Laboratório Colaborativo: dinâmicas urbanas, património, artes
Desafios da reabilitação urbana no processo de planeamento: o património esquecido das aldeias...
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AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013 323
Desafios da reabilitação urbana no processo de planeamento:
o património esquecido das aldeias Avieiras
Ana Lídia Virtudes1
Filipa Almeida2
Universidade da Beira Interior (Portugal)
Vários factores justificam a existência de assentamentos urbanos junto aos rios. A morfologia urbana é muitas vezes herdada da paisagem fluvial. A palafita sobre a água é uma das mais antigas tipologias da arquitectura vernácula, cuja origem e permanência pode ser entendida através de uma viagem à volta do mundo e através do tempo. As aldeias palafíticas Avieiras do rio Tejo expressam tanto a diversidade ecológica associada ao rio, como a diversidade cultural associada ao espaço urbano, sendo testemunhos de uma longa história de geografias comuns. Os assentamentos urbanos originais foram construídos pela comunidade piscatória proveniente da costa Atlântica, a partir de meados do século XIX e são parte de um fenómeno internacional, da acção do Homem face a condições adversas de sobrevivência, num forte espírito de resistência e perseverança na ligação ao rio. A morfologia urbana das aldeias Avieiras apresenta uma ou duas filas paralelas de casas, com variações em termos de dimensões do assentamento urbano, implantação do edificado e localização face ao rio. O acesso à aldeia faz-se por um ou mais cais de madeira, que varia de tamanho. Relatos da década de 1940 identificaram 80 aldeias Avieiras. Ainda assim, uma grande parte deste património; de grande valor paisagístico e diversidade funcional; é praticamente desconhecida ou quase desapareceu. Este artigo tem como objectivo reflectir sobre a reabilitação urbana das aldeias Avieiras do Tejo no contexto do processo de planeamento urbanístico, nomeadamente dos planos municipais de ordenamento do território. Several factors justify the existence of settlements near the rivers. The urban morphology is often inherited from the fluvial landscape. The stilt-house built by the waterside is one of the most ancient typologies of vernacular architecture, whose origin and permanency are understood by a journey across the world and time. The Avieiras stilt-house villages of the Tagus River express both an ecological and an urban space-cultural diversity and they are the testimony of a long history of common geographies. The original settlements were built by the fishing community coming from the Atlantic coast, at the beginning of the 19th century and are part of larger international phenomena, the action of men in a face of adverse conditions of survival, in a strong spirit of resistance and perseverance with strong bonds with the river. The urban morphology of the Avieiras villages features one or two parallel rows of houses with variations in terms of dimensions of the settlement, in terms of the localization of housing parts and in terms of localization in face of the river. The access to it was by one or more wooden pontoons which varied in size. Reports from the 1940s identified 80 Avieiras villages. A great part of this heritage; with a great scenic value and functional diversity; is practically unknown or has almost disappeared.
1 Professora auxiliar, Departamento de Engenharia Civil e Arquitectura - Universidade da Beira Interior –
COVILHÃ (investigadora do Centro de Estudos Arnaldo Araújo, Porto e do C-Made, Centre of Materials and Building Technologies, DECA-UBI). 2 Doutoranda em Arquitectura, Universidade da Beira Interior.
RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO
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This paper aims to analyse the urban rehabilitation of Avieiras stilt-house villages of the Tagus in the context of town planning process, in particular the municipal plans. Palavras–chave: Reabilitação urbana, planeamento urbanístico, aldeias Avieiras. Key-words: Urban rehabilitation, town planning, stilt-house villages.
RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO
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1. LIGAÇÃO DOS ESPAÇOS URBANOS AOS RIOS
Em todo o mundo, variadas razões que se prendem com a defesa, o comércio, as
comunicações, o aproveitamento do recurso água ou a sobrevivência, justificam a
fixação de assentamentos urbanos junto a linhas de água. A morfologia urbana destes
lugares é frequentemente herdada da paisagem fluvial.
A importância dos vales do Nilo ou do Danúbio e os sucessivos movimentos
populacionais que os percorreram deixaram marcas de assentamentos urbanos ao longo
das suas margens. Assim, as planícies aluviais desenham paisagens de longos
corredores e relacionam territórios muito diversos com diferentes recursos e
possibilidades de ocupação humana.
Os sistemas territoriais constituídos pelo binómio espaço urbano – rio, apresentam
elevada complexidade e são especialmente sensíveis. Este facto exige que a preservação
da sua coerência respeite a diversidade e a qualidade das interacções que se estabelecem
não só entre o rio e o espaço urbano mas também com a população que constitui as
comunidades locais.
Os aglomerados urbanos ribeirinhos proporcionam condições especiais quer em termos
de acessibilidades diversificadas, resultantes da navegabilidade e da acostagem, quer em
termos de contacto entre a malha urbana e a presença da água. Consequentemente,
carecem de um equilíbrio entre o carácter natural da linha de água e o carácter artificial
do assentamento urbano.
Entre outros factores, a atractividade pelas grandes cidades, foi deixando para trás
pequenas aldeias do espaço rural, cujas origens remetem à presença do rio, como sejam
as aldeias Avieiras do Tejo. Ainda que o valor estético das margens urbanas em
territórios rurais possa constituir um tema apelativo, estes pequenos aglomerados
urbanos, vetustos e disfuncionais, tornam urgente a preservação do património que os
constitui, colmatando o entendimento destes tipos de paisagem como meros cenários
sobre os quais a memória do passado se sintetiza numa abordagem pitoresca. Não se
pretende que constituam paisagens esvaziadas da sociedade e da economia locais ou
meros wallpapers mas, recursos infindáveis de emoções e experiências inesquecíveis,
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motivadores de intervenções variadas que justifiquem a sua sobrevivência e
enquadramento na sociedade actual. Neste âmbito, compete aos agentes do processo de
planeamento, nomeadamente aos Municípios, um papel decisivo na definição de
propostas de reabilitação urbana das aldeias Avieiras, inseridas numa praxis permanente
e contínua de qualificação destes territórios.
O que pode influenciar a reabilitação urbana das aldeias Avieiras no contexto dos
instrumentos de gestão territorial; ou seja; do processo de planeamento? É a questão de
partida, acerca da qual se pretende reflectir nesta comunicação.
2. ORIGEM E IMPORTÂNCIA DAS ALDEIAS AVIEIRAS DO RIO TEJO
As aldeias Avieiras das margens do rio Tejo, caracterizam-se pelo binómio rio -
diversidade ecológica / espaço urbano - diversidade cultural e testemunham a longa
história de geografias comuns e de relações de convivência entre ambos, cujas origens
se cruzam.
Avieiros é o nome atribuído aos pescadores da Vieira de Leiria que, devido a condições
físicas e económicas adversas agravadas no Inverno, foram trocando a pesca do mar
pela faina no rio. Aventuraram-se no Tejo, abundante em espécies lucrativas como o
sável e foram-se fixando na Lezíria em busca de melhores condições de vida. São
escassas as certezas quanto ao início destas migrações. Contudo, poder-se-á referir
tratar-se de um dos mais assinaláveis movimentos migratórios internos em Portugal da
segunda metade do século XIX, que deixou na paisagem elementos marcantes: a
arquitectura da casa palafítica e a morfologia urbana da ligação ao rio.
O carácter persistente dos assentamentos urbanos, a presença do rio e a arquitectura
precária e efémera das construções em madeira assentes em estacas, resultaram num
património único, ora mais preservado (como os casos do Escaroupim ou da Palhota),
ora abandonado, esquecido e em declínio acentuado (como o caso do Patacão), ora com
sucessivas e profundas acções de descaracterização urbanística e arquitectónica (de que
é exemplar o caso das Caneiras).
Como se pode observar na figura seguinte, de montante para jusante, do concelho da
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Golegã ao da Póvoa de Santa Iria na margem direita ou do de Abrantes ao de Samora
Correia na margem esquerda, o património desta vasta região que engloba o conjunto
das aldeias Avieiras unidas pelo Tejo, de grande valor paisagístico e diversidade
funcional, é praticamente desconhecido ou quase desapareceu.
01. Localização das Aldeias Avieiras do Tejo (fonte: Viana, M. (2010). “A Rota Turística dos Avieiros do Tejo: Uma Experiência Empresarial”, pp. 47)
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3. CANEIRAS: UM CASO EXEMPLAR DAS ALDEIAS AVIEIRAS
3.1. A PALAFITA COMO ARQUITECTURA
A arquitectura vernacular das construções palafíticas é universal. Por todo o mundo são
inúmeros os exemplos de edifícios em madeira assentes em pilares sobre a água quer à
beira mar, quer em domínios fluviais. A eficácia deste sistema construtivo tem vindo a
justificar a sua proliferação ao longo dos tempos.
Em Portugal, o caso mais marcante desta arquitectura em zona fluvial é a casa de
madeira das aldeias Avieiras. A pesca artesanal que marcou estes territórios testemunha
a sua localização, as soluções construtivas adoptadas, as técnicas e os materiais de
construção utilizados.
A casa Avieira construída sobre estacaria é de planta regular. A cobertura é de duas
águas e a madeira é o material de construção utilizado nos elementos verticais, o
tabuado.
As primeiras construções permanentes da casa Avieira, ainda que de natureza muito
precária, surgiram nas margens do rio para abrigo da família. Os Avieiros começaram
pouco a pouco a construir em terra firme com o Tejo à vista, as pequenas casas de
caniço (material sem qualquer custo, que crescia nos valados da envolvente), a que
chamavam “palhotas”. Já totalmente fixados e em condições económicas para tal,
foram paulatinamente substituindo o caniço pela madeira, dando origem às primeiras
construções palafíticas – as “barracas”. Estas barracas surgiram ora isoladas,
associadas a um núcleo familiar, ora agrupadas em duas ou três construções,
associadas a uma família ou a várias, com laços familiares entre si ou ainda, em
assentamentos urbanos com vários edifícios alinhados entre si. Trata-se de construções
desmontáveis que os pescadores traziam e fixavam junto ao Tejo em terrenos alheios,
cujos proprietários fundiários em alguns casos autorizavam, frequentemente a troco de
mão-de-obra nas culturas agrícolas.
Apesar das variações de núcleo para núcleo e, por vezes, dentro do mesmo
aglomerado urbano, é possível definir alguns traços comuns associados à matriz
original da arquitectura destas barracas de madeira:
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− Tabuado disposto verticalmente sobre o soalho assente em estacas;
− Estacas de madeira ou em troncos de árvores;
− Pintura exterior;
− Escadas exteriores de acesso à varanda que conduz à porta de entrada;
− Interior com três divisões; sala e quartos; cujas comunicações são tapadas por
cortinas, com paredes pintadas ou forradas a papel; lareira num canto da sala, sem a
função de cozinhar (a cozinha situa-se num anexo exterior); quartos simétricos mais
pequenos, com janela.
Actualmente, já não se identificam barracas de matriz arquitectónica original
totalmente em madeira. A procura de maior conforto e segurança foi originando
alterações como as estacas em alvenaria ou betão armado e a cobertura de telha,
presentes em grande parte dos casos existentes.
Uma observação mais atenta do tecido edificado revela a dicotomia entre os edifícios
que, embora assentes em estacas de betão, são construídos em madeira e aqueles que,
devido a posteriores ampliações, utilizam como materiais de construção o tijolo e o
betão armado, mantendo-se semelhantes aos primeiros em volumetria e na organização
do interior (ver figura seguinte).
02. Edifícios da aldeia Avieira das Caneiras.
As inúmeras alterações nos edifícios da aldeia das Caneiras dificultam a identificação de
uma matriz da sua tipologia habitacional. Contudo e de uma forma geral, esta tipologia
caracteriza-se pela construção em madeira sobre estacas de betão armado, algumas delas
rodeadas por tapumes formando arrecadações que impedem a passagem da água em
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situações de cheia. A cobertura de duas águas em telha portuguesa substitui a outrora
utilizada telha de canudo. A entrada da casa é efectuada por uma varanda de
gradeamentos coloridos que, na parte mais recente da aldeia, é em ferro e à qual se
acede através de umas escadas de madeira ou em betão armado. No interior da casa,
existem dois quartos e uma sala. A cozinha localiza-se num anexo, erigido ao lado ou à
frente da casa num plano inferior. Nas casas da borda d’água observa-se a
particularidade de terem um terraço voltado para o Tejo e um cais privado ao qual se
acede por uma escadaria.
A par do crescimento urbano que tem vindo a caracterizar esta aldeia surgem múltiplas
variações da tipologia habitacional. Aspectos como as dimensões da casa, os materiais
de construção utilizados, o número de pisos, a existência de instalação sanitária, a
presença da chaminé ou o tipo de cozinha variam. Consequentemente, observam-se
diferenças que evidenciam a leitura de momentos distintos quer na evolução e expansão
da aldeia, quer na alteração ou ampliação da casa Avieira. A igreja recentemente
construída em Caneiras é dos poucos equipamentos que caracterizam o conjunto das
aldeias Avieiras.
Apesar de viva e vivida; dada a dinâmica populacional que a caracteriza; e do razoável
estado de conservação dos seus edifícios, as Caneiras têm vindo a ser alvo de um
processo de transformação no sentido de uma crescente descaracterização do tecido
edificado, com consequências negativas na imagem urbana de todo o conjunto. As
palafitas vão sendo alteradas ou substituídas através de intervenções contemporâneas,
desajustadas da matriz arquitectónica e descontextualizadas do aglomerado urbano
como um todo, conduzindo à perda crescente da sua identidade urbanística.
3.2. MORFOLOGIA URBANA DE UM CONJUNTO RIBEIRINHO
A morfologia urbana das aldeias Avieiras caracteriza-se por uma rua estreita e recta,
geralmente paralela ao rio ao longo da qual se dispõem duas fiadas de casas palafíticas.
O cais, um ou vários, estabelece a ligação directa ao Tejo.
No caso das Caneiras, a aldeia Avieira localizada nas proximidades de Santarém, o
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processo de fixação do casario ocorreu de norte para sul com origens que remontam à
década de 1880. O núcleo original desapareceu nas cheias de 1941, tendo surgido outro,
com palafitas de estacaria em betão ou tijolo e a casa em madeira profundamente
alterada pela utilização de materiais diversos como a chapa ou o betão (ver figura
seguinte).
O núcleo urbano de Caneiras é composto por duas bandas de edifícios unidos pela rua
que o atravessa. Trata-se de um núcleo onde a pressão urbanística tem contribuído para
a acentuada descaracterização urbana e arquitectónica.
A partir da segunda metade do século XX, os Avieiros passaram a dedicar-se também às
searas em alternativa à pesca do sável que começava a escassear. A prosperidade
associada a esta nova actividade trouxe a casa de alvenaria. As estacas deixaram de ser
em madeira e passaram a ser em betão e uma porta foi aberta do lado oposto ao rio.
A partir da década de 1960 com o êxodo da população em busca de trabalho no sector
terciário, chegaram as novas construções em alvenaria, com incidência na rua que
conduz a Santarém, a grande cidade mais próxima. Muitas famílias permaneceram na
aldeia, numa residência precária, inapta para uma boa habitabilidade e traçada para uma
actividade; a pesca; que em muitos casos já não as ocupa.
03. Aldeia Avieira das Caneiras.
Do tecido urbano existente, o núcleo mais antigo implantado na borda d’água é
constituído por duas bandas paralelas de “barracas” alinhadas com o rio. O núcleo mais
recente situa-se mais para o interior do território e as construções estão implantadas em
ruas perpendiculares ao rio, resultado da posterior diversificação de um modo de vida
partilhado entre a pesca no Tejo, a agricultura na lezíria e os serviços na cidade.
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3.3. ENQUADRAMENTO URBANÍSTICO E GESTÃO TERRITORIAL
A conformidade das aldeias Avieiras com o sistema de gestão territorial, ou seja, o seu
enquadramento urbanístico, é complexa e legalmente difícil.
Esta complexidade revela-se à escala regional ou supra municipal, devido às inúmeras
figuras de planos, de âmbitos territoriais e entidades diversas, como o plano de bacia
hidrográfica do Tejo (um plano sectorial) ou o Plano Regional de Ordenamento do
Território (PROT), com a exigência (por questões administrativas) de elaborar um para
a margem direita e outro para a margem esquerda. Haverá justificação para que o PROT
do Oeste e Vale do Tejo; um plano do século XXI; não apresente uma única referência
às aldeias palafíticas do Tejo, num conteúdo intensivo de “promoção do
desenvolvimento regional” ou “melhoria da qualidade de vida”?
À complexidade da abordagem regional, acresce o cariz legal difícil da escala local. Por
um lado, pela aplicação espartilhada pelos inúmeros municípios de ambas as margens,
de planos municipais de ordenamento do território, como os Planos Directores
Municipais (em vigor) ou os Planos de Urbanização e os Planos de Pormenor (em
teoria, porque em regra inexistentes). Por outro lado, pela classificação dominante das
aldeias Avieiras como territórios não urbanos, como espaços de não-cidade, em verdade
de não-aldeia.
A situação actual revela que em termos genéricos as aldeias Avieiras do Tejo estão
classificadas nos Planos Directores Municipais; frequentemente os únicos em vigor;
como espaços rurais, com escassas possibilidades legais de edificar e nenhumas de
urbanizar. Consequentemente, os pedidos de licenciamento quer de novas edificações
quer de obras de alteração ou ampliação dos imóveis existentes são “simplesmente”
indeferidos.
A indivisibilidade fundiária é outro problema por resolver. Frequentemente o núcleo
original ou mais antigo da aldeia, constituído pelas inúmeras casas palafíticas; cada uma
delas associada a uma família; assenta numa única parcela fundiária, cujo proprietário é
amiúde “estranho” aos Avieiros.
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3.3.1. ESPAÇO AGRO-FLORESTAL COMO USO DO SOLO
O único instrumento de planeamento urbanístico em vigor na aldeia das Caneiras é o
PDM3 (Plano Director Municipal de Santarém) que data de 1995. De acordo com a
Planta de Ordenamento do PDM de Santarém (ver figuras seguintes), à escala 1:25000,
o aglomerado urbano das Caneiras está classificada como espaço agro-florestal4, ou
seja, como área adequada às actividades agrícolas e florestais de produção ou de
protecção. Parte da aldeia está ainda integrada na Reserva Agrícola Nacional (RAN),
cujo propósito é identificar os solos com maior aptidão para a prática desta actividade.
Verifica-se assim, que não foi portanto identificado no PDM de Santarém qualquer
espaço urbano que corresponda ao aglomerado urbano das Caneiras, o qual foi
indevidamente classificado à margem e excluído de qualquer possibilidade de
urbanização, de requalificação dos seus espaços públicos ou de intervenção no seu
tecido edificado quer nos edifícios existentes quer nas novas construções. Se é verdade
que os Planos Directores Municipais da década de 1990; como o de Santarém; têm sido
alvo de algumas críticas ainda que no compto geral o balanço que se possa fazer desta
figura de plano no processo de planeamento urbanístico seja positivo, ainda assim, não
se compreende como uma análise detalhada à escala concelhia pôde omitir as Caneiras.
3 Publicado em DR, a 24 de Outubro de 1995, alterado pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 123/97.
4 De acordo com as disposições do art.º65º do Regulamento do Plano Director Municipal de Santarém.
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04. Enquadramento da aldeia Avieira das Caneiras na Planta de Ordenamento do PDM de Santarém, 1:25000 (1995).
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05. Enquadramento da aldeia Avieira das Caneiras na Planta de Ordenamento do PDM de Santarém (ampliação), 1:25000 (1995).
Nos espaços agro-florestais, os usos e actividades admitidos pelo PDM de Santarém
diferem em função da sua inclusão na Reserva Agrícola Nacional (RAN) e na Reserva
Ecológica Nacional (REN) (ver figura seguinte).
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06. Extracto do regulamento do PDM de Santarém – espaços agro-florestais (1995).
3.3.2. CONDICIONANTES AOS USOS DO SOLO
Parte do aglomerado urbano das Caneiras inclui-se apenas na classe de espaços agro-
florestais, não sendo abrangida pela RAN. No entanto, é também abrangida pela REN,
logo, os usos e actividades permitidos são idênticos aos da situação anterior, pois, o
regime da REN é ainda mais restritivo em termos urbanísticos (ver figuras seguintes).
A REN tem como objectivo proteger as áreas de maior valor e sensibilidade ecológica
ou susceptíveis de riscos naturais5, incluindo os cursos de águas e os respectivos leitos,
margens e zonas ameaçadas pelas cheias6. Estabelece os condicionantes à ocupação, uso
e transformação do solo, definindo aqueles que são compatíveis com os objectivos que
traça.
No que se refere a obras de construção, alteração e ampliação de edifícios, localizadas
junto aos cursos de água apenas é permitida a construção de cabinas para motores de
rega com uma área de construção não superior a 4m2.
Quanto a usos e actividades relacionadas com os equipamentos, o recreio e o lazer, o
regime da REN permite a instalação de equipamentos de apoio às zonas de recreio
balnear e à actividade náutica de recreio, espaços verdes de utilização colectiva e a
abertura de trilhos pedonais destinados à educação e interpretação ambiental nas
margens7. Ora, nos espaços incluídos na REN são interditas as operações de loteamento
urbano, as obras de urbanização, a construção e ampliação de edifícios, a construção de
5 Decreto-Lei n.º166/2008, art. 2º, n.º1.
6 Decreto-Lei n.º166/2008, art. 4º, n.º3 – alínea a), nº4 – alínea c).
7 Decreto-Lei n.º166/2008 - Anexo II.
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vias de comunicação, as acções de aterro ou escavação e ainda a destruição do coberto
vegetal.
Como justificar a interdição de todas estas acções num aglomerado urbano consolidado
e compacto como é as Caneiras?
07. Enquadramento da aldeia Avieira das Caneiras na planta da REN do PDM de Santarém, escala 1:25000 (1995).
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08. Enquadramento da aldeia Avieira das Caneiras na planta da REN do PDM de Santarém (ampliação), escala 1:25000 (1995).
Como foi referido, a RAN tem como objectivo geral proteger os solos com elevada ou
moderada aptidão agrícola. Estes solos devem ser afectos à actividade agrícola e
constituem-se como áreas non aedificandi, isto é, são neles interditas quaisquer obras de
urbanização, construção ou ampliação de edifícios, a menos que se trate de8:
− Instalações de apoio à actividade agrícola e pecuária;
− Habitações para os agricultores em exploração agrícola ou proprietários do terreno
caso não exista outra alternativa viável;
− Estabelecimentos de turismo rural;
− Estabelecimentos industriais e comerciais complementares à actividade agrícola;
− Equipamentos de produção de energia renovável.
São ainda permitidas obras de intervenção indispensáveis à salvaguarda do património
cultural, designadamente de natureza arqueológica, à recuperação paisagística e também
medidas de minimização determinadas pelas autoridades competentes na área do
8 Decreto-Lei n.º 73/2009, art. 22º.
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ambiente9. No caso das Caneiras, sobretudo no núcleo antigo das casas palafíticas,
grande parte das construções está incluída na RAN.
Por outro lado, o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação10 consagra o
princípio da protecção do existente, que estabelece que, se um prédio rústico já integrar
uma edificação, não podem ser recusadas obras de reconstrução ou alteração, desde que
resultem na melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação e não
originem ou agravem desconformidades com as normas em vigor.11 Neste caso, as
normas em vigor, ou seja, o PDM, interdita todas e quaisquer possibilidades neste
sentido.
09. Enquadramento da aldeia Avieira das Caneiras na Planta da RAN do PDM de Santarém, 1:25000 (1995).
9 Decreto-Lei n.º 73/2009, art. 22º, nº1, alínea j).
10 Decreto-Lei 26/2010 (republicação do Decreto-Lei nº. 555/99). Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
11 Decreto-Lei 26/2010, art. 60º, nº2.
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010. Enquadramento da aldeia Avieira das Caneiras na Planta da RAN do PDM de Santarém (ampliação), 1:25000 (1995).
Em síntese, de acordo com a Planta da REN que integra o PDM de Santarém, à escala
1:25000, verifica-se que as Caneiras, não só são abrangidas pela RAN (na área
correspondente ao núcleo palafítico) como também pela REN, desta vez, na sua
totalidade.
Assim, se os espaços agro-florestais forem abrangidos simultaneamente pela RAN e
pela REN, o que se verifica em grande parte desta aldeia, incluindo na zona onde se
situa o núcleo antigo das palafitas Avieiras, os usos ou actividades permitidas são o
turismo, o recreio e o lazer, as actividades agrícolas e florestais e a criação de infra-
estruturas.
Paralelamente, em termos urbanísticos entende-se que nos espaços não classificados
como urbanos, e portanto excluídos ou fora dos perímetros urbanos, tais infra-estruturas
são permitidas desde que não confiram aos territórios características de espaços
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urbanos. Assim, qualquer possibilidade de urbanizar, ou seja, de redimensionar as redes
de infra-estruturas (como o abastecimento de água ou a drenagem de esgotos), de
requalificar os arruamentos viários e pedonais (nomeadamente criando os passeios para
a circulação de peões), de prever espaços verdes ou equipamentos de utilização
colectiva, necessários ao bom funcionamento dos espaços urbanos é absolutamente
interdita nas Caneiras. Ora, a interditação da construção de obras de urbanização e a sua
melhoria num espaço urbano, consolidado, compacto, há muito existente, como é as
Caneiras, é uma contradição que os futuros instrumentos de gestão territorial a definir
para o local deverão resolver. Caso contrário, urge assumir a classificação de toda uma
história, de toda uma identidade, de todo um povo, de todo um património
arquitectónico e urbanístico único, como ruína urbanística e declarar a sua demolição,
delapidando este legado cultural da rota europeia !
3.3.3. INTEGRAÇÃO NO DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
Pela consulta da Planta de Outras Condicionantes do PDM de Santarém (ver figuras
seguintes) a aldeia das Caneiras está abrangida pela servidão administrativa12 do
domínio público hídrico (DPH), correspondente à linha de água do Tejo. Este rio é
considerado um curso de água navegável ou flutuável, pelo que a área non aedificandi
onde é interdita qualquer possibilidade de edificar, é de 30,00 metros, contados a partir
da linha que delimita o leito13. Esta faixa inclui o núcleo palafítico Avieiro das Caneiras.
É indiscutível a inclusão não só das Caneiras; que neste contexto serve apenas de
exemplo; mas do conjunto de todas as aldeias Avieiras na servidão administrativa do
DPH do Tejo. No entanto, restarão dúvidas de que se deve à presença, à proximidade, à
ligação com o rio a existência destas aldeias? Existirão dúvidas quanto à adaptação dos
povos da borda d´água ao longo de todo o estuário do Tejo e desde os tempos mais
remotos, às situações de inundação? Não será de prever uma situação excepcional que
identifique, preserve e valorize este património cultural?
12
Por servidão administrativa entende-se o encargo imposto ao direito de propriedade em função dos interesses públicos concretos, neste caso a protecção da linha de água. 13
Lei 54/2005, art. 11º. Estabelece a titularidade dos recursos hídricos.
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011. Enquadramento da aldeia Avieira das Caneiras na Planta de Outras Condicionantes do PDM de Santarém, 1:25000 (1995).
012. Enquadramento da aldeia Avieira das Caneiras na Planta de Outras Condicionantes do PDM de Santarém (ampliação), 1:25000 (1995).
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3.3.4. O CADASTRO INDIVISÍVEL
As plantas cadastrais têm como principal função caracterizar e identificar os prédios
existentes em território nacional. Como se pode observar na figura seguinte, o núcleo
mais antigo das Caneiras, constituído pela fila de casas palafíticas, está na sua totalidade
incluído numa única unidade cadastral, ou seja, numa única parcela fundiária. Apesar
dos inúmeros edifícios e respectivas famílias que neles habitam, os cidadãos que
construíram e residem nas palafitas das Caneiras são o que se poderia designar por
“proprietários do coração”, pois, para efeitos legais não o são.
Do ponto de vista urbanístico, vários instrumentos são possíveis equacionar para
resolver a indivisibilidade actual da propriedade (a expropriação por utilidade pública, o
regime de propriedade horizontal entre outros) e possibilitar a sua atribuição a cada
família. Urge colmatar a discrepância entre os proprietários das casas Avieiras e o
proprietário do terreno onde as quais de implantam. Por que não se resolve?
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013. Levantamento cadastral da aldeia Avieira das Caneiras (prédio rústico do núcleo palafítico), escala 1:2000 (1960/70).
4. DESAFIOS DA REABILITAÇÃO URBANA NAS ALDEIAS AVIEIRAS
A reabilitação de rios e cursos de água é uma preocupação actual nos domínios
científicos e técnicos a nível europeu e noutras arenas internacionais. Nas aldeias
Avieiras são aspectos fundamentais da reabilitação urbana:
- A qualidade do espaço urbano no seu conjunto;
- A permeabilidade visual entre a aldeia e o Tejo;
- Os elementos marcantes que facilitam a legibilidade;
- A qualidade do tecido edificado (estado de conservação dos imóveis / afastamento em
relação à matriz arquitectónica local / os elementos dissonantes);
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- A densidade construtiva que se pretende manter baixa;
- A salvaguarda e valorização do património cultural através de formas de integração
das memórias colectivas associadas ao rio, à diversidade de usos, à atractividade da
frente ribeirinha, à funcionalidade e conforto dos edifícios ou aos espaços públicos e
equipamentos de utilização colectiva;
- O enquadramento no processo de revisão dos Planos Directores Municipais dos
concelhos onde se localizam as aldeias, da tarefa de repensar a delimitação destes
aglomerados populacionais como espaços urbanos, de modo a legalizar as edificações
existentes, permitir outras actividades e as acções de melhoria da urbanização;
- A elaboração de regras de edificabilidade e urbanização, de modo a garantir a correcta
manutenção e valorização quer dos edifícios quer de cada aldeia no seu conjunto;
- O repensar do cadastro encontrando mecanismos que devolvam aos proprietários das
casas a propriedade do terreno onde as mesmas se implantam.
Há que garantir que os “proprietários do coração” de cada palafita Avieira possam
também ter acesso ao direito de propriedade e serem simultaneamente proprietários das
suas casas do ponto de vista legal.
A acessibilidade, a travessia do rio, a existência de parques de estacionamento no
corredor fluvial constituído pelas várias aldeias, os transportes públicos, as ciclovias ou
os percursos pedonais, os locais de ancoragem e a navegabilidade do rio, são aspectos a
considerar em qualquer proposta de reabilitação urbana das aldeias Avieiras, que exige
uma abordagem de conjunto e entendimento entre os vários municípios.
Em síntese, a reabilitação urbana de trechos de cursos de água urbanos constitui um
processo complexo que envolve aspectos sociais, institucionais, económicos e a
população.
Urge estabelecer pontes entre os objectivos técnicos e científicos do planeamento
urbanístico, a requalificação ecológica do sistema ribeirinho do Tejo e a auscultação das
aspirações e valores da comunidade. Tais propostas deverão contribuir para a afirmação
das aldeias Avieiras como habitats voluntários de quem quer viver o rio.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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contemporânea”, Argumentum, Lisboa.
OLIVER, Paul (1997). “Encyclopedia of Vernacular Architecture of the World”, Edição: Cambridge
University Press.
REDOL, Alves (1942). “Avieiros”, Portugália Editora, 1ª edição, Lisboa.
SALVADO, Maria (1985). “Os Avieiros nos Finais da Década de 50”, Edição de Autor, Castelo Branco.
SOARES, Maria (1959). “Os Avieiros – Estudo de Geografia Humana”, Dissertação de Licenciatura em
Ciências Geográficas, Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa.
VIRTUDES, A. (2010). “Urban Rehabilitation: the challenge of Town Planning in Portugal”, in
JOURNAL ARCHITECTURE, CIVIL ENGINEERING AND ENVIRONMENT, Nr.4
(ACEE 4/2010). The Silesian University of Technology, Poland.