Contribuições da Semiótica para inserção da leitura de imagens na educação básica

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1 Contribuições da Semiótica para inserção da leitura de imagens na educação básica Rodrigo Portari 1 Vivemos em uma época onde as imagens, cada vez mais, permeiam a nossa vida. Seja através da televisão, Internet, celulares, Iphones, Ipads, máquinas fotográficas digitais, outdoors, entre tantas outras formas de captação, transmissão e recepção, é fato inegável que a cultura contemporânea é guiada pela imagem. E essa cultura tem sido imbricada na criação humana de forma tão enraizada que crianças, especialmente as nascidas na entrada do século XXI, já têm sua infância e adolescência totalmente povoada por imagens. Não é raro encontrar pais que, atarefados no dia-a-dia ou, ainda, em busca de sossego, optam por colocar bebês de poucos meses diante da “babá eletrônica” chamada “TV” a fim de desfrutar minutos de descanso, uma vez que as cores e o fluxo de imagens, por si só, são atrativos para os olhos e mente das crianças. Aparentemente, o regime de imagens também provoca uma aceleração do tempo em oposição ao tempo lento, tempo da escrita. Imagens são muito mais rapidamente decodificadas do que textos, além de não exigirem uma habilidade especial para encará-las: um analfabeto pode, perfeitamente, distinguir os elementos presentes em uma obra como a Guernica, de Pablo Picasso. Em contrapartida, ele jamais conseguiria decifrar os códigos presentes em um livro como Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Porém, isso não significa, necessariamente, que o quadro Guernica seja interpretado por nosso suposto receptor analfabeto; e nem que um alfabetizado consiga compreender toda a complexidade da história de Saramago, por mais que ele domine a habilidade de leitura. Durante pesquisa desenvolvida no mestrado, dedicamos parte da dissertação a discutir esse povoamento das imagens na contemporaneidade, a fim de buscar, através da fotografia, estratégias traçadas por jornais para captar o olhar de seus leitores e, automaticamente, fazer a imagem fixa concorrer com a imagem imediatista da televisão. A partir desta pesquisa, já era lançada a semente para a discussão que pretendemos seguir neste capítulo: a necessidade de 1 Doutorando em Comunicação e Sociabilidade pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre em Comunicação Midiática pela UNESP-Bauru; Docente de Fotojornalismo, Fotopublicidade e Teoria, História e Crítica do Jornalismo no curso de Comunicação Social do Campus de Frutal da UEMG. Jornalista com mais de 10 anos de experiência, tem atuação e experiência em jornalismo impresso, rádio, assessoria de comunicação e agências de publicidade. Atualmente desenvolve pesquisa voltada na análise de imagens e textos de jornais populares, além de orientar trabalhos de iniciação científica voltados ao campo da fotografia.

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Contribuições da Semiótica para inserção da leitura de imagens na educação básica

Rodrigo Portari1

Vivemos em uma época onde as imagens, cada vez mais, permeiam a nossa vida. Seja

através da televisão, Internet, celulares, Iphones, Ipads, máquinas fotográficas digitais,

outdoors, entre tantas outras formas de captação, transmissão e recepção, é fato inegável que a

cultura contemporânea é guiada pela imagem. E essa cultura tem sido imbricada na criação

humana de forma tão enraizada que crianças, especialmente as nascidas na entrada do século

XXI, já têm sua infância e adolescência totalmente povoada por imagens. Não é raro

encontrar pais que, atarefados no dia-a-dia ou, ainda, em busca de sossego, optam por colocar

bebês de poucos meses diante da “babá eletrônica” chamada “TV” a fim de desfrutar minutos

de descanso, uma vez que as cores e o fluxo de imagens, por si só, são atrativos para os olhos

e mente das crianças.

Aparentemente, o regime de imagens também provoca uma aceleração do tempo em

oposição ao tempo lento, tempo da escrita. Imagens são muito mais rapidamente

decodificadas do que textos, além de não exigirem uma habilidade especial para encará-las:

um analfabeto pode, perfeitamente, distinguir os elementos presentes em uma obra como a

Guernica, de Pablo Picasso. Em contrapartida, ele jamais conseguiria decifrar os códigos

presentes em um livro como Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Porém, isso não

significa, necessariamente, que o quadro Guernica seja interpretado por nosso suposto

receptor analfabeto; e nem que um alfabetizado consiga compreender toda a complexidade da

história de Saramago, por mais que ele domine a habilidade de leitura.

Durante pesquisa desenvolvida no mestrado, dedicamos parte da dissertação a discutir

esse povoamento das imagens na contemporaneidade, a fim de buscar, através da fotografia,

estratégias traçadas por jornais para captar o olhar de seus leitores e, automaticamente, fazer a

imagem fixa concorrer com a imagem imediatista da televisão. A partir desta pesquisa, já era

lançada a semente para a discussão que pretendemos seguir neste capítulo: a necessidade de

1 Doutorando em Comunicação e Sociabilidade pela Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre em

Comunicação Midiática pela UNESP-Bauru; Docente de Fotojornalismo, Fotopublicidade e Teoria, História e

Crítica do Jornalismo no curso de Comunicação Social do Campus de Frutal da UEMG. Jornalista com mais de

10 anos de experiência, tem atuação e experiência em jornalismo impresso, rádio, assessoria de comunicação e

agências de publicidade. Atualmente desenvolve pesquisa voltada na análise de imagens e textos de jornais

populares, além de orientar trabalhos de iniciação científica voltados ao campo da fotografia.

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incluir o ensino da leitura de imagens nos processos educacionais, especialmente nos anos de

formação básica.

Imagens são textos não verbais. Podem (e devem) ser lidas e interpretadas. No texto

escrito as letras são decodificadas uma a uma, som a som, a fim de gerar sentido, caminhando

em linha reta, sempre da esquerda para a direita, de cima para baixo, tal como nos manda a

cultura ocidental. Por outro lado, imagens não são lineares, são circulares. Ao olhar para ela,

não seguimos um percurso previamente estabelecido. Podemos optar por enxerga-la sob

perspectivas diferentes, tendo como ponto de entrada qualquer um de seus lados e, ainda

assim, voltar o olhar para qualquer um de seus pontos diversas vezes sem prejuízos no

entendimento ou compreensão daquilo que é exibido. E é neste aspecto que reside a

complexidade de sua decodificação. A dificuldade reside em dar conta desse processo

interpretativo. Decodificar uma mensagem imagética exige, sem dúvida nenhuma, maior

esforço mental e concentração do receptor, além de um bom repertório.

Talvez por exigir essa reflexão interpretativa maior seja a causa pela qual ainda os

educadores não se voltaram de forma efetiva para este aspecto, incluindo a leitura de imagens

no currículo escolar. Em alguns sistemas de ensino o assunto chega a ser abordado em aulas

de português ou literatura, porém, sempre de forma superficial. E maior parte dos esforços

acadêmicos da área de pedagogia ou educação se preocupa em atribuir os benefícios que a

utilização de imagens traz ao nível de aprendizado (por exemplo, a imagem de um avião para

ilustrar a letra “A”, e assim por diante) no lugar de se ocuparem em como imagens podem ser

interpretadas pelos alunos ao longo de suas vidas.

Para efetivar programas onde a análise de imagens passe a integrar o dia a dia dos

alunos, seja em aulas de educação artística ou em outras disciplinas da ciências humanas,

podemos apontar as importantes contribuições que a Semiótica pode dar para contemplar esse

aspecto nas grades curriculares das escolas. Já são amplamente conhecidas e estudadas no

âmbito acadêmico a semiótica visual de Charles Sander Peirce, que tem como foco de atenção

voltado para a universalidade dos conhecimentos, através da inserção de conceitos como

ícones, índices e símbolos, universalmente conhecidos e aplicáveis nas mais distintas

situações; e a semiótica textual de Algirdas Julius Greimas, que tem como foco de atenção

especialmente os signos verbais, apontando, por exemplo, a criação de quadros de sentido nos

textos verbais. Neste contexto também se inserem outros autores como Ferdinand Saussure,

Lévi-Strauss e Roland Barthes; e ainda há uma terceira vertentes que se soma às outras duas,

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que é a Semiótica da Cultura, que tem como expoentes Iuri Lótman e Ivan Bystrina, que tem

um caráter voltado a linguagem, literatura e fenômenos diversos da cultura, como a

comunicação não verbal, mitos e religiões.

Neste aspecto, são grandes as contribuições da semiótica para a leitura de imagens e

que podem ser tratadas sem grande dificuldade mesmo nos anos iniciais da educação básica.

Isso porque, apesar da complexidade dos estudos semióticos, é possível adaptar seus

conteúdos de forma a inserir alunos nas práticas de semiose, considerando que, apesar das

diferentes vertentes, a Semiótica se volta para a investigação de signos e processos de

significação. E é a partir deste ponto em que se pode discutir a inserção desse conteúdo em

disciplinas como Educação Artística, muitas vezes preocupada em apresentar história da arte e

fazer com que alunos se dediquem à arte do desenho ou da pintura, deixando de lado um

poderoso aparato teórico que poderia ser utilizado na interpretação de imagens.

Lúcia Santaella, ao discorrer sobre as linguagens não-verbais, demonstra um cenário

tipicamente contemporâneo da presença massiva das imagens por meio dos aparatos

midiáticos:

De dois séculos para cá (pós-revolução industrial), as invenções de

máquinas capazes de produzir, armazenar e difundir linguagens (a fotografia, o

cinema, os meios de impressão gráfica, o rádio, a TV, as fitas magnéticas, etc.)

povoaram nosso cotidiano com mensagens e informações que nos espreitam e nos

esperam. Para termos uma ideia das transmutações que estão se operando no mundo

da linugagem, basta lembrar que, ao simples apertar de botões, imagens, sons,

palavras (a novela das 8, um jogo de futebol, um debate político...) invadem nossa

casa e a ela chegam mais ou menos do mesmo modo que chegam a água, o gás ou a

luz. [...] somos bombardeados por mensagens que servem à inculcação de valores

que se prestam ao jogo de interesse dos proprietários dos meios de produção de

linguagem e não aos usuários. (SANTAELLA, 2004, p.12)

É fato indiscutível que a grande presença tecnológica dos aparatos de comunicação

nos coloca diante de um ambiente extremamente midiatizado, a ponto de pesquisadores como

Muniz Sodré2 e José Luiz Braga

3 discutirem em suas pesquisas uma midiatização da vida.

Partindo desta constatação, retomamos as afirmações no início deste capítulo, quando

destacamos que a contemporaneidade é guiada pelas imagens. E uma das formas de se

constatar essa afirmação pode ser encontrada nos próprios livros escolares oferecidos aos

2 Muniz Sodré, partindo dos conceitos aristotélicos de bios, afirma que a presença efetiva das mídias na vida da

comunidade cria um quarto tipo de bios: a bios midiática. Para o autor, esse é um processo enraizado, acabado,

do qual toda comunidade não consegue se libertar mais. 3 José Luiz Braga, por sua vez, afirma que a midiatização é um processo inacabado e que está em curso. O autor

apresenta lacunas nesse processo de midiatização, mas não descarta que a presença efetiva da mídia na vida

também tem alterado as formas de vida encontradas na sociedade.

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alunos do ensino médio e fundamental. Ao comparar dois livros, um de 1924 e outro de 2011,

percebe-se como as páginas são mais visuais que textuais:

Figura 1. À esquerda, livro de geometria de 1940. À direita, livro de 2011.

Percebe-se, visualmente, estarmos diante de uma página hipertextual no exemplo

contemporâneo, ao contrário da página extremamente narrativa do início do século XX. O

segundo provoca nos alunos o trabalho de fazer ligações, compreender informações, traçar

relações entre os elementos dispostos na página e, principalmente, utiliza imagens para

auxiliar no aprendizado. Informações didáticas que antes pertenciam aos professores, estão

hoje imanentizadas nas páginas, através da diagramação, das análises e até mesmo de

possíveis perguntas. A página é totalmente visual em oposição ao contexto narrativo, fruto de

uma educação que se estabelecia num contexto de capitalismo e de produção industrial de

conhecimento.

A partir desta constatação, interessa-nos olhar, mais especificamente, para as imagens

que são utilizadas nos livros e as tramas narrativas que podem ser nelas implicadas e que,

muitas vezes, por desconhecimento ou despreparo dos docentes, são deixadas de lado.

Especialmente no que tange ao uso de ilustrações como suporte para datas e eventos

históricos. Observemos, por exemplo, duas conhecidas ilustrações presentes em livros de

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história do Brasil: a cena idealizada que representaria o grito de “Independência ou Morte”

proclamado por Dom Pedro I às margens do rio Ipiranga:

Figura 2. Independência ou Morte, óleo sobre tela de de Pedro Américo, 1888. Exposta no Museu Paulista, São Paulo

Figura 2. A proclamação da Independência, óleo de François Moreaux. Museu Imperial de Petrópolis, Rio de Janeiro.

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As duas imagens são encontradas, no livro Passaporte para a História (2004, p.215),

de Renato Mocellin e Rosiane de Camargo, utilizado no ensino fundamental. Junto com as

imagens, há a proposta de um exercício para os alunos, sugerindo que façam a relação das

duas figuras com um texto apresentado e, em seguida, oferece a seguinte atividade intitulada

“Analisando documentos visuais”: “As duas telas a seguir se referem à independência do

Brasil. Elas foram pitnadas anos depois do episódio e retratam o acontecimento de maneiras

diferentes. Como a independência é retratada em cada uma das telas? Qual a relação entre

as imagens e o texto anterior?” (MOCELLIN; CAMARGO, 2004, p.214).

Figura 3. Reprodução das páginas do livro Passaporte para a História (2004).

Os autores provocam os alunos promover uma análise de imagem, porém, sem

conhecimentos prévios sobre o assunto, sem conhecimento de como se fazer isso, as análises

tendem a ser superficiais, não passando de meras descrições sobre os elementos que estão aos

olhos de todos. É neste sentido que a introdução de noções de semiótica, de leitura e análise

de imagens, torna-se importante, oferecendo aos alunos a oportunidade de aprofundar suas

reflexões e, mais ainda, de crescer possuindo uma visão crítica acerca da infinita quantidade

de imagens a que vai ser exposto ao longo de sua vida.

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Sabemos não existir registros fotográficos do grito de independência, o que torna mais

importante as representações feitas em telas. Como um texto visual e, como produção de

artistas, as telas também trazem intencionalidade em suas mensagens e, não raro, a visão

crítica de seus autores transparece na realização da obra. Considerando as duas imagens

apresentadas, lancemos um olhar acerca das mensagens presentes na tela de Pedro Américo

(figura 1):

Num primeiro momento, vemos a imagem de Dom Pedro I acima do cavalo, com

espada em riste, naquele que seria o exato momento em que se declara a independência do

Brasil em relação a Portugal, no ano de 1822. Ao redor do quadro, outros cavaleiros da corte

real, também com suas espadas em riste, comemoram o ocorrido. Enquanto isso, à esquerda

da imagem, identifica-se uma pessoa, negra, provavelmente um camponês a conduzir bois, e,

mais ao fundo, ainda à esquerda, uma pessoa sentada ao cavalo, provavelmente o senhor

“proprietário” da boiada ou algum membro da aristocracia. Esses elementos são facilmente

decodificados por qualquer pessoa e, à primeira vista, não significam mais do que aquilo que

nos é mostrado.

Porém, ao aprofundarmos um pouco mais as reflexões sobre a tela, é possível

questionar outras implicações que nos trazem a ilustração: qual o motivo de Dom Pedro I

estar em cima de um cavalo? Demonstrar que ele dominava equitação? Qual a função do

camponês na imagem? E cavaleiro mais ao fundo, que assiste a cena?

Gonzalo Abril, ao propor leitura de textos verbo-visuais, nos alerta de que há

intencionalidades ocultas nas imagens, seja nas fotográficas, de vídeo ou mesmo nas

ilustrações pictóricas. Para ele, as imagens carregam aspectos narrativos que somente são

decodificados a partir de sua leitura e interpretação, o que nos leva a lançar um outro olhar

para a imagem apresentada.

Dentre os valores simbólicos que podemos destacar é que a prática da equitação não só

demonstra ser esse um hábito pertencente às classes privilegiadas da época, mas também nos

remete a um caráter simbólico: a arte de dominar um cavalo se assemelha à arte de governar

um país, transformando, assim, a equitação em uma alegoria. Assim, se Dom Pedro I

consegue dominar bem seu cavalo, será um bom governante para o país que acabara de

proclamar-se independente. O novo rei mantem-se firme em sua posição, não demonstra

desequilíbrio, e a mão esquerda mantem as rédeas firmes, controlando cada movimento de sua

montaria. Além disso, o cavalo, na imagem, apresenta-se totalmente submisso ao comando de

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seu cavaleiro. Nesse caso, o cavalo transforma-se, num campo simbólico, na população, que

se curva diante do rei e coloca-se à sua disposição. Vale ainda observar que a construção da

imagem, de forma circular, coloca D. Pedro I ao centro da imagem, e tanto o movimento

circular do terreno como a disposição dos cavaleiros que o saúdam direcionam o olhar, como

num redemoinho, para o centro da imagem, deixando outros lados do quadro para uma visão

periférica, com elementos que são vistos apenas com um olhar mais atento para o quadro.

Também devemos olhar para o cenário da imagem. Ao fundo, identificamos outros

cavaleiros, com chapéus e vestes militares, tal como Dom Pedro I. Todos, estão também em

seus cavalos, e erguem as espadas em comemoração e respeito ao novo imperador, numa

prova do poderio militar dominado pelo até então Príncipe Regente. Caso necessário, estão

prontos para ir ao campo de batalha para defender o grito de Independência daquele 7 de

setembro. Apesar de não estar em guerra, a guarda real se coloca em prontidão caso haja

revoltas.

Chama-nos atenção, em especial, a presença de apenas um camponês na imagem.

Talvez este seja o único representante do povo brasileiro que Pedro Américo se dispôs a

retratar na ilustração. O homem, maltrapilho, parece surpreender-se com a cena a que assiste

logo à frente, chegando a inclinar o corpo para trás como uma espécie de autodefesa pelo

susto que tomou ao ver tantos cavaleiros com espada em riste às margens do rio Ipiranga. As

calças arregaçadas até o joelho, a camisa rasgada e o chapéu de palha dão mostras de que não

se trata de membro da corte e, principalmente, refletem uma condição socioeconômica do

Brasil à época de sua independência. Ao desloca-lo para o canto inferior esquerdo da imagem,

zona de menor atração visual da imagem, dá-nos a possibilidade de pensar que o povo

brasileiro, maior interessado na independência do país, foi deixado de lado naquele momento.

Sem poder participar ativamente do fato, a população teria sido tomada de sobressalto ao

descobrir, sem querer, que seu país não pertencia mais a Portugal e, a partir daquele momento,

seria autônomo em todos os seus sentidos.

Da mesma forma, o cavaleiro ao canto superior esquerdo que observa a proclamação

da Independência também não tem uma atitude ativa em relação ao fato, e observa a situação

sem se dar conta, aparentemente, daquela ação do Príncipe Regente e de seus aliados. Os

únicos não militares que participam de forma ativa da imagem estão logo atrás de D. Pedro I.

Já a Figura 2, a tela de François Moreaux, apresenta uma versão um pouco diferente

da Independência, porém, muitos dos aspectos da outra imagem, como a arte de equitação,

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permanecem na representação. Porém, o autor trata o fato de forma mais festiva, trazendo o

povo para próximo do Imperador, deixando a aristocracia e oficiais relegados a um segundo

plano, ao fundo da imagem. Mesmo assim, o povo permanece numa linha abaixo de Dom

Pedro I, colocando os cidadãos como súditos que tentam pelo menos tocar, sem sucesso, no

“mito” que está diante deles. Outro ponto a ser discutido é a presença de crianças no entorno

do cavalo, que representam a esperança, o futuro, a nova pátria que acaba de surgir. Apesar de

crianças, os rostos retratados carregam feições de adultos, representando essa não ser, de fato,

uma “nova pátria”, e sim inicia um passo em seu processo de amadurecimento.

Diante de todas estas constatações, há uma narrativa embutida no quadro que passa

despercebida caso a imagem seja enxergada apenas como ilustração de suporte, deixando de

lado as implicações tratadas pelo artista que a confeccionou. No sentido que propomos, a

imagem deixa de ser apenas um suporte e passa a ter mais relevância. É o mesmo que ocorre

com as fotografias da mídia. Paulo Bernardo Ferreira Vaz (2006), ao escrever a introdução do

livro Narrativas Fotográficas afirma:

A fotografia, manifestação de sentido inscrita em jornais, dotada de uma

materialidade marcadamente simbólica, não está ali apenas para ilustrar. Por isso, o

papel por ela desempenhado nesse suporte é de grande relevância. Acompanhando

textos (títulos, matérias, legendas), a foto torna-se argumento do jornalista,

complementando a busca pela veracidade sobre o que ali se escreve, ajudando a

comprovar o que foi dito. (VAZ, 2006, p.9-10)

As ilustrações dos livros de história, assim como as fotografias para os jornais,

tornam-se parte do discurso do livro, passam a integrar sentido e, mais que isso, trazer novas

narrativas para seus leitores. Como bem nos lembra Van Leeuwen, estudar o potencial

semiótico de uma determinada representação ou significado representa estudar de que forma

estes recursos têm sido utilizados e elaborados como uma ferramenta de comunicação (VAN

LEEUWEN, 2005).

E para se conseguir absorver todo potencial semiótico de telas como as utilizadas neste

capítulo, é preciso preparar os jovens estudantes a entender aquilo que estão diante e, mais

que isso, é preciso haver estímulo por parte dos professores para desencadear esse processo de

interpretação dos textos visuais. Apoiados aos textos verbais, as narrativas visuais traçam

novas visões e entendimentos acerca do conteúdo ministrado.

Acreditamos que a inserção de conceitos básicos da semiótica no nível fundamental e

médio é uma forma de preparar os futuros adultos para lidar, especialmente, com as imagens

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da mídia. Lembramos que os processos de semiose, interpretação dos signos, é constante e faz

parte do cotidiano de todos, seja num desenho animado, anúncio publicitário ou capa de

jornal. A ciência da semiótica tem contribuições importantes neste sentido, que atualmente

ficam legadas ao ensino superior, ao passo que seus conceitos primários podem fazer parte da

educação básica dos alunos sem exigir deles profundos conhecimentos técnicos ou culturais.

Formar cidadãos conscientes, preparados para ir além das leituras superficiais,

contribuirá de forma importante para a futura massa crítica, apta a interpretar imagens

publicitárias e jornalísticas às quais, diariamente, todos nós somos submetidos.

Referências bibliográficas

ABRIL, Gonzalo. Análisis crítico de textos visuales: Mirar o que los mira. Madrid: Editorial Sintesis, 2007.

BRAGA, José Luiz. Os estudos de interface como espaço de construção do campo da comunicação. In: Grupo

de Trabalho Epistemologia da Comunicação, Compós, XIII Encontro Anual, São Bernardo do Campo, 2004, 18

pág.

LEEUWEN, Van. Introducing Social Semiotics: An Introductory Text Book. Rouledge: New Ed Edition, 2005.

MOCELLIN, Renato; CAMARGO, Rosiane. Passaporte Para a História. São Paulo: Editora Do Brasil,

2004.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. Col. Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999.

SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho: Uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes,

2002.

VAZ, Paulo B. Narrativas Fotográficas. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.