para muitasmulheres, a ajuda de um homem é onde mais alto podem chegar.Por isso é que eduquei a minha filha a não depender de ninguém.Já trata dos negócios da família como qualquer varão.»

Paixão Leal desinteressa-se da conversa. Sabe que Elviracorresponde, em aparência e idade, ao perfil das outras vítimas; quea rapariga nunca trabalhara como prostituta, mas ganhara famadisso mesmo, em Fátima, quando alguém revelou que era amantede um doutor em Coimbra; e que, tendo visitado a dona JosefaLobato a doze de maio, terá sido assassinada no dia seguinte.

«Importa-se que eu fale com as criadas?», pergunta o detetive.«Fátima, acompanha o senhor agente.»A filha de dona Josefa tem vinte e poucos anos. Usa calças, botas

de montar e avança pela casa com cabelo solto e pingalim na mão.Os corredores são um bricabraque de estatuetas e quadros,máscaras africanas e miniaturas de monumentos. Fátima percebe acuriosidade do detetive.

«Viajo com a minha mãe todos os anos e trazemos semprealguma recordação No inverno passado fomos a Angola. Temos lánegócios.»

Paixão Leal está obcecado com o altar a Nossa Senhora, asmesmas figuras elípticas e esguias que viu no presépio do padreRafael. Os mesmos olhos fechados em rostos andróginos. A VirgemMaria tem o esgar de um refém a quem mandaram sorrir para oretrato de prova de vida.

«Quem é que fez isto, menina Fátima?»«O bruxo.»«Quem?»«Um homem que trabalhou para a minha família, há muito tempo.

Agora é vidente e santeiro. Vem cá todos os anos na altura da

peregrinação, e todos os anos traz uma estátua nova para a minhamãe.»

«Como é que se chama?»«Para dizer a verdade, nem sei. Toda a gente lhe chama bruxo.

Nunca gostei da maneira como olha para mim, por isso não lhe douconfiança, mas as criadas dizem que é divertido e uma joia depessoa.»

«Sabe se a Elvira o conhecia?»«É possível.»Na cozinha, mais fresca e luminosa que o resto da casa, as

criadas não cessam as tarefas enquanto recordam a conversa comElvira a doze de maio, sem mencionar nada de assinalável. Masasseguram que, nalguma das visitas anuais, quando o bruxo lhesadivinhava o futuro sem cobrar um tostão, era provável que Elviraestivesse presente.

No regresso à sala, Paixão Leal confirma com dona Josefa o quejá ouviu na cozinha:

«É verdade, este ano ele não apareceu. Até estranhei. Vem todosos anos, religiosamente.»

O detetive consegue um nome para o bruxo. Fica a saber que temuma loja em Lisboa, onde fabrica santos e recebe clientes para, comos seus poderes mediúnicos e mezinhas mágicas, contactar osmortos, desmanchar maus-olhados e purificar o ventre de jovensque não quiseram esperar pelo casamento.

«O Rasputine de Fátima», graceja Cardoso, provocando em donaJosefa o mesmo sorriso insincero da estatueta da Virgem Maria quePaixão Leal pede para levar consigo.

No final da visita, os detetives e o guarda abrigam-se do soldebaixo de um sobreiro antes de seguir caminho.

«A velha está a esconder alguma coisa», diz Cardoso.«Pareceu-me mais assustada do que furtiva», diz Paixão Leal.

Vira-se para o Azambuja: «O sargento conhece este bruxo?»«Não é do meu tempo, estou aqui há coisa de três anos.»

Azambuja tira a Nossa Senhora da mão do detetive. «Mas sei quemo ensinou a fazer isto. Se sairmos agora, ainda o apanhamos comtino para dizer duas de seguida.»

Caveirinha recebe-os com a disposição de um aniversariante ameio da festa. Àquela hora, já bebeu o suficiente para sossegar ostremores da abstinência, mas não entrou ainda na fase dosmonólogos de língua entaramelada, ora agressivos oraautopiedosos, que lhe vedaram a entrada em todas as tascas daregião. Caveirinha bebe e vive sozinho num antigo estábulo quetambém serve de oficina. Uma cama junto de uma mesa decarpinteiro e um desarrumo de ferramentas. Um Sto. António poracabar na roda de oleiro. Por todo o lado, figuras de barro e madeiraque se parecem com as produzidas pelo bruxo, embora menosamarguradas ou magérrimas. Estes santos não têm o sorrisoangustiante e falta-lhes o nariz, à imagem do seu criador, que operdeu na Grande Guerra e o substituiu por uma prótese de madeiraatada por um cordão de couro.

Azambuja apresenta Cardoso como camarada do CorpoExpedicionário Português. O detetive aproveita a confiança entreveteranos para defraudar Caveirinha com as mentiras que levam àverdade. Também lhe trouxe um garrafão de tinto.

«Estamos a investigar um roubo de santos. Acabámos deapreender o material e aqui o sargento Azambuja disse-nos quetalvez nos pudesses ajudar a descobrir a quem pertence amercadoria.» Cardoso mostra-lhe a figura de Nossa Senhora quetrouxeram da casa de dona Josefa.

Caveirinha serve-se de vinho e anuncia o primeiro verso da suainadvertida confissão para os autos:

«Isso é obra do meu menino-prodígio.»

Na tarde em que começou a perder a pureza, Benjamim aprendeuo prazer da velocidade. Escapava-se dos irmãos Mesquita pelaplanície de pedregulhos e árvores raquíticas. Já lhe tinham atiradocalhaus e insultos, conhecia a humilhação de ser pobre e filho depai incógnito, mas não sabia aquilo que o pânico da captura podiafazer ao seu corpo. Corria como o coração de um bicho a galope, sósangue e músculos. Chegaria a casa antes que o pudessemapanhar.

Vivia sozinho com a mãe numa pequeníssima capela reconvertidaem duas divisões. Era o melhor aluno da quarta classe e imitavafoneticamente o latim do padre, escrevia cartas a Nossa Senhoracom letra de monge copista. Conhecia as histórias da Bíblia e falavasozinho. Vestia a mesma camisa branca todos os domingos paraque Deus o recebesse no seu arsenal de santos.

Durante a homilia dessa manhã, o padre Martinho descrevera aaniquilação de Jericó, relembrando os fiéis do dever do combatecontra os republicanos que queriam destruir a Santa Igreja. Lobato,patrão da mãe de Benjamim, fazia parte desse grupo dedegenerados e jacobinos. Tinha cavalos e vacas, charretes e carrosde bois, era proprietário de muitas terras aquém e além-mar. Nãocontribuíra com um tostão para o restauro da igreja. Exibia aempáfia daqueles que ridicularizaram Cristo na cruz e foraresponsável pela prisão do anterior padre da aldeia, acusado deconspirar contra a República.

O mundo estava pejado de almas enfermas, alertara o padreMartinho durante a missa. O caos do Homem era o contentamentodo Diabo. E por isso a Grande Guerra na Europa, o monstro bélicoalemão, a fome no país, sacerdotes encarcerados, os governantesde Lisboa que obrigavam a Igreja a pagar impostos sobre asesmolas.

Influenciado pelas advertências do padre Martinho, Benjamim nãoqueria pertencer ao gangue dos pecadores. Mas a mãe servia nasterras do Lobato e, tal como ela, o filho era, por direito, propriedadedo patrão. Antes e depois da escola, o miúdo tinha de escovar oscavalos, dar de comer aos porcos, levar e trazer as cabras para opasto.

Na tarde em que começou a perder a pureza, Benjamim deixoupara trás dois irmãos Mesquita, que desistiram da caça, e viucrescer a distância para Apolinário, o mais velho. Com cada metroganho, Benjamim confundia a resposta do seu corpo com a vitóriados justos. Deus estava do seu lado, movendo-lhe as pernas,imenso em cada golfada de ar. Devia ser aquilo que as pessoassentiam ao meter uma hóstia na boca depois de o padre dizer«Corpo de Cristo».

Apolinário sempre fora o mais cruel dos Mesquita. Tinha trezeanos e um buço manchado de vinho. Pedia aos irmãos que lhedessem socos na barriga e não recuava um passo. Elesarregalavam as monocelhas com a façanha, mais estúpidos do queuma mosca a marrar na janela.

Porque Benjamim não tinha respostas para todos os mistérios dafé — como é que Pai, Filho e Espírito Santo eram a mesma pessoa?—, encontrava conforto na simplicidade da divisão entre o Bem e oMal. Uns estavam destinados ao Céu, outros ao Inferno. SeBenjamim era a luz, os irmãos Mesquita tinham de ser as trevas.Essa pretensão instigava o ódio de Apolinário: como é que o filho deuma camponesa, que só calçava sapatos ao domingo, podia usaraquela camisa branca, com sarro na gola, julgando ter nas costas asasas de um arcanjo? Como é que aquele miúdo esquelético, comgrandes olhos azuis na cara encovada de menina e com umacabeleira loira de caracóis, respondia com Pais-Nossos quando osMesquita lhe chamavam porco, beato e filho da puta? Como é queum caguinchas, que se recusava a responder às pedras e aoscalduços, podia achar-se o preferido de Deus?

Entraram na mancha obscura do pinhal. Vento nos galhos e asasde pássaros. Uma lebre disparou entre os arbustos. De tãocristalina, a respiração de Benjamim refletia-se no silêncio. Eleabrandou, o milagre do corpo cedia ao cansaço. Só pele e osso. Ospés gretados. Uma pontada no tórax. Dor de burro. Olhou para tráse não viu ninguém. Estava sozinho na vitória como na derrota.Arrancou um molho de azedas da terra, chupou-lhes os caules paraenganar a sede e a fome. Saiu para a clareira onde havia um poço.Estava a poucos metros da casa que já fora capela. Ia entrar

quando, do outro lado da porta, ouviu um grito com preguiça de serum grito. Era algo molhado, uma cadência, um animal que ele nãoconhecia.

Apolinário apanhou-o pelas costas e ceifou-lhe as pernas.Caíram, rasparam os braços na terra. Benjamim ficou de barrigapara baixo e Apolinário montou-o, apertou-lhe os joelhos contra osflancos, segurou-lhe as orelhas.

«Onde é que ias?»«Ave-Maria, cheia de graça…»«Cala-te, caralho.» Apolinário pegou num torrão de terra e

afundou-o na boca de Benjamim. Cobriu-lhe o nariz. Os pulmõessoluçaram. Olhos de um afogado. O miúdo macilento e esquecido.

Voltou a ouvir-se um uivo na casa. Um grito com pressa. E depoisoutro e outro, uma ladainha de guinchos. Os rapazes olharam paraa porta. Benjamim cuspiu terra e saliva. Levantaram-se sem sacudira roupa ou as mãos, apenas concentrados na origem do som.Entraram a medo na divisão que cheirava a lenha e a mosto.Apolinário nunca ali estivera. Não sendo ignorante quanto à miséria,sentiu algo como pena ou desilusão. Nenhum tapete ou quadro.Duas cadeiras, um fogão que servia para aquecer e cozinhar. Umamesa lascada, que já estivera na casa dos Lobato, mas que afamília, sem uso para trastes, oferecera à mãe de Benjamim e sobrea qual estava um prato sujo e uma garrafa de vinho.

Dirigiram-se para o quarto, onde todas as noites o filho dormiacom a mãe num colchão de palha. O baque de algo a cair. Talvezuma luta. Benjamim empurrou a porta e espreitou pela frincha.Levantou os olhos paras as costas peludas de um homem depescoço largo, a nuca morena do sol. Os braços eram lívidos, umagordura leitosa que ondulava sobre os músculos. E um chapéu nacabeça, as calças pelos joelhos. O corpo desse homem investiacontra a mãe de Benjamim. Alice estava de gatas, nua da cinturapara baixo. O filho não conseguia decifrar o intuito daquelaviolência. Ocorreu-lhe a imagem dos cães que uma mulher da aldeiatentara desprender com um balde de água. O rosto do miúdo era acarne viva das emoções — horror, confusão e repulsa.

Apolinário deu um passo à frente e empurrou a porta. Madeira e

dobradiças. Um pouco mais de luz. Lobato virou-se para trás,revelando a cara cintilante de suor, arfando os vapores do sexo, dotabaco e do vinho. Alice cobriu-se com um cobertor, apertou o tecidoentre as pernas. Benjamim sentiu uma náusea. O precipício dochoro. Havia sangue nas coxas de Alice. Mas também nos dedos eno pénis do homem.

«Mãe», disse o filho, que não sabia nada do sistema reprodutordas mulheres ou da devassidão dos adultos. Desconhecia que osexo tinha cheiro, que era sujo e primitivo.

«Já daqui para fora», gritou Lobato, avançando para Benjamimcom os pés algemados pelas calças. Os rapazes fugiram e ouviu-seo estampido da porta do quarto. Dois miúdos a atravessar o mato.Apolinário tinha uma casa aonde regressar. Benjamim ficou perdidona noite. E quando, de madrugada, voltou a entrar no quarto, viuque a mãe dormia enrolada num cobertor com manchas de sangue.Sustendo o fôlego para que ela não acordasse, deitou-se debaixoda cama e rezou o terço sem abrir a boca.

Benjamim ficou a saber que teria um irmão no mesmo dia em queviu o seu primeiro funeral. De manhã, a mãe cingiu a barriga com asmãos calejadas e disse: «Vai ser um rapaz.» À tarde, Benjamim viua família Lobato no cemitério, diante de um caixão sem corpo. Apósuma explosão de dinamite na construção de um túnel, os pedaçosde Paulo tinham desaparecido na lama de uma cratera na Flandres.O primogénito dos Lobato não morrera em combate ou sequerintegrava a equipa de explosivos. Era apenas o soldado distraído,aquele que passava por ali, «a prova de que a estupidez matavatanto como as bombas», pensara o pai, ao receber a notícia numtelegrama que lhe parecera um reclame do amadorismo do CorpoExpedicionário Português.

Benjamim regressou a casa atormentado pela ideia de que Paulose desintegrara, não deixando sequer uma madeixa de cabelo.Disse à mãe: «Não quero ir à guerra». Alice nunca fora de abraços.O afeto era como usar talheres de prata quando não havia nadapara comer. A maternidade era o determinismo de parir, amamentare impedir que o filho morresse. «Não digas disparates. Vai mas ébuscar lenha para o fogo», disse ela.

Alice mostrava-se, por vezes, protetora. Obrigava-o a usar umbarrete de lã e um xaile grosso, receando pneumonias. Nunca lhedera sopas de cavalo cansado, porque sabia como o vinhodesvirtuava e apodrecia os homens. Mas, descontando o polegarcom cuspo que limpava os cantos da boca do filho ou os banhosmensais num alguidar de barro, o toque físico estava reservado àsrepreensões. O amor de Alice era possessivo e controlador. Nãomorras, não chegues depois de anoitecer, não me desobedeças,porque és a única pessoa que ainda precisa de mim.

Benjamim sentiu que algo os apartava quando a mãe decretou:«Vai ser um rapaz.» O patrão aparecia com mais frequência. Pintouas paredes da casa, levou Alice a Coimbra, onde visitaram ummédico e compraram tecido para que ela costurasse as roupas dobebé. Também chegava com comida. Nessas ocasiões, o casal nãose fechava no quarto nem decretava que Benjamim tinha de ficar narua. Lobato chamava-o para a mesa, testava o rapaz, «Queres serum homem ou um rato?», e servia-lhe papas de sarrabulho oucabidela de galinha.

Se Lobato o colocava na sela do cavalo ou lhe entregava omachado para rachar lenha, o miúdo confundia-se com a mecânicadas tarefas. Não tinha ambição ou controlo. Lobato mostrou-lhecomo se matava um coelho de capoeira, agarrando o bicho pelaspatas, de cabeça para baixo, e desferindo-lhe um golpe na nuca. Opescoço quebrou-se como um galho. O esqueleto bambo napelagem macia. Benjamim começou a chorar, não tanto pela mortedo animal, mas porque a irritação de Lobato, a cada desafio falhado,relembrava a brutalidade com que o patrão investira sobre a mãeensanguentada. Certos homens envergavam o poder no fino corteda sobrecasaca e na aba da cartola. Lobato fincava-o com asesporas.

Benjamim deixou de exibir os seus talentos religiosos. E aquiloque o fizera especial — ver a mão de Deus no vento que afagava ascopas das árvores ou citar os evangelhos — era agora anátema.Alice pediu-lhe para não rezar antes das refeições quando Lobatoos visitava. Eliminou-lhe os caracóis, cortando-lhe o cabelo àescovinha. O patrão queria-o com um penteado à homem. Na

escola, a cabeça mal rapada valeu-lhe o cognome de Piolhoso.Sempre que podia, Benjamim infiltrava-se na igreja. Procurava opadre Martinho, que o preparava para a primeira comunhão. Osacerdote deu-lhe a provar hóstias não sacramentadas e ofereceu-lhe uma Bíblia. Na penumbra, rezavam o terço de joelhos, veladospela Nossa Senhora no vitral acima do altar.

«O que quer dizer concebido sem pecado?», perguntouBenjamim, ao saber que o arcanjo visitara Maria, informando-a deque seria a mãe do filho de Deus.

«Que Jesus é filho do Espírito Santo», respondeu Martinho.«O meu irmão também é filho do Espírito Santo?»O padre visitou Alice e apanhou-a junto ao poço, tirou-lhe a corda

com o balde das mãos. Era alto e jovem e fora capelão no Exército.Mais pretoriano de César do que discípulo de profeta na Palestina.Tinha as unhas limpas, a batina tão lustrosa como o couro dossapatos. Puxou o balde e disse:

«Não convém que faça esforços.» O sorriso anunciava cortesia,os olhos apanhavam o delito da gravidez.

Entraram em casa. Em cima da mesa estavam duas agulhas detricô, um novelo de lã e umas meias minúsculas, por terminar. Opadre tocou-lhes com a ponta do indicador e pegou no tabaco queLobato ali deixara.

«Quem é o pai?» Não pediu autorização para enrolar um cigarro.Lambeu a mortalha como quem sela um destino. Foi acendê-lo nofogo e sentou-se com as pernas descruzadas, as palmas nosjoelhos. Toda a solenidade litúrgica de um marinheiro na cantina doquartel.

Alice cobriu o cabelo com um lenço preto. Ficou de pé, atrás deuma cadeira. Os dedos sem aliança.

«O pai?», repetiu Martinho. Na pergunta do padre, ela percebeutodo o desdém das mulheres da aldeia — e toda a luxúria doshomens — que lhe chamavam a puta do Lobato. «Uma mulhersozinha, sem marido, já com um filho, e agora isto.» Martinhosacudiu a mão como se a gravidez fosse bruxaria. «Se o pai é quemjulgo, imagino que ele não queira a criança batizada. Sabe o queacontece aos bebés que morrem sem ser batizados?»

Alice aprendera a calar-se diante dos homens. Responder já lhevalera olhos negros e injúrias acerca da sua ignorância. O silêncioera a forma mais segura de subjugação. Bateu as pestanas umavez, esperando que, quando voltasse a abrir os olhos, o padretivesse desaparecido. Tal como acontecera na infância, quando opai se embebedava, o truque não resultou. Martinho continuava ali.Tão invencível como o homem que lera todos os livros escritos porDeus. O fumo subia da ponta do cigarro. Uma rajada de vento fezbater as janelas nos caixilhos.

«Ficam presos no limbo. Nem Céu, nem Inferno», ameaçouMartinho.

Alice imaginou um recém-nascido a afundar-se num lagopantanoso, a eterna sensação de afogamento.

Depois do temor, o padre tentou a vergonha.«Um homem casado, Alice?» Bateu a cinza para o chão. Tirou o

tabaco que lhe ficara na ponta da língua com a pinça do polegar edo indicador. «O que vão dizer na aldeia? E a esposa dele?»

Alice sentia a culpa de todas as coisas passadas. A fuga de casados pais. O primeiro homem que a engravidara. A aliança queLobato não tirava quando iam para a cama.

«Só Deus pode salvar esse bastardo que traz na barriga», disse opadre. «Mas estou disposto a ajudar o Benjamim. O rapaz deviacontinuar os estudos. Lê melhor do que um adulto. Sabe de cortodos os reis de Portugal. Tem um dom para as palavras. Foi tocadopor Deus. Talvez eu possa ajudá-lo quanto a esse chamamento,arranjar-lhe uma vaga no seminário. Era um peso que lhe tirava decima, Alice, afinal, vai ter mais uma boca para alimentar não tarda.»

Porque Paulo morrera na guerra, Alice julgava que Lobato nãodeixaria a mãe do seu novo varão morrer à fome. Mas o queaconteceria a Benjamim, demasiado débil para o trabalho no campo,um miúdo em cuja inteligência só a mãe e o padre pareciamacreditar?

Martinho levantou-se e largou o cigarro no chão. Pisou-o com amesma displicência com que Lobato despia as calças ou estalava alíngua para que Alice fosse sentar-se no seu colo.

«Ninguém na aldeia precisa de saber aquilo que se passa nesta

casa. Só tem de confessar-se comigo.»Em 1915, a igreja fora restaurada e, de uma só vez, duzentas

crianças tinham recebido ali a primeira comunhão. Durante asobras, abrira-se uma janela em abóbada, com o vitral de um artistade Santiago de Compostela. Todos os dias a luz solar dava vida àVirgem Maria com o menino ao colo, reforçando o misticismoominoso das velas, do eco dos passos e das missas em latim. Ovitral era a Capela Sistina do anterior padre. E o orgulho dosparoquianos que, tendo contribuído com dinheiro, podiamapresentar o certificado de favorecimento divino na hora de rezarpelas colheitas e pelo perdão. Dois anos depois, uma pedraarrancou a cabeça de Nossa Senhora no vitral e o menino Jesusolhava para um buraco onde aparecia o céu a prometer chuva.

Como se limpasse a arma da vingança, o padre Martinho varria oscacos na manhã após o atentado à Nossa Senhora no vitral.Guardou a vassoura, e começou a chover. Os primeiros pingosatravessaram o buraco na janela, despenhando-se no manto develudo sobre o altar, nas chagas de Cristo e na nuca do padre.Martinho despejou os últimos cacos no balde e carregou-o para arua.

No resto do dia e durante toda a noite, o vento assobiou nosrecortes do vitral. O padre insone saltou da cama antes do nascerdo Sol. Se Lobato era o atirador da pedra que desfigurara a Virgem,Martinho seria a eficiência ancestral da delação. Começou aescrever uma carta: «Ex.ma senhora dona Josefa Reis Lobato…»

Josefa aproveitou o facto de o marido ter saído a cavalo emandou aparelhar a charrete. Tomou as rédeas nas luvas pretas. Dochapéu aos botins, toda ela era roupa negra. Apurara o estoicismoao longo de duas décadas de casamento com Lobato. Tiveragémeos aos vinte e cinco anos: Paulo e Rita. Cedo, o maridoenviara o rapaz para o Colégio Militar. E agora Paulo não era maisdo que o oco de um caixão.

Ao saber que o irmão fora destacado para a guerra, Ritaembarcara numa tendência popular iniciada quando a filha docônsul brasileiro, no Porto, se escapara de casa, tendo à sua esperaum padre que a levaria para um convento, contra a vontade da

família. De Norte a Sul, repetiam-se os relatos acerca de raparigasque, usando a cumplicidade dos sacerdotes, se ofereciam comomonjas sacrificiais no enfrentamento entre a cristandade e olaicismo, optando por uma existência de clausura, rezando paraproteger Deus dos republicanos que queriam matá-Lo no espíritodos homens.

Josefa nunca chorava diante de Lobato. Não o fez depois da fugade Rita ou no funeral de Paulo. Logo após a primeira e únicagravidez, decretara que dormiriam em quartos separados. Ela tinhao dinheiro e as terras. Ele, o apelido de família, a inicial quemarcava o gado. Vinte anos de coexistência e, com um filho morto euma filha a treinar para serva, a frase «até que a morte nos separe»parecia a Josefa uma data demasiado longínqua. Dera-se conta deque havia palavras para designar quem perdera a mãe ou o pai, omarido ou a mulher. Desde sempre houvera órfãos e viúvos. Masque chamar a uma mãe que perdera um filho? Foi esse vaziolinguístico — esse vazio no caixão — que ela quis resolver quandopegou na charrete e atravessou a planície saturada pela luz brancade maio.

Alice ouviu os cascos e a madeira das rodas. Abriu a porta epensou: Esta é a minha patroa, a mulher do pai do meu filho. Nemmesmo quando visitava a aldeia, Alice sentira de forma tãoperentória a sua condição: a outra. Embora acreditasse que agravidez era a sua escapatória, um filho ilegítimo nada podia contraa ordem natural de quem mandava e de quem obedecia. Alice fezuma vénia. Fora condicionada a servir desde sempre. Se soubesseda visita, teria a casa mais limpa e arrumada. A pobreza podia seruma sina, mas o asseio era uma escolha, a nobreza que lherestava.

«Os meus pêsames, senhora», disse a mulher grávida à mãe queperdera um filho.

Josefa manteve o chapéu na cabeça, como o marido quando alientrava. O seu luto era cerimonioso, sem expressões públicas dedesespero. «Uma mulher prevenida tem a dureza de dois homens»,costumava dizer. Passou revista às duas divisões e deteve-se juntoao berço que Lobato comprara. Tirou as luvas pretas.

«O meu marido quer um herdeiro, não quer um filho.»Josefa lia Victor Hugo e tinha conta numa chapelaria de Lisboa.

Alice era analfabeta, nunca estivera na capital e conversava com asvacas. Josefa exigia um desígnio para o tempo que ainda teria depassar entre os vivos. Alice, grávida e mãe solteira, procurava osustento da família.

Eram mulheres presas ao mesmo homem.Disputavam um herdeiro que queriam como filho.Josefa encostou uma mão sem luva à barriga de Alice:«Posso ajudar e proteger esta criança. Garantir que nunca lhe

faltará nada.»Os dedos ásperos de Alice pousaram sobre a mão delicada da

patroa:«Minha senhora, qualquer mãe só quer o melhor para os filhos.»Ao saber que o padre Martinho visitara Alice e que a rapariga se

tinha confessado de joelhos a troco de um filho a estudar noseminário, Lobato partira o vitral da igreja. Mas, depois que Josefalhe mostrara a carta que recebera do sacerdote, seria preciso maisdo que uma pedra. Lobato cavalgava com uma espingarda presa nasela. Não tinha contas a ajustar com Deus, mas com os burocratasque diziam representá-Lo na Terra e que lhe tinham sequestrado afilha num convento. Sem uma ideologia ou uma religião, a suacausa era pessoal: o desejo de ter o Universo submetido aos seusimpulsos. Se tinha fome, comia. Se tinha tesão, fodia. Se alguém sepunha no caminho das suas vontades, chicoteava o cavalo, batianos criados e vandalizava igrejas. Deus não era hinos, hossanas ealeluias, Cristos loiros com túnicas de linho multiplicando pães ecompaixão. Deus não era os padres tão ignorantes como as almasdos desgraçados a quem extorquiam esmolas, ou os bispos luzidiosde banhas e joias, que ameaçavam a Humanidade com o pecadomortal do sexo mas engravidavam freiras e paroquianas. Deus nãoera batinas, cabeções, chapéus cardinalícios e cetros dourados.Deus, a existir, estava nas rédeas com que ele comandava o cavaloe nas mandíbulas da raposa que abocanhava o rato. Nos homensque iam ganhar a guerra e nos terramotos, nas epidemias, em tudoo que fosse a vitória de uma coisa sobre outra.

Lobato viu a aldeia emergir nas ondas de calor que embaciavam acolina. A torre da igreja erguia-se como um obelisco da Cristandadesobre os telhados velhos que, em dias de chuva, deixavam cair ospingos no interior das casas alumiadas por velas. «Miséria», diziaLobato, «é sair da cama a meio da noite e ter de mijar na rua.»

O sino tocou e um bando de andorinhas riscou o céu. A luzincandescente implodira as nuvens da manhã. O sol do meio-diacegava os animais, esmagava a paisagem. Lobato tinha o chapéuinclinado, a sombra da aba escondia-lhe os olhos. O cigarro pendiados lábios. Deus não era clemente nem interessado. Apenas oespectador da sua própria obra. Limitava-se a assistir ao perpétuoembate, aquilo que fazia a vida prosperar de acordo com a única leique legara ao mundo: ganha o mais forte.

Três metros acima do chão, o padre pendurou o balde, com aargamassa e a espátula, no topo do escadote. Aproximou o vidro doburaco, certificando-se de que tinha o tamanho certo. Até angariardinheiro para o restauro do vitral, aquele remendo teria de servir. Odegrau rangeu quando Martinho olhou para baixo e se deu conta daperspetiva que tinha sobre Cristo na cruz. Só Deus contemplara aagonia do filho a partir de uma posição cimeira.

No seminário, Martinho sempre fora desenrascado, manipulador ebom de punhos. Durante a recruta no Exército, do qual fora capelão,recebera louvores pela pontaria e pelo portento físico. Mas após oreconhecimento, e porque Deus tinha motivações que os homensnão podiam entender, estava desterrado numa paróquia sem um sócarro ou um teatro. O aborrecimento rural apenas tinha a atenuantedo caráter sagrado que os fiéis atribuíam ao padre. Deixando que osnativos o confundissem com Deus, Martinho era o náufrago queesperava o resgate da civilização.

O padre ouviu o estalar dos cascos na pedra da igreja. Olhousobre o ombro e viu Lobato montado no cavalo, o desprezo com quemantinha o chapéu na casa do Senhor, a espingarda na sela. Ocavalo avançou pela nave central, convocando memórias depilhagens e genocídios tribais. As patas do animal irradiavam poeiraa cada passo. Nacos de lama seca soltaram-se das botas deLobato, que, ao desmontar o cavalo, prendeu as rédeas na base do

escadote. Sentou-se no altar. Acendeu o cigarro apagado que traziana boca. «Fumas o meu tabaco, vais a casa da minha amante,escreves cartas à minha mulher.»

O padre fez tenção de descer um degrau. Lobato tocou com abota no quadril do cavalo, que recuou, deixando tensas as rédeasna base do escadote. «Na última vez que estive em Lisboa, tivenotícias do padreco que esteve aqui antes de chegares. Parece quenão aguentou a prisão. Que Deus o tenha.» Benzeu-se com o dedodo meio. «Também já era um homem de muita idade.»

Lobato deu outra patada no cavalo. Martinho vacilou no degrau elargou o vidro, agarrando-se ao escadote. Os cacos espalharam-sepelas lajes de pedra. O estrondo assustou o cavalo, que ergueu aspatas dianteiras. As rédeas ceifaram o escadote e o padre caiu,fazendo ricochete no altar. O balde rasou-lhe a cabeça, vertendo aargamassa e a espátula para o chão.

Nas camaratas do seminário e do quartel, quando a sua manhanão era suficiente para desarmar o acosso, Martinho tivera sempreo recurso da violência. Mas agora não conseguia sequer respirar,como se lhe tivessem estripado, num só movimento, o estômago eos pulmões.

Lobato desamarrou as rédeas do escadote e levou o cavalo parao corredor, prendeu-o no banco da primeira fila. Sacou aespingarda, segurando-a de forma a usar a coronha em vez docano. O padre conseguiu sentar-se, as costas apoiadas no altar, amão direita segurando a espátula que escondera debaixo da coxa.

«Estás com medo de mim?», perguntou Martinho ao ver aespingarda, sorrindo dentes pintalgados de sangue, já não o cânonemoral da paróquia, mas o rapaz que, no seminário, aguentava comonenhum outro os tratamentos físicos dos professores e dos alunosmais velhos. «Vais fumar esse cigarro sozinho?»

Lobato tirou o chapéu, limpou o suor da testa na manga dacamisa e desfez-se do cigarro. A beata despenhou-se na batina dopadre.

Martinho levantou a mão.«Precisas de uma arma para dar cabo de um cura de aldeia?»Lobato sentiu o ressurgimento da afronta que o fizera sair de

casa.«Diz lá as tuas orações, a ver se te serve de alguma coisa.»

Pousou a espingarda em cima do altar e tirou o cinto.«Também é com chicote que vais educar o teu filho bastardo?»,

provocou o padre.A primeira vergastada atingiu o pescoço de Martinho. E depois

uma rajada de golpes, que deixou Lobato sem fôlego. Agarrou opadre pelos cabelos da nuca e acercou-se para lhe cuspir na cara.Puxou o muco das fossas nasais. Antes que pudesse abrir a boca, opadre cravou-lhe a espátula no osso abaixo do olho, rompeu-lhe abochecha e, em seguida, atingiu-lhe a têmpora com o cabo. Lobatoperdeu o equilíbrio, braços e pernas esticados, só branco nos olhose um apagão no cérebro.

Sem fôlego, de joelhos nas lajes do chão, Martinho tentoulevantar-se. Desdobrou o tronco e uma tontura inclinou a igreja. Aespingarda ali tão perto. Pegou-lhe e deu um passo atrás. Aspupilas voltaram a aparecer entre as pálpebras de Lobato. Durantealguns segundos, não percebeu porque tinha uma espingardaapontada à cabeça. Tudo lhe pareceu bizarro: um padre com umaarma, um cavalo dentro da igreja, o sangue que lhe pingava da carapara a roupa.

«Levanta-te.» A voz de Martinho reverberou na pedra. A ponta daespingarda indicou que a porta da rua era a serventia do templo.Lobato cambaleou até ao cavalo e puxou-o pelas rédeas.Aproximava-se a hora da missa de domingo. Havia gente na rua,testemunhas boquiabertas daquela procissão. O poder divinocontra-atacava. O senhor das terras domado pelo padre.

Lobato deixara o cinto na igreja e teve de segurar as calças, via-se-lhe o rabo e as ceroulas. Ouviu as primeiras risadas e subiu paraa sela, saindo da aldeia a galope. O padre informou os presentes deque não haveria missa. Deus até podia ter restabelecido a suasoberania naquela aldeia. Mas, conhecendo Lobato, Martinho achoupor bem trancar as portas e manter a carabina junto a si. Fechou-sena sacristia e começou a escrever o pedido de transferência paraoutra paróquia.

Benjamim deixou as cabras sozinhas e, vestido com a camisa

branca, encaminhou-se para a aldeia com a Bíblia oferecida pelopadre. Estava prestes a fazer a primeira comunhão. Martinho era aúnica pessoa que não desacreditava as conversas que o miúdojurava manter com Jesus e Nossa Senhora. O padre dava-lheatenção, prometia-lhe uma vida de sacerdócio, dizia que ele erauma criança ungida pela graça do Espírito Santo e, na sacristiaonde se encontravam para o mano-a-mano da catequese,recompensava-o no fim de cada lição. Oferecera-lhe um rosário, umlivrinho de orações e um pião que o rapaz nunca conseguira fazerrodar.

Benjamim viu Lobato ao longe e parou de treinar o ato decontrição que recitaria antes de confessar-se pela primeira vez. Nãosabia se correr na direção contrária ou seguir adiante. O que omedo fizera de prodigioso, quando fora perseguido pelos Mesquita,passara a ser o colapso total dos mecanismos de defesa. Fechou osolhos e imaginou-se no colo da Virgem, coberto por um mantomágico. Se não se mexesse, se não respirasse, se conseguissedizer um Pai-Nosso sem um engano, sem que o pavor lhe trocasseas palavras, seria abençoado com a invisibilidade.

O cavalo de Lobato travou diante do rapaz. Benjamim sentiu-lhe obafo. Contraiu as pálpebras. A fé seria a sua salvação. Nocampeonato das almas, ganhava quem acreditasse com mais força.

«Onde é que vais?» Lobato reparou na camisa branca. Domingo,dia de missa. Imaginou a igreja lotada e o povinho a comentar o seuvexame, como se num auto-de-fé cómico. «O que tens atrás dascostas?» Benjamim manteve-se calado. Na mudez daquela criança,com a resiliência de um missionário, ele via a chacota do padre edos seus acólitos. «Estou a falar contigo, responde-me.» O filhotinha morrido na guerra. A filha estava encerrada numa jaula etérea.Lobato sentia-se expropriado pela vida. E, dali em diante, sempreque visse ao espelho a cicatriz na cara, teria de recordar aquele dia.Desceu da sela e circundou Benjamim. Tirou-lhe a Bíblia das mãose atirou-a para longe. «Abre os olhos.»

Como todas as crianças, Benjamim acreditava que Deus, a mãe eo padre podiam consertar o que estava estragado e aliviar osofrimento. Não sabia nada sobre a acumulação das malfeitorias da

vida. Desconhecia que as ações dos homens podiam serirreversíveis.

Um pingo morno caiu na cara de Benjamim, e depois outros.Chuva espessa, com o cheiro da ferrugem. Abriu os olhos e viu osangue a escorrer do rasgão na bochecha de Lobato. Foi puxadopela gola da camisa. O corpo levantou voo. Em vez da ascensãoaos céus, o impacto na terra. Lobato voltou a agarrá-lo, desta vez asmãos enlaçaram-lhe o pescoço. Onde estava a mãe? Onde estavaDeus? Que indignidade tinha em si, pensou o miúdo, para queLobato quisesse fazer-lhe o mesmo que fazia aos coelhos?

Benjamim bateu à porta da sacristia.Como um cavaleiro do apocalipse apanhado a fazer a lida da

casa, o padre apareceu em mangas de camisa, sem batina, numanuvem de vapor e fumo. A lenha estalava sob um panelão de água.Havia uma grande tina próxima da lareira. Martinho deixou o miúdoentrar.

«O que aconteceu?»Sem conseguir falar, Benjamim revivia os segundos em que

Lobato lhe apertara o pescoço, a cascata de sangue a espichar dabochecha do homem para os seus olhos e roupa, o lento apagar daalma, a massa encefálica rogando oxigénio. Antes de desmaiar,Benjamim vira um clarão de luz, como um halo na cabeça dossantos. E depois o céu em chamas antes da escuridão.

Martinho reparou nas marcas no pescoço.«Quem é que te fez isto?» Benjamim quis dizer um nome, mas a

boca largou um gemido. O padre fez-lhe uma festa na cara eabraçou-o. «Aqui ninguém te pode fazer mal.» O miúdo deu-seconta de que sujara Martinho com o sangue de Lobato. Tentoulimpá-lo com a manga da camisa branca. Julgou que naquela aldeiase reproduzia a primeira praga do Egito. Sangue correndo nos rios,estagnado nos poços, manchando as coxas da mãe, borbulhandona panela que fervia sobre o fogo. Um dilúvio de sangue onde ascrianças seriam afogadas. Se tamanho era o seu castigo, tamanhateria de ser a sua ofensa.

«O que é que eu fiz?», perguntou.«Tu és um bom menino.» O padre levou-o para junto da lareira.

Pegou num pano, que molhou na água, e começou a lavar-lhe acara. O choro esmoreceu e Benjamim contou o que se passara,perguntando no final:

«Morri e ressuscitei?»O padre mostrou-lhe o hematoma que lhe cobria as costelas.

Guiou-lhe a mão para que sentisse a pele rubra da ferida.«Ele quis fazer o mesmo comigo. Mas Deus está do nosso lado.

O Lobato suja o que é puro, envenena o que é casto. Mas tu podesser santo. Tu podes ser limpo.» Com o pano, humedeceu-lhe atesta. «Queres renunciar o demónio e ser purificado?» Benjamimassentiu. Os lábios tremiam-lhe. Era o menino a quem, por fim,faziam uma vontade. «Hoje vais fazer a primeira comunhão.» Opadre foi buscar o vinho e o cálice, as hóstias e os paramentos daeucaristia. «Lavamos-te a alma e o corpo.» Despejou o panelão natina e juntou-lhe um cântaro de água fria. «Ajoelha-te para a tuaprimeira confissão. É preciso que fiques livre do pecado antes decomungar o corpo de Cristo.» Benjamim obedeceu. «Tudo o quedissermos um ao outro é segredo. Tudo o que fizermos é a vontadede Deus», disse Martinho.

A ocasião parecia solene, mas os pecados do miúdo eram pueris.Benjamim confessou que deixara cair um prato de barro e queachava que não gostaria do irmão que crescia na barriga da mãe. Opadre absolveu-o com o sinal da cruz, atribuindo-lhe a penitência detrês Ave-Marias e um Pai-Nosso.

Enquanto a criança rezava, Martinho verificou a temperatura daágua, vestiu uma túnica branca e colocou os paramentos.

«Lavemos a carne.» Começou a desabotoar a camisa branca deBenjamim, manchada com o sangue de Lobato. Despiu-lhe ascalças e as ceroulas. O corpo nu do rapaz era magro e tenro. Ocordeiro de Deus que carrega o pecado do mundo. Martinho deu amão a Benjamim e ajudou-o a entrar na tina. Usou um púcaro paralhe molhar o cabelo como se o batizasse no Jordão. Pegou no cálicede vinho. «Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu sangue, osangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e portodos, para remissão dos pecados.»

A palavra sangue era como uma veia lancetada. Benjamim

empalideceu, segurou-se no padre que lhe aproximou o cálice doslábios.

«Não quero beber sangue», disse o rapaz.«É só vinho, experimenta, é bom.» Martinho deslizou o dedo da

garganta até ao umbigo do miúdo. «Vais sentir Deus dentro de ti.»Benjamim estranhou a acidez do líquido — era mais aguado e frio

do que o sangue —, mas o padre manteve o cálice inclinado.«Tens de beber tudo para que Deus entre no teu corpo».

Benjamim começou a sentir uma mansidão, um consolo, umasegurança, tudo mais leve, sem ângulos, arestas ou emboscadas.Deus estava dentro de si.

«E as hóstias?», perguntou.O padre começou a tirar a roupa.«Para que possa dar-te a comer o corpo de Cristo, também eu

tenho de estar limpo.» Já despido, entrou na tina e começou a lavar-se com o mesmo pano com que esfregara Benjamim. Esticou obraço para as hóstias, pegou numa.

«Corpo de Cristo.»E a criança disse:«Amém.»Benjamim caminhou pelo campo com uma sensação física

inconciliável — pureza e enjoo. Talvez as náuseas fossem mais umaetapa para expurgar o pecado. Estava bêbedo e a última hora eraapenas um borrão de imagens esborratadas e secretismo, confusãoe incógnita. Contudo, Deus tinha sempre razão. Ao passar por umaazinheira, a sua boca disparou um jorro avermelhado. O vómitoenfraqueceu-lhe o corpo, mas clareou-lhe a mente. O transe eramais límpido, o céu filtrado pelas lágrimas nos olhos, o solexpandindo-se do seu círculo e pingando luz na linha do horizonte,nos contornos das colinas, nos ramos da azinheira. Por entre ozunido dos insetos e o silêncio das pedras, surgiu o refúgio de umavoz feminina, como a canção de embalar de uma mãe. Benjamimsentiu-se num casulo de líquido amniótico, e outro coração batiacom o seu. No topo da azinheira, uma mulher abriu o manto brancopara o acolher e disse: «Tens um lugar no Céu.»

Benjamim não ouviu os balidos das cabras nem o tagarelar de

Lúcia e dos seus primos, Francisco e Jacinta, que levavam orebanho de regresso a casa. Lúcia, vesga e mal-encarada, tocou-lheno ombro.

«O que é que estás a fazer?»«A ouvir Nossa Senhora», disse Benjamim.Nessa noite de treze de maio de 1917, duas crianças disseram às

respetivas mães que tinham visto a Virgem. Só a mãe de Lúciaacreditou.

Os romeiros começaram a aparecer junto da azinheira logo nomês de maio, quando o país colapsava sob os efeitos da guerra.Navios obsoletos não podiam sair dos portos, o povo estava emsobressalto porque a capital açambarcava alimentos, combustíveise, ainda assim, não havia luz nem polícias em Lisboa entre as onzeda noite e as cinco da manhã. Mandaram-se fechar os teatros,cancelar as carreiras de elétrico. Na véspera da visão de Benjamim,acabara-se a farinha e o carvão na cidade. Mercearias e padariasfecharam as portas, esgotaram-se as batatas, que tinham triplicadode preço num só dia. Milhares de pessoas afluíram dos bairrosperiféricos para o centro, a fim de saquear lojas de comida. Foideclarado o recolher obrigatório. Proibiram-se os ajuntamentos depessoas. Nas ruas, os revoltosos manifestavam-se com armas ebombas. Mortos, motins, fome, histeria, tiroteios com o Exército e aGuarda na Rotunda e no Rossio.

Que a Virgem Maria tivesse escolhido Portugal para se dar aconhecer era uma prova do estado calamitoso do país. A naçãoprecisava de um acerto espiritual, após vários anos de secularismoe desgoverno. Nossa Senhora tinha o charme das soluçõesimediatas, era uma bússola, a estabilidade do sagrado em temposda incerteza do profano: as atrocidades da guerra, a fome, assublevações populares, o sofrimento e a periclitância da vidaterrena. Como em todas as crises, havia um desvairado desejo dealívio. E o aparecimento da Virgem garantia o destino extraordináriodo povo que ainda produziria o Quinto Império.

Lúcia, que tinha dez anos e era analfabeta, como os primos, disseter visto a Virgem com um manto branco e São José a fazer o sinalda cruz com a mão. Também vira o menino Jesus, de vermelho, e

Deus envolto num brilho dourado. Nossa Senhora anunciara-lhe quevoltaria a aparecer naquele lugar durante seis meses, sempre ao diatreze, prometendo uma revelação importante na sua última visita.Até essa data, as mensagens entregues a Lúcia foram maismundanas — e centradas na rapariga — do que revolucionáriaspara o futuro da Humanidade. Lúcia disse que a Virgem lhe pediraque aprendesse a ler e que lhe garantia um lugar no Céu. Ordenouque se rezasse o terço para que a guerra chegasse ao fim e que seconstruísse uma capelinha a tempo da festa da Nossa Senhora doRosário.

No ano anterior, a Virgem já fora avistada em Espinho, Pardilhó eVila Ruiva. No ano seguinte, apareceria em Ponte de Sor, Vale doArco e na ilha de São Miguel. Dois meses após o primeiro relato deLúcia, e confirmando a preferência divina por crianças trabalhadorasna pecuária, um jornal católico do Porto noticiava que o pastorinhoSeveriano Alves, com dez anos, se deparara com Nossa Senhoravestida de branco e que esta o mandara rezar o terço e a Estrela doCéu, prometendo acudir ao mundo e acabar com a guerra.

Começou no país uma vaga de exaltação espiritual que sepropagou com a Cruzada do Rosário. A iniciativa, contando commilhares de seguidores e apoiada por intelectuais católicos,consistia em rezar o terço, comungar ao domingo, orar pelo sucessoda cruzada e ter em casa uma imagem de Nossa Senhora. O padreque substituíra Martinho na aldeia dizia na igreja: «Os ímpiosachavam-nos derrotados, mas a Cristandade está pronta para areconquista e empunha a lança divina do terço.»

No dia treze de setembro, mais de vinte e cinco mil pessoascompareceram na Cova da Iria, onde se construíra um pórtico e umaltar no qual os peregrinos deixavam mensagens e oferendas.Começaram a desaparecer pedaços da azinheira que servia depoiso à Virgem. Eram vendidos como relíquias santas. Os jornais deLisboa cobriam os eventos e fotografavam os pastorinhos-celebridade. Lúcia e Jacinta apareciam vestidas de igual, saiasfolhadas, de cintura subida; brincos nas orelhas, camisas de mangacomprida e os lenços na cabeça, com uma dobra no cocuruto. Nomeio das pastorinhas estava Francisco, de calças ao xadrez e

casaco grosso, cajado na mão, uma sacola de pano a tiracolo e umbarrete preto, de lã, igual ao que Alice enfiava na cabeça deBenjamim mesmo quando não fazia frio.

A fama dos pastorinhos acarretava inúmeras solicitações. Foraminterrogados pelas autoridades, sacerdotes e jornalistas. Osromeiros procuravam-nos em casa, queriam tocar-lhes, pedir queintercedessem junto da Virgem. Francisco era o mais contrito,iniciando longos períodos de silêncio e jejum, mas os trêsencarnavam o sacrifício espiritual e, nas palavras que Lúcia dizia terouvido — «Aceitai e suportai com submissão o sofrimento que oSenhor vos enviar» —, notava-se o pendor para a penitência, aforma como as crianças viam Deus: alguém que castigava, queralhava e que exigia.

Benjamim acompanhou a saga dos pastorinhos a partir deCoimbra, para onde se mudara com a mãe após a primeira visão eonde fez o exame da quarta classe, sendo aprovado com louvor.Viviam num apartamento com água corrente, propriedade de JosefaLobato, e havia iluminação elétrica na rua. Com a mesada dapatroa, comiam carne várias vezes por semana, só andavamdescalços em casa.

Durante o verão, sem que Benjamim voltasse a falar do dia trezede maio, foi crescendo dentro de si a injustiça de não serreconhecido como o verdadeiro interlocutor da Virgem. Lúciasempre fora tagarela, com propensão para o exagero e acalhandrice. Usurpara os holofotes do Éden que apontavam osfavoritos na Terra e, declarada como criança-maravilha, colhia osfrutos do excecionalismo lusitano, essa prova de que também Deustinha filhos preferidos, premiados com um império ultramarino evisitas domiciliárias da mãe de Jesus.

Apesar da desilusão espiritual, nesses meses Benjamim tambémandou de carro e viu um comboio pela primeira vez. Tirou um retratono fotógrafo e imaginou-se um dia vestido com o traje negro dosuniversitários que via nas ruas da cidade. É verdade que, ao saberalguma notícia sobre os pastorinhos, era abalado pelo transtorno datraição — a mãe que não acreditara nele, Lúcia que o roubara, opadre Martinho que desaparecera. Mas agora o mundo parecia-lhe

maior, mais generoso, com ruas calcetadas em vez de lama,doutores em vez de cabras.

Talvez fosse da boa alimentação, ou quem sabe o temporizadorgenético fizesse por fim soar o alarme do crescimento: durante overão, Benjamim cresceu e fez amigos na rua. Impressionados coma destreza das suas pernas — corria, saltava, passava rasteiras —,os rapazes reconheciam nele a emergência do físico quando outroslhe tinham recusado os dons divinos. Samuel, mais velho três anos,filho do sapateiro, ensinou-o a surripiar fruta no mercado. Disse-lheque numa luta, além de ser o primeiro a bater, deveria usar acurvatura superior da testa para atingir o nariz do adversário.Treinavam cabeçadas nas portas, usando os bonés para amortecero impacto. No dia em que Lúcia disse ter visto a Virgem pela quartavez, Samuel mostrou-lhe uma navalha que o irmão, Augusto,regressado da guerra, tinha pilhado do cadáver de um boche e queusava para esculpir santos em madeira. O soldado Augusto nãotrouxera medalhas da frente. Regressara com um nariz de madeira,preso por uma tira de couro, que escondia os danos de umestilhaço.

Josefa aparecia diariamente no apartamento e perguntava àbarriga de Alice: «Como está o nosso menino?» A patroa davainstruções sobre repouso e alimentação como se ensinasse a mãedo bebé a encerar o soalho. Nunca mencionou o marido. A únicavez que Benjamim soube de Lobato foi quando o patrão apareceunos jornais associado ao suposto rapto dos pastorinhos.

A treze de agosto, o administrador do concelho de Vila Nova deOurém, Artur Santos, foi buscar as três crianças de charrete a casados pais e levou-as para a casa do novo prior, que voltou aquestioná-las sobre as visões. Mais tarde, um carro alugadotransportou os pastorinhos para casa de Artur Santos. Sobre os trêsdias que Lúcia, Jacinta e Francisco passaram com a sua família, oadministrador disse aos jornais que tanto ele como a mulher ostrataram como filhos. Já Lúcia contou que foram enfiados em salasseparadas de uma cadeia e que lhes ofereceram peças em ouropara que revelassem o segredo transmitido por Nossa Senhora.Quando recusaram o suborno, Santos teria ordenado que se

pusesse um caldeirão de azeite a ferver porque iriam cozinhar ascrianças, Jacinta primeiro. Os rumores conspirativos sobre osequestro ora implicavam a Igreja, ora o Governo republicano, mashavia também aquele em que Lobato pagara a Santos para acabarcom as peregrinações mensais, quando milhares de pessoasatravessavam as suas terras para acampar perto da azinheiraescolhida pela Virgem.

Nesse verão de 1917, Benjamim teve um vislumbre do que podiaser a liberdade. Porque a mãe, inchada pela gravidez, não saía decasa, o rapaz passava muito tempo na rua com Samuel e os miúdosdo bairro. O seu fervor religioso foi encolhendo na proporçãocontrária das recompensas resultantes da falta de supervisão dosadultos. Com os amigos, tomava banho no rio Mondego e aprendeua lançar o pião que o padre Martinho lhe oferecera. Trocou o terçopelos jogos de guerra. Os rapazes dividiam-se entre boches eportugueses, fabricavam espingardas de galhos de árvore, faziamburacos em terrenos baldios para simular as trincheiras, ouviam ashistórias de Augusto, veterano sem nariz e ressentido com odespreparo do Corpo Expedicionário Português, a que chamavaCarneiros de Exportação Portuguesa. O irmão de Samuel contou-lhes sobre os bombardeamentos da artilharia inimiga e daincessante chuva, lama e frio, das rações que recebiam do exércitoinglês, corned beef e marmelada azeda, tão grotescas para opaladar lusitano, que os soldados faziam incursões às aldeias embusca de pão. Augusto pegava na viola e tocava o Fado doCavanço para os miúdos. Em vez de debitar Pais-Nossos,Benjamim cantava: «Nesta vida de cavanço,/ A cavar como se vê/Se os boches dão avanço,/ Cava todo o CEP.»

Benjamim construía uma nova identidade. Ria-se muito, tinhaamigos, já não sentia todas as suas ações constrangidas pelo medoou pelo pecado. A impressão contraditória — pureza e sujidade —que o contaminara no dia em que o padre lhe dera banho iasubmergindo no pantâno onde se escondem os traumas dos miúdosmaculados pelos seus cuidadores. Mas, de vez em quando, aindaera tolhido pela culpa. A impressão de que fizera alguma coisaerrada era irreconciliável com a virtude prometida no sacramento

que o padre lhe concedera com a hóstia. Benjamim queria acreditarque ter visto a Virgem era uma prova da sua inocência.

Alice deu à luz um mês antes do previsto. Lobato não teve umherdeiro macho, mas uma filha, que parecia a Benjamim um ratocareca, com uma membrana no topo da cabeça a que Alicechamava moleirinha. Benjamim vivia entre o terror e a curiosidadede pressionar, com a ponta do dedo, aquele tecido fino que cobriaum interior gelatinoso. Uma carícia podia tornar-se um homicídio. Amãe não largava a filha, vigiava-lhe o sono e dormia quase nada,piorando o estado obsessivo que lhe fazia cair o cabelo. Sósossegava quando dava de mamar. Nas vezes que Benjamimtestemunhou essa comunhão entre mãe e filha, julgava que, a cadagole de leite sugado pelo minúsculo roedor, a mãe era canibalizadapara que outra vida prosperasse. Ele apenas sentira esse tipo deabnegação materna — como se Abraão, em vez de colocar a facana garganta do filho, tomasse o seu lugar no sacrifício — quando amãe descobrira as marcas das mãos de Lobato no seu pescoço edecidira aceitar a proposta de Josefa de se mudar para a casa dapatroa em Coimbra.

Nas primeiras semanas após o nascimento, a matriarca dosLobato hospedou-se num hotel próximo. Com uma criada presa aoflanco, passava os dias de volta do bebé, supervisionandomudanças de fraldas e encaixando-o no regaço como se fosse umaama-de-leite. Chamava-lhe Fátima, ainda que Alice não tivesseescolhido um nome. Josefa sugeriu que Benjamim fosse estudarpara o seminário e conseguiu-lhe uma vaga, não tanto porconsiderar, como o padre Martinho, que o rapaz era pio ou arguto,mas porque já sustentava Alice e o sacerdócio seria a única maneirade o miúdo não acabar indigente. Os padres dar-lhe-iam comida,cama, roupa em segunda mão e uma carreira vitalícia.

Uma semana antes de começar as aulas no seminário, Benjamimviu Augusto a cambalear pelo passeio, sem chapéu e de colarinhodesabotoado, pálpebras a meia haste. Havia em Augusto umqualquer azedume que procurava consolação. Tinha a teimosia dasmedidas desesperadas. Samuel já contara a Benjamim que o irmãoera como um farol, alternando luz e breu. Começava a beber ao

almoço. Durante as primeiras horas, o vinho fazia-o gracioso efalador. Depois iniciava-se o cortejo da revolta e da comiseração.Por fim, o espírito derrocava. Saía de casa ao entardecer,regressando madrugada adentro, acordando com terrores noturnos,fogo, fumo, obuses, braços, pernas e narizes a voar pelo quarto, ocorpo engolido pelo colchão como pela lama das trincheiras.

Benjamim ia falar-lhe quando Augusto atravessou a estrada eentrou no bordel. Segundos depois, foi empurrado porta fora por umhomem de mandíbula quadrada e cachucho no dedo mínimo.

«Já te disse, mais de uma vez, que aqui não queremosconfusão.»

Augusto desviou uma madeixa de cabelo da testa, deu um puxãonas lapelas do casaco.

«Tenho dinheiro. Vendi uma carrada de santos. Diz-lhe que pagoo dobro.»

O homem plantou-se diante da porta, os braços cruzados.Conhecia bem o desamor e a insistência dos bêbedos.

«Ela não quer estar contigo.»«Então a outra, a alentejana.»«Tira daí a ideia.»«Por favor, pá, eu preciso disto.»Os homens riam no passeio. A única mulher na rua olhou de

relance e, ao perceber a prótese de madeira na cara de Augusto,contraiu o rosto com o dó que apenas as mulheres deviam concederaos coitadinhos, pedintes e aleijados de guerra nas portas da igreja.

Augusto simulou uma retirada. Deu meia volta, numa manobrapatética, e investiu para a porta. Desmoronou contra o homem debraços cruzados. Gargalhadas na audiência. A porta entreabriu-se etrês raparigas espreitaram.

«É o Caveirinha outra vez», disse uma. «Está de amores pelaIsabelinha.»

Benjamim percebeu porque lhe chamavam Caveirinha quandoAugusto levantou a cabeça. A tira de couro que prendia o narizrompera-se e a cara, que antes parecia uma máscara de carnaval,era um crânio exumado, com um furo ao centro, em forma decoração invertido.

O público parou de rir, o homem do queixo angular baixou osolhos e as raparigas fecharam a porta. Benjamim apanhou o nariz,mas Augusto já estava de pé, marchando pela rua ao compasso daignomínia, rumando a uma tasca onde beberia uma garrafa de vinhoe depois outra, na esperança de que alguém lhe desse um soco nacara ou o carregasse para casa — um toque, qualquer tipo detoque, algo que não fosse pena nem repulsa, somente um repousodos terrores diurnos e noturnos.

Nessa tarde, Benjamim chegou a casa com o nariz de madeira nobolso das calças. Nenhuma luz acesa, as cortinas fechadas. A mãeestava na cama, desfiando a cabeleira cada vez mais rala. Tinhauma mancha vermelha na cabeça, os folículos inflamados ondearrancara os cabelos.

O berço tinha desaparecido do quarto. A irmã também.«Onde está a menina?», perguntou Benjamim. «E a dona

Josefa?»Alice não respondeu e o filho retirou-se para a sala. Diante do

espelho, experimentou o nariz de madeira sobre o seu. Era leve eoco, o artefacto que escondia a aberração. Não restituía o rostooriginal, só ocultava o que lhe faltava. Certas deformações,percebeu Benjamim, eram para a vida inteira. Um homem semnariz. Uma mãe sem a filha. Um miúdo sem roupa, nas mãos de umpadre.

A treze de outubro, junto da azinheira, com uma coroa de floresna cabeça e venerada por milhares de peregrinos, Lúcia disse que aVirgem declarara o fim da guerra. Benjamim sabia tratar-se de umafarsa. No dia anterior, já como aluno interno, tinha sido chamado aoquarto do padre Martinho, que fora transferido da aldeia paraensinar os rapazes no seminário. Nessa noite, após comungar como padre, Nossa Senhora apareceu nos sonhos do rapaz e avisou:

«Não ligues ao que diz a ignorante da Lúcia. A guerra nãoacabou. Não acabará nunca.»

Segunda-feira, 26 de agostoRebeca Kraus desliga o telefone no teatro e corre para o

apartamento da vizinha, onde esta manhã deixou Chris e Mathilda.Os miúdos já saíram para um dia de praia em Carcavelos e, antesde ir em busca dos filhos, Rebeca entra em casa para apanhar asbraçadeiras que costurou há semanas, sabendo que teria de as usarem algum momento. Leva uma sombrinha para se proteger do sol edar mais ares de alemã intocável do que de judia desesperada.

Caminha para o Cais do Sodré como se ainda ouvisse a voz deFialho, no rádio da sala de guarda-roupa, a anunciar o fecho daCozinha da Comunidade Israelita e a expulsão das associaçõesinternacionais de apoio aos refugiados. Esta manhã, os jornaisinformam que se aprovará no Parlamento uma lei que criminaliza aajuda aos judeus, advertindo que, entre essa raça dissimulada,estarão ainda alguns dos partisans bombistas que mataram Salazare que profanaram a castidade de quatro mulheres católicas.

Para os lisboetas, talvez a calmaria nas ruas seja aquilo que seespera no começo de uma tarde de agosto. Mas Rebeca suspeitado silêncio, cuida-se observada num labirinto com armadilhas emcada bifurcação, exposta como na manhã em que escreveram Judena montra do seu ateliê em Munique. Cruza para o outro passeio sevê um ajuntamento com mais de duas pessoas e escapa para aestação de comboios com o bafo de uma denúncia a beijar-lhe opescoço, ansiando regressar a casa antes que os rumores sejaminsultos ou que, não chegando os insultos para dar vazão ao ódio,alguém atire a primeira pedra a uma janela, pegue fogo a um prédio,ligue para a Polícia a dizer: «Há uma família de judeus na minharua.»

O comboio avança devagar, também ele um opositor da urgênciade Rebeca. Vinte e um quilómetros de linha até Carcavelos. Ossegundos perdidos nas paragens em cada estação. Passageirosque adormecem a bordo, despreocupados de chegar tarde onde osfilhos mais precisam deles — tudo arrasta a passagem do tempo,tudo separa Rebeca de Mathilda e de Chris. Vê a orla costeira comoo arame farpado da península, julga-se sem horizonte ou pontos defuga, entalada entre as batalhas navais no Atlântico e o redespertar

do acosso do Santo Ofício no seio dos cristãos. Nunca deveria teresperado tantos anos em Lisboa. Mas conheceu Luís e caiu naesparrela do adiamento, negociando um futuro que não podiacontrolar. Agora, as ilusões de harmonia e paz e família nada podemcontra o alcance da guerra e das ideias feitas que lhe servem decombustão.

No último milénio da história europeia, do Cabo da Roca aVladivostok, os judeus que se haviam demorado a sopesar apermanência no lugar de nascimento, em vez de se meterem aocaminho para longe de onde não os queriam, quase sempre searrependeram. Num assomo de lucidez, Rebeca questiona-se: comopôde achar que estaria a salvo em Lisboa? Como caminhou pelapraça onde, séculos antes, mães judias foram apartadas dos seusfilhos? Como passou tantas vezes, sem prestar atenção, junto dopelourinho onde garrotearam famílias de cristãos-novos antes delhes pegar fogo? Como é que, depois de ficar sem os pais, libertadas raízes que a mantinham na Europa, foi plantar-se com Chris eMathilda num país que degredou milhares de judeus ou osconverteu à força?

Se lhe pedissem um dos filhos e, em troca, a guerra terminasse,evitando assim milhões de mortes, Rebeca diria que não. Se lhegarantissem a paz eterna na Terra e a invulnerabilidade de todos osjudeus caso ela desmanchasse a gravidez recente, Rebecarecusaria. Ser mãe é vacilar, em poucos segundos, entre o amorextasiante e o terror de que algo de mal suceda aos filhos. Talvez sóoutra mãe perceba, sem fazer juízos, como essa condição oscilantede felicidade e medo deu origem à lógica de Rebeca paraengravidar: na eventualidade de perder um filho, continuará a sermãe de outros dois, terá de suportar a dor da perda para os criar emanter vivos.

Desce do comboio na estação de Carcavelos e, no limiar dopânico, crava as unhas nas palmas das mãos, entoa o nome dosfilhos enquanto calcorreia o longo areal com poucos banhistas.Encontra Chris a brincar com a filha da vizinha e vê Mathilda a fazercarreirinhas na rebentação. Chama-a, mas ela não ouve, radianteno meio da espuma, correndo para apanhar a próxima onda.

Rebeca descalça-se e entra pelo mar de arame farpado adentrocomo se fosse salvar a filha das fragatas que patrulham a costa. Umpescador julga ver uma suicida; mas Rebeca é a comprovação davida, o paradigma dos resistentes à fadiga, à desistência e aoextermínio. Tem água pelos joelhos e grita o nome de Mathilda atéque a filha se vira e, após o espavento inicial, se entrega à voz damãe, correndo para ela, abraçando-a como se Rebeca a tivessesalvado de ser levada pela corrente. Os pés de ambas enterram-semais fundo à passagem de cada onda. A mãe diz:

«Não podemos ficar aqui.»Na estação, à espera do comboio de regresso a Lisboa, Rebeca

explica a Chris e a Mathilda que só devem falar alemão. Limpa-lhesa areia dos pés e penteia-os. Põe-lhes nos braços as fitas quecosturou. São vermelhas e brancas, com uma suástica negra aocentro.

No Santuário de Fátima, o sargento Azambuja vai rezar naCapelinha das Aparições. Paixão Leal e Cardoso olham para afachada da basílica em construção. Os trabalhadores chegam todasas segundas-feiras, vindos de Ourém, de Barreira de Leiria ou deVila do Paço. Só regressam a casa no sábado. Dormem e comemali mesmo, amenizando as saudades da família e o trabalho malpago com o fito de levar mais além o pedido da Virgem à pequenaLúcia. Não bastava uma capelinha. Tinham de oferecer uma basílicaa Nossa Senhora.

«Que desperdício», diz Paixão Leal. «Podiam estar a construiruma escola ou um hospital.»

«Também podiam estar a pedir na rua», diz Cardoso, a brasa dacigarrilha escondida na concha da mão como se ainda estivesse nastrincheiras.

«Um monumento a uma mentira. Um monumento ao nada.»«E eu que pensava que tínhamos vindo aqui falar do caso

enquanto não chega a hora do comboio.»Afastam-se da fachada e sentam-se nos muros brancos que

ladeiam a alameda de terra. O santuário está quase vazio, umaclareira rodeada de mato, uma calmaria pastoril que os devotosjulgam celeste.

«Chuta», desafia Cardoso, tentando que o colega se concentre.Nunca o viu tão abstraído. Quando algo se desequilibrava, o normalera o detetive zarolho reforçar ainda mais a obsessão pelo trabalho.Paixão Leal não era homem para descarrilar facilmente, aindamenos por causa do relato escabroso de Caveirinha, aliás, um relatopor confirmar — vinte anos de vinho e a pancada que trouxe daguerra não fazem de Caveirinha o narrador mais fidedigno dosautos.

«Benjamim Benavente, trinta e muitos anos», diz Paixão Leal.«Santeiro, bruxo, tem oficina e consultório em Lisboa. A última vezque visitou o Caveirinha, a doze de maio, comprou-lhe todo oinventário de santos, como costuma fazer.»

«O aprendiz grato ao mestre.»Benjamim começou a trabalhar com Caveirinha em mil

novecentos e vinte e dois, após ser afastado do seminário por daruma sova ao padre Martinho. Caveirinha ensinou-lhe a fazer santospara vender e próteses de narizes, de mãos e de orelhas, queoferecia de graça aos mutilados da guerra. O padre Martinhoapareceu enforcado um ano depois. Entre os alunos do seminário,espalharam-se os boatos de que Benjamim o matara.

«O Caveirinha disse que o padre não se tinha ficado peloBenjamim. E que já muita gente sabia o que se passava lá dentro»,recorda Paixão Leal.

«Mas pode ser que o padreco se tenha mesmo suicidado. Porvergonha ou arrependimento ou com medo das consequências.»

Paixão Leal dá uma gargalhada.«Medo das consequências? Meteram-no a pregar noutra paróquia

como se nada tivesse acontecido.»A viagem de regresso a Lisboa faz Paixão Leal cair na cápsula da

memória de outro caminho de ferro, noutro país, na carruagem ondea voz do tio Domingos proferia o manifesto: «Factualmente falso,moralmente repreensível, intelectualmente desonesto eobjetivamente prejudicial.» Domingos tinha razão. E, com essalembrança, Luís confirma a sina do filho contestatário que, anosmais tarde, se torna a réplica do pai. Um pai-tio, um segundo paique era o primeiro.

Com nove anos, em maio de 1917, bêbedo e transido pelosabusos, Benjamim achava que fora escolhido pela Virgem e que ostrês pastorinhos lhe haviam roubado o prestígio da santidade. Talcomo acreditava que o padre Martinho, nomeado por Deus — e aquem todos beijavam a mão porque só ele sabia o verdadeirosentido da Bíblia —, lhe ofereceria a pureza tão almejada através docorpo de Cristo.

«Preferes ter um inocente preso ou um criminoso à solta?»,pergunta Paixão Leal, no comboio.

«Isso é sobre o caso?», questiona Cardoso.«Imagina que alguém cometeu um crime grave, a tua filha, por

exemplo, e que por isso lhe espetam com uma longa pena deprisão. Se fosse possível, cumpririas a pena por ela?»

«Óbvio.»«Porquê?»«Porque é minha filha.»«Os teus motivos seriam emocionais.»«E por dever.»«Achas isso moralmente aceitável?»«Claro que sim, um pai deve sacrificar-se pelos filhos.»«De acordo com a moral vigente, segundo a qual um pai deve

sacrificar-se pelos filhos, a tua atitude seria celebrada. Mas,eticamente, é reprovável.»

«Porque a minha filha não pagaria pelo que fez?»«Nem deixaria de ser culpada do crime que cometeu.» Paixão

Leal não tem claro onde quer chegar, mas vai desbravando umavisão e um plano: «Já leste a História de duas cidades?»

«Aquele livro do corcunda na catedral?»«Esse é francês. Estou a falar do Charles Dickens. Nesse livro há

uma personagem, Sydney Carton, que se oferece para serguilhotinado em vez do marido da mulher que ele ama.»

«Fuck me.» Cardoso imita o colega, trocista, mas atento ao que aívem.

«Jesus Cristo foi pregado na cruz para redimir os pecados dosvivos, dos mortos e dos que estavam por nascer. Serviu para quê,afinal? O que é que mudou? Não me fodas. Um pai que deixa

morrer um filho? É imoral. Ouve, tu até podes cumprir a pena deoutra pessoa, morrer por ela, mas não a podes livrar do lastro dassuas ações.»

«Estás a dizer-me que a pedra base do cristianismo é eticamenterepreensível?»

«Estou a dizer-te que o Benjamim Benavente não vai pagar peloque fez.»

Cardoso debruça-se sobre os joelhos e fica mais perto do colega.Fala baixo para que os passageiros na carruagem não o oiçam.

«O que é que se passa contigo, Americano? Isto está no papo.Vamos à PVDE e entregamos o que temos sobre o gajo. Vão buscá-lo ainda hoje.»

Paixão Leal não pode contar o que sabe acerca da colaboraçãode Nuno Athaíde com os partisans ou do interesse da PVDE pelomenino rico e pela sua irmã. Mas tem fortes suspeitas de queMadalena não foi morta por judeus ou sequer por Benjamim.

Desembarcados em Lisboa, dirigem-se ao Instituto de MedicinaLegal e apanham a doutora Catarina de saída. Pedem-lhe paraconversar no Campo de Santana, onde lhe perguntam sobre ocadáver de Madalena.

«Não se fez a autópsia, ordens da PVDE», diz a médica. «Mas vio corpo e posso garantir que aquela mulher não foi estrangulada.Tinha uma ferida na cabeça e marcas profundas nos pulsos, comose a tivessem prendido durante algum tempo. Mas não vi nenhumacruz de David cravejada no peito, como se disse nos jornais.»

Despedem-se da doutora Catarina e, para surpresa de Cardoso,após tantos convites recusados, o Americano pergunta-lhe:

«Podemos ir a tua casa?»Com o anfitrião na cozinha, a abrir uma garrafa de vinho, o rafeiro

de três pernas, de nome Belenenses, deita-se com a cabeça emcima dos pés de Paixão Leal. Sentado numa poltrona, o detetiveconfirma o fracasso das suas habilidades dedutivas quando se tratade Cardoso. Tinha previsto o caos e a porcaria, mas a casa estálimpa e arrumada como se a mulher do colega ainda estivesse viva.Luís apercebe-se por que motivo o desleixo de Cardoso com aroupa e a higiene pessoal não se multiplicou em pilhas de pratos

sujos e merda do Belenenses na carpete. Olha para as fotografiasde família numa estante, os naperons que a mulher do colegatricotava, a mobília escura que herdou dos sogros, a caixa daguitarra portuguesa em cima de uma cadeira. Aquela casa intacta éa única forma que o viúvo tem de estar perto da mulher.

Cardoso não o assumiria em voz alta, mas se tivesse de explicaro luto, após tantos anos de casamento, não diria tratar-se da dor-fantasma de um membro amputado ou da capacidade de arrancardos vestidos da mulher, ainda no armário, toda uma série dememórias que julgava apagadas. É algo mais mundano. Manifesta-se quando ele, de cafeteira na mão, ainda lhe pergunta: «Vou fazercafé, queres?»; ou nos passos silenciosos para não a acordar se vaià casa de banho durante a noite; ou quando anda pelo lado de forado passeio, não vá um carro despistar-se e apanhá-la. Não seesquece de que a mulher está morta, contudo, não consegue pararde fazer o que sempre fez. Cardoso persiste nas funções de maridocomo os pássaros que, após perderem o parceiro, continuam afazer o ninho. Ao exato instante em que se dá conta de que essesgestos diários se despedaçam no nada, sem retorno algum, elechama viuvez.

«Também vou fazer café, queres?», pergunta o dono da casa, nacozinha.

«Pode ser», diz Paixão Leal. «E traz dois copos, hoje preciso devinho.»

Pela primeira vez em muito tempo, Cardoso consegue resgataroutra voz no vazio da sua casa.

Na hora seguinte, dão cabo da garrafa de tinto e do café,estimulantes necessários a Paixão Leal para levar adiante o planoque montou na viagem de comboio. Diz a Cardoso que os vigilantesnão aceitarão o santeiro bruxo como suspeito. O discurso oficial doGoverno, e da PVDE ao seu serviço, com objetivos e dividendospolíticos valiosos, demanda que os judeus sejam os culpados damorte das quatro mulheres. Para provar a maquinação da PVDE,recorda a mentira da cruz de David no peito de Madalena Athaíde,acrescentando que a atriz tinha cabelo loiro e comprido, que era

mais velha do que as restantes vítimas e que não morreuestrangulada.

Cardoso contra-argumenta. Apesar do estratagema do Governopara demonizar os judeus, a PVDE não deixaria um assassino àsolta: «No atentado de trinta e sete, nunca assumiram que tinhamprendido homens inocentes, mas os culpados acabaram com oscostados na cadeia.»

«Não foste tu que me disseste que isto é muito diferente do queaconteceu em trinta e sete? O Rolão Preto precisa de um inimigopara justificar a entrada na guerra ao lado dos alemães.»

Cardoso não está convencido e Paixão Leal propõe:«Caçamos o bruxo. Quando lhe jogarmos a mão, vamos buscar a

Lara Flores. Se a garota o identificar, apertamos com ele forte e feio,até termos uma confissão. Antes que a PVDE possa fazer algumacoisa, informamos os jornais.»

Cardoso dá uma gargalhada.«Mas tu estás bem? Isto não é a América, companheiro. Mesmo

que, de alguma forma — e não faço ideia como —, conseguissesfintar a censura, achas que algum editor arriscava meter a cabeçano cepo dessa maneira?»

«Mas é a verdade.»«O que está em causa é a justiça, não a verdade.»«Não são a mesma coisa?»«Justiça seria apagar o Benjamim do mapa. Sempre é menos um

chanfrado.»«Eu diria fanático.»«Uma pessoa que esteja bem da cabeça não faz o que ele fez às

miúdas.»«Fanático, do latim fanaticus, aquele que se diz inspirado pelos

deuses. Quantas pessoas que estavam bem da cabeça não fizerammal a miúdas em nome de Deus?»

«Estás a confundir loucura com fé.»«Porque é que milhões de pessoas podem acreditar nos

testemunhos dos pastorinhos de Fátima sem questionamentos, mastu achas que o Benjamim é louco? Ele também disse ter visto aVirgem. Também acredita que está a fazer o trabalho de Deus.

Todos os dias, milhões de pessoas seguem crenças e preceitos que,caso não fossem partilhados em grande número, seriam apenas ademência do maluco da aldeia. Um crente não tem de ser doido,mas aquilo em que acredita é uma loucura.»

«Onde é que queres chegar, Americano?»«As pessoas têm de saber a verdade.»«Como as coisas estão, ninguém quer saber a verdade. O que as

pessoas querem é segurança, paz e comida no prato. Queremacreditar num pai que lhes dê a mão e as salve do inimigo, que lhesdiga que estão certas e que lhes resolva os problemas, alguémcomo o Rolão Preto ou o Salazar. Tu próprio o disseste, a máquinaestá em andamento. E um homem sozinho, ainda que armado coma verdade, não a vai parar. Além da vista, também estás zarolho dacabeça? Se queres que o Benjamim pague pelo que fez, temos de oentregar aos vigilantes.» Cardoso acende a última cigarrilha dacaixa. Olha para o copo de vinho de Paixão Leal, a quem nunca virabeber álcool. «Isto é por causa da Rebeca e dos miúdos, não é?Ouve bem: se fizeres o que me estás a dizer, desgraças a tua vida ea deles. Sabes porque deixei de falar com a minha filha? Discutiforte e feio com o marido dela, num almoço de Páscoa, umdesaguisado por causa de política, imagina, e nunca mais meti ospés naquela casa. Nunca mais estive com os meus netos. Às vezes,ficar quieto e calado é a melhor opção.»

«Não te culpabilizes. O teu genro é um filho da puta de umvigilante nazi.»

«Sem dúvida. Mas deixar de ver a minha filha e os meus netos fezcom que ele decidisse não ser um filho da puta de um nazi? A vidanão é feita de escolhas perfeitas. Seja qual for a tua decisão, vaispagar um preço. Fica-te pela escolha que causa menos sofrimentoao menor número de pessoas.»

Luís Paixão Leal, detetive da brigada de homicídios da PIC,casado com uma judia alemã, padrasto de duas crianças, abandonaa casa do colega com um novo plano e um destino: a sede daPVDE. Uma hora mais tarde, sai do edifício na Rua António MariaCardoso sem a certeza de que a sua escolha venha a garantirmenos sofrimento ao menor número de pessoas.

Luís vê as malas no corredor. Embora inocente, pensa noshomens adúlteros que são postos fora de casa. Também consideraa possibilidade de ter apanhado Rebeca a meio de uma fuga,deixando-o para trás como fez com os pais em Munique. Elaespera-o na cozinha. Tem os olhos inchados, mas secos. Há pelomenos uma hora que parou de chorar, quando abriu a primeiramala.

«Temos de sair daqui», diz Rebeca.«Eu sei.»«Não podes deixar-nos sozinhos outra vez.»«Desculpa, devia ter telefonado.»«Vamos para longe, para uma casa isolada no campo, qualquer

sítio que não seja Lisboa, mas tira-nos daqui.»Luís não sabe se o clamor de Rebeca se dirige ao marido ou ao

polícia, se o casamento é amor ou dependência. Também não sabeque, caso insista em ficar na capital, Rebeca lhe dirá que estágrávida, esperando que a paternidade de um filho judeu convençaLuís da premência da partida.

«Já arrumei a tua roupa na mala», diz ela. Uma frase trivial, nãofossem as circunstâncias. Podia ser dita quando o marido e amulher se cruzam no corredor, ele prestes a entrar na casa debanho com o jornal na mão, ela rumo à cozinha, onde preparará assanduíches para a viagem de fim-de-semana à aldeia dos sogros. Oamar habitualmente dos lares portugueses. Em vez de ouvir «Jáarrumei a tua roupa na mala», Luís escuta: Quero-te comigo. Nuncame passou pela cabeça levar os miúdos e não te dizer nada. Fazer-te a mala, num país à beira da guerra, para que venhas comigo esejas o pai dos meus filhos vale mais do que todas as sonatas eodes poéticas, todos os palácios e retratos a óleo inspirados peloamor.

E é pelo que julga ouvir que ele não se demora a dizer:«Ainda bem que fizeste as malas.»

Terça-feira, 27 de agostoDeem liberdade a um preso de dezoito anos, e ele acredita que

tem a vida toda por diante. Levi saiu para procurar comida durante anoite. Nas duas primeiras investidas, pilhou um coelho de criação,ovos nas capoeiras e cebolas arrancadas à terra das hortas daaldeia vizinha. Na terceira incursão, não voltou à casa de pedra.

Encerrem um homem de meia-idade num quarto sem luz e eleacredita que a vida até então foi um desfazer de lealdades e deilusões. Isaías já não espera o regresso de Levi ou sequer aoperação dos sionistas americanos para o tirarem do país.

Zebulom ouve-lhe os passos de bicho enjaulado durante a noite ea tábua do soalho, para cima e para baixo, quando Isaías pega nocaderno com o Index da infâmia em Sefarad. O comandante Isaíasconfunde o ímpeto de sobrevivência de Levi com a derradeiratraição. No rescaldo da guerra nunca há vencedores, só versõesarruinadas daqueles que nela combateram — rapazes inocentes,como Levi, a quem a luta converte em homens como Isaías.

Chamem-lhe o que quiserem lá fora — terrorista, insidioso,assassino —, mas Zebulom não tem dúvidas: o comandante é umlibertador, um resistente e um herói. Ainda há quem prefira umacausa perdida ao borreguismo de não ter causa alguma. É umapena que mais gente não tenha conhecido o amor de Isaías porSefarad, a sua terra ibérica, em vez de apenas o ódio por Salazarou o ressentimento pelo passado. Uma lástima que não sesoubesse a sua admiração por Afonso Henriques, também eleterrorista de guerrilha que fundou um país. Tivesse Isaíasconseguido criar um Novo Israel, e não seria também recordadopelos judeus, dentro de mil anos, como o primeiro rei era pelosportugueses? Não é uma ironia que esses mesmos portuguesesdesconheçam que a lenda do Quinto Império teve origem nosjudeus convertidos? Que foram os cristãos-novos que mantiveramviva a profecia hebraica da chegada do messias, encarnado nafigura de Dom Sebastião?

Zebulom ouve os carros a aproximar-se da casa de pedra eagarra a pistola. Recita alguns versos da Meditação antes doKadish:

«Quero deixar-te algo,algo melhor do que palavras ou sons.Procura-me nas pessoas que conheci e amei,e se não conseguires dar-lhes o que resta de mim,ao menos deixa-me viver nos teus olhos.»As pessoas morrem, o amor não.Por isso, quando tudo o que restar de mim for o amor,dá-me a alguém.»

Zebulom aparece na sala e vê o clarão dos faróis a entrar pelaporta aberta. Isaías, de pistola em punho, afasta-se da escuridão dointerior da casa, para a luz dos disparos de metralhadora, como seavançasse rumo ao nascer do Sol em Sefarad.

Debaixo de uma tábua, num caderno escrito a lápis, deixou o seutestamento, a um tempo protesto e carta de amor.

Quarta-feira, 28 de agostoNuma corrida contra o tempo, Paixão Leal tem de provar a culpa

do assassino antes que este volte a matar. Na Basílica da Estrela, opadre Rafael corroborou que é Benjamim quem organiza asexcursões a Fátima em colaboração com a diocese. Também dáaulas de catequese aos miúdos da paróquia da Lapa. Na sua loja desantos, vende cálices, crucifixos, medalhas de Nossa Senhora,rosários, paramentos para a eucaristia e uma panóplia de artigosreligiosos. Tem a seu cargo a distribuição das hóstias por diversasigrejas e participa com frequência nas atividades religiosas: festas,procissões, venda de rifas, ajuda aos refugiados.

O detetive seguiu Benjamim durante três dias. Viu o carro preto —como atestaram Lara Flores e o dono da Pensão Genoveva —, compneus de série que coincidem com os trilhos fotografados por si noCabo Espichel. No retrovisor, um fio com uma medalha de NossaSenhora. Fotografou Benjamim sub-repticiamente e voltou àmargem do Tejo para mostrar os retratos a Lara Flores.

«É ele.»«Tens a certeza?», perguntou o detetive.«Cuspido e escarrado.»Paixão Leal julga ter reunido o que precisava e segue com as

provas para a redação d’A Verdade. Dizem-lhe que Fialho seencontra numa reunião, no Hotel Duas Nações, sito à Rua Augusta,propriedade de Herr Wiesmann, membro do Partido Nazi. Numasuíte desse mesmo hotel, reside Henry Doebler, chefe da rede deespiões alemães em Lisboa, que o detetive encontra sentado a umamesa do bar, na companhia de Fialho e de Ordoñez, o agente daSeguridad a quem partiu o nariz no Café Chave d’Ouro.

O jornalista pede ao detetive que espere lá fora e, quarenta ecinco minutos mais tarde, quando já anoiteceu, Ordoñez sai para arua com os óculos escuros que roubou a Paixão Leal, presente deDomingos ao sobrinho no adeus à América. O detetive engole aafronta sem protestos, servil e alquebrado como foi na visita à sededos vigilantes. Tem um enguiço no coração e a honra por terra, nãolhe restam outras saídas.

Fialho despede-se do espanhol, que desce a Baixa de óculos

escuros, assobiando um paso doble após o par de bandarilhascravado no lombo do detetive. O jornalista convida Paixão Leal auma caminhada junto ao rio para refrescar a cabeça do uísque edesmoer o almoço que durou até ao jantar. O detetive conta-lhe ahistória de Benjamim, descreve o modus operandi ritualista doassassino e quem eram as vítimas. Expõe-lhe as provas, oferece-separa que Fialho converse com Lara Flores e Caveirinha, faz umjuramento quanto às boas intenções que o levaram ali.

No regresso a casa, Paixão Leal passa no Largo de São Paulo e,na montra da loja do alfaiate David Abecassis, vê um papel queanuncia: «Trespassa-se.» Cruza-se com agentes da Gestapo e vêcomo se multiplicaram os postos militares nas ruas da cidade.Pedem-se os documentos aos estrangeiros e, nos cafés, os clientesvagam as mesas, oferecem o lugar aos soldados do Exércitoespanhol. A PVDE já embarcou judeus em comboios de regressoaos países de origem. Um deles tentou fugir na estação do Rossio efoi baleado na plataforma. Uma família de Colónia suicidou-se, numquarto de Alfama, recusando voltar para a tutela das SS nazis.Rebeca não quer sair de casa nem deixa os filhos brincar na rua.

No caminho, o detetive ordena as memórias na tentativa deabrandar os nervos e a incerteza. Define como critério rememorativoas frases que justificam as suas escolhas dos últimos dias.

«Às vezes, fazer a coisa certa obriga-nos a sentir a coisa errada»,disse-lhe o tio numa floresta americana coberta pela neve.

Só quando estiveres no meu lugar saberás daquilo que és feito,avisaram os olhos de Marta-Malka, a prostituta judia num quarto deAlfama.

«Fica-te pela escolha que causa menos sofrimento ao menornúmero de pessoas», aconselhou a bonomia do sábio Cardoso, comum copo de vinho apoiado na barriga.

Então, algo descarrila no mecanismo das lembranças, umamemória mal alinhada que salta a ordem cronológica à guisa desentença: em Fátima, Caveirinha contou-lhe aquilo com queBenjamim disse ter sonhado no seminário um dia antes da últimavisão de Lúcia. A Virgem Maria avisara o rapaz: «A guerra nãoacabou. Não acabará nunca.»

Quem sabe, pondera o detetive, essa não foi a única vez que aimaginação do bruxo acertou uma profecia.

Quinta-feira, 29 de agostoO melhor do mundo, para distrair os adultos do rasgão de uma

despedida, são as crianças. A felicidade de Mathilda e de Chris, aover o hidroavião Yankee Clipper nas águas do Tejo, grava-se nodepartamento «A última vez que» das memórias de Paixão Leal. Nabase marítima de Cabo Ruivo, o detetive carrega as malas deRebeca e, na consciência, esconde a morte dos últimos partisansjudeus, a vitória de Rolão Preto sobre os seus colaboradorestraídos.

Eis a primeira escolha do detetive: no dia vinte e quatro deagosto, entrou na sede da PVDE e pediu para falar com FélixAranha, chefe da secção internacional. Disse-lhe que a sua mulher,um quarto judia, voluntária na Cozinha Israelita, ouvira doisrefugiados a falar, no refeitório, sobre os partisans que tinhammatado Salazar. Rebeca conseguira perceber as palavras«Biscaia», «casa de pedra», «esconderijo». Os homens não tinhamvoltado a aparecer e, entretanto, o Estado mandara fechar aCozinha Israelita. O detetive explicou que temia pela vida da mulhere das crianças, tanto pela forma como os judeus começavam a sertratados em Portugal como pelas possíveis represálias dos partisanscaso descobrissem que Rebeca delatara ao marido polícia alocalização dos mercenários. Clarificou que estava ali por dever eamor à pátria, não queria retirar dividendos pessoais, mas:

«O senhor é casado, tem filhos. Na minha situação, não arriscariaa inconveniência, até o abuso, de implorar pela vida da suafamília?»

O capitão Félix Aranha, menos interessado no beija-mão real dodetetive do que em rematar o plano de Rolão Preto, antecipava oselogios do líder, uma promoção, condecorações, o seu nome parasempre conhecido como aquele que decapitou a víbora hebraica.Caso aquilo que o detetive lhe dizia se confirmasse, pouco lheimportava o acaso improvável de Rebeca ter ouvido a conversa naCozinha Israelita ou a autenticidade das motivações de Paixão Leal.No entanto, algo o intrigava no zarolho suplicante.

«Só não percebo porque não me pede para si o mesmo que pedepara a sua família», diz Félix Aranha.

«Não posso voltar à América. Mas tenho um tio que vive em NovaIorque. Sei que vai cuidar da Rebeca e dos miúdos.» A verdade,aprendera recentemente, era um artefacto num cofre que ninguémqueria abrir. Da honestidade confessional, contudo, podia valer-se,porque era redentora das faltas pessoais e induzia a compaixão dopúblico. Se confessasse algo grave, talvez Félix Aranha acreditasseem tudo o resto. Assim, Paixão Leal contou o que se passara nomês de dezembro de 1933, como prendera o irmão e roubara osbarris com ópio para que a máfia não matasse o tio.

«Você mete-se em cada coboiada.» Félix Aranha estava entretido,como o comensal que bebe um aperitivo antes que o chamem paraa sala de banquetes onde lhe servirão uma bandeja de partisansjudeus. «Isso que me contou pode significar a sua expulsão daPIC.»

«Se tiver de ser, que assim seja. Só lhe peço que deixe a minhamulher ir embora com as crianças.»

«O que implica pedir um favor à Embaixada americana. Sabecomo é difícil arranjar um visto de entrada?»

O pior do mundo, para os adultos, é a alegria das crianças queestão prestes a partir. Mathilda e Chris não entendem asimplicações de entrar num avião rumo a Nova Iorque. Julgam que,em breve, estarão de novo com Luís. A expectativa de levantar voono pássaro aquático, com asas de prata e quatro hélices, deixa-oselétricos e impacientes. Correm pelo pontão de madeira, passam àfrente dos viajantes, são recebidos pela hospedeira americana.

Paixão Leal rejeita a ajuda dos bagageiros fardados e leva asmalas para a entrada do avião. Um homem ocupado não tem tempopara as emoções. Rebeca abraça-o, corpo com corpo, apego edesapego, o medo injustificado de que o feto mínimo que tem dentrode si lhe chute a barriga, alertando o pai da sua existência nomomento da separação.

Na noite em que Luís chegou a casa e lhe disse que tinha trêspassagens para a América, Rebeca ia contar-lhe da gravidez, usá-lacomo prova definitiva da necessidade de saírem de Lisboa. Mas,quando o marido lhe lembrou que era um homem procurado naAmérica e que teria de ficar em Lisboa, Rebeca não conseguiu dar-

lhe a notícia. Não queria impor-lhe um desgosto maior. Tambémtemia que, ao saber-se pai, Luís mudasse de ideias e lhe pedissepara não embarcar. Rebeca não podia continuar na Europa.Prometera que não faria parte dos judeus que hesitaram em partir.Todos eles arrependidos, presos ou mortos. Todas as mães sem osseus filhos.

«Escrevo-te assim que chegar», diz Rebeca.«É um até já, não é um adeus», diz Luís, sentindo-se frívolo como

uma secção de horóscopos. «Quando isto terminar, arranjamosmaneira de estar juntos.»

A guerra não acabou. Não acabará nunca.Pela escotilha na fuselagem, Chris e Mathilda dizem-lhe adeus,

tapam a linha de visão do detetive, impedindo-o de olhar mais umavez para Rebeca. Ela cerra as pálpebras quando o Yankee Clipperdesliza sobre o Tejo e levanta voo. Não arrisca olhar o que deixapara trás. Paixão Leal costumava levar Chris e Mathilda aomiradouro de Santa Catarina para ver o Boeing a afastar-se rumo àAmérica. Chris, com quatro anos, não conseguia perceber ainda arelação entre distância e tamanho. Agora, em pleno voo, dentro doaparelho que apenas tinha visto ao longe, pergunta à mãe: «Quandoé que este avião fica pequenino como os outros que víamos com oLuís?», com a mesma lógica implacável com que em temposquestionara o padrasto: «Os homens que só têm um olho chorammenos do que os outros?»

«Claro», respondera o detetive. Quem o visse agora, no pontãode madeira, saberia que tinha mentido a uma criança.

Domingo, 1 de setembroO detetive Cardoso entra na casa da filha sem estar seguro de

que há males que vêm por bem. Pode abraçar os netos pelaprimeira vez em muito tempo, é certo, mas também terá de severgar ao genro, acreditando que trabalha a favor do menorsofrimento para o menor número de pessoas. Senta-se diante deFélix Aranha e inicia a exposição com um pedido de desculpas.Sente muito ter desrespeitado o marido da filha, pai dos seus netose ilustre capitão do regime.

«Portei-me como uma criança birrenta», diz. «Mas aprendi a lição,deixo a política para quem sabe.» Rola como o seu rafeiro nacarpete de casa, de barriga para cima, mostrando quem lidera amatilha. Só então implora ao genro que interceda a favor de Rebecae dos filhos.

Na chegada a Nova Iorque, a família Kraus ficou detida naalfândega porque o nome da mãe constava de uma lista de pessoasprocurada pela Justiça alemã. Em 1935, Rebeca desaparecera deMunique com os filhos, sem autorização do pai, Walbert Werner,funcionário do Ministério da Economia do Terceiro Reich, querecusara sair da Alemanha a pedido da mulher.

«Pelos miúdos, não posso fazer nada», diz Félix Aranha. «AEmbaixada alemã em Washington já pressionou o Departamento deEstado a enviá-los de volta para o pai. Quanto à mulher do seucolega, segundo me informei, ou fica nos Estados Unidos, sem osfilhos, ou regressa a Munique e será acusada de rapto. Não fossemas más notícias que chegaram de Londres esta manhã e talvezconseguíssemos trazê-la de volta para Lisboa. Mas a partir de hojejá ninguém entra ou sai de Portugal.»

O fracasso da visita leva Cardoso a ponderar uma tirada ríspidaou viperina. Talvez pudesse perguntar que judeu quereria estar emLisboa agora que a Inglaterra declarou guerra a Portugal e RolãoPreto anunciou um tratado com os países do Eixo. Cardoso escutaos passos dos netos no corredor. Os gritos de quem é perseguidonum jogo de apanhada. Para alguma coisa terá de valer ahumilhação, depois de tanto tempo sem dirigir a palavra ao facínora

que tem no escritório de casa a fotografia que tirou com JosephGoebbels após o enterro de Salazar.

«Muito obrigado, desculpe o incómodo», diz Cardoso, levantando-se da poltrona.

«Porque não fica para jantar com os seus netos? Eles não têm depagar pelas nossas desavenças. É o único avô que lhes resta.Tenho a certeza de que iam gostar que ficasse.»

Cardoso pensa em Paixão Leal, que espera em casa pelasnotícias sobre Rebeca. Não há pressa em dizer-lhe que, afinal, elanão era viúva ou que permanecerá presa em Nova Iorque. Cardosopensa em Rebeca, que foi separada dos filhos e talvez nunca voltea abraçá-los. Pensa na sua mulher, que não viu os netos crescer.Pensa na guerra que aí vem e de como os deuses são indiferentesaos mortais. Cardoso bebe muito, fuma com o afã de umapetroquímica em hora de ponta, tem os interstícios do coraçãoentupidos e os pulmões calcinados. Quanto tempo lhe resta com osnetos? E se este for o último encontro? Como pode um homem sófrear sozinho a guerra que tantos parecem desejar lá fora?

Cardoso olha para a farda de gala da PVDE que o genro vestiupara a audiência com Rolão Preto nessa manhã.

Felizes os que têm espírito de pobres, porque deles é o reino doscéus.

Cardoso olha para o reflexo da sua cara nos vidros da cristaleira.Felizes os humildes, porque terão como herança a Terra.Com uma vénia subtil, o pobre e humilde Cardoso diz:«Tenho todo o gosto, muito obrigado pelo convite.»

Segunda-feira, 2 de setembroO sangue. Sempre o sangue. Carmesim, gomoso, líquido, em

crostas, impossível de limpar. O sangue que feriu as águas nospoços, nos tanques e nos rios do Egito. O sangue nas guelras dospeixes e raiado nos olhos dos homens enfermos. O sangue naschagas de Cristo. O sangue pisado dos hematomas do padreMartinho. O sangue nas coxas da mãe. O sangue que pingava dacabeça de Lobato para a sua cara. O sangue da menstruação dasmulheres. Tantos anos passados e ainda tem pesadelos nos quaismorre estrangulado pelas mãos ensanguentadas de um gigante.

Benjamim Benavente acorda espavorido, o peito nu e grudento desuor, a boca com um travo ferruginoso. Como sempre, procede àsabluções matinais em jejum, antes de rezar. Esfrega-se com água esabão, procurando suprimir da pele a imundície dos sonhos. Vesteuma túnica branca e celebra o milagre da transubstanciação — «Istoé o meu corpo, que é entregue por vós» —, orando de joelhos atéque a hóstia se desfaça no céu da boca.

Depois de purificar-se, abre o fundo falso da cómoda e admira orelicário: um frasco de clorofórmio e a roupa interior de Elvira, daSanta do Cabo, da Judia da Sé. Pega nas cuecas de Lurdes e, pelaenésima vez, vai lavá-las na pia, iniciando o processo da excitaçãodo espírito e da carne, recordando o desnorte da criada quando aencontrou na rua, agarrada a uma cesta, debaixo da chuva do fimde tarde, em lágrimas pela morte do doutor Salazar e com pressa devoltar ao palacete. Conhecia-a da paróquia da Lapa e dasperegrinações a Fátima. Estivera com ela uns dias antes, a entregarroupa aos refugiados na estação do Rossio, quando Lurdes,dengosa e oferecida, se inclinara para um pintas armado aopingarelho, ostentando o mesmo artifício das putas para persuadirclientes.

No final da tarde de treze de julho, após a fuga de Lara Flores emMonsanto na noite anterior, Benjamim quase não reconheceuLurdes por causa do cabelo curto. Foi essa devassidão do penteadoque o levou a oferecer-lhe boleia de automóvel.

«Tenho só de entregar umas hóstias nas Necessidades e depoisdeixo-a em casa.»

Não tinha consigo a parafernália da eucaristia ou um mantobranco. Mas o cabelo de Lurdes, molhado e libidinoso, era umaprova da impureza da rapariga. O pescoço dela ali tão perto, tãofrágil. Para quê esperar pela noite e procurar uma prostituta,arriscando-se numa cidade invadida por polícias após o atentado aSalazar? Estacionou no miradouro das Necessidades. Tinha paradode chover. Convenceu-a a entrar na igreja.

«Não me sinto seguro em deixá-la aqui sozinha.» O parqueestava fechado, a sacristia vazia. Benjamim pousou uma caixa dehóstias em cima da mesa e pediu a Lurdes que o acompanhasse.«Tenho de entregar o resto da encomenda na capelinha do jardim.»

No carreiro de pedras, entre as árvores, agarrou-lhe o pescoçopor trás, os polegares contra a nuca, os restantes dedos, ossudos eenormes, pressionando-lhe a garganta. Lurdes esperneou na lama earranhou-lhe a cara, mas era tão pequena, uma cria de andorinhacomo aquelas que tinha visto num ninho do palacete. Benjamimesmigalhou a cartilagem da traqueia e deitou Lurdes nas ervas.Abriu-lhe a boca, depositou-lhe uma hóstia na língua e disse:

«Corpo de Cristo, já tens Deus dentro de ti.» Benjamim: oemissário da Virgem, o primeiro e único vidente de Fátima, o arcanjobranco no exército do Senhor. Não tinha terço ou medalhas, nãopodia sequer lavar o cadáver para que se apresentasse impoluto noDia do Juízo Final. Contentou-se em entrelaçar os dedos de Lurdese benzeu-se: «Cordeiro de Deus que tiras o pecado do mundo, tempiedade de nós.» Tocou os arranhões na cara e viu sangue nasmãos. Sempre o sangue.

Já não restam vestígios dessas feridas. Ainda assim, lava o rostocom a água da torneira da pia, como na noite em que chegou a casacom as marcas das unhas de Lurdes. Põe as cuecas de mulher asecar no toalheiro e desce para a loja, no rés-do-chão. Costumapassar as manhãs nas traseiras, na oficina onde esculpe os santos.Durante a tarde, ajuda na loja, com dois empregados, ou recebe asvisitas na pequena divisão em que dá consultas de vidente. Onegócio cresce com a Segunda Reconquista Cristã e a entrada naguerra. Há mais pessoas a comungar na missa. Vendem-se maishóstias, terços para a nova cruzada do rosário, santos de olhos

tristes que terão morada em altares domésticos, diante dos quais asmães rezam para que os filhos não sejam requisitados peloExército. Com a afluência de rapazes aos seminários, movidos pelacitação espiritual da época — ou apenas para escapar à tropa —,dentro de uns anos terá mais padres a quem vender batinas,cabeções, dalmáticas e capas de asperge. Também aumentaram asmarcações daqueles que recorrem ao seu portento mediúnico. Emtempos ambíguos e descontrolados, o rebanho procura a segurançado que é mágico, a certeza do que é sacrossanto.

Benjamim pressente que a guerra é o primeiro indício doapocalipse. A atribuição dos homicídios das mulheres aos judeus,pela PVDE, prova que o Senhor deseja que Benjamim prossiga acomissão que lhe delegou. No final das consultas, cita Jesus, nosevangelhos, falando sobre o fim do mundo: «O Sol ficará escuro e aLua deixará de brilhar. As estrelas cairão do céu e os poderescelestes hão de estremecer. E todos os povos da Terra hão deromper em choro e verão o Filho do Homem que vem sobre asnuvens com poder e grande glória. Garanto-vos que todas estascoisas hão de acontecer antes de desaparecer esta geração.»

Esta é a hora. Benjamim tem de desencardir o mundo antes doregresso de Jesus. Tem de liderar os escolhidos e seguir osensinamentos do Messias: «Quanto àqueles meus inimigos que nãoqueriam que eu fosse rei, tragam-mos cá e matem-nos diante demim.» Benjamim é o continuador do espírito guerreiro de Cristo, quedeixou bem claro: «Não pensem que vim trazer a paz à Terra. Nãovim trazer paz, mas a guerra. Vim, de facto, trazer a divisão entrefilho e pai, filha e mãe, nora e sogra. Os inimigos de uma pessoaserão a sua própria família. Aquele que amar o pai ou a mãe maisdo que a mim não é digno de mim; e o que amar o filho ou a filhamais do que a mim não é digno de mim.»

Há anos que Benjamim Benavente esperava o desvelar daprofecia final. Responde ao mesmo chamamento que levou oscruzados a conquistar Jerusalém. Com cada morte de uma mulherimpura, descontamina-se da mácula que lhe foi imposta pelo padreMartinho e renasce mais forte na sua virtude, iluminado pela

fulgurância divina, clarividente e certo da missão que lhe cabe.Fanaticus, o homem inspirado pelos deuses.

Esta manhã, não trabalha na oficina. Tem hora marcada com umjornalista que o quer entrevistar sobre as profecias, as visões e achegada do Quinto Império. Durante quase duas horas, na sala deconsultas, Jorge Fialho escuta a grandiloquência de Benjamim, aquem uns quantos admiradores chamam o primeiro vidente deFátima.

O bruxo santeiro fala do Milagre de Ourique, a génese do QuintoImpério, quando Jesus apareceu a Dom Afonso Henriques antes dabatalha e mostrou preferência pelos portugueses na contenda,oferecendo ao jovem príncipe a vitória e o reino de Portugal.Benjamim fala de Bandarra, o sapateiro místico que converteu osseus sonhos em trovas messiânicas, garantindo a vinda d’oEncoberto e o domínio da cristandade lusa em todo o mundoconhecido e por conhecer. Fala do padre António Vieira, quereiterou em prosa os versos do sapateiro Bandarra e que tambémalvitrou para os portugueses a fundação do reino universal deCristo. Fala até de um poeta menor, morto há poucos anos, queescreveu o poema Quinto Império num livrinho intitulado Mensagem,distinguido com o segundo lugar num concurso do Secretariado dePropaganda Nacional. Ao contrário dos predecessores literários,Benjamim avisa que o Quinto Império não acontecerá na Terra, masno Reino dos Céus, após o apocalipse que já se iniciou com aguerra.

No final da conversa, Fialho pergunta-lhe:«Também sabe quem vai ganhar o próximo campeonato de

futebol?»«O Sporting, claro.» Riem-se e apertam as mãos. «Quando é que

sai o artigo?»«Nos próximos dias.»«E não vai fazer-me o retrato?»«Mando cá um fotógrafo ainda hoje», diz Fialho, que deixou o

trato com Paixão Leal pendente de um encontro com o bruxo,porque queria avaliar o comportamento de Benjamim. Face às

provas apresentadas pelo detetive e aos delírios de grandeza dovidente, não restam dúvidas ao jornalista.

No resto do dia, Benjamim verifica o inventário da loja e faz trêsconsultas. Ao marido que desconfia da fidelidade da esposa,recomenda que vá para casa e que pegue numa peça de roupa damulher, deixando-a ao lado de um copo com água com um ovo crulá dentro. Deverá mover o copo à volta da cabeça e dizer: «Emnome do Anjo de Portugal e da Virgem Maria, pergunto-te: a minhamulher anda a enganar-me?» Depois há que abrir um furo na cascado ovo.

«Acenda duas velas brancas e espere três horas», diz o bruxo.«Se a clara do ovo estiver no fundo do copo, a sua mulherprevaricou.»

Esta tarde, Benjamim também estabelece a comunicaçãosobrenatural entre uma mãe e o espírito do filho morto. Na últimaconsulta, receita dois unguentos e um elixir, à venda na loja, aorapaz que tem os dedos deformados, mas que pretende alistar-separa a guerra.

Os empregados largam o serviço pouco depois das sete.Benjamim vai trancar a porta da loja e vê uma parelha de brigadistasno outro lado da montra. O mais alto, com pernas de aranhiço enariz de tucano, faz-lhe sinal para abrir e questiona:

«Benjamim Benavente?»«Quem quer saber?»«Gustavo Soares Pereira, Brigadas da Decência.» Entra na loja e

estuda a mercadoria, pega num santo na prateleira. «Belo disfarceque arranjou com este estabelecimento, senhor Benavente. De diafinge ser um homem santo, mas assim que cai a noite…»

«Diz ao que vens. Caso contrário, põe-te a mexer», disparaBenjamim.

Não pensem que vim trazer a paz à terra. Não vim trazer a paz,mas a guerra.

«Bruxaria, burla, mas isso interessa-me menos.» Pereira prepara-se para debitar as palavras que Jorge Fialho lhe ensinou, ao final damanhã, quando o diretor d’ A Verdade e estrela radiofónica doregime agraciou o brigadista com a sua presença no Palácio Foz:

«Segundo os artigos septuagésimo e septuagésimo primeiro docódigo penal, determina-se que são aplicáveis medidas desegurança, como o internamento em manicómio criminal ou colóniade trabalhos, a todos aqueles que se entreguem habitualmente àprática de vícios contra a Natureza.»

«Estás a falar de quê, garoto?», diz Benjamim, arrancando osanto da mão de Pereira.

«De paneleiragem», responde o outro brigadista.No escritório mínimo de Pereira, a fama de Fialho teria chegado

para que o brigadista aceitasse a missão. Mas o repórter, um puristado engano, disse a Pereira que este fora escolhido pelo seu serviçoà Pátria e pelo caráter irreprochável, atestado pelos superiores.Usou o secretismo como engodo:

«Isto são vontades que vêm de cima, só uns poucos é quesabem, e o senhor, caro brigadista Soares Pereira, é um deles.»Fialho disse que o regime estava a limpar a sociedade dossodomitas. Para isso servia a Mitra e a Colónia de Trabalho doPisão: «Não bastavam os judeus e os comunistas, agora tambémestamos infiltrados por invertidos.» Benjamim Benavente era umdeles. O repórter tinha provas de que o bruxo usava as consultas eos falsos poderes de vidência para convencer rapazes e raparigas aparticipar em bacanais de adoração ao Diabo. A ideia de acusarBenjamim de homossexualidade, entregando-o às Brigadas daDecência, partira de Paixão Leal. Fialho, prosador sensacionalista,acrescentara-lhe o satanismo orgiástico.

«Mas o que vem a ser isto?», pergunta o bruxo, na sua loja.«Toca a mexer, vá», ordena Pereira, empurrando-o.Benjamim resiste, o brigadista puxa do Pau de Franco no cinto e o

vidente atinge-o com o santo que tem na mão. A cabeça da estátuasolta-se do corpo e rola pelo soalho. O outro brigadista golpeia acara de Benjamim com o cassetete, o bruxo soçobra e cai. Pereirapontapeia-lhe o estômago, dá-lhe com o Pau de Franco nascostelas uma e outra vez.

Há certas alturas, em certos lugares, em que podemos fazer tudo.Benjamim sente a mesma falta de ar de quando Lobato lhe

apertou o pescoço. E o sangue. Sempre o sangue. O sangue que

escorre da sua cabeça e da cara de Pereira. O sangue que lheinunda os olhos e cega toda a Humanidade. O sangue das pragas edo pecado original das mulheres castigadas por Deus com amenstruação. O sangue de Jesus Cristo aspergido na pele dossoldados romanos que o chicotearam e o levaram para a cruz, comofazem agora os brigadistas com Benjamim. Os pingos de sangue natesta são a sua coroa de espinhos. Esta é a Via-Crúcis do primeirovidente de Fátima. A Paixão de Benjamim. Cai a primeira vez, comoo Messias. Mas não encontra a sua mãe nem uma mulher namultidão lhe limpa a cara. Cai uma segunda e terceira vez, comoJesus, antes que o metam num carro e o levem para a Mitra, ondelhe tiram as vestes, como fizeram ao filho de Deus. O seu martírionão termina na cruz, mas na cela onde o irão buscar, nos próximosdias, para as sessões de tratamento com choques elétricos. Oclangor do metal da porta, ao fechar-se, parece-lhe um martelo abater nos pregos.

Benjamim ajoelha-se no cimento rugoso e, como Jesus, pergunta:«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»

Quarta-feira, 11 de setembroÉ uma lápide modesta e barata. Talvez alguém passe por ela,

dentro de muitos anos, compadecendo-se um instante ao perceber,nas datas de nascimento e de morte, que Maria da ConceiçãoFernandes viveu apenas dezanove anos. Não saberá que a raparigaera chamada Santa do Cabo nos jornais e pela dupla de políciasque pagou a meias a campa onde deposita um ramo de flores.Cardoso e Paixão Leal tiram os chapéus, ficam em silêncio, já nãoos detetives numa diligência, sequer os homens arrastados pelacorrente da História ou os cidadãos de um país em mais um capítulode uma guerra santa. Muitos morrerão no conflito, haverá enterrosmilitares com salvas fúnebres e bandeiras a meia haste, construir-se-ão monumentos ao soldado desconhecido. Ninguém recordaráMaria da Conceição Fernandes, Lurdes dos Santos, Helena Brus,Elvira Paiva ou Madalena Athaíde. Prostitutas, criadas, refugiadasconvertidas, amantes por conta e atrizes à mercê da manipulação eda violência dos homens, todas elas praticantes interrompidas dasobrevivência possível.

Junto da campa, os detetives colocam os chapéus na cabeça.«Hoje vou tocar no Retiro da Severa», diz Cardoso quando se

encaminham para a saída. «Porque não apareces? Vouacompanhar uma miúda de Alcântara, acabou de se estrear noParque Mayer, chama-se Amália Rodrigues.»

«Canta alguma coisa de jeito?», pergunta Paixão Leal.«A ver vamos, como diz o cego», responde Cardoso, que, no

regresso a casa, vai todo o caminho a assobiar o Fado dadespedida.

Sexta-feira, 13 de setembroNa praça do Terreiro do Paço, Joaquim Paixão Leal, também

conhecido como Inácio Capote, estacionou o Mercedes com duasrodas em cima do passeio. Durante a espera, saiu do carro com oDiário de Lisboa e encostou-se ao capô. Na coluna da direita, naprimeira página, lê que nas ruas de Paris se «veem menos soldadosalemães. Aumentaram os turistas. Alguns são de categoria. Hitler, omarechal Goering, Goebbels, Himmler e outros dirigentes nazisvisitaram já os principais monumentos da capital francesa.» Nasrestantes breves, Joaquim fica a saber que em Paris «não há meiasde seda. Desapareceram das lojas como por encanto. É uma dasrazões por que se generaliza cada vez mais o hábito da perna aoléu». Em Itália começou o racionamento de sabão, duzentos gramaspor cabeça a cada mês. Em Hollywood, os artistas britânicospreparam-se para regressar a Inglaterra e preencher as fileirasmilitares.

No centro da primeira página, num editorial enorme a duascolunas, com o título «Londres-Berlim», pode ler-se:

«A guerra não pára, como não pára a descarga elétrica ou amarcha do nosso destino. O doutor Gregorio Marañon, que há trêsdias publicou um belo artigo no Diário de Notícias, respeitante àamizade luso-espanhola, reconhece, com simpatia e justiça, quePortugal, na trágica hora que atravessamos, queda um exemplodigno de impor-se à glória universal.

»Nós supomos habitualmente que os homens obedecem asentimentos nobres, a generosos sacrifícios pelo bem dos seussemelhantes. Não é assim, porque a nossa natureza manchada oucorrompida não se deixa governar por belos pensamentos. A guerravive dentro de nós como o fogo nos vulcões ou a raiva nos cães.»

Joaquim Paixão Leal interrompe a leitura ao ouvir uma voz derepreensão no passeio. Levanta a cabeça e vê o polícia de giro queescorraça uma criança engraxadora. Diz a lei que na metrópole doimpério não se pode andar descalço. Os miúdos contornam aproibição enfaixando os pés com ligaduras. Este nem trapos velhostem para simular umas alpargatas.

Joaquim regressa à leitura do jornal. Desde que se noticiou a

morte do último comando de partisans numa casa na Biscaia, entreCascais e Sintra, divulgando-se também o complô judeu para roubaraos portugueses um pedaço de Angola, os periódicos largaram ocaso. Desmascarados os inimigos da soberania nacional, queagiram sob patrocínio britânico, os matutinos e os vespertinosdedicam-se a elevar o moral da gesta lusitana em tempo deSegunda Reconquista Cristã.

O polícia acerca-se. Joaquim antecipa uma abordagem rude porcausa do automóvel mal estacionado. Em vez disso:

«Bela máquina», diz o agente.«Muito obrigado.»«Mercedes, ninguém faz carros como os alemães.»Apesar da guerra, da mentira coletiva, da «trágica hora que

atravessamos», o país também segue com o viver habitualmente dodefunto doutor Salazar. Os polícias continuam severos com osmiseráveis descalços e indulgentes com homens que conduzemMercedes.

Joaquim volta ao jornal. A Grande Exposição do MundoPortuguês reabre após reformas e esta noite o Teatro Variedadesapresenta a revista Bailarico. No Cinema Capitólio poderá ver-seSangue de cossaco e no Éden passa a fita Gerónimo. Nas restantespáginas, Joaquim fica a saber que há festa em Ferreira do Zêzere eperegrinação em Fátima; um penhorista foi preso e uma pequenadose de sais Kruschen Kruschen, todas as manhãs, é remédio santopara o reumatismo. Timóteo Merendeiro, o pastor que disparousobre o partisan no cemitério onde mataram Salazar, estárecuperado dos ferimentos e será condecorado por Francisco RolãoPreto.

«Vamos, mano?»«Vamos», responde Joaquim. Fecha o jornal e entra no carro.

Luís senta-se no banco do passageiro e passa-lhe o telegrama queacaba de levantar nos correios.

«O tio Domingos ainda não conseguiu tirar a Rebeca da prisão.»«Mas, se alguém conseguir, é ele, I’ll be damned. O velho sempre

foi tramado.» Joaquim sorri com a confiança dos malandros que

sabem como burlar as regras. Liga o motor e arranca. «E osmiúdos?»

«Já estão na Alemanha, com o pai.»A última vez que os irmãos Paixão Leal estiveram juntos, Joaquim

esperou no miradouro de São Pedro de Alcântara, segurando umcigarro por acender. Numa cidade privada de iluminação pública eaterrorizada com a eventualidade dos bombardeamentos britânicos,uma fagulha era motivo de sedição. Joaquim não precisou de luzpara identificar a concludência do vulto negro que saiu da Rua daGlória: era o mensageiro das más notícias, aquele que escolhia odestino dos outros.

«Não tens saudades de Nova Iorque?», perguntou-lhe Joaquim,olhando para as encostas apagadas de Lisboa. No Tejo, umbarquinho de pesca artesanal piscou uma gambiarra, que logo seapagou.

«Nova Iorque é para os muito novos ou para os muito ricos. Nãosomos uma coisa nem outra», disse Luís.

Joaquim apertou o varandim do miradouro como se fosse aamurada de um navio em doca seca:

«Já Lisboa é para aqueles que não podem ir a lado nenhum.»«Ao menos estamos vivos.»Joaquim acendeu o cigarro, ponteou o céu com a brasa e imitou o

assobio das bombas que ouvira cair em Barcelona durante a guerra.«Até estarmos mortos.»Luís informou o irmão de que, nessa mesma noite, ofereceria os

partisans a Félix Aranha, pedindo-lhe em troca a liberdade deRebeca. Também disse que nunca mencionaria a participação dofacilitador, conhecido como Inácio Capote, no plano para a extraçãodos judeus.

Joaquim ofereceu-lhe a cigarreira aberta.«Talvez seja uma boa altura para voltares a fumar.» Sentaram-se

num banco corrido e deram cabo dos cigarros em silêncio. Nuncatinham conversado sobre o soco na margem do Hudson ou a prisãoem Nova Iorque. Seria vã qualquer tentativa de Joaquim paradissuadir Luís de entrar na sede da Polícia política. E, no entanto,

pela primeira vez, o mais novo sentiu na voz do primogénito adúvida sobre aquilo que estava prestes a acontecer.

«Estou a fazer a coisa certa.» Menos uma afirmação do que umapergunta. Luís não fora ali apenas para comunicar o inevitável.Procurava o entendimento da única pessoa da família que lherestava, um desafogo para a solidão. «Não vais ter problemas comas pessoas que te contrataram para sacar os judeus daqui?»Esmagou a beata com o calcanhar e levantou-se.

Joaquim esticou a mão para que Luís o içasse do banco:«Se tiver, tu ajudas-me.»E agora, que já chegaram a Cascais no Mercedes de Joaquim, os

índios Passion brothers avançam junto da costa como peloFaroeste, procurando ainda o antídoto para o feitiço que decreta: nodia em que um morrer, o outro morre também.

Passam pela Boca do Inferno num silêncio de visita ao cemitério.Dois de janeiro de 1920. Um puxão na roupa da cama, o pai desamarra e boina, uma brasa de cigarro a palpitar no breu do quartoe a apagar-se na escuridão do mar. Luís abre a primeira memória,mas desta vez entrega-se ao acaso, esquece o controlo, deixandoque seja o caminho a descerrar a próxima recordação.

Passam pela casa dos Athaíde. Treze de setembro de 1913. Luísa fugir do enxame de vespas para os braços do pai.

Passam pela praia do Guincho, onde os exércitos português eespanhol defendem o areal atrás de uma linha de minas e decolossais estruturas em aço. Cinco de junho de 1915. «Não sejasmaricas, pá», e ondas, pirulitos, a água salgada pelo nariz acima.

Passam pela vila da Malveira. Catorze de abril de 1918. Luís eJoaquim a roubar laranjas num pomar e o dono da fruta a persegui-los com uma enxada; mas os Paixão Leal são velozes e riem davagareza do velho e nunca vão morrer.

Passam pela estrada de terra que leva à Biscaia e à casa depedra onde morreram os partisans na madrugada de vinte e sete deagosto de 1940, quando Luís e Rebeca, no quarto da Travessa doJasmim, faziam amor pela última vez. O cheiro citrino das têmporasdela. Aos pés da cama, a mala dele, que não iria a lugar algum. A

fissura que os separava nos lençóis desapareceu, Rebeca colou-seao marido e segredou:

«I’m sorry.»Ele respondeu:«So am I.»Atravessam as montanhas da serra, passam por árvores e

sombras, engolem curvas atrás de curvas até que o carro entra numcarreiro que desemboca numa pequena casa branca manchadapela maresia. Joaquim tira os baldes de tinta branca e as brochasda bagageira. Depois de almoço, irão caiar as paredes.

O rugido parece-lhes um maremoto. Olham para a costa e veemos aviões da Luftwaffe a rasar as escarpas. A suástica na parteinferior das asas e na cauda. Muito em breve, estes caças terão deintercetar os bombardeiros britânicos que venham incendiar Lisboa.

Luís abre a porta e diz:«Pode-se?»«Estão atrasados», responde Bernardina. A mãe já pôs a mesa e

tira a panela do lume. «Vá, sentem-se, que isto frio não presta.»Os filhos obedecem e Joaquim vai servir-se. Bernardina dá-lhe

uma palmada na mão.«Nesta casa ainda há regras.» A mãe baixa a cabeça e fecha os

olhos: «Nós Vos agradecemos, Senhor, pelo alimento que tiveste abondade de nos dar. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.»

Joaquim sorri para Luís.Bernardina benze-se:«Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.»E, a uma só voz, os irmãos Paixão Leal dizem:«Amém.»

Combinando um mistério policial com uma saga familiar, DeusPátria Família oferece uma inquietante visão alternativa da

nossa História.

«Às vezes, fazer a coisa certa obriga-nos a sentir a coisa errada.»Lisboa, 1940Uma mulher é encontrada morta no santuário do Cabo Espichel,envolta num manto branco, com um rosário entre os dedos. Osperegrinos confundem-na com uma aparição de Nossa Senhora. Osdetetives encarregados do caso não vão em delírios, mas tambémnão imaginam que aquele é apenas o primeiro homicídio.Vivem-se tempos estranhos: os tanques alemães avançam Europafora e a bandeira nazi é içada na torre Eiffel. A Lisboa chegammilhares de estrangeiros e refugiados judeus, que escolhem acapital portuguesa como abrigo temporário ou porta de saída parauma vida sem medo.As vítimas vão-se sucedendo: todos os meses, aparece mais umamulher morta, numa sucessão de crimes de matizes religiosos. APolícia de Investigação Criminal entrega o caso a Luís Paixão Leal,ex-pugilista de memória prodigiosa, com um olho de vidro e umpassado misterioso em Nova Iorque. O detetive, que vê na justiçauma missão de vida, empenha-se em descobrir o culpado.Até que, numa manhã de domingo, tudo muda: um golpe violentoafasta Salazar do poder e sacode o xadrez político do país. Portugalabandona a neutralidade na guerra e alinha-se com as forças do

Eixo. Nas ruas da capital, começa o cerco aos refugiados judeus eecoam as tenebrosas memórias das perseguições da Inquisição.Com a reviravolta política, Paixão Leal vê-se no centro de umaconspiração ao mais alto nível. O detetive, que vive com uma judiaalemã e os seus dois filhos, sente a ameaça a bater-lhe à porta.Num mundo à beira do colapso, terá um preço a pagar caso insistaem desvendar a verdade.Dos loucos anos 1920 nos Estados Unidos à convulsa década de1940 em Portugal, chega-nos uma versão alternativa do nossopassado, com ecos no presente, porque basta uma única reviravoltapara mudar o rumo de um país e assombrar milhares de vidas.Entrelaçando um mistério policial com uma saga familiar, DeusPátria Família é um romance magnético do autor finalista dosPrémios PEN Clube e Fernando Namora.Sobre Filho da Mãe:«Não há muitos livros assim nas letras portuguesas, que nãoescondem os seus propósitos nem temem a sua exposição.(...)Narrativa que cativa, enérgica, intensa, sempre em movimentoentre o passado e o agora; e que nunca se lamenta, mesmo naspassagens mais duras e íntimas.»Visão«Um livro perturbador, que fica colado à pele do leitor, escrito semconcessões.»Fernando Alves, TSF«Uma obra-prima. Escrito como um rio de palavras justas e com umtom encantatório. Faz-me bem à alma perceber que ainda há quemescreva assim.»António Pedro Vasconcelos«A viagem íntima de um escritor interrogando-se a si próprio etentando perceber de que modo a orfandade fez dele quem é.»Carlos Vaz Marques, TSF«Este devia ser um livro universal. É um livro singular sobre umamulher que só revive porque o filho se tornou escritor.»Vítor Matos, Expresso«Como disse essa sábia e genial escultora da palavra que éAgustina Bessa-Luís, "livros bons são os que incomodam". Este

incomodou-me muito. E essa é mais uma das razões porque gostotanto dele, a ponto de ainda não o ter largado. Desconfio, aliás, quenunca mais o largo.»João Gobern«Uma obra pessoalíssima, na primeira pessoa até ao tutano, é umlivro em que me revi ao virar de muitas páginas - revi experiências esilêncios, a dor da perda e o mistério da memória, revi o tempo e opaís em que cresci (...) Filho da mãe é sobre fuga e reencontro,memória e autoconhecimento.»Filipe Santos Costa, Expresso«O luto em três atos, capítulo no meio deste texto que rasga osgéneros, é das coisas mais dilacerantes e belas algum dia escritaspara qualquer um que tenha perdido alguém. Gonçalves constrói,sobre a sua história verdadeira, uma fábula acerca do sentido doamor e da perda.»João Tordo

Hugo Gonçalves (1976) é autor dos romances O maior espectáculodo mundo, O coração dos homens, Enquanto Lisboa arde o Rio deJaneiro pega fogo e O caçador do Verão; e dos livros de crónicasFado, samba e beijos com língua e Postais dos trópicos.É co-autor e guionista da série televisiva País Irmão (RTP).Foi correspondente de várias publicações portuguesas em NovaIorque, Madrid e Rio de Janeiro, cidade onde trabalhou como editorliterário.Colaborou com: Jornal de Notícias, Diário Económico, jornal i,Expresso e Visão. No Diário de Notícias, assinou as crónicasPostais dos Trópicos e Máquina de escrever.Filho da mãe é o seu primeiro livro na Companhia das Letras.

Edição em digital: junho de 2021© Hugo Gonçalves, 2021

© desta edição:2021, Penguin Random House Grupo Editorial Unipessoal, Lda.

Companhia Das Letras é uma chancela dePenguin Random House Grupo Editorial

Av. da Liberdade, 245, 7.º A, 1250-143 [email protected]

Edição: Clara CapitãoRevisão: Cristina Correia

Capa: Miguel JordãoISBN: 978-989-784-292-4

Composição digital: Newcomlab S.L.L.Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por

qualquer processo mecânico, fotográfico, electrónico ou por meio degravação, nem ser introduzido numa base de dados, difundido ou de

qualquer forma copiado para uso público ou privado, além do usolegal como breve citação em artigos e críticas, sem a prévia

autorização por escrito do editor.

ÍndiceDeus Pátria Família

1940

1. Glória ao Pátrio Alguém

Sexta-feira, 14 de junho

Domingo, 23 de junho

Terça-feira, 9 de julho

Quarta-feira, 10 de julho

Sexta-feira, 12 de julho

Sábado, 13 de julho

2. O mistério do ladrão de messias

Sábado, 20 de julho

Domingo, 21 de julho

Segunda-feira, 22 de julho

3. Contra os bretões, marchar, marchar

Sexta-feira, 26 de julho

Segunda-feira, 29 de julho

Sábado, 10 de agosto

Domingo, 11 de agosto

Quarta-feira, 14 de agosto

4. Só quando estiveres no meu lugar saberás aquilo

Quarta-feira, 14 de agosto

5. O milagreiro das causas perdidas

Quarta-feira, 24 de julho

Sábado, 27 de julho

Domingo, 4 de agosto

Terça-feira, 6 de agosto

Terça-feira, 13 de agosto

Quarta-feira, 14 de agosto

1920-1934

6. Nunca vamos morrer

1940

7. Santos da casa

Quinta-feira, 15 de agosto

Quarta-feira, 21 de agosto

Sábado, 24 de agosto

Segunda-feira, 26 de agosto

1917

8. O Anjo de Portugal

1940

9. Assim seja

Segunda-feira, 26 de agosto

Terça-feira, 27 de agosto

Quarta-feira, 28 de agosto

Quinta-feira, 29 de agosto

Domingo, 1 de setembro

Segunda-feira, 2 de setembro

Quarta-feira, 11 de setembro

Sexta-feira, 13 de setembro

Sobre o livro

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