CONSCIÊNCIA E MENTE

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1 M ME E N N T T E E E E C C O O N N S S C C I I Ê Ê N N C C I I A A E E N N S S A A I I O O S S D D E E F F I I L L O O S S O O F F I I A A D D A A M ME E N N T T E E E E F F E E N N O O M ME E N N O O L L O O G G I I A A André Barata

Transcript of CONSCIÊNCIA E MENTE

1

MMM EEENNNTTTEEE EEE CCCOOONNNSSSCCCIII ÊÊÊNNNCCCIII AAA

EEENNNSSSAAAIII OOOSSS DDDEEE FFFIII LLL OOOSSSOOOFFFIII AAA DDDAAA MMM EEENNNTTTEEE EEE

FFFEEENNNOOOMMM EEENNNOOOLLL OOOGGGIII AAA

André Barata

3

À memória de João Paisana

É entre a sensação e a consciência dela que se passam todas as grandes tragédias da minha vida. Bernardo Soares But maybe the problem is not with the world but with us. It’s important to notice that the existence of these explanatory gaps does not itself entail anything like dualism. The gaps, after all, could simply be gaps in our way of conceiving phenomena in the world, and not in the worldly phenomena themselves: they could all be a result of some limitations in the way we have of thinking about the world: the right way of thinking about the issues simply hasn’t yet occurred to us.

Georges Rey

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7

Introdução

A colecção de ensaios que compõe este livro trata de uma

perplexidade suscitada por duas fortes convicções filosóficas. De acordo

com uma, aquilo a que as pessoas chamam ‘mente’ deveria explicar-se

por meio de acontecimentos nos nossos cérebros, seus processos

bioquímicos, biofísicos, físico-químicos, no quadro de uma dependência

natural do mental sobre o neural. Razões relativamente elementares e

pouco sofisticadas sustentam esta convicção – primeiramente, nenhuma

mente humana sobrevive à morte do corpo, do seu cérebro; depois,

muitos estados mentais deixam-se atestar numa sincrónica observação de

estados neurais que, de algum modo, lhes correspondem. A dependência

parece, pois, clara e intuitiva. Mas, já por outro lado, aquilo que toda a

gente reconhece como sendo o mundo real, exterior, ou seja, os estados

de coisas descritos pela Física, pela Química, pela Biologia, nada disso é

experimentado a não ser sob a pressuposição de uma mente que deles

faça experiência. Outras razões, tão elementares como as anteriores,

sustentam esta convicção – como só se atestam as exterioridades do

mundo real que tenham, de algum modo, sido dadas a experienciar, e

como toda a experiência a que se acede é experiência de uma mente e

para uma mente, então apenas pelo cabal esclarecimento do que seja a

experiência de uma mente se poderá esperar uma explicação para aquilo

que deveria explicar a mente. Eis a perplexidade: o explanans e o

explanandum, no que respeita ao problema mente/cérebro, estão

reciprocamente implicados num círculo de que não é fácil sair.

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Com isto, pelo menos fica claro que há uma questão a enfrentar, a

saber – O que é a experiência mental e, em particular, a experiência

mental consciente?

Face a esta questão, a nossa principal expectativa com este livro

está em expor as condições sob as quais cremos ser possível uma

naturalização da experiência mental e, em particular, da experiência

consciente, dando, assim, continuidade aos esforços dos programas de

naturalização da intencionalidade empreendidos nas últimas décadas pela

Filosofia da Mente, e prolongados, mais recentemente, por tentativas de

naturalização da Fenomenologia. No entanto, neste âmbito, resultará,

desde logo, muito importante discernir entre aquilo a que chamamos, nas

nossas vidas mentais, mentalidade e aquilo que tomaríamos como uma

propriedade não necessária das mentes, a saber, serem providas de

consciência e, ainda, aquilo que tomaríamos como uma propriedade,

também não necessária, da consciência, a saber, a intencionalidade (Cap.

1).

Note-se, porém, que não é nossa pretensão resolver o problema

mente/corpo e explicar a vida das mentes humanas através do

conhecimento da actividade dos cérebros humanos, o que seria ir bem

para lá da esfera da filosofia. A nossa pretensão não está tanto em que

possamos resolver o problema da naturalização, problema essencialmente

científico, mas em tentar perceber sob que enquadramento as ciências

relevantes o poderão resolver. E isto corresponde razoavelmente à ideia

de uma epistemologia do problema mente/corpo. Ou seja, tratar-se-á aqui

de uma naturalização que começa por se pôr a si mesma em questão,

procurando dar um enquadramento adequado ao que deva ser entendido

por uma explicação natural do mental e, em particular, ao que se pode

esperar de uma tal explicação, que expectativas podemos nela fundar. E

no que diz respeito a essas expectativas, defenderemos que uma

explicação natural do que é da ordem do mental não pode pretender obter

o seu explanandum de forma ostensiva. Isto porque uma explicação

natural, entenda-se neurológica, da mente não pode ser mostrada – tal

significaria encontrar na perspectiva da terceira pessoa a perspectiva da

primeira pessoa, o que conduziria a absurdos evidentes (Cap.2).

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Exposta a necessidade de formular uma moldura adequada ao

problema, e sob a presunção de que haja correlações sincrónicas entre

estados mentais e estados neurais, o que evidencia uma relação, entre o

mental e o neural, que não será de causa/efeito mas de sobreveniência

natural, sustentaremos que tal sobreveniência, apesar de natural, não

pode ser reconduzida aos casos normais de sobreveniência do biológico

sobre o químico, do molecular sobre o atómico, etc. Enquanto estes são

casos de sobreveniência inteiramente descritos na perspectiva da terceira

pessoa, envolvendo apenas uma diferença de escala de observação, já a

sobreveniência do mental sobre o neural envolve uma diferença entre o

que tem escala e o que, de todo, não tem escala, não sendo essa diferença

descritível a não ser pela contraposição da perspectiva da terceira pessoa

a uma perspectiva da primeira pessoa. Daí propormos chamar-lhe

sobreveniência especial em contraste com a sobreveniência normal,

ainda que ambas sejam naturais, isto é, explicitáveis numa mesma ordem

de coisas que é a natureza (Cap.2).

Reconhecer esta moldura explicativa do problema mente/corpo, a

título de uma epistemologia do problema, permitirá dar resposta à

suspeita, a que por vezes se dá expressão na literatura filosófica, de que

haja um mistério ou uma irresolubilidade de princípio do problema

mente/corpo. Mesmo independentemente da maior ou menor virtude de

uma resolução com base na tese da sobreveniência especial, um tal

mistério prende-se menos com as soluções que se adoptem como

respostas mais ou menos plausíveis para o problema do que com uma

forma equívoca de o conceber. Daí, haver pertinência em especificar,

consagrando-lhe importância, um problema epistemológico mente/corpo.

**

Admitindo o dualismo de perspectivas, a da primeira e a da terceira

pessoa, haveria que dar conta da sua razão de ser, o que, de acordo com

uma expectativa muito razoável, deve ser possível a partir de uma análise

das próprias condições subjectivas da experiência. Por outras palavras, a

distintividade dos objectos de experiência intencional, em contraste com

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outras formas de experiência que apenas ostentam significação – como é

o caso dos qualia – ou mesmo experiências desprovidas de significação –

como é o caso dos sense data –, coloca-nos perante a necessidade de

proceder a uma análise caracterológica da experiência mental (Cap. 4).

Desta, resulta a distinção entre três caracteres da experiência mental, a

saber, o carácter ‘experiência’, o carácter ‘significação’ e o carácter

‘objecto’, caracteres acumuláveis apenas segundo esta ordem,

correspondendo o primeiro, no caso da percepção, à experiência dos

sense data, os dois primeiros à dos qualia, e o conjunto dos três à dos

percepta. Observe-se, contudo, que esta distinção analítica entre sense

data, qualia e percepta apenas diz respeito à percepção, devendo pois ser

possível indicar pares qualitativos destas distinções para actos de

qualidade diferente da da percepção. Donde, em termos genéricos,

afirmarmos que os percepta são um caso particular de objectos

intencionais ou de referentes, os qualia um caso particular de

significações não intencionais ou de arreferentes e, por fim, os sense

data um caso particular de experiências insignificantes ou de simples

insignificantes.

Estabelecida esta caracterologia da experiência mental, intentamos

dar dos qualia (e, generalizando, também dos seus pares qualitativos)

uma descrição, de teor fenomenológico, de alguns traços negativos (ou

seja, aquilo que podemos dizer não serem) e de alguns traços positivos

(ou seja, aquilo que podemos dizer serem). Em relação a estes,

procuraremos mostrar, nomeadamente, que os qualia se caracterizam por

uma unicidade experiencial, correspondem a propriedades da

experiência, resultam de propriedades relacionais, só são

experienciáveis nos percepta de forma indirecta, o seu esse não coincide

com o seu percipi, são dotados de objectividade.

Por fim, e de uma forma decisiva, o isolamento da experiência

desprovida de referência e de significação como uma experiência não só

privada mas, além disso, muda, conduz-nos à necessidade de dissociar,

analiticamente, o problema da experiência do da consciência – aquele

não supõe este, uma vez que a experiência insignificante – i.e, a pura

experiência dos sense data e seus pares qualitativos – é uma experiência

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mental sem consciência. Este ponto é decisivo por pelo menos duas

ordens de razão.

Primeiramente, porque obriga a aceitar uma clara demarcação entre

mente e mente consciente: Analogamente à naturalização da

intencionalidade, que anula a pretensão de que a intencionalidade seja

uma propriedade exclusiva das mentes conscientes, com a ideia de uma

naturalização da experiência, o nosso propósito é esclarecer que a

pretensão de que a experiência mental seja necessariamente experiência

consciente é uma pretensão fundamentalmente errada. Não é essencial às

mentes humanas serem conscientes, ainda que seja a consciência o que

mais as distingue. Em tese, sustentamos que a experiência sensorial não

é, por si mesma, nunca experiência consciente, nem, muito menos,

intencional. Se dela temos consciência é apenas, desde pelo menos as

Investigações Lógicas de Husserl, através de uma abstracção de

percepções. Mas, bem vistas as coisas, nem assim acedemos

conscientemente aos sense data. Há acesso experiencial, sempre houve,

antes, durante e depois da percepção, mas acesso que não é consciente.

Ora, admitindo-se que há experiência mental não consciente, então deve

ser possível explicar naturalmente o que é a experiência mental sem

supor, nem pressupor, nessa explicação termos que envolvam uma

referência à consciência (Cap. 1).

Em segundo lugar, estando a consciência, em condições normais,

suposta no carácter ‘significação’ da experiência mental humana, por um

lado, e discernindo-se, no quadro de uma tipologia de significações (Cap.

3), um tipo particular de significação dita consciente, por outro, há,

então, uma transferência do problema da consciência para a problemática

em torno do sentido. Em suma, mente e consciência não só não são a

mesma coisa, como respeitam a domínios inteiramente distintos – a

mente é sempre relativa a uma experiência, ao passo que a consciência é

relativa a uma significação. Por isso, em tese, o que defendemos é que só

teorias categorialmente diferentes poderão explicar mente e consciência.

***

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A investigação que levamos a cabo nos Caps. 5 e 6 começa por

avaliar os modelos simbólico-computacionais para a mudança de estado

mental e, em particular, para a explicação da causalidade mental. Com

esse intuito, são tomados em consideração programas de investigação

como o behaviourismo lógico, o funcionalismo do computador (com a

sua analogia Software/Harware), a Inteligência Artificial e a hipótese da

linguagem do pensamento. E concluímos pela aplicabilidade do modelo

simbólico-computacional (entendido genericamente) a uma compreensão

parcelar da cognição humana, ou seja, à compreensão de algumas

mudanças de estado mental, mas sem que, de todo o modo, questões

como saber o que é a mente, a consciência e a compreensão sejam por

essa via elucidadas. Tal conclusão só é alcançada tidos em conta, e

discutidos, os argumentos do filósofo John Searle contrários à

Inteligência Artifical, designadamente o célebre argumento do quarto

chinês e o da não dependência entre comportamento e consciência, e,

além destes, os do matemático Roger Penrose, em particular o argumento

da partida de xadrez.

Esta aplicabilidade parcelar – sob o que designaremos por

Princípio das três restrições – do modelo lógico-computacional da

cognição humana, permite discernir, sob o nível computacional da

cognição humana, um outro, mais básico, sobre o qual aquele se

implementa. É assim remetida a nossa investigação dinâmica para o

plano de um processo básico mental, onde ganham importância aspectos,

a nosso ver inexplicáveis de um ponto de vista computacional e, no

entanto, cognitivamente relevantes, como o fenómeno da compreensão e

da significação consciente. Em particular, relativamente à compreensão,

exporemos um conjunto de critérios próprios que culminam no critério

distintivo de uma avaliação momentânea do estado do sistema cognitivo.

****

O Caps. 7 é inteiramente dedicado a uma teoria da percepção nas

suas relações com a temporalidade. Desdobra-se aí, por um lado, a

actualidade de uma mente em uma actualidade hilética (A) e uma

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actualidade significativa (A’) e possibilita-se, por outro, o

desdobramento desta última em uma actualidade significativa na posição

de primeiro plano (A’’) relativamente a uma actualidade significativa na

posição de pano de fundo (A’).

O primeiro desdobramento, entre A e A’, é a nosso ver ilustrável

com a tese husserliana, expendida em Da Síntese Passiva, de que os

actos perceptivos envolvem, além de um conteúdo propriamente hilético

dado pela proto-impressão (Urimpression) e a que fazemos corresponder

A, o fenómeno quer de uma retenção quer de uma protenção,

intencionalidades constituintes da vivência interna da temporalidade e a

que fazemos corresponder A’. Este desdobramento aprofunda

significativamente o corte entre mentalidade e consciência apontado

desde o Cap.1.

O segundo desdobramento, o da actualidade significativa num A’ e

num A’’, permitirá obter uma descrição fenomenológica de dois pontos

essenciais à dinâmica mental. Primeiramente, a constituição de

objectidades que se dão a experienciar sob diferentes aspectos,

preservando a sua identidade através de uma unidade temporal. Este

ponto é essencial, pois sem ele não seria possível compreender a génese

fenomenológica dos percepta, enquanto distintos dos qualia. Neste

sentido, vem complementar as conclusões obtidas na explicitação de uma

caracterologia da experiência mental. Em segundo lugar, este

desdobramento da actualidade significativa num primeiro plano sobre um

pano de fundo permite dar conta da natureza do tempo vivido

subjectivamente – o tempo subjectivo; permite mesmo estabelecer as

variáveis envolvidas em fenómenos como a “dilatação” ou “contracção”

do tempo subjectivo em relação ao tempo objectivo dos relógios.

Note-se que aspectos como a dinâmica reflexiva da crença, a

tomada de decisão, a experiência da compreensão, todos envolvidos no

processo de reconhecimento perceptivo, não se deixam captar por uma

descrição em termos simbólico-computacionais. Daí, sugerirmos um

duplo processo mental. Se o modelo simbólico-computacional da

cognição humana se adeqúa parcelarmente à cognição humana,

especificadamente à actividade inferencial, através de um reconstrução

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que procura fundamentar, por exemplo, uma decisão, dando dela razões,

se, por outro lado, há um processo mental básico que não se deixa, a

nosso ver, descrever computacionalmente, então, perguntar-se-á, qual o

modelo mais adequado para obter uma descrição deste último? Em

resposta, sugeriremos o conexionismo dinamicista (na linha de Timothy

van Gelder e Robert Port), como modelo para a cognição básica e,

portanto, como modelo em que deve ser possível implementar a cognição

humana de natureza computacional. De acordo com esta variante do

conexionismo, uma simulação da cognição humana, no seu processo

básico, poderá ser modelada (pelo menos em princípio) através de

equações diferenciais que descrevam o comportamento do sistema ao

longo do tempo. Sob este modelo, as trajectórias possíveis de activação

numa rede neural serão, em princípio, representáveis num espaço de fase

como paisagens dinamicistas. Tais trajectórias poderão assumir a forma

de atractores, sejam de ponto fixo ou de ciclo limite, com “bacias” de

atracção.

Ora, este é um terreno fértil para aproximações entre neurociências

e fenomenologia como propõe o programa de uma naturalização da

fenomenologia, defendido por Francisco Varela entre outros, e retomado

em investigações como as de Robert Port e Tim van Gelder acerca da

percepção de objectos temporais. O nosso último estudo (Cap. 8) vem

subscrever a proposta de naturalização da fenomenologia na figura do

seu principal compromisso teórico, a saber, o pressuposto de que haja

constrangimentos mútuos entre fenomenologia e neurociências ou, ao

menos, uma iluminação recíproca entre essas duas áreas de investigação.

No essencial, trata-se de defender que há resultados proporcionados pela

fenomenologia que constituem evidência relevante em discussões

internas a neurociências e, paralelamente, há também resultados obtidos

pelas neurociências que têm valor no quadro de uma fenomenologia. O

ponto de vista de dentro, como o de fora, são naturalmente pontos de

vista sobre o mesmo. É precisamente esse vínculo que, sem arrogância

nem pretensiosismo disciplinar, faz da naturalização da fenomenologia

um programa intelectualmente aberto, capaz de produzir explicações

mente/corpo sob ângulos particulares ou locais, mas que, uma vez

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integrados, exprimem progresso na ideia de uma explicação natural da

mente.

*****

Estes ensaios correspondem a parte significativa de uma tese de

doutoramento apresentada à Universidade de Lisboa em 2004, e cuja

presente publicação permite-me agora perseverar no espírito e na letra dos

agradecimentos que na ocasião pude exprimir. Ao Professor Doutor João

Paisana, a quem, tragicamente, já não pude agradecer nada, devo duas palavras

que tempo algum apagará em mim da sua memória – uma pela amizade

filosófica que me ofereceu pessoalmente, outra pela paixão filosófica que me

ensinou enquanto professor e primeiro orientador de doutoramento.

Ao Professor Doutor Pedro M. S. Alves, agradeço ter-me aceite como

seu orientando de doutoramento num momento de graves hesitações,

conduzindo-me com simplicidade, estímulo e rigor ao prosseguimento de um

projecto de trabalho cujo sentido se tornara excessivamente pessoal. Devo-lhe,

acima de tudo, o interesse e o sentido que esta dissertação pôde ainda fazer e

oxalá possa ainda fazer.

Agradeço ao meu avô, Úlpio Nascimento, meu professor desde tenra

idade, e de quem ainda pude colher a imagem viva do homem de ciência.

Ao Urbano Mestre Sidoncha agradeço o comentário de parte importante

desta dissertação. Ao Desidério Murcho agradeço a permanente disponibilidade

para pensar comigo a divergência filosófica.

À Fundação para a Ciência e para a Tecnologia agradeço, uma vez mais,

uma política de apoio à investigação sem a qual não teria sido de todo possível

desenvolver este trabalho, bem como anteriores e, bem entendido, a minha

actual vida profissional.

À Rita, já não posso dizer que são os seus passos, entre os meus, que

fazem a nossa vida. Já o disse noutra ocasião. Tropeçamo-nos muitas vezes,

sobretudo com a tua paciência, agora ainda mais se juntarmos aos nossos os

passos da Mariana e do Mário. Mas tantos passos nunca são demais quando

acontece acertarmos todos num qualquer parque de diversões da nossa vida.

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I

Mentalidade sem consciência

Desde Franz Brentano, quer a fenomenologia quer a filosofia da

mente têm procurado esclarecer as relações de implicação entre mente,

consciência e intencionalidade.

É a Brentano que se deve a apresentação da propriedade da

intencionalidade como critério para demarcar o mental do não mental. Na

sua esteira, a fenomenologia de Husserl, enquanto programa para uma

ciência das vivências intencionais, assumiu a mesma intencionalidade

como propriedade definidora da consciência. Ambas as teses se reportam

à intencionalidade; não obstante, não dizem o mesmo. A psicanálise de

Freud evidencia-o na sua difícil relação com a fenomenologia – os dois

programas são contemporâneos e ambos assumem o critério de Brentano;

contudo, enquanto a psicanálise de Freud presumiu um Inconsciente, que

tomou como seu objecto de estudo, e que ainda seria mental em virtude

da sua natureza intencional, a fenomenologia recusou, particularmente

com Sartre, a hipótese do Inconsciente com base na ideia de que a

intencionalidade não só seria necessária à consciência mas também

exclusiva à consciência. Neste sentido, de acordo com Sartre, afirmar um

inconsciente intencional mais não seria do que afirmar um absurdo: um

“inconsciente consciente”. Daqui seguir-se-iam consequências bem

conhecidas do pensamento de Sartre. Por exemplo, a de que supor um

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inconsciente por detrás da consciência a mais não corresponderia do que

a uma forma de “má-fé”.

Todas estas relações de implicação

(1) Mente→Intencionalidade

(2) Consciência→Intencionalidade

(3) Intencionalidade→Consciência

são hoje difíceis de manter. Com efeito, a (3) contrapõem-se os

programas de naturalização da intencionalidade; a (2) contrapõe-se uma

“consciência fenomenal” que não implica intencionalidade, em contraste

com uma consciência realmente intencional, “de acesso”, segundo Ned

Block, ou “psicológica”, segundo David Chalmers; a (1) contrapõe-se,

exemplarmente, Hilary Putnam com a sua recusa de que as imagens

mentais e os pensamentos sejam intrinsecamente intencionais.

Independentemente da riqueza dos resultados que a fenomenologia

husserliana e a psicanálise freudiana obtenham, as implicações básicas

que os enquadram teoricamente foram abaladas. Mas o meu intuito é ir

um pouco mais longe e mostrar que a mente não só não implica

intencionalidade como também não implica consciência. Para isso,

procurarei dar conta de vários pontos de vista, provindos quer da

fenomenologia, quer da filosofia da mente, quer da neurobiologia, que

convergem para um reconhecimento de que existe experiência mental

sem consciência.

Admitindo este resultado, julgo seguirem-se algumas

consequências importantes quanto ao que possa ser o melhor ângulo de

abordagem ao problema mente/corpo. Em primeiro lugar, e

acompanhando Chalmers, o problema “duro” não residirá ao nível da

intencionalidade; no entanto, tão pouco se me afigura que resida ao nível

da consciência fenomenal. Dissociar o problema mente/corpo dos

problemas da intencionalidade e da consciência, constitui não apenas

uma forma de o “amenizar” como ainda a possibilidade de colocar sobre

melhores bases quer uma teoria da experiência mental quer uma teoria da

consciência.

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1. Experiência mental sem intencionalidade

As experiências de pensamento concebidas por Hilary Putnam em

‘Brains in a Vat’1 visam mostrar que as imagens mentais e os

pensamentos, do mesmo modo que os objectos físicos, não dispõem de

nenhuma intencionalidade intrínseca. Assumindo a correcção do

argumento, é naturalmente o próprio critério de Brentano que é atingido.

Por exemplo, a imagem mental de uma árvore não é mais nem

menos intencional do que a imagem material de uma árvore; nem uma

nem outra representam mais uma coisa do que qualquer outra coisa.

Portanto, não será na intencionalidade que se poderá esperar encontrar

um critério seguro para demarcar o mental do não mental. Naturalmente,

um sujeito mental humano tenderá sempre a atribuir intencionalidade a

uma imagem mental; mas, e é esse o ponto, tal imagem mental não é por

si mesma acerca de nada, não possui intrinsecamente nenhuma

intencionalidade.2

Com isto, penso ficarem clarificadas as razões por que a

implicação (1), consagrada por Brentano, não pode ser aceite. A este

propósito, afirma Putnam:

Alguns filósofos saltaram, no passado, deste tipo de consideração para o que tomaram por uma prova de que a mente é de natureza essencialmente não-física. O argumento é simples (…). Nenhum objecto físico pode, em si mesmo, referir-se mais a uma coisa do que a outra; não obstante, os pensamentos na mente têm obviamente êxito ao referir-se a uma coisa em vez de outra. Então os pensamentos (e por isso a mente) são de natureza essencialmente diferente dos objectos físicos. Os pensamentos têm a característica da intencionalidade – podem referir-se a outra coisa; nada de físico tem «intencionalidade», salvo quando essa intencionalidade é derivada de algum emprego dessa coisa física pela mente. Ou assim é pretendido. Isto é demasiado

1 Cf. Putnam (1981). 2 Note-se que para Putnam ser inteiramente consequente, nem sequer deveria aceitar designar por

«imagem» a imagem mental, pois, por princípio, algo ser imagem implica ser imagem de alguma coisa, ou seja, representar, referir-se a algo, ser, em suma, provida de intencionalidade. Mas, se não é, intrinsecamente, imagem, não deixa, contudo, de ser mental. Por esta razão e para que o adjectivo «mental» não fique sem o substantivo que visa qualificar, proponho substituir a expressão «imagem mental» pela expressão genérica «experiência mental» e pela expressão mais particular «experiência visual», julgo que sublinhando, assim, o ponto central do argumento de Putnam.

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apressado: postular simplesmente poderes misteriosos da mente não resolve nada. Mas o problema é muito real. Como são possíveis a intencionalidade, a referência?3

Não é inapropriado, em jeito de nota, lembrar também as teses de

Donald Davidson de que as sensações não são crenças, apenas causam-

nas, ou seja, que entre a experiência sensorial de uma mente – por

exemplo, a visual – e as suas crenças há apenas uma relação causal, não

podendo aquela ser entendida como um intermediário epistémico entre a

realidade e as nossas crenças acerca dessa mesma realidade. Tais teses

convergem, tal como as de Putnam, ainda que a partir de pontos de vista

distintos, para uma desimplicação de intencionalidade, representabilidade

ou significabilidade relativamente à pura experiência sensorial de uma

mente.

Ainda no que respeita a (1) – e mesmo relativamente a (2) –

existem manifestas demarcações no contexto da tradição

fenomenológica. Logo com Heidegger, a intencionalidade é entendida

como uma noção derivada e não originariamente requerida pelo que, na

linguagem do autor de Ser e Tempo, se diz como «vir à presença». Mais

tarde, com a descrição de uma «existência sem existente», também

Levinas leva o esforço fenomenológico – e é ainda disso que se trata –

aonde não há vivências intencionais, mas onde há, não obstante,

vivências. Trata-se de fenomenologia porque se trata de experiência;

simplesmente não de experiência intencional. Noutras palavras, não se

trata de experiência de alguma coisa, mas de simples experiência. Em

Totalité et Infini, Levinas expõe o ponto com toda a clareza que a sua

linguagem permite:

A relação com o infinito não pode, certamente, dizer-se em termos de existência (…). Mas, se a experiência significa precisamente a relação com o absolutamente outro, (…) a relação com o infinito realiza a experiência por excelência.4

3 Putnam, 1981: 24-25. 4 Levinas, 1961: XII.

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Um outro fenomenólogo bastante atento à necessidade de

desimplicar a intencionalidade quer da mente quer da consciência é

Michel Henry. Sob a forma de um inquérito, este fenomenólogo

contrapõe ao «ver da intencionalidade» um outro registo de «revelação»:

A intencionalidade que tudo revela, como se revela a si mesma? Ao dirigir-se sobre si mesma não estaremos perante uma nova intencionalidade? Não se reduzirá, então, a questão a esta última? A fenomenologia poderá escapar ao amargo destino da filosofia clássica da consciência arrastada numa regressão sem fim, obrigada a pôr uma segunda consciência por detrás da que conhece – no caso uma segunda intencionalidade por detrás desta que se quer arrancar à noite? Ou então, haverá um outro modo de revelação que não o fazer ver da intencionalidade – uma revelação cuja fenomenalidade não seria mais a da «exterioridade» deste ante plano de luz que é o mundo?5

Resumindo, diferentes vias de argumentação, mesmo sob tradições

disciplinares distintas, evidenciam não haver necessariamente

intencionalidade pelo facto de ocorrer mentalidade. Neste sentido, não se

afigura sustentável o critério de Brentano. Mas, há igualmente bons

argumentos que tornam pelo menos discutível a ideia de que a mente

consciente implique intencionalidade.

2. Consciência sem intencionalidade

Se a consciência fosse necessária ou intrinsecamente intencional,

como pretende a fenomenologia original de Husserl, ter-se-ia então que

poderiam ocorrer estados mentais que, por não serem intencionais, não

fossem conscientes.6 Seria o caso dos qualia, admitindo que não sejam

intencionais, ou então, das imagens mentais e pensamentos de que

Putnam fala em ‘Brains in a Vat’. Porém, se a consciência não implicar

intencionalidade, ao arrepio da posição husserliana de que a consciência

é sempre consciência de algo, não será por aqui que se poderá garantir a

existência de estados mentais não conscientes. Ou seja: a

5 Henry, 2000: 49. 6 Note-se que tais estados mentais não estão evidentemente a ser pensados como estados

inconscientes à maneira de Freud, pois para este tais estados caracterizam-se como mentais ou psíquicos justamente por serem ainda estados intencionais.

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intencionalidade não servirá de critério para distinguir o mental do

consciente.

Ora, que a consciência não implica intencionalidade, e que com

isso fica explícito um critério possível para distinguir o mental do

consciente, vê-lo-emos em seguida com Ned Block e David Chalmers,

autores que, não sem algumas diferenças, defendem a existência de uma

consciência não intencional. Denominam-na «consciência fenomenal»

em contraste com a «consciência psicológica», no dizer de Chalmers, e

com a «consciência de acesso», no dizer de Block. Daqui segue-se a

rejeição de (2). Com efeito, algo ser fenomenalmente consciente não

implica ser intencionalmente consciente. Block resume o ponto da

seguinte forma:

P-consciência é experiência. Propriedades P-conscientes são propriedades experienciais. Estados P-conscientes são estados experienciais, i.e, um estado é P-consciente se possui propriedades experienciais. A totalidade das propriedades experienciais de um estado são ‘como é que é’ tê-lo. Passando dos sinónimos aos exemplos, temos estados P-conscientes quando vemos, ouvimos, cheiramos, provamos, e temos dores. As propriedades P-conscientes incluem as propriedades experienciais das sensações, sentimentos e percepções, mas também incluiria os pensamentos, os desejos e as emoções. (...) Tomo as propriedades P-conscientes como sendo distintas de qualquer propriedade cognitiva, intencional ou funcional. (Cognitiva = envolvendo essencialmente pensamento; propriedades intencionais = propriedades em virtudes das quais uma representação ou estado é acerca de alguma coisa; propriedades funcionais = e.g., propriedades definíveis em termos de uma programa de computador).7

As aludidas diferenças entre Block e Chalmers reportam-se

sobretudo às relações entre as duas espécies de consciência. Enquanto

Block admite, pelo menos conceptualmente, a possibilidade de uma A-

consciência sem P-consciência e vice-versa, Chalmers sustenta, através

do que denomina «Princípios de coerência», uma dupla implicação entre

consciousness (entendida como o lado fenoménico da consciência) e

awareness (entendida como o seu lado intencional). Por esta razão,

embora Chalmers, tal como Block, desimplique a intencionalidade da

consciência fenomenal, não deixa, ainda assim, de sustentar uma posição

7 Block, 1995: 380-381.

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vizinha da da fenomenologia husserliana. Com efeito, ainda que a

consciência fenomenal não seja em si mesma intencional, só poderá

haver consciência fenomenal havendo consciência intencional. Neste

ponto em particular, inclinamo-nos para a posição de Block. E por duas

razões. Primeiramente, a possibilidade de ocorrência de consciência

fenomenal sem consciência de acesso (ou de consciousness without

awareness) parece ser perfeitamente atestável em experiências

qualitativas sem qualquer objecto intencional. Por exemplo, quando se

deixa de prestar atenção a um objecto, mas à maneira como é vivenciado.

Em segundo lugar, a possibilidade de ocorrência de consciência de

acesso sem consciência fenomenal (ou de awareness without

consciousness) resulta bastante evidenciada nos casos habitualmente

designados como casos de Blindsight.

3. Direcções de investigação do problema mente/corpo

A demarcação da mentalidade face àquilo que diz respeito à

intencionalidade, por mão de Putnam, torna possível enfrentar o

problema mente/corpo independentemente do problema da

intencionalidade (ainda que fosse precisamente este último o problema

que realmente interessava Putnam em Reason, Truth and History).

Digamos assim: Putnam bifurcou um problema em dois, e seguiu por

uma das vias bifurcadas, a saber, a que se preocupa com entender o que é

a intencionalidade. Para o presente, o que nos interessa é seguir pela

outra via bifurcada, a saber, a que se preocupa com entender o que é a

experiência mental.

Mas já por outro lado, com Chalmers e Block, a desimplicação de

intencionalidade na consciência fenomenal conduziu a uma especificação

do problema mente/corpo, a saber, a sua formulação como um problema

duro (hard problem). A sua “dureza” prende-se com uma resistência a

qualquer forma de tratamento, pois as estratégias de naturalização da

intencionalidade – estratégias, aliás, bastante bem sucedidas –, bem como

as abordagens funcionalistas à mente e o programa da IA deixam de ser,

pelo menos tanto quanto parece, aplicáveis.

24

Contudo, e uma vez mais, o que se obtém é sobretudo uma

bifurcação de um problema em dois – de um lado, o problema da

intencionalidade (problema que, como vimos, interessava

particularmente Putnam em ‘Brains in a Vat’) e, do outro, o problema da

consciência fenomenal e dos celebérrimos qualia. Não obstante, o facto

de o problema da mente não se encontrar na via que nos leva aos

problemas em torno da intencionalidade não significa que tenha de se

encontrar na via que nos leva aos problemas em torno da consciência

fenomenal e dos qualia. É claro que foi essa suposição que conduziu

muitos autores, especialmente os qualiófilos, a julgarem que seria aí que

se deparariam real e seriamente com o problema mente/corpo, o dito

problema “duro” para que já Thomas Nagel apontava com o seu ‘What it

is to be like a bat?’. No entanto, a meu ver, tal como não seria, para esses

autores, na intencionalidade que se deveria enfrentar o problema

mente/corpo, também não será no âmbito de uma consciência fenomenal

que ele poderá ser tratado. E isto porque julgo haver boa evidência contra

a terceira e derradeira implicação (3).

Dito por outras palavras, não será tanto no debate, entre qualiófilos

e qualiófobos, quanto à existência, ou não, de qualia, ou quanto ao seu

alegado carácter não intencional, que se jogará o essencial do problema

mente/corpo quando se pode evidenciar a existência de estados mentais

que não são nem intencionais nem conscientes.

4. Experiência mental sem intencionalidade nem consciência

Mas – perguntar-se-á – pode haver uma experiência mental sem

intencionalidade nem consciência? Fará algum sentido adjectivar como

mental e entender como experiência algo que não disponha nem de

intencionalidade nem de consciência?

Há, a meu ver, fortes e variadas razões para responder

afirmativamente a estas questões. Começo com uma razão muito simples,

assente na História natural das espécies animais. Seria muito pouco crível

sustentar a ideia de que, por exemplo, uma mosca, artrópode dotado de

receptores sensíveis, não disponha de experiência sensível; e, no entanto,

25

seria igualmente pouco crível sustentar a ideia de que, por isso ou por

qualquer outra via, as moscas dispusessem de uma consciência. Contra a

primeira ideia, contam argumentos como o simples facto de haver

receptores sensíveis; o facto de, apesar das diferenças, serem em muitos

aspectos mais semelhantes aos receptores sensíveis dos humanos; o facto

de moscas e humanos pertencerem à mesma árvore evolutiva, não

obstante a distância dos ramos em que se situam. Aliás,

filogeneticamente, é muito mais razoável sustentar que as espécies

animais começaram por ter experiência mental e só depois experiência

mental consciente. Contra a segunda ideia, contam argumentos como o

facto de as respostas da mosca, ao contrário das respostas conscientes,

serem necessariamente automáticas; ou o facto (embora não acessível aos

nossos olhos) de as moscas não possuírem capacidade de introspecção.

Mesmo que se resista a este tipo de argumentos, é ainda possível

encontrar outros na investigação de cariz não filosófico. No quadro da

investigação neurobiológica da consciência de António Damásio, em O

Sentimento de Si (The Feeling of What Happens), encontra-se a

exposição de informação empírica no sentido de mostrar que o estado de

vigília de uma mente não implica necessariamente o que o autor

denomina ‘consciência nuclear’. Essa informação decorre da observação

de patologias, através do que o autor classifica como um ‘método de

lesões’, que tem a vantagem óbvia de permitir «(...)a investigação de

mentes e comportamentos alterados, assim como a investigação de

regiões de disfunção cerebral anatomicamente identificáveis»8.

Ora, entre as diferentes disfunções tematizadas (sobretudo

automatismo epiléptico e mutismo acinético), interessa-nos a descrição

do caso de um estado avançado de Alzheimer que ilustra claramente a

necessidade de discernir entre o material sensorial experienciado em

estado de vigília e o seu acesso perceptivo consciente, ou, dito de outro

modo, as seguintes três condições: i) que há uma actualidade mental não

percepcionada; ii) que essa actualidade é ainda experiência mental; iii)

8 Damásio, 1999: 109.

26

que essa experiência actual mental não é consciente. O momento decisivo

da descrição de Damásio é o seguinte:

Contemplou longamente, mas nada pareceu ver. Em momento algum manifestou ou estabeleceu qualquer relação entre o retrato e o seu modelo bem vivo, sentado quase na sua frente, a uma distância de pouco mais de um metro. (…) O dobrar e desdobrar da fotografia aconteciam com regularidade, desde os primeiros tempos de desenvolvimento da doença, quando ele ainda tinha a noção de que qualquer coisa de estranho se estava a passar. Dobrar e desdobrar esta fotografia talvez tivessem sido para ele uma tentativa desesperada de se agarrar a uma certeza antiga. Agora era apenas um ritual inconsciente, executado sempre com a mesma lentidão, no mesmo silêncio e com a mesma ausência de ressonância afectiva.9

Com isto e em termos gerais, o que Damásio procura propor é que

não existe nenhuma implicação entre vigília e consciência – Nos sonhos,

há consciência sem vigília; noutras circunstâncias, evidenciáveis em

casos patológicos como o relatado, há vigília sem consciência. Se

assumirmos que todos estes estados são, apesar das suas privações, por

assim dizer, estados mentais, então há, obviamente, que distinguir neles

alguns que são sem consciência nem intencionalidade.

Retomando uma argumentação mais filosófica – entenda-se, uma

argumentação a priori – e menos patológica, faça-se uma breve

fenomenologia da distracção. Por exemplo, olhe eu para uma paisagem,

buganvílias digamos. As suas pequenas flores mascaram-se sob o manto

vermelho de flores fingidas. Reflicta eu sobre o fingimento das folhas –

como podem? – e, nisto, esqueça-me do olhar que nelas demorei. Vejo-as

por certo, mas que consciência ainda as alcança? Não as percepciono, só

me ficam as sensações. E ficam-me sem que eu fique com elas, pois eu já

estou noutro lado. Ora, esse ver sem consciência é ainda experiência

mental. É experiência visual sem intencionalidade (como Putnam já

mostrara); mas, além disso, também sem consciência.

Outra breve fenomenologia, agora da sonolência, também dá

indicação de experiência mental sem intencionalidade nem consciência.

Neste caso, há uma progressiva incapacidade de fazer percepção e tomar

9 Damásio, 1999: 130.

27

consciência do que se passa ao redor a partir da experiência sensorial,

incapacidade que nomeamos como ‘torpor’, ‘dormência’, ‘modorra’

(tudo sinónimos de ‘sonolência’), e que, no entanto, não afecta o ver que

nos entra pelos olhos adentro, enquanto estes se mantiverem abertos e

houver luz que os atinja. Mais uma vez, o que se tem é uma experiência

visual sem intencionalidade nem consciência.

5. Uma nova direcção de investigação do problema mente/corpo:

naturalizar a experiência mental

Das três desimplicações acima propostas, segue-se como

consequência a necessidade de distinguir na amálgama de problemas

ligados ao reputado problema mente/corpo uma teoria da

intencionalidade, uma teoria da consciência e uma teoria da experiência

mental, sucedendo que apenas esta última é imprescindível a uma teoria

da mente. Se se tratasse de pensar num lema, poder-se-ia dar-lhe a

seguinte formulação: O que é, ou parece, excepcional na mente humana

não lhe é essencial.

A partir do momento em que se admite a argumentação de Putnam

contra a ideia de que a intencionalidade esteja implicada no mental, então

não é claro em que termos a mentalidade pudesse ser definida

representacionalmente como pretendeu, por exemplo, Fred Dretske ao

afirmar que a mente é o lado representacional do cérebro. Seguramente,

também será isso, mas não é essencial que o seja – e esse é o ponto.

Naturalmente, dar conta de tudo o que é a mente humana implicará,

forçosamente, prestar atenção aos aspectos representacionais nela

envolvidos. Não é isso que está em causa, mas tão-só esses aspectos não

serem essenciais para a determinação do que é uma mente,

contrariamente ao posicionamento de Dretske e de outros defensores das

teorias representacionalistas da mente.10

10 Note-se que não é o caso que se esteja a pressupor que possa haver consciência não

representacional. Para isso, necessário seria que mentalidade implicasse consciência, o que não se verifica. Donde que não aceitar considerar a mente em termos essencialmente representacionais não signifique que se considere que a consciência possa ser pensada em termos não representacionais.

28

Por outro lado, a partir do momento em que se admite que a

inexistência de intencionalidade e de consciência não implica não haver

experiência mental, então também deixa de ser sustentável que o

problema duro do problema mente/corpo esteja realmente na consciência

fenomenal. Esta é seguramente importante na mente humana; contudo,

não lhe é essencial. António Damásio, neste ponto, é clarificador pela

maneira como discerne entre consciência e mente.11

Se apenas uma teoria da experiência mental é essencial para o

problema mente/corpo, declinando-se, assim, a pertinência quer de uma

teoria da intencionalidade quer mesmo de uma teoria da consciência,

então o que programaticamente deverá estar em causa na investigação de

tal problema será uma naturalização da experiência mental, e não uma

naturalização da intencionalidade, sequer da consciência. Em

contrapartida, qualquer sucesso que se venha a obter quanto a saber o que

é a experiência mental, e como é ela possível de um ponto de vista

naturalista, não implica nenhuma clarificação quanto ao que seja, ou

possa ser, a consciência. Aliás, daqui segue-se uma rejeição de que

correlações neurais da experiência visual possam ilustrar o que seja um

correlato neural de consciência.

Naturalmente, se a desimplicação de consciência na experiência

mental recoloca o problema mente/corpo em termos independentes da

consciência por um lado, já por outro também obriga a recolocar o

problema da consciência. Não o enfrentaremos agora, mas se fizer

sentido uma teoria experiencial da consciência, ou seja, uma teoria de

acordo com a qual uma descrição da consciência seja reconduzível a uma

descrição assente em termos experienciais, então o problema da

consciência não encontrará ao nível neural uma resposta directa. Em vez

disso, ter-se-á uma estratégia de dois passos: em primeiro lugar, uma

descrição da consciência em termos experienciais; em segundo lugar,

uma naturalização da experiência mental. Portanto, admitindo os pontos

de vista expostos, tentativas de naturalização directa da consciência

através do estabelecimento de correlatos neurais da experiência sensorial

11 Cf. também Monteiro, 2004: 34-39 para uma crítica à ideia de que «a “mente consciente” (frase

título de Chalmers) é o verdadeiro agente produtor da nossa “vida intelectual”».

29

falharão forçosamente o alvo, ainda que estejam no caminho certo, por

assim dizer, no que se espera quanto a uma teoria da experiência mental.

O importante, nisto, é só não serem suscitadas falsas expectativas através

de uma insistente confusão entre mentalidade e consciência.

Das três desimplicações atrás propostas e da dissociação entre

mentalidade e consciência levada a cabo, muito especialmente a

propósito da experiência sensorial, resulta não só uma recolocação do

problema mente/corpo e do problema da consciência, como se procurou

mostrar, mas igualmente, e de forma particularmente incisiva, uma

inflexão em alguns dos mais importantes debates acerca da natureza do

processo perceptivo e do estatuto dos perceptíveis. Ocupar-nos-emos em

seguida desta inflexão, procurando dar conta da sua eficácia quer na

resolução de debates como o do sensorialismo versus perceptualismo ou

o do realismo ingénuo versus representacionalismo quer para a

formulação de uma teoria da alucinação mais satisfatória. Procuraremos,

finalmente, matizar a impressão de que a inflexão proposta seja de tal

modo contra-intutiva que não faça sentido sustentá-la.

6. A experiência mental não consciente no debate

sensorialismo/perceptualismo

É moeda corrente de um certo senso-comum filosófico a ideia de

que a percepção é necessariamente percepção do visível, ou do audível,

ou do táctil, etc. Fala-se, em consequência, de percepção visual, de

percepção auditiva, etc., mas também de percepção interna e de

propriocepção, como percepção de diferentes tipos de perceptíveis – a

percepção visual como percepção do que se dá de algum modo a ver, a

auditiva como percepção do que se dá a ouvir, a propriocepção como

percepção de estados do organismo, etc. A meu ver, há nisto qualquer

coisa bastante errada. Por um lado, não encontro fundamento nesta

discriminação de classes de perceptíveis; por outro – e é aqui que

encontro a raiz do suposto erro – o sensorial e o perceptível não devem

ser confundidos.

30

Fixemos a atenção na percepção visual, permitindo-nos depois

generalizar para os restantes casos. Desde logo, a expressão «percepção

visual» induz em erro ao fazer crer que o perceber visual é realmente um

ver, que há uma homogeneidade, na dita percepção visual, entre o

perceptível e o visível. A fenomenologia de Husserl cedo detectou que o

que se tem é uma heterogeneidade entre a matéria hilética,

impressionalidade sensorial, e o perceptível intencional. Simplesmente,

notando isto, concede Husserl um privilégio difícil de sustentar à

percepção, a saber, o de ser ela a dar a ver. É célebre a sua afirmação nas

Investigações Lógicas de que não vemos cores, mas coisas coloridas, não

ouvimos sons, mas uma canção. Qual é o erro que creio existir nesta

afirmação? Não está na heterogeneidade assinalada, mas na sua inversão:

aquilo que Husserl diz não ser visível só pode ser entendido como não

sendo perceptível, pois realmente é visível; na verdade, é só mesmo

visível. Desfazendo a inversão operada pelo fenomenólogo, obter-se-ia

uma formulação como a que se propõe – em rigor, não vemos coisas

coloridas, mas cores; não ouvimos a canção, mas sons.

É exactamente o mesmo erro que subjaz à disputa entre

perceptualistas (entre os quais se inclui Husserl) e sensorialistas.

Basicamente, a disputa reside em se determinar se o ver é exclusivamente

perceptual – tese perceptualista – ou se não, havendo então espaço para o

reconhecimento de um ver sensorial – tese sensorialista. A disputa teve

por protagonistas mais recentes Christopher Peacocke (do lado do

sensorialismo) e William Lycan (do lado do perceptualismo), estando

ambas, a meu ver, certas no que respeita a pelo menos um aspecto do

problema, mas ambas erradas no que respeita à tese de fundo – a de que a

percepção dê a ver. Mostrar que a percepção nada dá a ver, essa é

precisamente a inflexão que aqui se propõe.

Resumirei a polémica entre estes dois filósofos aos momentos

cruciais para o meu ponto. Christopher Peacocke ataca o que designa por

‘tese da adequação’ (Adequacy Thesis) – i.e, a tese que «declara que uma

caracterização intrínseca completa de uma experiência pode ser dada

embutindo dentro de um operador como ‘aparece visualmente ao sujeito

31

que...’ alguma complexa condição respeitando objectos físicos»12. De

acordo com o autor, o perceptualismo extremado está comprometido com

esta tese da adequação; por isso, apresenta três contra-exemplos que, a

seu ver, a refutam e, assim, refutariam o excesso perceptualista. No

entanto, como veremos, persevera na ideia de que o material sensorial é,

enquanto tal, conscientemente acessível ao sujeito. Os contra-exemplos

que Peacocke apresenta são os seguintes:

1. Duas árvores são representadas como tendo o mesmo

tamanho físico não obstante uma ocupar mais espaço do

campo visual do que a outra. Assim, concluir-se-ia que o

conteúdo perceptivo respeitaria às árvores experienciadas

com uma certa grandeza, uma mais próxima do que outra,

etc., mas não respeitaria a outras propriedades da experiência

como a relativa ao espaço ocupado por cada uma das árvores

no campo visual.

2. Da visão monocular para a visão binocular do mesmo estado

de coisas a experiência é diferente. Assim, concluir-se-ia que

as propriedades não representacionais podem variar apesar

de o conteúdo representacional ser preservado.

3. Um cubo feito com uma armação de arame pode ser alvo de

percepções diferentes – ora com uma certa face à frente, ora

com outra face à frente –, sem que isto acarrete qualquer

mudança na disposição da armação de arame. Assim,

concluir-se-ia que os conteúdos representacionais podem

variar apesar de as propriedades não representacionais serem

preservadas.

Na posição oposta, encontra-se William Lycan, autor que procura

argumentar contra os três contra-exemplos de Peacocke. No essencial, de

acordo com Lycan, tais exemplos falham porque as propriedades não

representacionais que Peacocke julga neles identificar são na verdade

ainda propriedades representacionais, conquanto de um nível diferente do

12 Peacocke, 1983: 343.

32

dos objectos físicos quotidianos, como árvores, estradas, etc.13 Por

exemplo, a respeito do exemplo do cubo de arame, Lycan afirma que

«(...) as duas experiências do cubo partilham algumas formas, arestas e

linhas; e (…) todos esses itens são visualmente representados. Assim, há,

ao fim e ao cabo, uma semelhança representacional subjacente às

experiências de ver-como aspectualmente diferentes.»14

Com esta “representação perceptiva estratificada” (Layered

perceptual representation) Lycan julga poder identificar o material

sensorial com um certo estrato da representação perceptiva, ressalvando,

não obstante, a diferença face a outras camadas de representação

perceptiva, designadamente, as relativas à percepção dos objectos físicos

quotidianos. Ora, se Lycan tem razão, contra Peacocke, ao mostrar que o

acesso consciente ao material sensorial se resolve sempre numa

representação perceptiva – não devendo a estratificação obscurecer o

facto de se tratar sempre de percepção –, falha, porém, aliás tanto quanto

Peacocke, ao não distinguir o problema sobre o estatuto mental do

material sensorial da questão do seu acesso consciente. É no

reconhecimento de que há experiência visual não perceptiva que

Peacocke, por seu turno, tem razão, contra Lycan; simplesmente, não é

conscientemente acessível.

7. Consequências para uma teoria da percepção e da alucinação

A distinção entre consciência e mente, com a qual propomos ser

possível solucionar o antagonismo entre sensorialismo e perceptualismo,

permite, ainda em relação a uma teoria da percepção, opor uma objecção

aos posicionamentos que defendem um realismo ingénuo no que respeita

à correspondência entre as nossas representações mentais dadas pela

percepção e o mundo, dito exterior, percepcionado. Para esse efeito,

enfrentaremos o posicionamento de John Searle em Intencionalidade.

Expõe aí o autor uma classificação das teorias da percepção em três

13 Lycan, 1996: 152. 14 Lycan, 1996: 156.

33

tipos: a teoria representativa, o fenomenalismo e o realismo ingénuo.

Procuremos, pois, discutir a opção de Searle por esta última,

designadamente os argumentos com que exclui as duas primeiras teorias,

de modo a clarificar qual o melhor enquadramento, não só para uma

teoria da percepção, mas também para uma teoria da alucinação.

Ambas estas teorias [fenomenalismo e teoria representativa] diferem do realismo ingénuo por tratarem a experiência visual como sendo, ela própria, o objecto da percepção visual, privando-a, assim, da sua Intencionalidade. De acordo com elas, o que é visto é sempre, estritamente falando, uma experiência visual (em várias terminologias, a experiência visual tem sido chamada “sensação”, “dado sensorial” ou “impressão”). São confrontados, portanto, com uma questão que não se coloca ao realista ingénuo: qual a relação entre os dados dos sentidos que vemos e o objecto material que, aparentemente, não vemos? Esta questão não se coloca ao realista ingénuo porque, de acordo com a sua explicação não vemos quaisquer dados dos sentidos. Vemos objectos materiais e outros objectos e estados de coisas no mundo, pelo menos na maior parte do tempo; e nos casos de alucinação, não vemos coisa alguma, embora tenhamos, de facto, experiências visuais em ambos os casos.15

Por esta longa citação, atesta-se que Searle começa por criticar o

fenomenalismo e o representacionalismo por não distinguirem a

experiência visual do objecto da percepção visual, o que estaria na base

do facto de em ambas as teorias «o que é visto ser sempre, estritamente

falando, uma experiência visual». Independentemente do que concluam o

fenomenalismo e o representacionalismo, pelo menos tal como os

apresenta Searle, não só não se segue uma indistinção entre experiência

visual e objecto de percepção do facto de que só a experiência visual é

real e efectivamente vista, como é desse mesmo facto que se impõe clara

e distintamente a necessidade de distinguir experiência visual e objecto

de percepção. Tratar-se-á, pois, de verificar um non sequitur na

argumentação de Searle.

Em primeiro lugar, não parece credível, partindo de uma suposta

invisibilidade de experiências visuais (sejam sensações, impressões ou

dados sensoriais), o realista ingénuo poder concluir pela visibilidade de

objectos materiais ou estados de coisas no mundo. Em segundo lugar,

15 Searle, 1983: 58 (tr.: 88).

34

Searle antecipa a objecção mais previsível, da parte da teoria

representacionalista, ao realismo ingénuo: ver um objecto intencional não

significa ver um objecto material, pelo que o primeiro deve de algum

modo representar o segundo. Só que Searle contesta a ideia de que haja

uma tal relação entre um representante e um representado que se

denomine ‘representação’. Se o que vemos é um representante, então o

que é representado é, por princípio, invisível, e nesses termos importaria

saber como uma coisa visível pode estabelecer algum tipo de

correspondência com o que permanece absolutamente invisível. Segundo

Searle, esta é a enunciação de uma impossibilidade incontornável16.

Logo, o representacionalismo seria insustentável e o realismo ingénuo a

boa teoria. Contudo, não nos parece que tenha de ser exactamente assim,

nem sequer aproximadamente. Na verdade, tratar-se-á precisamente de

inverter a posição de Searle: um sujeito, em rigor, não vê estados de

coisas do mundo nem objectos materiais ou intencionais, mas tão-só

sensações; percepciona aqueles e só aqueles, mas tão-só enquanto

veiculados pelo material sensorial que vê.

Com efeito, a “percepção visual” não acrescenta nada de visível à

sensação. Daí, como se procurou evidenciar atrás, o pouco sentido que

faz falar de percepção visual17. Se se diz que aprendemos a “ver”, e que a

sensação é o que menos importa no “ver”, é porque o que importa não é

exactamente o visível mas o invisível percepcionado. Logo, nunca esteve

em causa na percepção um problema em torno da sua visibilidade, como

pretende Searle, mas, bem diversamente, em torno da sua invisibilidade.

E assim, não é o caso de que esteja em causa uma passagem do visível ao

16 «The main difficulty with a representative theory of perception is that the

notion of resemblance between the things we perceive, the sense data, and the thing that the sense data represent, the material object, must be unintelligible since the object term is by definition inaccessible to the senses. It is absolutely invisible and otherwise imperceptible.» (Searle, 1983: 59)

17 O único sentido pelo qual ainda se poderá continuar falar de percepção visual

será entendê-la como percepção causada por experiência visual; mas, em todo o caso, não se tratando realmente de aceder a percepta visíveis. Os percepta não são da ordem do sensorial; por isso, não são nem visuais, nem auditivos, nem tácteis, etc. Mesmo a experiência que um sujeito tem da sua vida perceptiva dá conta, com evidência, que a percepção, por exemplo, de uma cafeteira a assobiar sobre o lume do fogão é, de facto, uma só percepção causada por variadas fontes de experiência sensorial, e não a soma ou conjunção de várias percepções simultâneas – a que daria a ver a cafeteira, a que daria a ouvir o assobio, a que daria a cheirar o café pronto.

35

invisível, sequer o contrário. As sensações não se transformam em

percepções. As sensações são só o suporte da transmissão da informação

perceptivamente relevante. Ou ainda, por outras palavras: são causa de

percepção, mas não são elas mesmas perceptíveis.

Independentemente do valor das razões que nos levam a inverter a

posição de Searle, é possível demonstrar que a própria argumentação de

Searle se revela, em si mesma, contraditória. Vejamos como. É evidente,

a acreditar num mundo exterior com propriedades físicas identificáveis e,

digamos, não enganadoras, que se temos a experiência visual de uma

carrinha amarela (o exemplo é de Searle), então é porque essa

experiência visual foi determinada por uma carrinha amarela. E isto

significa pelo menos duas coisas: i) há uma experiência visual e há outra

coisa que a determina; ii) a relação de determinação entre uma e outra

deve ser de tal modo que a experiência visual represente objectivamente

algo daquilo que a determinou, pois de outro modo não faria sentido que

a experiência visual de uma carrinha amarela fosse determinada

precisamente por uma carrinha amarela. Ora, admitindo ii) verificamos

que a experiência visual é efectivamente um representante do objecto

material18, e admitindo i) verificamos que a experiência visual, ou seja, o

propriamente experienciado não é da ordem do objecto material. Sendo

assim, e admitindo finalmente que ter uma experiência visual é condição

para que chegue a haver percepção, não há, pois, nenhuma razão que nos

possa levar a concluir que o objecto percepcionado seja um objecto

material. Pelo contrário, apenas à experiência visual compete ser “o

veículo do conteúdo intencional”, ao passo que o objecto material, além

do seu papel causal, não dispõe de nenhuma outra função na percepção.

É claro que o objecto percepcionado deve corresponder ao objecto

material, mas daí não se segue que sejam ou possam, sequer, ser da

mesma natureza.

Esta suposta identidade entre o objecto material e o objecto

intencional – tese central do realismo ingénuo – mostra-se

18 É, porém, um representante não intencional, como um fóssil, um estrato

geológico ou uma fotografia. Todos estes representantes são, ou podem ser informativos, mas apenas para um sujeito consciente que se relacione com eles perceptivamente.

36

particularmente discutível quando Searle afirma que na alucinação

nenhum objecto é visto, sequer um objecto simplesmente percepcionado.

Segundo Searle, na alucinação apenas haveria experiência visual e

nenhum objecto19, o que se explicaria pelo facto de a identidade acarretar

que a ausência do objecto material significasse a ausência do objecto

percepcionado. Ora, este ponto de vista parece-nos obviamente

discutível. Quem alucina alucina algo que não é redutível à simples

experiência visual, alucina um objecto que, apesar de percepcionado, não

é correspondido por nenhum objecto material. Logo, dificilmente Searle

poderá sustentar sem contradição a tese da identidade. Uma alucinação só

pode figurar, representar, significar; o que é alucinado, na alucinação

visual, não é, pois, a experiência visual – que, por si, nada significa,

representa ou figura – mas um objecto de percepção, forçosamente

invisível. Portanto, se uma alucinação não figurasse, representasse ou

significasse nada, então nada seria alucinado, não haveria alucinação. É

D. Quixote que alucino, não uma experiência visual. Aliás, se as

alucinações podem acontecer é precisamente por o alucinado não

consistir em experiências visuais, mas em perceptíveis. Com efeito, os

perceptíveis dependem de uma série de factores com sede na

subjectividade e no processo cognitivo, ao passo que as experiências

visuais estão para lá – ou melhor, aquém – das nossas capacidades,

conscientes ou não, de discriminar, inferir ou conjecturar o que quer que

seja. De certo modo, poder-se-á afirmar que a experiência visual (bem

como toda a experiência sensorial), não obstante o seu carácter mental,

participa mais da realidade do que do sentido que um sujeito pode extrair

dessa realidade.20

Mesmo a ideia defendida por Fernando Gil, no seu Tratado da

Evidência, de que a alucinação não é tanto uma percepção sem objecto,

mas que, antes, será a própria percepção uma alucinação com objecto, é

uma ideia que avizinha o perceptível e o alucinável. Ora, a ideia agora

19 «In the case of visual hallucination the perceiver has the same visual

experience but no Intentional object is present.» (Searle, 1983: 58) 20 Bernardo Soares antecipa esta “realidade” da sensação e independência face à

subjectividade em termos muito claros: «O que as nossas sensações têm de real é precisamente o que têm de não nossas.» (Bernardo Soares, 2001: 334)

37

em causa em mais não consiste do que aprofundar essa vizinhança – se,

por um lado, o regime da percepção é um regime alucinatório, por outro

lado, tem-se que o alucinável mais não pode ser do que um perceptível.

8. Conclusão: por uma experienciologia

Atrás procurei sustentar duas ideias. Em primeiro lugar, que

existem experiências mentais que não são conscientes nem intencionais.

Fenomenologias da distracção e da sonolência mostram-no

indirectamente, e por vias diferentes, a propósito da experiência visual –

a da distracção por um desvio da actividade da atenção, a da insónia pela

ausência de tal actividade. Em ambas, é-se conduzido a admitir que há

ver, ainda que não haja consciência desse ver.

Em segundo lugar, procurei sustentar a ideia de que a percepção

não é da ordem do sensorial (entenda-se este como visual, auditivo,

táctil, etc.). No essencial, o argumento exposto é este: se subtrair a

percepção ao ver sensorial não subtrai nada de visível a este ver – facto

fenomenologicamente evidenciável –, então acrescentar-lhe percepção

também não lhe acrescenta nada de visível.

Aparentemente, este argumento apenas mostra que percepção e

visibilidade são heterogéneas, ou seja que os perceptíveis não são visíveis

e que, portanto, os visíveis não são objecto de percepção. Só que o que

digo da percepção é extensível à própria consciência, pois não vejo como

pudesse haver consciência que não fosse já de algum modo

apercebimento, ainda que não intencional – isto, no caso de se entender

«intencionalidade» como referência objectiva, ou seja, como propriedade

de algo ser acerca de algo, acerca de um objecto, o que não se verifica em

formas de consciência sem correlato objectivo e que tomo por formas de

consciência fenomenal de qualia.

Portanto, os visíveis não só não são perceptíveis, como nem sequer

são conscientes. Naturalmente, o que se diz da experiência visual é válido

para toda a experiência sensorial. Quer isto dizer que a experiência

sensorial não ser consciente não é uma possibilidade rara, resultado de

patologias ou simples registos menos frequentes da atenção, nem sequer

38

é um facto contingente como se se pudesse verificar também o contrário.

Na verdade, é uma necessidade – nenhum visível, audível, táctil, etc. é

consciente.

Custa, porém, aceitar que não haja nunca apercebimento do visível.

Apetece perguntar: Como assim? Quando estou atento ao vermelho e ao

verde, de uma flor e de uma planta, quando me deixo sensibilizar pela

experiência, não estou consciente da experiência? Recusar tais evidências

não será demasiado contra-intuitivo? Duas teses complementares

suavizarão porventura a estranheza que pode suscitar recusar-se a

possibilidade de um apercebimento do sensorial.

Primeiramente, recusar que haja consciência do sensorial, da

experiência visual por exemplo, não significa recusar nem que haja uma

experiência visual nem que haja uma concomitante consciência, ainda

que não do ver propriamente dito. Pelo contrário, em condições normais

de atenção, a vida mental envolve quer um fluxo experiencial de natureza

sensorial, o qual não é, em si mesmo, apercebido, quer um fluxo de

apercebimento consciente; portanto, dois contínuos mentais de

actualidade. Para ilustrar esta tese, proponho uma analogia. Imagine-se

dois filmes, duas películas, ambas a correr, uma sobre a outra. A primeira

traz nela a impressão do ver; a segunda, sobre aquela, é transparente,

absolutamente transparente. A dificuldade que de pronto se coloca é esta:

Como sei que as películas são duas e não apenas uma? Imagine-se, em

seguida, que entre os dois filmes há um intervalo de espaço, de tal forma

que aqueles dois nunca cheguem a tocar-se. Então, a maneira mais

simples de verificar que se trata de dois filmes sobrepostos, ainda que um

seja invisível, consistirá em explorar o interstício, esse espaço

impreenchível entre as duas películas, ou seja, entre a sensação e a

consciência, entre o ver experienciado e o invisível apercebido, como que

a surpreender a inconsciência pelo canto do olho. Bernardo Soares – já o

referi em epígrafe – di-lo assim: «É entre a sensação e a consciência dela

que se passam todas as grandes tragédias da minha vida»21. Na

distracção, o filme invisível deixa de estar “atento” ao filme do ver; na

21 Bernardo Soares, 2001: 484.

39

sonolência, o filme invisível como que cessa, deixando inteiramente

exposto o filme do ver – invisibilidade em excesso no caso da distracção,

visibilidade em excesso no da sonolência. Por isso, a distracção pede

estímulos para a corrigir, e a sonolência pede escuridão e silêncio para a

satisfazer.

Em todo o caso, perguntar-se-á: Como se pode aceder ao ver?

Simplesmente não se pode, porque aceder é já perceber – daí que, no

caso da percepção, o perceptualismo esteja certo na crítica que faz ao

sensorialismo. Então, como falar do visível se falar dele é como falar do

que não pode ser acedido? A percepção em particular, mas também todo

o acesso intencional, exemplificam uma possibilidade de atitude entre

outras. E quanto ao visível e à experiência sensorial em geral, a atitude

não pode ser de acesso ou de apercebimento. Donde que a pergunta

«Como aceder ao visível?» seja irrespondível. Por causa do visível

percebo algo, mas não porque o visível se torne perceptível. Por causa do

visível sensibilizo-me, mas não porque o visível sensibilize, isto

entendendo por «sensibilizar» tudo o que diga respeito aos qualia e à

consciência fenomenal. Com efeito, nem os percepta nem os qualia

acrescentam ou subtraem nada de visível ao visível, nada de sensorial ao

sensorial – ambos são heterogéneos face ao visível em particular e ao

sensorial em geral. E se ambos, entre si, se distinguem, uns como aquilo

de que a consciência é acesso objectivo, os outros como relações

qualitativas, a verdade é que ambos são da ordem do sentido invisível, o

sentido que as coisas do mundo fazem para um sujeito: por um lado,

coisas, objectos e entidades, ou tudo aquilo que a linguagem pode

denotar semanticamente; por outro, relações qualitativas, ou tudo aquilo

que a linguagem pode conotar e metaforizar semanticamente. Não é,

pois, o caso que os qualia e a consciência fenomenal estejam mais

ligados ao visível, ao audível, etc., do que a consciência intencional. Em

suma, os qualia não são da ordem da experiência sensorial.

A segunda tese complementar é a de que a experiência sensorial,

apesar de não consciente e inapercebível, não é inerte ou indiferente

relativamente a um sujeito mental. A experiência estética, longe de valer

como objecção a este ponto de vista, vem, se bem interpretada, dar razões

40

a esta “inconsciência experiencial”. Um exemplo pode ajudar a

esclarecer o ponto. Ouça eu música que aprecie. Seja, pois, uma versão

do Cry me a River. Não devo permitir que a atenção me distraia; há que

evitar, para ouvir a música, pensamentos ou outros focos de atenção; há

que não antecipar nada, não recordar nada, que interrompa o fluxo da

audição, que me faça descolar, permitindo assim uma distância, uma

diferença, entre o filme musical e eu próprio. Na realidade, todo o

esforço, mais ou menos bem sucedido, está em não se ser mais do que

esse filme auditivo, reprimindo, tanto quanto se consiga, o fluxo do

apercebimento consciente. Consiste isto num esforço de atenção – estar

atentamente distraído para que nada distraia a audição, o ouvir. Portanto,

ouço mas não reconheço nada, ouço mas não me apercebo de nada, ouço

e é tudo. Talvez me arrepie e talvez diga então «Mas isto é sentir!».

Note-se, todavia, que também esse arrepio é como a música: experiência

e só experiência; portanto, nem pensamento nem reconhecimento. Cada

palavra cantada, um estremecimento; cada volteio do saxofone outra dor;

e o baixo ressoando, etc. Visualmente, sucede o mesmo: há que evitar,

por alguns instantes pelo menos, recordar, antecipar, pensar o que quer

que seja, para que não suceda o sujeito descolar do ver de uma obra de

arte plástica, para que não se reinstale a dominação pelo reconhecimento,

pela antecipação e recordação. Por esta razão, um “empirismo radical”,

i.e., uma atenção à experiência aquém da consciência, seja intencional ou

fenomenal, é sempre da ordem do estético. E o que este faz é inverter a

ordem do ver – já não sou eu que vejo as coisas, são as coisas que me

fazem vê-las. A experiência provocando experiência, a experiência

experimentando-se: essa arriscaria, pode ser a essência da experiência

estética. Distinguir-se-ia assim pelo poder de se continuar. E o que se diz

aqui a partir do artístico não é menos válido se dito das pessoas, dos

amigos, até do próprio sujeito, a saber, que só encaramos realmente a

vida permitindo-nos provar radicalmente a experiência. O tédio da vida

surge quando desta já só vemos o que esperamos ver. É nesta

possibilidade de experiência sem dominação que se joga, pois, um

autêntico regresso às coisas, contra o tédio da vida. Em suma, não seriam

o inapercebimento e a inconsciência capazes de diminuir a importância

41

da experiência sensorial, quando é nela que se lança a própria experiência

da vida, nem que seja por instantes.

Finalizando, a identificação de um registo da vida mental

independente quer da consciência quer da intencionalidade abre todo um

campo de estudos sobre a experiência mental – crucial para o problema

mente/corpo, mas igualmente para o tratamento dos problemas da

percepção e da alucinação, e ainda, de uma forma bastante relevante,

para a tematização da experiência estética. Pela sua importância, e

mesmo pela sua quase plena anulação na tradição de estudos da Filosofia

da Mente, faz sentido sugerir que se consagre tal campo de estudo de

uma forma disciplinar – uma experienciologia.

43

II

Sobreveniência

Do ponto de vista do estado actual do conhecimento científico,

parece inevitável o caminho que levará, mais tarde ou mais cedo, a uma

explicação natural da mente, i.e, a uma recondução da mente à

condição de um fenómeno natural, descritível nos termos de uma

Física, dos seus compostos materiais e suas leis. Indesmentível parece,

porém, também ser uma peculiar capacidade de resistência a este tipo

de explicação, quando se ensaia traduzir o que é a mente noutros

termos que não os mentais, fazer equivaler a intencionalidade a algo

que não seja já de si intencional, em suma, não pressupondo no que se

diz aquilo de que se diz.

É certo que a história de uma pretensa condição irredutível do

mental face ao não mental é muito anterior a toda a investigação

propriamente científica no assunto. É uma história que precede em

muitos séculos as neurociências, remonta, pelo menos, aos bem

conhecidos argumentos de Descartes sobre a irredutibilidade da res

cogitans face à res extensa. Mas não é menos certo que, apesar dos

profundos avanços que os últimos decénios trouxeram, e que deixam

como que em cerco, rodeado por diversas frentes convergentes, um

núcleo de questões difíceis, maximamente relevantes do ponto de vista

filosófico, as dificuldades com que se confrontava Descartes se

encontram ainda, grosso modo, por resolver. Indicações claras disso

encontramos em argumentos como os do “hiato explicativo”, ou

presumíveis factos como os da existência de uma experiência

qualitativa irredutível às leis do mundo natural, e de uma

descontinuidade insuperável entre as perspectivas da primeira e da

terceira pessoa. Naturalmente, estes problemas assumem feições novas,

mais de acordo com a linguagem que a filosofia emprega

44

contemporaneamente, mas exprimindo exactamente o mesmo risco de

uma inexplicabilidade por princípio do mental pelo neural.

Ora, em tese, o que tentaremos neste primeiro estudo será

formular uma moldura mais adequada à resolução do problema

mente/corpo, para que deste se torne naturalmente possível dar uma

explicação científica22, nos termos de um fenómeno de sobreveniência.

Tratar-se-á, dito de outro modo, de mostrar que a pretensa

inexplicabilidade, mesmo mistério, que rodeia tal problema talvez não

resulte de nada senão uma forma equívoca de o conceber.

§1. A tese da sobreveniência

Se há uma razão intuitivamente forte para a defesa da tese da

sobreveniência é o facto de esperarmos que sempre que alguma

mudança nas nossas mentes se ocasione, tal tenha por base uma

mudança nos nossos cérebros. Não é despiciendo pensar que a ideia

conversa também tem o seu sustento, a saber que mudanças nos nossos

estados cerebrais provoquem mudanças nos nossos estados mentais. De

uma forma ou de outra, é-se conduzido a crer que haja uma correlação

entre os dois tipos de estados, os mentais e os cerebrais.

Genericamente, há uma outra razão para que, num mesmo registo

intuitivo, não se aceite que aquelas duas ideias sejam exactamente

conversas – o facto de esperarmos que diferentes estados cerebrais,

sejam numa só pessoa em diferentes instantes sejam em diferentes

pessoas, mesmos diferentes animais, possam corresponder a um mesmo

estado mental.

Em linguagem mais filosófica, a propósito destas intuições,

Stephen Stich formulou, através do que denominou ‘princípio da

autonomia psicológica’ (principle of psychological autonomy), a

principal característica que é atribuída a esta correlação:

22 Com esta reclamação de naturalidade não visamos afirmar que a possiblidade de explicação científica se torne fácil ou menos esforçada, mas sim que será mais consentânea com a natureza própria à explicação científica.

45

Imagine que estivesse disponível tecnologia que nos capacitasse para duplicar pessoas. Ou seja, nós podemos construir seres humanos vivos que sejam átomo a átomo, molécula a molécula réplicas de algum ser humano (ou, para o caso, de qualquer tipo de animal) e a sua réplica exacta. O que o princípio da autonomia sustenta é que esses dois humanos serão psicologicamente idênticos, que quaisquer propriedades psicológicas instanciadas por um desses sujeitos serão sempre instanciadas pelo outro.23

Este princípio da autonomia psicológica constitui o eixo nuclear

da ideia de que o mental sobrevém ao físico, de que os acontecimentos

mentais são sobrevenientes a acontecimentos cerebrais fisicamente

descritíveis na perspectiva da terceira pessoa. Tal como os fenómenos

da Química sobrevêm a fenómenos mais básicos descritos pela

Microfísica, deixando-se assim explicar por estes, esperar-se-ia, em

tese, que o mesmo pudesse ser feito a respeito da mente.

Donald Davidson é apontado por Kim como quem primeiramente

introduziu o tema da sobreveniência do mental sobre o físico, no seu

“Mental Events”.24 Mas se é o caso de que a correlação psicofísica

pressupõe a tese da sobreveniência, já não se pode dizer o mesmo da

conversa. Com efeito, pelo menos a priori a admissão da

sobreveniência não requer a admissão da tese da correlação psicofísica.

Nos termos de Kim, esta última deixa-se enunciar do seguinte modo:

«Para cada evento psicológico M existe um evento físico P tal que,

como matéria de lei, um evento de tipo M suceda a um organismo num

certo instante apenas no caso de um evento de tipo P lhe suceder no

mesmo instante»25. Aliás, justamente a propósito de Davidson, que

rejeita a possibilidade de se formularem tais leis psicofísicas, Kim

23 «Imagine that technology were available which would enable us to duplicate

people. That is, we can build living humans beings who are atom for atom and molecule for molecule replicas of some given human being. Now suppose that we have before us a human being (or, for that matter, any sort of animal) and his exact replica. What the principle of autonomy claims is that these two humans will be psychologically identical, that any psychological properties instantiated by one of these subjects will always be instantiated by the other.» (Stich, 1978: 259)

24 «...Mental characteristics are in some sense dependent, or supervenient, on physical characteristics. Such supervenience might be taken to mean that there cannot be two events alike in all physical respects but differing in some mental respect, or that an object cannot alter in some mental respect without altering in some physical respect.» (Davidson, 1970, citado por Kim, 1994: 576)

25 Kim, 1982, 1993: 178.

46

deixa claro que a tese da correlação psicofísica pressupõe a da

sobreveniência, não sucedendo porém a conversa.26 O próprio Donald

Davidson expõe no seu célebre “Mental Events” (1970) a

compatibilidade da tese da sobreveniência com a rejeição da tese da

correlação psicofísica:

Embora a posição que eu descrevo negue que haja leis psicofísicas, ela é consistente com a perspectiva de que as características mentais são de algum modo dependentes de, ou sobrevenientes a, características físicas. Tal sobreveniência pode ser tomada como significando que não pode haver dois eventos similares em todos os aspectos físicos, mas diferindo em alguns aspectos mentais, ou que um objecto não pode mudar em alguns aspectos mentais sem mudar em alguns aspectos físicos27

O ponto de Davidson, conhecido como monismo anómalo

(anomalous monism), envolve a distinção entre tipos (types) e

exemplares (tokens) de estados mentais e estados físicos, em especial

neurais, que não tomaremos em atenção aqui. Em todo o caso, tratar-se-

á de mostrar, para Davidson, que no plano dos tipos mentais

sobrevenientes não é possível estabelecer nexos nomológicos, ao

contrário do que sucede no plano dos tipos físicos/neurais, e, em

consequência, que também não é possível estabelecer leis psicofísicas,

mas apenas uma dependência (sem a implicação de um reducionismo

fisicalista). Porém, suspendendo por ora a distinção entre tipos e

exemplares, julgamos não ser o caso de que para cada sucessão de

padrões mentais não seja possível encontrar, a partir de certo nível de

abstracção, um nexo nomológico coextensivo do nexo nomológico que

se encontra para a sucessão de padrões neurais correlacionada com a

primeira sucessão. Trataremos mesmo de argumentar que os dois nexos

nomológicos assim correlacionados são um só e mesmo nexo

26 «I think it would be wrong to think of the Correlation Thesis as providing

evidence for the doctrine of psychophysical supervenience. For one thing, there are those who accept supervenience but not the Correlation Thesis, the latter being a stronger claim than the former.» (Kim, 1982, 1993: 179)

27 «Although the position I describe denies there are psychophysical laws, it is

consistent with the view that mental characteristics are in some sense dependent, or supervenient, on physical characteristics. Such supervenience might be taken to mean that there cannot be two events alike in all physical respects but differing in some mental respects, or that an object cannot alter in some mental respects without altering in some physical respects.» (Davidson, 1970: 88; citado por Kim, 1993: 57)

47

nomológico instanciado nos dois planos. Admitindo esta argumentação,

então só muito dificilmente se poderia ainda sustentar a rejeição

davidsoniana da possibilidade de formular leis psicofísicas. Aliás, se no

plano dos tipos mentais se verifica, como expõe Terence Horgan, uma

descrição holística, «envolvendo uma global, temporalmente

diacrónica, “interpretação intencional” da pessoa»28, então, a nosso ver

tal não deve ser pensado como uma anomalia do mental, mas

justamente como o correlato de aspectos físicos e neurais a que falta

encontrar uma descrição adequada. Propostas mais recentes promovidas

por autores como Timothy van Gelder, que desenvolve uma abordagem

dinamicista ao problema mente/corpo, ou Roger Penrose, que chega

mesmo a sugerir a necessidade de uma nova física, inscrevem-se, a

nosso ver, no quadro de uma não concessão de que haja qualquer coisa

como uma anomalia do mental e de uma investigação que ponha a

descoberto o tipo de descrição física e neural adequada ao mental.

Com estas observações, permitimo-nos saltar por cima da

distinção, consagrada por Davidson e aceite por Kim, entre as teses da

correlação psicofísica e da sobreveniência, para assentar na seguinte

tese da sobreveniência do mental sobre o neural – um plano de eventos

mentais diz-se sobreveniente de um plano de eventos neurais se, e

apenas se, se verificarem as seguintes condições:

1. cada evento mental, sucedendo num certo lapso de tempo, é

acompanhado por (i.e tem por correlato) um evento neural no

mesmo lapso de tempo;

2. a partir de certo nível de abstracção, o nexo causal de cada

sucessão de eventos mentais é o mesmo da sucessão

correlacionada de eventos neurais;

3. a causalidade de cada sucessão de eventos mentais é

necessariamente expressável nos termos da causalidade da

sucessão correlacionada de eventos neurais.

28 Horgan, 1994: 475.

48

Posta esta caracterização do que entenderemos doravante por tese

da sobreveniência do mental sobre o neural – mantendo-se o fundo de

que uma identidade entre estados neurais (ou seja: estados físicos

internos) oblige à uma identidade entre estados mentais –, há três

grandes desafios ou problemas que importa ter em atenção e que

orientarão o desenvolvimento deste capítulo – um desafio descritivo,

um desafio explicativo e, finalmente, um desafio epistemológico:

i) A primeira dificuldade diz respeito à identificação de

estados mentais e formula-se nos seguintes termos –

será possível fazer corresponder a um estado físico

descritível laboratorialmente na terceira pessoa um

determinado estado mental vivido por um sujeito na

primeira pessoa? Antes disso, será possível identificar

individual e rigorosamente a ocorrência de estados

mentais? Observe-se que esta primeira dificuldade não

deve perder de vista um dado relevante – o tipo de

correspondência em discussão não tem de ser

biunívoco, pois, de acordo com a tese da

sobreveniência, estados físicos diferentes podem

corresponder a estados mentais idênticos. Apenas não é

admissível que estados mentais diferentes possam

corresponder a estados físicos idênticos. (Desafio

descritivo)

ii) Superando a primeira dificuldade, resulta mesmo assim

evidente que a tese da sobreveniência do mental sobre o

neural não deve limitar-se a postular uma

correspondência entre os dois planos em causa. Mais do

que verificar certas correlações, está em causa explicá-

las, ou seja, vinculá-las segundo certas leis naturais,

embora não causais. É justamente esse valor

explicativo o que a tese da sobreveniência visa

acrescentar à formulação da principio da autonomia

psicológica (Desafio explicativo)

49

iii) Finalmente, há uma dificuldade, por excelência

filosófica, em torno do plano certo em que se deve

resolver o problema mente/corpo. Por exemplo, a

situação hipotética sugerida por Stich não tem qualquer

viabilidade física, pelo que não pode ser empregue

como um critério para a corroboração ou confutação

empírica da tese da sobreveniência do mental sobre o

neural. Em que termos e em que moldura

epistemológica se deverá colocar a discussão da tese da

sobreveniência em jogo é a questão que nos interessará

em último lugar. (Desafio epistemológico)

Estes três desafios, tal como os expusemos, encontram eco em

três aspectos que Kim associa à tese, tal como ele a expõe, da

sobreveniência – a covariação de propriedades, a dependência e o

fisicalismo não-reducionista.29 Com efeito, a covariação de

propriedades traz consigo o desafio da identificação das correlações e,

por maioria de razão, dos correlata em causa; a dependência

estabelece-se apenas em virtude de uma explicação que necessite tais

correlações; finalmente, o não-reducionismo prender-se-á, embora em

termos muito distintos dos de Kim, com o nosso desafio epistemológico

quanto ao âmbito certo em que se poderá resolver o mind/body

problem. Procurar-se-á em seguida tematizar cada um destes três

desafios.

§2. O desafio descritivo

O desafio descritivo desdobra-se em dois. Por um lado, saber

como proceder à identificação dos termos da correlação; por outro,

29 «Three ideas have come to be closely associated with supervenience: (1)

property covariation (if two things are indiscernible in base properties, they must be indiscernible in supervenient properties); (2) Dependence (supervenient properties are dependent on, or determined by, their subvenient bases); and (3) non-reducibility (property covariation and dependence involved in supervenience can obtain even if supervenient properties are not reducible to their base properties).» (Kim, 1994: 576)

50

saber como atestar a covariação, i.e, que a indiscernibilidade das

propriedades sobrevenientes esteja implicada na indiscernibilidade das

propriedades base.

a) Identificação

A mera definição de tipos de estados mentais é bastante

problemática, pois não há uma única discriminação possível desses

tipos, sendo muito heterogéneos os critérios que regem a discriminação.

Além deste problema, digamos, de ordem estritamente descritiva, há

ainda que ter em conta o problema em torno do estatuto das ocorrências

simultâneas, se é que se admite tais ocorrências.30

Em termos mais gerais, o problema relativo à identificação de

estados mentais começa por ser um problema em torno da sua

individualidade – a saber, se os podemos identificar como estados

individuais, dotados de uma natureza discreta, com limites definidos,

ou se, pelo contrário, a sua natureza é de tal modo que não seja possível

individuá-los, pelo menos ao ponto de se poder afirmar que dados dois

estados mentais, se verifica serem idênticos.

Por exemplo, não é claro que uma crença seja uma ocorrência, e,

no entanto, é frequente especificá-la como uma atitude proposicional ao

lado de outras (como a expectativa, o desejo, a esperança, etc.). De

facto, todas estas atitudes proposicionais, sejam direccionais ou

informativas31, podem ser assumidas conscientemente, ou mesmo

30 Genericamente estas dificuldades são assumidas por J. Kim nos seguintes

termos – «Much of our evidence for mind-body supervenience seems to consist in our knowledge of specific correlations between mental states and physical (in particular, neural) processes in humans and other organisms. Such knowledge, although extensive and in some ways impressive, is still quite rudimentary and far from complete (what do we know, or can we expect to know, about the exact neural substrate for, say, the sudden thought that you are late with your rent payment this month?» (Kim, 1994: 580-581)

31 São direccionais se as suas condições de satisfação resultarem de uma alteração do estado de coisas; são informativas se as suas condições de satisfação estiverem no actual estado de coisas. Georges Rey expõe esta diferença nos seguintes termos: «Propositional attitudes can be divided into two broad types, informational ones that merely represent the world “neutrally” as being one way rather than another, e.g. belief, suspicious, imagining; and directional ones which motivate an agent to act in one way or another with regard to a particular way the world might be, e.g. preference, desire, hate. In most discussions, philosophers use “belief” and “desire” as representative examples of each of these categories, but it shouldn’t be supposed that

51

comunicadas, em dado momento, mas isso não significa que até esse

momento não existissem de forma latente. Ilustrando um pouco o

ponto, eu poderia já acreditar que a solução do problema mente/corpo

estaria no fisicalismo não reducionista antes de o ter declarado pela

primeira vez, antes de eu ter pensado para mim mesmo que o

fisicalismo não-reducionista deveria ser verdadeiro, antes mesmo de

conhecer a expressão ‘fisicalismo não-reducionista’. De algum modo,

como na generalidade das minhas crenças, eu limitei-me a explicitar,

declarando-o, algo em que acreditava sem ter disso uma clara

consciência. Houve, naturalmente, situações em que mudei de opinião e

abandonei uma crença, como se até então tivesse estado sob a

influência de uma ilusão, mas nem este abandono nem qualquer

declaração da minha parte, não obstante ambos serem localizáveis na

ordem temporal dos acontecimentos, permitem uma identificação

individual do conjunto das propriedades relevantes. Sendo assim, não

parece razoável procurar identificar um estado mental individual em

termos de coordenadas espácio-temporais, sequer meramente

temporais, e, por maioria de razão, procurar uma correspondência entre

ele e um estado neural.

Mesmo evitando as problemáticas atitudes proposicionais e

fixando a atenção nos actos perceptivos, também aí são diversos os

problemas que se colocam à tentativa de identificar individualmente

estados mentais. O facto é que não é fácil individuar um estado mental.

Desde logo é sabido que não dispõe de coordenadas espácio-temporais

e naquelas de que dispõe é sempre enquanto testemunhadas pelo

próprio e não a partir de um ponto de vista público. A própria noção de

um estado individual é correlativa a um certo tipo de representação

conceptual, pela qual é equiparado a um objecto. Não obstante, a

questão sobre o carácter objectal destas representações só poderia

encontrar resposta sob a presunção de um outro acto intencional que

tivesse por objecto aquelas representações e isto numa sucessão

anyone thinks that these are the basic or ultimate attitudes that figure in ordinary mental talk, much less in psychological theory. They are simply representative of those categories.» (Rey, 1997: 19)

52

interminável que parece configurar um regresso ao infinito. Donde, não

ser apenas por os estados mentais não nos serem dados sob

coordenadas espácio-temporais que existe uma dificuldade em os

identificar objectivamente. A própria objectivação é um processo que

tem sempre por condição actos intencionais.

Finalmente, uma última dificuldade no estabelecimento de tais

correlações reside no facto de, entre o que há a identificar do lado

mental, se ter de tomar em consideração diferentes estratos de correlata

mentais. Com efeito, uma coisa é diferenciar neuralmente entre a

percepção e a recordação, outra é diferenciar neuralmente os seus

conteúdos representativos, ainda outra é fazê-lo no que diz respeito a

tipos (por exemplo, a dor entendida abrangentemente) e no que diz

respeito a exemplares (por exemplo, esta dor que sinto neste momento).

Com tudo isto, como estabelecer então uma correlação entre as

duas ordens de acontecimentos relevantes para a tese da sobreveniência

do mental sobre o neural?

Apesar das dificuldades enunciadas em obter uma identificação

individual de estados mentais, pareceria razoável defender, de um

ponto de vista epistemológico, uma outra estratégia a fim de se alcançar

pelo menos uma correspondência aproximativa entre a descrição de

estados neurais e a de estados mentais. Tratar-se-ia de dar a iniciativa

ao lado mais acessível, começando por realizar a identificação,

relativamente individualizada, de padrões de estados neurais. A

razoabilidade desta estratégia assentaria na ideia de que procurando

encontrar a situação mental que corresponde a um padrão neural bem

determinado (e não o inverso, que seria, como se viu, bastante mais

incerto), poder-se-íam reconhecer correspondências aproximativas, mas

dotadas de um grau de determinação relativo, com estados mentais. Em

circunstâncias laboratoriais, através de testes aí realizados, com um

controlo apertado das condições de observação e, sobretudo, sob o

efeito da repetição, obtêm-se – e obtiveram-se já – resultados indutivos

tão fiáveis quanto quaisquer outras inferências indutivas. Existem, hoje,

técnicas muito eficazes (encabeçadas pela TEP, tomografia por emissão

de positrões) que multiplicam o número de correlações a um tal nível

53

que nenhum tipo de suspeita permanece racionalmente aceitável. No

limite, esta estratégia entrega a iniciativa identificadora à neurologia,

competindo a uma fenomenologia informá-la das descrições

reflexivas/intuitivas que obtém das vivências, intencionais ou não, de

uma consciência. Paralelamente, competiria às ciências cognitivas

informar a neurologia das descrições funcionais que obtém quanto aos

desempenhos causais dos estados mentais. Considerando a

fenomenologia e a psicologia cognitiva abordagens da Filosofia da

Mente, então, concluir-se-ia, que não é esta que detém a capacidade de

solucionar, por si só ou sequer dominantemente, as dificuldades

relativas ao estabelecimento rigoroso das correlações entre estados

neurais e estados mentais.

Mas, em contrapartida, esta posição não pode deixar de ser

disputada, uma vez que, por mais difícil que seja a tarefa de individuar

fenomenologicamente estados mentais, a verdade é que a neurologia

não é de todo capaz de o fazer pela simples razão de não aceder a

nenhum estado mental. Por outras palavras, e empregando os termos de

Damásio, a neurologia, sob a sua perspectivação na terceira pessoa, não

acede a padrões ou imagens mentais, mas tão-só a padrões ou mapas

neurais32 que é capaz de individuar em função de um estímulo e fazer

variar ao longo de uma sucessão de estímulos diferenciados. Tais

padrões até podem encontrar-se profundamente distribuídos quer na

mesma região cortical quer em várias, seja simultaneamente, seja no

intervalo de uma fracção de segundo. Mas, note-se bem, tais padrões

neurais, mais ou menos distribuídos, só valem como um e um só padrão

neural sob a pressuposição de que, como correlato, haja um e só um

padrão mental. Ora, isto devolve-nos o problema sem que nenhuma

32 «Quando utilizo o termo imagem, quero sempre significar imagem mental. Padrão mental é sinónimo de imagem. Não utilizo a palavra imagem para me referir ao padrão de actividades neurais que pode ser encontrado, através dos actuais métodos da neurociência, nos córtices sensoriais quando eles estão activos – por exemplo, nos córtices auditivos em correspondência com uma percepção auditiva; ou nos córtices visuais em correspondência com uma percepção visual. Quando me refiro ao aspecto neural deste processo uso termos como padrão neural ou mapa. (...)» (Damásio, 1999: 36)

54

dificuldade tivesse, através desta via, sido efectivamente resolvida – Só

sob a pressuposição de que haja correspondência com um e um só

padrão mental em dado instante e sob dado estímulo, a neurologia

pode, de facto, afirmar que individualizou um e um só padrão neural.

Um exemplo simples, mostra como, apesar de todas as

dificuldades, é crucial o trabalho fenomenológico para a

individualização de estados mentais e, consequentemente, para o

estabelecimento rigoroso das correlações entre estados mentais e

estados neurais, entre padrões ou imagens mentais, por um lado, e

padrões ou mapas neurais, por outro. Naturalmente, a correlação entre

estímulo exterior e padrão neural pode revelar-se constante, sucedendo

o mesmo com a correlação entre estímulo exterior e padrão mental –

sempre que me é picado o braço, este dói-me e no meu cérebro verifica-

se certo padrão. Mas se a dor for acompanhada por uma série de outros

estímulos, em cada ocasião uma série diferente, então os padrões

neurais e mentais variarão e eis que alcançamos o seguinte resultado –

distinguimos entre padrões neurais apenas porque distinguimos entre

os padrões mentais. Mas se é assim, então não poderemos assumir,

caso não queiramos incorrer na falácia da circularidade, a posição

segundo a qual se defenderia que fosse através dos padrões neurais que

se distinguiriam os padrões mentais.

Concluindo este ponto relativo à identificação dos estados

mentais, poder-se-á afirmar: 1. Compete à fenomenologia

individualizar estados mentais, compete à neurologia encontrar os

correspondentes estados neurais. 2. A neurologia fixa padrões neurais

individuais em função da individuação exposta fenomenologicamente.

Se a correlação for fiável, tal fixação neurológica certifica a posteriori

– por corroboração – a individualização fenomenológica. Se a

correlação não for boa, sempre se pode pôr em questão se a

individualização fenomenológica é correcta.

b) Covariação

55

Kim referiu-se à covariação, como vimos atrás, através da

seguinte proposição – «se duas coisas são indiscerníveis nas

propriedades base, então têm de ser indiscerníveis nas propriedades

sobrevenientes». É a mesma ideia expressa pelo princípio da autonomia

psicológica, tal como o formula Stich. Na presunção de que as

propriedades dos estados mentais são sobrevenientes relativamente a

propriedades de estados físicos, então a formulação de Stich, também

exposta atrás, é perfeitamente adequada. Putnam, em artigo de

contraposição crítica à tese da sobreveniência, expõe o mesmo ponto –

«se conseguíssemos produzir um ser humano sintético que estivesse no

mesmo estado físico interno que eu em todos os aspectos, então esta

réplica de mim estaria também exactamente nos mesmos estados

psicológicos internos.»33

Porque há-de ser assim? Que tipo de necessidade está

comprometido neste “tem de ser assim”? E é de facto necessário?

Mesmo que seja necessária, por que razão não se afirma, também

necessariamente, a conversa e, por conseguinte, que a

indiscernibilidade entre dois estados físicos está numa relação de dupla

implicação, equivalência material pois, com a indiscernibilidade entre

os estados psicológicos internos? A resposta é aparentemente simples:

porque existem estados de coisas sobrevenientes que são entre si

indiscerníveis, tendo, porém, por base estados de coisas diferentes.

Exemplos disto não faltam. Basta pensar que vivemos, em diferentes

momentos das nossas vidas, estados psicológicos indiscerníveis, apesar

de em circunstâncias base muito distintas. Note-se que foi este tipo de

exemplos que valorizaram o posicionamento funcionalista, cuja tese

principal se pode resumir à afirmação de que «as propriedades

psicológicas são idênticas às propriedades funcionais»34,

posicionamento que não discutiremos antes do Cap. 5.

33 Cf. Putnam, 1998b. 34 Putnam define propriedade funcional como uma propriedade não física e

isto, diz ele, «(...)no sentido em que pode ser realizada por um sistema de modo absolutamente independente de qual possa, de certo modo, ser a sua composição ontológica ou metafísica.» E acrescenta: «As propriedades psicológicas apresentam as mesmas características: a mesma propriedade psicológica (e.g. estar zangado) pode

56

A discussão, por ora, centrar-se-á no estatuto da necessidade

afirmada pelo princípio da autonomia psicológica de Stich ou ainda

pela covariação de Kim.

Este aspecto necessitarista é bastante notório quando, entre

diversas formulações da tese da sobreveniência que Kim apresenta,

destacamos a que ele perfilha, a saber, a da sobreveniência global

(Global supervenience):

Sobreveniência global: quaisquer dois mundos que sejam indiscerníveis a respeito de P (i.e, mundos nos quais as propriedades físicas estão distribuídas nos indivíduos da mesma maneira) são indiscerníveis a respeito de M (ou seja, não podem diferir quanto ao modo como as propriedades mentais estão distribuídas)35

Note-se que nesta formulação Kim faz uso do idioma dos mundos

possíveis e, de acordo com ela, a sobreveniência é considerada

globalmente36. Significa isto que, independentemente da população

individual do mundo, o facto de as propriedades base de dois mundos

serem indiscerníveis determina necessariamente que as propriedades

sobrevenientes de ambos os mundos sejam também indiscerníveis.

ser uma propriedade dos membros de milhares de espécies diferentes, que podem ter uma física e química completamente diferentes (...).» (Putnam, 1989: 110-111)

35 «Global supervenience: Any two worlds that are indiscernible with respect

to P (i.e worlds in which physical properties are distributed over the individuals in the same way) are indiscernible with respect to M (that is, they cannot difer in how mental mental properties are distributed)». (Kim, 1994: 578)

36 Além da sobreveniência global, pode-se também considerar, em particular,

e como implicada por aquela, a sobreveniência local. Esta caracteriza-se por definir o fenómeno da sobreveniência a propriedades de um indivíduo, não atendendo a aspectos contextuais. David Chalmers expressa a diferença entre estas duas formas de sobreveniência nos seguintes termos: «B-properties supervene locally on A-properties if the A-properties of an individual determine the B-properties of that individual (...). In general, local supervenience of a property on the physical fails if that property is somehow contex-dependent – that is, if an object’s possession of that property depends not only on the object’s physical constitution but also on its environment and its history.» (Chalmers, 1996: 34). Contudo, para a presente discussão acerca da sobreveniência do mental sobre o neural a distinção entre sobreveniência global e local não é significativa. Recorrendo, uma vez mais, a Chalmers, o ponto é o seguinte - «If two creatures are physically identical, then differences in environmental and historical contexts will not prevent them from having identical experiences. Of course, context can affect experience indirectly, but only by virtue of affecting internal structure, as in the case of perception. Phenomena such as hallicunation and illusion illustrate the fact that it is internal structure rather than contex that is directly responsible for experience.» (Ibidem)

57

Por conseguinte, a questão que pronta e urgentemente se afigura

é a de saber que tipo de necessidade está aqui a ser afirmada?

c) O problema da necessidade na covariação

É pacífico que existem necessidades lógicas e necessidades

físicas, ou seja, certas verdades e falsidades cuja necessidade ou

contingência física é prescrita em função das leis físicas e cuja

necessidade ou contingência lógica é prescrita em função das leis

lógicas. Por exemplo, caso as leis físicas sejam aquelas que

conhecemos actualmente, sabe-se que é uma impossibilidade física a

velocidade da luz ser ultrapassada. Eis pois uma impossibilidade física.

Não obstante, concebe-se perfeitamente (sobretudo se quem concebe

for um físico) um conjunto de leis físicas das quais se seguisse a

possibilidade de a velocidade da luz ser ultrapassada.

Nestes termos, é perfeitamente razoável conceber possibilia

mesmo que sejam impossibilia físicos relativamente ao mundo actual.

Qual o estatuto destes possibilia? São possibilia lógicos é certo, mas

valem mais, do ponto de vista epistémico, do que meras possibilidades

lógicas e isto justamente por serem concebidos a partir de possibilia

físicos. Dito de outro modo: se nem tudo o que é logicamente possível é

fisicamente concebível, então ter-se-á de clarificar como se pode

discriminar o que é fisicamente concebível do que não o é.37

Ora, a este respeito, uma primeira limitação a indicar é a de que

não pode um sujeito conceber, por exemplo eu, o que quer que seja a

não ser a partir de um conjunto prévio de regras de concepção. Por

exemplo, concebo uma dada jogada possível numa partida de xadrez a

partir das regras do jogo. Assim, uma possibilidade é, ou não,

concebível em função de certas regras. Não posso conceber uma jogada

em que a dama salte casas se tal possibilidade não se segue das regras

do jogo. É claro que posso mudar as regras do jogo, tornando assim tal

jogada concebível. Agora, se me basta mudar as regras do jogo para

que algo inconcebível se torne concebível, que sentido faz a minha

37 Para uma posição antagónica cf. Desidério, 2002.

58

insistência em distinguir o concebível do que é tão-só logicamente

possível? Bom, é que nem todo o conjunto de regras é aceitável, sob

pena de já não estarmos a falar do mesmo jogo. Mas, perguntar-se-á, o

que faz com que um conjunto de regras seja aceitável e já outro

inaceitável? Qual o critério de distinção? A resposta consiste

simplesmente em o novo conjunto de regras poder seguir-se de um

subconjunto do conjunto das regras originais.

Voltando à física, as definições a ter em atenção são as seguintes:

- p é um possibilium lógico se e somente se for consistente com o

conjunto LL das leis lógicas.

- p é um possibilium físico se e somente se for consistente com o

conjunto LF das leis físicas do mundo actual.

- p é um concibilium físico se e somente se for consistente com

um conjunto LFC aceitável de leis da física

- LFC é um conjunto de leis físicas aceitável, e portanto

concebível, se se seguir de um subconjunto de LF

Talvez devamos considerar outras condições para falar em

conjuntos de leis físicas aceitáveis, mas a condição que proponho

parece-me crucial, sob pena de poder nem sequer fazer sentido

dizermos que ainda estamos a falar de física. Ora, a partir deste

momento, tenho garantida a diferença entre concibilia e inconcibilia e

tenho que nem tudo o que é logicamente possível é concebível. Isto

permite falar da relevância epistémica de certos possibilia lógicos que,

apesar de serem impossibilia físicos, são ainda assim concebíveis de

acordo com um segmento das leis físicas do mundo actual.

Posto isto, pensemos como trabalha um físico teórico que se

interroga sobre se a velocidade da luz pode ou não ser ultrapassada. Ele

considerará que se as leis físicas forem as que conhecemos, a

velocidade da luz não poderá ser ultrapassada. Então, que lhe resta

fazer? Ele sabe que algumas das leis físicas de LF se seguem de outras

leis físicas de LF, conhece pois as dependências existentes entre

diferentes leis físicas de LF e, pode assim conservar de LF apenas um

59

subconjunto de leis mais básicas, suspendendo as restantes,

suspendendo nomeadamente aquela ou aquelas que impossibilitam que

a velocidade da luz seja ultrapassada. A partir desse subconjunto de LF

(a que pertencem as leis físicas mais básicas do mundo actual), o nosso

físico tratará de recompor o conjunto que concebe de tal modo que dele

se siga a possibilidade da velocidade da luz ser ultrapassada.

Ora, isto permite esclarecer alguns pontos fundamentais quanto

ao estatuto das necessidades.

Em primeiro lugar, a necessidade e a contingência são prescritas

por leis, ou seja, sucedendo admitirmos a existência de leis físicas e de

leis lógicas, então devemos admitir a existência de modalidade física e

modalidade lógica, ou ainda, a existência de verdades físicas que são

necessárias/contingentes e a existência de verdades lógicas que são

necessárias/contingentes. Note-se que se houvesse um corpo de leis que

não fosse especificamente físico nem especificamente lógico, então ter-

se-ia uma outra modalidade que não seria nem especificamente física

nem especificamente lógica. Isto quer dizer que não seria possível, por

exemplo, indicar necessidades metafísicas a não ser que se dispusesse

de um corpo de leis metafísicas.

Em segundo lugar, existe um domínio mais lato do que o das

possibilidades física, a que chamámos o dos concibilia, mas que, ainda

assim, é mais restritivo do que o das possibilidades lógicas. Tal

domínio tem relevância epistémica a vários títulos – por um lado,

porque está enraizada num subconjunto de leis físicas, o que o torna

apenas um pouco mais frouxo, mais flexível, mas salvaguardando uma

certa familiaridade com o domínio dos possibilia físicos; por outro,

porque sem ele dificilmente se poderia compreender o modus operandi

de um físico sempre que lhe sucede ter de pôr em causa aquilo que se

julga serem as leis da física.

Em terceiro lugar, a necessidade e contingência dos concibilia é

determinável em função de um subconjunto de leis físicas admitidas, o

que significa que se trata ainda tão-só de necessidade e contingência

física.

60

Em quarto lugar, a haver necessidade metafísica, e atendendo a

que se entende por tal uma modalização última, insusceptível de se

converter numa contingência, ou seja, uma necessidade irrestrita, então

esta apenas será expressável, do ponto de vista formal, como uma

necessidade infinitamente reiterada a toda a modalização – Nec.... Nec

P. Ora, mesmo que seja o caso de haver necessidades metafísicas, não

está ao nosso alcance determiná-las.

Por fim, mas não menos importante, dever-se-á evitar confundir

leis físicas, aquelas que realmente existem no mundo actual, e as

formulações de leis que os físicos propõem nas suas teorias. Em

momento algum, tanto quanto se sabe, as leis físicas mudaram no

mundo actual, o que mudou foi a nossa visão delas, a teoria. Posto por

outras palavras, pode-se dizer que uma coisa são as leis físicas, outra

são as leis enunciadas numa teoria física. É que teorias físicas há

muitas, a de Aristóteles, a de Newton, a de Einstein; mas as leis físicas

são no mundo actual sempre as mesmas. O que Aristóteles, Newton e

Einstein procuraram descobrir foi sempre o mesmo conjunto de leis

físicas, aquelas que eles, como qualquer outro sujeito humano de que

tenhamos registo no nosso mundo, sentimos na pele quando nos cai,

por exemplo, uma maçã em cima da cabeça. Não passaria certamente

pela cabeça de quem eventualmente venha refutar a teoria da

relatividade restrita de Einstein que o que vem fazer é mudar as leis

físicas! Não, o que vem fazer é dar uma nova visão das mesmas leis

físicas, é dar delas uma nova teoria, onde é expresso um novo conjunto

de enunciados com a forma de leis. Esse ponto é deveras importante,

pois torna claro o seguinte facto: a necessidade física não está

dependente desta ou daquela teoria, não é relativa a uma teoria física;

ela apenas está dependente das leis físicas. E, nem por isso, passa a

valer como necessidade metafísica.

*

Ora, postas estas considerações gerais sobre o estatuto da

necessidade, regressemos ao problema do estatuto da necessidade

61

expressa no fenómeno da sobreveniência, dita global, do mental sobre o

físico.

O enunciado da sobreveniência global, afirma que se dois

mundos possíveis são indiscerníveis quanto a P, então também serão

indiscerníveis quanto a M.

Seja, pois, um qualquer mundo possível que não o mundo actual

e que seja, quanto a P, indiscernível do mundo actual. Seguir-se-á,

desta assunção, e segundo a tese da sobreveniência global, que os dois

mundos sejam indiscerníveis quanto a M.

Analisemos a necessidade expressa. É este um sequitur que

decorre das leis lógicas? Não, pois nenhuma lei lógica impede que um

mundo possível que seja indiscernível, quanto a P, do mundo actual

divirja, porém, deste quanto a M. Logo, não se trata de uma

necessidade lógica.

Será, então, um sequitur que decorre das leis físicas?

Aparentemente não poderia ser, pois então a tese da

sobreveniência global cairia de pronto. Com efeito, bastaria considerar

um mundo possível com outras leis físicas – o que é logicamente

possível – e a indiscernibilidade quanto a M não se seguiria

necessariamente.

No entanto, há um passo suplementar que sustenta a tese da

sobreveniência global, afirmando-se que dois quaisquer mundos

possíveis que sejam indiscerníveis quanto a P, terão necessariamente as

mesmas leis físicas e que esta será uma necessidade metafísica. Este é

um passo que se prende com a semântica modal e com o célebre tópico

kripkeano das verdades necessárias a posteriori. De acordo com este

posicionamento, há verdades cuja necessidade é menos restritiva que a

necessidade lógica, mas que, no entanto, é mais restritiva que a

necessidade física.

Mas, mesmo admitindo que houvesse tal necessidade

“metafísica”, e que quaisquer dois mundos possíveis fossem

indiscerníveis quanto a P, então, perguntamos, sob que leis se expressa

a necessidade de serem indiscerníveis quanto a M? Não poderão ser leis

físicas stritu sensu pois M não é físico, também não poderão ser leis

62

mentais pois P não é mental. Teriam de ser leis ponte, psicofísicas.

Mas, se apenas leis psicofísicas garantem que dois mundos

indiscerníveis quanto a P serão também indiscerníveis quanto a M,

então, a tese da sobreveniência global, tal qual Kim a formula, fracassa

– não é o caso que quaisquer dois mundos possíveis indiscerníveis

quanto a P sejam indiscerníveis quanto a M, apenas será esse o caso

entre aqueles mundos possíveis que partilhem as mesmas leis

psicofísicas. E desta feita já não é aceitável afirmar-se que dois mundos

possíveis que sejam indiscerníveis quanto a P, terão necessariamente as

mesmas leis psicofísicas.

Finalmente, restringindo-nos ao mundo actual, sob que lei

psicofísica se pode alegar que a indiscernibilidade quanto a P implica a

indiscernibilidade quanto a M? Sem a enunciação de tal lei, lei natural

entenda-se, nenhuma necessidade psicofísica se segue.

Isto não significa que não haja sobreveniência e que esta não seja

uma necessidade psicofísica no mundo actual. Simplesmente, tais

afirmações não se seguem do conjunto das leis lógicas, sequer do das

leis físicas de um qualquer mundo, incluindo o actual; apenas se

seguem de leis psicofísicas, as quais, contudo, podem, do ponto de vista

lógico, variar sem que variem as leis físicas em diferentes mundos

possíveis; logo, não é verdade que a indiscernibilidade de M esteja

implicada na indiscernibilidade de P. Assim, fica refutada a tese, tal

como é formulada por Kim, de uma sobreveniênca global do mental

sobre o neural.

Kim apresenta também uma versão fraca da tese da

sobreveniência que ele próprio rejeita (por razões que não avocaremos

aqui), mas que ainda assim importa analisar à luz destas nossas

considerações – «Sobreveniência fraca: Necessariamente (quer dizer,

em qualquer mundo possível), se quaisquer x e y (no domínio) são

indiscerníveis em P (P-indiscerníveis’), x e y são M-indiscerníveis».38

Ora, verifica-se, desde logo, que esta versão fraca da sobreveniência é

38 «Weak supervenience: Necessarily (that is, in every possible world), if any x

and y (in the domain) are indiscernible in P (‘P-indiscernible’ for short), x and y are M-indiscernible.» (Kim, 1994: 577)

63

igualmente inaceitável pelo facto de não dispormos de informação que

nos impeça de afirmar que pode haver mundos possíveis – que não o

mundo actual – em que x e y ocorram e sejam, a um tempo, P-

indiscerníveis e M-discerníveis.

A única versão aceitável de sobreveniência global tem de ser

ainda mais fraca, tão fraca que não chega realmente a proclamar nada:

terá forçosamente de impor como condições para a necessitação que o

universo de mundos possíveis em consideração seja composto por

mundos indiscerníveis quanto às leis-ponte entre P e M. Só assim de

dois particulares serem P-indiscerníveis se seguirá serem também M-

indiscerníveis. Uma vez que a sobreveniência global pressupõe, para

que uma sua formulação seja válida, aquilo que, em tese, advoga, então

não traz consigo nenhum compromisso epistemicamente relevante.

**

Há, todavia, uma óbvia intuição na tese da sobreveniência desde

que circunscrita ao mundo actual e despojada de quaisquer pretensões

metafísicas – justamente a da covariação, ou seja, que estados físicos

indiscerníveis no mundo actual estejam necessariamente

correlacionados com estados mentais indiscerníveis, sem que a

conversa suceda. O ponto em que insistimos atrás consistiu apenas no

dado de que esta intuição não estava demonstrada para outros mundos

possíveis que não o actual, que a necessidade por ela expressa não se

seguia nem lógica nem fisicamente, mas apenas de leis psico-físicas

que não estão dadas a priori. Mas se estas leis não estão dadas a priori,

por que razão se enuncia intuitivamente e a priori a tese da covariação?

Em suma: donde surge essa intuição?

A nosso ver, a resposta reside num certo paralelismo com a

causalidade física, designadamente com a ideia de que as mesmas

causas determinam necessariamente os mesmos efeitos, mas sem que os

mesmos efeitos tenham necessariamente as mesmas causas. A

assimetria da sobreveniência rever-se-ia na do princípio da causalidade.

Mas, justamente a propósito do princípio da causalidade, é possível dar

64

dele duas formulações, uma fraca ou geral, segundo a qual o estado do

sistema em t1 determina o estado do sistema em t2, e outra forte ou

estrita, segundo a qual o estado do sistema em t1 determina de forma

unívoca o estado do sistema em t2.39 Tendo esta distinção em vista,

note-se primeiramente que só a causalidade em sentido estrito obriga a

que a dois estados do sistema indiscerníveis, em t1, correspondam

outros dois estados de sistemas, em t2, também indiscerníveis, pois cada

um dos estados iniciais determina univocamente o estado subsequente.

Por outras palavras, apenas num sentido estrito o princípio da

causalidade estipula que às mesmas causas correspondam os mesmos

efeitos. Caso se prefira a formulação fraca do princípio de causalidade

não é verdade que estejamos obrigados a afirmar que às mesmas causas

correspondem os mesmos efeitos.

Ora, posto isto, é preciso notar que existe hoje evidência física,

designadamente microfísica, mais que suficiente para pelo menos não

admitir a formulação estrita do princípio da causalidade. É claro que é

defensável que a macrofísica não precise de abdicar da causalidade

estrita, mas também não é evidente que a sobreveniência das

propriedades mentais – prosseguindo o paralelismo – não seja um

assunto que envolva propriedades base descritíveis, nem que seja

parcialmente, em termos microfísicos40. Nestes termos, não é

inconcebível que o mesmo padrão neural possa ter por correlato

diferentes padrões mentais, refutando a necessidade da covariação, e

isto mesmo no mundo actual, com as suas leis físicas. Em todo o caso,

o problema é de natureza empírica, não sendo possível assumir, através

de razões de ordem formal ou de ordem estritamente física, uma

covariação estrita.

Concluindo, tudo isto não visa negar a covariação, visa tão-só

afirmar que permanece carente de fundamentação a prescrição a priori

da sua necessidade e que, assim, mais vale optar por uma formulação

39 Para um exemplo, cf. Amsterdamski, 1978: 70. 40 Sobre uma eventual desempenho da mecânica quântica na resolução do

problema mente/corpo, entre um considerável leque de artigos, cf. Stapp, 1995; Ludwig, 1995; e Byrne & Hall, 1998.

65

flexível da tese da sobreveniência do mental sobre o neural e da tese da

correlação psicofísica que subsista sem um compromisso forte com a

covariação, uma formulação que mantenha a ideia de que existe alguma

forma, expressável nomologicamente, de determinação das

propriedades sobrevenientes por parte das propriedades subvenientes,

ou de dependência destas em relação àquelas, no quadro estrito do

mundo actual ou de mundos possíveis com as mesmas leis psicofísicas.

Sem as mesmas leis psico-físicas nada obriga a que à

indiscernibilidade em P se siga a indiscernibilidade em M, do mesmo

modo que sem as mesmas leis físicas nada torna necessário que às

mesmas causas se sigam os mesmos efeitos.

Note-se ainda que, no âmbito da Filosofia da Mente, a covariação

da sobreveniência tem sido, frequentes vezes, posta em causa pela

hipótese dos qualia invertidos, cujo significado mais imediato se

resumiria à demonstração cabal da possibilidade de estados mentais

diferentes poderem ter por base estados físicos idênticos – ou seja, a

rejeição da assimetria da sobreveniência. Curiosamente, Kim assume-o

claramente41. No entanto, não é caso, como verificaremos no nosso

Cap. II, que sob tal circunstância de inversão dos qualia, se demonstre

que diferentes estados mentais possam ter por base o mesmo estado

físico. Bem pelo contrário, a inversão dos qualia não se faz sem uma

alteração do estado físico; logo, disto não se segue uma refutação da

tese de Kim da sobreveniência global, designadamente da necessidade

da sua covariação42. No máximo, o que se obtém é uma refutação do

41 «Many philosophers believe that ‘qualia inversion’ is perfectly conceivable

– that is, it is conceivable and perfectly intelligible that when you look at a ripe tomato, the colour you sense is the colour your physical duplicate senses when she looks at a fresh cucumber, and vice versa. Now if such a possibility is coherently conceivable, as it seems to be, that could defeat supervenience (…).» (Kim, 1994: 581)

42 D. Chalmers é um dos autores que afirma o carácter concebível de uma

inversão de qualia entre duas réplicas físicas, molécula a molécula – «One can coherently imagine a physically identical world in which conscious experiences are inverted, or (at the local level) imagine a being physically identical to me but with inverted conscious experiences).» (Chalmers, 1996: 100) Ora, nos termos em que definimos a nossa capacidade de conceber, mesmo que os simplifiquemos à ideia de uma “imaginação coerente”, não vemos sob que subconjunto de leis físicas, por mais

66

funcionalismo. Com efeito, uma inversão dos qualia num indivíduo

pode ocorrer sem que as suas propriedades funcionais (i.e, os seus

desempenhos causais) sejam alteradas, o que impossibilita a pretensão

do funcionalismo de que todos os estados mentais possam ser definidos

funcionalmente. Aliás, indo um pouco mais longe, esta neutralidade dos

qualia relativamente à descrição funcional dos estados mentais de um

indivíduo, torna perfeitamente concebível um indivíduo destituído de

qualia – suponha-se um zombie – , mas que, nem por isso, deixa de ser

descritível em termos de propriedades funcionais como qualquer ser

humano. Mas com esta possibilidade, obtém-se também um dos mais

sérios problemas – a que David Chalmers chamou “hard problem” – da

filosofia da mente, a saber: qual é o contributo dos qualia, e da

experiência consciente em geral, para a cognição e a vida mental em

geral.

***

Um último plano de consideração que importa agora levar a cabo

prende-se com a caracterização dos fenómenos de sobreveniência,

independentemente do caso, bem mais problemático, da sobreveniência

do mental sobre o neural. Procurar-se-á, desta forma, estabelecer num

enquadramento geral o que se entende por sobreveniência e quais os

compromissos a que ela obriga.

básicas que fossem, tal possibilidade seria concebível. Na verdade, parece poder-se aqui apontar duas confusões a Chalmers. Em primeiro lugar, confundem-se as condições sob as quais se pode falar de concibilia com as condições sob as quais se pode falar de possibilia lógicos. É certo que é logicamente possível uma inversão de qualia entre duas réplicas físicas, como é logicamente possível tudo o que não ponha em causa uma lei lógica. Simplesmente, não é o caso que tudo o que seja logicamente possível, seja também concebível. E neste ponto, pode-se verificar, muito claramente, que Chalmers só se socorre da possibilidade lógica – «To achieve such an inversion in the actual world, presumably we would need to rewire neural processes in an appropriate way, but as a logical possibility, it seems interely coherent that experiences could be inverted while physical structure is duplicated exactly.» (Ibidem). Em segundo lugar, também não é o caso, como indicámos atrás, que Kim tenha proposto uma sobreveniência lógica. A tese da sobreveniência global retira o seu sustento de uma alegada necessidade metafísica; não se compromete com uma necessidade lógica. E, assim, não é verdade que a admissão da experiência da inversão dos qualia constitua uma efectiva objecção à tese de Kim de uma sobreveniência global.

67

Tomemos em mãos um copo de água. A porção de água nele

contida tem certas propriedades como ser incolor, inodoro e saciar a

minha sede. Mas essa mesma porção de água mais não é, do ponto de

vista químico, do que uma porção de moléculas de água com certas

propriedades químicas; mais não é, do ponto de vista da física atómica,

do que uma porção de estruturas compostas por dois átomos de

hidrogénio e um de oxigénio, cada um destes tipos de átomos com

certas propriedades físicas; mais não é, do ponto de vista da física

quântica, do que uma estrutura composta por uma certa disposição de

partículas subatómicas, leptões e hadrões, cada uma delas com as suas

propriedades quânticas.

O primeiro facto que se extrai desta descrição trivial de diferentes

planos de atentarmos a uma entidade é simples: a porção de água é

sempre a mesma, ainda que consoante a escala a que a observemos lhe

descubramos propriedades distintas. Para verificar este facto, basta

proceder a observações do mesmo em escalas intermédias, por

exemplo, aumentando gradualmente a ampliação da imagem que nos dá

a ocular de um microscópio.

Por outro lado, não é menos trivial que para cada um destes

planos de observação dispomos de um conjunto de leis apropriado a

essa escala de observação, com o qual conseguimos dar explicações

bem sucedidas para esse plano. As leis químicas explicam

satisfatoriamente o comportamento químico da porção de água, as leis

da física atómica explicam satisfatoriamente o comportamento atómico

da porção de água, etc. Em ambos os casos, trata-se de explicações

causais, i.e, relativas à passagem de um certo estado a outro, à sucessão

de um certo evento por outro. Bastante menos triviais são os pontos que

se seguem.

Em primeiro lugar, as propriedades que verificamos em cada

plano escalar não são observadas em qualquer outra escala, são

específicas à sua escala de observação, não deixando, porém, por isso,

de ser propriedades reais. As propriedades da água à minha escala

natural não deixam de ser reais pelo facto de não se verificarem à

escala das propriedades químicas, nem estas deixam de ser reais à

68

escala das propriedades atómicas, etc. De outra forma, nenhuma

propriedade da água, independentemente da escala a que é relativa,

seria uma propriedade real, o que constituiria um absurdo. 43

Em segundo lugar, se a entidade observada num dos planos é a

mesma nos outros planos – se, por exemplo, a porção de água com que

tomei contacto real ao bebê-la por um copo é a mesma de que descrevo

a composição química, e, depois, progressivamente, a estrutura

molecular, atómica e subatómica –, então não é o caso que seja

realmente alguma das suas apresentações. Observe-a eu a olho nu, sob

a ocular de um microscópio, mesmo de um microscópio electrónico, ou

qualquer outro instrumento, o que observo é o mesmo. Digo observar e

não ver, pois naturalmente o que vejo pela ocular é radicalmente

diferente sempre que procedo a uma maior ampliação. Ainda que

houvesse uma escala última de observação, uma observação que não

escondesse outras, que acertasse na estrutura última de uma entidade

material como a da minha porção de água, mais não estaria a fazer do

que observar. Isto pressupõe a aceitação da distinção entre a

observação da realidade e a realidade observada.

Em terceiro lugar, as leis com que descrevo no quotidiano o

comportamento da água – por exemplo, como ela flui nos rios, ou como

ela influi na meteorologia –, as leis com que descrevo noutras escalas o

seu comportamento químico, atómico, subatómico dispõem, cada umas

por si, e à sua escala, de uma autonomia relativa face às restantes leis. É

frequentes vezes necessário recorrer a leis da física quântica para

explicar fenómenos à escala atómica, bem como recorrer a leis da física

atómica para explicar fenómenos à escala molecular. Por exemplo, o

comportamento da água no rebordo interior do copo explica-se por um

fenómeno muito peculiar da água conhecido pela expressão ‘pontes de

hidrogénio’, também não seria fácil explicar por que razão a água em

estado sólido ocupa mais espaço do que quando em estado líquido sem

43 A respeito da realidade do plano sobreveniente, afirma Kim: «(…) the causal relation between rising temperatures and increasing pressures of gases is no less “real” for being microreducible. To take microreducibility as impugning the reality of what is being reduced would make all of our observable world unreal.» (Kim, 1984b: 102)

69

invocar as suas propriedades à escala atómica e as leis que aí regulam o

seu comportamento. Mas seria despiciendo recorrer a algumas dessas

leis para explicar fenómenos meteorológicos; não que não se pudesse

dar tal explicação a partir de tais leis; simplesmente, há outros

conjuntos de leis mais apropriados e mais eficientes no esforço de

explicação. Por exemplo, seria absurdo explicar um defeito na

mecânica de um automóvel colocando-nos na escala subatómica, há

com certeza outras maneiras mais simples e mais eficientes de fornecer

uma cabal explicação.

Por último, se estes conjuntos de leis, cada um à sua escala,

dispõe de uma autonomia relativa, por um lado, já por outro essa

mesma autonomia relativa é indicação de um facto indesmentível –

cada conjunto de leis deve poder traduzir-se, digamos assim, nos

termos do conjunto de leis que vigoram no plano escalar inferior e

assim sucessivamente até onde alcançarmos. Por outras palavras, todos

os conjuntos de leis devem poder ser traduzidos, lidos de tal modo que

se sigam de um só conjunto de leis – que será, no estado actual das

nossas capacidades de observação, o correspondente à escala da física

quântica44. O que se diz das leis, dir-se-á também das propriedades,

pois cada propriedade a uma certa escala deve poder ser traduzida nos

termos das propriedades específicas às escalas inferiores. Esta

tradutibilidade enquadra, a nosso ver, o que Kim denomina

‘Requerimento da forte conectibilidade’45

Ora, tudo isto conduz a um enquadramento da ideia de

sobreveniência. Com efeito, se se trata de traduzir leis de escala

44 A isto o físico Böhr chamou ‘Princípio da correspondência’. Max Born

(outro laureado com o prémio Nobel da Física) descreve, do seguinte modo, a “ideia directriz” deste princípio – «Submetidas ao julgamento da experiência, as leis da física clássica provaram brilhantemente em todos os processos dinâmicos, macroscópicos e microscópicos, incluindo o movimento dos átomos considerados como um todo (teoria cinética da matéria). Deve, portanto, estabelecer-se como postulado incondicionalmente necessário que a nova mecânica, suposta ainda desconhecida, deverá em todos estes problemas chegar aos meus resultados que a mecânica clássica.» (Born, 1935: 114)

45 «The requirement of strong connectibility: For each mental property M there

is a physical property P such that necessarily, M is instantiated by a system at t if and only if P is instantiated by it at t.» (Kim, 1994: 579)

70

superior em leis de escala inferior, se se trata de traduzir propriedades

de escala superior em propriedades de escala inferior – afinal, temos

boas razões para crer que a realidade foi sempre uma, devendo haver

dela uma só descrição, e isto mesmo que não a saibamos ou possamos

dar – então impõe-se considerar outros conjuntos de leis, leis ponte

(bridge laws) entre diferentes escalas, que forneçam a tradução – e

prescrevam a sua necessidade ou contingência – das leis e propriedades

de uma escala para as de outra. As leis físico-químicas, as leis

biofísicas são disso exemplos, dizendo-se que os fenómenos biológicos

sobrevêm aos moleculares e que estes sobrevêm aos atómicos. E as leis

psicofísicas, admitindo a sobreveniência do mental ao físico, não serão

senão uma instância de leis ponte como aquelas.

Mas o que é então o sobreveniente? É o conjunto de leis e de

propriedades específicas a uma escala de observação superior que são

implicadas, através de um conjunto apropriado de leis ponte, por um

conjunto de leis e de propriedades específicas a uma escala de

observação inferior. Esta implicação é necessária, mas não logicamente

necessária. A sua necessidade é tão-só a prescrita pelas leis pontes

apropriadas. Portanto, fossem outras as leis pontes e, evidentemente,

seria outra a sobreveniência. E isto, mesmo que as leis específicas a

cada um das escalas fossem as mesmas. Mesmo sendo também as leis

ponte as mesmas, nada impede que estas leis prescrevam apenas uma

probabilidade, do que sobreviria necessariamente uma probabilidade,

mas contingentemente uma sobreveniência efectiva e não outra. Por

outro lado, não haveria sobreveniência se não houvesse leis pontes.

Sem estas, sendo que tal ausência é perfeitamente concebível, ter-se-

iam realidades entre si intraduzíveis, sem que alguma delas fosse

menos real que a outra.

Em todo o caso, havendo sobreveniência, seria de todo incorrecto

considerar que o subveniente está para o sobreveniente como uma

causa para um efeito, pois tal seria regressar às leis específicas a cada

escala, as únicas capazes de prescrever relações causais. As leis pontes

não prescrevem relações causais, nem sequer determinam qualquer

sucessão temporal; limitam-se a traduzir observações de diferentes

71

escalas, observações simultâneas46. Serve isto como explicação? Sim,

mas não como explicação causal, pois o que as leis ponte indicam é

única e exclusivamente como uma escala se integra noutra, como o que

sucede no que se observa numa escala se deixa explicar pelo que se

observa noutra, inferior.

A sobreveniência não servir como explicação causal, não

envolver qualquer consideração do tempo e, portanto, de processos

reais de transformação, significa, por um lado, que não deve ser

confundida com os processos causais que envolvem transformações

entre escala. Mas, já por outro, significa que tem um papel

determinante na explicação de tais processos. Uma ilustração clarifica o

ponto. As muitas descrições do processo pelo qual o bater de asas de

uma borboleta é capaz de, dando-se o tempo suficiente, originar uma

intempérie meteorológica do outro lado do planeta não são, por si,

exemplos de sobreveniência. O que nelas pode ser exemplo de

descrição de sobreveniência é a explicação, via leis ponte, de como os

efeitos meteorológicos correspondem a efeitos à escala do bater de asas

da borboleta. Note-se bem, contudo, que sem esta explicação via leis

ponte das correspondências entre efeitos, não ficaria completa a

explicação causal via leis físicas do fenómeno caótico exemplificado –

a continuidade entre causa numa micro-escala e efeito numa macro-

escala não é explicável sem o recurso a leis ponte.

De acordo com a maneira como a temos concebido, a

sobreveniência não é um processo, não é uma transformação, não se

inscreve na ordem temporal dos acontecimentos do mundo. Indicar uma

sobreveniência não é indicar nada do ponto de vista da realidade a não

ser que as suas diferentes apresentações estão numa certa

correspondência. Em rigor, pois, a sobreveniência nada diz

46 De facto, se, em termos de sobreveniência, digo que a uma variação

hormonal se segue a experiência de estar apaixonado, não o digo porque esteja a conceber um momento t1 em que ocorra a variação hormonal e um momento t2 em que ocorra a experiência de estar apaixonado (muito menos na ordem inversa). Digo-o, bem diversamente porque assumo que a variação hormonal é condição suficiente da experiência de estar apaixonado, ou seja, porque assumo que entre as duas há uma relação de implicação, entre um antecedente e um consequente, mas exprimindo não uma necessidade lógica, mas somente uma necessidade psicofísica.

72

directamente da realidade, mas tão-só das suas diferentes apresentações

face ao sujeito epistémico. Não estivesse em jogo a nossa posição de

observadores a certa escala, e não haveria lugar para um tal fenómeno

como a sobreveniência.

Ora, é neste enquadramento geral sobre a sobreveniência e as leis

pontes que a sustentam, que se inscreve, como espécie entre outras,

embora muito particular, como veremos em seguida, a sobreveniência

do mental sobre o físico e a sua prescrição segundo leis psicofísicas.

Mas este enquadramento geral do fenómeno da sobreveniência

permite desde já recusar um certo entendimento, dito epifenomenal, dos

planos sobrevenientes, pelo qual estes estariam na posição de efeitos de

um plano subveniente, sem, porém, poderem assumir a posição de

causas desse mesmo plano subveniente. Ora, de acordo com a nossa

proposta de caracterização do fenómeno da sobreveniência, um tal

entendimento epifenomenalista é apenas revelador de uma confusão

entre a relação de determinação/dependência prescrita por meio de leis-

ponte na sobreveniência e a relação de causa/efeito prescrita por meio

de leis causais. Já surpreendêramos a possibilidade de semelhante

confusão a respeito de uma vinculação entre uma estrita covariação

(por analogia com a assimetria causal) e a tese da sobreveniência, agora

reencontramo-la noutros termos, muito em especial, no caso da

sobreveniência do mental sobre o neural. Brian McLaughlin expõe o

ponto:

O epifenomenalista sustenta que os fenómenos mentais parecem ser causas apenas porque existem regularidades que involvem tipos de fenómenos mentais, e regularidades que involvem tipos de fenómenos mentais e físicos. Por exemplo, a instâncias de um certo tipo mental M (e.g. tentar alguém erguer o braço), tenderia a seguir-se instâncias de um tipo físico P (e.g. alguém erguer o braço). Inferir que instâncias de M tendem a causar instâncias de P seria, contudo, cometer a falácia de post hoc, ergo propter hoc. Instâncias de M não podem causar instâncias de P; tais transacções causais são causalmente impossíveis.(...) Estados e eventos mentais podem figurar na rede de relações causais apenas como efeitos, nunca como causas. 47

47 «The epiphenomenalist claims that mental phenomena seems to be causes

only because there are regularities that involve types (or kinds) of mental phenomena, and regularities that involve types of mental and physical phenomena. For example, instances of a certain mental type M (e.g. trying to raise one’s arm) might tend to be followed by instances of a physical type P (e.g. one’s arm’s raising). To infer that

73

Ora, o equívoco que se encontra aqui não é a ideia de que estados e

eventos mentais não possam causar estados e eventos físicos. Nisso, há

pleno acordo com a tese da sobreveniência tal como a temos

patenteado. Portanto, se fosse apenas isso que estivesse em causa na

tese do epifenomenalismo nada lhe haveria a apontar. Simplesmente

não é apenas isso que está em causa – afirma-se também, com o

epifenomenalismo, que os estados e eventos físicos causam estados e

eventos mentais. Mas como poderia assim ser se, por um lado, entre os

dois planos a determinação não é processual, não envolve nenhum

compasso de tempo, e, por outro, a causalidade é um processo que

envolve, entre a causa e o efeito, um lapso de tempo, uma diferenciação

entre um antes e um depois? Assiste-se, pois, e uma vez mais, à

confusão entre duas espécies de determinação, igualmente reais, e

igualmente atestáveis empiricamente, a saber, a determinação

propriamente causal e a determinação de uma plano sobreveniente por

um plano subveniente (ou, o que é equivalente, a dependência daquele

face a este).

Melhor do que no caso da sobreveniência do mental sobre o

neural, podemos confirmar em casos de simples sobreveniência natural

o carácter equívoco deste rebatimento da determinação prescrita pelas

leis-ponte que regulam a sobreveniência na determinação causal

prescrita pelas leis causais que regulam a sucessão de estados e eventos

num mesmo plano. Pense-se, por exemplo, na sobreveniência de

estados e eventos moleculares relativamente a estados e eventos

atómicos ou subatómicos. Obviamente, estes explicam aqueles, estão

na posição de explanans que explica o explanandum molecular, sem

que a conversa seja verdadeira48. Mas, só muito impropriamente, poder-

instances of M tend to cause instances of P would be, however, to commit the fallacy of post hoc, ergo propter hoc. (…) Mental events and states can figure in the web of causal relations only as effects, never as causes.« (McLaughlin, 1994: 277)

48 Tão obviamente quanto seria absurdo procurar reduzir a microcausalidade à macrocausalidade, ou inverter a redução de uma molécula de água a dois átomos de hidrogéneo e um de oxigénio (e cada um destes, por seu turno, a um certo conjunto de leptões e hadrões, no plano subatómico). É absurdo procurar um equivalente molecular de um electrão ou de um protão! As leis pontes não são, pois, bidireccionais, apenas permitem configurar uma redução do plano sobreveniente ao

74

se-ia daí seguir a afirmação de que tal explicação é causal. Já o vimos

atrás: as leis físicas só explicam causalmente eventos químicos se estes

forem reduzidos, por recurso a leis-ponte, a eventos físicos. Logo, não é

o caso que a explicação causal tenha sido de outra coisa que não

eventos físicos, exclusivamente eventos físicos. Por outro lado, nada há

de estranho no facto de o plano sobreveniente não dispor de nenhum

poder causal relativamente ao plano subveniente – com efeito, não

ocorreria a ninguém pensar que os eventos moleculares, observados à

escala da química, fossem a causa dos eventos atómicos e subatómicos

a que sobrevêm.

Tudo isto indica, a nosso ver, que a posição epifenomenalista

resulta de um equívoco entre dois tipos reais de determinação; mais em

particular, indica que tal posição é contraditória com a tese da

sobreveniência, pelo menos tal como a caracterizamos. Aliás, neste

ponto, importa objectar a Kim a sua afirmação de uma

compossibilidade entre as duas teses, a da sobreveniência do mental

sobre o neural e a do epifenomenalismo do mental, como sendo a

primeira a atestação de uma dependência e a segunda a tentativa de

atestação, entre outras, da natureza dessa dependência.49 Ora, tal

afirmação resulta do facto de Kim ter pretendido necessitar a

sobreveniência para lá do que leis psicofísicas pudessem prescrever,

dando-lhe uma base presumivelmente metafísica, o que (como

verificámos em §2, alínea c)) é insustentável. Assim, a sobreveniência

plano subveniente. De outro modo, não teríamos como identificar uma relação de dependência entre os dois planos, nem sequer poderíamos estabelecer a diferença, numa relação de sobreveniência, entre o que é sobreveniente mas não subveniente e o que é subveniente mas não sobreveniente.

49 «The thesis [da sobreveniência] says nothing about just what kind of

dependence is involved in mind/body supervenience. When you compare the supervenience thesis with the standard positions on the mind/body problem, you are struck by what the supervenience thesis doesn’t say. For each of the classic mind/body theories has something to say, not necessarily anything very plausible, about the kind of dependence that characterizes the mind/body relationship. According to epiphenomenalism, for example, the dependence is one of causal dependence; on logical behaviourism, dependence is rooted in meaning dependence, or definability; on the standard type physicalism, the dependence is one that is involved in the dependence os macro-properties on micro-structural properties; etc.» (Kim, 1994: 582)

75

ficaria dada independentemente das leis psicofísicas, ou seja,

independentemente de qual fosse a natureza da dependência, ficaria

dada num plano de abstracção em que não seria preciso comprometer

tal natureza da dependência afirmada.

Contudo, por mais vantajosa que fosse esta independência da

sobreveniência face àquilo que a necessita – o que permitiria

efectivamente isentá-la do debate sobre qual a natureza da dependência

afirmada – , o certo é que, como se verificou atrás, só a podemos

certificar com base em leis ponte que a necessitem.

Por seu turno, o interaccionismo mente/corpo, como alternativa

classicamente apontada, desde Descartes, ao epifenomenalismo, só vem

redobrar o equívoco apontado50. A este propósito, citemos Sofia

Miguens:

Em geral o epifenomenalismo é a concepção do mental de acordo com a qual este não tem por si poderes causais e portanto não tem efeitos físicos, é um “efeito sem efeitos”, o que proíbe desde logo pelo menos uma interacção do género cartesiano, e especificamente qualquer eficácia causal do mental sobre o físico.51

Com efeito, o epifenomenalismo proíbe o interaccionismo, tal

qual a sobreveniência fá-lo-ia, no que respeita a uma “eficácia causal

do mental sobre o físico”. Sucede, porém, que o epifenomenalismo

recai no erro do interaccionismo ao afirmar uma eficácia causal do

físico sobre o mental. De certo modo, poder-se-ia dizer que o

epifenomenalismo só falha por não retirar todas as consequências da

refutação do interaccionismo causal. Se o tivesse feito, então nada o

distinguiria da tese da sobreveniência tal como a expusemos, isto é,

como determinação (ou dependência) prescrita por leis ponte,

determinação distinta daquela outra determinação que qualificamos

como causal. Note-se que mesmo nos aparentemente triviais casos de

sobreveniência entre o molecular e o atómico, entre o atómico e o

50 Para lá da clássica referência ao interaccionismo cartesiano entre a res

extensa e a res cogitans, supostamente mediado pela glândula pineal (Cf. Descartes, 1641 e Descartes, 1649), encontra-se uma versão contemporânea do interaccionismo em Eccles e Popper, 1977.

51 Miguens, Sofia, 2002: 382.

76

subatómico, etc., é perfeitamente descartável qualquer pretensão

interaccionista entre os planos sobreveniente e subveniente. Por

exemplo, que sentido faz falar de uma interacção causal entre uma

molécula de água e os átomos que a compõem, entre ela e um dos

electrões que a compõem, entre ela e um dos quarks que a compõem?

§3. O desafio explicativo

Aceite a existência de correlações entre o que é da ordem do

vivido e o que é da ordem do laboratorialmente observado, o que,

insistimos, parece pouco discutível no estado actual de saber científico

sobre a matéria, levanta-se o nosso segundo desafio, relativo à

passagem das correlações às explicações. E este, ao contrário do

anterior, mostra-se já um problema bem mais difícil como poderemos

atestar pela condição misteriosa e paradoxal com que o problema

mente/corpo é confrontado através de argumentos como o da existência

de um “hiato explicativo”.

Esta dificuldade é claramente assumida por António Damásio

quando, por um lado, assume que as correlações, mesmo a sua origem,

estão bem fundadas, e quando, já por outro, se depara com a tal

condição misteriosa nas tentativas de dar resposta à simples pergunta

‘mas como?’. Nas palavras do investigador português:

Não há qualquer mistério no que diz respeito à proveniência das imagens. As imagens provêm da actividade de cérebros e esses cérebros fazem parte de organismos vivos que interagem com ambientes físicos, biológicos e sociais. Deste modo, as imagens surgem de padrões neurais (ou de mapas neurais), formados em populações de células nervosas (ou neurónios), que constituem circuitos ou redes. Há, porém, um considerável mistério no que respeita à forma como as imagens emergem dos padrões neurais. O modo como um padrão neural se torna numa imagem é um problema que a neurobiologia ainda não resolveu.52

52 Damásio, 1999: 367.

77

Sob o risco de se soçobrar numa inexplicabilidade por princípio

adivinha-se a própria possibilidade do fantasma do dualismo.53

a) Problema explicativo geral e problema explicativo específico

Por muito exacta que fosse a correlação entre estados mentais e

estados neurais, ou melhor entre as propriedades relevantes de uns e de

outros, ela de nada valeria para a resolução do mind/body problem se

não se fizesse acompanhar de certo tipo de explicação, que, como

vimos, deve ser fornecida por leis ponte que integrem a escala superior

na inferior, ou seja, que façam com que se siga na escala inferior o que

se segue na superior. Esta problemática não é, em parte, como vimos

atrás, distinta de todas as outras formas de sobreveniência que devemos

pôr a descoberto para integrar as nossas diferentes escalas de

observação da realidade. Mas, como se verificará em seguida, é

também bastante distinta na sua especificidade – tratando-se da

sobreveniência do mental sobre o físico parece haver uma

descontinuidade insuperável, nada à semelhança das restantes

sobreveniências exemplificadas. Por isso, revela-se aqui um duplo

problema relativo à explicação: um que diz respeito à epistemologia em

geral, e que pergunta como se justifica a passagem de uma descrição de

correlações entre diferentes escalas a uma explicação efectiva (mas não

causal) que ligue os correlata; outro que se pergunta por essa mesma

passagem naquelas correlações em que um dos termos é um estado

53 «Quando digo que as imagens dependem de e surgem a partir de padrões

neurais ou mapas neurais, em vez de dizer que as imagens são padrões ou mapas neurais, não estou a escorregar para um dualismo descuidado. Não estou a dizer que há um padrão neural por um lado e um cogito não material, por outro. Estou simplesmente a dizer que ainda não conseguimos caracterizar todos os fenómenos biológicos que têm lugar entre a) a nossa descrição actual de um padrão neural, a vários níveis biológicos, e b) a nossa experiência da imagem que tem origem na actividade do mapa neural. Existe uma lacuna entre o nosso conhecimento dos fenómenos neurais, a nível molecular, celular e de sistema, por um lado, e, por outro, a imagem mental cuja génese queremos compreender. Existe uma lacuna que deverá ser preenchida por fenómenos físicos ainda não identificados, mas presumivelmente identificáveis. A extensão da lacuna e a possibilidade do seu preenchimento no futuro constituem, é claro, assunto para debates.»( Damásio, 1999: 367-8)

78

físico (cerebral, neural) e o outro um estado mental (ou uma situação

mental descritível).

Georges Rey fez notar esta dupla vertente do problema

explicativo no seu Contemporary Philosophy of Mind (1997), mas não

sem introduzir uma confusão, muito recorrente quando se trata da

sobreveniência do mental sobre o físico, entre explicação causal e

explicação ponte. Com efeito, começa por chamar a atenção para a

necessidade de explicar correlações sem discriminar se se refere a

correlações e explicações ponte ou se se refere a correlações e

explicações causais. O exemplo que nos dá ajuda a fazer tal

discriminação. Por muito bem correlacionados que estivessem – e é

bem conhecido o facto de que estavam correlacionados há muito – o

calendário das marés e o movimento de translacção da Lua, semelhante

correlação só pôde integrar uma explicação causal a partir do momento

em que uma teoria da gravitação surgiu e estabeleceu essas correlações

num contexto explicativo causal. Este dado epistemológico,

designêmo-lo assim, de que a identificação, por muito precisa que seja,

de correlações não vale como explicação de nenhum dos factos

correlacionados, parece indisputável quer no que respeita a explicações

causais quer no que respeita a explicações ponte. Por maioria de razão,

qualquer correlação entre dados observáveis no cérebro e dados

observáveis na vida mental está evidentemente longe de, por si só,

consistir numa explicação do que quer que seja. Simplesmente: nunca

poderia tratar-se de uma explicação causal o que aí falta explicar. A

expectativa não pode residir, contrariamente ao que sugere o exemplo

de Rey, em obter uma explicação causal entre as propriedades físicas

do cérebro e as popriedades mentais da experiência, mas tão-só de uma

explicação ponte entre estes correlata.

O ponto para que chamamos a atenção é este: tal como a física

não explica causalmente os fenómenos químicos, também a neurologia

não explica causalmente os fenómenos mentais. Pelo menos assim não

sucede de forma directa. O que sucede é bem diverso: a física explica

causalmente fenómenos físicos a que a sobreveniência fez corresponder

fenómenos químicos; a neurologia explica causalmente fenómenos

79

neurológicos a que a sobreveniência fez corresponder fenómenos

mentais. É claro que isto só sucede sob a condição de estarem dadas as

leis ponte que prescrevem a sobreveniência.

Nada disto, sublinhe-se, revela alguma especificidade do

comummente designado problema mente/corpo. Encontramos essa

especificidade quando procuramos determinar leis pontes,

designadamente leis psicofísicas, que prescrevam pois a

sobreveniência, e a sua necessidade ou contingência, do mental sobre o

físico. E a respeito desta Georges Rey introduz um outro dado

epistemológico relativamente pacífico – o de os factos de nível inferior,

por exemplo atómico, necessitarem factos de nível superior, por

exemplo molecular (a palavra ‘necessitar’ é aqui empregue no sentido

preciso de algo tornar necessário algo; por exemplo, o nível de

realidade atómico é condição suficiente para o nível de realidade

molecular, pelo que este é uma condição necessária daquele). Aliás, à

luz deste dado, é razoável afirmar que assiste à explicação do mundo

físico um princípio de continuidade entre os níveis inferiores e os

superiores, pelo qual estes se revelam, a um tempo, dependentes

daqueles e dotados de uma autonomia relativa. Daí decorre a

necessidade de recusar certo reducionismo fisicalista por razões de

autonomia e irredutibilidade parcial de cada nível da realidade aos

níveis inferiores. Ora, o grande problema explicativo específico ao

problema mente/corpo, como Georges Rey sublinha a propósito da

célebre hipótese de Crick e Koch sobre a natureza neurológica da

consciência visual, é que, do cérebro para a consciência, parece haver

um manifesto salto sobre a continuidade exigida para que se possa

proceder a uma explicação causal, e isto por não haver, aparentemente,

nada que necessite integralmente a correlação mente/cérebro, em

particular uma lei ponte psicofísica. 54

54 Nos termos de Georges Rey – «Consider by way of recent example, the

Crick and Koch (1990) claim that the visual consciousness is correlated with a 40 Hz oscillation in layers five and six of the primary visual cortex. Paul Churchland (1995) goes so far as to claim that this is a plausible account of consciousness. That it isn’t, that something still is lacking, can be appreciated by simply thinking of such an oscillation outside of a living animal, say, in a radio or sine wave generator. Should such a device oscillating at such a frequency really be counted as conscious? This

80

Contra a ideia de que a correlação de Crick e Koch seja per se

uma explicação suficiente do carácter consciente, Rey chama a atenção

para o facto de uma oscilação não tornar necessária uma consciência.

Mas observe-se que o ponto pode ser levado mais longe: não é

propriamente o facto específico da oscilação que falha aqui como

explicação; se esse facto físico falha é porque, muito simplesmente,

nenhum processo físico, seja o apontado por Crick e Koch seja

qualquer outro descritível nos termos de uma Física, parece necessitar

uma mente. É esta a fasquia a que Rey coloca o problema55. Thomas

Nagel, em “Subjective and Objective”, exprime esta embaraçosa

descontinuidade entre o que é mental e o que é físico nos seguintes

termos:

A questão sobre como se pode incluir no mundo objectivo uma substância mental dispondo de propriedades subjectivas é tão crítica quanto a questão sobre como uma substância física pode possuir propriedades subjectivas. 56

Joseph Levine a este mesme propósito formula o seu “argumento do

hiato explicativo” (explanatory gap argument)57. Se Thomas Nagel,

com o seu célebre What it is like to be a bat?, expõe a dificuldade de

seems preposterous. If it is, then the 40 Hz oscillation can’t itself be the explanation of consciousness: as the examples show, it is at least possible that the oscillation should occur without consciousness: the oscillation don’t necessitate consciousness, in the way that molecular bonding necessitates freezing.» (Rey, 1997: 42-3. Itálicos nossos).

55 Afirma Rey – «There seems to be an explanatory gap that no one seems to

be able to think of any way of filling» (Rey, 1997: 43) 56«The question of how one can include in the objective world a mental

substance having subjective properties is as acute as the question how a physical substance can have subjective properties.» (Nagel, 1979: 201)

57 «There is more to our concept of pain than its causal role, there is how it

feels; and what is left unexplained by the discovery of C-fiber firing (the standard candidate for the neural basis of pain, despite its total empirical implausibility) is why pain should feel the way it does! For these seems to be nothing about C-fiber firing that makes it naturally “fit” the phenomenal properties of pain, any more than it would fit some other set of phenomenal properties. Unlike its functional role, the identification of the qualitative side of pain with C-fiber firing (or some property of C-fiber firing) leaves the connection between it and what we identify it with completely mysterious. One might say it makes the way pain feels into merely a brute fact. (Levine, 1983: 358; “Materialism and Qualia: the explanatory gap”, Pacific Philosophical Quaterly: 354-361. Citado por Gulick, 1993: 464-465)

81

uma teoria física da mente explicar o carácter subjectivo da

experiência58, e se J. Levine levanta o problema de um hiato

explicativo, ambos nos confrontando com o que dizem ser um mistério,

Stephen White leva o problema a um tal ponto em que conclui que o

plano mental é inexplicável de um ponto de vista físico59.

Como enfrentar este problema explicativo específico à

sobreveniência do mental sobre o físico? É aceitável a presunção de

uma não necessitação do mental pelo físico? E como explicar essa

presunção? Que é que faz com que a sobreveniência do mental sobre o

físico, diferentemente das restantes, não seja, pelo menos

aparentemente, determinável?

A nosso ver, e seguindo de muito perto a sugestão de Georges

Rey60, estas questões encontram resposta apenas através de uma

mudança de perspectiva, a saber, convertendo o que designámos por

‘problema explicativo específico’ num problema de natureza

fundamentalmente epistemológica. Por outras palavras: só se

responderá a estas questões alcançando um enquadramento mais

adequado para a tese da sobreveniência, denunciando o que se emprega

habitualmente, em vez de apontar ao mundo um paradoxo. Como

procuraremos mostrar, mais do que um problema em torno das

condições físicas do mundo, tratar-se-á, pois, de conceber de outra

forma a formulação do problema.

58 «If we acknowledge that a physical theory of mind must account for the

subjective character of experience, we must admit that no presently available conception gives us a clue how this could be done. The problem is unique. If mental processes are indeed physical processes, then there is something it is like, intrinsically, to undergo certain physical processes. What it is for such a thing to be the case remains a mystery.» (Nagel, 1979: 175)

59 Cf. White, 1991. 60 «But maybe the problem is not with the world but with us. It’s important to

notice that the existence of these explanatory gaps does not itself entail anything like dualism. The gaps, after all, could simply be gaps in our way of conceiving phenomena in the world, and not in the worldly phenomena themselves: they could all be a result of some limitations in the way we have of thinking about the world: the right way of thinking about the issues simply hasn’t yet occurred to us.» (Rey, 1997: 44).

82

b) Sobreveniência normal e sobreveniência especial

Face às dificuldades que se enunciaram, o principal objectivo a

perseguir em seguida consistirá em mostrar que existem elementos

suficientes para assentar na ideia de que entre o mental e o físico

podemos falar, pelo menos em tese, de sobreveniência, embora

salvaguardando uma sua especificidade face aos casos normais de

sobreveniência que encontramos na natureza.

Apresentamos três dados que nos persuadem de que entre o

mental e o neural se verifica um fenómeno de sobreveniência: i) há

correlações entre padrões mentais e padrões neurais; ii) tais correlações

são simultâneas; iii) os planos correlacionados são, cada um por si,

planos em que se verificam propriedades específicas e leis causais

específicas. Nisto, encontra-se a base para que, a propósito destas

correlações mente/corpo, sustentemos que há sobreveniência.

Contudo, a objecção do hiato explicativo sugere fortemente que

não há forma de necessitar fisicamente o mental. E, sendo esse o caso,

então não haveria sobreveniência. Terá de ser assim? A nosso ver, não;

a nosso ver, como já referimos, o hiato explicativo é superável por uma

inovador enquadramento da tese da sobreveniência do mental sobre o

neural na sua especificidade face às formas normais de sobreveniência.

Comecemos por distinguir, pois, as duas espécies de

sobreveniência, qualificando a que encontramos na natureza com o

adjectivo ‘normal’ e a que está em discussão, entre os correlata

mente/corpo, com o adjectivo ‘especial’.

De uma forma sistemática, podemos também indicar duas

diferenças entre a sobreveniência do mental sobre o físico –

Sobreveniência especial – e a sobreveniência com que nos deparamos

quando observamos a natureza a diferentes escalas e procuramos

integrar esses diferentes planos de observação – Sobreveniência

normal:

Contraste continuidade/descontinuidade – Na Sb-normal, entre

dois planos de observação é sempre possível encontrar um

83

terceiro plano de observação; na Sb-especial, apenas há dois

planos de observação, não sendo possível encontrar entre eles um

terceiro plano de observação.

Contraste escala/não-escala – Na Sb-normal, as diferenças entre

planos de observação são diferenças entre escalas de observação;

na Sb-especial, a diferença entre planos de observação não é mais

do que a diferença entre um plano onde há escala e um plano

onde não há escala nenhuma.

O contraste enunciado em último lugar, entre escala e não-escala,

indica que a Sb-normal só pode ocorrer no seio de um dos planos de

observação da Sb-especial, justamente o plano dotado de escalas de

observação que podem variar. Assim, há entre as duas espécies de

sobreveniência, a especial e a normal, uma pressuposição da primeira

pela segunda – A Sb-normal participa do plano subveniente da Sb-

especial. Logo, não podemos pensar a sobreveniência do mental sobre o

neural nos termos de um rebatimento de uma escala “macro” numa

escala “micro”, designadamente, empregando termos de Kim, de uma

relação macrocausal numa relação microcausal.61

Por outro lado, enquanto na Sb-normal podemos levar a cabo um

procedimento observacional que nos conduza à constatação de que

aquilo que vemos diferentemente (em virtude de uma adopção de

escalas de observação diferentes) é, afinal, o mesmo, bastando para isso

adoptar escalas de observação intermédias, já tal procedimento, no caso

da Sb-especial, se revela impraticável. Só que a inexequibilidade de um

procedimento não é razão suficiente para que não admitemos outros

que nos permitam verificar, por outras vias, porventura menos directas,

que, ao vermos diferentemente um padrão neural e um padrão mental,

estamos de facto a observar o mesmo.

Não é, pois, este contraste escala/não-escala que vem pôr em

causa a presunção de que entre o mental e o físico haja sobreveniência,

61 «(…) Macrocausal relations are supervenient causal relations – supervenient

upon microcausal relations.» (Kim, 1984b: 103)

84

mais em concreto, a presunção de que um padrão neural e um padrão

mental correlacionados sejam ambos apresentações reais do mesmo,

não sendo, pelo menos a priori, impossível formular uma lei ponte que

necessite tal correlação.62

A dificuldade reside realmente no outro contraste indicado, o

contraste continuidade/descontinuidade. É este contraste que faz

ressaltar a advertência assinalada por Rey e, a nosso ver, toda a esfera

de objecções em torno de um hiato explicativo. Porquê? Simplesmente,

porque aqui não é afirmada apenas a inexistência de um certo

procedimento (podendo, apesar disso, haver outros, mesmo que não

saibamos quais), mas uma descontinuidade incontornável entre os dois

planos da sobreveniência dita especial.

Posto isto, se quisermos sustentar a nossa tese de uma

sobreveniência natural (não metafisicamente necessitada) do mental

sobre o neural, que qualificamos ainda como especial (de forma a fazer

notar a sua especificidade), deveremos distinguir e jogar três “apostas”:

i) por um lado, a aposta de encontrar algum procedimento

observacional, que não o da observação intermédia, pelo qual

se ateste que dois padrões correlacionados, um neural outro

mental, são apresentações do mesmo;

ii) por outro, a aposta de encontrar uma base que permita a

formulação de leis ponte entre os dois planos correlacionados;

iii) por fim, a aposta de definir um enquadramento

epistemológico através do qual seja possível responder à

objecção que afirma a existência dum hiato explicativo entre o

explanans físico e o explanandum mental.

. Note-se que a terceira destas apostas já não é propriamente um

desafio explicativo – acerca dos termos em que se pode necessitar a

62 Com isto, julgamos ficar clara a compatibilidade entre sobrevenência e

teoria do duplo aspecto (Dual aspect theory). Uma caracterização da teoria é dada por Roger Bissell no artigo A Dual-aspect approach to the mind-body problem – «(…) any given process of the mind is actually one and the same process as some particular electro-chemical process of the brain, so that what appear to be two distinct processes are actually just two aspects of one and the same brain process, i.e., they are actually just one and the same brain process viewed from two different cognitive perspectives.» (Bissell, 1976: 18)

85

sobreveniência especial –, mas, diversamente, o desafio epistemológico

por excelência, dedicado à descoberta filosófica do enquadramento

mais adequado que se deve dar à tese da sobreveniência numa moldura

para a resolução do problema mente/corpo.

c)Determinação da base para a formulação de leis pontes que

necessitem a Sb-especial

Por ora, procuraremos responder à aposta de encontrar uma base

que permita a formulação de leis ponte capazes de necessitar as

correlações mente/corpo.

Para isso, comecemos por chamar a atenção para o modo como

tal constituição de leis ponte é obtida nos casos de Sb-normal. Aí, já o

sabíamos, os processos causais em cada um dos planos, o sobreveniente

e o subveniente, possuem uma legalidade própria. Também sabíamos

que as leis que regulam o plano sobreveniente dispõem de uma

autonomia relativa face às leis que regulam o plano subveniente.

Porém, a partir de certo nível de abstracção, consegue-se determinar

em ambos os planos uma mesma legalidade e descrever uma mesma

causalidade. Por outras palavras, a partir de certo nível de abstracção,

descobre-se que, além do mero facto da correlação espácio-temporal, os

planos correlacionados partilham as mesmas leis (abstraídas como o

que há de comum das leis causais específicas a cada plano escalar).

Ora, as leis pontes que necessitam a correlação e determinam a

sobreveniência são constituídas justamente tendo por base estas leis

comuns que se abstraem das leis específicas a cada um dos planos.

Posto isto, podemos mostrar que, pelo menos em princípio, nada

impede a formulação de leis ponte entre o mental e o físico, e

exactamente nos mesmos termos com que se formulam leis pontes na

Sb-normal.

Neste sentido, assumamos o seguinte. Sejam um padrão neural,

Pn, e um padrão mental, Pm; encontrem-se correlacionados, (Pn, Pm).

Por exemplo, a visão de um certo cartão colorido e a visão da imagem

86

de certo padrão neural obtida por, suponhamos, uma tomografia por

emissão de positrões.

Ora, tal qual na Sb-normal, a partir de certo patamar de

abstracção não é impossível descobrir entre os planos relativos a Pn e a

Pm um mesmo conjunto de leis abstractas que valha como base para a

formulação de leis ponte que necessitem as correlações entre os dois

planos. Um só exemplo permite ilustrar esta comunidade entre os dois

planos da Sb-especial – Tim van Gelder procurou mostrar, em especial

em “Wooden Iron?”, que há, no nivel de abstracção adequado, um

mesmo comportamento dinâmico, susceptível de uma mesma descrição

e até matematizável, entre certos padrões mentais e certos padrões

neurais relativos à percepção de melodias.63 Este modelo pode ser

entendido como uma hipótese científica, corroborável pelos dois planos

de experimentação a ter em conta – o propriamente físico e o mental.

De certo modo, é também esta dupla inscrição experimental a que

programas de investigação como a Neurofenomenologia, de Francisco

Varela e outros, levam a cabo. Também a nossa proposta, defendida

noutro trabalho64, de que a experiência fenomenologicamente descrita

da própria experiência mental em geral revela características de um

fenómeno de ressonância exemplifica a mesma dupla faceta

experimental e a possibilidade de encaminhar a investigação sobre o

mental para um patamar de abstracção onde seja possível encontrar

uma mesma legalidade – ou “meta-legalidade” – nos planos

correlacionados. Por fim, David Chalmers consagra este ponto com o

seu Princípio da coerência estrutural (Principle of structural

coherence), segundo o qual há uma «pormenorizada correspondência

entre as propriedades estruturais da informação processada no cérebro e

as propriedades estruturais da experiência consciente».65

63 Cf. nosso §65. 64 Cf. Barata, 2000: 217-258. 65 «It has long been recognized that there is a detailed correspondence between

structural properties of the information processed in the brain and structural properties of conscious experience» (Cf. Chalmers, 1997)

87

Todos estes elementos apontam pelo menos para a possibilidade

de um estabelecimento de leis ponte entre padrões neurais e padrões

mentais, de acordo com modelos susceptíveis de infirmação empírica,

aliás duplamente empírica – no sentido lato, de informação

experimental colhida quer no plano de observação relativo a padrões

neurais quer no plano de observação relativo a padrões mentais –, mas

igualmente susceptíveis de corroboração, exactamente nos mesmos dois

planos, e exactamente nos mesmos termos das exigências de

cientificidade de qualquer trabalho de investigação no domínio das

ciências naturais.

d) Princípio da descontinuidade mente/corpo

Agora, e retomando a objecção do hiato explicativo, segundo ela

temos que de nada serve necessitar as correlações (Pn,Pm) através de

leis-ponte, se, de facto, no momento em que temos Pn, e observamo-lo

atentamente, não descobrimos, seja a que escala for, nada como Pm.

Como se pode assim dar por fisicamente explicado o mental? A

peculiar circunstância de na Sb-especial, ao contrário de na Sb-normal,

apenas haver dois planos de observação, não sendo possível encontrar

entre eles um terceiro plano de observação, elimina, pois, segundo esta

objecção, qualquer expectativa de constatar uma presumível explicação

física do mental. Se essa explicação fosse aceitável então deveria

ostentar o seu resultado – uma mente. Mas isso é esperar uma

impossibilidade! Donde, o mistério de que Levine e Nagel falam.

Sistematizando, se há algo maximamente problemático no

problema mente/corpo é justamente o que poderemos designar por

Princípio da descontinuidade mente/corpo (PD), cujo enunciado

propomos que seja:

PD: Afigura-se tão impossível implicar no mundo tal qual observado fisicamente a observação de um estado mental como implicar nesta a observação de uma qualquer entidade minimamente aparentada com as entidades que reconhecemos como físicas.

88

São duas as impossibilidades em causa nesta proposição.

Primeiramente, a de alguém chegar, introspectiva ou reflexivamente, a

experienciar nos seus estados mentais – numa dor ou num prazer

sentidos em dado momento e em dado local por exemplo – uma

determinada configuração neural ou, simplesmente, o que quer que seja

que se prenda, mesmo no mais débil sentido que se possa imaginar,

com um estado físico.

Esta primeira afirmação pode ser considerada intuitivamente

evidente; no entanto, parece contradizer todas as formas de fisicalismo,

mesmo o não-reducionista característico dos que pugnam por teses

como as da sobreveniência, pois a estas é comum a ideia de que os

estados mentais têm por condição necessária estados físicos, sejam

neurológicos sejam sintetizados, sejam simplesmente fisicamente

materializados de outra forma que não estas. Mas, de acordo com PD,

nenhuma implicação de estados físicos se encontra nos estados mentais

vividos; nestes nada parece depender de, ou ser determinado por,

aqueles.

Em segundo lugar, PD afirma a impossibilidade de experienciar

em estados neurais do cérebro, observados e descritos através da

perspectiva da terceira pessoa, aquilo que se denomina, com maior ou

menor precisão, ‘consciência’, a sua ‘intencionalidade’ e as nossas tão

naturais ‘crenças’, ‘dores’, ‘prazeres’, ‘angústias’, etc. Menos intuitiva,

é certo, esta segunda impossibilidade – bem corroborada pelo

argumento de Rey – indica que nenhum estado físico necessita, ou

torna necessários, estados mentais. Curiosamente, apesar de menos

intuitiva, esta segunda impossibilidade é mais bem aceite pela ideia de

um fisicalismo eliminativista, ou seja, aquele fisicalismo que se propõe

eliminar, pura e simplesmente, os estados mentais enquanto estados

reais.66

Note-se bem que, face a PD, o problema não reside tanto no facto

de a sucessão dos estados mentais, descritível na primeira pessoa, ser

ou não determinada por uma sucessão de estados cerebrais, descritível

66 Cf. Churchland, Paul, 1981: 75.

89

na terceira pessoa67; nem sequer residirá na distinção muito intuitiva,

mas per se pouco explicativa, entre uma perspectiva da primeira pessoa

e uma perspectiva da terceira pessoa. Mais exactamente, o

problemático reside em conciliar a ideia de uma explicação física para

o facto de haver mentes com a inexistência de continuidade entre as

nossas observações do mundo físico e das nossas mentes, entre as

observações e descrições neurológicas dos processos físicos e as

experiências que um sujeito consciente vivencia. Ou mais

simplesmente: como explicar fisicamente a existência de uma mente,

não obstante a descontinuidade?

Esta é, a nosso ver, a dificuldade crucial que PD suscita

filosoficamente. É também a objecção óbvia que se pode apontar às

argumentações que procuram fazer equivaler uma eventual redução do

mental ao físico, e subsequente explicação causal, às reduções, e

subsequentes explicações causais de nível inferior, que se operam no

domínio científico-natural. É o caso, por exemplo, da argumentação de

John Searle em Intentionality, onde afirma designadamente que «o

problema mente/corpo é um problema tão real como o problema

estômago-digestão»68. Para Searle, o problema mente/corpo, se bem

abordado, nem sequer chega a constituir realmente um problema, pois

não levanta nenhuma outra dificuldade para além das que decorrem do

facto de o cérebro e de a mente corresponderem a duas escalas

diferentes, uma “micro” e outra “macro”. Donde, o autor afirmar que a

mente não é menos natural e biológica que o cérebro ou quaisquer

outros fenómenos biológicos, como a fotossíntese ou a digestão.

Só que, como se verificou acima, reduzir o problema mente/copo

a um problema de escala é perder de vista o que lhe confere uma

especificidade problemática inédita, a saber a inexistência de

continuidade entre a descrição física do que é da ordem do corpo e a

descrição fenomenológica do que é da ordem da mente. É esquecer os

67 De qualquer modo, convém deixar claro que Rey não rejeita a tese de Crick

e Koch; afirma apenas que continua a faltar qualquer coisa, qualquer coisa que a Paul Churchland parece escapar.

68 Cf. Searle, 1983: 262-272.

90

contrastes, atrás indicados, que diferenciam a sobreveniência que

qualificámos especial da sobreveniência normal, designadamente o

contraste continuidade/descontinuidade.

E, não obstante, para quem creia numa explicação natural da

mente, tal explicação não deverá afastar-se muito da simplicidade que

John Searle defende. A dificuldade, enorme dificuldade na tradição

filosófica e que parece ter escapado a Searle, não reside tanto na

explicação física da mente, mas, como temos enfatizado, na moldura

em que enquadraremos essa explicação.

§4. O desafio epistemológico

O que não há, até à presente fase desta investigação, é um

resposta para a seguinte dificuldade: apesar de concebermos que certa

imagem mental esteja perfeitamente correlacionada com certo mapa

neural, apesar de concebermos que possamos explicar, pelo menos a

partir de certo nível de abstracção, o comportamento mental

subsequente através da explicação causal do comportamento neural

subsequente, fica ainda assim por conceber como se explica

neuralmente o simples facto de haver vida mental. Como rejeitar,

perguntar-se-á, a perspectiva de um dualismo harmonioso entre mental

e neural? Como obter uma explicação neural para a posição do mental,

despojando assim de qualquer crédito tal perspectiva de um dualismo

mente/corpo? Ou deveremos resignar-nos ao estado de dúvida entre

uma alternativa dualista e uma alternativa monista? É esta, pois, a

formulação crucial do problema: como pode haver explicação do

cérebro para a mente se entre as descrições de um e da outra não existe

continuidade?

Parece, pois, que qualquer esforço de explicação da correlação

mente/corpo redunda em contradição: a necessidade de uma

continuidade é posta em conjunção com a impossibilidade de uma

continuidade. Eis pois a dificuldade que Searle não anteviu, a

dificuldade que Nagel, Levine e outros salientaram. Neste sentido, o

91

argumento do hiato explicativo tem uma função positiva: expõe um

problema que deverá ser tratado. Contudo, o seu inegável valor

heurístico esbarra com uma frequente incapacidade, por parte dos seus

proponentes, de apresentar algum tipo de saída para o problema.

a) A distinção percipi/esse

Porém, se se atentar bem ao que diz PD verificar-se-á que nele

não ocorre nenhuma contradição e que o paradoxo é apenas aparente.

Com efeito, a descontinuidade afirmada por PD reporta-se apenas às

descrições associadas ao corpo e à mente, não se reporta aos termos

dessas descrições. O que está em causa em PD é o facto de não ser

possível a um qualquer sujeito de experiência encontrar na sua

experiência objectiva do corpo, por mais completa que seja, a sua

experiência na primeira pessoa do mental e vice-versa. Mas, a

inexistência de continuidade entre a descrição física do que é da ordem

do corpo e a descrição fenomenológica do que é da ordem da mente

nada nos diz sobre se existe, ou não, continuidade real entre as

realidades descritas. Brevemente, PD diz respeito a uma

descontinuidade entre dois domínios de experiência, situando-se num

plano que apelidaremos percipi; já a explicação natural da correlação

mente-corpo diz respeito a uma continuidade entre dois domínios de

realidade, situando-se num plano que apelidaremos esse. Como a

descontinuidade entre as descrições não implica a descontinuidade

entre as realidades descritas, não há qualquer contradição entre os

esforços para obter uma explicação física da mente e o facto epistémico

de não ser possível encontrar no mundo físico um estado mental. Ou

seja, temos demonstrado que o hiato explicativo não é uma

inevitabilidade.

Esquematicamente, e tomando a seta de banda larga, abaixo

representada, como a orientação do que se assume como explanans

para o que se assume como explanandum (note-se que não se trata da

relação da causa para o efeito), o problema mente/corpo tem-se

92

resumido, genericamente, à questão sobre como nos será possível

admitir a seguinte continuidade explicativa:

De acordo com o que acabamos de expor, tal continuidade

explicativa não será alcançável a não ser que se proceda – para lá do

desdobramento entre um plano subveniente e um plano sobreveniente –

ao desdobramento entre um plano da experiência e descrição da

realidade, por um lado, e um plano da realidade experienciada e

descrita, por outro. Ou ainda, entre um plano percipi e um plano esse.

Resulta assim, como única via para encontrar tal continuidade

explicativa, um duplo desdobramento em quatro segmentos: percipi-

corpo, percipi-mente, esse-corpo, esse-mente.

Fig. 1 Esquema explicativo I

?

CORPO

MENTE explanandum

Explanans

Mente realismo (?) Pm

Continui- Desconti- dade nuidade

Corpo realismo(?) Pn

Plano esse

Plano percipi

Fig. 2 Esquema explicativo II

93

Note-se que não se visa aqui, e já, assumir duas pressuposições

discutíveis – a de que haja alguma diferença entre o percipi mental e o

esse mental, por um lado, e entre o percipi neural e o esse neural, por

outro. Se distinguimos um plano esse de um plano percipi, tal visa

reflectir tão-só as distinções conceptuais resultantes da assunção

evidente de dois planos de observação. Nestes termos, o desdobramento

percipi/esse é meramente analítico.

Não obstante, isto não faz com que se possa saltar, pelo menos de

um ponto de vista filosófico, sobre dois problemas suplementares: por

um lado, o da correspondência percipi/esse, pelo qual se elucide o valor

representativo da nossa experiência; por outro, o da discriminação de

tipos básicos de experiência, pela qual se elucide a descontinuidade

mente/corpo no plano percipi, designadamente explicando por que

razão é essa descontinuidade um facto da nossa experiência.

O primeiro problema prende-se sobretudo com o risco de se cair

no cepticismo face ao mundo exterior, risco que não é específico ao

problema mente/corpo, mas a toda e qualquer explicação que envolva

no seu explanans o mundo exterior. Inscrevendo-se as tentativas de

explicação física da mente nesse quadro, então, pelo menos de um

ponto de vista filosófico, não poderão deixar de certificar a

correspondência percipi/esse.

O segundo problema visa sobretudo justificar um dos pontos

reitores da nossa argumentação, a saber, o PD. Quando se diz não ser

possível encontrar uma dor num estado cerebral (ou quando se diz que

apenas podemos conhecer indirectamente as dores dos outros, através

do seu comportamento manifesto), deve ser notado que tal não pode ser

atribuído, pelo menos originariamente, ao facto de as dores serem

privadas e os estados cerebrais (bem como os comportamentos) serem

publicamente experienciáveis. Isso nem chega a ser parte da resposta;

antes é, na verdade, parte da pergunta. Já o desdobramento percipi/esse

participa da resposta, embora constituindo nela apenas uma parcela.

94

Limita-se a restringir os termos correlacionados ao plano percipi.

Porém, ao fazê-lo, permite converter o problema de saber por que razão

há necessariamente uma descontinuidade num problema que se reporta

apenas ao plano percipi. E sendo assim, então poder-se-á considerar

que as razões da descontinuidade necessária entre Pm e Pn se devem

encontrar de algum modo nas próprias condições da experiência. Dito

por outras palavras, dever-se-á tematizar a própria estrutura da

experiência de modo a que seja possível encontrar nela as razões para

uma descontinuidade entre a experiência do corpo e a experiência da

mente, ou ainda, entre a experiência objectiva daquele e a experiência

subjectiva desta.

Finalmente, há que denunciar um falso problema – não é verdade

que se tenha de assegurar a continuidade no plano esse. Em princípio,

esta está dada, pois corresponde à realidade propriamente dita, aquela

que subsistiria mesmo sem a posição de um observador. O que está

aqui em causa é apenas reconduzir as correlações mente/corpo de uma

posição em que se estabelecem sobre a descontinuidade percipi para

uma posição em que se estabelecem sob essa descontinuidade.

Escusado seria, sem motivo forte, introduzir uma nova

descontinuidade, agora no plano esse, como formulação, digamos, de

um dualismo radicalmente ontológico.69

b) Proposta de moldura epistemológica

Os elementos já fixados – PD e desdobramento percipi/esse – são

suficientes para que tomemos posição sobre o enquadramento adequado

que devemos dar à nossa tese da sobreveniência especial (do mental

sobre o neural) e, assim, para a “construção”, digamos assim, de uma

moldura epistemologicamente adequada à resolução do problema

mente/corpo. Procederemos a tal construção em três passos.

69 Dizemos “dualismo radicalmente ontológico”, para o discernir do

tradicional dualismo mente/corpo que mais não consiste no rebatimento, por manifesto equívoco, da descontinuidade do plano percipi no plano esse.

95

Se a tese da sobreveniência especial encontra sustento numa

dupla fonte de experiência – padrões ou imagens mentais fornecidos

pela perspectiva da primeira pessoa e padrões ou mapas neurais

fornecidos pela perspectiva da terceira pessoa –, então, com o

desdobramento esse/percipi, deveremos restringir o seu âmbito

explicativo ao plano percipi. Este é o primeiro passo.

Esta restrição da Sb-especial faz sistema com a restrição de PD

aos segmentos percipi, pois ambas decorrem da assunção da distinção

percipi/esse.

No entanto, se a Sb-especial for apenas verificada no plano

percipi, então, por si só, mostrar-se-á incapaz de valer como uma

autêntica explicação do problema mente/corpo. Isto, porque é todo o

plano percipi, e não apenas o seu segmento mente, que há que explicar.

Para ultrapassar este obstáculo, é preciso assegurar a

correspondência percipi/esse quanto aos termos relativos à perspectiva

da terceira pessoa, pois então poder-se-á assumir, de um ponto de vista

epistemológico, a informação obtida na perspectiva da terceira pessoa

no plano percipi como sendo informação fidedigna do plano esse. Por

outras palavras, se estivermos seguros de que o mundo físico é tal qual

o experienciamos na perspectiva da terceira pessoa, então poder-se-á

deslocar o segmento percipi-corpo da posição de explanandum para a

de explanans, dispensando uma sua explicação e restringindo, assim, o

esforço explicativo ao segmento percipi-mente. Este é o segundo passo.

Com isto, está, a nosso ver, perfeitamente assegurado o

suficiente, do ponto de vista do enquadramento epistemológico, para

explicar o segmento esse-mente como um natural fenómeno de

sobreveniência normal (já não especial) muito na linha do que Searle

defendeu em Intencionalidade. O problema é que Searle ignorou a

necessidade de se proceder a um terceiro passo, quando é evidente que

este enquadramento permanece insuficiente para que se possa afirmar

que se obteve uma explicação do segmento percipi-mente, o único que

vivenciamos subjectivamente, na perspectiva da primeira pessoa.

Ora, pelo facto de no plano percipi, e de acordo com a

sobreveniência especial, ser o segmento percipi-corpo que assume a

96

posição de explanans e não o segmento percipi-mente (este vale aí

apenas como explanandum sobreveniente), então poder-se-á assumir,

em virtude da correspondência esse/percipi, o mesmo para os

segmentos do plano esse. Ou seja: assumir que o segmento esse-mente

é o que há explicar no plano-esse, não participando aí da explicação; e

assumir que, embora esteja contido no explanans de todo o segmento-

percipi, é aí explicativamente neutro. Assim, torna-se necessário

distinguir dois níveis de explicação, um esse, outro percipi, em que o

primeiro é projectável no segundo. Este é o terceiro passo.

De uma forma mais sistemática, julgamos ter identificados os três

passos que estabelecem a almejada moldura para um adequado

enquadramento da tese da Sb-especial. São eles:

(1) Restrição da Sb-especial ao plano percipi

(2) Assunção do segmento percipi-corpo como segmento esse-corpo

(3) Projecção do explanandum esse-mente como explanandum

percipi-mente.

Além disso, sob estas três condições, o que se obtém quando se procede

a um enfrentamento do problema mente/corpo através da tese da

sobreveniência é:

- Em primeiro lugar, uma explicação no plano esse do segmento

esse-mente em função de (2), mas tão-só enquanto orientada pela

explicação no plano percipi do segmento percipi-mente, de

acordo com (1).

- E, em segundo lugar, a validação dessa explicação como

explicação do segmento percipi-mente, em virtude da condição

(3).

Esquematicamente, a moldura que propomos pode ser assim

representada:

Explicação esse Fig. 3 Explicação percipi

C (1) M plano percipi C M

(2) (3)

C M plano esse C M

Moldura explicativa para o problema mente/corpo

97

c) Superação do hiato explicativo

O ganho mais evidente que se alcança com este enquadramento

do problema mente/corpo consiste na superação da objecção do hiato

explicativo: se o que é realmente explicado é o segmento esse-mente, e

se o segmento percipi-mente apenas é explicado porque a validade

daquela explicação é projectável como sua explicação (em virtude da

neutralidade explicativa de esse-mente), então não é o caso que se

devesse esperar, sequer que fosse possível esperar, constatar o

segmento percipi-mente assim explicado.

O ponto capital aqui incide na necessidade de proceder à

distinção entre um problema mente/corpo propriamente dito e um

problema relativo à sua epistemologia filosófica, pois é na indistinção

entre estes dois problemas que localizamos o que poderemos considerar

um equívoco nas argumentações assentes na ideia de um hiato

explicativo que nos confronta com um “mistério” no problema

mente/corpo.

A nosso ver, tal “mistério” só se sustenta pela confusão entre três

pontos: existir uma explicação para o problema mente/corpo, descobrir

essa explicação e constatá-la. Com efeito, esperar-se-ia que explicar

fisicamente a mente consciente, ou seja, explicar a perspectiva da

primeira pessoa através da da terceira pessoa, fosse encontrar

fisicamente a mente, ou seja, encontrar na perspectiva da terceira

pessoa a da primeira pessoa.70 Esta é uma expectativa razoável para a

generalidade das explicações que nos damos dos fenómenos naturais:

Se visamos explicar um explanandum a partir de um explanans,

70 É exactamente essa expectativa que Nagel exprime em “What is it like to be a bat?” – «If physicalism is to be defended, the phenomenological features must themselves be given a physical account. But when we examine their subjective character it seems that such a result is impossible. The reason is that every subjective phenomenon is essentially connected with a single point of view, and it seems inevitable that an objective, physical theory will abandon that point of view.»(Nagel, 1979: 167)

98

esperamos, com a explicação, obter o explanandum de uma forma

ostensiva, pelo menos tão ostensiva quanto o explanans. Ora, tal, de

acordo com PD, é uma impossibilidade – seria o mesmo que esperar, a

nosso ver absurdamente, encontrar uma dor ou uma cor vividas no

cérebro. No entanto, esta não é uma expectativa necessária, pelo que o

facto enunciado por PD não impeça, por si mesmo, o esforço de uma

explicação.

Por princípio, pois, nada obsta a que se obtenha uma explicação,

sem que se possa constatá-la; que se alcance o explanandum, ainda que

não de uma forma ostensiva. E esse é, a nosso ver, o caso de uma

explicação do mental sobreveniente pelo neural subveniente.71

Ora, com isto podemos concluir que o que há de filosoficamente

problemático no problema mente/corpo não é tanto existir, ou não, uma

sua explicação física, nem sequer é a nossa capacidade, ou não, para

descobrir essa explicação física, mas o facto de ser impossível

constatá-la. Uma coisa é explicar a determinação do mental pelo

neural, outra bem diferente é a possibilidade de a constatar. A primeira

é um problema científico, a segunda um problema filosófico. Apenas a

confusão entre elas justifica o mistério e o paradoxo quando se

confronta o problema mente/corpo com o hiato explicativo. Em rigor,

sob a moldura que propomos, a única coisa que o hiato explicativo

demonstra não é que não haja explicação, ou que esta seja um mistério,

mas, tão-só, que a explicação do mental pelo neural não pode ser

constatada.

Uma ilustração expõe claramente o nosso criticismo.

Suponhamos uma situação imaginária em que pudéssemos contruir

uma réplica sintética de um ser humano, com os mesmos processos

neurais, uma réplica perfeita a partir de um conhecimento integral de

toda a física e toda a química envolvidas no organismo humano.

71 Mas, nem sequer se pode dizer que esta limitação seja exclusiva de uma

explicação do mental pelo neural. Por exemplo, quando a macrofísica explica a expansão do Universo com base num desvio do espectro luminoso tal explicação não é acompanhada por uma verificação ostensiva dessa expansão do Universo. Ninguém vê, de facto, o Universo a expandir-se!

99

Admitamos, além disto, que exista uma explicação física para a mente.

Então:

I. Com certeza, obter-se-ia assim a construção de um ser

tão capaz de consciência quanto o modelo humano.

II. Com certeza, na construção levada a cabo, estaria

incluída a explicação física da mente.

III. Com certeza, com I. e II. disporíamos dos meios para

produzir mentes.

Valeria isto como descoberta da explicação física? A resposta é

negativa, pois continuaríamos sem saber exactamente como é que uma

mente é determinada por certas disposições materiais e funcionais. A

mente não é fisicamente acessível. Mas não seria possível proceder a

uma localização mais exacta dessas disposições? A resposta parece

negativa, pois por mais exacta que fosse a localização do processo

físico relevante, nada disso fará com que a mente se torne fisicamente

acessível. Mas, vejamos como, de facto, não é assim e como, de facto,

não é necessária uma acessibilidade física à mente consciente. Após

admitirmos I.-III., com base apenas na admissão da existência de uma

explicação, poder-se-ia escrutinar que elementos não são necessários

nos humanos para que permaneçam dotados de uma mente consciente.

Um humano amputado não deixaria, por isso, de ser consciente tal qual

um homem com todos os membros. Isso é evidente e não parece que

demonstre alguma coisa. Por si só não, mas, bem entendida, boa parte

da resposta já está dada. Com efeito, as ciências neurológicas poderiam

prosseguir este trabalho de “amputação selectiva”, aliás segundo

técnicas bastante mais benignas que a irreversível amputação real,

identificando todos as disposições desnecessárias através de um

integral domínio do conhecimento relevante. Que obteríamos? Com

certeza I.-III., mas de um modo bastante mais satisfatório.

Conheceríamos, por exclusão de partes, e de um modo assaz exacto, as

disposições materiais e funcionais envolvidas na determinação física de

uma mente. Simplesmente, repetimos a pergunta, valeria isto como

descoberta da explicação física da mente?

100

A resposta é ainda negativa. Continuaríamos sem conhecer

exactamente como é que tais disposições determinam uma mente

consciente. Que falta, então? Tão-só o que falta a qualquer explicação

– uma teoria, uma teoria em que creiamos.

Note-se que de nada nos serviu a réplica artificial. Se alcançamos

uma identificação exacta das disposições materiais e funcionais

requeridas, só as poderemos encontrar por amputação selectiva num

modelo dotado de mente72. É claro que há uma maneira de saltar uns

passos – por antecipação teórica. Mas esta não será formulável sem

informação relevante. Portanto, a antecipação não muda

substancialmente os termos do problema. Quando é que acreditaremos

na teoria? Quando do seu domínio se puder retirar consequências que a

confirmem – ou, no respeito pela epistemologia popperiana, que a

corroborem. Mas este é já um problema demasiado geral e, portanto,

relativamente trivial no que respeita a uma explicação física da mente.

Estão, assim, dadas as condições para a descoberta científica de

uma explicação:

i) Localizar quais as disposições materiais e funcionais

relevantes para a determinação física do mental através do

estabelecimento de correlações entre padrões neurais e

padrões mentais. Estes últimos terão, naturalmente, de se

socorrer da perspectiva da primeira pessoa. No entanto, não é

problemático confiar no testemunho e nas respostas

comportamentais de um sujeito humano sob estudo, ambos

dados na perspectiva da terceira pessoa.

ii) Estabelecer uma teoria bem corroborada que necessite tais

correlações.

Agora, para isto não seria preciso, em momento algum, observar

fisicamente um padrão mental. Mesmo que tal seja uma

72 Neste sentido, vemos como particularmente inverosímil que possam ser bem sucedidas abordagens ao problema mente/corpo que não tomem por objecto directo de investigação a mente propriamente humana e a sua base neural. Este ponto de crítica atinge as teorias simbólico-computacionais que visam explicar o mental sem ter por base o conhecimento do nosso sistema nervoso.

101

impossibilidade – PD interdita-o –, essa impossibilidade em nada

impediu, de acordo com este cenário imaginário, que se declarasse a

possibilidade de uma explicação científica integral da determinação

física da mente. Uma explicação existe independentemente da sua

descoberta, e, por seu turno, a descoberta de uma explicação não

requer a constatação ostensiva do explanandum.

Ora, o nosso ponto é, então, o de se proceder a uma clara

distinção entre um problema mente/corpo para a ciência e um problema

mente/corpo para a filosofia.

Se o problema parecia maior, sobretudo em virtude de PD, tal

resolve-se, no entanto, a partir de um estabelecimento filosófico da

epistemologia adequada ao problema. Resumindo-se a isto, grosso

modo, o problema mente/corpo propriamente filosófico. Mais em

particular, e a partir do suposto de que a filosofia tem por fontes de

investigação a informação provinda da perspectiva na primeira pessoa,

designadamente a de natureza fenomenológica, e a capacidade de

proceder à análise de argumentos, podemos circunscrever o problema

filosófico a:

i) Explicitar e descrever a experiência na primeira pessoa;

ii) Explicar por que razão a mente experienciada na primeira

pessoa não é fisicamente acessível;

iii) Dar uma moldura epistemologicamente adequada à resolução

científica do problema mente/corpo.

d) O dualismo experiencial

Se se afirmou atrás existirem dois domínios de experiência foi

porque a descontinuidade entre a experiência da mente e a do corpo

delimitou esses dois domínios como domínios estranhos um ao outro.

Com efeito, nos termos atrás expostos, o princípio da descontinuidade

mente/corpo permite afirmar que esperar encontrar uma dor, uma

crença, um quale ou uma qualquer outra experiência “subjectiva” da

consciência no mundo dos factos físicos é como esperar encontrar um

fantasma no interior escuro do armário do quarto de uma criança. As

102

dores vividas, enquanto tais, não têm existência física. Simetricamente,

também não é possível esperar observar neurónios, neurotransmissores

no mundo da experiência exclusivamente “subjectiva” de uma

consciência, por muito que esta se dedique à introspecção.73

Ora, esta simetria acarreta não só a existência de dois domínios

de experiência, mas igualmente a irredutibilidade recíproca de um ao

outro.

A este dualismo experiencial poder-se-á chamar também ‘dualismo de

perspectivas/pontos de vista’ ou ‘teoria do aspecto dual’, conquanto

com a salvaguarda de que não se tratará de perspectivas, pontos de vista

ou aspectos diferentes dentro do campo da observação escalar. Os dois

domínios de experiência distinguem-se, como se viu atrás, pelo

contraste escala/não-escala. Por outro lado, verificámos também que os

correspondentes reais dos dois domínios de experiência são, sob uma

consideração estritamente conceptual, não apenas um, mas também

dois domínios distintos (situados no plano esse), embora, a haver

resolução do problema mente/corpo, deva haver entre eles alguma

forma de continuidade que não ocorre no plano da sua experiência. Não

se trata, pois, de perspectivas ou aspectos imediatamente dados como

perspectivas ou aspectos do mesmo, ainda que, mediatamente, sob a

apresentação de algum procedimento, se espere que sejam de facto

perspectivas ou aspectos reais do mesmo.

e) Eliminativismo, dualismo e reducionismo

Podemos por fim, e para lá da discussão do hiato explicativo,

tomar posição sobre algumas das propostas filosóficas relativas ao

problema de saber se é, ou não, possível uma redução do mental ao

físico.

73 Note-se que a simetria entre mente e corpo em PD, embora manifesta, não é

completa – todos os aspectos que reconhecemos como “objectivos” e da terceira pessoa vêm acompanhados de aspectos “subjectivos” e da primeira pessoa.

103

Admitido o dualismo experiencial, ou seja, a irredutibilidade

entre os dois domínios de experiência, importa, contudo, clarificar qual

o alcance dessa irredutibilidade, de tal forma que o esquema dual,

embora incontornável no plano percipi, possibilite ultrapassar o dilema

entre um dualismo e um monismo a respeito do problema mente/corpo,

ou mais precisamente, uma explicação da existência das mente que não

envolva mais, de um ponto de vista ontológico, do que a estrutura da

matéria, e suas disposições funcionais, que a Física já conhece ou

conceba vir a conhecer no quadro dos seus programas de investigação

científica.

Perante esta presunção, existem três posicionamentos teóricos

claramente diferenciados e muito debatidos na recente tradição de

estudos da Filosofia da Mente. Por um lado, o reducionismo que

considera possível reduzir as descrições não físicas da mente a

descrições físicas, tal qual a redução das descrições biológicas a

descrições químicas e destas a descrições microfísicas. Este é, de forma

muito explícita, o posicionamente de Searle em Intentionality. Por

outro lado, o dualismo que considera impossível uma tal redução das

descrições do que é da ordem do mental (ou, ao menos, parte do que é

dessa ordem) a descrições aceitáveis no quadro de uma teoria física.

Este é o posicionamento tradicionalmente atribuído a Descartes.

Finalmente, o eliminativismo que, em contraposição com os dois

posicionamentos anteriores, nem sequer aceita a pressuposição, por

parte destes, de que haja dois domínios de realidade, pelo que o

problema da possibilidade, ou não, de uma redução entre eles se resuma

a um falso problema74. Esta é a posição de Paul Churchland, entre

outros. Naturalmente, ou nem tanto, há que notar que o que o

eliminativismo se propõe eliminar nas correlações mente/corpo consiste

nos termos mentais. Donde que esta posição, em conjunto com a

74 «The thesis that our common-sense conception of psychological

phenomenon constitutes a radically false theory, a theory so fundamentally defective that both the principles and the ontology of that theory will eventually be displaced, rather than smoothly reduced, by completed neuroscience…. [It] is a stagnant of degenerating research program, and has been for millennia.» (Rey, 1997: 69)

104

reducionista, sejam versões do fisicalismo tal como o caracterizámos

acima.

f) Integração dos três posicionamentos na moldura proposta

Agora, apesar do claro antagonismo que se nota entre os

enunciados destes três posicionamentos teóricos, de acordo com o

dualismo experiencial e a irredutibilidade mente/corpo no plano percipi

atrás enunciadas pode-se mostrar que é possível, se não mesmo

necessário, marcar conceptualmente alguns pontos de conciliação onde,

na aparência, resultavam apenas relações contraditórias.

Tome-se em atenção, primeiramente, as teses eliminativistas. De

acordo com estas, os estados mentais simplesmente não existem, uma

vez que não podem ser descritos em termos físicos. Note-se, porém,

que semelhante tese, admitindo PD, é perfeitamente formulável em

sentido inverso, ou seja, afirmando qualquer coisa como “os estados

físicos não existem já que não podem ser descritos em termos mentais”.

Em termos lógicos, as duas formulações têm uma validade equivalente:

ou são ambas verdadeiras ou são ambas falsas em virtude da simetria de

PD. Por isso, expressar apenas uma delas induz em notório equívoco.

Não obstante, note-se que este irreducionismo não deixa de ser

eliminativo e em sentido duplo: as vivências “subjectivas” da mente

não têm existência física e as entidades fisicamente observáveis e

descritíveis na terceira pessoa não têm existência “subjectiva” na

mente.

O ponto a frisar aqui é que a tese eliminativista deve ser

entendida, para expressar com mais rigor o seu alcance, de parte a

parte. Nesse sentido, é perfeitamente aceitável desde que circunscrita

ao plano percipi. Ao fim e ao cabo, é justamente isso que PD afirma.

Mas já não será aceitável se a estendermos ao plano esse. E é nesta

extensão abusiva que reside o segundo equívoco do eliminativismo –

por muito evidente que seja a inexistência física da vivência

“subjectiva” de uma dor, daí não se pode inferir a inexistência física do

seu correspondente esse.

105

Admitir-se-ia, então, um enunciado dualista que afirmasse dois

domínios de existência, mental e física, ou ainda, à maneira cartesiana,

duas substâncias, extensa e cogitans – de acordo com o esquema atrás

traçado, os segmentos esse-mente e esse-corpo. Aqui, o equívoco reside

num rebatimento da descontinuidade de PD no plano esse, confundindo

aspectos relativos às perspectivas da primeira e da terceira pessoa com

a realidade propriamente dita de que essas perspectivas são justamente

perspectivas.

Por fim, deparamo-nos com o reducionismo, para o qual se

encontram diversas formulações com diversos entendimentos do que se

entende pela palavra ‘redução’. Aqui, limitar-nos-emos a indicar o

equívoco mais frequente, a saber, o de pensar a redução logo no plano

percipi, do que resulta a ideia de que a mente deve, paradoxalmente, ser

constatada no mundo objectivo perspectivado na terceira pessoa.

Posto isto, e procedendo a uma síntese, é possível afirmar que o

dualismo experiencial, tal como foi proposto acima, exprime, de forma

integrada e coerente, o que, sob certos ângulos de abordagem,

exprimem o eliminativismo, o dualismo e o reducionismo. A saber,

valendo como:

- Um eliminativismo em duas direcções simétricas no plano

percipi: eliminação do percipi-mente no percipi

correspondente ao esse-corpo, e eliminação do percipi-

corpo no percipi correspondente ao esse-mente. Em

contrapartida, expõe-se o equívoco de uma abordagem que

elimine o esse-corpo ou o esse-mente em função de PD.

- Um dualismo no plano percipi entre dois segmentos de

experiência entre si irredutíveis: percipi-mente e percipi-

corpo. Em contrapartida, expõe-se o equívoco de um

rebatimento da irredutibilidade no plano percipi numa

eventual irredutibilidade no plano esse.

- Um reducionismo ontológico, e eventualmente um

monismo ontológico, entre dois domínios de realidade:

esse-mente e esse-corpo, estando o primeiro na posição de

plano que sobrevém ao segundo. Em contrapartida, expõe-

106

se o equívoco de uma redução logo no plano percipi em

função de uma simplificação apressada da eventual

redução no plano esse.

Estes três pontos evidenciam o esclarecimento que a moldura

proposta traz aos diferentes posicionamentos que têm sido suscitados a

propósito do problema mente/corpo. É claro que não fornecemos uma

resolução para o problema mente/corpo, estamos longe disso. Nem

sequer era essa a nossa pretensão. A nosso ver essa deve continuar a ser

uma pretensão da ciência. Pretendemos apenas, e de um ponto de vista

filosófico, precisar qual o enquadramento mais adequado para a

resolução do problema em jogo – alcançar uma moldura,

epistemologicamente adequada, para uma resolução física do problema

mente/corpo. E julgamos tê-lo feito quer pela sustentação de uma tese

da sobreveniência – especial no plano percipi, e normal no plano esse –

quer pela defesa de uma reducionismo pelo qual não haja dificuldades

maiores do que as que respeitam a qualquer outra redução, como a da

estrutura molecular da matéria à sua estrutura atómica, subatómica, etc.

107

III

Significação

1. Significação e finalidade

As mentes humanas acedem a padrões sensoriais veiculados por

padrões neurais. O conhecimento neurológico de que dispomos acerca

do processo perceptivo inclui alguns elementos incontroversos. Por um

lado, sabemos que a retina codifica uma série de estímulos – tais como

o comprimento de onda e a amplitude de onda da luz que a sensibiliza.

Por outro lado, sabemos que esta sensibilização é transmitida ao NGL

(Núcleo geniculado lateral)75 e, depois, deste ao córtex visual. Esta

sequência deverá terminar numa última matéria sensível, digamos

assim, justamente aquele padrão neural que de algum modo originará,

embora não saibamos como, o padrão mental que aparece na

experiência visual. Também é conhecido o facto de todas estas matérias

sensíveis preservarem as correspondências entre estímulos e sua

localização na superfície da retina76. Donde, ocorrer no córtex visual,

sempre que se tem uma experiência visual, um mapa retinotópico.77

Ora, seguindo esta sequência de matérias sensíveis, cada vez

mais adentro do cérebro, aparentemente não se poderia concluir outra

75 «The ordering and arrangement of visual inputs to the LGN is kept strictly

in register with that in the retina, and this ordering is sustained through to the occipital lobe of the cortex. Cells of the LGN have wavelength-dependent receptive fields similar to those of ganglion cells, with concentric on-center and off-center fields.» (Greenstein & Greenstein, 1999: 284)

76 «The accurate projection of visual inputs from the retina to the brain

requires the preservation of the order of the original visual layout on the retina, the so-called retinotopic map. The map is plotted on the retina in terms of an orderly arrangement of photoreceptors and their associated ganglion cells. Thus, adjacent visual inputs are plotted by adjacent ganglion cells, somewhat analogous to the plotting of pixels by a computer.» (Greenstein & Greenstein: 1999, 282)

77 «The primary visual cortex contains an ordered map of the visual field.»

(Greenstein & Greenstein: 1999, 286)

108

coisa senão que o que vejo sensorialmente na experiência visual

consiste em estados internos do meu corpo. Supondo, apenas para fins

de argumentação, que a derradeira matéria sensível é o córtex visual,

então seria esta matéria do meu corpo o que seria sensorialmente

“visto” na experiência visual. Contudo, esta linha de argumentação

resulta contra-intuitiva, uma vez que toda a evidência aponta para que

se diga que a experiência visual (bem como o percipi que dela possa

resultar) seja de facto relativa ao mundo exterior e aos objectos

exteriores que o povoam; nada, pois, que possa ser confundido com

estados internos do meu corpo, ou com o material – neurónios, muito

plausivelmente – de que este é feito. Assim expostas, estas duas linhas

de argumentação parecem colocar-se, uma face à outra, em posição

contraditória.78

Haverá saída para este impasse? A questão é, creio, sobretudo

uma questão conceptual, pelo que procurarei, no essencial, obter uma

resposta da mesma natureza.

Imaginemos, pois, um dispositivo mecânico dotado de um retina

artificial apenas sensível ao claro e ao escuro, e cuja sensibilização se

faça discriminando duas e apenas duas regiões, uma correspondendo a

78 Em recensão no New York Times ao Looking for Spinoza - Joy, Sorrow, and

the Feeling Brain de António Damásio, Colin McGinn aviva a contraposição entre estas duas posições: «The final, grand claim of the book is simply absurd: that all mental states are perceptions of the body. Damasio is aware that readers may find this view a shade paradoxical: ''The statement departs radically from traditional wisdom and may sound implausible at first glance. We usually regard our mind as populated by images or thoughts of objects, actions and abstract relations, mostly related to the outside world rather than to our bodies.'' Indeed we do. We usually suppose that we see things outside us, as well as seeing our own body; and we suppose the other senses work likewise. We also suppose that our thoughts manage to be about the world beyond our bodies. Yet we are solemnly assured that science refutes this ''traditional wisdom.''

What has really happened is that Damasio has made an elementary confusion, and that infects his entire discussion. It is true that whenever there is a change in our mental state there is a change in the state of our body, and that this bodily state is the ground or mechanism that makes the mental state possible. But it is a gross non sequitur to infer that the mental state is about this bodily state. When I see a bird in the distance my retina and cortex are altered accordingly; however, that doesn't mean that I don't really see the bird but only my retina and cortex. The body is indeed the basis of my mind's ideas, but it is not their object. Once again Damasio has neglected the intentionality of mental states, with grotesque consequences. Moreover, this generalized view would obliterate his theory of the emotions, since it would convert every mental state into an emotion, given that emotions are defined as ''ideas of the body.''» Cf. McGinn, Colin. New York Times (Fev 23, 2003)

109

todo o lado esquerdo da retina, a outra a todo o seu lado direito. Obtêm-

se então apenas quatro possíveis apresentações, que na forma de pares

ordenados serão: (claro, claro); (claro, escuro); (escuro, claro); (escuro,

escuro). Contudo, materialmente o que se tem sensibilizado nessa retina

artificial para cada uma dessas possíveis apresentações não é senão um

fotorreceptor. Digamos que, no caso de (claro, escuro), o que efectiva e

materialmente se tem sensibilizado na retina artificial é (x, y),

sucedendo serem x e y fotorreceptores. Do mesmo modo, nas retinas

humanas o que é efectiva e materialmente sensibilizado são certos

grupos de células, em particular, cones e bastonetes.

Imaginemos em seguida que a sensibilização da retina artificial é

comunicada a uma cadeia de outras superfícies sensíveis até atingir

uma derradeira. De superfície em superfície terá de haver um

isomorfismo79 que preserve na derradeira a informação colhida logo na

primeira matéria sensível. Mas nada obriga a que as diferentes matérias

sensíveis sejam compostas pelos mesmos elementos materiais. Os

mapas retinotópicos replicados nos nossos cérebros também não são,

evidentemente, novas retinas, matérias compostas por cones e

bastonetes. Assim, convirá distinguir não só as diferentes matérias

sensíveis, mas igualmente os materiais que as compõem. Uma forma

simples de o fazer é indexar um número natural a x e a y, para que por

esse número se determine de que matéria sensível se trata – cada

matéria sensível ocupa um e um só lugar na ordem da cadeia que vai da

primeira, a retina artificial, à derradeira. Por exemplo, caso a

estimulação na retina seja (claro, escuro), então esta apresentará

materialmente M1 (x1, y1) activados; a matéria sensível que ocupe o

lugar n na ordem apresentará, por seu turno, Mn (xn, yn) activados.

Postulemos que a posição n seja justamente a da derradeira

matéria sensível. Então, não haverá, obviamente, uma Mn+1.

79 Uma definição da relação de isomorfismo é dada por Hofstadter, no seu

Gödel, Escher, Bach – «The word ‘isomorphism’ applies when two complex structures can be mapped onto each other, in such a way that to each part of one stucture there is a corresponding part in the other structure, where ‘corresponding’ means that the two parts play similar roles in their respectives structures.» (Hofstadter, 1979: 49)

110

Posto isto, perguntemos pelo que vale para o dispositivo como

informação. Aparentemente, não importará para o desempenho do

dispositivo outra coisa senão as diferenças entre as activações, pois as

quatro possíveis activações de Mn – (xn, xn), (xn, yn), (yn, xn) e (yn, yn) –

só são realmente informativas porque são isomórficas relativamente às

quatro possíveis activações em M1. De acordo com isto, o conteúdo

informativo de cada uma das activações em Mn definir-se-ia à custa das

restantes três possíveis activações. Esta correlação entre activações

possíveis é, justamente, o que se preserva de matéria sensível em

matéria sensível. E assim sendo, uma activação por si só – por

exemplo, a de (x1, x1),...., (xn, xn) – não forneceria qualquer tipo de

informação.

Mas já por outro lado, perguntar-se-á, em que sentido se diz que é

a correlação que dota certa activação de valor informativo? Mais

abstractamente ainda: o que faz com que algo valha como informação?

Regressemos ao nosso dispositivo mecânico e suponhamos que ele

possui M1,..., Mn como fonte de informação em vista de um certo

propósito ou finalidade. Suponhamos ainda que tal finalidade consiste

tão-só em mover-se em rotação para a claridade, obtendo assim energia

para alimentar um pequeno gerador. Isto, dispondo de um painel solar

em posição vertical e capaz de captar energia de luz que incida numa

janela de 180º; e também estando situado no centro de uma sala

redonda e com um único foco luminoso. Nestes termos, em

circunstâncias que capte (escuro, escuro) rodará sobre si mesmo 180º;

captando (claro, claro), deixar-se-á ficar na mesma posição; captando

apenas numa região o escuro, girará 90º ou para a sua direita ou para a

sua esquerda consoante a região escura seja à sua esquerda ou à sua

direita.

Esta descrição do nosso dispositivo – baptizemo-lo com o nome

‘Iluminado’ – permite dar uma resposta um pouco mais satisfatória à

pergunta sobre o que faz com que algo valha como informação. Com

efeito, (xn,xn) vale como informação porque importa para a realização

da finalidade do dispositivo mecânico. Não tivesse ele uma finalidade,

e (xn, xn) não valeria como informação.

111

Contudo, se esta dependência da informação face a uma

finalidade – algo só é informativo em vista de uma finalidade –

constitui um avanço, por outro lado parece constituir um recuo no que

respeita à primeira ideia atrás indicada – a de que a informação está na

correlação isomórfica e não na materialidade activada. Efectivamente,

fosse o Iluminado sujeito a uma inversão do claro e do escuro, fossem a

ele aplicados uns óculos invertores e a sua finalidade preservar-se-ia –

encontrar o (claro, claro) – sem que o seu comportamento motor a

satisfizesse uma vez sequer. Isto porque a informação não estaria de

facto no que é isomórfico mas apenas no material activado.

Regressemos, pois, ao laboratório e ao trabalho de design do

nosso dispositivo para criar uma sua segunda geração – o Iluminado II.

Se na versão prévia tínhamos um dispositivo capaz de movimento de

rotação, dotado de uma retina artificial e de um painel solar, agora o

Iluminado II dispõe, além disso, de uma memória. Mas face ao

Iluminado I tem algo menos, a saber, não tem pré-definido o modo

como as activações em Mn importam para a satisfação da finalidade.

Com isto, julgamos poder dizer que, ao contrário do seu antecedente, o

Iluminado II é um dispositivo capaz de aprendizagem e que é tal

capacidade que dá conta do modo como as correlações isomórficas

chegam a ser informativas.

Comecemos pela aprendizagem. O dispositivo é posto em

movimento – um movimento inicial forçado, façamos assim. Uma

sucessão de sensibilizações são memorizadas nesse período – (xn, xn)

satisfaz a finalidade; (yn, yn) não satisfaz. A sua finalidade é deslocar-se

para o que o alimenta energeticamente. Como (yn, yn) não satisfaz a

finalidade, o dispositivo vai rodar em qualquer direcção. Neste caso, a

memória não parece importar muito. Mas rodar quanto, 90º ou 180º?

Aqui a memória já parece importar: o resultado das sensibilizações

anteriores (yn, yn) foi sempre o de que o comportamento que melhor

satisfaz a finalidade é rodar 180º. Ora, se a memória puder desencadear

o comportamento que registou como sendo o que realiza a finalidade,

eis pois elucidado o seu contributo.

112

Agora, suponhamos que no momento anterior àquele em que se

impôs ao dispositivo o seu movimento inicial, lhe haviam sido

colocados os tais óculos invertores. Então, obviamente, as

memorizações teriam sido outras, precisamente as inversas – e (xn, xn)

valeria do ponto de vista informativo exactamente o mesmo que (yn, yn)

no Iluminado II sem óculos invertores. Eis, pois, que o que importa à

satisfação da finalidade do Iluminado II não é propriamente a matéria

activada em Mn, mas o que nela é isomórfico com a realidade exterior.

Mas se a suposição for ligeiramente diferente, se a aposição dos

óculos invertores suceder apenas quando o dispositivo já tiver

memorizadas associações entre (yn, yn) e a tarefa “rodar sobre si mesmo

180º”, entre (xn, xn) e “permanecer imóvel”, etc., então verifica-se

facilmente que não podemos restringir o que consideramos ser dotado

de valor informativo às correlações. Com efeito, sucederá

imediatamente à introdução dos óculos invertores um período de

comportamento falhado, e assim será justamente em virtude das

associações memorizadas. Estas indicavam um tipo de comportamento

para as activações em Mn que deveria ser bem sucedido e que, afinal, se

revela agora sempre mal sucedido. Não será, todavia, isto que

condenará o Iluminado II. O período de insucesso suscita também

novas associações, as quais, fortificando-se à custa do insucesso

reiterado do comportamento, acabam por dar origem a um

comportamento bastante imprevisível – ora são as velhas associações a

determinar o comportamento, ora são as novas. Naturalmente, este

período de confusão acabará por ser superado, pois as velhas

associações serão sempre mal sucedidas, ao passo que as novas

resultarão inevitavelmente em sucesso. Assim, e em vista da finalidade

do dispositivo, estas acabarão por ser privilegiadas em detrimento

daquelas.

Que sucedeu? Simplesmente que o Iluminado II rectificou a sua

aprendizagem ao longo de um período de adaptação em que

primeiramente experimentou um total insucesso, depois, e

progressivamente, uma grande confusão, um relativo sucesso e,

finalmente, o regresso do nível de sucesso que alcançara antes da

113

introdução dos óculos invertores. Mas todo este período de adaptação

não teria existido se não tivesse sido o caso de que antes, durante e

depois desse período a matéria activada em Mn fosse, por si mesma,

dotada de valor informativo. Por outras palavras, ser xn ou ser yn

activado é informativo mesmo que as correlações sejam as mesmas.

Pensemos agora na experiência da inversão do espectro luminoso

num sujeito humano. Sucedesse-me tal inversão e eu percepcionaria o

mesmo estado de coisas, embora o visse diferentemente. É claro que o

ver diferentemente poderia transtornar-me provisoriamente, mas tão-só

enquanto não me apercebesse de que o estado de coisas era

exactamente o mesmo, devendo apenas proceder à suspensão das

associações que fixara a respeito das cores, pelo menos até perceber

que o que me sucedera fora uma inversão do espectro e até dominar

sem erros a nova semântica das cores. É claro que seria difícil, pelo

menos durante algum tempo, não me enganar ao expressar

linguisticamente o que vejo, mas isso só vem realçar o facto de haver

uma semântica dos qualia. Tal qual para o Iluminado II a matéria

activada em Mn informa; para mim, a sensorialidade materialmente

experienciada significa.

Mas, note-se bem, por si mesma a sensorialidade que eu

experiencio nada significa. Se eu tivesse nascido com os tais óculos

invertores do espectro da luz nunca teria experimentado outra

semântica dos qualia embora a sensorialidade experienciada fosse

outra, tal como com o Iluminado II caso a este os óculos tivessem sido

apostos antes de qualquer memorização. E isto quer dizer pelo menos

três coisas: primeiro, há que não confundir experiência sensorial e

qualia – os mesmos qualia podem ser realizados por experiências

sensoriais invertidas80; segundo, a semântica dos qualia não está ao

80 Paralelamente, há que denunciar o que poderia ser pelo menos um

equívoco de linguagem – a inversão do espectro luminoso não consiste necessariamente numa inversão dos qualia. Esta sucede apenas se ao espectro luminoso se encontra associada uma semântica dos qualia. Nesse caso, então à inversão do espectro luminoso deverá seguir-se, naturalmente, uma inversão da semântica dos qualia, ou simplesmente uma inversão dos qualia. Mas, não havendo tal associação, então à inversão do espectro luminoso não se segue nenhuma inversão dos qualia.

114

mesmo nível que a semântica dos estados de coisas, ainda que em

ambos os casos se trate de significações e não de experiência; e que,

nos termos de uma analogia com o Iluminado II, por um lado, os qualia

significam como a matéria activada em Mn informa, por outro, que os

estados de coisas significam como as correlações em Mn informam.

No nosso dispositivo artificial, xn e yn apenas contam

informativamente por não serem indiferentes, e não o serem apenas

quer dizer que contribuem com informação relevante para a realização

da finalidade. Sucede, porém, que xn e yn poderiam contar exactamente

ao contrário, ao passo que a correlação entre xn e yn já não poderia

contar de outra forma. Este facto explica-se por as correlações

experimentadas pelo dispositivo serem isomórficas à realidade dita

exterior e ser nesta e apenas nesta que reside ultimamente a fonte de

informação. Dito de outro modo: se xn e yn informam da realidade,

fazem-no apenas indirecta e relacionalmente – as correlações

memorizadas são as da realidade; os xn e yn activados são apenas os xn e

yn da matéria sensível. Analogamente, o vermelho e o violeta que

vemos não são senão o vermelho e o violeta da nossa derradeira matéria

sensível. “Lá fora”, digamos em M0, aquilo que sensibiliza a retina são

comprimentos de onda diferentes, não são o vermelho e o violeta tal

qual os vemos. Duas espécies animais diferentes mas ambas dotadas de

sistemas visuais capazes de distinguir diferentes comprimentos de onda

poderão muito naturalmente ver cores diferentes quando as suas retinas

são estimuladas pelo mesmo comprimento de onda, o que uma verá

poderá não ser sequer minimamente aparentado com o que a outra toma

por uma cor, qualquer que seja.

Neste sentido, a experiência sensorial só pode ser interna, ao

contrário dos estados de coisas apercebidos. Estes, apesar de

materialmente realizados na experiência sensorial interna, são

exactamente os mesmos estados de coisas que os que existem na

realidade externa. Nem sequer se trata de afirmar uma identidade entre

estados de coisas, pois são os mesmos. A sua natureza meramente

relacional e significativa abstrai-os de uma localização material interna

ou externa ao cérebro. Como o mesmo triângulo isósceles pode ser

115

desenhado em diferentes superíficies, também o mesmo estado de

coisas pode ser realizado interna e externamente ao cérebro.

Já os qualia, embora não possam ser considerados, como sucede

com os estados de coisas, da realidade dita exterior pelo facto de

dependerem da experiência sensorial interna, também não podem ser

considerados, à semelhança da experiência sensorial, como uma

significação interna, isto por dependerem, enquanto significação, dos

estados de coisas externos.

Estas diferenças não impedem que haja uma semântica dos

qualia; impedem, como já se referiu, que esta esteja ao nível de uma

semântica dos estados de coisas.

Para precisar este ponto, retomemos novamente o nosso

dispositivo artificial. Verificámos que, em última análise, o que importa

para o seu comportamento é a informação que colhe da realidade, ou

seja, a correlação entre as diferentes sensibilizações de Mn e não como

se materializam essas diferenças. Esclarecemos, depois, que a

materialização só importa em virtude de ser materialização disso que

importa ultimamente; se os meios assinalam os fins, então podem, se

bem que somente com um estatuto derivado, valer como fins.81 Ora,

isto permite distinguir uma finalidade última de finalidades derivadas.

No nosso exemplo, a finalidade última é “alimentar-se de energia” e a

finalidade derivada é “deslocar-se de forma a encontrar (xn, xn)”. Face a

esta finalidade derivada xn vale informativamente, mas face à finalidade

última xn só vale por interposta parte, a saber, por a finalidade derivada

concorrer para a realização da finalidade última.

Isto obriga a discriminar conceptualmente, dentro da totalidade

das significações, aquelas que são derivadas da que é a significação

última, e isto em função da colecção de finalidades derivadas que se

escalonam sob uma finalidade última. Nestes termos, a semântica dos

qualia não é senão uma semântica derivada da dos estados de coisas.

81 Encontramos uma ilustração disto quando tomamos o sinal pela coisa, por exemplo o fumo pelo fogo. Em geral, os qualia significam menos que os estados de coisas exactamente da mesma forma que os sinais naturais significam menos que aquilo de que são sinais. A este propósito é ainda de notar que só impropriamente se diz ‘O fumo significa fogo’; propriamente, o que se tem é ‘O fumo significa, em parte, o mesmo que o fogo”.

116

No entanto, é ainda possível escrutinar uma outra semântica dos

qualia de acordo com a qual estes não estão pelos estados de coisas,

como que em sua representação, pelo simples facto de já não estarem

submetidos a nenhuma finalidade que envolva comportamento exterior.

Por exemplo, o conjunto das associações a uma cor memorizadas por

mim ao longo da minha biografia – ou, do ponto de vista da linguagem,

toda a conotação da palavra que designa essa cor – também significa

independentemente de qualquer comportamento que eu pudesse decidir

em função do seu significado. É que nada obriga – presumimos que a

evidência aponta mesmo em sentido contrário – que haja apenas uma

finalidade última e que, mesmo havendo mais que uma, todas tenham

de ser finalidades que envolvam a realidade exterior. Assim, se por um

lado toda a significação é significação face a uma finalidade, já por

outro nem toda a significação se constitui como resposta

comportamental a um dado estado de coisas real. Pode haver

finalidades contemplativas, digamos assim. O encantamento da criança

ao rodar, montada num cavalinho luminoso, num carrossel é todo ele

significação, sem que haja alguma finalidade exterior a prescrever que

significação é essa.

Também não é de enjeitar a tese de que a finalidade última,

mesmo que fosse uma em cada uma das idades do ser humano, seja

diferente de idade em idade, de etapa em etapa do seu

desenvolvimento. Admitindo-a, desta tese segue-se a admissão de que

as significações mudam, todas elas globalmente, com a idade.

Finalmente, mesmo que fosse sempre uma e só uma a finalidade

última, certas significações poderão estar – e estarão com certeza – pré-

definidas. Quer dizer: certas significações estão determinadas a priori,

independentemente do concurso da experiência memorizada; por

exemplo, o cheiro da mãe para o bebé, que é algo que o satisfaz, o

choro do bebé para a mãe, que é algo que não a satisfaz.

É razoável supor que o design produzido pela natureza seja um

tal em que as significações pré-definidas estejam conciliadas com a

finalidade última – aliás, também pré-definida. Mas não é menos

razoável chamar a atenção para o facto de os comportamentos

117

instintivos, resultantes de significações pré-definidas a priori, poderem,

em virtude de alterações do ambiente real em que o sistema natural está

situado, entrar em contradição com a finalidade última. Afinal, tal qual

na história do nosso dispositivo artificial, uma pré-definição das

significações pode conduzir ao desastre. Foi o que sucedeu ao

Iluminado I em virtude da inflexibilidade das suas “significações” pré-

definidas. Obviamente, terão um papel importante nas etapas mais

precoces do desenvolvimento da criança, sobretudo por não haver ainda

experiência suficiente para se constituir uma aprendizagem eficaz. Mas

não será menos óbvio que a capacidade de adaptação vale como uma

vantagem que dispensa, pelo menos em parte, o crivo da selecção

natural. E isto em ordem das disposições naturais. Por outras palavras:

não seria a aprendizagem algo natural se não se pudesse dizer que o

conflito com o instinto natural é ainda algo muito natural82.

*

O que acabamos de expor permite clarificar a percepção como

um processo pelo qual se acede a um dado estado de coisas através de

uma dada apresentação material da derradeira matéria sensível. Em

concreto, com esta distinção entre a sensorialidade experienciada e o

estado de coisas acedido através daquela, diferenciam-se três aspectos

da vida de uma mente – sensibilia, qualia e percepta. Todos estes

aspectos são mentais no sentido em que envolvem experiência mental.

E podem diferenciar-se em termos de perspectivas: acede-se na

perspectiva da terceira pessoa, dita objectiva, aos estados de coisas

percebidos. Em contraste, vivencia-se na perspectiva da primeira

pessoa, dita subjectiva, os qualia. Por fim, aos sensibilia, isto é, à

82 O extinto alce irlandês, famoso pelas suas desmesuradas armações, ilustra

bem o caso de uma finalidade derivada que entrou naturalmente em contradição com a finalidade última, conduzindo assim a espécie ao desastre. Com efeito, a sobrevivência da espécie ficou comprometida pela própria pré-definição, digamos instintiva, do comportamento na ocasião da escolha de parceiros para acasalar. Entre estes eram mais bem sucedidos – na finalidade de acasalar – os que dispunham de maiores armações, quando, em virtude das alterações climatéricas suscitadas pelo término da época glacial, a selecção natural tornava os alces com armações menos vistosas os mais bem adaptados.

118

experiência sensorial propriamente dita, não corresponde nenhuma

perspectiva, pois, pese embora tratar-se de experiência mental, é

inteiramente desprovida de consciência. Ora, sem consciência, e

forçosamente sem sujeito de consciência, não há “pessoa” a que se

possa reportar a experiência sensorial.

Se a analogia com o dispositivo artificial que fomos desenhando

ajuda a elucidar a relação entre estes diversos aspectos numa mente

humana, falha porém por inteiro no que toca a se entender o que é a

experiência mental e por que razão é mental a experiência sensorial.

Com efeito, se nas mentes humanas há experiência mental, a verdade é

que nos dispositivos artificiais de que temos falado não se tem mais do

que o equivalente a uma câmara de vídeo que vai captando informação

para subsequente processamento. Como vimos, a experiência sensível,

a visual por exemplo, preserva a relação entre os elementos estimulados

– o mapa retinotópico no caso da experiência visual. A relação entre os

elementos visuais – cor, brilho, localização – deve ser a mesma que a

que se verifica entre os elementos correspondentes em cada matéria

sensível, a começar pela retina. Até aqui a analogia com as nossas

versões do Iluminado funciona bem. Mas o problema central no

problema mente/corpo vem a seguir: O que são esses elementos que

adjectivamos visuais? Os outros são populações de células

especializadas, por exemplo neurónios da zona V1, ou do NGL, ou

ainda bastonetes e cones da retina, mas que não vemos. Os elementos

visuais, ao contrário, são já mentais. O que os torna mentais? O que os

torna visuais? Não é a consciência nem qualquer significação

associada. Também não é, pelo menos por si só, o valor informativo

que possa ter, pois tal não é exclusivo do que é mental. Retomando o

nosso Iluminado, seja em que versão for, a pergunta central que se

afigura é esta: que tipo de design lhe daria a experiência mental visual

que lhe falta?

2. Tipos de significações

Se pudemos, num simples dispositivo artificial como o nosso

Iluminado II, caracterizar como significação a relação, fixável numa

memória, entre uma dada apresentação material do estado de coisas

externo e o cumprimento da sua finalidade, então não é o caso que toda a

significação seja significação para uma consciência, sequer para uma

mente. A significação consciente e a significação mental são, de acordo

com esta perspectiva, apenas espécies particulares de significação.

Do mesmo modo, se se apreciar a noção de intencionalidade num

plano de abstracção tal que a definamos, à partida, como sendo apenas a

relação de “ser acerca de”, então a intencionalidade consciente (ou

mental) é também apenas um espécie entre outras. Com efeito, qualquer

uma das apresentações materiais em Mn (a derradeira matéria sensível),

independentemente do facto de haver ou não consciência ou de haver ou

não mente, diz-se dotada de intencionalidade a partir do momento em

que se verifique que realiza um dado estado de coisas, ou seja, se se

verificar ser acerca de tal estado de coisas. Toda a significação de

estados de coisas, enquanto relação entre esse estado de coisas e uma

dada finalidade, diz-se pois intencional justamente por se reportar, qua

significação, a uma realidade independente da matéria que a apresenta.

Por exemplo, (xn, xn) no nosso Iluminado II e (yn,yn) caso este tivesse

sido “ligado” com uns óculos invertores significam o mesmo estado de

coisas justamente por serem acerca de um mesmo estado de coisas.

Note-se, porém, que nem toda a significação é intencional, pois nem toda

a significação envolve a relação, por mais abstracta que seja a nossa

consideração, de ‘ser acerca de’.

a) A simples significação e a significação intencional

Comecemos por sistematizar as condições de satisfação da

significação, para depois fixar as da intencionalidade. Assim, no que

respeita à significação temos por condições: i) haver um sistema provido

120

de uma finalidade e capaz de realizar um leque de acções possíveis em

função do cumprimento dessa finalidade; ii) tal sistema ser materialmente

sensível a estímulos; iii) tal sensibilização ser relevante para a adopção

de um dado comportamento em detrimento de outros comportamentos

possíveis. Desta forma, um sistema que preencha estas condições diz-se

um sistema com apresentações dotadas de significação. Uma amiba, por

exemplo, é um sistema desta natureza, digamos, um sistema de

significação ou, mais enfaticamente, de simples significação. O nosso

dispositivo artificial de primeira geração – o Iluminado I – é outro

exemplo. O que é que essas apresentações significam? Simplesmente um

dado comportamento, bem ou mal sucedido, e nada mais.

Como é claro, isto só muito genericamente corresponde ao que

intuitivamente consideramos ser a significação. Mas tal deve-se apenas a

razões de privação, designadamente privação de intencionalidade, de

reflexão e de consciência, mas não de privação de algo que seja essencial

à simples significação.

As condições de satisfação da intencionalidade ou da significação

intencional são já bem mais restritivas do que as da simples significação,

pois envolvem a recepção de informação de duas naturezas distintas, a

informação fornecida pelo simples facto de haver diferentes

sensibilizações, por um lado, e a informação, veiculada através daquela,

relativa ao estado de coisas externo. É apenas esta informação acerca da

realidade exterior que merece a qualificação de significação intencional –

justamente pelo facto de apenas esta se apresentar como sendo acerca de

algo que não ela mesma. A informação estritamente sensorial não é, per

se, acerca de nada, pese embora o facto de ainda assim poder ser

informação significativa.

Este ponto é capital, devendo ser cabalmente clarificado. Já

verificáramos atrás que se a informação estritamente sensorial chega a

significar alguma coisa tal fica a dever-se a apenas três ordens de

factores: i) ou significa porque se trata de uma significação pré-definida;

ii) ou significa porque se trata ou de uma significação derivada – como

atestámos com a experiência de pensamento da inversão dos qualia –, o

que pressupõe uma finalidade última; iii) ou significa porque se trata de

121

uma significação contemplativa. Ora, as significações pré-definidas – i) –

consistem apenas na conexão entre um dado comportamento possível e

uma dada apresentação sensível, não estabelecem nenhuma relação entre

esta apresentação e um apresentado que não ela mesma. Assim, não é o

caso que envolvam uma relação intencional. Por seu turno, as

significações derivadas – ii) – não são pré-definidas, uma vez serem

constituídas pela experiência memorizada num sistema, mas, ainda

assim, não deixam de ser significações em virtude de uma mera conexão,

mesmo que cessável, entre um dado comportamento possível e uma dada

apresentação sensível. A experiência da inversão dos qualia demonstra

que uma apresentação sensível tanto pode ser, impropriamente, acerca de

um estado de coisas como de um qualquer outro estado de coisas, pelo

que, propriamente, ou seja, per se, ela não seja acerca de nenhum estado

de coisas. O subentendimento da relação intencional nos qualia não se

deve realmente a estes, mas ao facto de a sua significação resultar de um

empréstimo por parte de uma significação efectivamente intencional

entre a apresentação de um estado de coisas e o estado de coisas exterior

por ela apresentado. Por fim, as significações contemplativas – iii) –

também não são intencionais, pois, ao contrário das anteriores, nem

sequer repercutem na realidade via um dado comportamento. Nestas, o

que é posto em relação com a apresentação sensorial é o próprio estado

interno do sistema, tomado globalmente e não na particularidade deste ou

daquele comportamento (externalizável ou não). Nestas, então, o que é

significado é o comportamento interno do próprio sistema.

Obviamente, do que se disse resulta que nem toda a significação é

intencional e que nem toda a significação intencional é consciente. Estas

duas asserções são confirmadas, respectivamente, pelas significações

atribuíveis às apresentações na Mn do Iluminado I, por um lado, e pelas

significações atribuíveis às apresentações memorizadas no Iluminado II,

por outro.

Atente-se agora ao facto de a significação intencional requerer

necessariamente a capacidade de associar apresentações a

comportamentos, designadamente de guardar em memória tais

associações e de as empregar no cumprimento da finalidade. Este facto

122

corresponde ao que se chama ordinariamente aprendizagem. Mais

tecnicamente, entenderemos por aprendizagem o estabelecimento, dentro

da diversidade das apresentações, daquilo que nelas é representativo de

um mesmo estado de coisas, e em função de uma mesma finalidade.

Assim, podemos dizer que a existência de significações intencionais está

condicionada pela existência de um sistema de significação dotado de

capacidade de aprendizagem. Se considerámos o Iluminado I um sistema

de simples significação, podemos considerar agora o Iluminado II um

sistema de significação dotado de capacidade de aprendizagem ou, em

termos mais simplificados, um sistema de aprendizagem. Naturalmente,

este sistema ainda está longe de constituir um bom exemplo, digamos

exemplar, do que habitualmente reconhecemos como sistemas de

aprendizagem. Mas, uma vez mais, tal fica a dever-se à privação de

aspectos muito característicos, mas não essenciais, tais como a reflexão e

a consciência.

b) A significação reflexiva

Tal como se pode conceber um dispositivo artificial que fixe na

memória a associação entre uma dada apresentação e um dado

comportamento bem sucedido – bem como as associações entre uma

dada apresentação e cada um dos comportamentos mal sucedidos –, que

seja, pois, um sistema, digamos assim, que aprenda “com a experiência”

a determinar o seu comportamento em função de estados de coisas,

também se pode conceber dispositivos bem mais complexos,

designadamente dispositivos dotados de capacidade de reflexão. Estes

serão de tal modo que não se limitem a proceder a associações entre

apresentações e comportamentos, bem ou mal sucedidos, mas procedam

também a associações, num segundo plano, entre as associações mais

básicas em função do seu significado comportamental. Por exemplo,

suponha-se uma terceira versão do nosso dispositivo artificial – o

Iluminado III. Suponha-se que este, além de proceder às associações,

cada uma per se, entre as quatro apresentações possíveis e o leque de

comportamentos possíveis, associando por exemplo (yn, yn) a uma

123

rotação de 180º e (xn, xn) a um não movimento, proceda também à

associação, de segunda ordem, entre essas diferentes associações em

função do seu comportamento respectivo. Assim, sucederá que cada

activação de uma associação de primeira ordem será acompanhada por

uma activação da associação de segunda ordem, ou seja, estaremos

perante uma dupla activação. Atribuiremos, pois, a cada apresentação, e

em virtude da activação de primeira ordem, não apenas as significações

separadas ‘este comportamento sim’, ‘este comportamento não’, ‘este

outro também não’, ‘nem este’, mas, em virtude da activação de segunda

ordem, ainda a significação complexa ‘esta posição na relação entre as

diferentes apresentações possíveis e os diferentes comportamentos

possíveis’.

O que se ganha aqui é a passagem de um plano de associações

entre si isoladas, valendo cada uma apenas per se, a um plano de

interdependência entre as diferentes associações base, de tal modo que a

activação de cada uma desta active, na associação de segunda ordem, as

restantes.

Nestes termos, o que o Iluminado III terá de vantajoso face ao

Iluminado II será uma capacidade de aprender mais depressa sempre que

as associações de primeira ordem fracassem, em virtude, por exemplo, de

uma aposição de óculos invertores. E isto porque, enquanto o Iluminado

II teria de refazer cada uma das suas associações de primeira ordem

exclusivamente à custa de novas apresentações, já o Iluminado III poderá

refazer a totalidade das suas associações sem que tenha de o fazer

exaustivamente, uma a uma; antes, aproveitando a interdependência

fixada na associação de segunda ordem. Com efeito, suponha-se que o

Iluminado III com os óculos invertores ainda só associou (yn, yn) ao

comportamento bem sucedido ‘não mover-se’; então, em virtude da

dupla activação, também associará, na associação de segunda ordem, (yn,

yn) a ‘esta posição na relação entre as diferentes apresentações possíveis

e os diferentes comportamentos possíveis’. Ora, esta significação

suplementar é o que falta ao Iluminado II e que permite ao Iluminado III

não ter de esperar pela experiência de os restantes comportamentos não

serem bem sucedidos com (yn, yn), para proceder às respectivas

124

associações, nem ter de esperar pela experiência de qualquer outra

apresentação ter por comportamento mal sucedido o comportamento que

se mostrou bem sucedido com (yn, yn).

Assim, se o nosso segundo dispositivo artificial dispunha de uma

apreciável vantagem adaptativa face ao dispositivo que apresentámos em

primeiro lugar, verificamos agora que o Iluminado III também exibe uma

apreciável vantagem adaptativa face àqueles. Com as significações de

segunda ordem, reflexivas, a aprendizagem envolvida na adaptação a

novas condições ambientais pode não ter de se fazer exclusivamente à

custa de apresentações. Aliás, tal como um sujeito humano sujeito à

experiência da inversão dos qualia, através da troca das cores pelas suas

complementares, pode aperceber-se de que se trata de uma inversão sem

ter de verificar, uma a uma, a inversão das cores.

Estas associações de segunda ordem, obrigam-nos a redefinir a

noção de significação. Por um lado, a significação de uma apresentação

deixa de se resumir a um certo comportamento bem ou mal sucedido e

passa a incluir também a posição dessa apresentação na correlação entre

as diferentes apresentações possíveis e os diferentes comportamentos

possíveis em função de uma finalidade. Observe-se que, assim, a

significação de uma apresentação não se pode dizer meramente

diferencial como se fosse apenas a diferença para com as diferentes

apresentações; nela, está sempre presente um certo comportamento, bem

ou mal sucedido. Por outro lado, aquilo que se diz dotado de significação

deixa de se resumir a apresentações em Mn e a apresentações

memorizadas, para passar a incluir associações bases – estas, sim,

significam apenas a posição que assumem na correlação com as restantes

associações.

Além disto, tem-se que nada impede, por princípio, que

associações de terceira ordem, ou de ordem ainda superior, se constituam

e, assim, passem a incluir-se na significação, cada vez mais aprofundada,

de uma dada apresentação memorizada.

Finalmente, se o Iluminado II dispunha de significações

intencionais pelo facto de as suas apresentações serem acerca de algo que

não elas mesmas, tem-se que somente com o Iluminado III podemos falar

125

de uma memória efectiva de estados de coisas. É que naquele o

comportamento já era de facto uma função de estados de coisas e não de

meras apresentações, pelo que reconhecíamos estas apresentações como

apresentações dos estados de coisas; no entanto, tais estados de coisas

não estavam fixados na memória – tal só é possível com a passagem à

reflexão. Podemos pois substituir a definição atrás dada de estado de

coisas – como o que é comum na diversidade de apresentações face ao

cumprimento da finalidade através de um dado comportamento – pela

seguinte formulação mais geral: a fixação de uma dada correlação entre

apresentações possíveis e comportamentos possíveis.

Nesta nova formulação pontuam duas importantes diferenças:

primeiramente, o estado de coisas deixa de estar definido à custa de um

dado comportamento; em segundo lugar, também deixa de estar definido

em função de uma dada finalidade. A importância destas diferenças é

notória. Por um lado, o mesmo estado de coisas passa a ser activado por

diferentes comportamentos possíveis; por outro, mesmo que a finalidade

se alterasse não seria por isso que o estado de coisas deixaria de ser o

mesmo. Evidentemente, ambas as diferenças não poderiam ser tidas em

conta caso não houvesse a passagem à reflexão.

c) O problema da consciência e da mentalidade

De acordo com as definições que expusemos atrás, o facto de um

sistema patentear simples significações, significações intencionais,

mesmo significações reflexivas não implica que patenteie, em caso algo,

significações conscientes ou significações mentais. É claro que todos

aqueles tipos de significações poderão ser mentais, mesmo conscientes,

simplesmente na condição do sistema suportar, em virtude das suas

disposições materiais e funcionais, significações mentais ou mesmo

conscientes. Não era seguramente esse o caso em qualquer uma das

gerações do nosso dispositivo artificial. Sabêmo-lo tão seguramente

quanto sabemos que nenhuma das disposições materiais e funcionais com

que concebemos qualquer dos três Iluminados foi pensada no sentido de

lhes dar qualquer coisa análoga àquilo que caracterizamos como sendo

126

próprio a uma significação mental ou a uma significação consciente. Por

exemplo, nada no design dos nossos dispositivos foi pensado para lhes

proporcionar uma experiência mental da matéria sensibilizada, uma

vivência subjectiva dessa experiência, um acesso perceptual aos estados

de coisas veiculados pela sensibilização.

Não obstante, a isto poder-se-á contra-argumentar em duas

direcções, aliás aparentemente opostas:

- Ou afirmando que a mentalidade e a consciência poderiam

emergir, sem que nos déssemos conta, mesmo sem que nos

pudéssemos dar conta, das disposições materiais e funcionais

entretanto estabelecidas, como que a nos surpreenderem –

afinal, como se a mentalidade e a consciência pudessem ser

apenas um subproduto, embora real.

- Ou afirmando que a mentalidade e a consciência que

atribuímos aos nossos estados, o carácter consciente que

atribuímos às significações patenteadas pelas nossas mentes

humanas, nada acrescenta, na verdade, a disposições

materiais e funcionais da mesma natureza que aquelas que

atribuímos aos sistemas anteriormente descritos – afinal,

como se a mentalidade e a consciência pudessem ser uma

certa ilusão a que os sistemas supostamente “mentais” e

“conscientes” estariam condenados.

Estas duas posições mostram-se antagónicas pelo menos num

ponto: a primeira afirma a realidade da mente consciente, ao passo que a

segunda afirma o seu carácter ilusório. Revelam-se, porém, muito menos

antagónicas quando atentamos ao facto de que, em conjunto, partilham

dois pontos, a saber: i) um sistema ser mental e consciente nada

acrescenta ao seu desempenho; ii) as significações na “mente” humana

são tão mentais e conscientes quanto as significações de dispositivos

artificiais concebidos com disposições materiais e funcionais da mesma

natureza daqueles que descrevemos atrás: ou são ambas mentais e

conscientes ou são ambas não mentais e não conscientes.

127

Concorre a favor de qualquer uma destas posições o facto

(presumível) de ser possível conceber, de acordo com disposições

materiais e funcionais da mesma natureza das descritas atrás, um

dispositivo artificial – chamemos-lhe o Iluminado Supremo – cujo

comportamento se mostre indiscernível do comportamento supostamente

mental e consciente de um qualquer sujeito humano. Ou ainda, e talvez

com mais tento: cujo comportamento seja, pelo menos equiparável, no

que respeita às nossas expectativas acerca do modo como um sistema

mental consciente se deve comportar, ao comportamento de uma outra

“mente” humana. Admitindo este facto – não é preciso ser muito

visionário para o admitir –, então só movidos por uma intuição não

justificada, só aprisionados por um preconceito fundado em

circunstâncias completamente alheias ao caso, é que não poríamos a

questão “Não será esta máquina tão consciente quanto qualquer mente

humana?”

Prosseguindo ainda esta contra-argumentação, teríamos, em

seguida, de enfrentar o dilema, entretanto criado, entre as duas posições

atrás descritas – será o Iluminado Supremo mental e consciente como os

sujeitos humanos, ou serão estes não mentais e não conscientes como o

Iluminado Supremo?

d) A significação consciente

Pese embora estas dificuldades, sempre podemos insistir na ideia

de que a existência de consciência tal qual a vivenciamos, por um lado, e

a existência de mentalidade tal qual a experienciamos, por outro,

pressupõem, cada uma por si, certas disposições materiais e funcionais

como suas condições necessárias. A indicação de condições necessárias

para que haja consciência ou mentalidade sempre partiu, ao fim e ao

cabo, do suposto razoável de que nem todos os sistemas de significação

são conscientes, e que alguns desses sistemas de significação nem sequer

são mentais – por exemplo, julgamos poder afirmar que uma amiba não

128

revela nada que nos faça dizer tratar-se de uma sistema dotado de estados

mentais e, ainda menos, de significações conscientes. Desta forma, a não

ser que se prove que todas as condições necessárias estão dadas –

cabendo o ónus da prova à contra-argumentação –, não há motivo

suficiente para que não se prossiga no esforço de determinação do

conjunto de tais condições necessárias, esforço tanto mais justificável

quanto se conseguir determinar, de facto, condições suplementares às dos

sistemas de significação intencional reflexiva que discriminem

claramente os sistemas que presumimos mentais e conscientes daqueles

em que não presumimos nenhuma consciência, sequer mentalidade.

Contudo, logo aqui há que deixar claro que os problemas ligados

ao carácter mental das nossas significações e ao carácter consciente das

nossas significações são de natureza radicalmente distinta. A melhor

forma de dar conta desta diferença será porventura fazendo o seguinte

contraste – enquanto o que se pode considerar consciente, ou não

consciente, são significações, aquilo que se pode considerar mental são

menos significações do que experiências. Obviamente, o facto de as

significações estarem assentes em experiências mentais – por exemplo,

uma experiência visual – faz com que se afirme que tais significações se

digam mentais. No entanto, a mentalidade afirmada não é tanto atributo

dessas significações quanto das experiências em que se materializam. O

facto, aliás, de a sensorialidade experienciada não ser, em si mesma,

provida de qualquer significação (sequer consciência), torna bem notória

a indiferença do problema da experiência mental relativamente aos

problemas quer da significação quer da consciência. Já este último deve

ser pensado no quadro de uma especificação do problema da

significação, ou seja, determinar o que é a significação consciente. Mas,

se faz todo o sentido pôr o problema da consciência sob a forma de uma

investigação acerca da significação consciente, já quanto ao problema da

mentalidade, e com a não-significabilidade que se acaba de lhe apontar,

conclui-se que não faz sentido procurar determinar, no quadro de uma

tipologia de significações, o que seja uma significação mental.

Nestes termos, retomaremos agora a nossa exposição no sentido de

procurar determinar algumas das condições necessárias, mesmo que não

129

todas (e, portanto, também não uma condição bastante), para que haja

significação consciente, pondo de parte o problema da mentalidade. Caso

determinemos essas condições necessárias e caso alguma delas não seja

satisfeita pelo nosso Iluminado III enriquecido com todo o software que

concebamos, então ter-se-á que este não será um sistema consciente.

A primeira dessas condições é a de que o dispositivo disponha de

significações contemplativas, isto é, aquelas significações em que o que é

significado por uma qualquer apresentação sensível é o comportamento

interno do próprio sistema. Para isso, é preciso que concebamos o nosso

dispositivo de tal modo que já não se atenha apenas à finalidade exterior

de “manter-se energeticamente alimentado”, mas que, além dessa,

disponha de uma finalidade interna, digamos, a de “estar bem”, que dê

significado aos diferentes comportamentos internos que o sistema pode

ter, designadamente que os avalie em função de significações pré-

definidas.

Os sistemas que satisfaçam esta condição podem encontrar-se,

relativamente àqueles que a não satisfaçam, numa posição de vantagem

adaptativa. Com efeito, em sistemas bastante complexos, providos de um

exército de finalidades derivadas, devidamente escalonadas numa

hierarquia com múltiplos níveis de dependência, e associações de várias

ordens, realizar-se uma permanente avaliação ao estado interno do

sistema pode constituir uma real vantagem adaptativa face a sistemas que

não a realizem.

Perguntar-se-á, porém, se não bastaria, para isso, incluir nas

disposições funcionais do dispositivo, designadamente no seu software,

um procedimento de controlo e de retro-acção com base numa

“monitorização” do comportamento interno do sistema. Essa é a proposta

de autores como David Armstrong, William Lycan e David Rosenthal83.

É certo que serviria, é certo que poderíamos dotar uma geração avançada

do nosso Iluminado com tal “monitorização”, existe hoje, ou haverá

83 Cf. Armstrong, 1981; Rosenthal, 1990; Lycan, 1990. Armstrong e Lycan reconhecem-se como inscritos na tradição de Locke e Kant quanto a um entendimento da consciência como monitorização da mente, em contraste com a tradição cartesiana de identificação da consciência com a mente.

130

seguramente dentro de algum tempo, tecnologia informática bastante

para isso84. Simplesmente, devemos ter aqui em atenção duas reservas.

Em primeiro lugar, devemos atentar no facto de que o suporte das

mentes humanas não é qualquer um, mas aquele que a natureza adaptou,

ao longo da evolução, e que esse suporte pode não suportar uma tal

“monitorização”. A velocidade de processamento de um computador é

algo que podemos incrementar, ao passo que qualquer coisa de análogo a

isso nas redes neurais do cérebro humano – qualquer coisa como a

velocidade de transmissão de impulsos – é evidentemente insusceptível

de ser incrementado.

Ora, basta a suposição de que os nossos cérebros não suportem

uma tal “monitorização” disposta funcionalmente, através de um

software mental, para que, admitindo que as mentes humanas não deixam

por isso de monitorizar, devamos estabelecê-la noutros termos que não os

de uma disposição funcional, mas de algo pensável como sendo resultado

do facto de haver consciência. Por outras palavras: o curso da evolução

natural dos sistemas de significação, conquistando, passo a passo, novas

vantagens adaptativas, pode ter feito das significações contemplativas (e

presumivelmente conscientes) uma resposta, entre outras possíveis, para

uma maior adaptabilidade às mutações ambientais. Fossem os nossos

84 David Armstrong dá-nos uma clara enunciação da consciência como

procedimento introspectivo de controlo e retro-acção (feedback) sobre os estados internos da mente, por um lado, e do procedimento análogo que a tecnologia informática nos proporciona através de um acesso, de nível superior, e em tempo real, digamos assim, ao processamento em paralelo que ocorre num nível inferior, por outro. Cf., em particular, Armstrong, 1981: 726-727 – «If we have a faculty that can make us aware of current mental states and activities, then it will be much easier to achieve integration of the states and activities, to get them working together in the complex and sophisticated ways necessary to achieve complex and sophisticated ends.

Current computer technology provides an analogy, though I would stress that it is no more that an analogy. In any complex computing operation, many different processes must go forward simultaneously: in parallel. There is need, therefore, for an overall plan for these activities, so that they are properly coordinated. This cannot be done simply in the manner in which a “command economy” is supposed to be run: by a series of instructions from above. The coordination can only be achieved if the portion of the computing space made available for administering the overall plan is continuously made “aware” of the current mental state of play with respect to the lower-level operations that are running in parallel. Only with this feedback is control possible. Equally, introspective consciousness provides the feedback (…) in the mind that enables “parallel processes” in our minds to be integrated in a way that they could not be integrated otherwise. It is no accident that fully alert introspective consciousness characteristically arises in problem situations, situations that standard routines cannot carry one through.»

131

cérebros materialmente outros, fossem, por exemplo, compostos não por

neurónios mas por placas de silício, fossem, em suma, outras as

limitações, e talvez não tivessem nunca chegado a suportar mentes

conscientes. Quer isto dizer que há boas razões para crer que a solução de

“monitorização” que a natureza desenvolveu nas mentes humanas, de tal

modo que estas sejam conscientes, possa ser diferente da tal

“monitorização” que a tecnologia informática nos fornece, tanto mais

quanto é no mínimo concebível que esta não implique consciência.

Com efeito – e este é o segundo ponto de reserva – dever-se-á ter

em atenção que tal “monitorização” não implica um acesso a estados

internos do sistema. Daí o nosso uso das aspas. Trata-se efectivamente de

um acesso ao comportamento interno do sistema, mas não à

internalidade, por assim dizer, do sistema. Neste sentido parece-nos

equívoca a ideia de que a “consciência seja o funcionamento de

mecanismos internos de atenção direccionados a estados e eventos

psicológicos de ordem inferior”85. Se há uma consciência “monitora” não

parece que incida sobre o que é de ordem inferior na mente, o que

implicaria um acesso à internalidade do sistema, mas ao todo. Contudo,

há um ponto comum: é que um sistema consciente não poderia dispensar

um certo acesso ao comportamento interno do sistema. Desta forma,

temos identificada uma condição necessária que qualquer sistema

consciente tem de satisfazer, partindo da expectativa, bem fundada na

evidência de que dispomos nas nossas próprias mentes, de que um

sistema consciente “monitorize” o seu comportamento interno. Só que,

como vimos, tal condição está longe de ser suficiente.

****

Procuremos encontrar nas significações contemplativas novos

aspectos que condicionem a existência de significações conscientes.

Naturalmente, tal determinação de condições não poderá deixar de se

85 «(...) Consciousness is the functionning of internal attention mechanisms

directed upon lower-order psychological states and events» (Lycan, 1990: 755)

132

basear nas expectativas que temos sobre o que seja a nossa própria

consciência, tal qual a vivamos na primeira pessoa e dela demos uma

descrição fenomenológica. Isto poderá configurar uma metodologia

equívoca, designadamente se se tomar a particularidade da consciência

humana pela generalidade da consciência, mas só será assim caso não

possamos fazer abstracção daquela particularidade.

Uma primeira condicionante de relevo consiste em estas

significações contemplativas tal como as vivenciamos nas nossas mentes

revelarem um regime bastante diferenciado do da “monitorização” de um

processamento paralelo. Se se trataria de aceder a uma rede de

associações, disposta, suponhamos, numa rede neural em processamento

paralelo, então há que reconhecer que justamente é isso que não é

conscientemente experienciado. Aquilo que é acedido conscientemente

nas significações contemplativas é um certo efeito que decorre do todo da

rede de associações quando nesta algo em particular é activado (em

função da sensibilização e do processo mental de activação de

associações correlacionadas de acordo com o disposto para as

significações intencionais e reflexivas). É este efeito que significa, acerca

do todo do sistema, que “está bem”, “está mal”, “sinto-me bem”, “sinto-

me mal”, “tudo vai bem”, “alguma coisa vai mal”, etc. É a esta

significação holística que acedemos. E só depois da percepção de que

alguma coisa está mal se procurará ultrapassar a vagueza do todo em

direcção a uma circunscrição precisa do que está mal. Esse é o momento

da introspecção. Saliente-se, desde já, a economia deste regime, a

conformar-se perfeitamente com o tipo de soluções que a natureza

costuma promover e, muito em concreto, com as limitações das

disposições materiais do nosso cérebro.86

86 Há abundante evidência vivencial quanto a este carácter holístico das significações contemplativas. Por exemplo, não sobreviveríamos aos riscos da vida sem respostas intuitivas aos problemas que se nos colocam, respostas que resultam do todo do sistema sem que acedamos a nenhuma parte precisa dele, i.e, respondemos sem que acedamos exactamente à razão por que respondemos assim e não de outra forma. Sucede que pedimos que o sistema reaja, como todo, ao problema; sucede que aceitamos, pelo menos de pronto, a sua reacção como uma resposta. É claro que o sistema pode assim errar, é mesmo razoável admitir que erre mais vezes empregando esta reacção holística do que se empregasse outro procedimento de monitorização, mas errar umas tantas vezes num curto lapso de tempo, num regime económico, vale com certeza como vantagem adaptativa face a um menor número de erros mas num lapso de tempo de tal

133

Note-se, porém, que não está apenas em jogo afirmar que as

significações contemplativas são holísticas. O procedimento de

“monitorização” do processamento paralelo também se poderia fazer

apenas a um certo nível reflexivo sem acompanhar todos os níveis

escalonados, ou seja, monitorizando certo nível hierárquico e não todos.

Ou então, numa versão alternativa, poder-se-ia fazer apenas como

esboços, múltiplos esboços do que sucede na mente.87 Simplesmente,

ainda assim estaria a aceder a processamento, quando nas significações

contemplativas não há acesso dessa natureza, mas tão-só à reacção do

todo, a um efeito do todo que é significado88. Nem sequer faz sentido

afirmar que se trata de um acesso de ordem superior como sustenta

David Rosenthal na sua teoria do pensamento de ordem superior89. Na

verdade, a consciência não pode ser um pensamento de ordem superior,

pois este reporta-se a estados de coisas, mais ou menos abstractos, ao

passo que o acesso consciente é tudo menos abstracto. Tão pouco faz

sentido a alternativa de uma teoria da percepção de ordem superior90,

pois com isso estar-se-ia a impor que a consciência fosse um caso

particular de percepção, quando é esta que é um caso particular daquela –

ao fim e ao cabo, as percepções de ordem inferior também são

conscientes. Se a consciência, por hipótese, fosse uma percepção de

ordem superior, como se explicaria, então, a percepção?

O ponto aqui reside em as significações contemplativas não

acederem senão ao efeito do comportamento interno do sistema, que tal

acesso, embora seja holístico relativamente a esse comportamento, não

resulta como algo de ordem superior (fosse isso uma percepção ou um

pensamento).

forma alargado que, nele, provavelmente a diferença entre erro e não erro já nada importará do ponto de vista da sobrevivência.

87 Reportamo-nos aqui à “teoria dos múltiplos esboços” de Daniel C. Dennett. 88 Em função desta dupla condicionante reactiva/efeitual e holística das

significações contemplativas, se quisermos indicar um analogon para a mente humana, mais facilmente encontra-lo-emos nos procedimentos de controlo e retroacção dos organismos vivos do que nos procedimentos que a tecnologia informática nos apresenta.

89 Cf. Rosenthal, 1990. 90 Cf. Güzeldere, 1995: 791 e ss.

134

Um último aspecto diferenciador realça o contraste entre a esfera

das significações fixadas na rede, quaisquer que sejam, simples,

intencionais e reflexivas, por um lado, e as significações conscientes. É

que as primeiras estão para as segundas, de um ponto de vista anímico,

como significações absolutamente inertes, meramente disposicionais,

para significações que animam a vida mental, a orientam numa

actualidade consciente. Se as primeiras têm um valor epistémico evidente

– permitem decidir do sucesso ou não do sistema em função de uma

finalidade a cumprir –, só as segundas, contudo, as dotam de um valor

anímico. Reportando-nos à evidência das nossas próprias mentes

conscientes, que anima os pensamentos, as percepções, os qualia senão a

significação contemplativa do efeito do todo das associações quando com

eles em interacção? A rede de associações é inerte, nela não há desejos

nem crenças. O que dá vida à mente é uma significação que não está

contida na rede de associações, é uma associação básica a um

comportamento interno básico que não o comportamento interno da rede.

É esse comportamento básico que é significado quando a rede é posta em

jogo com a novidade. Trata-se de um comportamento vivencial.

135

*****

Concluímos esta tipologia das significações, sistematizando num quadro

os quatro tipos genéricos que apurámos e as respectivas diferenças

quanto ao que neles é significado e visado, por um lado, e quanto às

disposições requeridas e tipo de finalidade envolvida em cada um, por

outro:

SIGNIFICAÇÕES Significado Visado Disposições

requeridas Finalidade

Simples Comportamento externo do sistema

Nada Associação Apresentação/ Significado

Finalidade pré-definida

Intencionais Posição face à correlação de comportamentos externos possíveis

Estados de coisas (s/tematização)

Anterior + Memória e capacidade de aprendizagem

Finalidades derivadas escalonáveis

Reflexivas Posição face à correlação de comportamentos de 2.ª ordem (ou de ordem superior)

Estados de coisas (c/tematização)

Anterior + Associação de 2.ª ordem

Tematização das finalidades derivadas e suas posições hierárquicas

Conscientes Orientação vivencial do estado interno do sistema

Estados internos do sistema relativos a estados de coisas (s/tematização)

Associação Efeito holístico e efeitual/reactivo do comportamento interno do sistema / Significado consciente

Vivência (s/tematização directa) da finalidade interna

IV

Caracteres da experiência

1. Os Pontos de vista da primeira e terceira pessoas

A posse ou não de referente é, a nosso ver, critério suficiente para

discriminar se uma dada experiência é tematizável pela perspectiva da

terceira pessoa ou não. Nestes termos, há que distinguir entre

experiências com sentido e referente, por um lado, e experiências sem

referente mas nem por isso desprovidas de sentido, por outro. Também

sabemos, desde o Cap. I, que existem experiências sem sentido, o que

confirmaremos agora a partir da tematização de um certo tipo de

experiência visual que denominarei ‘ver confuso’. Posto isto podemos

discriminar, através da distribuição das possibilidades de ocorrência de

sentido e de referência, três tipos de experiência:

- estados de coisas/objectos intencionais/referentes (ou seja:

actos dotados de objecto intencional ou referência objectiva)

– como os referentes da percepção, a recordação, a

imaginação;

- significações não intencionais ou arreferentes (ou seja: actos

dotados de sentido mas sem referente) – como os qualia a

respeito da percepção;

- experiências desprovidas de significação ou, simplesmente,

insignificantes – como os sense data ou sensibilia a respeito

da percepção.

137

Note-se que, em rigor, não se trata de três tipos de experiência que

concorram entre si; o que estabelece a tipologia é a ocorrência de um,

dois ou três caracteres, respectivamente: apenas experiência, experiência

com sentido, experiência com sentido e referência. Por outras palavras, o

carácter ‘experiência’ é presente aos três tipos e não difere de uns para os

outros. É nele que reside a mentalidade dos estados de um sujeito

humano. O factor de diferenciação não está, pois, no carácter

‘experiência’, mas nos dois restantes caracteres que podem acompanhar o

primeiro – ‘significação’ e ‘objecto/referência’.91

Note-se ainda que pelo facto de os objectos não dependerem da

qualidade do acto92 – tanto podem ser objectos de um acto perceptivo

como de qualquer acto intencional –, os caracteres ‘significação’ e

‘experiência’ também não estão de forma alguma vinculados a uma

qualidade determinada de acto. Por outras palavras, cada qualidade do

acto – seja perceptivo, de memória, imaginativo, etc. – pressupõe a

possibilidade destes três tipos de experiência, pois pode ser intencional

como não o ser, e pode ser significativo como não o ser. Se se discute as

relações entre sense datum, quale e perceptum, outro tanto deve ser feito

para a recordação, a fantasia, etc. Donde que seja preferível classificar o

sense datum como um subtipo de experiências insignificantes (carácter

único: ‘experiência’ de qualidade perceptiva), o quale como um subtipo

de arreferentes (‘significação’ + ‘experiência’ de qualidade perceptiva), o

perceptum propriamente dito como um subtipo de objectidade

intencional (‘objecto intencional/referência’ + ‘significação’ +

‘experiência’ de qualidade perceptiva).

91 Observe-se que aqui se fala de experiência em dois sentidos distintos –

experiência como acto e experiência como momento do acto. Na segunda acepção a palavra aparece entre aspas e antecedida pela palavra ‘carácter’: carácter ‘experiência’. O emprego da mesma palavra nos dois casos visa chamar a atenção para o facto de que não há experiência sem o carácter ‘experiência’, ou seja, que a experiência como acto herda a sua experiencialidade do carácter ‘experiência’. Por outro lado, a experiência como acto pode coincidir com o carácter ‘experiência’ caso nela não se encontrem os restantes caracteres que a podem acompanhar – ‘significação’ e ‘referência’. A afirmação de tal coincidência não se deve, pois, a uma confusão terminológica.

138

Esta complicação terminológica pode ser obviada empregando

expressões como ‘os sense-data e seus pares qualitativos’, ‘os qualia e

seus pares qualitativos’, ‘os percepta e seus pares qualitativos’,

entendendo por pares qualitativos o tipo de experiência idêntico para as

restantes qualidades de acto. Não obstante o uso que façamos deste

artifício, interessa empregar designações genéricas e precisas para os três

tipos de experiências. Por isso, propomos falar de insignificantes,

arreferentes e referentes.

Parece claro que a perspectiva da terceira pessoa corresponde aos

referentes (os objectos visados por actos intencionais). Já a perspectiva

da primeira pessoa corresponde aos arreferentes (qualia e seus pares

qualitativos)93. Sobre os insignificantes, isto é, as sensações e seus pares

qualitativos, nenhuma perspectiva é possível pela simples razão de que

não possuem qualquer sentido. Neles nada é perspectivado precisamente

por neles nada ser reconhecível. E se se estranhar a existência deste tipo

de experiência basta recordar todas aquelas situações em que nada se

reconhece no que se dá a ver. Refiro-me às situações de ver confuso

como a que Wittgenstein expõe nas Investigações Filosóficas:

Subitamente uma pessoa vê diante de si aparecer uma coisa que não reconhece (pode ser um objecto que lhe seja bastante conhecido, mas numa posição fora do habitual, iluminado de outra maneira); o não-reconhecimento dura talvez alguns segundos.94

A experiência por que se passa nesses breves segundos de não

reconhecimento – momentos em que se vê algo sem que se percepcione

coisa alguma – não é confundível com a experiência dos qualia, pois

93Sydney Shoemaker emprega a oposição entre propriedades intencionais e

propriedades qualitativas (ou fenoménicas), fazendo corresponder as primeiras a objectos intencionais – e por isso mesmo com a propriedade, de segunda ordem, de permanecerem idênticos através de diferentes estados mentais em que sejam visados – e as segundas aos qualia. «If Fred’s house looked yellow to him at both t1 and t2, then with respect to colour his house ‘looked the same’ to him at those two times in the sense that is experiences of it on those two occasions were of the same objective colour, or had the same colour as their ‘intentional object’. Call this the intentional sense of ‘look the same’. But in another sense his house did not ‘look the same’ to him at the two times; call this the qualitative sense of that expression.» (Shoemaker, 1982: 647).

94 Wittgenstein, 1953: 545.

139

nessas há uma evidente reconhecimento, ainda que não se trate de um

reconhecimento objectal. Note-se ainda que o não-reconhecimento pode

não resultar apenas de uma dificuldade de percepção, mas ser induzido

por um certo registo de atenção, pelo qual um sujeito permanece

atentamente distraído (em vez de distraidamente atento ou, ainda,

atentamente atento), i.e, um modo da atenção em que me distraio das

coisas para que as coisas não me distraiam, em que evito a tematização

do carácter ‘significação’.95

Podemos tentar sistematizar as diferenças atrás apontadas por meio

de um quadro:

Experiência Significação Referência

Estímulo

Sense-datum X

Quale X X

Perceptum X X X

(assinalam-se com ‘X’ os caracteres cuja ocorrência se verifica)

Se a perspectiva da primeira pessoa e a da terceira pessoa são

mutuamente irredutíveis tal resulta do facto preciso de a referencialidade

importar uma certa exterioridade, cuja natureza está de todo excluída dos

qualia e seus pares qualitativos. Não há nenhum termo comum que faça a

ponte entre o quale vermelho que vivencio aquando a percepção do lápis

vermelho e esse mesmo lápis vermelho que vejo defronte de mim neste

exacto momento. O que torna privada uma experiência arreferente não é,

95 Isto significa que é sempre possível, num certo registo de atenção, converter

um quale numa sensação. Veremos adiante que também toda a percepção pode ser convertida num quale. Ou seja: através da focalização da atenção para certos registos, é sempre possível dispensar na experiência de uma representação intencional os caracteres ‘significação’ e ‘objecto’ que nela ocorrem. Contudo, note-se, numa experiência em que não ocorram tais caracteres não é possível suscitá-los por nenhuma modificação do modo da atenção. Não se deve confundir este trabalho da atenção que permite a conversão do olhar com a abstracção, numa experiência, de um seu momento. A diferença é que a conversão acede a uma experiência enquanto acto, ao passo que a abstracção simplesmente isola momentos do acto (cujo acesso resulta apenas de forma derivada).

140

portanto, ser eventualmente mais interna do que uma qualquer outra

experiência. A ideia de uma experiência ser mais interna ou mais

intrínseca que outra não faz qualquer sentido. Bem diversamente, o que

torna privada a experiência de um quale, ou um seu par qualitativo, é não

visar nenhum objecto96. Mais ainda: não visa um objecto porque não

pode.

Com isto são suscitadas duas questões: i) porque é que os qualia, e

os arreferentes em geral, não são intencionais (estando por isso limitados

à perspectiva na primeira pessoa)?; ii) porque é necessário uma

consciência intencional, aquela que visa objectos e tem-nos como seus

referentes, para que possa surgir o ponto de vista da terceira pessoa?

No que se segue centraremos, por simplicidade, a discussão nos

qualia, assumindo, pois, como legítima a generalização a todos os

arreferentes.

2. O que os qualia são

Definimos qualia como estados mentais, de qualidade perceptiva,

dotados de dois caracteres, ‘experiência’ e ‘significação’. Podemos

defini-los, alternativamente, como certa qualidade de experiências

dotadas de significação mas desprovidas de referência intencional, ou

ainda, como certa qualidade de experiências representativas não

intencionais. Todas estas definições se equivalem. Por outro lado,

julgamos ser possível reconhecer um conjunto de outras características

96 A respeito desta afirmação de que os qualia são privados por não serem

objectais (e apesar de serem significativos), interessa anotar as observações de Luísa Couto Soares sobre a crítica de Wittgenstein às ‘linguagens privadas’ – «Nada nos impede de conciliar a crítica wittgensteiniana, lúcida e pertinente, com uma perspectiva da subjectividade do sentir na qual se reencontram a dimensão ‘privada’, enquanto sentir de um sujeito, com a dimensão ‘pública’ que lhe é conferida precisamente pelo seu carácter intencional. A ideia principal de Wittgenstein na sua argumentação contra a linguagem privada é precisamente corrigir o modo de entender as sensações como ‘fenómenos internos’, ‘objectos de sentido interno’, apresentando-no-los como ‘estados de um organismo vivo’. O que é posto em causa é precisamente o estatuto ‘objectal’ das sensações, sentimentos, dores, etc.(...)» (Soares, L. Couto, 2000: 53)

141

aos qualia (bem como aos seus pares qualitativos, isto é a todos os

elementos da classe dos arreferentes).

a) Unicidade aspectual

Os qualia possuem um só aspecto experiencial. Quer isto dizer que

aquando a experiência de um quale não é possível distinguir nela o que é

propriamente experiência e o que é representação, embora esses dois

caracteres sejam distintos e ambos estejam presentes. Um exemplo

poderá elucidar esta unicidade aspectual: um dia perguntei a uma criança

de 2 anos de que cor era a minha pasta de cabedal, ao que ela me

respondeu que era cor-de-laranja, o que me levou, no primeiro instante, a

pensar se a deveria corrigir já que a cor que eu esperava ver identificada

seria o castanho. Em vez de a corrigir perguntei-me a mim mesmo por

que razão eu esperava a resposta ‘a mala é castanha’, quando, bem vistas

as coisas, a cor da mala era mais alaranjada do que castanha. Com

certeza, não seria o caso de eu não saber distinguir cor-de-laranja de

castanho – Com certeza domino a paleta das cores tão bem quanto a

minha filha de dois anos!

A resposta para esta situação algo paradoxal é simples: eu vi a

mala como castanha, não me apercebendo que seria muito mais adequado

vê-la como cor-de-laranja, porque a minha experiência qualitativa da cor

da mala estava condicionada pelo conhecimento prévio que eu dispunha

(mas a minha filha não) de que os objectos de cabedal em geral são

acastanhados. Ora, tal conhecimento prévio não pode deixar de constituir

parte da significação do quale que experienciei, pelo que esteve activa

nessa minha experiência. No entanto, aquando essa experiência, não

distingui em momento algum um carácter “significação” de um carácter

“experiência”. Bem diversamente, o que experienciei era já o produto de

alguma forma de interacção entre esses dois caracteres. O castanho que

vi era já informado, digamos assim, pela significação associada. E foi

apenas esse que vi. Donde, generalizando, poder dizer-se que os qualia

possuem apenas um aspecto experiencial; generalizando ainda mais, os

arreferentes são caracterizados por uma unicidade aspectual. Para

142

finalizar, repeti a brincadeira com a minha mulher que respondeu, sem

hesitações, “a mala é castanha”.

b) Propriedades da experiência do objecto

Numa percepção, isto é, numa experiência em que um objecto é

visado intencionalmente, os qualia não são propriedades do objecto da

experiência, mas propriedades da experiência do objecto. Posso

reconhecer num objecto de percepção, uma maçã por exemplo,

propriedades como ser grande ou ser vermelha. Tais propriedades são

reconhecidas no objecto experienciado, não na sua experiência. Mas, por

outro lado, as propriedades do como é que é (o ‘what it is like’ de T.

Nagel) o vermelho da maçã e mesmo a sua grandeza são propriedades

reconhecidas na experiência do objecto, não no objecto propriamente

dito.

Há, contudo, autores, como Gilbert Harman, que defendem que

estas últimas propriedades – os qualia – são ainda propriedades do

objecto e não da sua experiência. Por exemplo, o ser vermelho da maçã é

uma qualidade da maçã experienciada, não da experiência propriamente

dita97. Michael Tye, por seu turno, afirma que não faz sentido falar de

propriedades da experiência, pois, afirma ele, as suas experiências não

serão concerteza coloridas – não há experiências azuis, há tão-só

experiências que representam um objecto como azul98.

97 «When you attend to a pain in your leg or to your experience of the redness of

an apple, you are attending to a quality of an occurrence in your leg or a quality of the apple. Perhaps this quality is presented to you as an intrinsic quality of the occurrence in your leg or as an intrinsic quality of the surface of the apple. But it is not at all presented as an intrinsic quality of your experience.» (Harman, 1990: 668)

98 «Standing on the beach in Santa Barbara a couple of summers ago on a bright,

sunny day, I found myself transfixed by the intense blue of the Pacific Ocean. Was I not here delighting in the phenomenal aspects of my visual experience? And if I was, doesn't this show that there are visual qualia?

I am not convinced I experienced blue as a property of the ocean not as a property of my experience. My experience itself certainly wasn't blue. Rather it was an experience that represented the ocean as blue. What I was really delighting in, then, were specific aspects of the content of my experience. It was the content, not anything else, that was immediately accessible to my consciousness and that had aspects that were so pleasing» (Tye, M. 1992. “Visual qualia and visual content”. In The Contents of Experience, edited by T. Crane. Cambridge: Cambridge University Press, p. 160 – citado de Martin, 1999)

143

Ora, M. Tye não se engana ao afirmar que o azul tem que ver com

representações; engana-se, isso sim, em supor que os qualia não

disponham desse carácter representativo. Quando se diz que os qualia

são propriedades da experiência, em contraste com as propriedades do

objecto de experiência, não está em causa o carácter representativo

daquela experiência; está simplesmente em causa que se trate de uma

representação intencional, isto é, dotada de um objecto. O equívoco de

Tye reside apenas no facto de confundir qualia com experiências não

representativas, i.e, com as sensações, tal como as definimos. E a estas,

de facto, não faz sentido nenhum atribuir propriedades como ser azul ou

vermelha, pois delas só há uma experiência indirecta, de não-

reconhecimento. Este tipo de equívoco é, aliás, muito pronunciado, como

salientarei no próximo parágrafo, nos próprios “qualiófilos”.

O argumento de G. Harman, segundo o qual os qualiófilos fazem

uma atribuição confusa de certas características do objecto de experiência

à experiência propriamente dita desse objecto, aplica-se, exactamente

como o de M. Tye, caso os qualia sejam entendidos como experiências

desprovidas de significação. Mas não sendo esse o caso, é esse mesmo

argumento que revela uma confusão entre propriedades representadas de

forma não intencional na experiência e propriedades representadas no

objecto intencionalmente visado na experiência.99

Para clarificar este ponto, retome-se o exemplo da minha mala de

cabedal. Quando afirmo que ela é grande, pesada e castanha mais não

faço do que listar algumas propriedades do objecto mala. Quando

procuro descrever o tom exacto do castanho da mala aquilo em que me

basearei para levar a cabo com algum sucesso a descrição será o conjunto

das outras experiências que me são reconhecíveis na experiência actual.

Tomo, pois, duas atitudes diferentes consoante o meu interesse esteja nas

propriedades do objecto experienciado ou nas propriedades da

experiência do objecto. Quando presto atenção ao objecto intencional e

99 Uma posição crítica relativamente aos argumentos de M.Tye e G. Harman,

algo semelhante a esta, é exposta por Georges Rey – «Harman is presenting us with a wrong prediction (...). I think we can attend to ‘intrinsic’ properties of our experience, but without indulging in qualiaphilia and regarding those properties as properties of the representation.» (Rey, 1997: 302)

144

às suas propriedades, a minha atitude é procurar reconhecer relações de

pertença ou inerência entre um subjectum (o objecto) e acidentes (as suas

propriedades objectivas). Digo então “a minha mala é castanha”, “a

minha mala é pesada”, etc. Mas nessa circunstância não prestarei atenção

às propriedades da experiência desse objecto. Quando é a estas que

presto atenção, a minha atitude é procurar reconhecer relações de

semelhança e dissemelhança entre o presente quale e outros qualia que

participam da minha memória de experiências. Digo então “o castanho da

minha mala é como um cor de laranja sem brilho e algo escurecido”, “o

peso da minha mala faz-me lembrar quando era pequeno e tinha de levar

todos aqueles livros escolares para as aulas”. Na primeira atitude

reconhecem-se relações de pertença, ao passo que na segunda atitude

reconhecem-se relações comparativas. Naquelas, ao dizer-se ‘x A’ ou

‘x A’ toma-se o objecto como um conjunto cujos elementos são

propriedades; além disso, assume-se um compromisso com a consistência

lógica. Nas relações comparativas reproduzem-se experiências mais

públicas que contrastam ou se assemelham com a experiência actual;

neste caso, o compromisso assumido é para com o efeito de

verosimilhança100.

Assim, quando se descreve um quale tal não poderá ser feito

segundo o modo como se descreve um perceptum. Sob este modo de

descrever percepta, regido por relações de pertença de propriedades a um

objecto, todo o quale é inefável. Mas daqui não se pode inferir,

evidentemente, que os qualia sejam absolutamente inefáveis, pois, como

se viu, é possível dar deles uma descrição em termos de relações

comparativas com outras experiências, sem que umas pertençam a outras,

sem que haja um X do qual se afirme um conteúdo a ele subordinado –

em suma, em que, bem pelo contrário, as experiências se dizem inter

100 Estabelecemos aqui uma filiação forte da diferença entre a atitude própria à

tematização de representações não intencionais e a atitude própria a representações intencionais (no caso da percepção, respectivamente qualia e percepta) na diferença aristotélica entre logos hermeneutikos e logos apofantikos. Na sequência desta filiação, a retórica e a poética, em contraste com o discurso sobre a verdade, são discursos que dão a experienciar propriedades comparativas de uma experiência, que reproduzem experiências para delas tirar um efeito experienciável (sob o compromisso da verosimilhança).

145

pares. Se a teoria dos conjuntos pôde servir de modelo à silogística

aristotélica é porque limita o discurso sobre a verdade a proposições, i.e,

a enunciados que têm por estrutura a relação de pertença de um

predicado a um sujeito. Ora, é justamente por esta razão que a descrição

dos qualia não pode ter lugar a não ser por intermédio do discurso não

proposicional, nem pode obedecer aos princípios de não-contradição e do

terceiro excluído.

Indo um pouco mais longe, contra o design de uma imanência

dotada de limites que são ou não transcendidos por propriedades,

consoante se prediquem ou não dela – uma imanência reificada mas da

qual não é possível qualquer experiência –, a descrição dos qualia, como

o discurso não proposicional em geral, correlaciona experiências num

mesmo plano, articula-as contingentemente num registo de permanência

nesse mesmo plano. Produz, em síntese, uma autêntica imanência

experiencial a que corresponde, arriscando um célebre conceito

deleuziano, um plano de imanência.

c) Experiência indirecta dos qualia nos percepta

Do ponto anterior extraem-se duas consequências da maior

importância. A primeira é a de que, numa representação intencional, as

propriedades da experiência não são directamente experienciadas. Uma

tal consequência contradiz frontalmente a ideia, tão consensual quanto

confusa, de que os qualia são experienciados directamente e, em todo o

caso, experienciados mais directamente que os objectos de percepção.

Por curioso que seja, verifica-se justamente o contrário. Eu só

experiencio as características qualitativas de uma experiência perceptiva

se converter a percepção num quale, isto é, se deixar de prestar atenção à

objectidade intencionada para dirigir a minha atenção exclusivamente

para a experiência dessa objectidade. E esta convertibilidade de

percepções em qualia, bem como de todas as representações intencionais

em não intencionais, pode ser tomada como um princípio central para

uma teoria geral da experiência. Era esta a segunda consequência a

retirar.

146

Estamos cientes do facto de que este princípio da convertibilidade

das percepções em qualia (e, em geral, das representações intencionais

em não intencionais) contradiz certas interpretações das observações

resultantes de casos de Blindsight. No essencial, tais interpretações

apontam no sentido de haver percepção de objectos sem que haja, de

todo, qualia. Ou seja: afirma-se que algo é reconhecido sem que disso se

tenha alguma forma de experiência. Os casos de Blindsight como, em

geral, todos os casos denominados percepções inconscientes

(unconscious perceptions) podem, contudo, ser interpretados

diversamente. Por exemplo, Chalmers defende que «este tipo de caso não

pode produzir evidência contra uma ligação entre a organização

funcional e a experiência consciente».101 Evitar-se-á entrar aqui nesta

discussão, tanto mais porque este exemplo patológico evidencia que

numa percepção as propriedades do objecto experienciado não são

também elas experienciadas. E nisto não há desacordo. O ponto de

divergência reside apenas em saber se é possível experienciá-las, através

de uma conversão de atitude que focalize o quale em detrimento do

perceptum, ou se tal não é, de todo, possível.

Mais interessante é notar que Chalmers vai bem mais longe com o

seu princípio da coerência entre awareness e consciousness do que nós

com o que denominámos princípio da convertibilidade das percepções

em qualia. Aquela tese de Chalmers aponta para uma dupla

convertibilidade (mas apenas em termos de atitude), pois, de acordo com

ele, a todos os qualia correspondem formas de consciência-de

(awareness). Ora, todos os exemplos de qualia dados até ao momento

indicam claramente que neles não há nenhum carácter intencional, pelo

que a tese de Chalmers é facilmente refutada. Não obstante, o interesse

aqui está sobretudo em dar conta do modo como Chalmers interpreta, a

nosso ver de forma equívoca, esses mesmos exemplos.

Note-se que o princípio não é o de que sempre que temos uma experiência consciente estamos conscientes (aware) da experiência. Aqui, o central são os juízos de primeira ordem, não os de segunda

101 Chalmers, 1996: 227.

147

ordem. O princípio é que quando temos uma experiência, nós somos conscientes (aware) dos conteúdos da experiência. Quando experienciamos um livro, estamos conscientes (aware) do livro; quando experienciamos uma dor, estamos conscientes de algo doloroso (aware of something hurtful); quando experienciamos um pensamento, estamos conscientes do que quer que esse pensamento seja acerca. (...)

O elo entre experiências e juízos de segunda ordem é muito mais indirecto: embora tenhamos a capacidade de relatar as nossas experiências, quase sempre relatamos os conteúdos da experiência, não a própria experiência. Só ocasionalmente recuamos e relatamos a nossa experiência do livro vermelho; usualmente apenas pensamos no livro. Enquanto os juízos de segunda ordem são infrequentes, os de primeira ordem são ubíquos.102

O equívoco salta à vista pelo confronto entre os dois primeiros

exemplos: se é verdade que “quando experiencio um livro estou dele

consciente” é porque, no caso, há um objecto da experiência (i.e, um

objecto visado por uma consciência intencional); mas a afirmação

‘quando experiencio uma dor tenho consciência de algo doloroso’ não é,

de todo, verdadeira, pois, no caso, pode não haver um objecto de

experiência, pelo que resulta absurdo atribuir-lhe, com necessidade, uma

consciência intencional. Um exemplo célebre serve-nos na perfeição: a

experiência da angústia não dispõe de nenhum objecto a que se possa

referir. E agora, que exemplo de juízo de segunda ordem poderá

Chalmers dar da experiência da angústia?

Em rigor, não é só uma mas duas as confusões a explicitar no

raciocínio de Chalmers. A primeira está em ele não reconhecer senão

experiências de objectos, falando em juízos de primeira ou de segunda

ordem consoante se tematize o objecto ou a experiência, respectivamente.

Não reconhece, pois, que as atitudes que tomemos face a uma

102 «Note that the principle is not that whenever we have a conscious experience

we are aware of the experience. It is first-order judgments that are central here, not second-order judgments. The principle is that when we have an experience, we are aware of the contents of the experience. When we experience a book, we are aware of the book; when we experience a pain, we are aware of something hurtful; when we experience a thought, we are aware of whatever it is that the thought is about. (…)

The tie between experiences and second-order judgments is much more indirect: although we have the ability to notice our experiences, most of the time we notice only the contents of the experience, not the experience itself. Only occasionally do we sit back and take notice of our experience of the red book; usually we just think about the book. Whereas second-order judgments are infrequent, first-order judgments are ubiquitous.» (Chalmers, 1996: 221)

148

experiência estão condicionadas pelo tipo de experiência em causa. Ou

dito de outro modo: classifica tipos de experiência – consciousness e

awareness – em função das atitudes e não o inverso103. Mas a

impossibilidade de uma awareness da angústia refuta-o.

A segunda confusão, que redunda aliás em contradição, reside na

assunção implícita de que só há efectivamente uma experiência – a

experiência do objecto – e que a diferença se situa apenas no plano dos

juízos que dela faço. Observe-se que Chalmers tematiza, na passagem

acima transcrita, ou o vermelho do livro ou o objecto livro sempre a

partir da mesma experiência. Mas, nem a experiência se deixa analisar

por um ou por outro lado sem passar a ser uma outra experiência (os

nossos exemplos dos pontos anteriores bem o mostram), nem, bem vistas

as coisas, é consistente supor que os juízos de segunda ordem não sejam,

tal como os de primeira ordem, eles próprios experienciáveis.

d) Qualia exigem distinção esse/percipi

Uma vez que os qualia são as propriedades da experiência e sendo

que essas propriedades são de alguma maneira experienciáveis (se não

como acederíamos aos qualia?), então é relevante levantar a questão de

se saber se entre a experiência de um quale e o quale propriamente dito

há alguma diferença. Segundo alguns autores a distinção não faz em si

mesma qualquer sentido, pois, empregando um exemplo habitual, uma

dor coincide com o sentir dessa dor. Dizem então, a respeito dos qualia,

esse est percipi. O argumento até é bastante simples, no entanto, consiste

numa generalização apressada. Com efeito, o exemplo da dor autoriza a

falar em esse est percipi por nele se poder admitir que não há dor senão

enquanto é sentida, por um lado, e não há sentir dor que não seja dor, por

outro. Certos autores nem sequer aceitam esta equivalência, mas

103 O mesmo tipo de equívoco parece estar presente na seguinte afirmação de

Colin McGinn – «what the experience is like is a function of what it is of, and what it is of is a function of what it is like». (McGinn, 1988: 298) Isto não significa que McGinn esteja equivocado quando, por outro lado, afirma que «(…)perceptual experiences are Janus-faced» (Ibidem). É que esta última afirmação é pronunciada a respeito das experiências perceptivas, ao passo que aquela generaliza uma implicação de duplo sentido independentemente do tipo de experiência em causa.

149

admitindo à partida que é verdadeira, dela não se pode obter uma

generalização que preserve a verdade, pois qualquer exemplo de

representação intencional infirma-a. Nesses casos, pense-se numa

qualquer percepção, por exemplo a de uma maçã vermelha, é evidente

que há experiência e que ela tem propriedades a que chamamos qualia;

simplesmente, essas propriedades não são tematizadas enquanto tais – o

vermelho da maçã está lá, é o quale inerente à percepção, mas não é

experienciado enquanto quale. Logo, em qualquer percepção, embora

haja um esse dos qualia não há deles um percipi. Ele age sobre a

percepção, mas passa em si mesmo inapercebido. Logo, esse non est

percipi a respeito dos qualia.

Se temos o caso de nas representações não intencionais parecer,

como no exemplo da dor, não haver distinção possível entre a dor e o seu

sentir não é porque aí se verifique esse est percipi, mas tão-só pelo facto

de os qualia estarem comprometidos com uma unicidade aspectual que

não permite ao sujeito da experiência discernir o que é propriamente

experiência do que é significação. Mas mesmo num exemplo como o de

se sentir uma dor, que é a experiência de um quale, supor que esse est

percipi (ou seja, que a dor e o seu sentir são o mesmo) conduziria ao

absurdo todas aquelas familiares estratégias de comportamento que

empregamos para evitar sentir uma dor que, no entanto, temos. Será que

tentar distrair-me de uma dor de estômago é uma conduta absurda? E

será que por evitar senti-la, procurando sentir outras coisas, ela deixa de

existir? Não parece que assim seja em ambos os casos. Talvez por isso

quando pensamos morder os dedos em situações de desespero, tal ajude

um pouco a tolerar a situação, embora na verdade não resolva nada.

Esta redução ao absurdo não é tão simples quanto possa parecer,

pois, apesar dela, ainda se pode sustentar que não há dor que não seja

sentida e que não há sentir dor sem dor. Basta reconhecer que podemos

sentir mais, ou menos, uma dor, e que as nossas estratégias face à dor vão

todas no sentido de que a sintamos menos. Mas reconhecer isto é

justamente reconhecer que entre uma e outra há uma clara diferença, ou

seja, que é falso afirmar esse est percipi a respeito da dor.

150

e) Os qualia e propriedades relacionais

Os qualia são produto de propriedades relacionais, mas não são

eles próprios propriedades relacionais. Da exposição do ponto relativo à

unicidade aspectual dos qualia retira-se facilmente esta conclusão. Nesse

ponto mostrámos que um quale não discerne entre o carácter

‘experiência’ e o carácter ‘significação’, nem que o primeiro carácter é

informado pelo segundo, havendo pois entre eles uma relação, e que o

quale é produto dessa relação ou interacção entre os dois caracteres.

Contudo, como vimos no ponto anterior, uma coisa é falar de

qualia outra é falar de experiência de qualia. Quando eu pronuncio um

juízo de percepção como ‘a minha mala é castanha’ tenho por base uma

percepção dotada de um quale, ou seja, uma experiência dotada de

propriedades e que é experiência de um objecto. Quando me dou conta

do facto de a minha mala não ser castanha mas alaranjada, tenho uma

experiência do quale, ou seja, uma experiência das propriedades da

experiência do objecto. É precisamente neste segundo caso, em que além

do esse tenho o percipi do quale, que é possível discernir as propriedades

experienciais e suas relações e verificar que o quale experienciado é

produto de propriedades relacionais. Ou seja, se chego a saber que os

qualia são produto de propriedades relacionais é porque tenho deles uma

experiência, na qual é possível reconhecer essas propriedades.

f) Condicionamento dos qualia

Os qualia envolvem pelo menos três ordens de condições: o

estímulo, as condições de receptividade e as condições de

reconhecimento. Quando se afirma que os qualia são produto de

propriedades relacionais, importa identificar, tanto quanto for possível, os

termos em relação nessas propriedades. No exemplo que se segue,

determinaremos três desses termos, que designaremos por condições base

das propriedades relacionais dos qualia.

Quando me encontro constipado e com o nariz obstruído, o tabaco

sabe-me mal. Não me parece possível haver dúvidas quanto ao facto de o

151

sabor se alterar nessa circunstância e que tal alteração do sabor não é

devida ao tabaco que fumo, sendo antes induzida pelo estado do meu

organismo, que não pode ser o mesmo por me encontrar constipado e

com as vias respiratórias obstruídas.

Antes e depois de me constipar, o tabaco sabe-me, pois,

diferentemente. Uma tal alteração é perfeitamente reconhecível. É, por

conseguinte, uma experiência dotada de sentido; e trata-se obviamente de

um quale. O problema que se levanta é outro. Consiste no facto de

ninguém saber exactamente como me sabe o tabaco, esteja eu constipado

ou não. É possível a um outro fumador reconhecer a situação de alteração

do sabor pela recordação da sua própria experiência de alteração de sabor

nessa circunstância. Mas como saber se o tabaco lhe sabe exactamente da

mesma maneira que a mim? Mesmo alguém que não conheça o sabor do

tabaco, pode compreender a minha situação por analogia com o sabor dos

alimentos ou do café. De certo modo, não é pois difícil alguém

compreender porque me sabe diferentemente o tabaco, embora sem que

possa saber como me sabia dantes o tabaco e como me sabe quando me

encontro constipado. O que se diz do sabor do tabaco, dir-se-á, mutatis

mutandis, do modo privado como sinto o sol bater na cara, como vejo o

sol pôr-se, etc. Os qualia, como já verificáramos, são privados e a sua

experiência é também privada.

Este exemplo, como qualquer outro, demonstra que o sabor, apesar

de experienciado de forma directa, depende necessariamente das

condições de uma receptividade, que mais não é do que o estado do

organismo do sujeito da experiência, e das condições de um

reconhecimento, que não é mais do que a memória de sentido do sujeito

(i.e a correlação de experiências que se imanentizam num só plano), e,

portanto, não apenas do poder diferenciador do tabaco que fumo. Por

isso, se denominámos qualia aquelas propriedades que se dizem da

experiência e não do objecto da experiência, ou seja, as propriedades de

uma representação não intencional, houve também que lhes reconhecer, a

respeito da sua constituição, um carácter necessariamente relacional.

Mais em particular, importa agora reconhecer pelo menos três factores

em relação: o estímulo extra mens, as condições de receptividade desse

152

estímulo numa experiência e, finalmente, as condições de

reconhecimento dessa experiência numa significação. No nosso exemplo

do fumador, ter-se-ão, pois, certos compostos moleculares que afectam as

pupilas gustativas e desencadeiam um processo fisiológico bem

complexo de recepção, tratamento e transmissão da informação. Este

processo culmina na sensação, a qual, por si, não é experienciável de

forma consciente; dela não é possível nenhum reconhecimento (recorde-

se que o exemplo de sensação que considerámos atrás era justamente

caracterizado por uma experiência de não-reconhecimento). A

experiência do quale resulta, finalmente, do reconhecimento subjectivo e

espontâneo de uma significação na experiência. É o momento em que

direi “gosto deste tabaco!”, “sinto mesmo a falta de nicotina!”, “estou

viciado nisto!”, etc.

Assim, poder-se-á representar esquematicamente a constituição dos

qualia como tendo três ordens distintas de condições:

Qualia O estímulo Condições de

receptividade

Condições de reconhecimento

Fig. 9

153

g) Qualia e identidade

A identidade entre qualia só pode ser pensada como uma

identidade entre o complexo relacional que está na sua base. Dito de

outro modo, a pergunta ‘É o quale o mesmo ou não?’ é uma pergunta

sem sentido a não ser que se converta essa questão numa outra ‘É o

complexo de condições que está na sua base o mesmo ou não?’ Este

ponto é fundamental no debate contra um dos mais reputados qualiófobos

– Daniel C. Dennett.

Há uma certa maneira de argumentar que se caracteriza por rejeitar

a existência de algo por se rejeitar a sua descrição objectiva, esquecendo

que tal argumentação só é válida se se certificar primeiramente que a

descrição é válida. Esse esquecimento pode dar lugar a toda a espécie de

argumentos do homem de palha, que mais não são do que uma instância

de falácias semânticas. Vem isto a propósito porque parece ser esse o

caso na argumentação de Dennett no seu célebre Quining Qualia –

segundo a sua descrição, os qualia seriam descritos como propriedades

não relacionais, inefáveis, privadas e acedidas directamente. Como esta

descrição não é aceitável por si mesma, então, conclui o autor, é verdade

que os qualia não existem.

Com efeito, Daniel C. Dennett advoga a ideia de que se deve

quinizar os qualia (i.e, eliminá-los) através da refutação das propriedades

de segunda ordem que supostamente os caracterizariam: não são

propriedades intrínsecas, mas relacionais; não são introspectivamente

objectiváveis, apenas o são pela perspectiva da terceira pessoa; e nem

sequer são mais privadas e inefáveis do que quaisquer outras. Ned Block,

numa linha em que o seguimos, nega que os qualia tenham alguma vez

sido pensados como não sendo relacionais, não vendo pois no carácter

relacional que Dennett lhes aponta qualquer razão para os ‘quinizar’104.

Aliás, tal como os definimos atrás, os qualia são produto de propriedades

104 «Dennett, for example, has supposed in some of his writings that it is of the

essence of qualia to be non-relational, incorrigible (too believe one has one is to have one) and to have no scientific nature. This is what you get when you let an opponent of qualia define the term.» (Block, 1994: 514)

154

relacionais que têm por base pelo menos três ordens de condições. Um

sucedâneo do argumento de Dennett, embora apresentado sob a forma de

uma contradição, é empregue por Jennifer Church a propósito da P-

consciência (phenomenal consciousness) de Ned Block:

As propriedades fenoménicas de um estado têm de ser propriedades possuídas em virtude de alguma relação entre o estado e um sujeito, e, no entanto, não podem ser propriedades relacionais por ser suposto serem intrínsecas aos estados que as possuem. Se, por outro lado, se aceita que as propriedades fenoménicas são propriedades relacionais, parece plausível supor que as relações relevantes são alguma espécie de relações de acesso(...).105

O erro está em pensar que o único carácter dos qualia é a experiência

quando, como se viu, não é o caso que assim seja. Uma boa razão para

este erro pode residir na confusão entre a unicidade aspectual dos qualia

e uma suposta unicidade de carácter dos mesmos. Dessa presunção

decorre uma confusão entre sensação e quale que deve ser posta a claro.

Por um lado, os qualia são obviamente relacionais, e entre os termos da

relação um deles é o Pano de fundo (background), o que implica acesso,

mas de forma alguma intencionalidade.106 Por outro lado, o que nos

qualia é intrínseco é o carácter experiência, o qual não é menos

intrínseco nas percepções. Mas não há contradição nenhuma, a respeito

dos qualia, entre um acesso a significações, ser intrínseco e ser

relacional. As sensações é que não são relacionais, nem dotadas de

sentido, muito menos de acesso.

Talvez a simplificação dos tipos de experiência numa grelha com

apenas duas entradas seja uma outra fonte destas confusões, talvez o

próprio Ned Block tenha de algum modo contribuído para isso ao

estipular uma dualidade forte entre P-consciência (phenomenal) e A-

105 «The phenomenal properties of a state must be properties had in virtue of some relation between the state and a subject, yet they cannot be relational properties because they are supposed to be intrinsic to the states which have them. If, on the other hand, one accepts that phenomenal properties are relational properties, it seems plausible to suppose that the relevant relations are some sort of acess relations…» (Church, Jennifer, 1995: 425)

106 A noção de um Pano de fundo (Background) é retirada de John Searle, a que

corresponde a seguinte definição: «The Background is a set of nonrepresentational mental capacities [restringindo aqui o alcance de ‘não representacionais’ a ‘não intencionais’] that enable all representing to take place.» (Searle, 1983: 143)

155

consciência (acess), sobrevalorizando naquela o carácter experiência em

detrimento do carácter significado. Em todo o caso, há que chamar a

atenção para o facto de que é também ele quem afirma que P-consciência

e A-consciência, apesar de fortemente distinguidas, interagem.

Regressando a Dennett, um exemplo, entre os muitos que nos

apresenta, é este – Dois homens experimentados no sabor do café

trabalham para uma casa de cafés com a precisa função de preservarem

as características do sabor original do café produzido nessa casa. Sucede

que ambos os senhores, ao fim de seis anos, lamentam o facto do café

agora já não lhes saber da mesma maneira e isto apesar do café ter

preservado as mesmas qualidades objectivas. De acordo com um deles,

Mr. Chase, o café nem sequer sabe diferentemente; sucedeu, tão-

somente, que os seus padrões de satisfação evoluíram com o passar dos

anos de tal forma que esse sabor já não lhe agrada – na verdade, o mesmo

sabor sabe-lhe agora mal. O que mudou, de acordo com Mr. Chase, foi

apenas o seu gosto. Já Mr. Sanborn, o outro provador, julga, pelo

contrário, que o sabor do café se alterou efectivamente e que lhe sabe mal

não porque tenha mudado de gostos, mas precisamente por o sabor não

ser o mesmo. Do seu ponto de vista, também o café é o mesmo, pelo que

o que mudou foi a maneira como se constitui o sabor.

Face ao exemplo dos provadores de café, Dennett pergunta qual

dos dois provadores tem razão, se é que não sucedeu com ambos um

pouco das duas coisas. Perguntando o mais simplesmente possível: É o

quale o mesmo ou não? E disto conclui o autor que:

i) Não está ao alcance de nenhuma das duas personagens

responder a esta questão de forma introspectiva, pelo

acesso directo a essas experiências.

ii) Sê-lo-á, bem pelo contrário, através de formas indirectas

que não passam pela introspecção, formas ditas na terceira

pessoa.

Aqui, o problemático é que a própria questão ‘É o quale o

mesmo?’ revela imprecisão pois como se pode dizer tratar-se, ou não, do

mesmo o que é relacional? Seria necessário que a relação e cada um dos

156

termos da relação fossem os mesmos. Mais do que isso, seria necessário

determinar quais e quantos são os termos relacionais e de que modo

verificar a identidade, ou não, entre os termos em diferentes tempos. Ao

não considerar os qualia produto de propriedades relacionais de um

complexo de condições, como vimos no ponto anterior, Dennett limita-se

a extrair uma conclusão a partir de uma premissa falsa, conclusão cujo

valor de verdade permanece, pois, indeterminado. Não obstante, as

afirmações i) e ii) são, a nosso ver, verdadeiras; simplesmente não

servem, em nada, para quinizar os qualia, a não ser que o entendimento

que temos destes coincidisse com a caracterização que deles dá Dennett.

E não é esse o caso.

Mas, por outro lado, é preciso reconhecer que Dennett levanta um

importante problema acerca da objectividade da experiência dos qualia.

h) Qualia e objectividade

Não sendo objectidades, os qualia podem ainda assim ser dotados

de alguma objectividade. Se aprofundarmos os dois últimos exemplos,

deparamo-nos com o facto de um fumador experimentado, como um

provador de cafés, ou um escanção, etc., terem uma perspectiva na

primeira pessoa bastante precisa das suas avaliações de gosto. Não só

tematizam de algum modo as propriedades dos qualia que experimentam,

como o fazem de tal forma que o resultado é dotado de alguma

objectividade, no sentido mínimo de que pelo menos saberão

experienciar, com elevado grau de precisão, diferenças, até mesmo muito

subtis, entre qualia. Afirmar o contrário equivale a afirmar que todo o

escanção é inevitavelmente um falsário ou que é absurdo perder tempo a

discutir as diferenças entre um Jack Daniel’s e um bom Irish ou entre um

Peterson e um Captain Black, etc. Não considerando tão desagradáveis

suposições, interessaria detectar em que termos se constitui uma

objectividade em torno dos qualia, note-se uma objectividade sem

objectualidade. Em todo o caso, no que respeita ao presente ponto, temos

por certo, nem que seja por recurso a reduções ao absurdo, que os qualia

são dotados de algum tipo de objectividade.

157

3. O que os qualia não são

É certo que qualiófobos como Dennett forçam um pouco a

descrição dos qualia, mas não deixa de ser igualmente certo que reina

muita confusão nas definições qualiófilas dos mesmos. E a este respeito

interessa mostrar claramente que a nossa definição de quale não

corresponde com exactidão à que tem sido consagrada na literatura sobre

o assunto. Tome-se o caso de uma célebre definição de Sydney

Shoemaker, em The Inverted Spectrum – qualia são «as características

qualitativas ou fenoménicas da experiência dos sentidos».107 De acordo

com esta definição, quale é o aspecto qualitativo de uma dada

experiência perceptiva, ao qual é preciso acrescentar, caso se trate

efectivamente de uma percepção, um aspecto intencional.

Correlativamente, dirá um qualiófilo, uma percepção possui um conteúdo

intencional e um conteúdo qualitativo. Caso se trate de uma experiência

mental desprovida de objecto intencional, por exemplo uma dor, então

não se disporá de outro conteúdo senão o conteúdo qualitativo, nem de

outro aspecto senão o experiencial.

Pondo de parte as noções de conteúdo, cujo compromisso podemos

dispensar (até porque está contaminada pela ideia de uma relação de

pertença do conteúdo ao continente), esta definição é equívoca por duas

ordens de razão associadas:

i) Esta formulação tanto pode definir quale como sensação,

dependendo isso do sentido que se atribua à expressão

‘características qualitativas ou fenoménicas’.

ii) como os exemplos geralmente apresentados de qualia são

efectivamente qualia no sentido em que os definimos,

então fica pouco claro, de acordo com a definição de

107 Shoemaker, 1982: 649.

158

Shoemaker, como distinguir neles o carácter ‘experiência’

do carácter ‘significado’.

Isto leva a pensar que se deixou escapar na teorização dos qualia

um ponto determinante e no qual muito temos insistido – o de que, para

lá das representações intencionais e das experiências não representativas,

existem representações não intencionais, precisamente aquelas que são

distintivas dos qualia. E se assim é, então terão sido, algo ironicamente,

os qualiófilos quem mais bem eliminou os qualia ao confundi-los com

sensações.

O primeiro facto relevante a ter em conta aqui é que não é possível

deixar de distinguir entre exemplos de experiências com sentido mas não

referenciais, como a dor ou o vermelho de uma maçã vermelha, e

exemplos de experiências completamente desprovidas de sentido, como

aquelas em que não ocorre reconhecimento nenhum, seja objectal ou não.

O segundo facto relevante é que só o primeiro tipo de exemplos tem sido

apresentado na bibliografia sobre qualia como efectivos exemplos de

qualia, o que indica muito claramente que tipo de experiência se tem tido

em mente quando se utiliza tais exemplos. Destas duas premissas retira-

se a conclusão de que os qualia têm um carácter próprio que os distingue

das sensações. Esse carácter como afirmámos é a ‘significação’, pelo que

os qualia se dizem experiências com sentido, ou representativas, mas não

intencionais. Aliás, outra coisa não diz Ned Block numa interessante

nota, quando chama a atenção para aspectos não experienciais (mas

também não intencionais) da P-consciência:

Eu digo que a P-consciência não é uma propriedade intencional e que diferenças intencionais podem produzir uma diferença P-consciente. Digo também que as propriedades P-conscientes são frequentes vezes representacionais. A minha perspectiva é a de que, embora o conteúdo P-consciente não possa ser reduzido a ou identificado com conteúdo intencional, os conteúdos P-conscientes têm frequentemente um aspecto intencional, e também que os conteúdos P-conscientes muitas vezes representam de um modo não-intencional primitivo.108

108 «I say both that P-consciousness is not an intentional property and that

intentional differences can make a P-conscious difference. I also say that P-conscious properties are often representational. My view is that although P-conscious content

159

Se um quale significa como pode ele não visar nada? Ou

reformulando: o que é significar sem significar algo que se diga então

visado intencionalmente? O que pode ser uma representação não

intencional?

Caso não se obtivesse uma resposta para estas questões, e fôssemos

obrigados a recusar a ideia de uma representação não intencional,

confrontar-nos-íamos com um das seguintes situações: i) ou se remete os

qualia para o plano das sensações; ii) ou se remete os qualia para o plano

das representações intencionais; iii) ou, pura e simplesmente, se elimina

os qualia, afirmando que entidades como essas parecem existir, mas não

têm na verdade qualquer correspondente real. A primeira posição é

defendida por todos aqueles que não reconhecem aos qualia nenhum

poder representativo (entre os quais parecem estar alguns qualiófilos!). A

segunda é defendida por aqueles que procuram mostrar que os qualia são

dotados de intencionalidade (por não admitirem outras representações

que não as intencionais), mas também todos aqueles que sustentam que

não há sensações sem um conteúdo perceptual prévio, o que é uma

posição ainda mais inflexível. Finalmente, a terceira tem tido, como

acabamos de verificar, em Daniel C. Dennett o seu principal defensor.

Mas, muito antes deste, já as Investigações Lógicas de Husserl parecem

assumir uma posição eliminativista a respeito dos qualia.

Logo na primeira das suas Investigações Lógicas, o fenomenólogo

distingue entre sentido, ou significado, e referência objectiva. Além

disso, distingue, na Quinta Investigação e de forma muito clara, entre o

objecto intencional visado (i.e, o referente objectivo) e o que denomina

‘conteúdos verdadeiramente imanentes’ da vivência intencional. De

acordo com a nossa abordagem à temática dos qualia seríamos

naturalmente levados a fazer corresponder a estes tais conteúdos

verdadeiramente imanentes. Contudo, Husserl, a este propósito, não só se

refere a sensações – o que poderia não passar de uma diferença

cannot be reduced to or identified with intentional content, P-conscious contents often have an intentional aspect, and also P-conscious contents often represent in a primitive non-intentional way.» (Block, 1995: 408)

160

terminológica –, como parece não admitir a distinção entre o que

designámos sensação e quale. É frequentemente citada a seguinte

passagem:

Se os chamados conteúdos imanentes são meramente intencionais, os pertencentes à consistência real das vivências intencionais, não são intencionais; integram o acto, tornam possível a intenção como pontos de apoio necessários, mas eles mesmos não são intencionais, não são os objectos representados no acto. Não vemos sensações de cor, mas coisas coloridas; não ouvimos sensações de som, mas a canção da cantora, etc.109

Estes elementos reais da vivência, que constituem o seu conteúdo

propriamente imanente, não são por si mesmos intencionais. Por isso, não

são referenciais. Mas na medida em que são a vivência propriamente dita,

então há deles uma experiência vivencial que se caracteriza por ser não-

temática. Ou seja: embora eu não tematize o vermelho da maçã que vejo

defronte de mim, é certo que o vivo numa consciência não-temática. Este

mesmo vermelho da maçã vermelha, como o som da canção que ouço e a

que Husserl chama sensação, pelo menos corresponde a exemplos típicos

de qualia. Note-se, porém, que a sensação tal como Husserl a entende

não distingue entre a experiência representativa não intencional (os

qualia como temos vindo a afirmar) da experiência muda, ou seja, as

sensações. Esta indistinção poderá resultar, de uma posição de Husserl,

de acordo com a qual, os qualia não existiriam. Aliás, são várias as

indicações de Husserl nas Invest. Lógicas no sentido de que a implicação

de significação por parte da referência objectiva ou da intencionalidade é

uma implicação recíproca110. Mais do que isso, a própria recusa de um

acesso às cores independentemente dos objectos que de facto possuem

cor (e aos sons independentemente de um objecto de audição) aponta

claramente nesse sentido. Finalmente, a afirmação de que há um primado

da percepção sobre a sensação lê-se como a afirmação de que a

experiência começa sempre por ser intencional (ou, o que é o mesmo,

109 Cf. Husserl, 1901. V, §11. 110 Cf. nosso Cap.V.

161

referencial) e que a sensação, bem como o quale, só pode ser tematizada

abstractamente.

Assim, no âmbito das Investigações Lógicas há que retirar duas

conclusões. Primeiramente, o que Husserl não parece admitir não é tanto

que haja experiências não intencionais, mas que haja significações não

intencionais, isto é, representações não intencionais. Donde que

excluindo os qualia, apenas restam as sensações como “conteúdos

verdadeiramente imanentes” do acto intencional. Em segundo lugar, que

tais experiências não intencionais, as ditas sensações, não têm lugar

senão como “pontos de apoio necessários” de uma intenção. Ou seja:

arriscando a generalização, para Husserl não há experiência sensorial

independente de experiência perceptiva, e a sua tematização só é

possível, num segundo momento, derivado, por abstracção da experiência

perceptiva; quanto aos qualia, esses estão eliminados à partida, uma vez

que entre representação e intencionalidade há uma implicação de duplo

sentido.

4. Experiência e comunicação

Com este parágrafo renovamos a questão pendente de saber como é

possível uma objectividade sem objectualidade e, subjacente a estas, uma

significabilidade não intencional (ou arreferencial). O título do parágrafo

reproduz o título de um artigo de João Paisana, autor que, por vias

bastante distintas das que estiveram em jogo nas páginas anteriores,

afirma o seguinte:

O enunciado de experiência é ante-predicativo e pré-objectivo, não é um enunciado de conhecimento. O seu sentido objectivo não se funda no conhecimento de um objecto. Por outras palavras, o seu sentido não pode ser determinado pelas suas condições de verdade, entendidas estas através da referência e da predicação.111

111 Paisana, 2000: 79.

162

Nesta passagem está condensado todo um conjunto de afirmações

relevantes: i) há enunciados, ditos de experiência, que não são

predicativos, ou seja, que não têm por base a relação entre um sujeito e

os predicados que lhe pertencem; ii) tais enunciados possuem sentido; iii)

dispõem de uma objectividade ou de um sentido objectivo; iv) as

condições de tal objectividade não são condições de verdade e excluem,

além da predicação, a noção de referência.

Ora, confrontando estas afirmações com a nossa afirmação de que

há uma objectividade sem objectualidade (e uma significabilidade sem

referência), salta à vista o paralelismo. Não só opusemos qualia e

percepta (como consciência fenoménica e consciência intencional)

através do critério de que existem significações desprovidas de

referência, como indicámos que a atenção na experiência dos qualia (e,

generalizando, em toda a consciência fenoménica) estabelece relações

comparativas – de semelhança, dissemelhança experiencial – sob o

constrangimento da verosimilhança, ao passo que, na experiência dos

percepta (e, generalizando, em toda a consciência intencional), a atenção

estabelece relações de pertença – entre um substrato, dito sujeito de

predicados, e as propriedades que lhe pertencem – sob o constrangimento

da verdade.

Com este paralelismo por base, podemo-nos autorizar procurar

encontrar pontos de apoio para a questão sobre como chega a haver uma

significabilidade sem referência e uma objectividade sem objectualidade.

Ou seja, procurar na investigação em torno das condições de

objectividade dos enunciados de experiência a resposta adequada à nossa

pergunta sobre a objectividade dos qualia em particular e a dos

arreferentes em geral. E nesse novo território de investigação ganha

pertinência a tematização de uma oposição, muito discutida no âmbito da

filosofia hermenêutica, entre “ente” e “objecto”, sendo que este resulta de

uma modificação daquele pela qual é convertido num sujeito de

predicados, cujas relações são de pertença e se verificam internas ao

próprio objecto, cortando assim uma relação prévia (e constituinte de

sentido objectivo) com a significabilidade e o mundo.

163

João Paisana reconhece a este plano pré-objectal e pré-teórico o

privilégio das dimensões prática e poética da experiência, em detrimento

de uma dimensão teórica, caracterizada em termos de predicação.

A experiência não conduz directamente ao objecto; o que é encontrado de modo imediato na experiência deverá antes ser caracterizado como ente disponível ou como utensílio, isto é, ente intramundano. Deste modo, deveremos afirmar que a experiência não tem fundamentalmente, e muito menos exclusivamente, uma dimensão teórica. Uma dimensão de conhecimento. O sujeito da experiência não pode ser caracterizado essencialmente como sujeito cognitivo; ao inverso ele encontra o ente comportando-se de forma prática ou mesmo poética (artística)112

Aliás, o estabelecimento de pontes entre a problemática dos qualia,

tal como tem sido tratada nas últimas décadas pela filosofia de expressão

anglófona e esta via de investigação privilegiada na filosofia continental,

muito em particular a partir da filosofia hermenêutica e da comunicação

(desde o longínquo Dilthey) tem sido experimentado por nomes da

filosofia norte-americana como Gilbert Harman e Piotr Boltuc113.

Não obstante, de acordo com a nossa exposição anterior, existem

experiências de não-reconhecimento que são desprovidas do carácter

significação, experiências mudas que nada significam e em nada se

reportam ao sujeito da experiência. Tais experiências, que denominámos

insignificantes, correspondem aos sense data e seus pares qualitativos.

Por este facto, embora toda a experiência dotada de sentido (seja ela

dotada de referência ou não) pressuponha um “espaço de diálogo”, pelo

que tal experiência não se possa dizer muda, não é aceitável daqui

concluir universalmente, como faz João Paisana, que «não tem

112 Paisana, 1997: 83. 113 Piotr Boltuc, a este propósito, afirma o seguinte: «The first person statements

are based on an immediate experience (or on a hermeneutics) of qualia, and not on proof of any kind.» E referindo-se a Harman acrescenta: «Harman adopts Dilthey's notion (he calls it Das Verstehen) which refers to the understanding non-reducible to the method of physical science in studying the mind. Das Verstehen refers to the irreducibly first-person experience necessary for understanding certain claims e.g. ‘Pain!’ As Harman put it, obviously following Nagel: "You can know everything objective there is to know about a person without knowing what it is like to be that person".» (Cf. Boltuc, 2000)

164

fundamento falar de experiências privadas ou mudas»114. Aliás, se as

experiências de não-reconhecimento são, a nosso ver, mudas e privadas,

as experiências não-referenciais, embora não sejam mudas (pois

significam algo e é possível ao sujeito que as experiencia dizer delas

alguma coisa), não deixam, por isso, de ser privadas. Com efeito, a

unicidade aspectual que caracteriza os arreferentes não permite que o

carácter significação com a sua dimensão pública seja discernido do

carácter experiência, do que se segue que a dimensão pública e dialogal

da constituição do arreferente não limite a privacidade da sua

experiência. Resumidamente: i) há experiências mudas, não há

significações mudas; ii) há significações privadas, não há objectos

privados.

Finalmente, temos então que se deve distinguir entre experiência

intencional e experiência representativa, sendo que esta só exclui as

sensações. Por seu turno, à consciência estrita de sensações podemos

chamar experiência muda, uma vez que não dispõe de qualquer

significado próprio, nada representa e dela, enfim, nada pode ser dito.

Desta tripla distinção, resulta uma rejeição de que a intencionalidade seja

uma propriedade essencial da consciência.

Já por outro lado, a célebre afirmação kantiana de que «o “eu

penso” deve poder acompanhar todas as minhas representações», dizendo

respeito a toda a consciência representativa, respeita também aos qualia.

No entanto, as sensações e toda a experiência muda em geral, ao

excluirem-se do âmbito da consciência representativa, não são, de acordo

com o ponto de vista que defendemos aqui, acompanhadas por uma auto-

consciência, isto é, não são reportáveis a um ‘Eu penso’ kantiano.

Significa isto que nem toda a experiência é acompanhada por uma

experiência de si.

Mas é possível ir mais longe, designadamente afirmando, pelo

menos em tese, que a pura experiência de sensações e seus pares

qualitativos, ou seja, o que chamámos experiência muda, é uma

experiência sem consciência.115

114 Paisana, 2000: 79. 115 Cf. Nosso Cap. I.

165

Com efeito, uma experiência muda, não acompanhada pelo “eu

penso”, despojada de significação e de experiência de si poderá ainda

dizer-se uma experiência consciente? Se nada é apercebido, se nada é

presente a um sujeito, então que diferença pode fazer essa experiência da

simples circunstâncias de dois quaisquer objectos inanimados se

encontrarem um defronte do outro?

Concluindo, se a experiência não implica consciência, então uma

teoria da experiência não pode ser enquadrada em, muito menos feita

coincidir com, uma teoria da consciência. Por outro lado, se a

consciência implica significação – note-se que no nosso Cap. III apenas

falámos de consciência enquanto adjectivo de certas significações, não

todas –, então é no quadro de uma teoria da significação que se deverá

enquadrar uma teoria da consciência.

Desta forma, contra a ideia de que uma teoria da mente deva

compor-se por uma teoria da consciência e por uma teoria do conteúdo

significativo, concluímos que o que está em causa na compreensão da

mente é uma teoria da experiência e uma teoria da significação, sendo o

problema da consciência, por um lado, inteiramente estranho à primeira,

e, por outro, apenas uma incidência, ainda que maximamente relevante,

desta última. A mente consciente, em suma, resolve-se numa equação

que envolve apenas dois termos: Experiência e Sentido.

Recapitulando:

i) há três caracteres da experiência – ‘experiência’, ‘significação’

e ‘referência’;

ii) a ocorrência de um, dois ou três desses caracteres é critério

suficiente para discriminar, respectivamente, uma experiência

muda, uma experiência representativa e uma experiência

intencional;

iii) a estas duas últimas há que associar, respectivamente, uma

experiência de si e uma experiência objectal, por um lado, e

uma perspectiva na primeira pessoa e outra na terceira pessoa,

por outro.

iv) São os tipos de experiência representativa e intencional que

determinam as perspectivas e não o inverso, conquanto seja

166

sempre possível converter uma experiência intencional numa

experiência representativa através da substituição da perspectiva

na terceira pessoa pela da primeira pessoa (note-se que a

conversa não é possível).

v) A perspectiva da terceira pessoa caracteriza propriedades de um

objecto e fá-lo por meio de relações de pertença; a perspectiva

na primeira pessoa caracteriza propriedades de uma experiência

significativa e fá-lo por meio de relações comparativas (de

semelhança, dissemelhança, contraste, etc.) entre experiências.

vi) Há experiências mudas, não há significações mudas; há

significações privadas, não há objectos privados

vii) Há experiências sem consciência: é o caso das experiências sem

significação.

viii) Uma teoria da consciência deve ser enquadrada não numa teoria

da experiência, mas numa teoria da significação.

V

Funcionalismo, IA, Linguagem do

Pensamento

Nos capítulos anteriores defendemos uma moldura resolutiva do

problema mente/corpo assente nas ideias de uma dualismo experiencial e

de uma sobreveniência especial, de acordo com as quais sustentámos a

existência de uma relação de determinação/dependência entre os estados

do cérebro e seus padrões neurais, por um lado, e os estados da mente e

seus padrões mentais, por outro.

Agora, prestaremos atenção aos posicionamentos que procuram dar

conta do fenómeno “mente” através das relações que ele mantém quer

com os inputs do mundo quer com os outputs comportamentais. Pela

nossa parte, evidenciaremos a inadequação que cremos estar subjacente à

relação entre estes posicionamentos, exemplarmente representados pelo

funcionalismo em sentido lato, e o propósito de explicação do que é um

estado mental consciente.

Em contrapartida, se o funcionalismo se revela adequado é

enquanto uma teoria da dinâmica de uma mente, i.e, sob a pressuposição

de que há uma mente, acerca da qual, porém, importa ainda elucidar o

seu regime de mudança.

.

1. Subsegmentos de experiência ‘objectiva’

Sob este novo ângulo de abordagem, evitar-se-á tomar em

consideração a experiência subjectiva, genericamente classificada como

perspectiva da primeira pessoa, para intentar uma caracterização da vida

mental em termos objectivos. Contudo, posto de parte o segmento

‘subjectivo’ da experiência, há ainda que proceder à divisão do segmento

da experiência ‘objectiva’ em três subsegmentos – um subsegmento

relativo aos dados postos a nu pela neurofisiologia; um outro relativo à

168

informação do mundo colhida pelos sentidos; e, por fim, um

subsegmento relativo às expressões comportamentais que atribuímos a

uma mente. Note-se que estes subsegmentos estão todos inscritos no

corpo – as saídas (outputs) comportamentais são comportamento de um

corpo; as entradas (inputs) provenientes do mundo exterior só chegam a

“entrar” por meio dos órgãos sensoriais do corpo; e o objecto de

observação da neurofisiologia é, evidentemente, parte constituinte do

corpo.

MENTE

input output

ESTÍMULO CÉREBRO COMPORTAMENTO

Ora, esta subsegmentação esteve na base de uma recolocação dos

esforços teóricos no sentido de explicar a mente: é o caso do

behaviourismo lógico e do funcionalismo e, dentro deste, do emprego da

distinção Software/Hardware como analogia para a distinção

mental/neural. De tal analogia esperar-se-ia, portanto, pelo menos

heuristicamente, que o vocabulário mental pudesse ser inteiramente

traduzido nos termos de uma descrição funcional das relações entre

entradas (inputs) e saídas (outputs) de um sistema.

Será possível que uma tal descrição funcional seja suficiente para

caracterizar um estado mental? Será, nesses termos, possível identificar

os estados de uma mente com estados estritamente funcionais?

a) Do behaviourismo lógico aos pressupostos básicos do funcionalismo

Para respeitar a ordem histórica, há que referir antes do

funcionalismo os posicionamentos que, na verdade, estiveram na sua

Fig. 1

169

génese. Primeiramente, o behaviourismo lógico e Gilbert Ryle que, com

o seu célebre erro categorial116, expôs a necessidade de não tomar os

estados mentais como objectos, à maneira das coisas materiais que

ocupam um certo espaço físico, mas antes como propriedades

disposicionais, isto é, disposições para o comportamento, as quais

poderão, ou não, se efectivar.

Sob esta nova perspectiva – o behaviourismo lógico ou analítico117

–, propunha-se que os estados mentais, enquanto disposições para o

comportamento, pudessem ser definidos rigorosamente por meio de

enunciados condicionais contrafactuais. De acordo com este ponto de

vista, a consideração dos estados mentais como estados de algum modo

internos e de algum modo substanciais deveria ser recusada. De certo

modo, tal consideração mais não faria do que devolver, repetindo o erro

categorial, aos estados mentais o estatuto de coisas substanciais. Pelo

contrário, os estados mentais não estariam nem no interior nem no

exterior de um espaço, por muito metafórico que seja o emprego aqui

feito de expressões como ‘interior’ ou ‘exterior’.

As objecções ao programa do behaviourismo lógico são bastante

bem conhecidas e, a nosso ver, não há sobre elas grande margem de

contestação. Além da dificuldade em precisar o que se entende por

‘disposição’, se se identifica os estados mentais com disposições para o

comportamento, então aqueles deixam de estar para estes como causa, o

que leva a perguntar muito simplesmente “o que causa o

116 Por ‘erro categorial’ entende-se o erro de encontrar encontrar sob uma certa

categoria de objectos um dado objecto que, no entanto, pertence a outra categoria de objectos. Um exemplo, entre os muitos dados por Ryle, é o seguinte – «A foreigner visiting Oxford or Cambridge for the first time is shown a number of colleges, libraries, playing fields, museums, scientific departments and administrative offices. He then asks “But where is the University? I have seen where the members of the Colleges live, where the Registrar works, where the scientists experiment and the rest. But I have not yet seen the University in Which reside and work the members of our University.” It has then to be explained to him that the University is not another collateral institution, some ulterior counterpart to the colleges, laboratories and offices which he has seen. The University is just the way in which all that he has already seen is organized. When they are seen and when their co-ordination is understood, the University has been seen.» (Cf. Ryle, 1949: 11-24; citado de Rosenthal, 1991: 53)

117 Para uma definição – «analytic (or logical) behaviourism: statements

containing mental vocabulary can be analysed into statements containing just the vocabulary of physical behaviour.» (Byrne, 1994:134)

170

comportamento?”. Por outro lado, há uma evidente circularidade nos

enunciados condicionais contrafactuais que definem os estados mentais,

pois envolvem sempre referências a outros estados mentais que só se

deixam, por sua vez, definir através daqueles.118. Finalmente, ao rejeitar

os estados internos, esta versão do behaviourismo levanta uma objecção

bastante trivial – não ficaremos assim irremediavelmente constrangidos à

condição de “zombies”?

Como reacção ao behaviourismo, surgiram as denominadas teorias

da identidade tipo/tipo que, no essencial, defendem a tese de que cada

tipo de estado mental se identifica com um certo tipo de acontecimento

cerebral. Por exemplo, a dor identificar-se-ia com uma activação das

fibras C119. Sucede, porém, que tais identificações denunciavam o que se

tornou habitual chamar, espirituosamente, um certo chauvinismo. Com

isto, quis-se mostrar que a haver identidade seria apenas entre exemplares

(tokens), por exemplo entre um exemplar de dor – esta dor em particular

que sinto agora – e um exemplar de activação das fibras C – esta que é

dada a observar no cérebro no presente momento. Naturalmente, outras

espécies animais, outros seres, mesmo com uma constituição material

muito distinta dos seres humanos, não têm por isso de deixar de sentir

dor. Assim, a identidade tipo/tipo fracassa, sobretudo pelo que se poderia

considerar uma reacção excessiva face à pouca atenção que o

behaviourismo dedicava ao cérebro humano. Aquilo em que o

behaviourismo pecou por défice, as teorias da identidade tipo/tipo

pecaram por excesso.120

118 John Searle explicita claramente esta circularidade – «There seemed to be a

problem about a certain form of circularity in the analysis: to give an analysis of belief in terms of behavior, it seems that one has to make reference to desire; to give an analysis of desire, it seems that one has to make reference to belief.»(Searle, 1992:53).

119 É sabido que o correlato neural da dor não se encontra exactamente na

estimulação das fibras C. Em todo o caso, para efeitos de argumentação filosófica, tem-se tomado esta correlação como exemplo, pois não é muito relevante saber exactamente qual a correlação em jogo quando o que está em causa é a própria ideia de haver uma correlação.

120 Outra importante objecção às identidades tipo/tipo foi desenvolvida por

Donald Davidson (Davidson, 1970: «Mental Events» in Essays on Action and Events. Oxford: Oxford University Press, 1980.) no que é hoje conhecido como tese do monismo anómalo. Em “Mental Events”, sem obstar a uma posição materialista monista pela qual se identifiquem ocorrências mentais com ocorrências físicas, Davidson

171

A crítica às identidades tipo/tipo, ao explicitar a ideia de que um

mesmo tipo de estado mental pode ser realizado em distintos suportes

materiais, ao consagrar a própria distinção entre tipo e exemplar,

permitindo assim uma investigação relativamente autónoma dos tipos de

estados mentais, conduziu à formulação do programa genericamente

designado como funcionalismo.

Diversamente do behaviourismo lógico, o funcionalismo não

recusa, nem sequer evita como a versão metodológica do behaviourismo,

considerar os estados mentais estados internos, o que elimina, de uma

assentada, as objecções de circularidade, de ausência de causalidade

restringe-a ao nível dos exemplares (esta ocorrência mental particular de uma certa impressão nos meus dentes, por exemplo, com esta ocorrência física particular de uma certa activação de fibras na região apropriada do meu córtex cerebral), isto é, rejeita que seja válida uma tal identificação ao nível dos tipos. Muito esquematicamente, o ponto de Davidson consiste em mostrar que não é possível obter leis psico-físicas que regulassem relações causais entre tipos de estados mentais – por exemplo, a dor em geral – e tipos de estados neurológicos – por exemplo, a activação de certas fibras; e que tal impossibilidade remontaria, primeiramente, a uma outra impossibilidade, a saber, a de formular leis psicológicas. A razão por que não é possível, segundo Davidson, formular leis psicológicas prende-se com a imponderabilidade, no plano mental, dos “efeitos” que se seguiriam das “causas” – o facto de em dada ocasião um dado evento mental originar outro evento mental não determina que noutras ocasiões a mesma sequência de eventos mentais se verifique. Donde, não ser possível formular leis psicológicas, pelo menos num sentido próximo àquele com que falamos de leis estritas a propósito das leis físicas, leis que correlacionam causalmente tipos. Mais rigorosamente, entre ocorrências descritas em termos mentais não é possível formular leis estritas, i. e, leis que não careçam de pronto de cláusulas ceteris paribus e que tenham um efectivo poder preditivo. E não sendo possível uma tal formulação de leis psicológicas à semelhança das leis físicas, então, como consequência, afirma Davidson, não será menos impossível estabelecer, no plano físico, uma legalidade concordante com a mudança de estado no plano mental. Logo, conclui, não é possível formular leis psico-físicas, i.e, leis ponte entre tipos de estados físicos e tipos de estados mentais.

Note-se, pois, que é o reconhecimento do carácter anómalo da sucessão de estados mentais – entenda-se anomalia face a uma sua interpretação nomológica, i.e, que se deixasse exprimir sob a forma de leis no sentido estrito – o passo crucial do argumento de Davidson. É a partir dele que se enjeitam as tentativas de obtenção quer de leis psicológicas quer de leis psico-físicas.

O monismo e o materialismo são, pese embora, salvaguardados: como, em tese, segundo Davidson, ao nível exemplar-exemplar (token-token) estados mentais e estados físicos se identificam – se aqueles podem estar numa relação causal com estes é porque podem ser descritos em termos físicos –, então a expressão nomológica das relações causais entre exemplares de estados físicos é também adequada aos exemplares de estados mentais, sucedendo, simplesmente, que estes não deverão ser descritos noutros termos que não físicos. Aqui, a pressuposição é que as ocorrências concretas não se dizem, primariamente, mentais ou físicas; as descrições que delas damos é que se dizem mentais ou físicas.

A principal dificuldade que o argumento de Davidson tem enfrentado, e sobretudo através das objecções de J. Kim, é a de que dele se seguiria um corolário obviamente epifenomenalista. Para uma discussão actualizada desta ameaça epifenomenalista, cf. Teixeira, Célia, “O Monismo Anómalo de Donald Davidson e a Ameaça Epifenomenista” (www.librairie.hpg.ig.com.br/LB-CeliaTeixeira03.htm).

172

mental e, naturalmente, de imprecisão da noção de ‘disposição para o

comportamento’. Mas se devolve o carácter interno aos estados mentais,

fá-lo sem perder de vista a rejeição behaviourista de que os estados

mentais sejam entidades semelhantes, mesmo apenas análogas, aos

objectos materiais. Preserva-se assim a herança de Ryle. Por outro lado,

preserva-se também a importância epistémica do comportamento como

parte crucial de uma teoria da mente.

A ideia básica do funcionalismo é bastante simples: os estados

mentais podem ser definidos pela sua função e não por aquilo de que são

feitos121. E se assim for, então os estados mentais dir-se-ão multiplamente

realizáveis no sentido em que a mesma função pode ser obtida a partir de

suportes materiais diversos. Por exemplo, a moeda não deixará de ser

moeda pelo facto de fazermos variar o suporte material de que é feita.

Seja ela metálica, de papel, de plástico será sempre moeda se a sua

função for a de ser moeda, isto é, um valor através do qual se possam

realizar transacções de bens. Qualquer objecto que desempenhe essa

função, será moeda, desde as conchinhas às moedas de cobre, bronze,

ouro, etc.

Obviamente isto não significa que o suporte material não tenha

interesse do ponto de vista de uma abordagem funcionalista. Com efeito,

é necessário que o suporte obedeça a uma certa configuração que lhe

permita realizar a função. O que se diz é que essa configuração pode ser

instanciada de múltiplas maneiras; não que possa ser instanciada de

qualquer maneira. Por exemplo, não é possível que uma porção de água

líquida ou de oxigénio gasoso possa realizar a função de ser moeda se

tais porções não puderem ser quantificadas e, sobretudo, não puderem ser

facilmente manuseadas. Outro exemplo: a raridade física do objecto é

outra condição do seu valor – quanto menos disponível for um objecto

que desempenha o papel de moeda mais propícia será a sua valorização

em detrimento de outros que se encontram abundantemente.

121 The basic idea of functionalism is simple enough. Many things in the world

are what they are, not particularly by virtue of what they’re made of, but by virtue of what function, or role, they serve in some sort of system. (Rey, 1997: 165)

173

Posto isto, convém precisar as noções expendidas de função e de

realizabilidade múltipla. Primeiramente, há que notar que a propriedade

da realizabilidade múltipla não se encontra apenas nas funções e no facto

destas poderem, por princípio, ser multiplamente realizáveis. É facto que

atribuímos essa mesma propriedade a tipos naturais, sem que para isso

haja o concurso de aspectos funcionais. Por exemplo, o tipo natural

ressonância é realizado por suportes materiais diversos – ao fim e ao

cabo distinguimos entre ressonância electromagnética, ressonância

acústica, etc. Mesmo cada um destes subtipos é multiplamente realizado.

Basta pensar na imensa lista de instrumentos musicais que se distinguem

por terem caixas de ressonância com diferentes formas, diferentes

volumetrias, etc.

Se estes exemplos mostram que a realizabilidade múltipla não é

uma propriedade exclusiva das funções, mostram, já por outro lado, que

muitas das definições funcionais não são suficientemente definitórias.

Por exemplo, ao definirmos o que são violinos, meios violinos, violas,

violoncelos, contrabaixos, podemos fazê-lo funcionalmente, isto é, pela

sua função; mas nunca saberemos distinguí-los adequadamente se não

tivermos em atenção também aquilo de que são feitos e como são feitos,

com que forma, com que grandeza. Este hibridismo função/suporte

material que se verifica em muitas das definições que damos dos

objectos, sobretudo dos objectos que de alguma maneira nos servem nas

nossas práticas122, não deve ser confundido com a definição de funções

como a de moeda, cuja natureza é, per se, funcional. Não é por as

definições funcionais de objectos (e mesmo de tipos) serem, em regra,

insuficientes que as funções propriamente ditas deixam de ser

completamente definíveis em termos funcionais.

O que é então uma função? Em termos gerais, uma função é uma

relação entre os termos de um sistema funcional, podendo ser

122 Por exemplo, uma cadeira não deixará de ser uma cadeira pelo facto de

fazermos variar o suporte material de que é feita, o tamanho, a forma, o número de pernas que possui. Seja ela metálica, de madeira ou de PVC, estofada ou não, grande ou pequena, das de quatro ou apenas de três pernas, será uma cadeira se a sua função for a de ser cadeira, isto é, servir para que uma pessoa se possa nela sentar de forma reclinada.

174

explicitamente caracterizada através das relações que mantém com os

restantes termos do sistema. Um exemplo muito frequente na bibliografia

específica permite ilustrar esta definição geral.

- Seja um sistema automático de venda de bilhetes que admite moedas

de 1€ e ½ €. E que emite bilhetes com preço único de 1€.

- A estrutura material da máquina de bilhetes deve incorporar pelo

menos dois estados internos, S1 e S2, de modo a desempenhar a sua

função:

i) Um estado S1 que se mantém em estado S1 e emite um bilhete

quando é introduzida uma moeda de 1€, e que passa a S2

sempre que é introduzida uma moeda de ½€.

ii) Um estado S2 que passa a estado S1 e emite um bilhete sempre

que é introduzida uma moeda, sucedendo que quando a moeda é

de 1€ dá de troco uma moeda de ½€.

Sistematizando, obtém-se o seguinte quadro:

Entradas Interior do sistema Saídas

1€ S1

S2

S1

S1

B

B, ½€

½€ S1

S2

S2

S1

B

Este sistema funcional pode ser alvo de complexificações

sucessivas. Para isso, basta que na máquina de moedas entrem moedas de

valor diferente, moedas de outras divisas, sejam admitidas formas

diversas de pagamento; e emitidos bilhetes diversificados, etc.

Naturalmente, com isto ter-se-á de multiplicar os estados internos do

sistema. Mas, enquanto o suporte material realizar bem as funções, não

há razões, senão práticas, para reconhecer, conceptualmente, um limite à

complexificação. Ora, esta multiplicidade de estados internos em relação

é definível. E é justamente nesta definibilidade, por princípio, dos estados

internos de um sistema que reside a vantagem face a uma abordagem

175

estritamente comportamentalista que trataria de negligenciar, se não

mesmo eliminar, esse lado interno do sistema.

Como definir, então, um estado interno S? É estar num dos estados

internos do sistema, estados que estão relacionados entre si e com as

entradas e saídas no sistema da determinada forma. Que forma? De

acordo com o exemplo anterior, S1 é estar no estado que, quando é dada

entrada uma moeda de ½€, passa ao estado S2, e que, quando é dada

entrada uma moeda de 1€, se mantém no mesmo estado emitindo um

bilhete. É claro que S é também um estado material que o construtor da

máquina saberá descrever do ponto de vista físico com toda a exactidão

exigível. Mas o ponto importante aqui é que a caracterização funcional

de S1 e S2 é, analogamente, tão rigorosa quanto aquela, no que se pode

exigir a uma descrição funcional. As duas abordagens são perfeitamente

congruentes; simplesmente, obedecem a propósitos distintos.

Isto significa que cada estado S admite duas descrições que os

definem rigorosamente, uma funcional outra material. Deste dupla

descrição não se segue uma duplicação de entidades; segue-se, isso sim,

uma duplicação de propriedades, as físicas e as funcionais. Mas isto só

vem demonstrar que nem todas as propriedades de um estado têm de ser

propriedades físicas, o que não significa que as propriedades não

materiais, no caso as funcionais, não possam ser reduzidas a propriedades

físicas.

*

Quando nos perguntámos pelo que era um estado interno, S, num

sistema funcional, afirmámos que consistia na relação determinada que

esse estado interno mantém, por um lado, com os restantes estados

internos do sistema e, por outro, com as entradas e saídas no sistema.

Nestes termos, do ponto de vista funcional, S tem uma natureza

meramente relacional. Pois bem, o que o funcionalismo da mente propõe

resume-se à consideração dos estados mentais como estados internos de

um sistema funcional, que deverão, assim, ser caracterizados através das

relações determinadas que mantêm, por um lado, com os restantes

176

estados mentais relevantes e, por outro, com as entradas de estímulos e as

saídas de comportamento no sistema. Por outras palavras, o

funcionalismo define, em geral, os estados mentais através dos seus

desempenhos causais a três níveis:

- O efeito de estados corporais em estados mentais – a retina, por

exemplo, recebe informação visual relativa a um certo animal que está

diante de mim, mudança de estado corporal que causa o estado mental da

percepção de um cão agressivo.

- O efeito que os estados mentais têm uns sobre os outros – a

percepção do cão agressivo causa em mim o receio de ser atacado, receio

que, por seu turno, desencadeia uma série causal entre estados mentais

diferenciados que me conduz a decidir trepar uma árvore.

- Finalmente, o efeito que os estados mentais têm, através de

expressões comportamentais do corpo, no mundo – o estado mental

‘devo trepar a árvore’ causa a deslocação do meu corpo em direcção à

árvore.

Deste modo, o modelo de entendimento funcional da mente pode

esquematizar-se da seguinte forma:

Levantam-se, porém, duas dificuldades técnicas: i) a

realizabilidade múltipla de uma função não é adquirida se o enunciado

que define um estado funcional não se desvincular da realização

particular em que ocorre; ii) por outro lado, contrariamente aos estados

internos do sistema funcional da máquina de bilhetes, quando se propõe

M1 M2 Estímulo Comportamento

Fig. 2

177

entender a mente como um sistema funcional, não é o caso de que se

disponha de um acesso directo aos seus estados internos. Ora, para

ultrapassar estes dois obstáculos, procede-se a uma análise funcional dos

estados internos – a ramsificação dos enunciados funcionais, ou seja, a

sua conversão em frases de Ramsey.

Seja uma teoria da mente T desenvolvida segundo a estratégia

funcionalista. De acordo com esta estratégia, T será composta por um

conjunto de enunciados que caracterizam expressamente os estados

mentais como estados funcionais, isto é, que os definem, de acordo com

o que vimos atrás, por meio das relações que mantêm quer com outros

estados mentais quer com as entradas de estímulos e saídas de

comportamento do sistema. Significa isto que num qualquer enunciado

de T ocorrem duas espécies de termos: ou termos mentais ou termos

relativos a entradas/saídas do sistema funcional. Ora, o que a

“ramsificação” do enunciado funcional determina é simplesmente a

substituição dos termos mentais que nele ocorrem por variáveis ligadas

através de quantificadores existenciais.

Desta forma, os enunciados de T deixam de conter qualquer

referência a estados mentais; ou, por outras palavras, a definição

funcional de um qualquer estado mental deixa de conter no seu definiens

referências a outros estados mentais. Assim, a dificuldade, atrás

apontada, de não ser possível aceder directamente aos estados mentais é

ultrapassada, pois, admitida a ramsificação, deixa de ser requerido o

acesso aos estados mentais propriamente ditos.

Por outro lado, proceder-se à ramsificação dos enunciados de T

significa proceder-se à formalização parcial de um estado funcional dado,

através de uma generalização existencial (substituindo os termos mentais

por variáveis ligadas). Justamente em virtude dessa generalização, a frase

de Ramsey obtida é multiplamente realizável – i.e, as múltiplas

realizações de um enunciado de T são estados funcionais “concretos”

como aquele que esteve na base da generalização; cada valor assumido

pelas variáveis corresponde a uma realização funcional de um enunciado

de T. Assim, a dificuldade associada à necessidade de exprimir a

178

característica multiplamente realizável dos sistemas funcionais fica

manifestamente ultrapassada.

Observe-se bem que ‘realizabilidade múltipla’ significa aqui um

mesmo estado funcional abstracto (cuja definição é dada por uma frase

de Ramsey) poder ser realizado por múltiplos estados funcionais

determinados; não significa que um mesmo estado funcional

determinado seja ou possa ser realizado por múltiplos suportes materiais.

Isto porque cada estado funcional determinado – i.e, cujos termos são

todos constantes e não variáveis ligadas – corresponde a um estado físico

igualmente determinado. Atente-se, pois, que só dissipando uma leitura

ambígua é aceitável afirmar que os estados funcionais são realizáveis por

múltiplos suportes materiais. Em tal afirmação, por estados funcionais

não se entende os estados funcionais determinados, mas aqueles em cujos

enunciados no lugar dos termos mentais ocorrem variáveis ligadas.

Exposta esta característica da realizabilidade múltipla como

característica dos sistemas funcionais, é bastante relevante dar conta de

algumas boas razões para a reconhecer na mente humana. Se bem que

indirectamente, seriam presumivelmente também razões para

desenvolver uma teoria da mente enquanto sistema funcional. Sob este

propósito, Frank Jackson expõe um conjunto de cinco razões deste tipo, a

saber:

- No estado actual do conhecimento, não sabemos determinar o que é

que realiza um estado mental;

- Conceptualmente, podemos imaginar seres fisiologicamente muito

distintos de nós, mas que, ainda assim, disponham de estados mentais

(Empregando a expressão célebre de Ned Block, não é razoável

permanecermos “chauvinistas” quanto à mente);

- Empiricamente, é possível verificar que o cérebro humano jovem é

dotado de considerável plasticidade, o que evidencia o facto de a

estrutura interna dos cérebros poder ser muito diversa;

- Empiricamente, é também hoje já um dado adquirido que uma parte

do cérebro humano pode realizar uma função que deixou de ser

realizada, em virtude de lesões de diversa natureza, por outra sua

parte.

179

- Finalmente, pelo menos conceptualmente, é possível substituir partes

do nosso cérebro por componentes artificiais (através de técnicas de

implante) que preservem uma função em risco.123

2. Objecções ao funcionalismo: Qualia versus funcionalismo

Do ponto de vista do funcionalismo, os estados qualitativos ou

qualia deverão poder ser inteiramente descritos como estados funcionais,

à semelhança de quaisquer outros estados mentais. Porque são estados

mentais, então, de acordo com o funcionalismo da mente, a sua

caracterização deverá ser funcional. A questão que se coloca é a de saber

se essa caracterização é suficiente. Se sim, então duplicados funcionais

disporão dos mesmos estados qualitativos. Ora, contra-exemplos como a

inversão do espectro apontam claramente no sentido de que duplicados

funcionais possam não dispor dos mesmos estados qualitativos, pelo que

a caracterização funcional destes estados não resulta suficiente para os

discriminar entre si.

Uma solução de compromisso procurará complementar o

funcionalismo com uma caracterização não funcional. É essa a posição

de Ned Block, para quem a discriminação entre estados qualitativos

envolve a descrição física do sistema material que os suporta. Significa

isto que duplicados físicos não podem estar na base de qualia diferentes,

já não sendo esse o caso em duplicados funcionais, para os quais a

inversão do espectro, por exemplo, parece ser uma possibilidade

incontornável. Isto não acarreta uma rejeição integral do funcionalismo.

Para Block, tratar-se-á apenas de «desistir do funcionalismo como uma

teoria da experiência (ou, ao menos, do seu aspecto qualitativo),

123 Cf Jackson e Braddon-Mitchell, 1996: 43-44.

180

preservando o funcionalismo como uma teoria do aspecto cognitivo da

mente.»124

Uma objecção a este tipo de solução tem sido formulada da

seguinte forma: se se afirma que os qualia não são caracterizáveis

funcionalmente, então ter-se-á de afirmar que são caracterizáveis

directamente pelo seu suporte material. Empregando a analogia

Software/Hardware, na caracterização dos estados mentais qualitativos,

ou seja, naqueles estados mentais que são experienciados apenas na 1.ª

pessoa, os qualia como a vivência da dor ou da cor, estariam

necessariamente em causa aspectos da ordem do Hardware. De acordo

com esta objecção, Ned Block comprometer-se-ia com a tese, por sinal

excessivamente forte, de que os qualia, contrariamente aos estados

funcionais, não seriam multiplamente realizáveis.125 Ou ainda, de que

incorreria, algo ironicamente, num “chauvinismo” a respeito dos

qualia.126

Contudo, esta objecção só teria relevância se o carácter

multiplamente realizável de um estado mental tivesse por condição

necessária esse estado mental ser um estado funcional. Ora, não é o caso

que assim seja. Se é certo que os duplicados físicos, de acordo com o

principio da autonomia psicológica de Stich e a tese da covariação de

Kim, terão de ter os mesmos estados mentais, sejam qualitativos ou não,

isso não se opõe, porém, à existência de estados mentais caracterizáveis

em termos funcionais. E sendo assim, então o único facto em jogo, em

argumentos como o da inversão do espectro, é o de os qualia não serem

estados funcionais à maneira dos estados não qualitativos, facto que não

124 «…To give up on functionalism as a theory of experience (or at least of its

qualitative aspect), retaining functionalism as a theory of the cognitive aspect of the mind.» (Block, 1990: 677)

125 Uma formulação desta objecção é dada por Stephen White – «Thus according

to physicalist-functionalism1[o de Ned Block, segundo o autor], functional states underdetermine qualitative states, and only further specification of the physical details of the way in which the functional states are realized would determine which, if any, qualitative states the subject occupies. Being a condition of neurons, as opposed to being a condition of silicon chips is, on this theory, very possibly part of the essence of pain» (White, 1986: 696)

126 Diz-se ‘ironicamente’ porque o termo é introduzido por Block na sua crítica à

teoria das identidades tipo-tipo.

181

implica, conceptualmente, que tenham de ser definidos exclusivamente

pela sua natureza material.

Aliás, empiricamente, há boas indicações de que diferentes

suportes materiais podem estar na base de idênticos estados mentais,

independentemente da possibilidade, ou não, de dar destes uma

caracterização exclusivamente funcional. O ponto aqui em foco é, pois,

como já se verificou atrás, que o dado de os estados mentais serem

multiplamente realizáveis não é um dado que deva ser, prima facie,

atribuído exclusivamente ao funcionalismo. Daí que a rejeição do

funcionalismo a respeito dos estados qualitativos não implique que estes

não sejam, ainda assim, multiplamente realizáveis. Então, de acordo com

a analogia Software/Hardware, não resulta nada óbvio que, de uma

eventual rejeição do funcionalismo, se siga necessariamente uma

caracterização dos qualia em termos de Hardware. Por exemplo, um

movimento ondulatório é multiplamente realizável sem que, no entanto, a

sua identificação seja feita em termos funcionais. A sua identificação é

feita não por um qualquer desempenho causal, mas através de uma

frequência (ou um comprimento de onda) e uma quantidade de energia.

Mais genericamente, a própria ideia de que haja fenómenos de

sobreveniência, sejam mentais ou não, envolve a possibilidade, como se

viu atrás127, de que os estados sobrevenientes sejam multiplamente

realizáveis, isto é, tenham por base estados subvenientes distintos. No

entanto, nada na tese de uma sobreveniência do mental com base no

neural se compromete a priori com o funcionalismo.

3. Searle versus funcionalismo: o argumento do quarto chinês

O argumento de John Searle assenta numa experiência de

pensamento. Suponha-se um quarto no qual alguém é colocado e aí

encontra uma caixa com caracteres chineses e uma espécie de guião,

escrito na sua Língua natural, que lhe fornece um conjunto de regras

127 Cf. nosso Cap. I.

182

através do qual consegue determinar como juntar caracteres chineses, sob

a presunção de que o sujeito da experiência é capaz de identificar os

caracteres da caixa e os do guião pela sua forma. Suponha-se, por outro

lado, que lhe é fornecido um segundo conjunto de regras, na sua Língua

natural, que lhe ensina com que conjunto de caracteres chineses deverá

responder a um conjunto de caracteres chineses, entendido como uma

questão, que lhe seja entregue por baixo da porta do quarto.128

A ideia da experiência resume-se a tentar mostrar que uma

adequada relação entre as entradas e saídas do quarto – feito equivaler a

um sistema – não tem de implicar qualquer compreensão ou conteúdo

semântico por parte do sujeito da experiência; nem por parte do guião ou

o que quer que seja identificável no sistema.129

128 O argumento do quarto chinês foi pela primeira vez exposto em “Minds,

Brains and Programs” nos seguintes termos – «Suppose that I’m locked in a room and given a large batch of Chinese writing. Suppose furthermore (as is indeed the case) that I know no Chinese, either written or spoken, and that I’m not even confident that I could recognize Chinese writing as Chinese writing distinct from, say, Japanese writing or meaningless squiggles. To me, Chinese writing is just so many meaningless squiggles. Now suppose further that after this first batch of Chinese writing I am given a second batch of Chinese script together with a set of rules for correlating the second batch with the first batch. The rules are in English, and I understand these rules as well as any other native speaker of English. They enable me to correlate one set of formal symbols with another set of formal symbols, and all that “formal” means here is that I can identify the symbols entirely by their shapes. Now suppose also that I am given a third batch of Chinese symbols together with some instructions, again in English, that enable me to correlate elements of this third batch with the first two batches, and these rules instruct me how to give back certain Chinese symbols with certain sorts of shapes in response to certain sorts of shapes given me in the third batch. Unknown to me, the people who are giving me all of these symbols call the first batch “a script”, they call the second batch a “story”, and they call the third batch “questions”. Furthermore, they call the symbols I give them back in response to the third batch “answers to the questions”, and the set of rules in English that they gave me, they call “the program”.» (Searle, 1980: 418 in Rosenthal, 1991: 510)

129 Encontra-se uma formulação resumida, bem como ligeiramente alterada, do

argumento em Searle, 1992: 45 – «I believe the best-known argument against strong AI was my Chinese room argument that showed that a system could instantiate a program so as to give a perfect simulation of some human cognitive capacity, such as the capacity to understand Chinese, even though that system had no understanding of Chinese whatever. Simply imagine that someone who understands no Chinese is locked in a room with a lot of Chinese symbols in the form of questions; the output of the system consists in Chinese symbols in answer to the questions. We might suppose that the program is so good that the answers to the questions are indistinguishable from those of a native Chinese speaker. But all the same, neither the person inside nor any other part of the system literally understands Chinese; and because the programmed computer has nothing that this system does not have, the programmed computer, qua computer, does not understand Chinese either. Because the program is purely formal or syntactical and because minds have mental or semantic contents, any attempt to produce a mind purely with computer programs leaves out the essential features of the mind.»

183

Ao fim e ao cabo, o sujeito da experiência procede apenas a

operações formais, “sintáticas”130, desprovidas de qualquer conteúdo

semântico. Comenta Searle em The Rediscovery of Mind – «o argumento

assenta na verdade lógica simples de que a sintaxe não é o mesmo que,

nem é, por si, suficiente para a semântica».131

São pelo menos três as objecções que nos últimos vinte anos se

levantaram contra a conclusão que Searle presumiu extrair da sua célebre

experiência de pensamento. Em primeiro lugar, de que não é ao sujeito

da experiência, nem ao guião por que este se segue, que se deverá

atribuir, ou não, conteúdo semântico, mas ao sistema na sua globalidade.

Em segundo lugar, objecta-se que a experiência falha

completamente o seu propósito, pois as operações formais que o sujeito

da experiência realiza não são evidentemente equivalentes às operações

formais que um autêntico falante realiza; e somente nos termos de uma

equivalência funcional entre umas e outras faria sentido verificar se há

conteúdo semântico no quarto chinês.132

Em terceiro lugar, para lá das objecções anteriores, há ainda uma

muito elementar – é que não é de todo razoável esperar que a experiência

de pensamento de Searle funcione bem. Ela nunca passaria um teste de

Turing.133

130 Em rigor, para Searle, tais operações formais nem sequer serão sintáticas. Vê-

lo-emos no nosso §32. 131 «The argument rests on the simple logical truth that syntax is not the same as,

nor is it by itself sufficient for, semantics.» (Searle, 1992: 200 (tr.:233)) 132 «The fact that the Chinese room and/or is occupant might put out Chinese

symbols to Chinese symbol inputs in a way indistinguishable from the behaviour of a normal Chinese speaker is entirely irrelevant to CRTT [i.e, Computational representational theory of thought]. The question for CRTT is rather: is what is happening inside the room functionally equivalent to what is happening inside a normal Chinese speaker?»(Rey, 1997: 271)

133 Para uma apresentação do Teste de Turing, cf. Formosinho & Branco, 1997:

193-194 – «Em qualquer circunstância, uma máquina só pode ser considerada inteligente se tiver capacidade de interaccionar de forma inteligente com o mundo exterior. Para Turing o critério último de inteligência é a capacidade de “diálogo” com pessoas. Consideremos uma pessoa que está a transmitir e a receber mensagens com recurso a um teclado e a um écran, para uma outra pessoa e para um computador, a funcionar em salas separadas. A pessoa vai tentar adivinhar em que sala está a outra pessoa ou o computador, mediante as perguntas que faz e as respostas que recebe. Turing considera um programa “inteligente” se, ao fim de muito tempo deste tipo de “diálogo”, a pessoa se considerar incapaz de adivinhar em que sala está o computador. Presentemente não há nenhum programa capaz de passar o “teste de Turing”.»

184

O Teste de Turing está hoje perfeitamente banalizado na

experiência de um qualquer utente de chats (“sítios” de conversação em

directo por intermédio de ligação à internet). É muito frequente, se não

mesmo o mais frequente, um utilizador de chat manter conversas,

presumivelmente tão interessantes quanto quaisquer outras, com um

interlocutor do qual só conhece as palavras que aparecem transcritas no

monitor do seu computador. Além disso, não será com certeza absurdo o

utilizador perguntar-se, a dado passo, se o seu interlocutor é de facto uma

pessoa. Com efeito, não é factualmente tão raro quanto isso verificar-se

que o interlocutor afinal já não é a mesma pessoa, ou seja, que sob o

mesmo nickname (uma espécie de pseudónimo) se escondem diversas

pessoas que se fazem passar por uma só, bem como o inverso – uma só

pessoa comparecer no chat sob diferentes personalidades assumidas, etc.

Mas tal como nestes casos, é também possível conceber uma

desconfiança acerca de um interlocutor, mas agora no sentido em que não

passe de um programa a computar respostas mais ou menos razoáveis aos

inputs que recebe. Na verdade, existem mesmo certos servidores que, de

certo modo, o fazem nos seus chats, embora de um modo tão rudimentar

que basta um minuto de conversação para que o teste de Turing funcione.

Simplesmente, qualquer utilizador de chat tem uma noção mais ou menos

clara de que poderia estar de facto a conversar apenas com uma máquina,

que tal poderia suceder sem que pudesse provar o contrário, que tal é

perfeitamente concebível. Dito ainda de outro modo, há uma razoável

impressão de que não se dispõe de um critério suficiente para certificar

que os interlocutores de um chat não são de facto um programa. Com

efeito, o programa pode recorrer a uma memória de conversação de chats

imensa, pode dispor de formas de reconhecimento de outras conversas

semelhantes já ocorridas ou em decurso, estabelecer temas e subtemas até

a um pormenor ínfimo, pode também estabelecer graus de conhecimento

e ignorância de acordo com o perfil do carácter assumido, pode assumi-lo

de acordo com uma tabela bastante fina de sucesso de conversação em

virtude do interlocutor, pode adoptar tons de discurso distintos, pode

185

dispor de rotinas de coerência para evitar a contradição sobre matérias de

facto acerca da sua biografia e dos seus, pode cometer erros sob um certo

regime de controlo, desencadear processos afectivos com maior ou

menor complexidade, interpretar o discurso do seu interlocutor, fazer-se

seu psicanalista, seu confessor, seu amigo, seu amante, etc.. Em suma, a

questão que se coloca já não é tanto o que pode ser (ou simular, se se

preferir) um programa que computa o papel de interlocutor de uma

conversa, mas o que não pode ser. E aí não parece que o comportamento

manifesto possa alguma vez servir de critério suficiente.

Por outro lado, não é difícil reformular a experiência do quarto

chinês na experiência do chat. Suponha-se que o programa que computa

as respostas está instalado num Hardware desligado daquele que envia as

respostas ao interlocutor humano, pelo que, para que se efectue a

conversação, tenha de haver alguém, um funcionário nos escritórios do

servidor, que, deslocando as mãos do teclado de um computador para o

outro, vá reproduzindo as respostas e as perguntas. Para se ter

reconstruída a experiência de Searle, basta acrescentar a condição de que

o funcionário com a ingrata função de copiar a conversação sem nela

poder participar desconhece por completo a Língua em que a conversa se

realiza. Suponhamos que é Chinês.

A primeira importante observação a fazer é a de que nesta

experiência fica bastante claro que a figura do funcionário é de todo

irrelevante para o problema. Não é dele que se espera uma compreensão

das respostas e perguntas que vão surgindo; o seu desempenho é, aliás,

praticamente maquinal. Exactamente do mesmo modo, na experiência do

quarto chinês, não é do sujeito enclausurado no quarto que se espera que

venha a adquirir alguma compreensão das respostas e perguntas com que

se depara; mais uma vez, o seu desempenho é, praticamente, maquinal.

Se se espera uma compreensão na experiência que propomos será uma

compreensão por parte do programa que computa respostas, pois é ele, e

só ele, o interlocutor da conversa. Identicamente, no quarto chinês, o

interlocutor enclausurado não é a pessoa que lá está, aliás perfeitamente

dispensável, mas o guião que indica como responder às perguntas que

chegam ao quarto. Porquê? Porque é ao programa e apenas a ele que cabe

186

as tarefas de “reconhecer” as entradas em Chinês, de “interpretar” o que

nelas é dito, de lhes “responder” apropriadamente. Não é, pois, do

sistema qua sistema, na sua globalidade, que se poderia esperar alguma

compreensão, pois não é a ele que cabem as tarefas associadas à

compreensão.

A segunda observação a fazer é a de que com a reformulação que

propomos fica bem mais patente o bom funcionamento do argumento do

quarto chinês. Nada o impede, por princípio, de passar o teste de Turing.

Por fim, o facto de as operações formais não serem as mesmas no

caso de um autêntico falante de Chinês e no caso de um programa de

respostas em Chinês a perguntas em Chinês não só é irrelevante, como só

vem apoiar o ponto de Searle. Com efeito, se operações formais distintas

podem resultar no mesmo comportamento funcional, com a diferença de

umas serem acompanhadas de compreensão e outras não, então não é o

caso que a compreensão possa ser definida pelo comportamento

funcional, falta qualquer coisa.

Desta forma, ficam bloqueadas as três objecções atrás apontadas.

Ainda assim, perguntamos, estaremos obrigados a considerar que estes

interlocutores artificiais não chegam a realizar qualquer compreensão de

Chinês?

Note-se que Searle não pretende demonstrar que todo e qualquer

dispositivo artificial não é capaz de compreensão pelo facto de ser

artificial. Searle assume explicitamente a ideia de que são os processos

cerebrais que determinam os estados mentais conscientes, pelo que a

compreensão genuína de um estado mental deve poder ser determinada

por um cérebro artificial. Searle pretende, tão-só demonstrar que a

concepção de que ter uma mente equivale a ter um programa, tese do

funcionalismo do Software, ou ainda, da IA-forte, é uma concepção

errada.

O que está em jogo, para Searle, é, pois, a decisão entre duas vias

de investigação para explicar a mente. Uma que presume ser possível

explicar o que é da ordem do mental através do comportamento, dos

desempenhos causais, da computação, menosprezando o suporte

material; outra, que procura explicar o mesmo através do suporte

187

material, menosprezando os aspectos funcionais e computacionais. E

entre as duas vias, Searle opta pela segunda.

Agora, devemo-nos colocar a seguinte pergunta – Como pode

Searle saber que o computador do quarto chinês não possui compreensão,

como pode ele certificar-se disso? Em todo o caso, haja ou não

compreensão, ela só se revelaria na primeira pessoa. Se Searle não expõe

nenhum critério positivo para certificar a existência de compreensão,

então sem que este seja satisfeito, o facto de a compreensão não se

revelar na perspectiva da terceira pessoa mostra-se irrelevante.

É claro que o argumento do quarto chinês assenta na certeza de que

um tal critério de compreensão, mesmo não se sabendo ao certo qual,

apenas supondo a sua existência, não é satisfeito pelas condições que se

encontram na experiência formulada por Searle. Com efeito, resulta

razoavelmente óbvio o facto de que uma pessoa que não compreenda

Chinês não passará a compreender Chinês só por manusear um guião de

respostas a perguntas; resulta igualmente óbvio que tal guião nunca

poderia ser considerado capaz de compreensão de espécie alguma. Seria

o mesmo que presumir que um manual de Fisica, por ser de Fisica,

compreendesse os enunciados que traz impressos nas suas páginas!

Mesmo o sistema, enquanto integração de todos os elementos da

experiência – a pessoa enclausurada no quarto, o guião, as regras para

usar este –, não revela qualquer compreensão. Assim, mesmo não

sabendo qual o critério para a compreensão, sabemos, com toda a certeza,

que não é satisfeito na experiência do quarto chinês. É este o engenho da

formulação inicial de Searle.

Contudo, quando se pensa num programa de um computador – por

exemplo, na reformulação do argumento que propusemos, mas também

na que se encontra em Searle, 1992 – há pequenas diferenças que

poderão, a nosso ver, constituir grandes diferenças. Repare-se que

substituindo o guião e as suas regras de uso pelo computador estamos, na

verdade, a transferir algum do trabalho do sujeito enclausurado para o

computador. O “reconhecimento” das questões, dos caracteres chineses

nelas impressos, da correlação entre eles, passa a ser uma tarefa própria

ao computador. Por outro lado, se o guião era simplesmente manuseado,

188

o computador funciona como um sistema integrado que processa

informação. O programa que corre no computador não é redutível a um

guião, nem sequer à consideração conjunta do guião, das regras e do

sujeito. Chegam estas diferenças a fazer diferença?

Julgamos que sim, porque vêm obscurecer a evidência com que o

argumento expunha a não satisfação de um critério para a compreensão.

Com efeito, agora, já não há algo que possamos dizer, de forma

inequívoca, não ser capaz de compreensão. E se Searle afirma que o

argumento assenta na ideia de que nenhuma sintaxe gera semântica, só

podemos concluir que argumenta circularmente, pois é justamente isto

que se intenta demonstrar.

Searle replicará que o computador nada vem acrescentar, do ponto

de vista funcional, às operações entre um sujeito e um guião. Assim, a

experiência do quarto chinês, ao estabelecer as relações entre um sujeito,

um guião e um conjunto de regras, representaria uma ilustração das

partes envolvidas no funcionamento de um computador, enquanto

sistema integrado, mas que mais não poderia ser do que uma máquina

que realiza operações de acordo com um guião.

Só que um computador pode fazer muito mais: pode “aprender”

(entre aspas porque poderá não ser uma aprendizagem genuína),

reformulando o guião; pode “reflectir”, procedendo ao desdobramento de

níveis no guião; pode “inferir”, gerando respostas que não estão no

guião134. A razão por que não pode ser consciente, por que não podemos

deixar cair as aspas, essa é que não é dada por Searle, pelo que ficamos

sem saber se, de facto, não chega mesmo a compreender.

Esta dúvida torna-se particularmente pertinente se atentarmos no

facto de um computador proceder a todo um conjunto de operações que

estão também implicadas numa compreensão genuína:

“reconhecimento”, “aprendizagem”, “reflexão”, “inferência”,

simplesmente sem que possamos afirmar peremptoriamente que haja

compreensão genuína, pelo que devemos manter todas essas operações

sobre a neutralidade de umas aspas. A dúvida torna-se pertinente porque,

134 Vimos como todas estas operações podem ser concebidas artificialmente na

nosso Cap. II.

189

assim, como esta reprodução de operações implicadas na compreensão

dita genuína, se obtêm algumas boas razões para que se estenda a dúvida

a esta mesma compreensão que presumimos genuína nas mentes

humanas.

Dito de outro modo, até se pode concordar com Searle neste ponto

– a sintaxe não gera semântica – , mas para concluir um ponto oposto ao

que Searle julga poder concluir, a saber, que nunca há realmente uma

semântica e uma compreensão genuínas. Isto, porque é pacífico que a

sintaxe pode gerar uma “semântica” e uma “compreensão” entre aspas.

Com efeito, é perfeitamente concebível que um computador responda, à

maneira de Dennett, como se compreendesse. Pelo menos

informativamente, as relações sintácticas podem exprimir as relações

semânticas. O próprio Searle o reconhece135.

Note-se que não se trata aqui de imitar o comportamento associado

a uma compreensão genuína; trata-se, antes, de obter esse mesmo

comportamento, de facto duplicado ou espelhado, e porque,

processualmente, decorre de operações internas como o reconhecimento,

a aprendizagem, a reflexão, a inferência, as quais, sucede, mas apenas

circunstancialmente, serem imitadas. Portanto, se a simulação sucede a

montante do comportamento manifesto, então, este comportamento,

enquanto resultado dessas operações, não resulta, a jusante, propriamente

por simulação do comportamento, mas com o mesmo efeito das mesmas

operações, estas simuladas, aquele não. Aliás, uma boa forma de testar se

a simulação das operações é a correcta consiste em verificar se delas

decorrem os mesmos comportamentos. Ora, nestes termos deixa de ser

claro que a compreensão dita genuina nas mentes humanas seja apenas

simulada nos computadores.

Julgamos, pois, que estas razões vêm comprometer fortemente os

objectivos do argumento do quarto chinês. É certo que não demonstram

que os computadores chegam a compreender alguma coisa – também

aqui continua a faltar a satisfação de um critério para a compreensão –,

135 «Within certain well-known limits the semantic relations between

propositions can be entirely mirrored by the syntactic relations between the sentences that express those propositions.» (Searle, 1992: 203)

190

mas julgamos que demonstram, pelo menos, que não é óbvio que os

computadores não compreendam coisa alguma, mais em particular, que

não compreendam no mesmo sentido em que nós, dotados de mentes

humanas, julgamos compreender. E esse era o ponto de Searle.

4. Searle versus IA -forte: Argumento contra a existência de relações

sintácticas no mundo físico

Talvez em virtude de estas dificuldades, Searle tenha sentido

necessidade de fortalecer o seu ponto de vista através do recurso a um

segundo argumento em A Redescoberta da Mente (The Rediscovery of

the Mind).136 O ponto a demonstrar, agora, é que as relações no quarto

chinês, como quaisquer relações intrínsecas ao mundo físico, não são

sequer, nem podem ser, relações sintácticas. Já não se trata de afirmar

que a sintaxe não gera semântica; mas, mais basicamente, que não há

sintaxe descritível fisicamente. Isto, porque, nos termos de Searle, «o

problema verdadeiramente profundo é que a sintaxe é essencialmente

uma noção relativa a um observador»137. Assim, contra a ideia de que

num nível de abstracção adequado se obtém uma descrição lógico-

sintáctica de um sistema, que apesar de abstracta lhe é intrínseca, Searle

afirma que tal descrição depende de uma atribuição exterior, por parte de

um observador.

Perguntar-se-á: como conclui Searle isto?

Para alcançar esta conclusão, Searle começa por clarificar o sentido

com que se fala de realizabilidade múltipla a propósito do funcionalismo

do computador. Enquanto os carburadores e os termóstatos – exemplos

136 «This is a different argument from the Chinese room argument, and I should have seen it ten years ago, but I did not. The Chinese room argument showed that semantics is not intrinsic to syntax. I am now making the separate and different point that ssyntax is not intrinsic to physics. For the purposes of the original argument, I was simply assuming that the synctatical characterization of the computer was unproblematic. But that is a mistake.» (Searle, 1992: 210)

137 «The really deep problem is that syntax is essentially an observer-relative

notion.» (Searle, 1992: 209 (tr: 243))

191

do autor – são multiplamente realizáveis em função da produção de

certos efeitos físicos, pelo que estão condicionados pela natureza física

dos materiais que os compõem (por exemplo, sabemos que não podemos

fazer carburadores a partir de pombos), já a realizabilidade múltipla que

se invoca a respeito dos estados computacionais nada tem que ver com o

que quer que releve da natureza física, a não ser a posse de uma

complexidade razoável, mas tão só de propriedades sintácticas.

Ora, segundo Searle, isto implica duas consequências. Por um lado,

que é sempre possível dar de um qualquer objecto uma descrição de tal

modo que, sob essa descrição, esse objecto será um computador digital.

Por outro lado, que é sempre possível para um qualquer programa e para

um qualquer objecto, desde que suficientemente complexo, dar deste uma

descrição tal que esteja a implementar aquele programa.138

Significa isto que afirmar que os nossos cérebros sejam Hardware

é algo trivialmente aceite por Searle pois qualquer objecto pode ser assim

interpretado. Significa ainda que afirmar que os nossos cérebros são o

Hardware onde corre o programa “mente” é algo pouco ou nada

relevante, pois em qualquer objecto dotado de razoável complexidade,

como é o caso do cérebro, pode correr tal programa (caso exista).

Searle acentua este contraste entre a realizabilidade múltipla no

funcionalismo do computador e a que se verifica nos carburadores e nos

termóstatos, rebaptizando aquela como uma realizabilidade universal, o

que já não seria admissível no caso em que apenas estejam em causa

fenómenos físicos. Nestes termos, resulta que se há um facto real na

física que faça com que algo seja um carburador, já não se pode dizer que

haja «um facto da matéria em relação aos cérebros que faça deles

computadores digitais»139. Nem poderia haver – mesmo que

138 «On the standard textbook definition of computation, it is hard to see how to

avoid the following results: 1. For any object there is some description of that object such that under that

description the object is a digital computer. 2. For any program and for any sufficiently enough complex object, there is

ssome description of the object under which it is implementing the program.» (Searle, 1992: 208)

139 «…A fact of the matter about brains that would make them digital

computers.» (Searle, 1992: 208 (tr.:242))

192

restringíssemos a noção de computação de tal forma que já não fosse

universalmente realizável – , pois se os assumimos como computadores

digitais é justamente apenas em virtude de uma interpretação extrínseca à

descrição física do sistema, uma mera atribuição que é feita aos

processos cerebrais.

Donde, Searle concluir, genericamente, que «noções como

computação, algoritmo e programa não nomeiam características

intrinsecamente físicas dos sistemas. Os estados computacionais não são

descobertos dentro da física, são atribuídos à física.»140

Admitindo o argumento de Searle em geral e esta conclusão em

particular, poder-se-á considerar que o programa forte da IA se encontra

refutado? Não poderá tal programa assumir como sua premissa a

conclusão de Searle? Mais em particular: não poderá assumir que a

identificação do par cérebro/mente com o par Hardware/Software resulta

de uma atribuição? Julgamos que sim. Contudo, não basta isso para

impedir a refutação. Searle faz seguir desse carácter extrínseco,

meramente atribuído, da computação uma espécie de irrelevância

epistémica. Tal qual o cérebro, que pode efectivamente ser o Hardware

onde corre o programa “mente”, também qualquer outro objecto, desde

que seja dotado de uma complexidade equivalente, o poderá ser. Assim,

para que a IA-forte, ou o funcionalismo do computador, sejam

sustentáveis é preciso que demonstrem a relevância epistémica da

atribuição computacional ao cérebro, ou seja, que demonstrem a

existência de uma especificidade que impeça a equivalência entre essa

atribuição e uma qualquer outra atribuição a um qualquer outro objecto.

Se se obtiver um tal resultado, então Searle não terá, de facto, refutado as

pretensões da IA-forte.

Ora, essa relevância epistémica deixa-se escrutinar por um simples

critério, a saber, o poder explicativo da atribuição. Sob a forma de uma

pergunta, temos então que responder ao seguinte: pensar o cérebro como

o Hardware onde corre o programa “mente” explica o comportamento

140 «Notions such as computation, algorithm, and program do not name intrinsic physical features of systems. Computational states are not discovered within the physics, they are assigned to the physics.» (Searle, 1992: 210 (tr.: 243-244))

193

deste último de algum modo que possamos considerar satisfatório,

designadamente mais satisfatório que descrições computacionais de

outras entidades com complexidade equivalente ao cérebro?

Searle defende que não pode haver qualquer coisa como um poder

causal na sintaxe, pois ela não existe realmente a não ser aos olhos do

observador141; consequentemente, nenhuma explicação causal pode ser

dada por propriedades sintácticas que se atribuam ao cérebro. Tais

propriedades simplesmente não têm eficácia física porque não são físicas.

Neste ponto, porém, é facil opor à posição de Searle dois factos. Por um

lado, o comportamento dos computadores é explicável e, embora possa

ser explicado em termos físicos (afinal, não passa de um circuito

electrónico), pode também ser explicado sintacticamente. Por outro lado,

preferimos em regra a explicação sintáctica à explicação física do

comportamento do computador. Com efeito, a explicação do facto de a

uma dada entrada corresponder uma dada saída no computador é

cabalmente dada pelas operações sintácticas que ele realiza, sendo, em

regra, desnecessário descer ao nível da descrição física dessas operações.

Onde está, então, o erro na argumentação de Searle? Tão-só no facto de

Searle ter pressuposto que os poderes causais da sintaxe se deveriam

reportar a efeitos físicos. Obviamente, não é o caso. Os efeitos causais da

sintaxe, os outputs digamos, são também eles identificados

independentemente do facto de serem assim ou de outra forma do ponto

de vista físico. Aqui, neste ponto em particular, o paralelo com a

sobreveniência é elucidativo: as propriedades moleculares de um sistema

explicam causalmente fenómenos moleculares, não explicam os

fenómenos subatómicos subjacentes e explicam o que explicam mesmo

que nada se saiba destes.

Searle prossegue, porém, o seu esforço argumentativo ainda por

uma outra via, a saber, recusando a ideia de que uma simulação por

computador do funcionamento da mente, designadamente de aspectos

141 «The implemented program has no causal powers other than those of the

implementing medium because the program has no real existence, no ontology, beyond that of the implementing medium. Physically speaking, there is no such thing as a separate “program level”.» (Searle, 1992: 215)

194

como o pensamento ou a linguagem, possa explicar esse funcionamento.

Em termos gerais, afirma Searle, as simulações computacionais não

fornecem explicações causais dos fenómenos simulados142. Por exemplo,

o facto de um processador de texto simular uma máquina de escrever não

faz, de forma alguma, com que privilegiemos aquele como explicação

para o funcionamento desta, muito menos como explicação causal143. Por

que razão haveríamos de conceder às simulações computacionais um

poder explicativo especial?

Esta pergunta pode ser interpretada como uma reformulação da

pergunta, atrás enunciada, sobre a necessidade de indicar um critério de

relevância epistémica, designadamente do cérebro qua Hardware

enquanto explicação causal da mente qua Software. Com efeito, se uma

simulação computacional da mente for capaz de explicar o seu

comportamento, então, por maioria de razão, a interpretação do cérebro

como se fosse um computador digital adquire toda a relevância

epistémica necessária para caucionar o programa da IA-forte.

Existirá uma resposta positiva à exigência de um critério de

relevância epistémica? A nosso ver, sim. Procuremos demonstrar porquê.

Vimos que, para Searle, o facto de um processador digital de texto

simular o funcionamento de uma máquina de escrever, e o facto

epistémico de essa simulação não explicar, se não num nível de

abstracção excessivamente abstracto e pobre, o funcionamento da

máquina de escrever, exemplificaria bem por que razão uma simulação

computacional do funcionamento dos nossos cérebros fica muitíssimo

aquém do que se esperaria de um autêntico explanans.

No entanto, também vimos atrás, na nossa crítica ao argumento do

quarto chinês, que as simulações tanto se podem localizar ao nível do

142 «It is simply not the case in general that computational simulations provide

causal explanations of the phenomena simulated.» (Searle, 1992: 218) 143 «I am for example typing these words on a machine that simulates the

behavior of an old-fashioned mechanical typewriter. As simulations go, the word processing program simulates a typewriter bettter than any AI program I know of simulates the brain. But no sane person thinks: “At long last we understand how typewriters work, they are implementations of word processing programs.”» (Searle, 1992: 218)

195

comportamento manifesto como, mais ou menos a montante disso, nas

operações que causam esse comportamento. Vimos que simulações a

montante podem causar o mesmo comportamento e que esse

comportamento já não se pode dizer, em rigor, simulado ou imitado – ele

resulta o mesmo porque resulta das mesmas operações e não porque

tenha sido simulado. Ora, posto isto, não é preciso pôr em risco a

sanidade do nosso juízo, como parece sugerir Searle, se afirmarmos que

uma simulação computacional das operações a montante de um dado

comportamento explica causalmente esse comportamento enquanto

decorre causalmente das operações simuladas. Analogicamente, não

sucede que sempre que encontramos um mesmo fenómeno realizado em

circunstâncias distintas, o mais natural é procurarmos encontrar, num

nível de descrição adequado, uma mesma explicação causal para esse

fenómeno? É claro que podemos não encontrar tal explicação causal;

sabemos que ela deva situar-se a montante, num plano que possa ser

considerado determinante do fenómeno. Mas se a encontrarmos, e se a

reproduzirmos alcançando assim o fenómeno, não estaremos a dar uma

explicação causal deste? Não é isso que se faz nos laboratórios quando se

reproduz – se simula! – o conjunto das condições que originam um

fenómeno que se deseja explicar? Ora, levando a sério a analogia, o que a

IA-forte precisa de fazer para responder positivamente ao critério da

relevância epistémica é exactamente o mesmo que qualquer químico faz

no seu laboratório, a saber, simular as operações que uma mente realiza e

esperar que da simulação resulte o mesmo comportamento manifesto.

Conseguindo-o, tal simulação vale, com toda a propriedade, como uma

explicação do comportamento mental.

Com isto, julgamos rebater o argumento de Searle – temos que, por

princípio, nada obsta a que uma simulação computacional explique

causalmente um fenómeno simulado. O ponto sensível reside em

deslocar a simulação para o nível das causas, não a deixando ficar no

nível dos efeitos. Dito de outro modo: deixando que os efeitos sejam

também efeitos numa simulação.

Não obstante, falta ainda demonstrar que o que a IA-forte faz é

simular causas e não simular efeitos. Com efeito, uma coisa é afirmar que

196

o pode fazer, que por princípio nada obsta a tal; outra, bem diferente, é

mostrar que o faz, e como o faz.

Para isso, argumentaremos da seguinte forma: se admitirmos que

parte significativa das nossas vidas mentais consiste em realizar

operações algorítmicas pelas quais de certas crenças e desejos se inferem

outras crenças e desejos – chamemos a isto ‘pensar’ –, então devemos

reconhecer que parte significativa das nossas vidas mentais pode ser

sujeita a uma descrição computacional ao nível de operações.

Por exemplo, creio que 2+2=4 porque realizo certa operação,

descritível em termos estritamente lógico-sintácticos, a que chamamos

‘soma’. Quem define a soma nesses termos pode também definir a

multiplicação, a exponenciação nesses termos. Replicar-se-á que essas

operações são formais. Seja. Mas quando afirmo ‘creio que amanhã

estará um bom dia’, ‘desejava simpatizar com aquela pessoa’, ‘creio que

fizeste mal ao proceder assim’, etc., que mais estamos a fazer que a

processar crenças e desejos de acordo com certas operações

algorítmicas? Ao perguntarmos por que cremos no que cremos, porque

desejamos o que desejamos, respondemos, em regra, com outras crenças

e desejos é certo, mas apenas porque aquelas se seguem destas sob

alguma operação descritível em termos estritamente sintácticos.

Justificar uma crença ou um desejo mais não é do que explicitar o modo

como se computam certas crenças e/ou desejos. Donde, ser parte bastante

significativa das nossas vidas mentais aquela a que podemos dar uma

descrição computacional.

Ora, se pudermos simular essas operações num computador, então,

se dessa simulação resultar o mesmo comportamento, temos dada uma

explicação causal do comportamento das mentes. Indo ao nervo da

questão, nós só simulamos computacionalmente operações mentais

porque tais operações mentais são vividas conscientemente como

operações computacionais. É porque são vividas justamente como

operações computacionais que uma sua simulação ganha poder

explicativo.

Há, contudo, três observações que vêm limitar, mas de forma

alguma eliminar, o alcance epistémico da IA-forte.

197

Em primeiro lugar é, a nosso ver, claro que nada disto faz com que

um computador compreenda o que quer que seja. Para tal necessário

seria descobrir a operação de que resulta a compreensão. Só assim,

teríamos o que simular. Por outro lado, quando os computadores simulam

compreensão e consciência, pelo menos aqueles que conhecemos, apenas

simulam um efeito não estando, evidentemente, a dar nada que valha

como explicação genuína da compreensão e da consciência. Mesmo

descobrindo-se o processo real que determina uma compreensão

consciente, necessário seria, para que explicássemos esta, que tal

processo fosse privilegiadamente descritível em termos computacionais,

fosse vivido assim, o que não é o caso. Logo, não há nenhuma boa razão

para pensar que se possa explicar através de uma simulação

computacional a compreensão e a consciência humanas. Que aquela

simule estas, isso é evidentemente possível; que as explique, isso é que

não parece, a nosso ver, de todo sustentável.

Em segundo lugar, temos que é habitual considerar que as

justificações são sempre a posteriori. Isso poderá significar que as

operações que constam das nossas justificações não tenham sido de facto

as operações que determinaram as crenças e desejos que assim

justificámos. Mas, mesmo que não sejam realmente computacionais as

operações que determinam as nossas mudanças de estado mental, se é o

caso que justificamos tais mudanças de estado mental em termos

sintáctico-computacionais, e se é o caso que essas justificações podem

influir em, condicionar, mesmo determinar, novas mudanças de estados

mentais, então não é, de todo, dispiciendo assinalar um poder causal

nessas justificações. Por outras palavras, uma interpretação sintáctico-

computacional de um sistema como a mente, pese embora o facto de

apenas ser atribuída a posteriori, e de forma exterior, a esse sistema (cuja

descrição intrínseca resume-se a termos estritamente físicos), pode, ainda

assim, inscrever-se nas operações físicas que determinam, seja

causalmente seja por sobreveniência, as nossas mudanças de estado

mental. Muito intuitivamente, é difícil não aceitar que, uma vez

encontrada por mim a justificação para uma crença ou um desejo de que

eu me reconheça portador, mesmo uma acção de que eu seja autor, tal

198

justificação não valha como parte da determinação de ocorrências futuras

dos mesmos crença, desejo e acção. Uma derradeira forma de expor este

ponto: a fundamentação com que me muno, mesmo que a posteriori,

pouca valia teria – valia não só epistémica mas prática – se não pudesse,

de algum modo, tornar-se fundação.

Se isto afiança o programa da IA-forte enquanto explicação, por

simulação computacional, do “pensar” – na medida em que este seja

computacional –, salvaguarda, porém, um plano de determinação desse

mesmo “pensar” que não é computacional; que, pelo menos, não o é da

mesma maneira que as justificações que nos damos144. A determinação

computacional é real, quando sucede, mas só o é justamente por que se

traduz numa determinação física. Por conseguinte, não é sequer aceitável,

a nosso ver, que todo o “pensar” – pense-se, em particular, naquele que

resulta exclusivamente por evocação – possa ser explicado através de

uma simulação computacional. Nestes termos, é claro que o esforço

reflexivo de uma mente pode ser pensado como o de fazer com que todas

as suas mudanças de estado sejam resultado de inferências; mas, seria

absurdo afirmar que resultem sempre assim, inferencialmente, mesmo

que não possam ser explicadas sem se afirmar, uma vez sequer, que

resultem assim. Admitir a realidade da determinação sintáctico-

computacional não significa, de todo, fazê-la substituir a determinação

física.

144 Isto indica que se devem distinguir dois níveis da vida mental, um tematizável como computacional, outro, mais básico, que deveremos ainda procurar explicitar. Desenvolveremos este ponto adiante. Todavia, é possível desde já dar uma indicação desta distinção. Se admitirmos que, tal qual as crenças e os desejos, também os algoritmos que realizamos são adquiridos, pelo menos em parte, em função de circunstâncias como a cultura e a educação – ao fim e ao cabo, é uma evidência que ao ensinarmos ensinamos, sobretudo, a pensar –, então devemos reconhecer que os cérebros podem realizar diferentes funcionamentos mentais (pelo menos diferentes naquilo que seja educável), designadamente diferentes operações computacionais. Ou seja: um mesmo cérebro, como o seu funcionamento físico, pode realizar diferentes funcionamentos computacionais. Aspectos conhecidos da neurologia como a plasticidade do cérebro apontam no sentido de uma relativa indeterminação de base que permite uma realizabilidade múltipla – longe de se poder dizer universal – de funcionamentos sintáctico-computacionais de uma mente. Note-se que esta realizabilidade múltipla define-se com um orientação down-up da base para o topo, e não, como é habitual, com uma orientação up-down do sobreveniente para o subveniente.

199

Por fim, uma terceira observação limitativa do alcance da IA-forte

consiste na desvinculação entre uma descrição sintáctico-computacional

e a descrição de estados mentais. Note-se que aqui já não está em causa

saber se é possível explicar computacionalmente a compreensão

consciente ou a mudança de estado mental, mas tão-só se, nesses termos,

é possível responder à pergunta ‘o que é um estado mental?’. Veremos,

em seguida, através da análise de mais um argumento de Searle, que a IA

não é capaz de responder a essa pergunta.

Fica, no entanto, para encerrar este ponto, a formulação resumida

do conjunto de três restrições – chamemos-lhe Princípio das três

restrições – ao alcance da IA-forte:

Primeira restrição – Não visar explicar a compreensão e a

consciência de uma mente humana.

Segunda restrição – Não visar explicar toda a mudança de estado

mental, mas tão-só aquela que se reporte ao pensar computacional,

designadamente inferindo proposições a partir de outras

proposições.

Terceira restrição – Não visar explicar como chega a haver uma

mente, mas restringir-se a explicar a mudança de estado mental.

5. Searle versus dependência consciência/comportamento

a) Consciência e comportamento

Face à terceira restrição que acabamos de formular ao alcance do

programa da IA-forte, a discussão assume, do ponto de vista conceptual,

uma feição inteiramente distinta – deverão os estados mentais ser

originariamente entendidos em termos funcionais?

Este é justamente o tipo de questão que John Searle coloca a

respeito do funcionalismo enquanto teoria que visa explicar o mental. E

nos seus termos, o que importa é desde logo «pôr em causa a concepção

200

de acordo com a qual o mental tem uma ligação interna importante com o

comportamento»145. Nesse sentido, expõe uma experiência de

pensamento, com dois desenvolvimentos distintos:

Suponha-se que o suporte material dos processos cerebrais que

explicam os estados mentais e as funções entrada/saída num indivíduo é

alterado, através de intervenções que operem à substituição progressiva

do suporte por componentes de silício, sem que isso acarrete, pelo menos

conceptualmente, qualquer alteração dos estados mentais e das funções

entrada/saída. Até aqui, nada temos que não milite a favor do

funcionalismo da mente.

Suponha-se agora os seguintes desenvolvimentos. Em primeiro

lugar, que tal intervenção visa preservar os desempenhos

comportamentais e sua adequação aos estímulos de entrada, apesar de

uma perda progressiva de consciência por parte do sujeito. Em segundo

lugar, que tal intervenção conduz à perda de toda a expressão

comportamental, apesar de o sujeito permanecer perfeitamente

consciente.

Ora, o que estas experiências de pensamento procuram ilustrar é notório:

(1) É conceptualmente possível considerar um cérebro que perca a

consciência até ao ponto de se encontrar em morte mental sem, por

isso, deixar de preservar as funções entrada-saída exteriormente

observáveis.

(2) É conceptualmente possível, se não mesmo empiricamente

verificável, considerar um cérebro que perca toda a expressão

comportamental sem, por isso, deixar de haver estados mentais

conscientes.

Atendendo ao facto de que são três os termos em jogo – os processos

cerebrais, os estados mentais conscientes, as funções entrada/saída de

estímulos/comportamentos – formalizemos, para efeitos de maior

simplicidade, os termos em conjunção num triplo ordenado.

145 «Initially the aim (…) is to challenge the conception of the mental as having

some important internal connection to behaviour.» (Searle, 1992: 65 (tr.: 87))

201

(c,m,f) : é o triplo ordenado composto por um processo cerebral, um

estado mental consciente e uma função entrada/saída ou

estímulo/comportamento, respectivamente.

Ora, de acordo com Searle, tanto é possível considerar um triplo

ordenado (c, m, f) em que m é nada – o que corresponde à situação (1) –

como um triplo ordenado (c, m, f) em que f é nada – o que corresponde à

situação (2).

Face a estes resultados, conclui Searle que a existência de funções

entrada/saída entre estímulos e comportamento não é condição suficiente

nem necessária para a existência de estados mentais. Logo, procurar

explicar os estados mentais por meio daquelas funções resulta numa

tarefa espúria – «Ontologicamente falando, o comportamento, o papel

funcional e as relações causais são irrelevantes para a existência de

fenómenos mentais conscientes.»146 Nestes termos, Searle presume, e a

nosso ver bem, refutar o funcionalismo enquanto teoria da experiência

mental.

Contudo, a partir desta conclusão, Searle avança um pouco mais,

designadamente propondo um princípio que denomina princípio da

independência da consciência e do comportamento. Para esse efeito,

começa por sistematizar a sua posição crítica face ao funcionalismo em

três pontos:

A maioria dos filósofos que venho criticando aceitaria as duas seguintes

proposições:

1. Os cérebros causam fenómenos mentais conscientes;

2. há uma espécie de ligação conceptual ou lógica entre os fenómenos

mentais conscientes e o comportamento exterior.

Mas o que as experiências de pensamento ilustram é que estas duas

proposições não podem ser defendidas consistentemente com uma

terceira:

3. A capacidade do cérebro de causar a consciência é conceptualmente

distinta da sua capacidade de causar o comportamento motor. Um sistema

146 «Ontologically speaking, behaviour, functional role, and causal relations are

irrelevant to the existence of conscious mental phenomena.» (Searle, 1992: 69 (tr.:91))

202

poderia ter consciência sem comportamento e comportamento sem

consciência.

Mas, dada a verdade de 1. e 3., temos de renunciar a 2. Assim, o

primeiro ponto a derivar das nossas experiências de pensamento é aquilo a

que poderíamos chamar “o princípio de independência da consciência e do

comportamento”.147

A rejeição justificada da proposição 2. vale como uma refutação do

funcionalismo, pois tal proposição está pressuposta na tese funcionalista

de que o comportamento, entre outros desempenhos causais já referidos,

é parte essencial da definição de qualquer estado mental. Posto isto, se o

comportamento não é condição suficiente nem necessária de nenhum

estado mental, então evidentemente não participa da definição deste. O

problemático não reside, a nosso ver, neste ponto. Reside antes na

afirmação searliana de um princípio da independência da consciência e

do comportamento. Em concreto, a objecção que se colocará resume-se à

salvaguarda, por assim dizer, de algum modo de causalidade entre os

estados mentais conscientes (m) e o comportamento manifesto (f). Isto

não quer dizer, de forma alguma, que os estados mentais se definam pelo

comportamento nem sequer que este seja condição suficiente ou

necessária daqueles. Daí que a presunção de refutação do funcionalismo,

nos termos que Searle expõe, não seja beliscada. O que está em jogo é

uma aparente simetria que Searle encontra entre comportamento e mente

que deixaria de exprimir uma relação causal entre esses dois termos. E é

esta a objecção, no fundo a exigência de uma maior precisão, que se

coloca – embora haja comportamento sem consciência e consciência sem

147 «Most of the philosophers I have been criticizing would accept the following

two propositions: 1. Brains cause conscious mental phenomena. 2. There is some sort of conceptual or logical connection

between conscious mental phenomena and external behaviour.

3. The capacity of the brain to cause consciousness is conceptually distinct from its capacity to cause motor behaviour. A system could have consciousness without behaviour and behaviour without consciousness.

But given the truth of 1. and 3., we have to give up 2.. So the first point to be derived from our thought experiments is what we might call “the princip le of the independence of consciousness and behaviour”.» (Searle, 1992: 69 (tr.: 92))

203

comportamento, há que salvaguardar que a consciência (ou seja, os seus

estados mentais) causa comportamento, sem que a conversa seja

verdadeira.

b) Princípio da não implicação e Princípio da dependência relativa

Ora, para justificar a nossa tese de que a consciência causa, de

algum modo, comportamento, trataremos de mostrar, em primeiro lugar,

que, contrariamente ao que afirma o princípio de Searle, há uma efectiva

dependência entre consciência e comportamento ou, mais exactamente,

entre estados mentais conscientes e funções entrada/saída.

Sejam dois triplos ordenados (c1,m1,f1) e (c2,m2,f2). Assumindo,

por 1., que os cérebros causam fenómenos mentais conscientes;

assumindo, por 3., que os cérebros causam o comportamento motor

exterior; então, temos que consciência e comportamento são ambos

efeitos causais do cérebro. Assumindo, por fim, o suposto causal de que

às mesmas causas não se podem seguir efeitos diferentes, então, podemos

inferir, de acordo com as proposições 1. e 3. de Searle, que:

i) se f1 e f2 são idênticos e m1 e m2 são diferentes, então c1 e c2

terão, necessariamente, de ser diferentes;

ii) se f1 e f2 são diferentes e m1 e m2 são idênticos, então c1 e c2

terão, necessariamente, de ser diferentes;

iii) se f1 e f2 são diferentes e m1 e m2 são diferentes, então c1 e c2

terão, necessariamente, de ser diferentes;

iv) se f1 e f2 são idênticos e m1 e m2 são idênticos, então c1 e c2

poderão ser ou idênticos ou diferentes.

Note-se que i), ii) e iii) decorrem do facto de efeitos diferentes, seja no

que respeita ao comportamento, sejam no que respeita ao estado mental

consciente, não poderem ter as mesmas causas. Já iv) decorre do facto de

diferentes causas poderem produzir o mesmo efeito.

Note-se, por outro lado, que o emprego dos termos “efeito” e

“causa” é um emprego excessivamente liberal. Na verdade, como

podemos defender no nosso Cap. II, rigorosamente, e contra a proposição

204

1. de Searle, não é o caso que os estados cerebrais causem estados

mentais. Há efectivamente uma determinação, mas não causal; antes,

uma determinação por sobreveniência. Em todo o caso, para os

objectivos do argumento de Searle contra o funcionalismo, bem como

para os objectivos da nossa objecção ao princípio da independência, esta

precisão de dois tipos de determinação, uma causal e outra por

sobreveniência, não faz diferença no que respeita a i)-iv). Isto, porque do

mesmo modo que se admitiu uma assimetria causal – os mesmos efeitos

podem ser determinados por causas diferentes, mas as mesmas causas

não podem determinar efeitos diferentes –, também se admite, nos termos

de uma covariação que as mesmas sobreveniências podem ser

determinadas por diferentes subveniências, ainda que as mesmas

subveniências não possam determinar sobreveniências diferentes.

Esquematicamente, temos então o seguinte quadro de dependências:

Retomemos, agora, as duas situações que decorrem da experiência

de pensamento de Searle:

Primeira situação – uma qualquer função entrada/saída ou

estímulo/comportamento pode estar, como não estar, conjugada com um

estado mental consciente. Isto é quanto basta, de acordo com Searle, para

refutar o funcionalismo.

Ora, atendendo ao nosso quadro de dependências, podemos

estabelecer que se c1 causa f1 e m , por um lado, e se c2 só causa f2, por

outro, então c1 c2 (mesmo que os f’s sejam idênticos), pois os efeitos,

na sua globalidade, são diferentes, pelo que não podem ter sido

determinados pelas mesmas causas. Dito de outro modo: se temos

(c1,m,f1) e (c2,~m,f2), então f1=f2 c1 c2.

Efeitos f1-f2 = ≠ = ≠

m1-m2 = = ≠ ≠

Causas c1-c2 = ou ≠ ≠ ≠ ≠

205

Assim, apesar de não haver, do ponto de vista conceptual,

nenhuma dificuldade em fazer fracassar um teste de Turing, seria de todo

impossível fazer fracassar um duplo teste que, além de testar f1=f2,

verificasse c1c2..

Significa isto que f não é indiferente, do ponto de vista causal, a m.

Caso ocorra m1=m2, não é necessário que c1c2 para que f1=f2. Mas caso

se verifique que m1m2, então será necessário que c1 c2 para que f1=f2.

É claro, assim, que apesar de f não ser condição suficiente (sequer

necessária) de m, se verifica que f depende de alguma maneira de m.

Segunda situação – um qualquer estado mental pode estar, como

não estar, conjugado com uma função entrada/saída nos termos expostos

por Searle. Formalmente, obtêm-se os triplos ordenados: (c1,m1,f) e

(c2,m2,~f).

Ora, pelas mesmas razões, podemos inferir nestas conjunções que

m1=m2 c1 c2.

Significa isto que m não é indiferente, do ponto de vista causal, a f.

Caso ocorra f1=f2, não é necessário que c1 c2 para que m1=m2. Mas caso

se verifique que f1f2, então será necessário que c1 c2 para que m1=m2.

É claro, assim, que apesar de m não ser condição suficiente (nem

necessária) de f, se verifica que m depende de alguma maneira de f.

Concluindo, tem-se então que, diversamente do que Searle afirma

sob a forma de princípio, não existe uma independência da consciência e

do comportamento. Pelo contrário, consciência e comportamento, ou

ainda, estados mentais conscientes e funções entrada/saída, encontram-se

numa dependência recíproca, ainda que se trate evidentemente de uma

dependência relativa, mais exactamente, relativa aos processos cerebrais

que “causam” (na verdade, determinam) os estados mentais e,

subsequentemente, o comportamento. Por estas razões, propomos

substituir o Princípio da independência da consciência e do

comportamento searliano por dois outros princípios: o Princípio da não

206

implicação mente-comportamento (PNI) e o Princípio da dependência

relativa mente-comportamento (PDR), cujos enunciados são

PNI: Um sistema pode dispor de estados mentais conscientes sem, por

isso, estar implicada qualquer função estímulo/comportamento; um

sistema pode dispor de funções estímulo/comportamento sem, por isso,

estarem implicados quaisquer estados mentais.

PDR: Num sistema, qualquer variação nos estados mentais não

acompanhada por uma variação nas funções estímulo/comportamento

implica uma variação no suporte material do sistema; o mesmo é

implicado em qualquer variação das funções estímulo/comportamento não

acompanhada por uma variação nos estados mentais.

6. A hipótese da Linguagem do Pensamento

A hipótese da linguagem do pensamento (doravante LOTH), vulgo

mentalês, tal como é apresentada inicialmente por Jerry Fodor, deixa-se

formular nos termos de um argumento: o facto de as linguagens naturais

serem aprendidas envolve uma cadeia de pressupostos que terminam na

implicação de uma linguagem prévia não aprendida. Mais em particular,

a aprendizagem dos significados dos predicados empregues numa dada

Língua não se faz sem que tais predicados e suas condições de verdade

sejam representados numa outra Língua. Nas palavras de Fodor:

Aprender uma língua (incluindo, é claro, uma primeira língua) involve

aprender o que é que significam os predicados da língua. Aprender o que é

que significam os predicados da língua envolve aprender uma

determinação da extensão desses predicados. Aprender a determinação da

extensão desses predicados envolve aprender que eles se subsumem a

certas regras (i.e., regras de verdade). Mas uma pessoa não pode aprender

que P se subsume a R a não ser que tenha uma linguagem na qual P e R

possam ser representados. Assim, uma pessoa não pode aprender uma

linguagem a não ser que possua uma linguagem. Em particular, uma

pessoa não pode aprender uma primeira língua a não ser que já disponha

207

de um sistema capaz de representar os predicados nessa língua e as suas

extensões. E, sob pena de circularidade, tal sistema não pode ser a língua

que está a ser aprendida. Mas, as primeiras línguas são aprendidas. Então,

pelo menos algumas operações cognitivas são levadas a cabo em outras

linguagens que não as linguagens naturais. 148

De uma forma bastante simples, permitimo-nos resumir o

argumento à afirmação do seguinte: conhecer uma palavra de uma língua

(aprendendo-a) pressupõe, necessariamente, reconhecer o seu significado

noutra língua. É forçosa a aceitação deste pressuposto? É relativamente

claro, na aprendizagem de uma segunda língua – por exemplo, um falante

de português que aprende Inglês –, que as significacões dos predicados

não são aprendidas sem que haja uma representação na língua natural

desses predicados e das suas condições de verdade. Por exemplo,

aprendo o significado de ‘is green’ porque me represento, na minha

língua natural, o predicado ‘é verde’ e as suas condições de verdade.

Mesmo quando não existe uma correspondência imediata entre o

predicado na língua que aprendo e o predicado na minha língua primeira,

posso representar aquele dando dele uma descrição definida na minha

língua. Confrontando a satisfação das condições de verdade numa língua

e noutra língua acabo por estabelecer uma correspondência razoável e,

mais importante, razoavelmente controlável149. Nestes termos, o

problema da aprendizagem de uma segunda língua traz implícitos os

problemas da tradução entre línguas.

148 «Learning a language (including, of corse, a first language) involves learning what the predicates of the language mean. Learning what the predicates of the language mean involves learning a determination of the extension of these predicates. Learning a determination of the extension of the predicates involves learning that they fall under certain rules (i.e., truth rules). But one cannot learn that P falls under R unless one has a language in which P and R can be represented. So one cannot learn a language unless one has a language. In particular, one cannot learn a first language unless one already has a system capable of representing the predicates in that language and their extensions. And, on pain of circularity, that system cannot be the language that is being learned. But first languages are learned. Hence, at least some cognitive operations are carried out in languages other than natural languages.» (Fodor, 1975: 63-64)

149 Naturalmente, há que ter aqui em conta os conhecidos problemas, suscitados por Quine, em torno da indeterminação da tradução. Donde, falarmos apenas em termos de razoabilidade. A tradução diz-se indeterminada no sentido em que não pode ser completamente determinada, não no sentido em que não possa sequer ser relativamente determinada.

208

Ora, isto avaliza o argumento de Fodor no sentido em que a

aquisição de uma segunda língua pressupõe uma língua primeira –

conhecemos aquela, reconhecendo-a nesta. Contudo, o argumento

reporta-se à aquisição de uma primeira língua, e o que afirma é que a

aprendizagem desta requer uma outra língua. Perguntar-se-á, mas se é

assim, também essa língua pressuposta – a linguagem do pensamento –

não deveria pressupor outra e assim em diante num regresso ao infinito?

A isto, Fodor responde negativamente, pois já não se trata de uma língua

aprendida, mas tão-só de uma língua que se conhece. Na verdade, não é

preciso reconhecer o que já se conhece. O ponto da pressuposição não se

prende, pois, com o facto de haver, ou não, uma língua, mas com o da

sua aprendizagem. É a aprendizagem, e não a língua que se aprende, que

pressupõe um língua outra.150

a) LOTH: discussão de objecções

Esta resposta levanta duas dificuldades. Por um lado, a mesma

objecção de um regresso ao infinito pode, porém, estear-se noutro

aspecto linguístico que não a aprendizagem, a saber, a compreensão. Vê-

lo-emos adiante. Por outro lado, se a LOTH não é uma linguagem

aprendida, perguntar-se-ia se, com isso, Fodor quer dizer que se trata de

uma linguagem inata ou, em alternativa, que se trata de uma linguagem

adquirida, ainda que de um modo diverso da aprendizagem. Esta

segunda dificuldade só pode ser resolvida através da anulação da

alternativa, ou seja, reconhecendo que a LOTH é inata embora a sua

semântica seja adquirida. Supor que a semântica da LOTH fosse inata, ou

seja que os seus conceitos e suas significações fossem inatos, resumiria

um absurdo inaceitável; supor que a LOTH enquanto realização cerebral

não fosse algo da ordem da natureza e não da ordem do cultural, embora

enformável por esta, contradiria a própria hipótese avançada por Fodor.

Em The Language of Thought, Fodor parece, as mais das vezes, não ter

150 «My view is that you can’t learn a language unless you already know one. It

isn’t that you can’t learn a language unless you’ve already learned one.» (Fodor, 1975: 65)

209

evitado, pelo menos de forma clara, a armadilha da alternativa, a ponto

de afirmar o carácter inato de toda a semântica de LOTH151, o que resulta

altamente inverosímil, se não absurdo152. Como Aydede clarifica, a

hipótese da LOTH não exige nenhum compromisso com a tese de que a

semântica de LOTH seja inata153. Fodor juntou as duas, o que Aydede

chega a qualificar como um “infortúnio histórico”154, quando a primeira

pode susbistir sem a segunda. No entanto, é o próprio Fodor que dá

indicações precisas sobre o modo como a semântica da LOTH pode ser

adquirida, pese embora o carácter inato de LOTH. Com efeito, Fodor

reconhece que se pode pensar a LOTH como dispondo de estados de

maior ou menor diferenciação semântica, e entendendo tal diferenciação

como sendo determinada pelo ambiente155.

151 Cf. Fodor, 1975: 82-97. Ilustrativamente – «...At least one of the languages

which one knows without learning is as powerful as any language that one can ever learn.» (Fodor, 1975: 82)

152 John Searle caricatura, entre muitos outros autores que também o fizeram, o

erro de tomar como exclusiva a disjunção entre natureza e cultura, entre inato e adquirido – «Another form of incredibility, but from a different philosophical motivation, is the claim that each of us has at birth all of the concepts expressible in any words of any possible human language, so that, for example, Cro-Magnon people had the concepts expressed by the word ‘carburetor’ or by the expression ‘cathod ray oscillograph’. This view is held most famously by Fodor (1975)». (Searle, 1992: 249n).

153 «However, it should be emphasized that LOTH is not per se committed to

such a strong version of nativism, especially about concepts. It is certainly plausible to assume that LOTH will turn out to have some empirically (as well as theoretically/a priori) motivated nativist commitments especially about the structural organization and dynamic management of the entire representational system. But this much is to be expected especially in the light of recent empirical findings and trends of contemporary cognitive and developmental psychology as well as psycholinguistics. This, however, does not constitute a reductio. On the other hand, LOTH is by no means committed to the innateness of all concepts or even some of them. It is an open empirical question how much nativism is true about concepts, and LOTH should be so taken as to be capable of accommodating whatever turns out to be true in this matter. LOTH, therefore, when properly conceived, is independent of any specific proposal about conceptual nativism.»(Cf. Aydede, 1998)

154 «It is historically unfortunate that Fodor ran his arguments for the innateness

of all concepts in the same book (1975) in which he first elaborated and defended LOTH in such a way that the connection between LOTH and an implausibly strong version of nativism looked very much internal. As a result, this historical coincidence has led some people to think that LOTH is essentially committed to a very strong version of nativism, so strong in fact that it seems to make a reductio of itself (see, for instance, P.S. Churchland 1986…).» (Cf. Aydede, 1998)

155 Fodor admite logo em The Language of Thought esta possibilidade – «The

view presently being proposed doesn’t require that the innate conceptual system must literally be present “at birth”,only that it not be learned. (…) The environment may have a role to play in determining the character of one’s conceptual repertoire quite distinct

210

Face a este problema, julgamos que o equívoco que boa parte dos

críticos da proposta de Fodor comete (e que o próprio Fodor não soube

clarificar de uma forma cabal em The Language of Thought) terá residido

em supor que ao se afirmar que conhecer uma primeira língua envolve

necessariamente o seu reconhecimento na LOTH ter-se-ia de afirmar

também qualquer coisa como ‘uma diferença só será reconhecível em

LOTH se já for conhecida em LOTH’. Ora, se, ao invés, admitirmos que

a especificação semântica de novas significações se faz por uma

progressiva diferenciação de significações prévias, mais ou menos

indiferenciadas, e, no limite, de um conjunto de significações básicas

inatas ou, mesmo, de uma única significação inteiramente indeterminada,

então o pressuposto de que só se aprende uma significação linguística em

virtude de um seu reconhecimento noutra língua, em particular em LOTH

não vem colidir com o poder desta de proceder à aquisição de novas

significações.

Seja por exemplo o nome ‘pai’ que uma criança aprende nos seus

primeiros passos linguísticos. De acordo com uma generalização

espontânea, a criança julgará, a princípio, que todos os pais se chamam

‘pai’. Depois, só depois, e em virtude de uma progressiva diferenciação,

é que aprenderá que pai só há um e que cada um tem o seu. De certo

modo, ganhará em precisão o que a decepção lhe ensinar. Admitindo isto,

então o que começa por ser reconhecido em LOTH não será o significado

real de ‘pai’, a palavra que consta dos dicionários de Português, mas um

significado bastante indeterminado. E é só depois, em função da

interacção com o ambiente, do bom e mau uso que a criança vai fazendo

da palavra, uso controlado por utentes competentes – por exemplo, o

próprio pai da criança – que se obterá, na própria LOTH, a necessária

diferenciação para que sejam erradicados os maus usos da palavra. Daí, a

necessidade da criança experimentar a palavra; fazê-lo não é realmente

experimentar algo porque aprendeu, antes é aprender porque

experimentou. O ponto, note-se bem, consiste em transferir o essencial

from its role in fixing the set of concepts that one’s repertoire contains…»(Fodor, 1975: 96)

211

do processo de aprendizagem para a própria LOTH. É nesta e não na

língua a aprender que se faz realmente a aprendizagem da significação

das palavras, de quais são as suas condições de verdade. Desta forma,

não é, de todo, aceitável supor que, pelo facto de LOTH ser inata, ela não

adquira novas significações; não as adquirisse ela, e nenhuma língua

poderia ser aprendida! Assim, e em termos mais próximos aos empregues

por Fodor, a representação da extensão de um predicado é de facto

reconhecida em LOTH, mas tão-só de uma forma indeterminada,

sucedendo que a sua determinação se faz a posteriori e no seio de LOTH.

Simplesmente, isto não se faz sem que se possa prescindir da

pressuposição de uma semântica já dada, por mais indiferenciada que

seja. Donde, Fodor não descrever a sua LOTH como sendo dotada apenas

de uma sintaxe, mas também ainda de uma semântica. As representações

mentais da LOTH são, de acordo com a presunção de Fodor,

representações de algo, acerca de algo, portanto, dotadas de

intencionalidade156. A nosso ver, não poderia ser de outro modo, pois

sem uma semântica não haveria o que reconhecer naquilo que se aprende;

a própria aprendizagem não teria qualquer sentido.

Agora, esta postulação de uma sintaxe e de uma semântica sujeitar-

se-ia, aparentemente, às objecções de Searle, já analisadas atrás, sob a

forma do argumento do quarto chinês – se a semântica envolve algum

tipo de compreensão, então, se as operações sintácticas não são as

apropriadas para gerar compreensão, não se tem que essas operações

numa LOTH possam conferir-lhe uma semântica. E a isto Fodor,

aparentemente, não daria resposta. Em particular, a denúncia de uma

falácia de ignoratio elenchi na objecção de um regresso ao infinito

centrado na noção de compreensão, não responderia ao ponto crucial em

discussão – como pode Fodor atribuir uma semântica a estados cerebrais?

156 Jackendoff explica o ponto da seguinte forma – «Fodor intends that LOTH

has a syntax (in the broad sense) and a semantics. The expressions in LOTH are mental representations, and they represent something: entities in the world. Put differently, Fodor insists that LOTH is intentional: it is about something. Fodor admits that his view is intensely problematic: after all, how do expressions in the head make contact with the things they are supposed to be about? Fodor (1991), for example, aspires to develop a “naturalized” semantics, that is, “to say in nonsemantic and nonintentional… terms what makes something a symbol”.» (Jackendoff, 2002: 279)

212

Mas não é bem isso que se verifica. No que toca à objecção, Fodor

dissocia a compreensão de predicados da representação das suas

extensões. A seu ver, a compreensão não envolve tal representação; só a

aprendizagem a envolve157. Nisto, não mostramos desacordo; aliás,

defendemos mesmo que a aprendizagem faz-se porque, previamente, se

tem obtida a compreensão. Contudo, isto só nos diz que a compreensão

não exige algo, não nos diz porque há compreensão; diz-nos que algo não

é necessário para que haja compreensão, não diz o que é necessário para

que haja compreensão.

Servirá esta insuficiência para refutar a hipótese da LOTH?

Julgamos que não, pois não é o caso que Fodor afirme que a semântica é

gerada sintacticamente. E se não é esse o caso, então a argumentação de

Searle falha o alvo. Fodor afirma – digamos que com o estatuto de

postulados – que a LOTH possui uma sintaxe e, além disso, uma

semântica. É claro que a pergunta ‘como pode Fodor atribuir uma

semântica a estados cerebrais?’ permanece sem resposta; mas não será

isso o bastante para que devamos interditar a atribuição de uma

semântica a estados cerebrais. Mesmo Searle não afirma outra coisa – a

semântica deve poder ser explicada causalmente a partir de processos

cerebrais. O criticismo incide apenas numa abordagem sintáctico-

computacional de tais processos. Mas Fodor, repetimos, não infere a

semântica da sintaxe, postula ambas.

Este ponto é particularmente sublinhado por Aydede a propósito da

discussão do alcance do projecto de Fodor em proceder a uma

naturalização da intencionalidade. Esta deve, de algum modo, poder ser

naturalizada. Nisso, quer Fodor quer os seus críticos, designadamente

Searle, estão de acordo. Só que o que Fodor realmente leva a cabo nesse

esforço de naturalizar a intencionalidade resume-se a expor duas ideias:

por um lado, que as operações sintácticas preservam as propriedades

semânticas e, por outro, que há uma racionalidade implementada ao nível

157 «What I said was that learning what a predicate means involved representing

the extension of that predicate; not that understanding the predicate does. A sufficient condition for the latter might be just that one’s use of the predicate is always in fact conformable to the truth rule.» (Fodor, 1975: 65)

213

das representações internas da LOTH. Mas, em momento algum, Fodor

dá uma resposta ao suposto problemático subjacente a estas ideias, a

saber, como chega a haver uma semântica em LOTH, como chegam as

representações internas a ser efectivamente representações

intencionais.158 Em termos muito abreviados: o programa de

naturalização da intencionalidade de Fodor não explica, de facto, a

intencionalidade e a semântica; simplesmente explica de que modo

aspectos sintácticos influem na semântica, de que modo esta é preservada

através de operações sintácticas, mas isto sempre sob a suposição de que

haja semântica.

O ponto relativamente ao qual Fodor permanece inteiramente em

silêncio, de acordo com Aydede, é justamente o velho problema

conhecido na literatura filosófica mais recente pela designação ‘Desafio

de Franz Brentano’159. O mesmo autor acrescenta ainda uma segunda

forma de colocar o problema, ou melhor, de mostrar como Fodor não

responde ao problema de fundo. Distinguindo-se entre símbolos atómicos

e símbolos moleculares160, i.e, reconhecendo-se que para além dos

primeiros há símbolos compostos e, por isso, dotados de uma estrutura

158 «Fodor, the most ardent defender of LOTH, once identified the major mysteries in philosophy of mind thus:

«How could anything material have conscious states? How could anything material have semantical properties? How could anything material be rational? (where this means something like: how could the state transitions of a physical system preserve semantical properties?).»

LOTH is a full-blown attempt to give a naturalist answer to the third question, is an attempt to solve at least part of the problem underlying the second one, and is almost completely silent about the first.» (Aydede, 1998: 14)

159 «But where do the semantic properties of the mental representations come

from in the first place? How is it that the syntactically structured symbols represent anything? How can they mean anything? How is (original) intentionality possible in a world composed of pure matter? This is Brentano's challenge to a naturalist.» (Aydede, 1998: 22). Cf. Brentano, 1874: 88-89.

160 «There are two levels or stages at which this question can be raised and answered:

(1) At the level of atomic (simple) symbols: how do the atomic symbols represent what they do?

(2) At the level of molecular (phrasal complexes or sentences) symbols: how do molecular symbols represent what they do?»

(Aydede, 1998:24)

214

sintáctica, é possível reconhecer que as propriedades semânticas destes

últimos estão dependentes das suas propriedades sintácticas; indo um

pouco mais longe, é possível, dadas as representações atómicas e as

operações sintácticas, determinar o que representam esses símbolos

moleculares, quais as suas condições de verdade, qual a sua semântica.

Ora, a este nível a hipótese da LOTH revela um efectivo poder

explicativo. Só que nada diz, a um nível infra, acerca do modo como os

símbolos atómicos chegam a representar alguma coisa – «LOTH

simplesmente assume que os símbolos/expressões atómicos na LOTH de

alguém têm os significados, sejam quais forem, que têm»161.

Significa isto que:

i) o projecto de naturalização da intencionalidade é um projecto

válido;

ii) o projecto particular, digamos assim, que Fodor leva a cabo de

naturalização da intencionalidade é parcial; diz apenas respeito

a símbolos moleculares, os quais podem ser interpretados como

“frases” da LOTH, não deixando por isso de pressupor já a

intencionalidade das representações mentais atómicas;

iii) nada é dito sobre como naturalizar as representações

atómicas.162

Outro tipo de objecção a que Fodor procura dar resposta denuncia

que a hipótese da LOTH em mais não consiste que em admitir que haja

uma linguagem privada, o que não deveria poder ser aceite em virtude do

célebre argumento de Wittgenstein contra as linguagens privadas. Neste

161 «The official line doesn't propose any theory about the first stage, but simply assumes that the first question can be answered in a naturalistically acceptable way. In other words, officially LOTH simply assumes that the atomic symbols/expressions in one's LOTH have whatever meanings they have.» (Aydede, 1998: 24). «Naturalizing intentionality is something about which LOTH is officially silent at least at the level of atomic symbols.» (Ibidem) «But, the official line continues, LOTH has a lot to say about the second stage, the stage where the semantic contents are computed or assigned to complex (molecular) symbols on the basis of their combinatorial syntax or grammar together with whatever meanings atomic symbols are assumed to have in the first stage.» (Ibidem)

162 «Naturalizing intentionality is something about which LOTH is officially silent at least at the level of atomic symbols.» (Aydede, 1998:24)

215

ponto, Fodor não enjeitará a ideia de que a LOTH seja uma linguagem

privada; antes procurará limitar o alcance do argumento de Wittgenstein,

de tal modo que não impeça, de facto, a existência de linguagens

privadas, mas que venha afirmar tão-só que não é possível determinar se

nestas, em virtude do seu carácter privado, o uso dos termos é, ou não,

consistente. Por outras palavras: o argumento de Wittgenstein, de acordo

com a interpretação de Fodor, apenas demonstra que só num plano de

procedimentos públicos (portanto, não privados), em que se verifique que

um termo é bem empregue, se pode saber que esse termo é bem

empregue. Não demonstra, em suma, que o uso dos termos não é

coerente, pois pode haver um uso coerente sem que se disponha de um

critério público que o verifique. Pode-se ter x, mesmo que não se possa

verificar x.163

b) LOTH: sistematicidade, produtividade e racionalidade

Discutido este conjunto de objecções, introduziremos em seguida

alguns aspectos que uma fenomenologia do pensar facilmente consegue

explicitar – a sistematicidade, a produtividade e a racionalidade do

pensar – e que militam a favor da hipótese de uma LOTH.

A sistematicidade e a produtividade da linguagem são espelhadas

no pensamento. Entende-se por sistematicidade das “frases” do

pensamento o facto de as partes que as compõem se encontrarem numa

relação sistemática. Por exemplo, quem pensa e diz que o João ama a

Maria é igualmente capaz de pensar e dizer que a Maria ama o João – ou,

em geral, as relações Amar(a,b) e Amar(b,a), ou, ainda mais

genericamente, R(a,b), R(b,a), S(a,b,c), S(b,a,c), S(c,a,b), etc. E isto 163 «As many philosophers have pointed out, the most that the argument shows is that unless there are public procedures for telling whether a term is coherently applied, there will be no way of knowing whether it is coherently applied. But it doesn’t follow that there wouldn’t in fact be a difference between applying the term coherently and applying it at random. A forteriori, it doesn’t follow that there isn’t any sense to claiming that there is a difference between applying the term coherently and applying it at random. These consequences would, perhaps, follow on the verificationist principle that an assertion can’t be sensible unless there is some way of telling whether it is true, but surely there is nothing to be said for that principle.» (Fodor, 1975: 70)

216

apenas porque tais frases vêem os seus significados determinados em

virtude do modo como os elementos que as compõem se encontrem

combinados. Com efeito, João amar Maria não significa o mesmo que

Maria amar o João; o primeiro pensamento pode ser verdadeiro e o

segundo ser falso, bem como, obviamente o contrário. Naturalmente, tal

variação na significação prende-se com as propriedades sintácticas das

frases. Ora, se estas devem ser explicadas de um ponto de vista

materialista, se devem ter um correspondente cerebral, então necessário

se torna atribuir propriedades sintácticas a esse correspondente cerebral.

Braddon-Mitchell e Frank Jackson resumem o ponto da sistematicidades

nestes termos:

Se os exemplares (tokens) físicos no cérebro que codificam proposições

não possuíssem estrutura interna, se a estrutura que codifica a proposição

expressa pela frase ‘aRb’ [ou assim: R(a,b)] não possuísse uma relação

sistemática com a estrutura que codifica a proposição expressa pela frase

‘bRa’[R(b,a)], difícil seria ver por que razão isto deveria ser assim.164

Por outro lado, admitindo que a vida mental consiste numa

sequência de atitudes proposicionais, isto permite um tratamento destas

como dispondo de uma forma lógica que é realizada cerebralmente na

sintaxe das representações mentais da LOTH. A este respeito, Fodor

defende que as atitudes proposicionais são objectos complexos, dotados

de partes165; que estão relacionados de acordo com uma certa forma

lógica – diferentes atitudes proposicionais podem exibir a mesma forma

lógica (por exemplo, a crença de que não existe unicórnios e a crença de

164 «If the physical tokens in the brain that encode propositions had no internal

structure, if the structure that encodes the prooposition expressed by the sentence ‘aRb’ had no systematic relationship with the structure that encodes the proposition expressed y the sentence ‘bRa’, it is hard to see why this should be so.» (Braddon-Mitchell & Jackson, 1996: 166)

165 Fodor, 2002: 15.

217

que não existem anjos)166; e que sobrevêm às relações sintácticas de uma

LOTH167.

Já a produtividade prende-se com a capacidade que um utente de

uma qualquer língua dispõe de produzir frases que nunca proferiu e de

compreender frases que nunca escutou. Naturalmente, tal produtividade

resulta da natureza combinatorial das frases, ou seja, da sua estrutura

sintáctica. É também por isso que nos é possível dizer um número

indefinido de frases a partir de um número finito de elementos. Ora, esta

característica da produtividade das línguas não só se encontra também no

nosso pensar168 como dificilmente se deixaria explicar naquelas se não se

encontrasse no pensar. Note-se, pois, que a produtividade e a

sistematicidade não são apenas algo que se verifica quer nas línguas quer

no pensar; são algo cuja ocorrência nas línguas só se explica, em tese,

pela sua ocorrência no pensar. De que modo? Simplesmente, com vimos

acima, por sobreveniência.

Além deste compromisso com a tese da sobreveniência, importa

dar conta da relação da hipótese da LOTH com o funcionalismo. Embora

haja um pressuposto base comum quer à hipótese da LOTH quer à

proposta do funcionalismo do computador, a saber, uma mesma

abordagem sintáctico-computacional, entre as duas há a assinalar pelo

menos uma importante diferença. Enquanto o funcionalismo descreve um

dado estado mental, um desejo por exemplo, nos termos do seu papel

causal, o qual é reconduzido à descrição do comportamento do sistema,

assumindo esta descrição como explanans do estado mental, já de acordo

com a hipótese da LOTH o comportamento do sistema, em vez de

explicar, é explicado pelo estado, o qual, por seu turno, se deixa

reconduzir à descrição das operações computacionais internas ao sistema.

166 Fodor, 2002: 14-15. 167 «The logical form of a propositional attitude supervenes on the syntax of the

mental representation that corresponds to it.» (Fodor, 2002: 17) 168 «Supporters of the language of thought hypothesis point out that if thought is

like language in having a syntax, then we can explain the productivity of thought in the same way as we explain the productivity of language.» (Braddon-Mitchell & Jackson, 1996: 167)

218

Nos termos de Frank Jackson e Braddon-Mitchell, para Fodor não será o

caso de que, por exemplo, o desejo de chocolate seja desejo de chocolate

porque cause um comportamento de busca de chocolate; diversamente, é

o estado mental de desejo de chocolate «que causa o comportamento de

busca de chocolate porque é um desejo de chocolate»169. Outro modo de

exprimir esta diferença consiste em reconhecer que o funcionalismo

dispõe de uma orientação de explicação de fora para dentro, ao passo

que a LOTH orienta as suas explicações de dentro para fora. Recorrendo

uma vez mais a Braddon-Mitchell e a Frank Jackson, temos que:

Os teóricos da linguagem do pensamento avançam com uma história

dentro-fora que identifica o objecto proposicional independentemente do

papel funcional, e vê as frases de mentalês que codificam a proposição

como determinantes, em parte, do papel funcional. O funcionalismo, por

contraste, é uma história fora-dentro que vê o papel funcional como

determinante do objecto proposicional.170

Não obstante, o facto de estas duas orientações divergirem,

trocando o explanans pelo explanandum, não opõe realmente a hipótese

da LOTH ao funcionalismo, apenas expõe que estas duas perspectivas

teóricas assumem, de um ponto de vista epistémico, pontos de partida

distintos. Na verdade, a proposta de Fodor vem inscrever o

funcionalismo do computador na própria materialidade, digamos assim,

do cérebro, ao procurar descortinar neste, de uma forma empírica,

processos que possam ser interpretados como operações sintáctico-

computacionais. Neste sentido, e como bem nota Murat Aydede, uma das

169 «According to functionalism, the role played determines the propositional

object (…). But accordingly to the language of thought account, functional role primarily settles whether the state is a belief or a desire, not what its propositional object is. (…) The direction of explanation is the reverse of that which obtains in the case of functionalism. The desire for chocolate is not the desire for chocolate because, roughly, it (typically) causes chocolate-seeking behaviour. For Fodor, the state causes chocolate-seeking behaviour because it is a desire for chocolate.» (Jackson & Braddon-Mitchell, 1996: 165)

170 «The language of thought theorists advances na inside-out story that

identifies the propositional object independently of the functional role, and sees the sentence of mentalese that encodes the proposition as in part determining the functional role. Functionalism, by contrast, is an outside-in story that sees the functional role as determining the propositional object.» (Jackson & Braddon-Mitchell, 1996: 165-166)

219

teses que compõem a hipótese da LOTH, consiste na afirmação de um

materialismo funcionalista – «as representações mentais (...) são, num

certo nível adequado, entidades funcionalmente caracterizáveis que são

realizadas pelas propriedades físicas do sujeito que possui atitudes

proposicionais (se o sujeito é um organismo, então as propriedades

realizadoras serão presumivelmente as propriedades neurofisiológicas no

cérebro ou o sistema nervoso central do organismo).»171

c) LOTH: conformação ao Princípio das três restrições

A hipótese da LOTH mostra-se perfeitamente consentânea com as

três restrições que indicámos atrás para uma teoria computacional da

mente e, por maioria de razão, para o programa da IA-forte.

Reformulamos essas restrições:

Primeira restrição – Não visar explicar a compreensão e a consciência de

uma mente humana.

Segunda restrição – Não visar explicar toda a mudança de estado mental,

mas tão-só aquela que se reporte ao pensar computacional,

designadamente inferindo proposições a partir de outras proposições.

Terceira restrição – Não visar explicar como chega a haver uma mente,

mas restringir-se a explicar a mudança de estado mental.

Face à primeira destas restrições, Fodor trata de postular a

semântica em vez de a inferir da sintaxe. Desta forma, não se

compromete com a tese de que a compreensão, envolvida na semântica,

seja de natureza sintáctico-computacional.

171 «Functionalist Materialism. Mental representations so characterized are, at

some suitable level, functionally characterizable entities that are realized by the physical properties of the subject having propositional attitudes (if the subject is an organism, then the realizing properties are presumably the neurophysiological properties in the brain or the central nervous system of the organism).» (Cf. Aydede, 2002; também Aydede 1998)

220

Quanto à segunda restrição, há que notar que é claramente

assumida em Fodor (2002), mas, além disso, que já o era desde Fodor

(1975)172.

Por fim, a terceira restrição decorre da segunda. Se há mudanças de

estados mentais que não são explicáveis sintacticamente, então não é o

caso que a sintaxe possa, por si só, causar estados mentais. Sobre o que

causa, ao certo, os estados mentais, logo dotados, quando intencionais, de

uma semântica, Fodor nada diz; no entanto, se há um outro nível que

deva ser tematizado, isso não significa que seja ilegítima, dentro dos

limites que as nossas restrições prescrevem, a diferenciação proposta pela

hipótese da LOTH entre um plano sobreveniente, já mental, dotado de

forma lógica e um plano subveniente, ainda neural, dotado de relações

sintácticas.

172 «Mental states, insofar as psychology can account for them, must be the consequences of mental processes. Mental processes, according to the view that we’ve been entertaining, are processes in which internal representations are transformed. So, those mental states that psychology can account for are the ones that are the consequences of the transformation of internal representations. How many mental states is that? The main argument of this book has been that it comes to more than none of them. The present point, however, it also comes to less than all of them.» (Fodor, 1975: 200)

221

VI

Compreensão

Abordámos atrás problemas relativos à causalidade mental, mais

em particular, ao processo de mudança de estado mental enquanto

processo descritível em termos computacionais. Nesse quadro geral,

procurámos, no Cap. anterior, reconduzir a proposta funcionalista aos

termos de uma teoria acerca da dinâmica da mente, retirando-a do

âmbito problemático sobre o que seja um estado mental. Para isso

argumentámos pela insuficiência de uma definição funcional dos

estados mentais. A existência de uma feição qualitativa em todo e

qualquer estado mental e o problema da ocorrência simultanânea de

estados mentais valem, a nosso ver, como aspectos que inerem à plena

definição de um estado mental e que, no entanto, não são susceptíveis

de esclarecimento através de uma análise funcional. O princípio das

três restrições que apontámos quer ao programa da IA-forte quer à

hipótese da LOTH são outros indicadores dos limites de uma

satisfatória apreensão por parte do funcionalismo, lato sensu, quer do

que seja um estado mental quer do que seja a mudança de estado

mental. Já, por outro lado, rejeitámos o ponto de criticismo face ao

funcionalismo que alega, genericamente, que o funcionalismo nem

sequer é conciliável com uma teoria adequada da causalidade mental.

Reportámo-nos em particular à argumentação de John Searle,

designadamente aos seus argumentos do quarto chinês, da inexistência

de sintaxe no mundo físico e da independência da consciência face ao

comportamento.

Com o presente Cap., procuraremos mostrar que a todo o

processo cognitivo algorítmico subjaz um processo básico, estabelecer

alguns dos princípios fundamentais pelos quais se realiza este processo

básico e, ainda, como se torna possível inscrever o computacionalismo

da mente nesse processo.

222

1. Penrose e o argumento da partida de xadrez

Roger Penrose, matemático de formação, celebrizou-se nas

últimas décadas, muito para lá do seu domínio de especialidade, em

virtude de um conjunto de teses controversas quanto à possibilidade de

uma nova física, ponte entre a macrofísica einsteiniana e a microfísica

quântica, e quanto à possibilidade de residir nessa física “intermédia” a

solução para o problema eminentemente filosófico acerca da natureza

da consciência e da compreensão.

Tradicionalmente, os programas da Inteligência Artificial têm

partilhado a ideia de que a inteligência e a compreensão humanas são

de natureza computacional ou, ao menos, são de tal natureza que

podem ser simulados computacionalmente. Por computação, entende-se

aquelas operações que qualquer computador realiza, ou seja, o

resultado do cálculo (não necessariamente aritmético) através de um

algoritmo. Por exemplo, uma partida de xadrez jogada por um

computador. Ora, o que Roger Penrose defende é que o jogador

humano de xadrez não joga xadrez da mesma maneira que o

computador; ao contrário deste, joga não computacionalmente. Isto não

significa que o computador não nos possa vencer; pelo contrário,

tenderá a vencer-nos tanto mais quanto maior for a sua capacidade de

computar, mas isso tão-só por se tratar de um jogo computacional.

Mais precisamente, em que consiste computar? Roger Penrose

responde com exemplos matemáticos. Peça-se para determinar um

número que não seja a soma de três números quadrados.

Computacionalmente, proceder-se-á passo por passo (experimentando o

cálculo, segundo a ordem dos números naturais) até se encontrar o

número que de facto não seja a soma de três números quadrados.

Agora, se este exemplo encontra resposta ao sétimo passo, outros há em

que, pelo mesmo modo de proceder passo por passo, se verifica que a

computação é interminável. Por exemplo, se se pedir para determinar

223

um número que não seja a soma de quatro números quadrados. Ora, que

este cálculo é impossível esse é um teorema do matemático Joseph-

Louis Lagrange (1736-1813). Mas como o alcançou ele, se

computacionalmente o cálculo prosseguiria infindavelmente sem se

poder decidir sobre a possibilidade ou impossibilidade de determinar

um tal número que não fosse a soma de quatro números quadrados?

Poderia Lagrange dispor (ou simplesmente qualquer pessoa que

compreenda o seu teorema) de um outro algoritmo com que computasse

o resultado do teorema? De acordo com Penrose não. Em primeiro

lugar, porque, segundo a sua interpretação do famoso teorema da

incompletude de Gödel (1906-1978)173, «o procedimento

computacional não poderá compreender a totalidade do raciocínio

matemático para decidir se determinadas computações não

terminam»174; assim, e em segundo lugar, se Lagrange chega a

compreender o seu teorema e qualquer outra pessoa chega a

compreender Lagrange tal compreensão não deverá ser alcançada

computacionalmente. Desta forma, um teorema matemático mostrar-se-

ia relevante para uma das mais antigas teses sobre as mentes humanas,

a saber, que estas fazem o que nenhuma máquina poderá simular – e

que nessa diferença estão contidas todas as características que mais

distintivamente atribuímos às mentes humanas como a criatividade, a

liberdade, a intuição, etc. De certo modo, como que reafirmando as

razões de Descartes no séc. XVII, embora com outras noções,

designadamente a de máquina – já não a ideia de uma mecanismo

universal, mas a de realizações da máquina ideal de Turing.

Outra importante diferença, aliás também relativamente a muitos

pensadores contemporâneos, consiste no facto de tal impossibilidade –

173 «Na sua forma original o teorema de Gödel encontra-se no trabalho ‘Acerca

de Proposições Indecidíveis dos Principia Mathematica e sistemas relacionados’. Simplificando o seu resultado, o teorema diz que se adoptar para a aritmética um sistema formal como foi aí apresentado, se este sistema for consistente ... existe uma proposição que é verdadeira e que não é demonstrável no sistema. Deste resultado segue-se ainda um segundo teorema, esta agora acerca da consistência do sistema, segundo o qual nãoo é possível realizar uma demonstração da consistência do sistema formal recorrendo apenas aos meios do próprio sistema.» (Lourenço, 2001: 681)

174 Penrose, 1997: 118.

224

a da compreensão humana poder ser simulada por uma máquina de

Turing – não resultar de uma qualquer natureza intrínseca da mente que

a tornasse irredutível ao mundo físico. Bem diferentemente, tal

impossibilidade, a resultar, resultaria do facto de haver sistemas físicos

não simuláveis por uma máquina de Turing, isto é, haver sistemas

físicos não computacionais (mas nem por isso indeterministas) e que a

mente humana seria apenas um desses sistemas. Mais em particular, a

respeito da estrutura física da mente, Penrose propõe que haja um nível

quântico de computação cerebral que se processaria nos microtúbulos

que se encontram junto às sinapses entre neurónios, e que esse nível

não seria simulável como pretendem os programas da IA. Esta tese a

respeito dos microtúbulos é de difícil sustentação para muitos

investigadores, sobretudo por ser pouco crível que nesses microtúbulos

estejam dadas as condições de isolamento exigidas. Mas essa é a tese

mais científica de Penrose, caberá à experimentação infirmá-la ou

corroborá-la.

Em termos filosóficos, importaria sobretudo sublinhar duas

grandes teses: que a tese da não computabilidade, em Penrose, é

primeiramente uma tese física – «Procuramos na física a não-

computabilidade que faça a ligação entre os níveis quântico e

clássico»175 – , e só depois dirá respeito à mente humana. Trata-se

primeiramente de rejeitar a ideia de que toda a acção física é

reconduzível à acção de uma máquina de Turing, e, em segundo lugar,

que a compreensão humana é um desses processos não simuláveis. É,

pois, exteriormente à mente que Penrose procura provar uma

especificidade não computacional da mente que tem sido

tradicionalmente defendida de um ponto de vista de dentro –

«necessitamos não só de uma nova física, mas também de que esta

nova física seja relevante para a actividade do cérebro»176.

Por mais controversas que sejam as respostas que Penrose propõe

desde Emperor’s New Mind, 1989 (A Mente Virtual na ed. Port. da

175 Penrose, 1997: 109. 176 Ibidem.

225

Gradiva), e Shadows of the Mind, 1994 (com recepções muito críticas

de destacados filósofos como Daniel C. Dennett177 e Hilary Putnam) até

The large, the small and the human mind, 1997, o certo é que

constituem hoje um marco incontornável na discussão de problemas

como o de saber se a matemática e a física têm algo a contribuir para

uma explicação científica da mente humana, se esta explicação exige a

constituição de uma nova física, se o mistério da consciência humana

não está de certo modo associado ao mistério de uma nova física.

2. Discussão do argumento de Penrose

Em A Ideia Perigosa de Darwin (Darwin’s Dangerous Idea,

1995), Daniel Dennett acusa Penrose de ter cometido o erro,

relativamente trivial, de ignorar certa classe de algoritmos a que não se

aplicam as consequências do teorema da incompletude de Gödel.

Segundo Dennett, tratar-se-ia da classe dos algoritmos “arriscados”, a

que justamente atribui o principal papel no quadro da Inteligência

Artificial.

É exactamente nisto que as pessoas da inteligência artificial acreditam:

que existem algoritmos arriscados, heurísticos, para a inteligência

humana em geral, tal como há para jogarem bem às damas e ao xadrez e

para milhares de outras tarefas. E foi aqui que Penrose cometeu o seu

grande erro: ignorou este conjunto de algoritmos possíveis – o único

conjunto de algoritmos com que a inteligência artificial alguma vez de

preocupou – e concentrou-se no conjunto de algoritmos sobre os quais o

teorema de Gödel nos diz algo.178

177 Por exemplo – «Penrose propõe uma revolução na física, centrada numa

nova teoria, ainda não formulada, da “gravidade quântica”, que ele espera que explique como o cérebro humano transcende as limitações dos algoritmos. Penrose pensa que o cérebro humano, com os seus especiais poderes de física quântica, é um gancho celeste ou uma grua?» (Dennett, 1995: 447)

178 Dennett, 1995: 440.

226

Ora, sem contrariar a veracidade do facto apontado por

Dennett179 – a saber, que certos algoritmos arriscados, heurísticos,

escapam à limitação imposta pelo teorema de Gödel –, não é, a nosso

ver, o caso que Dennett possa extrair algumas das consequências que

julga poder extrair desse mesmo facto. Reportamo-nos, sobretudo, a

duas ideias que deverão ser contrariadas. Por um lado, a de que pelo

facto de uma realização da inteligência humana ser simulável pela

inteligência artificial isso signifique de alguma forma que aquela deva

ser de natureza computacional180 – ora, não se vê nenhuma razão de

princípio para reconhecer que algo computacionalmente simulável deva

ser, por isso, computacional.181 Por outro lado, que a formulação de um

qualquer critério com que se possa discernir entre inteligência humana

e inteligência artificial deva situar-se no plano de uma avaliação das

realizações.

179 Stan Franklin é outro autor que aponta a Penrose o facto de se ter esquecido

dos algoritmos heurísticos – «Não estará aqui em causa uma confusão entre níveis de abstracção? Nas minhas aulas de IA focamos frequentemente a programação heurística, os programas que geralmente dão a resposta certa mas em que não há a certeza de que o façam. Em todas as aulas, procuro inquietar os meus estudantes com a questão seguinte: Como é que um programa destes pode ser heurístico correndo num computador que só opera algoritmicamente? A resposta que pretendo aponta para uma diferença entre níveis de abstracção. Um programa de IA que realize uma pesquisa heurística no espaço de um problema está simplesmente a executar um algoritmo a um nível automático. Nada garante que este algoritmo encontre o estado-objectivo. Num nível superior de abstracção está a realizar uma pesquisa heurística.» (Franklin, 1995: 152)

180 «Some of this research has been heralded by critics as the death knell of

Artificial Intelligence or, more specifically, the symbol-crunching variety known as GOFAI – Good Old Fashioned Artificial Intelligence (…), and the impression has been created in many quarters that non-linear neural networks have wondrous powers altogether off-limits to mere computers, with their clunky, brittle algorithmic programs. But what many fans of neural networks have overlooked is the fact that the very models they advertise to prove their point are computer models, not just strictly deterministic but even, down in the engine room, algorithmic. They are non-algorithmic only at the highest level.» (Dennett, 2003:106).

181 «Comecemos por deixar claro que a crítica do paradigma computacional

não significa negar a importância dos computadores digitais na simulação de modelos de fenómenos cognitivos. Na perspectiva dinamicista que apresentaremos como alternativa, o computador digital é um instrumento imprescindível para a simulação e estudo do sistema dinâmico abstracto que modela o fenómeno cognitivo. Simplesmente, utilizar computadores para simular qualquer processo não significa admitir que esse processo faz computação. Tal como, por se poder calcular com um computador a trajectória de um projéctil, não se segue que esse projéctil computa a trajectória, também pelo facto de se poder simular modelos de fenómenos cognitivos não se segue que esses fenómenos sejam computação.» (Costa, 2001: 68)

227

Procederemos à discussão do problema em três etapas. Em

primeiro lugar, e radicalizando a posição de Dennett, procurar-se-á

defender que nenhuma realização da inteligência humana estará, por

princípio, fora do alcance da capacidade de simulação da inteligência

artificial. Nestes termos, não resulta possível encontrar um critério

positivo de discriminação entre o que seja inteligência artificial e o que

seja inteligência humana. Nada obriga a que, por princípio, um teste de

Turing fracasse.182

Contudo, após este primeiro ponto, procurar-se-á mostrar que,

ainda assim, é possível discernir muito claramente em que se distingue

a inteligência expressamente computacional de uma outra

distintivamente humana e fá-lo-emos não por um confronto directo

entre computadores e mentes humanas, mas pela identificação dessa

diferença entre duas formas de inteligência no seio das próprias mentes

humanas.

Com estes dois pontos, poderemos então, numa terceira etapa,

considerar que o debate sobre os limites da inteligência artificial deverá

ser reformulado – não se tratará de saber se há alguma coisa que as

mentes humanas façam e que um computador, por princípio, não possa

fazer, mas, se no seio das mentes humanas há evidência de uma

inteligência não computacional ou, ao menos, não expressamente

computacional, i.e, uma inteligência que se distinga não por obter

resultados diferentes da inteligência artificial mas por os obter

diferentemente.

Para estes efeitos, retome-se o exemplo do jogo de xadrez,

frequentes vezes empregue por Penrose e não menos vezes discutido,

em profícua réplica, por Dennett. Mais em particular, retome-se uma

certa circunstância de jogo em que o computador faz uma jogada de

pouca valia em virtude, segundo a análise do matemático183, da sua

natureza computacional. Em concreto, a circunstância de jogo

tematizada por Penrose é aquela, já em final de jogo, em que um dos

182 Este ponto é retomado, em boa medida, do nosso Cap. VIII. 183 Penrose,1997: 109-111.

228

jogadores se encontra em manifesta inferioridade quanto ao valor das

peças podendo apenas evitar a derrota se preservar intacta a sua barreira

de peões, o que o conduzirá a um lisonjeiro empate. De acordo com

Penrose, mesmo bons Softwares de jogo de xadrez cairiam na

“esparrela”, digamos assim, de sacrificar a consistência da sua barreira

defensiva de peões por uma troca aparentemente vantajosa de um peão

por uma peça mais valiosa, uma torre por exemplo. Este erro de jogo é

atribuído por Penrose à incapacidade do Software em fazer o que a

inteligência humana faz, avaliar o jogo na sua totalidade.

Obviamente, o exemplo de Penrose é um deplorável exemplo –

qualquer pessoa pode experimentar com um qualquer mediano

Software de xadrez se o seu adversário artificial cairá na esparrela de

desfazer a sua barreira defensiva a troco de um ilusório ganho

momentâneo e verificará que tal não sucede com a maioria dos diversos

Softwares com alguma qualidade disponíveis no mercado a preços

muito aceitáveis. Mas mesmo que não se queira enveredar por esta via

de argumentação, menos elevada do ponto de vista conceptual, não é

mais difícil demonstrar, em termos estritamente conceptuais, por que

razão o argumento de Penrose se revela claramente insuficiente.

Imagine-se que o programador do Software de jogo de que

Penrose nos fala tenha lido o seu O grande, o pequeno e a mente

humana, onde é descrita esta grave falha. Naturalmente preocupado

com eventuais reclamações por falta de qualidade do seu produto,

receando mesmo que lhe fosse exigida a devolução do dinheiro com ele

gasto, se não mesmo indemnizações pelas razões mais diversas, a sua

mais imediata acção seria pensar como corrigir o produto. E, nesse

sentido, julgamos poder presumir que concluiria uma de duas: ou

desenvolve o poder do Software em antecipar lances, computando

cursos alternativos de jogo em número suficiente para que no cálculo

do valor da jogada o Software reconheça o desastre que seria, a prazo,

um imediato ganho na troca de um peão da barreira defensiva por um

torre, ou limita-se a “colar” ao programa principal do Software uma

rotina que prescreva muito simplesmente um valor tanto maior de

229

conservação da barreira defensiva quanto maior for a inferioridade em

termos de valor de peças numa determinada fase do jogo.

A primeira das duas alternativas tornaria o Software mais

“inteligente”, mas inafortunadamente ou ter-se-ia que também o

processador que faz correr o programa seria muito mais rápido ou então

a inteligência do Software demorararia uma eternidade por lance a se

revelar. Daí, permita-se o aparte, que não abone muito a favor da

inteligência de um Software os seus lances eternizarem-se; daí, muitas

vezes, cedermos à impaciência, quando há essa opção, de um nível

mais fácil de jogo (um medium ou um easy em detrimento de um hard).

Para ultrapassar estas contingências que em grande medida ultrapassam

o programador, pode ele muito bem decidir-se pela segunda alternativa,

a de criar uma solução bem mais simples, e bem mais frequente,

consistindo na aplicação de rotinas e subrotinas ao Software para

determinadas circunstâncias de jogo (como aberturas,

desenvolvimentos e finais de jogo). Ora, esta via resolve de pronto e

sem grandes custos tecnológicos a grande falha computacional que

Penrose julgava ter encontrado. O programador, aliás, mostrar-se-ia

certamente muito agradecido por quaisquer outras falhas do mesmo

quilate que Penrose quisesse fazer o favor de apontar, conquanto para

isso existam bons manuais de xadrez, cuja qualidade se atesta por

exporem justamente um conjunto de instruções de sucesso quanto à

avaliação das diferentes fases de uma partida de xadrez.

Com isto, perguntar-se-ia, onde param as razões de Penrose se

não se verifica haver alguma capacidade humana em jogar xadrez que

não possa ser simulada pela inteligência artificial? Haveremos de as

reencontrar, pelo menos algumas, bastando para isso prosseguir o

argumento.

Eu sou um modestíssimo jogador de xadrez e vez por outra ainda

acalento a esperança de melhorar o meu desempenho. Com esse fito, lá

vou espiolhar os poucos manuais de xadrez que guardo na minha

estante em busca das importantes técnicas de avaliação da posição das

peças no tabuleiro que distinguem o meu modesto desempenho de

outros melhores que o meu. Chamemos a estas formas de avaliação

230

instruções de sucesso e, entre estas, uma é certamente aquela que

prescreve o alto valor da barreira defensiva de peões em circunstâncias

de jogo desfavoráveis. Há, naturalmente, muitíssimas outras; no

essencial, os manuais de xadrez distinguem-se, entre si, pela qualidade

do conjunto de instruções de sucesso que comunicam. Agora, isto vem

a propósito de um facto, digamos psicológico, embora crucial para o

nosso argumento, com que me deparo sempre que me dedico ao estudo

destes manuais – é que me sucede uma de duas possibilidades: ou

aprendo a aplicar a instrução de sucesso de forma adequada, com

proveito para o meu desempenho; ou, além disso, compreendo a

instrução de sucesso no seu alcance, apreendendo as razões que a

justificam enquanto instrução de sucesso.

O escrutínio entre estas duas possibilidades de estudo de um

manual de xadrez coloca-se igualmente, sem que incorra numa

generalização abusiva, para qualquer outro manual e reflecte, aliás,

também duas atitudes no ensino bem distintas. Por exemplo, tratando-

se de ensinar alguém a jogar um jogo, há duas formas de o ensinar.

Numa, ensina-se a proceder de certa forma quando sucede tal e tal, e a

proceder de uma outra forma quando sucede algo diferente. Na outra,

diz-se ‘experimenta assim, e vê o que sucede’, ‘experimenta agora

desta maneira, e vê o que sucede diferentemente’. As duas formas

ensinam a ganhar uma partida, mas só a segunda ensina a jogar

propriamente o jogo. Ora, é justamente a esta diferença que apelamos

para distinguir entre o componente computacional da inteligência e

algo mais que nos faz, por exemplo, desejar jogar um jogo. Por outras

palavras: digam-me que, por princípio, um computador pode fazer tudo

o que eu faço – há boas razões, as de Dennett por exemplo, para crer

que sim. Mas creio também que, por princípio, um computador nunca o

fará da mesma maneira que eu. Quais são as minhas razões? É que eu

também sei fazer de computador, basta que eu jogue um jogo

limitando-me a dominar as suas regras e instruções de sucesso,

obedecendo às primeiras aplicando as segundas – serei então como um

computador. Mas que absurdo seria pensar que alguém desejaria jogar

um jogo desta maneira!

231

Ora, a aprendizagem computacional de um conjunto de

instruções de sucesso distingue-se da aprendizagem propriamente

humana por não requerer nenhuma compreensão das instruções que se

aprende – bastará aprender a reconhecer as circunstâncias em que é

pertinente a aplicação da instrução de sucesso e, depois, aprender a

aplicá-la de forma adequada. Não será necessário, de todo,

compreender nenhuma das instruções de sucesso. Por exemplo, faça eu

de mim mesmo um jogador de xadrez que defronta outro jogador

humano. Como jogo menos bem que o meu adversário poderíamos

admitir que eu pudesse consultar um manual durante o jogo. Caso tal

não fosse eticamente admissível aos olhos do meu adversário, eu

também poderia memorizar um manual de xadrez – poder-se-ia, então,

concluir muito razoavelmente que eu estaria em condições de vencer o

meu adversário de circunstância, mas que de forma alguma, em

circunstância alguma, eu estaria em condições de me considerar alguém

capaz de vencer realmente o jogo. Levando a diferença a que se apela

aqui ao extremo de uma formulação paradoxal, dir-se-ia que não é por

eu vencer um jogador adversário, mesmo todos os jogadores que me

queiram defrontar, que se concluirá uma vez sequer que eu venci o

jogo; e também que não é por vencer o jogo que me posso autorizar a

concluir que estou capaz de vencer, uma vez sequer, um qualquer

jogador. Os computadores, por exemplo, derrotam jogadores, mas

nunca vencerão o jogo. Eu, por exemplo, venço o jogo quando tenho o

gozo de o compreender.

3. Atitude computacional e atitude compreensiva

Antes do debate das teses de Roger Penrose (iniciado com o The

Emperor’s New Mind, de 1989), a distinção que vimos elaborando entre

dois níveis de problemas, um computacional outro compreensivo, no

que respeita à inteligência humana, foi cabalmente formulada por Ray

Jackendoff em Consciousness and the Computational Mind (1987),

232

onde se discrimina, no quadro da problematização clássica de

Descartes, um problema mente/corpo computacional de um problema

mente/corpo fenomenológico, o primeiro ligado à questão ‘Como é que

um cérebro raciocina?’, e o segundo à questão ‘Como é que um cérebro

pode ter experiência?’. A estes dois problemas, Jackendoff acrescenta

ainda um terceiro acerca da relação entre os dois anteriores, em busca

de uma resposta à questão ‘Qual a relação entre estados computacionais

e experiência?’ – tendo a este chamado problema mente-mente 184.

No presente momento não procuramos explicar como chega a

haver experiência, muito menos como chega a haver computação, nas

mentes humanas. Apenas se procura esclarecer qual é a relação, se é

que há alguma, entre a experiência, designadamente a experiência da

compreensão, e a cognição mental. Neste sentido, interessa-nos

sobretudo, empregando as distinções de Jackendoff, dar resposta ao

problema mente-mente.

Que é que se argumentou até ao presente momento?

Primeiramente, que não há razões de princípio que impeçam a

capacidade da inteligência artificial simular qualquer resultado da

inteligência humana. Não obstante, e em segundo lugar, que a diferença

entre as duas formas de inteligência permanece legítima. Em terceiro

lugar, que tal distinção, longe de opor computadores e humanos, opõe,

isso sim, duas formas das mentes humanas serem inteligentes. Usámos

a título de ilustração a nossa experiência de estudo de manuais para dar

conta dessas duas formas diferentes de inteligência, diferença que se

deixa atestar pregnantemente em duas atitudes que podemos adoptar

face a um jogo. Evidentemente, as consequências que extraímos no que

respeita aos jogos deixam-se generalizar a quaisquer outras actividades

inteligentes. Pense-se num exercício aritmético simples – 33=?.

Computacionalmente, poderemos realizá-lo por que sabemos que três

elevado à potência de três equivale à multiplicação 3x3x3 e que, feito o

184 «Consequently, Descartes’ formulation of the mind-body problem is split into twoo separate issues. The “phenomenological mind-body problem” … is, How can a brain have experiences? The “computational mind-body problem” is, How can a brain accomplish reasoning? In addition, we have the mind-mind problem, namely, what is the relationship between computational states and experience?» (Jackendoff, Ray, 1987: 20 ; citado de Varela et al.., 1991: 52)

233

cálculo destas multiplicações, o qual por seu turno se deixa reduzir a

simples adições (3+3+3)+(3+3+3)+(3+3+3), obteremos o valor 27.

Compreenderemos a exponenciação pela relação que mantém com a

multiplicação; compreenderemos a multiplicação pela relação que

mantém com a adição; compreenderemos a adição pela relação que

mantém com a ideia de número. Compreendemos os passos

computacionais pela análise da sua complexidade, isto é, pela sua

recondução a séries de computação mais simples. Mas nem sempre

assim sucede. Por exemplo, sucede com frequência sabermos que as

equações de segundo grau (da forma ax2+bx+c=0) se resolvem por uma

fórmula – a fórmula resolvente –, mas não sucede com menos

frequência aplicarmos essa fórmula sem conhecermos a sua

demonstração. Nesse caso, o nosso registo de inteligência é

estritamente computacional. Uma criança no início da sua escolaridade,

empregando outro exemplo ainda mais elementar, pode memorizar toda

a tabuada da multiplicação e empregá-la com sucesso em operações

aritméticas mais complexas sem compreender efectivamente por que

razão quando diz que 8x8=64 de facto é assim e não de outro modo.

O mais curioso é que esta diferença, a que temos feito apelo,

entre duas inteligências não difere da que tem sido expressa desde os

alvores da Filosofia e, mais claramente ainda, no livro A da Metafísica

de Aristóteles185, entre a experiência (empeiria) e a ciência (a episteme,

mas mesmo a techné), o saber que (hóti) e o saber porque (dióti). O

próprio estagirita tem o cuidado de fazer notar que não há

necessariamente maior realização no saber-porque do que na

experiência-que, pelo que a discriminação entre ambos pode não ser

atestável pelas suas realizações. O ponto está na presença ou ausência

de razões que respondam à pergunta ‘porquê assim e não de outra

forma?’, ou, empregando o termo que mais nos convém, na presença ou

ausência de compreensão. Supor que Aristóteles saiba dar uma resposta

adequada ao debate em que se defrontam Penrose e os promotores da

teoria computacional do cognição mental humana poderá parecer

185 Cf. Aristóteles, Metafísica A, 1.

234

extravagante, atendendo à enorme distância temporal a que Aristóteles

se encontra de qualquer coisa como os debates em torno da Inteligência

Artificial, mas não só é verdade que distância temporal e distância

conceptual estão longe de ser coincidentes, como, neste ponto em

particular, trata-se de escrutinar uma boa perspectiva conceptual de

outra que falha redondamente o alvo. Com efeito, a força dos

argumentos que pretendem resistir à ideia de que as mentes humanas

possam ser dispositivos computacionais não dista conceptualmente dos

argumentos aristotélicos que pretendiam resistir à ideia de que o

conhecer as causas e os fundamentos últimos de algo pudesse coincidir

com o conhecimento meramente descritivo do homem de simples

experiência. Dito de outro modo, o que está em causa no debate sobre

os limites da inteligência artificial não é essencialmente diferente do

que estava em causa na distinção aristotélica, a propósito da natureza

do conhecimento humano, entre empeiria, por um lado, e tecné e

episteme, por outro.

4. Aproximações ao problema da compreensão

Perguntar-se-á: mas o que é isso de compreender? Não se vai,

indo por aí, resolver ilusoriamente um problema, baptizando

simplesmente algo em que concentramos todas as dúvidas como se a

um mistério nos devêssemos conformar? Expôs-se atrás que se

compreende uma instrução de sucesso para um dado jogo quando se

compreende as razões do sucesso que resultam da aplicação dessa

instrução, que se compreende uma operação aritmética complexa

quando se compreende as operações aritméticas mais simples que nela

estão subentendidas. Generalizando, dir-se-ia que a compreensão não

resulta ex nihilo, mas de outras compreensões – por exemplo, não

poderia compreender o que é a exponenciação sem compreender o que

é a multiplicação e não poderia compreender esta sem compreender a

adição; não poderia compreender o cálculo integral, sem compreender o

235

cálculo diferencial, e não poderia compreender este sem compreender o

conceito de limite de função e este sem o de função; etc. Mas é seguro

que haja sempre esta implicação de uma pré-compreensão? É ela

generalizável a toda e qualquer compreensão? E, caso o fosse, o que

poderia, então, ser uma primeira compreensão? Ao fim e ao cabo, por

que começa a compreensão? Por fim, perguntamos, em que termos o

que possa ser a compreensão pode estar para lá do alcance da

inteligência artificial, se é que é esse o caso? Estas são algumas das

questões que resultam imediatamente do que acabamos de sugerir.

Uma segunda aproximação ao problema poderá tornar mais

precisas algumas destas interrogações e, de algum modo, dar resposta a

outras. Introduziremos, nesse sentido, um segundo facto psicológico,

tão trivial quanto o que se expôs atrás, relativo à existência de duas

maneiras das mentes humanas realizarem qualquer coisa inteligente.

Trata-se do facto de que quando compreendo uma demonstração, tal

compreensão suscitar uma certa satisfação que adjectivaremos de

intelectual. Por que me sucede essa satisfação intelectual? Por que me

sucede, por exemplo, um certo fascínio quando compreendo a

demonstração geométrica do teorema de Pitágoras? Que relação existe,

se é que existe alguma, entre essa satisfação intelectual, mesmo

fascínio, e o facto propriamente dito da compreensão? Já a propósito

dos jogos havíamos caracterizado como distintivo da inteligência

humana o que chamámos ‘gozo da compreensão’, algo aparentemente

inacessível a uma inteligência estritamente computacional, mas

essencial para que valha a pena do ponto de vista de uma mente

humana perder um instante que seja com um jogo.

Tome-se em atenção a demonstração de um qualquer teorema. O

mais frequente é um adolescente em idade escolar aprender a aplicar

com sucesso um teorema numa série diversíssima de circunstâncias

sem, porém, nunca chegar a aprender a sua demonstração. Até aqui

nada de novo, tal aplicação é perfeitamente possível sem que se

compreenda o teorema e com o mesmo sucesso em termos de

desempenho do que quem o aplique dispondo da sua compreensão. Não

será despiciendo fazer notar que é exactamente isso que sucede, a título

236

de exemplo, com o teorema de Pitágoras como é ensinado em idade

escolar. Agora, a demonstração desse, como de qualquer outro teorema,

é ela mesma de natureza computacional – os teoremas deixam-se

inferir, através de regras de inferência, a partir de outros teoremas ou de

um conjunto inicial de axiomas –, o que envolveria num manto ainda

mais obscuro o que possa ser “compreender”, esse fenómeno

aparentemente pouco atreito a uma abordagem computacional. Se

demonstrar é ainda proceder computacionalmente, então que

suplemento pode merecer a designação de não computacional numa

demonstração?

A proposta heurística que avançamos para dar resposta a estas

questões, em particular a esta última, consiste numa analogia com o

conceito de acaso. Este fascina-nos por muitas razões, algumas mais

transparentes outras nem tanto, de certo modo o acaso é uma imagem

de poder incontrolado que tanto nos pode dar a felicidade como a

destruição, pôr-nos no caminho certo como impedir-nos de lá chegar

por maiores que sejam os nossos esforços; pomos a tónica na

incapacidade de o controlarmos em definitivo, pois assim é como se

valesse como a contra-imagem do esforço da razão e da vontade

humanas. Nele parece haver algo que excede a possibilidade de

qualquer computabilidade. E, no entanto, tal como o definiu o

matemático oitocentista Antoine Augustin Cournot (1801-1877), tal

fenómeno não consiste em nada mais do que a intersecção de duas

séries causais independentes186. O problema aparentemente misterioso

do acaso resolve-se no pouco misterioso facto de que duas séries

causais se desenvolvem independentemente uma da outra, e que tal

186 «HASARD ! Ce mot répond-il à une idée qui ait sa consistance propre, son

objet hors de nous, et ses conséquences qu’il ne dépend pas de nous d’éluder, ou n’est-ce qu’un vain son, flatus vocis, qui nous servirait, comme l’a dit Laplace, à déguiser l’ignorance où nous serions des véritables causes? A cet égard notre profession de foi est faite depuis longtemps, et déjà nous l’avons rappelée incidemment dans le cours des présentes études. Non, le mot de hasard n’est pas sans relation avec la réalité extérieure; il exprime une idée qui a sa manifestation dans des phénomènes observables et une efficacité dont il est tenu compte dans le gouvernement du Monde; une idée fondée en raison, même pour des intelligences fort supérieures à l’intelligence humaine et qui pénétreraient dans une multitude de causes que nous ignorons. Cette idée est celle de l’indépendance actuelle et de la rencontre accidentelle de diverses chaînes ou séries de causes.» (Cournot, 1875 :151-152)

237

independência é relativa à nossa incapacidade de abarcar uma série

causal do mundo completa. Donde, a célebre tese de Laplace (1749-

1827), defendida na sua Théorie Analytique des Probabilités, em 1812,

de que o acaso seria banido caso dispuséssemos do conhecimento das

condições iniciais do universo e de uma Fisica completa do universo187.

Ora, o que vimos propor é pensar a compreensão como a intersecção

de duas séries computacionais aparentemente independentes uma da

outra. Por exemplo, compreendo a operação aritmética da

exponenciação por relação à operação aritmética da multiplicação, e

esta por relação à da adição – compreendo o cálculo 33=27 por relação

ao cálculo 3x3x3=27, e este por relação ao cálculo

(3+3+3)+(3+3+3)+(3+3+3). A analogia com a definição de Cournot de

acaso reporta-se, pois, às ideias de intersecção, série e de

independência. No exemplo que expomos, estão em causa três séries de

operações que poderíamos computar sem compreender as anteriores,

bastando para isso aplicá-las de forma bem sucedida. A compreensão

resulta quando uma série se revela afinal dependente de outra, quando

tal dependência é demonstrada, quando os resultados de uma são

explicados pelos resultados de outra.

Note-se que, entendida assim, a compreensão é sempre relativa a

algo188. Além disso, já não é o caso que se coloque o problema de uma

regressão até ao momento de uma hipotética compreensão primeira. Por

exemplo, é possível compreender a operação da exponenciação a partir

da da multiplicação, sem que, no entanto, se compreenda esta a partir

da da adição. É concebível que uma criança saiba que 82=64 porque

compreenda, conceptualmente, que o quadrado de um número é igual à

multiplicação desse número por ele próprio e saiba, por experiência,

que 8x8=64. No entanto, pode não ter nunca chegado a compreender,

conceptualmente, por que razão 8x8=64. Pode muito bem ter

187 Cf. Laplace, 1812. 188 Esta relatividade da compreensão não só invalida, a nosso ver, a presunção

de que haja tal coisa como uma compreensão absoluta como valida a ideia de que do mesmo se possam adquirir múltiplas compreensões, consoante a base a que cada uma é relativa.

238

simplesmente memorizado uma tabuada da multiplicação. Isto significa

que a compreensão não tem de resultar fundada noutra compreensão,

prévia – duas cadeias algorítmicas podem estar uma para a outra como

algo que se compreende para algo que faz compreender, sem que, no

entanto, cada uma, por si mesma, se diga compreendida.189

O fascínio do teorema de Pitágoras é a este título, como a muitos

outros, exemplar – que o simples desenho de certos triângulos nos lados

de um quadrado, como o fez Ptolomeu, revelem que a soma do

quadrado dos catetos seja igual ao quadrado da hipotenusa, que exibam

pictorialmente esse resultado é isso que nos faz dizer ‘Agora

compreendi!’. Duas séries perfeitamente lineares de proceder a cálculos

revelam-se subitamente dependentes uma da outra, uma explicando a

outra, dando a sua razão de ser, demonstrando-a. Eis, então, o ponto

crucial: o cruzamento das duas séries não resulta de uma operação

algorítmica, simplesmente sucede sem que se possa dizer que tal facto

tivesse de algum modo sido determinado – é justamente neste aspecto

que julgamos que o acaso e a compreensão partilham um mesmo poder

de fascínio!

Mas será tanto assim, será que cruzar séries aparentemente

independentes não é parte do que caracteriza o que Dennett designou

por algoritmos heurísticos? E se sim, por que não admitir que, definida

a compreensão desta forma, então haveria computadores que

compreendem? Por exemplo, suponha-se um algoritmo que proceda da

seguinte forma: i) percorra de forma aleatória um domínio de

algoritmos, por forma a seleccionar um par de algoritmos ainda não

seleccionados, ii) teste se os dois algoritmos seleccionados exibem uma

mesma regularidade, iii) classifique o tipo de regularidade identificado

consoante se dê o caso, ou não, de um dos dois algoritmos

seleccionados poder valer como explicação do outro, iv) exponha, pelas

vias de saída disponíveis, a explicação possível encontrada numa

189 Noutros termos, julgamos poder afirmar que a semântica da operação

compreendida não é mais do que a sintaxe da operação que serve de base à compreensão. Por exemplo, a semântica da exponenciação é a sintaxe da multiplicação, a semântica desta é a sintaxe da adição, etc.

239

Língua natural como o Português, v) faça seguir tal explicação pela

expressão “agora, compreendi!”

Replicar-se-á que esta será apenas uma forma de levar a

simulação até à compreensão, através da conversão desta num

resultado, entre todos os outros que a inteligência artificial é capaz, por

princípio, de simular. Mas por que razão se haveria de considerar isso

pouco? Ao fim e ao cabo, não é desta forma dado um procedimento

algorítmico que realiza, ou ao menos pode realizar, demonstrações

(note-se que não digo “simula”), e que explicita verbalmente uma

compreensão? Sim, é certo que sim, mas, no entanto, o algoritmo não

realiza uma compreensão genuinamente em função da demonstração,

mas tão-só porque o programa computa essa resposta de compreensão

quando se dá o caso de alcançar algo que reconheça como uma

demonstração. Nesse sentido, não se tratará de uma compreensão

genuína, mas tão-só de uma compreensão simulada.

Com os elementos expostos, esta discussão arrisca a ser

inconclusiva, pois porque para que se possa considerar uma tal

distinção entre o que seja genuinamente uma compreensão e o que seja

apenas uma compreensão perfeitamente simulada necessário será

primeiramente determinar se pode existir, ou não, um critério e, se sim,

então, que critério é esse.

Uma terceira via de aproximação ao problema da compreensão

procura expor esse critério como sendo a própria consciência. Com

efeito, quando uma mente humana realiza, sintáctico-

computacionalmente, duas séries de operações – por exemplo, a

exponenciação e a multiplicação – não está apenas em causa, falando-

se de compreensão, que uma delas se revele uma especificação da

outra, mas também que haja experiência consciente quer das duas

séries, cada uma por si, quer do momento, eventualmente suscitador de

compreensão, do “cruzamento”. Em termos simples: não há realmente

compreensão sem consciência porque esta é de natureza experiencial.

Note-se, a este propósito, que até pode haver algo de computacional na

decisão de cruzar as duas séries; não se vê é como nessa decisão

pudesse estar contida a compreensão.

240

Somos, assim conduzidos a dizer que a mente humana,

diversamente de um computador, tem consciência das computações que

realiza, sucedendo que a compreensão genuína envolve uma

consciência aparentemente inacessível à mera computação, por mais

complexa que seja, de um processador automático. Trata-se de chamar

a atenção para o facto de que as mentes humanas têm consciência das

suas computações, experienciam-nas e que, tanto quanto as aparências

o revelam, isso não sucede com os computadores – mesmo que fossem

exactamente as mesmas as computações realizadas por uma mente

humana e por um computador, distinguir-se-iam estes dois

“processadores” pelo critério de terem ou não experiência dessas

computações, i.e, terem ou não consciência delas. Em suma, tratar-se-á

de afirmar que a compreensão é de natureza experiencial.

Um exemplo, mais uma vez de natureza psicológica, exibe de

forma bastante clara esta diferença. Coloquemo-nos na posição de

leitores de um texto qualquer, suponhamos um poema, um artigo de

opinião, uma receita culinária, tanto faz, desde que se trate de algo

legível. Suponhamos que em duas circunstâncias temporalmente

distintas, por exemplo, ontem e no presente momento, eu tivesse lido o

mesmo texto, e que o tivesse feito razoavelmente bem nas duas

ocasiões, a ponto de não levantar a suspeita a quem me ouvisse ler de

que entre as duas ocasiões uma alteração radical sucedera, a saber, a de

que, numa das ocasiões, não importa qual, eu não lera senão

maquinalmente, isto é, seguindo as regras e cumprindo as instruções de

sucesso para que resultasse para o auditório uma leitura, mas sem que,

em momento algum, eu prestasse de facto atenção ao que ia dizendo.

Não exprime este exemplo a diferença entre o que posso fazer, sempre

com igual competência do ponto de vista dos resultados, em dois

registos, porém, inteiramente distintos, um em que está em jogo a

tensão entre compreender e não compreender, outro que, pura

simplesmente, não mantém nenhuma relação com a experiência da

compreensão, sequer da incompreensão? Não é a essa diferença que

nos reportamos quando dizemos a alguém ‘está a ler, mas não está a

escutar o que lê’?

241

O exemplo da leitura revela-se ainda mais rico quando pensamos

numa criança que aprende a ler – ela aprende como ler, seguindo regras

e aplicando instruções de sucesso, e enquanto aprende, sucede-lhe

corrigir a sua competência imperfeita com o momento da compreensão.

Soletrando as palavras que lê, a criança só se dá por convencida quanto

à sua capacidade de ler quando experiencia o reconhecimento daquilo

que soletra, quando tem a experiência do que quer dizer o que lê. Por

exemplo, lê alto qualquer coisa como ‘coraçaú’ e, num instante,

apercebe-se do erro e corrige para ‘coração’. Corrige-se assim o

reconhecimento gráfico pelo reconhecimento acústico. Uma situação

equivalente seria a de um professor que ao ler um teste escrito de

frequência de um aluno encalha na palavra ‘curassao’ e que só ao lê-la

uma segunda vez, em voz alta, compreende o erro, de natureza

ortográfica, do aluno – tratava-se, afinal, da palavra ‘coração’, pensará

o professor. Aqui, uma vez mais, corrige-se pelo reconhecimento

acústico uma falha de reconhecimento gráfico. Em ambos os casos

verifica-se que por uma actividade computacional não gerar a

compreensão, como seria de esperar, procura-se outra que o faça e

assim suprima a falha da outra.

Estes exemplos, além de exporem a diferença não pouco

importante entre reconhecimento acústico e reconhecimento gráfico,

exibem o facto, que mais nos importa agora, de a um mesmo

processamento de informação gráfica tanto poder seguir-se uma

compreensão como não se seguir compreensão ou incompreensão de

espécie alguma. E isto é o bastante para não autorizar que se formule a

ideia de que um certo processamento de informação gráfica, por

exemplo o da leitura, seja condição suficiente da sua compreensão. Era,

note-se, exactamente isto que se concluía no exemplo de uma partida de

xadrez, em que uma mente humana ou pode jogar apenas

computacionalmente um lance ou procurar compreendê-lo, sem que daí

resulte alguma diferença nos resultados materiais publicamente

verificáveis. E a mesma conclusão é extensível a todas as actividades

expressamente computacionais de uma mente humana – ou temos delas

242

uma experiência, seja de compreensão ou de incompreensão, ou não é o

caso que tenhamos uma experiência.

Com esta alternativa fica claro que o critério da consciência,

terceiro critério para a compreensão, é pertinente para distinguir dois

níveis da vida mental humana, dois níveis de processo mental. Logo,

não será com certeza impertinente aplicá-lo no âmbito da inteligência

artificial. Por outro lado, fica também claro o facto, que reportámos às

mentes humanas, de o nível compreensivo não se seguir

necessariamente do nível computacional. Ora, isso constitui um bom

argumento contra a ideia, quando nos reportamos a “mentes artificiais”,

de que o nível compreensivo, experiencial, propriamente consciente de

uma mente decorreria muito naturalmente do nível computacional. Se

assim não sucede com as mentes humanas, por que razão se haveria de

aceitar tal posição? A verdade é que os exemplos acima expostos

sugerem muito fortemente que o nível compreensivo de uma mente

humana resulta a pretexto do nível computacional, mas de forma

alguma determinado por este. O facto de as mentes humanas poderem,

em geral, proceder a tarefas regidas por algum tipo de algoritmo sem,

no entanto, terem a experiência de compreensão das razões por que o

estão a fazer – é este o facto que sugere fortemente a ideia de que a

compreensão, pela sua própria natureza, não possa ser reconduzível

numa sua explicação teórica aos processamentos computacionais que

compreende.

Mas retomando os momentos propriamente ditos de

reconhecimento e de compreensão exemplificados com as leituras

deficientes, perguntar-se-á: não serão eles resultados de outros

algoritmos, em paralelo com o da leitura maquinal? É que, desta feita,

replicar-se-á que não há objecção de princípio a que um outro

processamento de informação, em paralelo com o primeiro, gere o tal

reconhecimento, a tal experiência de compreensão que supostamente

permaneceria essencialmente estranha a um mero processador. Em

particular, da mesma forma que é perfeitamente concebível um

Software que tenha por entradas sinais gráficos e por saídas sinais

sonoros, isto é, palavras escritas e palavras ditas respectivamente,

243

procedendo assim à leitura (não menos maquinal que a que

descrevemos, por exemplo, numa criança de cinco anos), também é

concebível que nesse mesmo Software outro algoritmo tenha por

resultado uma compreensão. Ou não? Pense-se num algoritmo que

tenha por entradas as saídas do primeiro – as palavras lidas –, as

confronte com registos de memória, assinale um ou mais, assinale

depois registos associados aos primeiros, memorize tudo o que assinala,

memorize todos os seus próprios passos, não tenha nenhum output a

não ser a alteração da sua memória. Não estaremos desta maneira a

fazer o design de um algoritmo de compreensão? Respondo que ainda

não, embora já tenho faltado mais. Estaremos a fazer apenas o design

de um algoritmo de aprendizagem. O que já não é pouco. Imagine-se,

por exemplo, um Software de xadrez com capacidade de aprendizagem

– a cada partida jogada, a cada lance mesmo, algo mais fica

memorizado, mais uma associação entre lances, mais uma avaliação.

O que falta para a compreensão? A experiência ao que parece.

Reformule-se a questão: o que falta ao design do Software de xadrez

para que haja experiência? Esta é a questão que introduzirá o quarto e

último critério que proponho para a compreensão, a saber, o que

denominanei critério da avaliação momentânea, mas que, como

veremos em seguida, é apenas critério da compreensão realizada por

mentes humanas.

5. Critério da avaliação momentânea

Empregando um argumento caro a Dennett, a sobrevivência da

espécie privilegiaria certamente aqueles seres que avaliassem o mais

depressa possível e o mais correctamente possível cada situação de

vida. Ora, as mentes humanas (as pessoas pois!) vivem no tempo, sob a

pressão de avaliações praticamente momentâneas, em que está em

causa uma pronta capacidade de decidir e de agir em conformidade.

Naturalmente, sabemos que a pressa não é boa conselheira, mas

244

sabemos igualmente que muitas vezes é entre fracções de segundos que

se joga a diferença entre a vida e a morte. Daí que a capacidade de

avaliação momentânea seja um dado tão incontornável das vidas

humanas como a falibilidade dessas mesmas avaliações. Perguntem-

me: por que decidiste fazer desta maneira e não daquela outra maneira,

é que era muito mais fácil, mais racional, mais elegante, etc.? Só posso

responder: bem sei que sim, agora compreendo-o claramente, mas, na

ocasião, só me lembrei de trepar pela árvore acima. Nós, de certo

modo, deixamos as nossas mentes decidir; só depois, vamos à procura

das razões que assistam à decisão e não raras vezes surpreendemo-nos,

ou nem tanto, por compreendermos que poderíamos ter decidido

diversamente e por compreendermos que nos decidimos sem que razões

nenhumas fossem, pelo menos expressamente, tidas em conta. Uma

espécie de intuição. Como, por exemplo, quando me perguntam ‘Achas

isto bom ou mau?’ e eu respondo uma coisa ou outra, ou quando

exclamo ‘Como isto é belo!’, ou quando me dizem ‘Simpatizo com

aquela pessoa’. Se digo que é bom, que é belo, se me dizem que é

simpático, se fazemos assim a todo o momento avaliações – hoje, por

exemplo, está um bom dia –, também é certo que sabemos que

avaliámos o que avaliámos sem que tivéssemos tido em conta razões

explícitas que sustentem por que achamos algo bom, belo, simpático,

etc.

A nossa sugestão é que esta capacidade da avaliação

momentânea é o critério último da compreensão, precisamente porque

tal capacidade não nos seria possível sem consciência, sem experiência.

Aliás, há uma forma muito curiosa de pensar o problema da inteligência

artificial e que se resume a isto – se a consciência, a compreensão, a sua

experiência propriamente dita, constituem a solução naturalmente

encontrada para satisfazer o critério da avaliação momentânea, se nada

nos diz que não sejam possíveis outras soluções, se, designadamente, a

inteligência artificial conseguir, em virtude do aumento logarítmico da

velocidade de processamento e do processamento paralelo maciço,

conseguir o mesmo resultado, então a consciência revela-se, afinal,

perfeitamente dispensável do ponto de vista da eficiência da avaliação.

245

Isto significa que a consciência e a experiência da compreensão

são meios para a inteligência humana, mas que, se não formos

“chauvinistas” quanto à inteligência, outros meios podem valer para

uma inteligência, seja artificial ou qualquer outra – alienígena, divina,

etc. A contrapartida é que uma inteligência artificial satisfazer o critério

da avaliação momentânea não é necessariamente, nem pouco mais ou

menos, um critério de consciência. Em tese, sê-lo-á efectivamente tão-

só no caso das mentes humanas; em tese, ou, se se preferir, por

hipótese, podemos pensar que a natureza terá desenvolvido nas mentes

humanas a consciência para alcançar o que na inteligência artificial é

alcançado por uma velocidade de processamento de todo incompatível

com os constrangimentos neurofisiológicos que estabelecem as

condições de existência, digamos assim, de uma mente humana.190

A partir desta perspectiva, a consciência e o carácter experiencial

da compreensão valem não apenas como parte do problema, ou mesmo

como o problema crucial (que é o que tradicionalmente tem sido feito),

mas também, mesmo sobretudo, como parte da solução.

Perguntar-se-á, porém, mas por que razão candidatamos a

consciência, a experiência propriamente dita de uma mente, a ser parte

da solução? Por que razão, mais em pormenor, a candidatamos a ser

190 «O tempo reactivo dos seres humanos é da grandeza dos 500 milésimos de segundo. Isto é, para categorizar uma percepção, recuperar uma memória, resolver a ambiguidade de uma palavra numa frase ou realizar um único acto cognitivo, um ser humano precisa de cerca de meio segundo. ‘Cerca de’ deve ser interpretado tendo em conta um factor de 10 mais ou menos, ou seja, entre 50 milisésimos de segundo e alguns segundos. O tempo de disparos neurais consecutivos é de aproximadamente 5 milésimos de segundo. Assim, o número de disparos por reacção é de cerca de 500 dividido por 5, ou 100 disparos neurais... Note-se que estamos a falar do tempo de reacção e não do tempo de decisão, i.e., sem tempo de pausa para deliberar, mas apenas o suficiente para que surja uma ideia. Mas nenhum computador sequencial computa uma coisa de jeito em 100 passos sequenciais... Donde se conclui que os sistemas nervosos têm de depender bastante do seu paralelismo maciço... Recorde-se que os computadores calculam muito mais rapidamente do que os neurónios humanos.» (Franklin, 1995: 191) «No cérebro dá-se um processamento em paralelo em larguíssima escala. Apenas como exemplo, consideremos as primeiras etapas do processamento visual, que são já relativamente conhecidas. Em cada instante estão a ser realizadas, para todas as regiões da imagem recolhida pela retina, operações de detecção de contornos com todas as direcções, de detecção de movimentos em todas as direcções e para uma larga gama de velocidades, etc. Isto implica um número elevadíssimo de neurónios, todos funcionando em paralelo, com grupos de neurónios a realizarem cada uma destas operações sobre capa pequena região da imagem.» (Almeida, 1999: 6)

246

uma boa solução para explicar como as mentes humanas satisfazem o

critério da avaliação momentânea?

Invoquemos uma vez mais o designer do Software de xadrez com

que temos tratado o problema da compreensão. Chegáramos atrás ao

esboço do que poderia constituir um Software capaz de aprendizagem,

mas ainda não de experiência. Considerámos que faltava algo, e

considerámos – talvez nos devêssemos surpreender! –, que já não era

tanto isso que faltava. Mas veremos agora que não é tanto de

surpreender. Com efeito, façamos, conjuntamente com o designer, o

seguinte exercício: i) demos já bastantes exemplos da diferença que se

instancia nas próprias mentes humanas entre um tipo de inteligência

computacional, ou ao menos muito semelhante à que é efectuável no

quadro da IA simbólica, e outro tipo de inteligência que envolve

compreensão e que não parece poder, de acordo com as razões que

apresentámos atrás, encontrar todas as suas condições na

computabilidade; ii) tendo, então, em vista esta diferença, procuremos

apoiar nela uma proposta de design para um Software de xadrez capaz

de experiência de compreensão.

Como haveremos de proceder? Primeiramente, e em vez de

calcular o melhor lance, o algoritmo deveria proceder à recolecção de

um conjunto de candidatos a lances; em seguida, deveria calcular para

cada um desses lances candidatados o conjunto de cursos de jogo

possíveis (dentro da sua capacidade de antecipar um certo número de

lances, capacidade que resulta da velocidade do processador) que se lhe

seguiriam com maior ou menor probabilidade, testando assim

computacionalmente o valor de cada candidatura; finalmente, com a

atribuição de um valor a cada um dos candidatos a lance, jogaria aquele

cujo valor fosse maior. Esta sequência de três fases não deve andar

longe de uma descrição adequada do processo que conduz um jogador

humano a decidir-se por uma certa jogada em detrimento de outra.

Mas, como bem dá para notar, a primeira destas três etapas é

aquela em que se localiza o ponto quente da discussão – as restantes

são perfeitamente enquadráveis numa descrição computacional. A

questão dífícil reside em saber como é possível a tal “recolecção de um

247

conjunto de candidatos a lances”; mais precisamente, nem é em rigor na

recolecção que reside a dificuldade – aí tratar-se-á apenas de apanhar a

fruta da árvore –, mas no facto de haver qualquer coisa como

“candidatos a lances” – ou seja, fruta na árvore! Como surgem eles?

Como chegam a apresentar-se? Sob que procedimento? Será este ainda

de natureza computacional, mesmo que de forma não expressa? Um

artigo de Drew McDermott, no conjunto daqueles que fizeram o debate

pós-embate Kasparov/Deep Blue, parece inclinar-se para uma resposta

positiva a esta última questão – tudo não passaria de uma diferença

entre um processamento inconsciente e outro consciente191. Mas há

fortes razões para nos acautelarmos com um resposta divergente. É que

não é de todo líquido que o processamento de informação (pré-

consciente nas mentes humanas) que conduz à apresentação das

candidaturas seja um processamento de informação à maneira de um

dispositivo computacional. É possível avançar com uma outra resposta

se se der crédito ao debate em torno do estatuto dos estados mentais a

que chamamos crenças, especificadamente se são de natureza

proposicional como propõe Jerry Fodor, ou se são mais como mapas na

linha de Ramsey, Dretske192 ou Jackson e Braddon-Mitchell193, ou

ainda, se são representações de estados de coisas ainda não

191 «Suppose most of their skill comes from an ability to compare the current position against 10,000 positions they've studied. (There is some evidence that this is at least partly true.) We call their behavior insightful because they are unaware of the details; the right position among the 10,000 “just occurs to them”. If a computer does it, the trick will be revealed; we will see how laboriously it checks the 10,000 positions. Still, if the unconscious version yields intelligent results, and the explicit algorithmic version yields essentially the same results, then they will be intelligent, too.» (Cf. McDermott, 1997)

192 «I have always liked Ramsey’s (1931) image of beliefs as maps by means of which we steer. As I now see it, beliefs become maps, acquire representational powers, in the same process, the learning process, as that in which the information from which they derive their content gets its hand on the steering wheel.» (Drestske, 1994: 264) (Ramsey, F.P. 1931. The Foundations of Mathematics and Other Logical Essays. London: Routledge & Kegan Paul.)

193 «The alternative to LOTH is an account of belief that sees belief as map like. For LOTH, individual beliefs are fundamental; while on the map view systems of belief are fundamental. Inside us is a hugely complex structure that richly represents how things around us are in an essentially holistic way. (…) It has recently been argued that there is empirical evidence that our brains represent how things are around us in something like the way an internal map or hologram might. » Jackson & Braddon-Mitchell, 1998: 705-706)

248

proposicionalizados. Ora, só à primeira destas três alternativas – a

defendida por Fodor, se ajusta o modelo da IA simbólica, isto é, de uma

manipulação de símbolos mentais discretos, por princípio

individualizáveis, pertencentes a uma “linguagem do pensamento”.

Além destas razões, outras existem que se prendem com o facto,

bem conhecido, de se distinguirem dois níveis de actividade mental

inteligente, um consciente e outro inconsciente, que McDermott

pretende fazer corresponder à diferença entre um algoritmo explícito e

outro não explícito. Simplesmente, se assim fosse não se perceberia que

desempenho poderia ter a consciência na compreensão humana, não se

perceberia mesmo por que razão haveríamos de ter uma consciência –

por que não imaginarmo-nos as nossas mentes a realizarem todo o

processamento num nível inconsciente? E assim de que serviria a uma

mente dispor de experiência e consciência?194 Será simplesmente para

desfrutar do maravilhoso que é o mundo? Em suma, parece perder-se

assim de vista a determinação do contributo da consciência e da

experiência da compreensão para a cognição.

Procuremos, então, pensar essa problemática apresentação dos

“candidatos a lances”. Dando por adquirida a capacidade de

aprendizagem do nosso Software de xadrez, vejamos como poderíamos

modelá-la à semelhança do que com ela faz um jogador humano. Para

isso convém começar por prestar atenção ao jogador humano.

Face ao facto evidente de o jogador humano aproveitar o que

aprendeu, ao longo da sua vida de partidas e torneios, para melhorar o

desempenho do seu jogo, há que fazer uma primeira nota de relevo – a

aprendizagem recordada não é necessariamente, sequer

privilegiadamente, algorítmica. Pode, por exemplo, o jogador recordar-

se de uma mesma situação de jogo que lhe sucedera num certo torneio

há anos atrás e que, então, na partida em causa, optara por um certo

desenvolvimento de lances que lhe não fora feliz. Decide, assim, optar

agora por uma outra alternativa de jogo que espera pelo menos não lhe

194 Este tipo de questões é que justificam para David Chalmers a formulação

de um “hard problem” relativo à cognição – justamente o de saber qual o papel da consciência na cognição. Cf. Chalmers, 1995: 200-219.

249

ser tão negativa. A evocação ficou evidentemente a dever-se à

semelhança entre as situações de jogo – esse é o trabalho da memória

de associações –, mas não é menos evidente que poderia ter sido outro

o circunstancialismo da evocação. Suponha-se que a situação de jogo é

inteiramente diferente daquela que corresponde ao seu estilo habitual

de conduzir a partida e que, apercebendo-se disso, o jogador declina um

lance que lhe costuma ser habitual pelo facto de não ver com clareza a

que é que, na presente situação de jogo, isso o conduzirá no intervalo

de meia dúzia de lances. Semelhanças e dissemelhanças como estas (e

muitas outras) estão subjacentes ao trabalho de evocação da

aprendizagem por parte da memória. Situações tipo explicadas em

manuais de grandes mestres, lances laboriosamente reflectidos em casa,

aspectos de estilo, tudo isso faz parte do evocável pela memória, e tudo

isso tem um certo valor em função dos resultados obtidos outrora

noutras partidas. O jogador avança com o seu lance após avaliar, dentro

do tempo de que dispõe, todas as evocações relevantes e se convencer

de que uma é melhor do que as restantes ou, ao menos, se convencer

que o seu lance é, atendendo às circunstâncias, bom. Naturalmente,

muita coisa pode falhar e a muitos níveis. Por exemplo, pode ter faltado

a evocação certa no momento certo e só depois vir – qual partida da

memória – para perturbar um temperamento pouco dado à serenidade.

As evocações trazem novas evocações a partir do momento em que o

jogador, na intimidade das suas memórias, escolhe testar uma delas e,

no entanto, pode também aí a memória pregar a sua rasteira. E ao

escolher certa via, e aplicando as suas excelentes capacidades de

cálculo (presumamos que sim) pode também suceder ao jogador

enganar-se no cálculo, esquecer um peão avançado uma casa e que o

derrotará ao fim de poucas jogadas, etc.

Qual é o ponto? O jogador gasta muito mais do seu tempo

disponível de lance a evocar e a escolher entre as evocações uma em

particular para que dela se sigam novas evocações do que simplesmente

a computar um algoritmo. De certo modo, o jogador limita-se a

conduzir o trabalho da sua memória até obter uma evocação que o

satisfaça. Este é o desígnio. É certo que também passa parte do seu

250

tempo a computar consequências que resultem da escolha de um dado

lance, mas na maior parte do seu tempo de jogada confia na memória e

nas computações que noutras ocasiões realizou. E se computa é

justamente para alcançar algo novo, uma experiência nova, a

memorizar e a evocar em ocasiões futuras; ou seja, tem a computação

ao serviço do desígnio de obter uma experiência que satisfaça.

É claro que o procedimento da rememoração pode ser pensado

como se fosse ele mesmo o resultado de um algoritmo, mas esse é um

problema que se encontra a montante do problema da compreensão.

Admitindo que as associações mentais são fixadas pela conectividade

da rede neural do cérebro humano, é admissível a existência de um

algoritmo que face a cada entrada processe certa ou certas saídas. Aliás,

factos psicológicos como o da relativa constância das associações – do

tipo “a visão de certo rosto evoca em mim frequentes vezes um outro

rosto” – podem sugerir a existência de um procedimento algorítmico.

Simplesmente, não é aí que está o “toque especial” que presumimos

tornar tão peculiar a inteligência humana. Este encontra-se mais a

jusante, no preciso facto de haver experiência e escolha, apresentações

e decisão.

O jogo das associações livres de palavras é a este propósito

exemplar. Por exemplo, se me perguntam o que me diz uma cor e

depois outra, responderei muitas coisas, muitas delas provavelmente

extravagantes, sem que entre elas se encontre qualquer forma explícita

de activação a não ser o facto de estarem associadas na minha memória

e de o estarem em moldes tão distintos como a contiguidade espacial, a

sucessão temporal, a semelhança conceptual, a partilha de uma

propriedade, a comum associação com um terceiro, etc. Depois, restará

escolher. Repare-se como esta natureza da memória não é senão aquilo

que está em causa, muito em particular, no poder das metaforizações,

tornando expressas associações implícitas, fazendo de uma associação,

por vezes com a idade do mundo, uma experiência inédita.

Em que é que a experiência contribui para a cognição desta

associação? Ela já lá estava; simplesmente agora tornou-se consciente e

de uma forma explícita. Cognitivamente, que importa esta diferença? É

251

que na experiência inédita de uma associação metafórica experiencia-se

também o efeito dessa associação nas outras associações que com ela

costumam fazer sistema, há como que uma repercussão espontânea do

que é inédito no que é o resto do mundo relativo a essa associação e,

em tese, propomos que tal sucede em virtude da sua vinda à

experiência, da sua actualização na consciência. Estas ideias são muito

menos estranhas do que poderia parecer à primeira vista, inspiram-se,

aliás, na nossa experiência de fenómenos naturais que qualquer física e

química clássica explica.

Um modelo material muito cru, mas valioso pela sua

simplicidade, poderia ser este: i) faça-se uma rede de tubos de plástico,

em que os tubos comunicam uns com os outros um pouco à maneira de

uma rede conexionista; ii) considere-se que essa rede tubular pode estar

em dois e apenas dois estados: em enchimento, por se verter nela um

líquido, por exemplo água; ou simplesmente vazia; iii) considere-se que

o enchimento pode ser iniciado em qualquer um dos tubos da rede,

partindo daí o enchimento dos restantes de acordo com a disposição

dada de canalizações; iv) considere-se que há um constrangimento

relativo ao tempo de enchimento, não ultrapassando este um certo

período de tempo t, durante o qual a rede tubular jamais poderia chegar

a ficar totalmente enchida; v) considere-se que há também um

constrangimento quanto à quantidade de líquido a verter, pelo que à

medida que o líquido se vá distribuindo, durante o período t, menor vai

sendo a sua pressão. Seja este modelo então. Agora, considerem-se

duas condições adicionais relativas à funcionalidade da rede: que esta

rede tubular se encontra em permanente alteração (vi) e que a alteração

é feita às cegas (vii). Estas condições adicionais impõem que a única

via para verificar a correcção da rede tubular consista em proceder ao

enchimento da rede no ponto em que ela foi alterada – a alteração será

incorrecta se o enchimento reflectir-se num mau funcionamento da

rede, i.e., não atingindo canais óbvios, vertendo água para fora da rede,

etc.; a alteração será correcta se se seguir ao enchimento o mesmo

funcionamento de sempre, i.e., se atingir os canais óbvios, se não verter

252

água para fora da rede, etc.. Não fora o enchimento e não haveria

percepção das alterações na rede.

Por outro lado, o facto do enchimento local da rede se desenrolar

durante um certo período de tempo t não traduz apenas uma

perduração; envolve também uma certa capacidade por parte de quem

acede à experiência do enchimento de antecipar efeitos – em

circunstâncias normais, i.e., de funcionamento adequado da rede, o

conservador da rede esperará que certos canais óbvios sejam atingidos

pela “maré”.

Substitua-se agora esta rede de tubos de plástico pela rede neural

(também ela de natureza tubular); substitua-se o acto de verter um

líquido no nódulo onde ocorre a alteração da rede pelo acto de um

estímulo electroquímico no mesmo nódulo. Que é que se obtém?

Ressalve-se, desde já, que aqui não está ainda a ser proposta uma

teoria da consciência, uma explicação do que seja a consciência, uma

descrição de como chega a haver consciência numa rede neural – Isso

seria o mesmo que pensar que a rede de esgotos de Lisboa poderia

reunir as condições suficientes para que tivesse experiência e, portanto,

consciência!195 Apenas se está a procurar determinar mais precisamente

qual o papel da consciência, e da experiência da compreensão, na

cognição, qual o seu contributo para a inteligência humana. E nesse

preciso sentido, é possível indicar, admitindo a analogia, alguns pontos

importantes. Admita-se, ex hipotesis, que há um homúnculo dentro das

nossas mentes, um homúnculo que esteja para a rede neural como o

conservador para a rede de esgotos de Lisboa

Em primeiro lugar, a analogia mostra que o aspecto experiencial

de uma mente humana não tem por função única e exclusivamente

estabelecer uma imagem do mundo em certo instante, mas sobretudo

uma imagem das repercussões que esse mundo trará nos instantes

vindouros. É certo que a apresentação de um mundo não pode deixar de

ser pensada como algo que activa certas regiões do córtex cerebral

195 Por outras palavras, e nos termos já referidos de Jackendoff, o problema em

tratamento é o problema mente-mente e não o problema mente/corpo (nas suas duas versões, mente computacional e mente experiencial) .

253

visual (nomeadamente, as zonas V1 e V2); é igualmente certo que duas

apresentações diferentes hão-de activar diferentemente essas mesmas

regiões, e que isso exprime um isomorfismo, que isso é um

constrangimento implicado pela fidedignidade da informação sensorial.

Mas o processo de activação está longe de terminar aqui. Tal qual a

rede de plástico em enchimento, a activação prosseguirá pelos canais

óbvios, no caso situados no córtex de associação, distribuindo o sinal

electroquímico pela parcela da rede relevante. Ora, se a experiência for

pensada como um fenómeno natural que implica esta repercussão de

efeitos temos aí uma justificação do seu contributo para a cognição –

conhecer algo é ter a experiência da sua repercussão. A experiência é

pensada como o motor que propulsiona uma repercussão.

Note-se que a imagem das repercussões nos instantes vindouros

não é ela mesma uma imagem instantânea – vai-se desenrolando no

tempo, tal qual o enchimento. E como as repercussões na rede neural

devem, para que nos sejam úteis, efectivar-se a tempo de não se

deixarem surpreender pelo mundo, isto significa que a mudança no

mundo é antecipada passo a passo pelas fases do processo de activação

num dado período de tempo t. Por outro lado, cada ponto da rede

permanece durante algum tempo activado o que revela o carácter

duplamente temporal da activação – segundo o nosso analogon da rede

tubular em enchimento, sucede que quer a propagação do enchimento

se desenrola no tempo, quer cada ponto da rede permanece com líquido

de enchimento durante um certo lapso de tempo. Aliás, este carácter

duplamente temporal da activação ajusta-se de forma exacta à distinção

fenomenológica, cunhada por Husserl, entre retenção e protensão.

Em segundo lugar, tal qual com a rede de plástico em

enchimento, a activação local da rede neural consiste na única forma de

avaliar o funcionamento da rede após uma alteração. Ou seja: o

homúnculo, digamos o sujeito da mente, não tem acesso à sua própria

rede neural a não ser em virtude de uma sua activação. A rede neural

não é o sujeito; este limita-se a procurar aceder-lhe. E quando lhe é

facultado o acesso apenas obtém um pedaço de mapa com o bónus de

uma avaliação nos termos bastante simples de um funcionamento que

254

não defrauda, que não põe em causa a confiança. Neste sentido,

conhecer algo equivale, além de à experiência da sua repercussão, ao

reconhecimento global da rede como continuando a funcionar

adequadamente, i.e., como rede cujas activações, no seu curso,

antecipam o curso da experiência, como rede cujas activações mantêm,

ao longo de uma história de alterações, um certo padrão de

continuidade.

Este padrão de continuidade no que respeita ao funcionamento da

rede, e que está em causa no reconhecimento global, não pode ser

pensado sem o tal sujeito homuncular da mente – equivalente mental do

conservador da rede tubular. E neste e não na própria rede porque esta é

neutra. É, pois, no sujeito da mente que reside a capacidade de

avaliação e de aceitação das repercussões que a activação da rede exibe,

capacidade que envolve uma teleologia, i.e., uma colecção de desígnios

de que o sujeito da mente é portador. Tais desígnios são variáveis,

correspondem a necessidades organísmicas, a fome por exemplo, mas,

no seu conjunto, a cada momento da vida de um sujeito exprimem a

vitalidade de uma mente. É em função de tais desígnios, uns mais

prementes do que outros, de certo modo uns mais importantes do que

outros, numa hierarquização flutuante, que a rede vai sendo avaliada,

que as repercussões vão sendo experimentadas. Por exemplo, face a

dois desígnios diferentes – sejam a fome e a sede – a mesma rede

neural, portanto com as mesmas repercussões para um mesmo estímulo

sensorial, obterá satisfações diferentes, resultado que induzirá

comportamentos diferentes, até à consumação da satisfação.

255

VII

Percepção, tempo de percepção, percepção

de tempo

Conceptualmente, o tempo é independente da sua experiência. É

possível dar dele uma descrição conceptual sem que nela ocorram

termos que se reportem à experiência do tempo por parte de um sujeito

consciente. Mas já sob um ponto de vista fenomenológico, pode-se

caracterizar a experiência subjectiva do tempo como sendo ela mesma

temporal, o que justifica a expressão de um tempo subjectivo,

coincidente com a sua experiência. De acordo com um modelo

esquematizado de percepção que começaremos por apresentar,

procuraremos evidenciar que este tempo subjectivo é a relação de

mudança/duração entre actualizações vividas subjectivamente e um

contínuo experiencial. Tal contínuo é explicitável como resultado de

uma retenção das actualizações e explica a experiência da consciência

como fluxo temporal de experiências. As quantidades de tempo

subjectivo vivido são sensíveis ao grau de atenção, pelo que se fornece

assim um princípio de explicação para as assimetrias entre tempo

subjectivo e tempo objectivo.

256

1. A percepção como processo: ciclos e fases

a) Ciclos do processo perceptivo: campo objectal, estrutura

objectal e objecto

Toda a percepção envolve um discriminado perceptivo; contudo,

atendendo à natureza processual da percepção – trata-se de um processo

no qual se podem identificar fenomenologicamente diversos ciclos –,

assinalar-se-á que a boa discriminação perceptiva (não se dirá a

perfeita) é o ciclo culminante de um progresso discriminativo que

envolve a delimitação de um campo objectal, a fixação de uma

estrutura objectal e, finalmente, a identificação de um objecto.

Por exemplo, sejam, em certa circunstâncias, más as condições de

percepção, e diga um dado sujeito de percepção "Parece-me que há ali

alguma coisa". A expectativa neste juízo de percepção é a de que seja o

que for que esteja ali se tratará necessariamente de alguma coisa e não

de nada. O olhar do sujeito procurará, pois, ver um objecto onde ainda

não vê um objecto, procurará identificar-lhe o que o distingue enquanto

objecto no pouco que se dá a ver, atendendo às débeis condições para o

exercício do ver. Ora, enquanto se confronta apenas com uma

expectativa de objecto, o sujeito de facto não constitui empiricamente

nenhum objecto. E no entanto uma expectativa objectal é intencionada,

naturalmente uma expectativa carente de progresso. Tal progresso

dependerá então da iteração da percepção, num processo que se

desenvolve por ciclos.

Num primeiro ciclo do processo perceptivo, o olhar do sujeito de

percepção, ao procurar ver um objecto, tenta reconhecer no pouco que

vê, tenta circunscrever no campo perceptivo global, um campo menos

extenso onde localizar o objecto, um campo objectal. Por campo

objectal entende-se a parcela do campo perceptivo global em que recai

a expectativa de encontrar o objecto e que é, portanto, a extensão de

campo que recebe a atenção perceptiva. Este campo objectal distingue-

se de um objecto de percepção por não comprometer ainda nenhum

componente objectivante. Por exemplo, quando, na penumbra, se

257

reconhece uma deslocação que se procura atestar como deslocação de

alguma coisa, fixa-se a extensão em que ela ocorre como um campo

objectal, mas sem que se disponha ainda de algo que seja do próprio

objecto. Trata-se da marcação de um campo espacial, uma marcação

meramente topográfica que ainda nada contém de objectivante.

Num segundo ciclo, já fixada a atenção perceptiva num campo

objectal, o “olhar” procurará reconhecer nele algum componente

objectivante, isto é, algum componente de uma estrutura objectal, a

qual, porém, também não é ainda o objecto de percepção. Por estrutura

objectal entender-se-á, já não a extensão do campo em que o objecto –

de acordo com uma expectativa mais ou menos bem fundada – deverá

localizar-se topograficamente, mas a extensão do objecto propriamente

dito, embora apenas enquanto este ainda permanece por reconhecer.

Por exemplo, quando, na penumbra, se reconhece certo contorno, certo

conjunto de linhas, certa mancha, fixa-se a extensão em que estes

componentes ocorrem como uma estrutura objectal, conquanto não se

consiga ainda dizer de que objecto se trata efectivamente.

Num terceiro ciclo, a submissão dos componentes, na sua relação

com a estrutura objectal (dado indispensável pois é através dele que se

pode fundar uma expectativa de proporção e de relevância dos

componentes face ao todo objectivo), à memória do sujeito activará e

actualizará um objecto de percepção.

Com este terceiro ciclo não se dá por concluído o processo

perceptivo; bem pelo contrário dir-se-á que tal processo – de natureza

iterativa – se aprofunda com a entrada em jogo dos operadores da

percepção objectiva, a saber, operadores epistémicos como a

interpretação e a descrição, mediados por uma grandeza de crença que

se visa maximizar.

Note-se que a actualização de conteúdos de objecto não ocorre

apenas após a actualização dos componentes objectivantes como se

estes fossem identificados na sua totalidade antes da expectativa de um

dado perceptum surgir. Na verdade, a atenção perceptiva é desde cedo

orientada por um conteúdo de objecto já actualizado quando ainda

procede ao reconhecimento e actualização de novos componentes

258

objectivantes. Aliás, é justamente pelo facto de esta actualização de

novos componentes objectivantes ser concordante, ou não, com a

expectativa de dado perceptum, que se "mede", por assim dizer, o grau

de crença que esse perceptum alcança.

Só se obterá uma boa percepção quando se alcançar a

maximização da crença. E para isso o perceptum actualizado serve

como fio condutor do processo perceptivo. Dito ainda de outro modo:

está para os componentes objectivantes como uma hipótese

interpretativa para o trabalho corroborante de uma descrição por si

orientada.

Nestes termos, a relação entre os componentes objectivantes e a

estrutura objectal dá lugar, uma vez suscitada uma expectativa, mais ou

menos bem fundada, de perceptum, à relação entre esses mesmos

componentes objectivantes e o perceptum objectivo propriamente dito.

Mas, no essencial, tais componentes – linhas, manchas, contornos, etc.

– são apercebidos exactamente como o são os objectos. Não haveria

deles alguma consciência senão mediada por um apercebimento que

envolve uma sequência de fases características de todo o ciclo de

percepção e que não dispensam o trabalho de uma memória.

b) Três Fases do ciclo perceptivo: Submissão, activação,

actualização

Toda a actualidade para uma mente é experiencial. No entanto, se

a actualidade sensorial ou hilética é também experiência de uma mente,

tal facto não lhe garante nenhuma espécie de acesso consciente à sua

matéria sensorial. Importa, aqui, distinguir entre experiência (sempre

caracterizável como actualidade e inactualidade) e acesso consciente à

experiência, ou ainda, entre a experiência de uma mente e a experiência

para um sujeito consciente. A partir do momento em que é possível

evidenciar que o material sensorial é actual não há razão para o não

considerar experienciado. A sua percepção não é uma condição

necessária da sua experiência.

259

Posta a distinção entre duas instâncias de actualidade, uma

hilética ou sensorial e outra significativa ou perceptual, é possível

descrever o processo de reconhecimento perceptivo, nos seus traços

mais elementares, como um processo em que da submissão à Memória

do sujeito de um dado conteúdo sensorial actual decorre, como

resultado, a actualização – num segundo contínuo, dito significativo –

de um dado conteúdo perceptivo.

Esquematicamente, uma cadeia de ciclos conducentes a uma

percepção objectiva deixa representar-se pela Fig.1. É interessante

notar, desde já, como este processo perceptivo, baseado em ciclos

reiterados, se distingue claramente de um processo de associação de

ideias desencadeado por uma percepção. Com efeito, na associação de

ideias, diversamente do que sucede na percepção, os ciclos envolvem

apenas o contínuo actual significativo (A’), exceptuando-se um

primeiro momento, inicial, que desencadeie perceptivamente o

processo. Já a percepção requer uma contínua retoma, ainda que sob

sucessivos ciclos, do conteúdo sensorial actual presente na actualidade

hilética (A).

A Fig. 2 esquematiza esta diferença.

O esquema mais geral do processo perceptivo revela-nos, para

cada ciclo, três fases consecutivas – em primeiro lugar, uma fase de

Fig. 1 Fig. 2 A’ A

O processo de uma cadeia de atribuições causais, sucedendo-se umas às outras, é representado pelo “zig-zag” entre o continuum actual de conteúdos significativos e a memória.

Memória Memória

260

submissão de material à Memória do sujeito; em segundo lugar, uma

fase de activação de um determinado conteúdo significativo na

Memória; em terceiro lugar, uma fase de actualização do conteúdo

activado no contínuo actual significativo. Representamo-las assim:

Relativamente a estas três fases do processo perceptivo, há um

conjunto de aspectos a ter em conta quer no que diz respeito à relação

inter-fásica que compõe um ciclo do processo perceptivo, quer no que

se reporta a cada uma das etapas intra-fásicas.

Inter-fasicamente, o primeiro facto fenomenológico a explicitar

resume-se ao carácter consecutivo mas não necessitado da passagem

do processo perceptivo de uma fase à seguinte. Ou seja: da submissão

de um certo material sensorial à Memória não se segue necessariamente

que a Memória chegue a activar um certo conteúdo que lhe

correspondesse, por um lado, e sucedendo tal activação de um

conteúdo, dela não se segue necessariamente a actualização desse

conteúdo no contínuo actual significativo, por outro. Dois exemplos

ilustram bem este carácter contingente da passagem inter-fásica da

percepção: a sobreposição de um esforço perceptivo a um outro em

curso e que se vê, assim, interrompido, e o caso das experiências de ver

confuso. No primeiro exemplo, o facto de a atenção sobre um dado

material sensorial ser repentinamente sobrelevada pela necessidade de

dirigir a atenção para outro material sensorial – pense-se num grito de

Fig. 3

Memória/Activação

Submissão

Actualização

A’ A

261

socorro – interrompe o curso de uma percepção seja qual for a etapa

fásica em que ele se encontre. Já na circunstância de um ver confuso –

usemos de exemplos de penumbra – é o próprio processo perceptivo

que não é capaz de se completar, por não conseguir, na fase de

activação, obter uma clara activação deste ou daquele conteúdo, em

contraste com outros.

Ainda inter-fasicamente, o segundo facto a dever ser explicitado

é o carácter recursivo ou cíclico do processo perceptivo, o qual no seu

curso tende – tanto mais quanto mais difícil for a percepção em causa –

a realizar mais do que uma submissão, à Memória, de material

sensorial. Este facto é por si só bastante evidente pois uma eventual

limitação a apenas uma consulta do material hilético resultaria muito

arbitrária e contra-intuitiva. Com efeito, nas experiências de ver

confuso, um sujeito esforça-se por submeter mais material hilético à

Memória na expectativa de que seja superada a dificuldade perceptiva.

Mas existe um outro tipo de considerações que sustentam este carácter

recursivo do processo perceptivo. Com efeito, já pudemos argumentar

atrás no sentido da existência de uma estratificação da percepção,

envolvendo pelo menos os seguintes níveis de estratos hierarquizados:

primeiramente, o de uma segmentação de um campo espacial objectal

no seio do campo de percepção; em segundo lugar, o da fixação de

componentes objectivantes numa estrutura objectal; e, finalmente, o da

actualização de um objecto de percepção. Ora, tal estratificação implica

a sucessão de vários ciclos inter-fásicos, cada um relativo a cada um

dos estratos da percepção.

Fig. 4

Memória

t1 t2 t3

hylé

A’

A

262

Note-se que a estratificação da percepção pressupõe que a

actualização de conteúdos nos ciclos inter-fásicos anteriores seja

preservada na passagem às actualizações resultantes dos ciclos

posteriores. Dito de outro modo, no processo inter-cíclico, que realiza a

individuação da objectidade percepcionada, há retenção das

actualizações anteriores nas posteriores.

Note-se também que este carácter recursivo ou cíclico do

processo perceptivo permite dar resposta às perguntas sobre o modo

como chega a haver uma antecipação da intentio, condição para que

chegue a haver uma intuitione real. É que uma mente não começa

simplesmente por ter a expectativa de ver, por exemplo, um pato e,

depois, sabe-se lá por que arte de adivinhação, chega mesmo a ver um

pato. A sucessão dos ciclos a que corresponde uma estratificação dos

percepta é acompanhada por uma estratificação das expectativas

perceptivas, de tal modo que num primeiro ciclo a expectativa começa

por se reportar apenas à presença em campo de um objecto, depois,

num segundo ciclo, à de uma certa estrutura objectal e, finalmente,

apenas no último ciclo, a expectativa se reportará a um certo objecto,

um pato por exemplo. Se uma mente chega, pois, a esperar ver um pato

é porque, em fases anteriores, nos conteúdos por elas actualizados, se

apresenta uma certa estrutura objectal que induz tal expectativa.

*

Intra-fasicamente, notemos apenas a contingência na fase da

submissão, a primeira fase do ciclo mental. A submissão do material

sensorial (ou hilético) à Memória pode ser voluntária, embora no caso

de uma percepção normal seja espontânea. Por exemplo, no esforço em

percepcionar alguma coisa em certo material há evidentemente uma

voluntariedade na submissão. Fora casos como estes, a submissão

decorre espontaneamente, i.e, sem o concurso da vontade do sujeito da

mente.

A submissão pode ser entendida como um acto de atenção, pelo

qual um certo estímulo é conduzido à Memória, tendo por efeito

263

esperado a activação de certos conteúdos memorizados e sua

actualização no contínuo actual significativo.

Se, por um lado, temos que a submissão pode ser voluntária ou

involuntária, por outro, importa notar o facto de que a submissão não

decorre necessariamente da presença de novos estímulos. A submissão

pode suceder, e é natural que assim seja, mas pode também não

suceder. O simples facto de uma boa percepção ter sido atingida – o

que é determinável pelo satisfação do princípio da maximização da

crença – é suficiente para que a mente deixe de realizar o esforço de

submissão, seja ele protagonizado voluntariamente pelo sujeito da

mente, seja ele apenas função do processo espontâneo da mente (e

passivo do ponto de vista do sujeito de vontade). Por outro lado,

diferentes índices de atenção de uma mente – empiricamente

mensuráveis por recurso a testes – reflectirão, muito naturalmente,

índices diferenciados de submissão. Adiante procuraremos evidenciar

que tais variações se traduzem em variações na percepção subjectiva do

tempo.

2. Interpretação do modelo husserliano no esquematismo

proposto

Expostos os patamares intra-fásico, inter-fásico e inter-cíclico do

processo perceptivo, tal como os propusemos no parágrafo anterior, e

subentendendo o modelo husserliano de constituição passiva do objecto

de percepção na consciência imanente do tempo, um novo nível de

consideração é suscitado a respeito da identificação do sentido

objectivo dos percepta e também a propósito da necessidade de

concretizar a distinção entre esse sentido objectivo dos percepta e o

sentido lógico próprio à actividade predicativa do juízo.

Comecemos pelo que concerne ao desenvolvimento de uma «ex-

plicação» fenomenológica. Tal como Husserl a expõe em Experiência e

Juízo, ela envolve, como sua condição, o desdobramento do contínuo

264

actual significativo em dois, A’ e A’’, sendo que em A’ é actualizada e

retida a objectidade na posição de explanandum e em A’’ são

actualizados os conteúdos na posição de explanans.

Assim, sendo x a objectidade a ex-plicar e ax, bx, cx os conteúdos

nela ex-plicados, obtém-se a seguinte modificação do nosso esquema

perceptivo:

Na ex-plicação fenomenológica de uma percepção, a mesma hylé

que está na origem da actualização perceptiva da objectidade x, está na

origem de outras objectidades ax, bx, cx. Dando-se a retenção da

actualidade de x, os componentes ax, bx, cx são actualizados sobre a

actualidade de x.

Observe-se, contudo, que o x não se preserva actualizado ao

longo do contínuo temporal apenas em virtude da retenção inerente à

própria forma da consciência temporal, pois essa é uma condição de

todo o aparecer consciente, a saber, que se converta numa retenção em

progressiva modificação até à sua desaparição. Na verdade, o que a

distingue da simples retenção, a esta preservação de x ao longo do

processo de explicação perceptiva, é o facto de x tornar a ser, a cada

nova submissão do material hilético, uma vez mais actualizado (Fig. 5).

Fig. 5 A’’ ax bx cx

A’ x x x x A (hilé)

memória

t1 t2 t3

265

Com efeito, a actualização de x não se limita a preceder as

actualizações de ax, bx, cx, como se estas não a implicassem. Antes as

acompanha de forma necessária, pois, se cada uma destas é activada, é-

o forçosamente sobre a activação de x. Assim, sucede, pois, que a uma

mesma submissão se seguem duas activações e correspondentes

actualizações.

Esta dupla actualização, em sobreposição significativa, tem a

particularidade de fazer com que o x e o ax (ou os bx, cx) venham à

presença em simultâneo e se modifiquem, também simultaneamente,

em retenção até à desaparição simultânea de ambos (Fig. 6 e 7).

Partilham, pois, a mesma unidade temporal. Se todos os aspectos ax, bx,

cx se constituem como aspectos de x (e não x aspecto de cada um deles)

é pela simples razão de que, ao longo do curso da explicação

perceptiva, cada novo aspecto é actualizado literalmente sobre a mesma

actualidade x, de cada vez revivescida (e não o inverso). Note-se que é

a vivência da coincidente unidade temporal entre o objecto de

percepção e o seu aspecto, embora cada um dispondo da sua, ou seja, a

vivência das simultâneas aparição, modificação para o passado

imediato e desaparição, que estabelece o elo objectivo entre a coisa e o

seu aspecto. Este consiste naquilo que resulta activado para lá do x e

que, em consequência disso, é co-actualizado com x.

Fig. 6 Fig. 7 ax A’’ ax

r(ax) x A’ x

r(x) A

hylé hylé

266

Os resultados esquematizados da presente proposta de teorização

do processo perceptivo podem enquadrar os resultados esquematizados

por Husserl nas Lições de 1905 sobre a consciência imanente do tempo.

Com efeito, se se representar, de acordo com a nossa esquematização,

uma sucessão de aspectos ax, bx, cx, qua aspectos de x – isto é, de tal

modo que, para a actualização de cada um, tenhamos que a sua unidade

temporal seja acompanhada pela unidade temporal de x e com ela

coincida –, obtém-se a Fig. 8, na qual se encontra inscrito, a

sombreado, o célebre triângulo rectângulo com que Husserl representa

a modificação contínua do agora da consciência em imediatamente

passado e deste no seu imediatamente passado num progressivo

afundamento.

Fig.8

Notar-se-á, evidentemente, que são, não apenas um, mas dois os

triângulos de Husserl inscritos na nossa representação. Tal só pode ser

atribuído, segundo a teorização proposta, a um desdobramento, sempre

possível, do contínuo actual significativo, desdobramento no presente

caso necessário, em virtude da dupla actualização de conteúdos da

memória do sujeito. Não fora esta dupla actualização efectuada em dois

contínuos distintos (A’ e A’’), mas, por suposição, num só (A’), e o que

se obteria seria um resultado inteiramente diverso. Em vez de se obter

ax qua aspecto de x, em que x é uma entidade individual, e ax apenas

um momento dessa entidade, obter-se-ia uma das duas seguintes

situações:

267

- Ou a actualização de duas entidades individuais

contemporâneas, isto é, objectivamente conectadas no tempo,

mas sem que, entre elas, houvesse outro nexo,

designadamente sem que, de ambas, se pudesse afirmar tratar-

se da mesma entidade.

- Ou, no caso de ax e x não se encontrarem previamente

individualizados, a actualização de uma só entidade, que não

seria nem ax nem x, mas sem que nela houvesse qualquer

diferenciação entre ax qua aspecto e x qua objecto de que ax

fosse aspecto.

A particularidade que permite experienciar a diferença entre uma

entidade e um seu aspecto é o facto de se verificar, pois, uma dupla

actualização, mas em contínuos distintos, particularidade que

possibilita a permanente actualização de x como entidade individual

distinta dos seus aspectos, vivida qua perceptum subsistente,

independentemente do aspecto particular com que aparece. O corte

transversal do triângulo resultante de A’ reflecte esquematicamente esta

independência da subsistência do x percebido face a este, aquele ou

aqueloutro aspecto particular, pois mais não revela do que a série x-rx-

r2x-rnx. Somente no triângulo resultante da modificação temporal de

A’’ é que encontramos, em corte transversal, a série cx-rbx-r2ax (Fig. 9).

Fig. 9 ax bx cx

rax rb x r 2ax

x x x rx rx r 2x

hylé

268

Finalmente, só pelo desdobramento da actualidade significativa

em A’ e A’’ – esta como que sobreposta naquela, ambas modificando-

se de acordo com a lei do fluxo temporal da consciência –, se

compatibiliza a experiência de um aspecto de x com outros seus

aspectos.

Outra forma de ex-plicação perceptiva consiste num

deslocamento da atenção perceptiva do x para um seu aspecto ax, mas

de tal modo que este aspecto seja tomado como objectidade

independente, visada em primeiro plano, ao passo que o x de que é

aspecto é remetido para um pano de fundo da atenção perceptiva. Nesta

circunstância, o desdobramento da actualidade significativa em A’ e

A’’ não é acompanhado pela activação e actualização de x em A’.

Sucede que em A’ a activação de conteúdos é desinvestida pela

atenção, daí decorrendo, em consequência, uma rarefacção dos

conteúdos actualizados, bem como uma rarefacção das próprias

actualizações.

3. O processo mental em A’’ como relógio do tempo subjectivo

Este último ponto é particularmente importante, pois introduz na

teorização em curso a necessidade de distinguir “tempos” de ciclos

mentais, de tal modo que o tempo objectivo transcorrido entre dois

ciclos trifásicos completos varie consoante se trate de uma apreensão

perceptiva em primeiro plano ou de uma em pano de fundo. Enquanto

nesta o tempo que medeia dois ciclos tende a aumentar, rarefazendo as

activações e as subsequentes actualizações, o que fica a dever-se a um

desinvestimento da atenção, já naquela que recebe a maior parte da

atenção perceptiva, esse mesmo tempo inter-cíclico medido por um

relógio diminui.

269

Perguntar-se-ia como pode a atenção suscitar uma diminuição do

tempo inter-cíclico no contínuo em primeiro plano. A esta pergunta

responde-se com a possibilidade de a atenção incrementar o ritmo de

submissões à memória do sujeito e, portanto, com isso, aumentar o

ritmo de activações e de actualizações. Por outro lado, perguntar-se-ia

como pode a atenção suscitar um aumento do tempo inter-cíclico no

contínuo em pano de fundo, mas a isto, por seu turno, responde-se com

a possibilidade da mente não actualizar todas as activações de certo tipo

(aquelas que se repetiriam) da memória.

Sejam exactamente estas as variáveis em jogo, ou sejam outras, é

perfeitamente possível explicar fenómenos trivialmente expressos como

sendo “deslocações da atenção”, “para um pormenor” ou, revertendo o

processo, “para o todo”, ou simplesmente algo como sendo a

obediência ao apelo “não prestes atenção a isso, mas àquilo”, tudo isto

através da gestão dos tempos inter-cíclicos, tal como se deixam

descrever dentro do nosso modelo de processo perceptivo.

Esta mesma variação dos tempos inter-cíclicos permite dar conta

da variação do ritmo com que o sujeito de uma mente vive o tempo.

Com efeito, num contínuo significativo caracterizado por um tempo

inter-cíclico menor ter-se-á que um corte transversal desse contínuo,

comparativamente ao corte transversal de outro contínuo caracterizado

por longos tempos inter-cíclicos, revelará, em termos relativos, uma

maior distância face à actualidade para um mesmo “agora” modificado

em retenção. Entre ambas as situações, a diferença residirá numa maior

vivência da mudança própria ao fluxo temporal quanto menor for o

tempo inter-cíclico. Por outras palavras, se os tempos inter-cíclicos

diminuem, então a vivência subjectiva do fluxo do tempo será mais

recorrente; se os tempos inter-cíclicos se alongam, então a vivência

subjectiva desse mesmo fluxo será mais esparsa.

Note-se que este dado parece ser infirmável pela popular

impressão de que quanto maiores os índices de atenção de um sujeito,

quanto maior a sua concentração, mais depressa parece passar o tempo

objectivo que medimos nos relógios. Mas, tal infirmação é aparente,

pois, na verdade, sucede necessariamente, em circunstâncias de atenção

270

esforçada (desde que não ao próprio passar do tempo), um

desdobramento da actualidade significativa em um pano de fundo (A’)

e um visado em primeiro plano (A’’), o que faz com que intervalos

inter-cíclicos menores em A’’ sejam acompanhados por intervalos

inter-cíclicos maiores em A’. Nestes termos, uma atenção esforçada,

face a uma atenção sem esforço, ao aumentar os tempos inter-cíclicos

do processo mental em A’ suscita a impressão de que decorreu um

certo lapso de tempo inferior ao lapso de tempo medido por um relógio.

Isto porque a medição deste tempo objectivo (medido pelos relógios) é

correspondida, subjectivamente, pela vivência da menor sucessão de

ciclos mentais, mas não pela vivência da sua maior periodicidade (i.e, o

tempo objectivo que medeia duas actualizações)196. Então, para uma

certa sucessão de ciclos um sujeito vai estimar um certo lapso de tempo

objectivo inferior ao de facto decorrido se a periodicidade desses ciclos

for superior ao valor normal. Um exemplo evidente encontra-se na

necessidade de um estudante, aquando a realização de um exame

escrito, de proceder a um constante acerto do seu “relógio interior”

perguntando que horas são no momento e pasmando-se não raras vezes

com o tempo (objectivo) que entretanto já passou.

Poder-se-ia ainda ser levado a pensar que há circunstâncias que

configuram contra-exemplos a esta ideia de que o tempo objectivo

passa mais depressa sempre que nos encontramos mais concentrados.

Por exemplo, todas aquelas circunstâncias marcadas por ansiedade face

a um qualquer acontecimento futuro, seja o início de um exame, que

parece nunca mais começar para o examinando, seja um parto, que

parece nunca mais acabar para uma futura mãe, etc. Circunstâncias

como estas parecem configurar um evidente contra-exemplo ao

exposto, pois não é o caso que nestas os protagonistas não estejam

196 Neste ponto, aproximamo-nos de forma evidente do pensamento de John

Locke, em An Essay concerning Human Understanding, sobre a natureza do tempo – «A atenção que pomos nas ideias da nossa mente e que nela aparecem, umas após as outras é o que nos fornece a ideia da sucessão e da duração, sem a qual careceríamos completamente de tais ideias. Não é, portanto, o movimento mas a série constante de ideias na nossa mente, enquanto estamos acordados, que nos fornece a ideia de duração.» (Locke, 1690: 237) Leia-se também – «examinando o que acontece na nossa mente, e como ali, da série das nossas ideias, constantemente desaparecem umas e aparecem outras, adquirimos a ideia da sucessão.» (Locke, 1690: 248-249)

271

muitíssimo mais activos do que em circunstâncias normais. A

explicação, porém, não é difícil. Aliás, faz destes casos figuras

exemplares do fenómeno em causa. É que em circunstâncias de

ansiedade o mais característico é a incapacidade de “ocupar” a vida

mental, de a conduzir a realizar outro processo mental além de prestar

atenção ao passar do tempo (em A’). Popularmente, diz-se que o bom

seria distrair o ansioso, ou seja, desviar a sua atenção para qualquer

coisa que o entretenha, o faça pôr em marcha o processo mental em

A’’. Confirmam, pois, estes exemplos a correlação entre vivência

subjectiva do tempo passado e a vivência do processo mental em A’’.

Ora, não fora esta variação dos tempos inter-cíclicos e

dificilmente se poderia encontrar uma explicação adequada aos dois

fenómenos descritos, o da vivência “acelerada” ou “mais lenta” do

fluxo do tempo, por um lado, e o da vivência de um desacerto entre o

tempo objectivamente passado e o tempo subjectivamente passado, por

outro. Em suma, a vivência subjectiva do fluxo temporal e a vivência

subjectiva de tempo passado são tanto maiores quanto maior for o

processo mental em A’’; por isso, concluímos que o ciclo mental é a

unidade subjectiva do relógio mental.

273

VIII

Naturalização da fenomenologia

1. O problema

Não é raro a ideia de uma naturalização da fenomenologia

suscitar pronta e clara apreensão em auditórios de fenomenólogos. Com

efeito, é frequente indicar-se uma objecção de princípio aos esforços de

naturalização da fenomenologia na crítica que Husserl endereçou ao

psicologismo nas suas Investigações Lógicas. De certo modo, é como

se as tentativas de naturalizar a fenomenologia redundassem num

desconhecimento da origem e da natureza da própria fenomenologia.

Os termos gerais desta objecção husserliana ao psicologismo

determinam-se facilmente – ao procurar fundamentar

experimentalmente as leis da lógica, o psicologismo é conduzido a

aporias insanáveis. No essencial, sustenta-se que a lógica não pode, na

sua validade necessária e universal, ser fundada empiricamente. A

natureza indutiva e, portanto, também falível das leis psicológicas

contrasta claramente com a necessidade e universalidade a priori das

leis lógicas. Pode formular-se a aporia assim: fundamentar

empiricamente o que, por princípio, dispõe de uma validade

independente de leis empíricas resume um absurdo óbvio.

274

Ora, é neste quadro de insuficiência da abordagem psicológica

empírica que emerge a fenomenologia como aposta metodológica de

Husserl para as suas ambições de fundamentação da lógica e, em geral,

da vida intencional da consciência. E, nesses termos, a aposta é a de

uma fenomenologia como filosofia perene, com valor objectivo

análogo ao de uma ciência formal como a matemática. Só assim, na

verdade, a fenomenologia se poderia eximir às críticas apontadas ao

psicologismo positivista e se legitimar como alternativa mais bem

sucedida.

Antes de caracterizar o método fenomenológico (pelo menos

aquilo que nele resulta mais consensual), e tendo estabelecida qual a

razão por que falha o psicologismo, há que evidenciar por que

surpreende tanto e tantas vezes a ideia de uma naturalização da

fenomenologia. Uma formulação de João Paisana ajuda a clarificar o

ponto – «(…) as principais dificuldades e as próprias consequências

cépticas do psicologismo derivaram, segundo Husserl, da naturalização

da consciência, reduzindo como tal todas as vivências cognitivas a

simples factos empíricos, espácio-temporalmente determinados,

encerrados sobre si.»197 Assim exposto o pressuposto central do

psicologismo, a saber, o seu compromisso com um programa de

naturalização da consciência, e também exposto que é precisamente

essa naturalização da consciência o que há que evitar, sob pena de se

cair no círculo do cepticismo – a primeira tarefa a que Husserl se

propõe é exactamente desnaturalizar a consciência –, então qualquer

intuito de naturalizar a fenomenologia, quando a esta compete como

tarefa primeira desnaturalizar, redundaria em genuíno desconhecimento

da origem da fenomenologia e manifesta denegação da sua natureza e

especificidade. Numa palavra, naturalizar a fenomenologia seria anular

a fenomenologia convertendo-a em nada ou numa psicologia mal

disfarçada. No essencial, esta é a objecção. No essencial, será esta

objecção que procuraremos discutir.

197 Paisana, 1992: 39. (Itálico nosso.)

275

Importa circunscrever um pouco melhor a crítica aos programas

de naturalização da fenomenologia. Para Husserl, não se tratou, com a

fenomenologia, de recusar a possibilidade de uma psicologia do

silogismo, mas de recusar, isso sim, as pretensões fundacionais do

psicologismo, designadamente quanto a se poder fundar

psicologicamente as leis da lógica, isto é, com recurso a leis

psicológicas. Nem o método experimental nem os seus resultados

empíricos foram ilegitimados. Apenas certa pretensão subjacente

fundacionista. Em suma, o que ficaria aqui vedado à psicologia

empírica seria a tarefa da validade.

Isto que poderia vir consagrar a compatibilidade entre

fenomenologia e psicologia, vem, na verdade, constituir um passo no

refinamento da objecção à ideia de uma naturalização da

fenomenologia. Com efeito, já não se trata de limitar as pretensões de

uma abordagem empírica de uma ciência natural, mas de dar resposta à

pergunta que daí se segue, a saber: Que lugar prevê a fenomenologia,

do seu ponto de vista, para as ciências experimentais? Qual o lugar

epistemologicamente pertinente para a psicologia empírica e, por

generalização, para as ciências empíricas dedicadas ao estudo da

mente?

Postas as coisas nestes termos, a verdade é que o problema não

reside tanto na continuidade de uma psicologia experimental ou de uma

qualquer outra abordagem empírico-natural à vida intencional de uma

mente, mas, isso sim, na iniciativa, dir-se-ia mesmo “livre iniciativa”,

que elas podem ainda ter junto à fenomenologia. E é justamente aqui

que a fenomenologia – mau grado as boas intenções de Husserl, aliás

muito bem secundado por Merleau-Ponty – acabou por revelar o lado

mais duro no relacionamento com as ciências naturais. Já não está tanto

em causa dizer, entre aqueles que se opõem a uma naturalização da

fenomenologia, que esta deve desnaturalizar-se para perseguir os seus

objectivos fundacionais, mas sobretudo que ela tem prioridade sobre as

ciências naturais.

Por vezes, sente-se a impressão de que o cientista empírico – já

acossado pela ideia de que apenas dispõe de uma visão abstracta sobre

276

o real – nem sequer tem legitimidade para arrolar, por assim dizer, a

fenomenologia, naquilo que são os seus resultados, a favor ou contra

alguma tese em sede da sua investigação. Não vai mal aqui fazer notar

quão extravangante seria o inverso – por abstracta que seja, a ciência

das ciências empíricas, sendo dada à publicidade, está aí para uso

público, como cultura viva.

2. A ideia de uma naturalização da fenomenologia

O que propõe exactamente o programa da naturalização da

fenomenologia? Se atendermos ao programa de Francisco Varela de

uma neurofenomenologia198 o pressuposto assumido é duplo: é, por um

lado, o pressuposto de que as vivências fenomenológicas dispõem de

uma base natural biológica e, por outro, o pressuposto de que existe um

constrangimento recíproco ou mútuo (mutual constraints) entre estas

duas fontes de informação sobre a vida mental.

Quatro pontos devem ser esclarecidos:

a) Naturalizar a fenomenologia não é operar nela uma redução

naturalista. Varela é, a este propósito, explícito: «os dados

fenomenológicos não podem ser reduzidos à, ou derivados da,

perspectiva da terceira pessoa.»199 É justamente sob um

pressuposto de irredutibilidade que se pensa a naturalização da

fenomenologia como uma tarefa. Fosse ela redutível e não

haveria que lhe procurar um rosto mais natural, bastaria mostrar-

lhe a força da lei, da lei da natureza. Em suma, naturalizar a

fenomenologia é torná-la natural, devolvê-la a uma naturalidade

em que comparece o extra-fenomenológico.

b) A naturalização da fenomenologia não visa contestar nenhuma

presunção fenomenológica; nem mesmo a presunção de algum

tipo de prioridade é posta em causa. É simplesmente contestado

198 Cf. Varela, 1996 e Varela, 1997. 199 «Phenomenal data cannot be reduced or derived from the third-person

perspective.»Varela & Shear, 1999: 4.

277

que tal presunção tenha de ser tida em atenção quando não está

em causa a sua legitimidade, mas apenas potenciar as suas

virtualidades – «Explorar exposições da primeira-pessoa não é o

mesmo que pretender que as exposições da primeira pessoa

tenham algum tipo de acesso privilegiado à experiência.

Nenhuma presunção de algo incorrigível, final, fácil ou

apodíctico acerca dos fenómenos subjectivos precisa de ser feita

aqui».200

c) O ganho que resulta desta convivência, com a auto-contenção

devida, entre perspectivas da primeira e da terceira pessoa

consiste, pelo menos como possibilidade, na obtenção de uma

perspectiva mais global e integral da mente – «Seria fútil

permanecer com as descrições da primeira-pessoa de forma

isolada. Precisamos de as harmonizar e as constranger

construindo as ligações apropriadas com os estudos da terceira-

pessoa… Genericamente, isto deve resultar num progresso em

direcção a uma perspectiva global e integrada sobre a mente,

perspectiva em que nem a experiência nem os mecanismos

externos têm a palavra final. A perspectiva global requer portanto

o estabelecimento explícito de constrangimentos mútuos, uma

determinação e influência recíprocas. Em suma, a nossa attitude

em vista das metodologias da primeira-pessoa é esta: não saias de

casa sem elas, mas não te esqueças de também trazer contigo os

relatos da terceira-pessoa.»201

d) Finalmente, valorizando o teor informativo que se obtém – no

caso da fenomenologia, forçosamente com boas descrições e

200 «Exploring first-person accounts is not the same as claiming that first-

person accounts have some kind of privileged access to experience. No presumption of anything incorrigible, final, easy or apodictic about subjective phenomena needs to be made here». (Varela & Shear, 1999: 2)

201 «It would be futile to stay with first-person descriptions in isolation. We need to harmonize and constrain them by building the appropriate links with third-person studies… The overall results should be to move towards an integrated or global perspective on mind where neither experience nor external mechanisms have the final word. The global perspective requires therefore the explicit establishment of mutual constraints, a reciprocal influence and determination. In brief, our stance in regards to first-person methodologies is this: don’t leave home without it, but do not forget to bring along third-person accounts as well.» (Varela & Shear, 1999:2)

278

boas explicitações –, para Varela estará menos em causa o

trabalho hermenêutico e de exegese, a tender para o interminável,

do pensamento de Husserl, quanto os resultados da prática

fenomenológica, como com, por exemplo, a fenomenologia da

consciência imanente do tempo – «Nunca é demais sublinhar que

o meu uso da fenomenologia do tempo de Husserl não está

preocupado com uma leitura textual muito próxima para provar

ou refutar algum ponto no pensamento do autor.»202 A título de

exemplo, as descrições da consciência imanente do tempo devem

poder ser apropriáveis independentemente da maneira como

evoluiu ou deixou de evoluir o pensamento de Husserl. Com isto

não se pede mais para a fenomenologia do que para qualquer

realização cultural, seja um equação da física quântica, um

teorema da matemática, ou uma obra literária.

Evidentemente, há limites à apropriação extra-fenomenológica

dos resultados da fenomenologia. Quando a especificidade da tarefa

fenomenológica é posta em causa, resulta claro que o uso da

fenomenologia só pode ser interpretado como abusivo. Não

encontramos, porém, razões para sustentar que tais limites tenham sido

ultrapassados no programa de naturalização da fenomenologia acima

exposto nas suas linhas mais gerais. Já não diríamos o mesmo do

programa, bem diverso, de uma heterofenomenologia proposto por

Daniel Dennett. Não nos parece fenomenologicamente aceitável uma

heterofenomenologia sem uma prévia fenomenologia da experiência do

outro ou, por outras palavras, sem um prévio afrontamento do problema

da intersubjectividade. Um segundo limite à apropriação consistiria

numa indistinção entre fenomenologia e psicologia empírica. Com

efeito, se por via da ideia de abordagens na perspectiva da primeira

pessoa (em contraste com as da terceira pessoa) se amalgamassem e se

202 «I cannot overemphasize that my use of Husserl’s use of the phenomenology of time is not concerned with a close textual reading in order to prove or disprove a point in the author’s thought. I prefer to take my cues from Husserl’s style as an eternal beginner, always willing to start anew; this is the hallmark of phenomenology itself (but it has not always been the case in practice).»(Varela, 1999: 111)

279

tornassem indistintas imanência psicológica e imanência

transcendental, ou se se confundissem momentos reais e momentos

ideias da consciência – ao fim e ao cabo tudo isto releva da primeira

pessoa –, estar-se-ia, então, a desprezar a especificidade da

fenomenologia e, desse modo, a fazer dela uso abusivo. Ora, no nosso

entender, Varela não foi negligente a este respeito. Pelo contrário,

assume explicitamente a operação da redução na sua caracterização do

método fenomenológico, bem como a clara demarcação da

fenomenologia face a outras fontes enquadráveis no que genericamente

e pluralmente vale como perspectivas da primeira pessoa.

No que se segue, apresentaremos um modelo cuja génese é extra-

fenomenológica – tratar-se-á da versão dinamicista do conexionismo –

e que, porém, encontra na fenomenologia concordâncias que lhe dão

suporte e assim suportam também a perspectiva integrada que Varela

almeja alcançar.

3. O conexionismo dinamicista

De acordo com Patricia Churchland, a analogia com o

computador, base do funcionalismo do computador e do programa da

IA-forte, tem limites na própria neurobiologia que subjaz à mente

humana.203

Perante estas dificuldades, há uma via alternativa: o programa de

investigação habitualmente designado por conexionismo. Este, em vez

de partir da ideia de que a cognição pode ser entendida como um

203 «For an example of the dissimilarity between computers and nervous systems, consider that in conventional computers memory is likened unto a library, with each piece of data located in its own special space in the memory bank, data that can be retrieved only by a central processor that knows the address in the memory bank for each datum. Human memory appears to be organized along entirely different lines. For one thing, from a partial or a degraded stimulus human memory can ‘reconstruct’ the rest, and there are associative relationships among stored pieces of information based on considerations of content rather than on considerations of location.» (Churchland, Patricia, 1986: 459)

280

processamento ou manipulação de símbolos com base em regras

sintácticas de uma linguagem – o que corresponde, grosso modo, ao

computacionalismo simbólico –, tem por pressuposto central a ideia de

que a cognição se deixa descrever através de redes semelhantes à rede

neural, sendo assim possível simular a cognição humana tendo por base

o próprio cérebro.

Note-se, porém, que não é o caso de que a computação por meio

de símbolos não seja um modelo bem sucedido no que se pode designar

por níveis elevados da cognição. É nos níveis mais básicos da cognição

que o modelo computacional-simbólico – ou IA simbólica – mostra

falhas significativas, preferindo-se aí a alternativa conexionista, seja na

sua variante ainda computacional seja na sua variante dinamicista. Por

exemplo, ainda de acordo com Patricia Churchland, se aquele modelo

consegue obter bons resultados na cognição ligada à dedução de

teoremas ou à competência para jogar xadrez, onde a presença de regras

lógicas é decisiva, falha porém em pontos fundamentais na cognição

como o simples reconhecimento perceptivo ou a compreensão do

discurso.204 Mas, em contrapartida, se nestes pontos o modelo

conexionista obtém resultados assinaláveis, o mesmo já não se pode

dizer do seu desempenho no que designámos por níveis superiores da

cognição e no âmbito propriamente racional da vida mental.

Contudo, no seio do conexionismo descortinam-se ainda duas

vias, que, não obstante o pressuposto central indicado, não são

inteiramente conciliáveis. Uma segue o modelo geral do

computacionalismo, como modelo de manipulação de símbolos, vindo

apenas aprofundar este através da ideia do processamento múltiplo, o

que de facto autoriza uma abordagem computacional de redes, mas que

não deixa, por isso, de se sujeitar às objecções que a sua natureza

computacional levanta. A outra, bem diversamente, assenta numa

204 «Although sequential models can be extremely powerful, they have been

disappointing in the simulation of fundamental cognitive processes such as pattern recognition and knowledge storage and retrieval. (…) for those things we humans find quite difficult, such as chess and theorem-proving, conventional AI approaches have been quite successful, but for those things we find easy, such as perceptual recognition and speech comprehension, the success of the conventional approaches has been negligible.» (Churchland, Patricia, 1986: 458)

281

abordagem dinamicista que propõe um entendimento do sistema

cognitivo humano como um sistema dinâmico ou, pelo menos, a sua

explicação como se de tal se tratasse.

A objecção central aos sistemas conexionistas computacionais

reside no facto de não darem, nem poderem dar, conta da cognição com

um processo contínuo, pois mais não fazem do que caracterizar, por um

lado, o processo cognitivo através de uma sequência de saltos entre

estados e, por outro, cada um destes estados como estados estáticos.

Perguntar-se-á: o que se passa entre t1 e t2? A resposta computacional

não poderá ser outra do que uma exposição de outro momento discreto,

numa regressão ao infinito que falha pelo simples facto do tempo ser de

natureza contínua e não discreta. Caso não se enverede por esta

regressão ao infinito é então o salto que ganha uma aura mágica em

virtude de uma inexplicabilidade da sua natureza. De todo o modo, pela

mesma regressão ao infinito, que não pode deixar de estar na base de

uma explicação da cognição que se queira integralmente

computacional, a faculdade explicativa de um tal modelo torna a

fracassar. Para todos os efeitos, é sabido que um computador – analogia

favorita do computacionalimo da mente – ou está num estado ou está

noutro, sem que seja, pelo menos computacionalmente, possível

descrever uma posição intermédia.

Ora, o pressuposto de qualquer abordagem dinamicista é

justamente o inverso: o tempo real conta num sistema dinâmico. E se o

processo de cognição deve ser abordado a partir de um modelo que o

proponha explicar em termos de continuidade, então essa é, desde já,

uma razão forte para se levar a sério uma abordagem do sistema

cognitivo natural como sistema dinâmico.

Mas esta objecção de partida é simplesmente a mais evidente. Ao

lado da correlação entre cognição e tempo, existem outras que

sustentam a hipótese dinâmica. Timothy Van Gelder e Robert F. Port

em Mind as Motion expõem um conjunto de pontos em que uma

abordagem conexionista computacional fraqueja:

- continuidade no estado (continuity in state),

282

- as interacções simultâneas múltiplas (multiple

simultaneous interactions),

- escalas temporais múltiplas (multiple time scales),

- auto-organização e emergência da estrutura (self-

organization and emergence of structure) ,

- embutimento (embeddedness).205

a) Hipótese dinamicista – conceitos teóricos

Para uma breve apresentação do conexionismo dinamicista,

comecemos pelas definições mais elementares. Por sistema dinâmico

entende-se um conjunto de variáveis que assumem valores diferentes ao

longo do tempo. As variáveis do sistema não são mais do que os

aspectos relevantes para a descrição do comportamento dinâmico do

sistema. Para cada instante t, essas variáveis assumem um certo valor –

ao conjunto de valores assumidos pelas variáveis num dado instante t

chama-se estado do sistema. Ao conjunto de todos os valores de

variáveis possíveis chama-se espaço de fase. Com estes conceitos é

possível afirmar que a sucessão de estados de um sistema dinâmico é

representável por uma trajectória no seu espaço de fase,

correspondendo cada ponto dessa trajectória a uma descrição completa

do estado do sistema em dado instante206.

Por outro lado, o espaço de fase é um espaço n-dimensional em

que n é o número de variáveis do sistema. Desta forma, se o sistema

dispuser de duas variáveis, o seu espaço fase será bidimensional (um

espaço de duas coordenadas cartesianas), se o número de variáveis for

três, então o espaço fase será tridimensional e assim em diante.

Naturalmente, entende-se por variável do sistema um aspecto do seu

205 Cf. Gelder e Port, 1995:22-30. 206 «No espaço de fase, o estado completo de conhecimento sobre um sistema

dinâmico num determinado instante de tempo colapsa num pontoo. Este ponto é o sistema dinâmico – naquele instante. No instante seguinte, no entanto, o sistema terá evoluído, mesmo que muito pouco, de maneira que o ponto se move. A história do sistema ao longo do tempo pode ser representada pelo movimento do pontoo, traçando a sua órbita através do espaço de fase» (Gleick, 1988:178-9).

283

comportamento, representável no espaço de fase. Além de variáveis,

um sistema possui parâmetros constantes. Por exemplo, tal como dois

pêndulos terão comportamentos diferentes em função de propriedades

como a massa de cada um dos pêndulos, ou o comprimento do cabo que

liga a massa em movimento ao ponto angular do movimento, tais

aspectos fixos são os parâmetros. Com certos parâmetros o

comportamento do sistema dinâmico será de uma maneira, com outros

parâmetros o comportamento do sistema será naturalmente outro.

Tratando-se de descrever um sistema dinâmico, proceder-se-á,

pois, em primeiro lugar, à identificação do conjunto das suas variáveis

relevantes; em segundo lugar, à indicação do sucessor do sistema (em

geral, o tempo); e, por fim, à determinação da regra (ou dinâmica) pela

qual o sistema evolui, ou seja, pela qual evoluem as suas variáveis ao

longo do tempo.

Para dar destes conceitos uma imagem menos abstracta, tomemos

em atenção o exemplo do comportamento dinâmico de um pêndulo

simples207. Sejam quais forem as condições iniciais do movimento de

um certo pêndulo, designamente a sua posição inicial (considerando

que é largado dessa posição a uma velocidade nula), ele orbitará em

torno de um certo ponto, com órbitas e velocidade cada vez menores

em virtude do atrito, até se deter nesse ponto.

Na descrição deste sistema dinâmico o conjunto das variáveis

relevantes é a posição e a velocidade do pêndulo. Graficamente, essas

duas variáveis podem ser representadas num espaço de coordenadas

cartesianas, com o eixo das ordenadas Y para a velocidade do pêndulo

e o eixo das abcissas X para a sua posição. O estado do sistema para

um dado instante – ou seja, os valores das suas variáveis nesse instante

– é dado por um ponto do espaço cartesiano. Ao espaço de todos os

valores possíveis que as variáveis do sistema podem assumir dá-se o

nome, como definimos acima, de espaço de fase.

Graficamente,

207 Exemplos expostos, entre outras referências, em Formosinho & Branco,

1997 e Gleick, 1988.

284

A representação gráfica do comportamento de um qualquer

pêndulo sujeito às forças de atrito revela uma bacia de atracção para a

qual o pêndulo tende, em virtude da dissipação da energia do sistema,

acabando, mais tarde ou mais cedo, por se imobilizar no ponto de

coordenadas (0,0), ou seja, na posição vertical com velocidade nula. A

este ponto chama-se atractor do sistema208, justamente por ser o ponto

para que tende inexoravelmente a trajectória do sistema.

Naturalmente, se desprezássemos as forças de atrito a que o

pêndulo está sujeito, o comportamento do mesmo sistema seria

diferente – ter-se-ia a representação no espaço fase de um ciclo,

percorrido vez sobre vez. A amplitude da oscilação do pêndulo

dependeria da energia do sistema – quanto maior a energia maior a

amplitude. Nos relógios de pêndulo, em que é introduzida,

periodicamente, no sistema alguma energia suplementar de forma a

compensar a dissipação, é justamente este tipo de comportamento que

se alcança. Neste caso, já não chegamos à representação de um atractor

208 No caso, um atractor de ponto fixo.

Y Fig. 27 T0 X

285

de ponto fixo, em que o comportamento alcança um estado

estacionário, mas à representação de um outro tipo de atractor,

denominado atractor de ciclo limite, ou seja, em que o comportamento

do sistema se torna repetitivo209. Mas, se a introdução de energia no

sistema for excessiva o comportamento do pêndulo ao longo do tempo

pode acabar por não ser atraído nem para um estado estacionário nem

para um ciclo em repetição contínua. Neste caso, o comportamento

pode tornar-se caótico. Ainda assim, tal não significa que na aparente

desordem não haja uma ordem subjacente, ou seja, que o

comportamento caótico não tenha os seus padrões próprios, que, ao fim

e ao cabo, no espaço de fase não surja outro tipo de atractores que não

os de ponto fixo e de ciclo limite. Tratam-se dos atractores estranhos.

O mais evidente exemplo de sistema dinâmico estável é o sistema

solar. Materialmente, trata-se de um conjunto de nove planetas

conhecidos, orbitando em torno de uma estrela de dimensão média, o

Sol. Cada um destes dez corpos possui uma determinada massa, e as

órbitas de cada um desses planetas em torno do Sol é função das

respectivas massas, a do planeta e a do Sol, também, embora em menor

medida, das massas dos restantes planetas (em especial do planeta

Júpiter), da posição relativa de cada um destes astros face aos restantes

e de uma constante gravitacional G (no caso de se adoptar as equações

de Newton da Mecânica Clássica). O modo como se comporta o

sistema solar pode ser matematizado (a partir das equações de Newton

ou, se formos escrupulosos, a partir das de Einstein), de tal forma que

podemos descrever as velocidades e as posições relativas dos astros do

sistema solar – estas são as suas variáveis relevantes – para um

qualquer momento, seja no futuro, seja no passado. Isto significa muito

209 «Um outro tipo de atractor é o atractor de ciclo limite. No espaço de fase o

ponto que representa o sistema, em vez de parar, circula numa curva fechada, o que equivale a um movimento periódico de algumas variáveis do sistema. No caso do pêndulo isto corresponde a um movimento forçado de pancadas periódicas, como nos relógios de pêndulo.» (Formosinho & Branco, 1997: 140). «Um outro exemplo é o coração; as equações que descrevem o movimento deste órgão são não-lineares e conduzem a um atractor de ciclo limite. Porém, sob a acção de um choque o coração pode ser atirado para uma bacia de outro atractor, este de “ponto fixo”, e o coração pára. Também por acção de um choque eléctrico apropriado, o coração pode regressar de novo ao seu atractor periódico.» (Formosinho & Branco, 1997: 141)

286

simplesmente que existe uma equação, exprimindo matematicamente a

dinâmica do sistema, pela qual, a partir de cada conjunto de parâmetros,

se pode representar o comportamento orbital do sistema num espaço de

fase.

Por outras palavras, se designarmos por estado do sistema num

certo momento t o conjunto dos valores assumidos por cada um dos

planetas quanto às suas posições e velocidades no espaço de fase, então

podemos afirmar que é possível determinar, matematicamente, qual o

estado do sistema para qualquer momento t, a sucessão de estados do

sistema para um intervalo de tempo t0-ti e, finalmente, por meio do

cálculo diferencial210, qual o comportamento do sistema na sua

globalidade.

Naturalmente, se as posições relativas e velocidades iniciais

forem outras os resultados diferirão. O que se diz das variáveis dir-se-á

ainda com maior premência dos parâmetros equacionados – se as

massas ou o número dos astros do sistema forem alterados, ou

simplesmente se o sistema estelar for outro, ou ainda, o parâmetro da

constante gravitacional assumir outro valor numérico, então os valores

determinados para um dado estado do sistema serão outros e assim será

necessariamente também para o comportamento orbital de cada um dos

planetas do sistema. Um sistema estelar real, seja o solar seja qualquer

outro, não é mais do que uma instanciação do sistema dinâmico

matematicamente descritível. Aquele está para este como uma entidade

real para uma entidade matemática.

Este é um sistema dinâmico que nos permite uma considerável

capacidade de previsão – por exemplo, a data e o local donde se

poderão observar os próximos eclipses lunares e solares. Mas isso

sucede porque se trata de um sistema linear. Fora ele um sistema não

210 Quer dizer, procedendo ao cálculo da derivada das funções, em que o

tempo é variável, das curvas resultantes, ou seja, à determinação da função que expressa matematicamente o comportamento daquelas curvas.

287

linear – cujas equações, por exemplo, fossem quadráticas – e o

horizonte de predictibilidade seria bastante exíguo211.

Uma forma de representar graficamente as variações de

comportamento de um sistema dinâmico em função das variações de

valor dos seus parâmetros consiste em conceber o sistema como uma

paisagem com características orográficas na qual uma esfera desliza

sem obstáculos. A cada parametrização corresponderá uma paisagem

orográfica e um certo comportamento da esfera – ora deslizará em

direcção a um atractor de acordo com certa parametrização, ora

deslizará em direcção a outro atractor caso a parametrização também

seja outra. A esta possibilidade de o sistema evoluir em direcções

diferentes da paisagem dinâmica corresponde uma bifurcação.

Ora, a abordagem dinâmico-conexionista dos sistemas cognitivos

assenta exactamente nos mesmos pressupostos de uma descrição

dinamicista do sistema solar, embora de uma forma bastante mais

complexa quer em virtude do número de variáveis a ter em conta quer,

sobretudo, em virtude da determinação de quais são exactamente as

variáveis a ter em conta e as relações (a ser matematizadas) que existem

entre elas. Uma última dificuldade, porventura a maior, consiste no

facto de uma descrição dinamicista do sistema solar dispor de

parâmetros facilmente identificáveis e quantificáveis, ao passo que uma

descrição dinamicista de um sistema cognitivo está longe de poder

determinar quais são os parâmetros a ter em conta, e muito menos os

seus valores. Em síntese, mesmo que, ex hipothesis, se desse por

garantida a validade deste tipo de abordagem, dificilmente se

conseguiria formalizar um tal sistema para a cognição humana.

Nestes termos, supondo a constância de todos os parâmetros à

excepção dos relativos a inputs externos – digamos sensoriais –, ter-se-

211 «Hoje reconhece-se que os sistemas caóticos constituem, afinal, a

generalidade dos sistemas naturais. Excepção são os sistemas planetários lineares, conservativos, como parece ser o sistema solar. E mesmo neste sistema convém referir que se as massas de outros planetas próximos da Terra fossem muito maiores, teriam de ser incluídas no movimento da Terra (e da Lua) e as equações dinâmicas seriam não-lineares. A sonda Voyager revelou precisamente que alguns satélites de Saturno, que gravitam próximo dos anéis, mostram órbitas caóticas. Os próprios anéis também parecem ser devidos a fenómenos de auto-organização de um sistema não-linear.» (Formosinho & Branco, 1997: 153)

288

á que para cada tipo de input corresponderá uma dada paisagem

dinâmica e, consequentemente, um dado comportamento do sistema.

Dito de outro modo, a esfera rolará num dada direcção e exactamente

em direcção a um certo ponto. Este ponto corresponderá ao ponto

atractor.212

4. Um exemplo: a percepção de objectos temporais

Em “Wooden Iron?”, van Gelder procura compatibilizar a

abordagem fenomenológica à mente com a abordagem cognitivista;

mais em particular, procura fazer militar aquela a favor da variante

dinamicista do cognitivismo, dando uso, por assim dizer, à moldura

teórica que Varela havia proposto como neurofenomenologia.

Com o intuito enuciado, van Gelder expõe como o debate entre

dinamicismo e computacionalismo, interno à abordagem cognitivista,

encontra uma versão fenomenológica no debate entre as perspectivas

husserliana e meinongiana sobre a percepção dos objectos temporais.

Segundo a perspectiva de Meinong, a percepção de um objecto

temporal só sucede depois da doação de todas as fases do objecto

temporal na sua duração, após a qual deveria então ocorrer uma síntese

dessas fases numa unidade. Apenas quando realizada a síntese dessas

diversas fases do objecto temporal, este seria, segundo Meinong,

percepcionado qua objecto temporal, por exemplo qua melodia. A esta

212 Baseando-se no Lexin System, sistema dinâmico desenhado por Robert Port

para o reconhecimento acústico, van Gelder expõe como é possível aplicar este tipo de abordagem dinamicista a sistemas cognitivos simples – «The Lexin System, after a program of “training”, has come to be wired up in such a way that for each distinct tone, there is a single unique point attractor in the dynamical landscape of the system. This is a state of the system such that wherever the system happens to be, it will head toward and eventually end up in that state. When the system is “hearing” one tone, it will head in the direction of the attractor for that tone. When another tone is presented, the system bifurcates; the previous attractor is replaced by another in a different location, and the system then heads off toward the new attractor. Thus, as the auditory pattern unfolds over time, it causes a series of bifurcations which result in the system state being pulled first in one direction, then another.» (Gelder, 1999: 256)

289

perspectiva, Husserl contrapõe suficiente evidência fenomenológica

para que se imponha uma outra perspectiva de compreensão do

processo subjacente à percepção de objectos temporais. Com efeito, se

admitíssemos o modelo meinongiano, então, durante a audição de uma

melodia não teríamos senão percepção de uma mera sucessão de sons

exteriores uns aos outros, e só depois, terminada a audição, é que

alcançaríamos a percepção dessa sucessão de sons como uma melodia,

o que manifestamente não sucede. O sujeito de percepção constitui o

perceptum enquanto este se dá; percepciona a melodia enquanto a

escuta.

Ora, de acordo com Van Gelder este tipo de evidência

fenomenológica tem valor informativo e deve, por isso, valer como

constrangimento epistémico aos modelos cognitivistas. É o caso que

nós percepcionamos uma melodia de uma certa maneira e não de outra,

é também claro que a abordagem fenomenológica em geral, e no

presente caso a de Husserl, fornece uma descrição suficientemente

precisa e objectiva da maneira como se dá essa percepção, explicitando,

por outro lado, informação suficiente para demonstrar que essa mesma

percepção não se dá de uma qualquer outra forma. Portanto, não seria

razoável não reconhecer que os resultados da pesquisa fenomenológica,

quando fiáveis, devem informar as ciências cognitivas213.

A este respeito, e em termos mais radicais, cremos poder afirmar

que qualquer tentativa de tratamento do problema corpo/mente não

pode dispensar uma fenomenologia pela qual seja descrito o objecto

que justamente se pretende explicar – a mente. Em contrapartida,

sustentamos que a abordagem fenomenológica, por si só, é incapaz de

perscrutar na sua experiência os processos que lhe estão subjacentes.

Por mais objectiva e completa que seja a descrição de uma experiência

– por exemplo, a de uma dor –, nessa experiência não se encontrará o

213 “Although phenomenological observation cannot, in general, be presumed

to give direct insight into the nature of the mechanisms responsible for experiential phenomena, there must ultimately be an account of why those phenomena are the way they are given (at least partly) in terms of the nature of those mechanisms. For this reason, the nature of our experience should be regarded as having the potential to constrain our theories and models in cognitive science” (Gelder, 1999: 257)

290

menor disparo neural, sequer nada que se assemelhe, por vaga que seja

a semelhança, com entidades descritíveis de um ponto de vista

neurológico. Reciprocamente, por mais completa que seja a

neurociência de uma dor, por mais completa que seja a descrição dessa

dor em termos neurológicos, não se encontrará nessa descrição o menor

vestígio dessa dor, de qualquer outra dor, ou do quer que seja que valha

como experiência de uma mente.

E, não obstante, não só é possível estabelecer correlações

mente/corpo entre eventos neurais num cérebro e eventos experienciais

na mente correspondente, como não é impossível, pelo menos por

princípio, encontrar descrições comuns, mas constituídas

independentemente, ao plano dos eventos neurais, por um lado, e ao

plano dos eventos experienciais, por outro. Admitindo que essas

descrições comuns, uma física, a respeito de eventos neurais, outra

fenomenológica, a respeito de eventos experienciais, possam, na

verdade, ser a mesma descrição, então esta terá forçosamente de ser

adjectivada como estando, a um tempo, para lá do ponto de vista da

física e para lá do ponto de vista da fenomenologia. Ou seja: assumir

uma perspectiva que considere as descrições comuns aos dois pontos de

vista como uma mesma descrição, será, em rigor, assumir uma

perspectiva simultaneamente meta-física e meta-fenomenológica.

Tratar-se-á, em suma, de naturalizar a fenomenologia por uma

manifesta e informativa concordância entre as duas perspectivas, a

natural e a fenomenológica; simplesmente, de uma forma em que o

ponto de fecho que as compatibiliza implica um salto de perspectiva,

salto, a um tempo, para lá da perspectiva física e da fenomenológica.

Talvez o que não possamos dispensar é uma nova metafísica.

291

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Índice

Introdução 7

Mentalidade sem consciência 17

Sobreveniência 43

Significação 107

Caracteres da experiência 136

Funcionalismo, IA, Linguagem do Pensamento 167

Compreensão 221

Percepção, tempo de percepção, percepção de tempo 255

Naturalização da fenomenologia 273

Bibliografia 291