Censura ao cinema e ao teatro - Tartufos: acção e reacção

241
Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013 Ana Cabrera e Cristina Castilho Costa (Coord.) Patrícia Contreiras e Cláudia Henriques (Org.) Centro de Investigação Media e Jornalismo 2014

Transcript of Censura ao cinema e ao teatro - Tartufos: acção e reacção

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Atas Congresso Internacional sobre

Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Ana Cabrera e Cristina Castilho Costa (Coord.)

Patrícia Contreiras e Cláudia Henriques (Org.)

Centro de Investigação Media e Jornalismo

2014

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

1

Ana Cabrera e Cristina Castilho Costa (Coord.)

Patrícia Contreiras e Cláudia Henriques (Org.)

Centro de Investigação Media e Jornalismo

2014

Atas Congresso Internacional sobre

Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

2

Ficha Editorial

Título

Atas do Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

Coordenação

Ana Cabrera, Cristina Castilho Costa

Organização

Patrícia Contreiras, Cláudia Henriques,

ISBN

978-989-20-5358-5

Ano

2014, dezembro

Edição

CIMJ - Centro de Investigação Media e Jornalismo

Lisboa, Portugal

Redação e Administração

Telefone: (+351) 21 3642013

Email: [email protected] // web: www.cimj.org

Fotografia da Capa

Sofia e a Educação Sexual de Eduardo Geada

© CIMJ 2014 Todos os Direitos Reservados

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

3

Í N D I C E

Apresentação

Ana Cabrera e Cristina Costa…………………………………………….…… 6

I. C i n e m a

La censura franquista ante el cine patriótico: el caso de la Guerra Peninsular

Josefina Martinez……………………………………………………………...10

Vasculhando os arquivos: a censura ao cinema português

Leonor Areal…………………………………………………………………..29

As críticas à censura de cinema e teatro (durante o Estado Novo em Portugal)

Leonor Areal ……………………………………………………………….…50

Portugal e os filmes ‘antiguerra’ em tempos de revolta estudantil

Gerald Bär …………………………………………………………………….68

A censura aos filmes de Ingmar Bergman durante o marcelismo

Ana Bela Morais ……………………………………………………………..82

Dissidências (ou a democratização da “geração invisível”)

Helena Brandão ……………………………………………………………….97

II. T e a t r o

Um achegamento à censura de Castelao e a sua época

Antonio Iglesias Mira ……………………………………………………….107

Tartufos: acção e reacção

Isabel Maria Alves Sousa Pinto …..…………………………………………120

O teatro do absurdo e a censura salazarista: A bengala, de Prista Monteiro

Márcia Regina Rodrigues ……………………...…………………………….136

Maria Della Costa em Portugal: censura à peça Desejo

Miriele Abreu ……………………………………………………………….149

I I I . M e d i a e I n t e r n e t

Mulheres, censura e internet: os casos Anne Frank e Xuxa Meneguel

Barbara Heller ……………...………………………………………………..160

Lúcio Flávio – sobre a censura ao livro e à adaptação cinematográfica

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

4

Sandra Reimão ……..………………………………………………………..174

Notícias da Amadora: estratégias de enfrentamento da censura e desobediência

civil

Orlando César ……………………………………………………….……… 184

Para inglez ver, ou as representações da “Nação” nos primeiros anos do Estado

Novo

Maria Cândida Pacheco Cadavez ………………………………………….. 202

I V . G é n e r o

Mulheres em pretérito (im)perfeito: audiências femininas do passado e memória

Maria João Silveirinha ……………...……………………………………….216

The male as a fragile object of desire: Fernando Matos Silva’s The Unloved (O

Mal Amado)

Érica Valente ……………………………………………………………….. 231

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

5

Estas Atas surgem na sequência do Congresso Internacional Censura ao

Cinema e ao Teatro1 que se realizou em Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais

e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, entre 13 e 15 de Novembro de 2013.

O congresso foi o culminar do projeto de investigação Censura e

mecanismos de controlo da informação no Teatro e no Cinema. Antes, durante e

após o Estado Novo, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

Durante três dias congressistas provenientes de diversos países como

Espanha, Reino Unido, Irlanda, Polónia, Brasil e Portugal puderam não só

apresentar o resultado das suas investigações, como participar num profícuo

debate sobre a censura ao cinema, ao teatro e à imprensa.

Neste congresso apostou-se em abordagens transdisciplinares, na

participação de profissionais do teatro, cinema, da imprensa e do Arquivo

Nacional da Torre do Tombo. Tornou-se assim possível a problematização dos

efeitos da censura a diversos níveis: a mutilação das obras dramáticas e

cinematográficas, os autores que nunca foram representados, as peças

jornalísticas que não foram publicadas e lidas e os atores, realizadores e

encenadores que viram o seu trabalho inutilizado.

O Congresso foi também palco de debate sobre as censuras na atualidade

e as suas novas configurações, tornando presente um assunto que não diz só

respeito ao passado e não se confina aos regimes políticos totalitários e

autoritários, mas que surge em novos formatos nas democracias.

Assim convidámos os congressistas à apresentação de artigos que agora

publicamos em formato eBook.

O projeto de investigação, o Congresso e agora este eBook foram

financiados por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciemcia e a

Tecnologia, no âmbito do projeto com RefªPTDC/CCI-COM/117978/2010 e

apoiados pelo CIMJ – Centro de Investigação Media e Jornalismo e pela

FCSH/UNL - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova

de Lisboa. A todos os nossos agradecimentos.

1 Site do congresso: http://www.cimj.org/censura2013#sthash.nNUzmbun.dpuf

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

6

Apresentação

Ana Cabrera

[email protected]

Coordenadora do Projeto Censura e Mecanismos de controlo da informação no

Teatro e no Cinema - Antes, durante e após o e Estado Novo e investigadora do

CIMJ

Cristina Costa

[email protected]

Coordenadora do OBCOM (Observatório de Comunicação, Liberdade de

Expressão e Censura da USP) e do Projeto Temático Comunicação e Censura -

Análise teórica e documental de processos censórios a partir do Arquivo Miroel

Silveira da Biblioteca ECA/USP

Nunca foi tão importante debater a censura como na atualidade. Isso

porque, ao contrário do que acontecia no passado, quando vivíamos em muitos

países da Europa e América sob regimes ditatoriais, na atualidade a censura é

indireta, difusa, particularizada e disfarçada.

Os órgãos oficiais de censura que controlavam a imprensa e os

espetáculos públicos foram quase todos extintos nas últimas décadas do século

XX, os processos de censura foram decrescendo e vivemos momentos em que se

acreditava que a liberdade de expressão passara a ser um valor inquestionável e

um bem a ser defendido em todas as democracias. Mas, passados esses primeiros

momentos de regozijo, eis que começamos a perceber movimentos de

monitoramento e controle da produção simbólica. Aqui, é um livro que é retirado

de circulação, sob pretexto de difamar pessoas; ali, é um biógrafo que é

condenado a pagar danos morais ao biografado que se considerou injuriado pelos

seus escritos. Aqui, é um filme que é retirado de cartaz porque é considerado

preconceituoso às minorias religiosas; ali, é um jornalista que é demitido por

publicar artigos que contradizem os editoriais do jornal para o qual trabalha.

Aqui, é uma peça que recebe uma ordem judicial para não estrear porque o tema

esbarra nos interesses de pessoas da elite política ou financeira; ali, é uma

empresa que deixa de patrocinar uma exposição fotográfica porque aparecem

crianças com pouca roupa. Aqui é a suspensão da revista de Análise Social (212)

do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e embora o Conselho

Científico tenha, posteriormente, anulado a decisão, não deixa de ficar na

memória a primeira atitude censória do diretor do ICS; ali, as pressões e ameaças

sobre os jornalistas do quotidiano Britânico The Guardian, a propósito da

publicação de algumas informações do espião Edward Snwoder.

Sem entrar no mérito de nenhum desses casos particulares, o que se

apresenta é a resistência dos mecanismos censórios que, pelas mais diferentes

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

7

justificativas – resguardo da moralidade, defesa da ordem social, proteção da

imagem pessoal de pessoas da sociedade, defesa do idioma pátrio, combate ao

preconceito e ao racismo, respeito às minorias étnicas e raciais, apreço às

mulheres e aos homossexuais, proteção à infância – acabam vetando obras,

prejudicando artistas e intelectuais, causando prejuízos financeiros e profissionais

e impedindo que informações, notícias e críticas circulem livremente pela

sociedade. Cada caso, entretanto, é abordado de forma individual, gerando a

impressão de que se trata de uma iniciativa única e particular que, sem dúvida,

mereceu algum tipo de intervenção. Mas, na verdade, ao analisarmos o conjunto

dessas atitudes, iniciativas e processos, percebemos que estamos perante uma

censura que resiste às democracias, às constituições liberais, ao desenvolvimento

da produção simbólica e à cada vez maior participação da sociedade em tudo que

lhe diz respeito. Há uma questão que subsiste no presente onde movimentos

subterrâneos do passado emergem paulatinamente na atualidade porque as

mentalidades mudam muito mais lentamente que os movimentos e ciclos da

economia (Lucien Febvre, Marc Bloch e Braudel).

Mas, nós estudiosos dos processos censórios das ditaduras do século XX,

investigadores que nos debruçamos sobre os documentos guardados que

testemunham a intervenção do Estado na imprensa e na produção artística,

sabemos que a censura é perniciosa – ela promove a autocensura; inibe artistas;

anula as críticas e torna os elogios ineficazes; infantiliza o público, emperra a

imaginação; homogeneiza a cultura, torna superficiais os textos e incolores os

espetáculos; pasteuriza os gêneros artísticos e desvaloriza as artes. Isso tudo além

de, como tão bem tem demonstrado o historiador Robert Darnton, propiciar,

estimular e desenvolver o mercado clandestino, as vias alternativas e o sucesso

de obras que, muitas vezes, têm como sua principal qualidade a de ter sido

proibida.

E é por sabermos que as informações importantes e com credibilidade

resistem à constante ameaça de emudecimento, assim como as obras de valor real

superam os entraves censórios, que defendemos a liberdade para que elas sejam

exibidas e cheguem ao público para o qual foram criadas e difundidas. A

divulgação é um momento importantíssimo nas comunicações e nas artes – é

quando se separa o trigo do joio, quando se contrapõem ideias, quando se apura

o gosto, quando se avaliam autores a longo prazo. Impedir a livre circulação de

ideias impede todo esse importante trabalho no campo da produção simbólica e

do debate social em torno da realidade e das situações nas quais vivemos.

Por tudo isso é que temos o prazer de apresentar aos leitores as atas do

Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro, uma iniciativa do

Projeto de Investigação “Censura ao cinema e ao teatro antes, depois e durante o

Estado Novo”, acolhido pelo Centro de Investigação Media e Jornalismo. Trata-

se de um importante fórum de debates sobre a censura do passado, do Estado

Novo de António Salazar, em Portugal, e do Estado Novo de Getúlio Vargas, no

Brasil, com suas atividades censórias e as ações para isso impetradas. Mas é

também um fórum sobre os dias atuais e a resistência censória na sociedade que

desenvolve novas formas sutis, indiretas e particulares de intervir na produção

intelectual, jornalística e artística da sociedade.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

8

Reunir especialistas, colocá-los em diálogo franco e aberto, estabelecer

pautas, criar um espaço de convivência, conclamar os estudantes a ouvir e

participar deve ter como resultado fortalecer convicções e alertar para os perigos

de fecharmos os olhos para o que quer que seja que venha para tolher nossos

anseios de ver e ouvir, de ler e escrever, de conceber e criar. E foi isso que o

Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro fez, estabelecendo

permanente e fecundo debate entre intelectuais, artistas e estudantes, no sentido

de evitar enganos e defender o espaço público e, nele, a liberdade de expressão.

O inusitado desenvolvimento dos meios de comunicação que

caracterizam a sociedade do século XXI, enchendo-nos de assombro e receio,

fazem-nos pensar nessa malha complexa e sem limites que são os meios digitais

na atualidade. Ao mesmo tempo que tem tornado mais fácil o contato entre as

pessoas, estes meios propiciam o monitoramento e controle. Esse cenário tem

feito recrudescer a discussão envolvendo liberdade de expressão, comunicação,

informação, cidadania e poder, levando os estudiosos a novos e incessantes

questionamentos. Estes assuntos estiveram também presentes nas apresentações

e debates deste Congresso.

Convidamo-lo, pois, à leitura destes trabalhos.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

9

I . C i n e m a

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

10

Las censura franquista ante el cine patriótico: el caso de la Guerra

Peninsular

Josefina Martínez Álvarez

[email protected]

Universidad Nacional de Educación a Distancia

Resumen - En este artículo se analiza la actuación de los censores sobre aquellos

filmes que, según el ideario político franquista, deberían ser las más significativas

representaciones del espíritu español: las que recreaban la mayor gesta patria del

siglo XIX, la Guerra Peninsular o de la Independencia española. A lo largo de las

diecisiete películas rodadas sobre este tema entre 1943 y 1975, guionistas,

productores y directores van a tener que plegarse al rigor de la censura para

alcanzar una financiación que, en contra lo que se suele creer, muy pocas

consiguieron en su máxima dotación. Lamentablemente, la mayor parte de estos

filmes van a degenerar en melodramas “patriótico-folclóricos” donde primó la

trama sentimental y el lucimiento de las estrellas de moda, más que convertirse

en unas cintas bien construidas, a través de las cuales el espectador pudiera

deleitarse adentrándose en el hecho histórico.

Palabras clave - cine español | franquismo | censura cinematográfica | producción

cinematográfica | cine histórico | fomento de la cinematografia | Guerra

Peninsular | cine folclórico | política cinematográfica | política económica.

1. Una economía de posguerra para el cine

En plena posguerra española, coincidente con la Segunda Guerra Mundial,

el gobierno franquista decidió intervenir la industria cinematográfica

declarándola sector estratégico. Con este fin, el 20 de octubre de 1939 se creaba

la Subcomisión Reguladora de la Cinematografía (SRC), una más de las quince

comisiones reguladoras, establecidas a partir de febrero de 1938, que organizaban

la producción y el comercio exterior del país. Su promotor, el ministro de

Industria y Comercio, el teniente coronel Luis Alarcón y de la Lastra, estaba

convencido de la importancia económica del cine y de su papel como instrumento

de “formación interior de los pueblos, creador de un espíritu nacional y elemento

de solidaridad de los hombres que los integran” (Alarcón y Lastra, 1940: 33). En

el preámbulo de la Orden que definía la SRC, se indicaban las causas por las que

el Estado asumía la tutela de la industria cinematográfica, además de por su valor

económico por su “alto significado de propaganda material y espiritual” (Boletín

Oficial del Estado BOE, 21-10-39).1 En un país empobrecido, necesitado de

1 La SRC estaba compuesta por representantes de todas las ramas de la industria

cinematográfica así como por los diferentes departamentos relacionados con ella. Sus

funciones cubrían asuntos tan variados como el control de la importación y la

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

11

recursos, resultaba perentorio incentivar la producción para reconstruir la

industria cinematográfica y así evitar la salida de divisas destinadas a la

adquisición de películas con las que surtir a las salas. Por otra parte, el control

ideológico, en plena guerra mundial, en la que España se debatía entre anglófilos

y germanófilos y se definió neutral o no beligerante según el momento, era

imprescindible controlar la información venida del exterior.

Pero más allá de los idearios políticos y de las posturas relativas a la

contienda mundial, la SRC nacía para evitar el uso indebido de divisas extranjeras

en las operaciones de importación de películas norteamericanas efectuadas, en

plena guerra, por los empresarios de la facción franquista. Esta realidad chocaba

con los objetivos autárquicos del Régimen, además de socavar la exigua

economía del país. El propio Franco había señalado cómo las películas

importadas contribuían al desnivel de la balanza de pagos (Diez Puertas, 2002:

59). En la situación de emergencia que se vivía, el desembolso de divisas para la

importación de películas, para muchos, era un dispendio.

Terminada la guerra civil, al Ministerio de Industria y Comercio (MIC) se

le asignaron las competencias sobre el fomento y protección del cine español por

lo que, a partir de julio de 1941, se estableció un sistema legal que subordinaba

la concesión de licencias de importación2, fundamentalmente para cintas

norteamericanas, al compromiso de producir y exhibir los filmes españoles en

Estados Unidos.3 Se iniciaba así un tortuoso camino que ligaba producción e

importación con aciagos resultados para la industria cinematográfica española.

Este trato discriminatorio hacia el cine norteamericano concluiría cuando,

tras arduas negociaciones, el presidente de la SRC, Joaquín Soriano, firmase en

julio de 1943 un acuerdo con los norteamericanos por el que éstos se

comprometían a enviar tres millones de metros de película virgen al año,

dependiendo de sus propias necesidades, para la producción española,4 así como

un centenar de películas filmadas para la exhibición en las salas españolas.

Washington se reservaba el derecho de entregar el material a las empresas que no

hubiesen tenido relaciones con el Eje (León Aguinaga, 2010: 115-122), lo que

excluía a las más significativas de la industria española: CIFESA, CEA y UFilms.

exportación de películas; la distribución interior de las mismas; las relaciones entre

alquiladores, distribuidores y empresarios; el régimen de trabajo de copias y

laboratorios y la reglamentación de las distintas profesiones relacionadas con la

cinematografía. Asimismo se ocupaba del registro central cinematográfico y de la

organización de cinematecas. Se dividía en dos secciones: producción -de la que

dependían los estudios y laboratorios- y comercio. 2 A las producciones “enteramente nacionales y de una categoría decorosa con un coste

no inferior a 750.000 pesetas”, sólo con la presentación de un aval bancario que

garantizase su edición, se le concedían permisos de importación (BOE, 28-10-41). 3 La situación no afectaba a las producciones alemanas, italianas, británicas y

portuguesas pues sus producciones formaban parte del clearing bilateral. Se entiende

por clearing, grosso modo, el acuerdo comercial entre uno o más países para compensar

importaciones y exportaciones. El acuerdo comercial con Portugal se firma en febrero

de 1943. (González, 2006: 65). 4 Por término medio, el material necesario para el rodaje de una película venía a ser

25.000 metros de negativo y 30.000 metros para el sonido. Una copia definitiva rondaba

los 4.000 metros. El tiraje de diez copias para la exhibición, exigían pues 40.000 metros

de película virgen.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

12

La guerra comercial y propagandística emprendida por los norteamericanos

contra el Eje ganaría también la batalla en las pantallas españolas. Los alemanes,

por su lado, que desde 1938 habían exigido un trato preferente para su cine,

desactivada la operación Felix5 de 1941, denunciaron el acuerdo bilateral firmado

con España el 26 de abril de 1940 para el envío de material virgen y de películas

filmadas –puesto que ahora habrían de pagar los cánones por importación y

doblaje según la orden de 23 abril de 1941- (Gráfico 1).

Fuente: Estadística de películas estrenadas en Madrid entre 1940 y 1950.

Archivo del Ministerio de Comercio (Madrid), Caja 5563. SRC. 25-6-51.

En cuanto a las licencias de importación, se había creado tal clima de

corrupción a su alrededor,6 que el MIC tuvo que establecer nuevas normas en

mayo de 1943 para la protección cinematográfica por importación de películas

(BOE, 24-5-43). Muchos productores, una vez obtenidas las licencias, ni siquiera

terminaban sus películas, y se dedicaban a traficar con la película virgen

entregada por la SRC. Por ello, las nuevas normas se dictaron para vigilar todo el

proceso de producción. El control lo ejercería la Comisión Clasificadora de

Películas Nacionales (CCPN), dependiente del Ministerio de Industria y

Comercio, que calificará a cada película en Primera, Segunda o Tercera categoría

según el presupuesto presentado y su valor de explotación. Como criterio general,

por cada millón presupuestado, se entregaban de 3 a 5 permisos de importación a

las calificadas en primera categoría; de 2 a 4 a las de segunda y ninguno las de

tercera. En la primera se encuadraban aquellas películas que supusieran un avance

considerable en cualquier aspecto de la producción y en la segunda, las aptas para

la exportación. Por desgracia, el sistema continuó siendo perverso: en vez de

acabar con la picaresca, los productores se lanzaron a inflar los presupuestos -

5 Operación diseñada para posicionar tropas alemanas en Gibraltar atravesando España. 6 Fundación Nacional Francisco Franco (FNFF), Cinematografía 1945. Legajo 121,

carpeta 1. Sobre el mercado negro de divisas véase León Aguinaga, 2010: 133-136.

Gráfico 1. Estrenos en Madrid 1942-1946.

21

93

17

2

47

10

25

34

3

117

1

42

1913

2 3 30

29

6

14

0

13

5 41

146

23

2

18

5 48

49

37

28

61

12

119

134

34

0

20

40

60

80

100

120

140

160

EEUU España Alemania GB Italia México Francia Argentina Otros

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

13

entre 1939 y 1945 aumentaron un 270%- para obtener el mayor número de

licencias posible, por lo que el Ministerio, de 1944 a 1948, tuvo que establecer

nuevas normas para limitar la concesión de las mismas (Vallés Copeiro del Villar,

1991: 173-184). En contra de las expectativas de los legisladores, la industria

cinematográfica española atrajo a gran número de desaprensivos que dilapidaron

esfuerzos y capital (Tabla 1).

Tabla 1. Empresas productoras españolas y películas rodadas entre 1944

y1951.

Empresas/A

ños 1944 1945 1946 1947 1948 1949 1950 1951 TOTAL

Emisora

Films 0 3 3 3 2 4 4 3 22

CIFESA 9 1 1 3 1 2 2 3 22

Suevia Films 0 2 1 1 4 2 4 6 20

PECSA

Films 1 0 1 2 0 2 4 0 10

Otras7 14 33 28 36 38 37 23 16 225

TOTAL 24 39 34 45 45 47 37 28 299

Fuente: Anuarios del Cine Español.

Además de financiar la producción gratificándola con las licencias de

importación, el Estado arbitró otra fórmula para fomentar la cinematografía a

través del Sindicato Nacional del Espectáculo (SNE). Por una Orden del MIC de

noviembre de 1941, el gravamen impuesto a las películas extranjeras por la

importación y el doblaje fue destinado a SNE.8 En concreto, en 1943, al

concederse 201 licencias de importación, el SNE obtuvo 7,65 millones de pesetas

por los derechos de importación y casi 4 millones por los de doblaje; cifras que,

por otra parte, acallaban a quienes exigían la exhibición en versión original de las

películas extranjeras – que haría descender la afluencia del público a las salas de

exhibición- en aras de un mayor proteccionismo del cine español (Radiocinema,

95).

El SNE dividió estos ingresos en cuatro partidas: créditos, premios,

fomento de guiones y becas. La mayor parte fue a parar al llamado Crédito

Sindical, que venía a paliar las dificultades de algunos productores para obtener

préstamos de los bancos. Previa presentación del guión y del presupuesto para el

film, se concedía hasta un 40% del monto total de la producción. Su devolución

al Sindicato se hacía en cuotas mensuales. La picaresca también cundió aquí,

7 En este apartado se agrupan todas aquellas empresas que no tuvieron una

producción continua. 8 Las tasas de las licencias de importación oscilaba entre las 25.000 y las 75.000

pesetas según el valor comercial del film extranjero, a lo que se sumaba el costo de las licencias de doblaje, 20.000 pesetas.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

14

cerrándose algunas empresas una vez obtenido el crédito, aunque, en puridad,

finalizada su función, en 1971, sólo quedaban diez millones de pesetas por

devolver de los mil trescientos concedidos entre 1942 y 1968 (Martínez, 2008:

350-353). Con esta financiación, el Estado pretendía que la industria produjera

entre 50 y 75 películas de largometraje al año, lo que suponía el 25% de los 300

filmes precisos para cubrir las necesidades de los 3.400 cines censados en 1942

(Primer Plano, 92), además de facilitar el intercambio comercial con el extranjero

y evitar la sangría de divisas. Evidentemente, para recibir estas subvenciones

había que cumplir unos objetivos acordes con el ideario del nuevo régimen.

2. El escenario político de la Censura

Por otra parte, en 1942 se había constituido la Comisión Nacional de

Censura (BOE, 26-12-42), heredera de las múltiples comisiones que habían

existido durante la guerra civil. Como aquellas, su misión consistía en escudriñar

tanto los filmes nacionales como extranjeros (Art. 2º) antes de su exhibición, para

evitar la propaganda, ideológica y moral, contraria a los planteamientos del

Estado. En plena guerra mundial, y observada España por los beligerantes,

resultaba imprescindible posicionarse frente a las ideologías capitalistas y

comunistas. La Comisión estaba compuesta por un Presidente, el director del

Departamento Nacional de Cinematografía (DNC), y cinco vocales en

representación del Ministerio del Ejército, de la autoridad eclesiástica, del

Ministerio de Educación Popular, del MIC y los lectores de guiones perteneciente

al Departamento de Cinematografía. Se creaba asimismo la Junta Nacional

Superior de Censura Cinematográfica que atendía los recursos de revisión. Así

pues, en España existía un doble sistema de censura, de una parte, la censura de

guiones y películas terminadas, desempeñada por la Comisión Nacional de

Censura y, por otra, a través del MIC, la CCPN ejercía un control económico al

decidir qué obras debían ser llevadas a término y bajo qué condiciones. Además

del personal técnico, para constituir la CCPN se contó con representares del arte

y de la cultura. Así, en un principio estuvo compuesta por José María Lapuerta,

subsecretario de Comercio, que ejercía las funciones de presidente; el presidente

de la SRC Ricardo Soriano; el poeta Manuel Machado, por la Academia de la

Lengua; el crítico de arte y novelista José Francés, representante de la Academia

de Bellas Artes de San Fernando de Madrid; Guillermo Reina, director general

de Bellas Artes y Antonio Fraguas, vicesecretario de Educación Popular. (Gráfico

2).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

15

Gráfico 2. Cuadro sinóptico de la estructura administrativa del Estado en lo

concerniente a la cinematográfica a partir de 1943.

A pesar de existir dos órganos censores, no había un código de Censura

propiamente dicho. Tanto productores como directores tenían que aproximarse a

sus criterios a través de la Revista especializada Primer Plano, órgano

extraoficial de las posiciones falangistas en asuntos cinematográficos. Dirigida

por Augusto García Viñolas, a la sazón presidente del DNC, a partir de octubre

de 1940 Primer Plano marcó el camino para aquellas películas que iban a definir

“lo español”. En ella, los miembros de las comisiones plasmaban su opinión en

artículos y editoriales que jalonaban las líneas de su actuación. En 1946, el que

fuera presidente de la Comisión Nacional de Censura Francisco Ortiz Muñoz, en

una conferencia dictada en el Consejo Superior de Investigaciones Científicas y

publicada por la editorial Magisterio Español, enumeró las normas por las que se

regía la Comisión.

Según Ortiz Muñoz, sus preceptos se basaban en la Carta Encíclica de S.S.

el Papa Pío IX acerca de los espectáculos cinematográficos, conocida como

Vigilanti Cura, publicada en Roma en 1936, y el Código moral de la Asociación

Americana de Productores y Distribuidores de películas, más conocido como el

Código Hays, eso sí, restringidos por él mismo para adaptarlos a la realidad

española. Según indicaba, además de regirse por un principio de neutralidad

personal -en este caso equiparable al de la moral católica-, sus actuaciones

carecían de inclinación partidista, procurando el constante acercamiento al bien

común. Sus desvelos se orientaban a cuidar de la moral pública puesto que

“cualquier categoría de personas, maduras y no maduras, cultas y poco instruidas,

buenos ciudadanos y delincuentes” (Ortiz Muñoz, 1946: 23) eran los

espectadores a los que había que dirigir. Por ello, y porque el cine era el mayor

vehículo de la cultura, había que ser pudoroso a la hora de permitir lo que pudiera

contravenir las normas señaladas. En última instancia “todo aquello que para un

Jefatura del Estado

Secretaría General del Movimiento

Delegación Nacional de Sindicatos

SNE

Grupo de Cinematografía

Vicesecretaría de Educación Popular

Delegación Nacional de Propaganda

CNCJunta Nacional

Superior de Censura Cinematográfica

Departamento Nacional de

Cinematografía

Lectores de guiones

MIC

SRC

CCPN

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

16

español normal –ni timorato ni vicioso– constituya, objetivamente considerado,

motivo de escándalo ha de prohibirse” (Ortiz Muñoz, 1946: 14). Este mismo

criterio se aplicaba a los asuntos ideológicos, puesto que el cine es:

Un arma política de imponderable eficacia por su naturaleza, su

capacidad de proselitismo, su enorme poder mimético y cautivador que

invade las facultades imaginativas y sensitivas y mueve la voluntad

provocando sentimientos, conductas, actitudes, juicios y criterios de

acuerdo con el propósito de los realizadores de las películas; todo ello de

forma sutil, amena, atrayente y eficaz. (Ortiz Muñoz, 1946: 12)

La última parte de su discurso la dedicaba a exponer los asuntos

prohibidos, y que estarán muy presente en los expedientes que a lo largo de este

estudio se analizan, empleando incluso la misma terminología, como si las

comisiones tuvieran su decálogo encima de la mesa: vestidos parciales y

trasparencias; gestos y ademanes excesivamente sugerentes; asesinatos, robos,

crueldades, mentiras, hipocresía, etc., pero sobre todo debería evitarse aquello

que el cine norteamericano había hecho atractivo respecto al sexo, así como al

individualismo y al heroísmo ficticio, que enmascaraba actos delictivos. La

censura se encargaba de limpiar el cine del “cieno y la obscenidad” (Ortiz Muñoz,

1946: 6). El censor rechazaba la ñoñería, la simpleza y la beatería, pues

consideraba que los temas debían de ser intensos y vigorosos, ejemplarizantes y

aleccionadores. Aunque España fuera un país pobre, estaba en condiciones de

aportar al mundo a través de su cine:

Ese tesoro inapreciable de nuestra fe, nuestra religión, nuestros principios

morales; un concepto santo de la familia, del hogar, el culto al honor, a la

justicia, a la fidelidad, al deber, a la caballerosidad; el respeto a la

dignidad de la mujer, en la que vemos sobre todo a la madre de nuestros

hijos; finalmente ese sentido cristiano de la vida y de las costumbres

sociales y familiares. (Ortiz Muñoz, 1946: 31)

3. Un cine para la nostalgia de un imperio (1943-1952)

Desde los organismos que constituían el entorno de la cinematografía se

esperaba que las empresas productoras emprendieran pronto grandes películas

históricas para “hacer latir el corazón ante lo nuestro, irrenunciable y eterno;

misión de combate y redención, en una palabra” (Primero Plano, 129), películas

que superaran a las filmadas por los grandes estudios europeos y

norteamericanos, en la línea de La reina Cristina de Suecia (R. Mamoulian,

1932), Escipión el Africano (C. Gallote, 1937), París 1900 (Bel Amí, W. Forst,

1939) o El gran rey (V. Harlan, 1942). La epopeya musical estadounidense La

espía de Castilla (The Firefly, Robert Z. Leonard, 1937), sobre la Guerra

Peninsular, recorrió las pantallas españolas a partir de 1940; en Portugal se había

estrenado el 17 de mayo de 1938. Trabas como la carencia de material eléctrico

o celuloide alejaba a los productores de las grandes epopeyas por su elevado coste

(Gráfico 3).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

17

Fuente: Anuarios del Cine Español y AGA.

No obstante, se les animaba para enfrentar asuntos sobre “nuestra clara

verdad retrospectiva, recogiendo en ella, para asombro del mundo, sus figuras y

sus hechos (…) España cuenta con suficiente materia prima para llegar a la

explotación de un cine excepcional” (Primer Plano, 151). Impregnados de este

espíritu patrio y vueltos los ojos hacia Portugal, con el fin de aumentar la calidad

y ampliar el mercado iberoamericano, entre 1943 y 1947 ambos países habían

afrontado la coproducción de películas históricas como Inés de Castro (J. Leitão

de Barros, M. G. Viñolas, 1944), Rainha Santa/Reina Santa (A. Contreiras, R,

Gil, 1947) o del género de capa y espada como A Mantilha de Beatriz/La Mantilla

de Beatriz (E. G. Maroto, 1946). Pero, tal vez la diferente visión de la Guerra

Peninsular, impidió que el tema fuera abordado durante este periodo de máxima

colaboración; habrá que esperar a 1982, año en el que una coproducción hispano-

franco-italo-portuguesa, La guerrillera (Pierre Kast), relate la implicación de

Portugal en la Guerra Peninsular.

A la espera de ese momento, entre 1943 y 1952 la heroica gesta española

fue el objeto de nueve películas, seis de ellas filmadas por cuatro de las

productoras más significativas de esos años: Suevia Films, CIFESA, PECSA y

Emisora Films. La última de este periodo, El tirano de Toledo, se abordó en una

coproducción franco-italiana, fruto de los convenios cinematográficos firmados

con estos países en 1950 y 1949 respectivamente (Tabla 2).

Gráfico 3. Evolución del coste de las películas sobre la Guerra Peninsular en

relación al coste medio (en pesetas)

0

2.000.000

4.000.000

6.000.000

8.000.000

10.000.000

12.000.000

14.000.000

1940 1943 1947 1953 1955 1958 1963 1966 1972

Media Nacional Guerra Peninsular

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

18

Tabla 2. Películas sobre la Guerra Peninsular rodadas entre 1943 y 1952.

Título/Año/Productora

Coste

presupuestad

o (pesetas)

Coste

aceptado

(pesetas)

Crédito

Sindical

(pesetas)

Clasificación

CCPN

Premio

SNE

(peseta

s)

El abanderado (1943)

Suevia Films

3.004.580 600.916 18 permisos 250.00

0

El verdugo (1947)

Olimpia Film 2.087.000 500.000

1ª.

3 permisos

El tambor del Bruch

(1948) Emisora Films 2.787.146 953.394

Interés

Nacional.

3 permisos.

Aventuras de Juan

Lucas (1949) Suevia

Films

4.310.617 3.746.824 1.360.000 2ª.

1 permiso

Sangre en Castilla

(1950) Filmófono 4.743.267 4.110.596 1.600.000

2ª.

1 permiso

Agustina de Aragón

(1950) CIFESA 8.880.875 6.850.000 2.400.000

Interés

Nacional.

3 permisos

450.00

0

Luna de sangre (1950)

PECSA 3.603.448 3.486.105 570.000

1ª.

2 permisos

100.00

0

Lola la Piconera (1951)

CIFESA 6.646.377 4.200.000 0

1ª.

2 permisos

El tirano de Toledo

(1952) Atenea Films

(España) Film EGE

(Francia) Lux Film

(Italia)

5.681.946 5.410.324 1.400.000

1ªB.9

2 permisos +

especial

protección: 1

USA

Fuente: AGA.

Obtener la financiación estatal resultaba un proceso complejo que duraba

entre 5 y 9 meses. Antes de sentarse en la sala de proyección, había que cumplir

con una serie de trámites para conseguir la aprobación del guión, el celuloide –

distribuido por el Estado-, el placet de la censura y los beneficios del Crédito

Sindical. Los pasos eran los siguientes:

1. Presentación del guión a la censura (Vicesecretaría de Educción

Popular)

2. Petición del cartón de rodaje (Vicesecretaría de Educación Popular)

3. Solicitud de material virgen para el rodaje (SRC)

4. Instancia al SNE para obtener el Crédito Sindical.

Una vez cumplidos los requisitos anteriores, comenzaba el rodaje de la

película que, ya concluida, habría de pasar de nuevo por:

9 El 16 de julio de 1952 se dictó una orden conjunta de los Ministerios de

Comercio y de Información y Turismo por la que varía la nomenclatura de las calificaciones y el modo de establecerse la protección, clasificándose las películas en Interés Nacional, 1ªA y B, 2ª A y B y 3ª.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

19

5. La Comisión Nacional de Censura (Vicesecretaría de Educción Popular)

6. El examen para su clasificación (CCPN)

7. Adjudicación de los permisos de importación.10

Los lectores de guiones hacían un primer acercamiento al tema, indicando

aquellos aspectos que creían inadecuados a la hora de trasmitir a los espectadores

los principios ideológicos y morales presentados en los textos. Del conjunto de

las películas aquí analizadas, las que tuvieron que efectuar mayores cambios

fueron El abanderado (E. Fernández Ardavín, 1943) y Las aventuras de Juan

Lucas (R. Gil, 1949).11 En cuanto a la primera, a pesar de haber recibido el premio

al mejor guión del año concedido por el SNE, se aconsejó incluir una escena con

un falso fusilamiento para que el guerrillero, y después general, Espoz y Mina,

no resultara abominable al condenar por traición a los protagonistas.12

Respecto a Las aventuras de Juan Lucas, aunque el argumento había sido

escrito por un periodista falangista, Manuel Halcón, descendiente del propio

Daoíz, el héroe del 2 de Mayo, el primer lector, Fermín del Amo, no sólo

consideró su tesis dispersa sino que le resultaba inadmisible la falsa regeneración

del protagonista –se había incorporado a la causa de la independencia sólo por

conseguir el amor de la protagonista- que, al frustrarse, retornaba a su vida de

bandido y contrabandista, e incluso –continuaba el lector- “parece querer

justificarse su conducta en el guión”.13 Resultaba inapropiado que los bandidos

entraran a formar parte de las tropas españolas y que a la vez continuaran con el

contrabando. En definitiva, se dictaminó su improcedencia “sin una profunda

modificación que salve los obstáculos graves señalados”.14 Presentado el guión

de nuevo a examen, otro lector, José Luis García Velasco, a pesar de reconocer

la agilidad y el sentido cinematográfico de la acción, consideró los diálogos

carentes de espontaneidad. Le auguraba cierto éxito una vez corregidos los

inconvenientes que aún veía para su aprobación pues, a su juicio, parecía que “la

guerra de la Independencia española fue hecha (…) por la canalla de este país.

Ningún personaje recoge la nobleza del pueblo que se alzó contra la invasión”.15

Dictaminó de nuevo su “PROHIBICIÓN” –en mayúsculas en el original-

mientras no se cambiara sobremanera el texto. La productora aceptó los cambios

así como los siguientes, propuestos ya por la Comisión de Censura que, por fin,

dio la autorización al encontrar superados los contrasentidos morales de la

incorporación del bandolerismo andaluz a la causa de la Independencia.

El asunto de la guerrilla también sobrevoló por encima del guión de Luna

de Sangre (F. Rovira Beleta, 1950). A pesar de recibir su guión un accésit del

SNE, hubo de rebajarse la valentía de los guerrilleros y su “carácter simpático”.16

10 Este trámite podía durar entre uno y dos años. FNFF, Exp. 3392. 11 Véase un análisis fílmico y textual sobre las películas de la Guerra Peninsular en

Maroto de las Heras, (2007), Sanz Larrea, (2008) y Martínez Álvarez (2010). 12 Archivo General de la Administración. España. (AGA). Cultura, 36/12748. 13 AGA. Cultura, 36/4694. 14 Ibídem. 15 Ibídem. 16 AGA. Cultura, 36/4719.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

20

Hay que resaltar que, hasta mediados de los cincuenta, el gobierno español aún

libraba una soterrada batalla contra anarquistas, socialistas y comunistas – el

maquis- dentro y fuera de sus fronteras.

Como ya indicara Ortiz Muñoz, los aspectos morales y religiosos se

vigilaban especialmente. Nada que ofendiese a la Iglesia y fuera en contra de su

doctrina podía incluirse en estas películas patrióticas, de las que se esperaba

diesen la vuelta al mundo. En Las aventuras de Juan Lucas hubo de suprimirse

un diálogo entre el aristócrata don Martín, padre de la protagonista y colaborador

del general Castaños, y un fraile, al considerar la Comisión que resultaba

humillante para el clérigo; en Luna de Sangre tuvo que eliminarse el robo en una

iglesia. Las relaciones adúlteras no tenían espacio en estas películas, por ello fue

preciso omitir en Las aventuras de Juan Lucas otra escena en la que don Martín

come uvas frente a las tumbas de su amante y de su esposa. En aras de la decencia,

en la mayor parte de las películas, se depuró la indumentaria femenina así como

los movimientos de los bailes. En El verdugo (E. Gómez, 1947) el lector ordenó

“vigilar el plano en que actúa la bailarina”17 y de hecho, Lola la piconera (L.

Lucia, 1951) no obtuvo la calificación de Interés Nacional18 tanto por los

trasparentes de los vestidos de las bailarinas como por los bucles de las mismas,

amén del triángulo amoroso entre los protagonistas.19

La calidad de las cintas era cotejada por la CCPN para otorgarles la

calificación. De las nueve películas producidas en este primer periodo, dos

alcanzaron la máxima calificación, la de Interés Nacional: El tambor del Bruch

(I. F. Iquino, 1948) y Agustina de Aragón (J. de Orduña, 1950). La primera, en

opinión de los censores, además de su excelente realización y la valía de sus

cuadros técnicos, “exaltaba las cualidades espirituales y patrióticas”20 en su

trama. En cuanto a Agustina de Aragón, en un principio, los lectores juzgaron el

guión carente de interés y emoción; en conjunto no estaba a la altura de la

magnitud épica de la heroína. Mas, una vez concluida, se le otorgó la máxima

calificación por su “realización perfecta unida a un tema de profundo valor

patriótico, llevado a la pantalla con un ímpetu dramático que encierra lo

sublime”.21 En desacuerdo con su calificación, los productores de las demás

obras, en cada caso, solicitaron un cambio de la misma sin ningún efecto. Las

decisiones de la Comisión solían ser inamovibles.

Por lo general, la crítica y el público coincidían con los criterios de las

Comisiones. Agustina de Aragón fue uno de los grandes éxitos de la

cinematografía nacional de los años cincuenta, permaneciendo más de tres meses

en las salas de estreno y un largo tiempo en las salas de reestreno. En cuanto a la

aceptación en el extranjero, el tópico del exotismo español -que confirmaba el

17 AGA. Cultura, 36/3326. 18 En 15 de junio de 1944 (BOE, 23-6-44) se creaba el título de Interés Nacional para las

películas producidas con cuadros técnicos españoles y que contuvieran “muestras

inequívocas de exaltación de valores raciales de nuestros principios morales y

políticos.” (Art. 3º). A esta categoría se le dispensaba un trato preferente para su

contratación en las salas de proyección. 19 AGA. Cultura, 36/4726. 20 AGA. Cultura, 36/3320. 21 AGA. Cultura, 36/4717.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

21

pintoresquismo romántico trazado por los viajeros decimonónicos-, ratificaba la

atracción en Europa y América por los rasgos folclóricos españoles: Agustina de

Aragón se exportó a Estados Unidos, Italia, Grecia y Argentina y Lola la

Piconera, a Estados Unidos, Argentina, Italia, Brasil, Grecia, El Líbano, Siria y

Argelia. No obstante, también se proyectaron en el extranjero El abanderado

(Portugal e Italia), El tambor del Bruch (Cuba) y Aventuras de Juan Lucas (Chile

y Argentina). El tirano de Toledo, al tratarse de una coproducción, tuvo asegurada

su comercialización tanto en Francia como en Italia y sus colonias, además de

venderse a Estados Unidos, Bélgica, Finlandia y Alemania.

En el mercado interior, la amortización de cada millón de pesetas invertido

solía hacerse en un año.22 Del precio de cada entrada, el productor recibía un

20,5%; el Estado, a través de los impuestos de Usos y Consumos y el destinado

a la Mendicidad recaudaba un 35%; los exhibidores percibían un 35,8% y los

distribuidores un 8,8%. En cuanto al promedio de beneficio por película que

suponían las licencias de importación a los productores superaba las 900.000

pts.23 Según estas cifras, incluso la película de coste más elevado, Agustina de

Aragón, en un corto periodo habría sido amortizada por la productora.

En cualquier caso, todas ellas fueron un buen negocio para los implicados.

Por otra parte, tal y como deseaba el Régimen, en su conjunto cumplieron con su

función adoctrinadora. Sus referentes culturales heterogéneos y populares unidos

a una puesta en escena solemne, donde primaba la lucha épica de toda una nación

cohesionada contra un enemigo exterior muy superior y el enfrentamiento

personal al pérfido enemigo interior, configuraron la esencia del imaginario

común. Por encima de la lucha contra el francés, aquella Guerra representaba

fielmente el trasunto de la España franquista.

4. Los criterios de un gobierno tecnócrata (1953-1975)

A partir de 1952 la posición de España en la sociedad occidental

experimentó un cambio significativo. Una vez firmado el Concordato con la

Santa Sede en 1953 y firmados ese mismo año los Acuerdos Bilaterales con

Estados Unidos, España ingresa en la ONU en 1955. Gracias a los créditos

norteamericanos, la economía española pudo abandonar la autarquía. Al Régimen

ahora le preocupa más su imagen en el exterior, y en consecuencia, el ideario

político sufre ciertas modificaciones, lo que influye en la estructura de la

Administración del Estado. La mayor parte de las competencias de la

cinematografía se van a integrar en un nuevo Ministerio, el de Información y

Turismo. En el preámbulo de la ley que explica estos cambios se incide en el

carácter del servicio público de la información, dirigido a promover el bien

común “en orden a formar serios criterios de opinión y difundir la más auténtica

conciencia de nuestra Patria, tanto en el interior como en el exterior” (BOE, 24-

2-52).

22 FNFF. Estudio de la industria cinematográfica en España. 1946. Exp. 15305. 23 FNFF. Cuadro comparativo de los beneficios otorgados por el Estado a las tres

productoras cinematográficas más importantes. Exp. 9570.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

22

Los distintos organismos de los que depende la cinematografía, entre 1953

y 1967, intentarán evitar las acciones especulativas que sigue provocando el

tráfico de licencias de importación. Para ello, en lugar de a los productores, las

licencias se adjudicarán a los distribuidores. Pero las ayudas al cine –que oscilan

entre el millón y medio y los cuatro millones para cada película- continúan

dependiendo de los ingresos por la explotación de las licencias. Esta práctica

desaparecerá cuando el fomento del cine tenga su propio capítulo en los

Presupuestos Generales del Estado a partir de 1967.

En el nuevo organigrama, y dependiente del Instituto de Orientación

Cinematográfica, se inscribe la Junta de Clasificación y Censura de Películas

Cinematográficas (JCyCPC) que aúna las comisiones anteriores, aunque se

mantiene dividida en dos ramas: una, dedicada a la Censura y a lo relacionado

con la apreciación de las películas en sus aspectos ético, político y social -siendo

definidos por primera vez los elementos a dictaminar-, y la otra, la de

Clasificación encargada de calificar las películas para asignarles la ayuda estatal

“atendiendo a sus cualidades técnicas y artísticas y a sus circunstancias

económicas” (BOE, 31-3-52). La JCyCPC estaba compuesta por miembros de las

dos ramas y presidida por el director general de Cinematografía. También se

contemplaba la creación de una Comisión Superior de Censura cuya función

única era la de revisar los dictámenes de la JCyCPC y resolver los recursos de

apelación. Asimismo se variaba el procedimiento para obtener la ayuda estatal

(BOE, 23-7-53), aunque la nueva estructura continuaba ligando los aspectos

económicos con las valoraciones estéticas, morales o patrióticas personales, y

seguía dependiendo de criterios arbitrarios como el gusto particular o las

predilecciones de cada censor, dentro, evidentemente, de los márgenes religiosos

y políticos marcados por el Estado.

A la vista de los resultados comerciales de las películas rodadas durante el

periodo anterior sobre la gesta patria, los productores consideraron que lo que

atraía de España, tanto en el interior como en el exterior, seguían siendo los

tópicos construidos a lo largo del siglo XIX. Si lo aclamado por el público era la

guerrilla, el enfrentamiento por el amor de una mujer y las canciones folclóricas,

no iban a nadar contracorriente. En las producciones realizadas hasta el final del

franquismo se huye de los grandes dramas épicos y la trama bélica se ensombrece

bajo los efectos del melodrama; ya no se pondera al Ejército sino que la guerra se

convierte en un asunto personal protagonizada por el pueblo, será el reflejo de las

hazañas de unos individuos que luchan por su libertad, que se enfrentan al

enemigo por defender su hogar y que abogan por la paz. Los franceses dejan de

aparecer como los grandes enemigos de la patria, son hombres que se humanizan

amando a las españolas. La conciliación está por encima de cualquier

sentimiento. Las mujeres, por su parte, siguen divididas entre el amor al enemigo

o la traición a la patria.

Bajo estos supuestos se van a rodar ocho películas más, cuatro dirigidas

por realizadores argentinos que, tras la caída de Perón de 1955, continúan su

trayectoria profesional en España. En conjunto, estas obras son más mediocres

que las del decenio anterior. Ninguna alcanzó la categoría de Interés Nacional,

sólo una fue calificada en 1ªA, Carmen la de Ronda (T. Demicheli, 1959). Las

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

23

restantes, El mensaje (F. Fernán Gómez, 1953) fue encuadrada en 1ªB, Venta de

Vargas (E. Cahen Salaberry, 1959) y Los guerrilleros (P. L. Ramírez, 1962) en

2ªA y Llegaron los franceses (L. Klimovsky, 1959), en 2ªB. Las dos últimas, La

guerrilla (R. Gil, 1972) y Contra la pared (B. Fernández, 1975) optaron a una

nueva calificación establecida a partir de 1964, la de Interés Especial24, que sólo

la obtuvo la primera de ellas. Por último La colina de los pequeños diablos (L.

Klimovsky, 1964) producida al socaire de la exitosa La guerra de los botones (Y.

Robert, 1962), fue dirigida al público infantil. Los censores la consideraron floja,

pero “deliciosamente absurda”25. Admitida en la categoría Especial para

Menores, fue estrenada en 1964 en el festival de Gijón, donde recibió una

mención honorífica. A pesar de su mediana calidad, cubrió ampliamente las

expectativas al permanecer más de cinco meses en los cines de estreno (Tabla 3).

Tabla 3. Películas sobre la guerra Peninsular realizadas entre 1952 y 1975.

Título/Año/Productora

Coste

presupuesta

do (en

pesetas)

Coste

aceptado(

en

pesetas)

Clasificación

Aportación

estatal (en

pesetas)

El mensaje (1953) Helenia Films 4.078.373 2.630.000

1ªB.

35% del coste

aceptado

720.000

Venta de Vargas (1958) PECSA 9.356.225 4.900.000

2ªA.

30% del coste

aceptado

1.470.000

Carmen la de Ronda (1959)

Benito Perojo Producciones 11.280.000 7.000.000

1ªA.

40% del coste

aceptado

3.000.000

Llegaron los franceses (1959)

Auster Films 7.621.124 4.560.000

2ªB.

25% del coste

aceptado

1.140.000

Los guerrilleros (1963) Arturo

González P. 8.323.713 6.010.000

2ªA.

30% del coste

aceptado

1.800.000

La colina de los pequeños diablos

(1964) Hispamer 2.413.068 2.017.642

Especial para

Menores.

60% del coste

aceptado

1.210.585

La guerrilla (1972) Gil/Universal.

España/Francia

12.345.000

(aportación

española)

11.970.00

0

Interés

Especial

50% del coste

aceptado

---------

Contra la pared (1975) Luis

Megino PC 6.154.704 4.432.265 2ªA. ---------

Fuente: AGA.

Como en el periodo anterior, la JCyCPC juzgaba la tesis, el valor literario,

los aspectos políticos y morales y la calidad. Siguiendo las opiniones vertidas por

24 Establecida para aquellos proyectos arriesgados desde un punto de vista temático o

estético, con “suficientes garantías de calidad” y que “realmente contengan valores

molares, sociales y políticos” (BOE, 1-9-64). 25 AGA. Cultura, 36/5444.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

24

los censores en los expedientes, en la mayor parte de los casos, se puede entrever

su desesperanza para obtener, entre la producción nacional, un film que recree

con grandeza la epopeya de los antepasados. Aún así, como indican en más de

una ocasión, en beneficio de la propia industria, se sobreestima la calificación.

De este modo, aunque el dictamen concediera la mejor calificación a

Carmen la de Ronda, en atención a la posible comercialidad por la buena

interpretación de Sara Montiel, cuando la productora solicitó la calificación de

Interés Nacional, la JCyCPC no omitió en su informe duras críticas.26 Desde la

ambición de los productores de la libérrima adaptación de la obra de Merimé,

“dirigida a sacar las perras a los espectadores. Para esto no se ha perdido ocasión:

canciones, duelos, navajas y pintoresquismo a todo pasto”,27 hasta el escaso gusto

del argumento “atiborrado de hembra brava y de todos los tópicos usuales de estas

españoladas patrioteras”;28 la vulgaridad no escapó a los ojos de los censores. La

película estaba concebida para el lucimiento de la artista con fáciles e inevitables

situaciones “casi siempre rebuscadas para que Sarita Montiel coloque su

canción.”29 En este caso, el público aceptó sin tanto miramiento la propuesta y en

las dos salas que se estrenó, se mantuvo un mes en la cartelera, barómetro de su

triunfo en el resto de España.

“Basándome en la política de siempre, es decir en la tolerante y generosa

dispuesta siempre a la ayuda y al estímulo de la cinematografía (…) me inclino

por la 1ªB, que resulta ampliamente favorable”, 30 indicaba el censor Alberto Reig

en su informe sobre El mensaje. Dirigida por el actor Fernando Fernán Gómez,

se esperaba mucho más de él. La JCyCPC confirmó, una vez terminada, su falta

de brillantez y el “no añadir ningún valor” 31 ni a la cinematografía ni a la epopeya

española.

Mucho mayores fueron las diatribas lanzadas hacia las dos películas

dirigidas por los realizadores argentinos, Enrique Cahen Salberry (Venta de

Vargas) y León Klimovsky (Llegaron los franceses). La primera observación de

los censores fue la inutilidad de contratar directores foráneos para elaborar

películas tan mediocres. La segunda fue más bien una reflexión de calado: “Es

lamentable que este tipo de cine pueda ser protegido”.32 De Venta de Vargas,

enojó la zafiedad de “las ‘escenitas’ de la batalla de Bailén casi risibles”33 –

tratándose de la gran batalla que inicia la debacle francesa-, así como la

vulgaridad de la interpretación, los diálogos plagados de tópicos y la mediocridad

de la puesta en escena. Al solicitar los productores la revisión de la calificación

otorgada, la Junta Superior remarcó: “No hay ni un atisbo de cine de calidad ni

aún dentro de la media más que alcanzada por nuestro cine (…) No se explica

que se busque directores ‘foráneos’ para lograr tan poca cosa”.34 Lo mismo

26 AGA. Cultura, 36/3725. 27 Ibídem. 28 Ibídem. 29 Ibídem. 30 AGA. Cultura, 36/3470. 31 Ibídem. 32 AGA. Cultura, 36/4791. 33 Ibídem. 34 Ibídem.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

25

ocurrió con Llegaron los franceses, definida también como tema patriotero

tópico. En este caso, al solicitar la recalificación de 2ªB, la Junta Superior

dictaminó: “No siendo posible una calidad menor, se ratifica el voto anterior”.35

Por último, Los guerrilleros, catalogada como una “ensalada de todos los tópicos

en base a un sainete desangelado”,36 en aras a su posible comercialidad -actuaban

Manolo Escobar y Rocío Jurado, estrellas de la canción del momento-, se

concedió de nuevo una “clasificación benévola” por mantener el tejido industrial

español.

En 1963 se establecía el denominado Código de Censura (BOE, 8-3-63),

que en esencia no variaba la actuación de la JCyCPC creada en 1952. En él se

precisaban los términos aplicados a la protección y fomento de la cinematografía

así como a la defensa del espectador, insistiendo en lo político, lo moral y lo

sexual. La JCyCPC funcionaba por comisiones, presididas por el director general

de Cinematografía y Teatro, y sus miembros procedían de los sectores

empresariales y profesionales de la producción, distribución, exhibición,

directores, técnicos y actores. La comisión de protección y el Instituto Nacional

de Cinematografía desaparecerán en 1967, al crearse el Fondo de Protección de

la Cinematografía, dependiente de la nueva Dirección General de Espectáculos.

Las dos últimas películas que se ruedan durante el franquismo sobre la

Guerra Peninsular, van a optar a la nueva categoría de Interés Especial. Sólo La

guerrilla (R. Gil, 1972) la alcanzó, no sin antes subsanarse bastantes aspectos

tanto administrativos37 como literarios además de exigir suavizar “las escenas de

la moza Dora refocilándose con los soldados franceses, para evitar excesos”.38

No agradó el tono revisionista de la Guerra, que se alejaba del idealismo

galdosiano pues el guión “persigue un realismo esperpéntico y desmitificador que

no podemos llamar falso, si bien puede ser parcial”.39 La Comisión era contraria

a describir a los españoles como demasiado serviles y taimados tratando de

asesinar a un coronel francés y que, a continuación, éste fuera “generoso

guardando la formalidad del juicio previo al fusilamiento”.40 La Junta condicionó

el Interés Especial a su realización, concediéndolo finalmente.

En esta misma línea revisionista y demoledora de los ideales patrióticos

iba Contra la pared del novel Bernardo Fernández, una crónica negra sobre el

regreso de dos militares terminada la Guerra, que acaban por convertirse en

ladrones y salteadores. La Junta calificó la propuesta carente de calidad para

otorgarle el Interés Especial al que aspiraba.41 En este momento, las nuevas

generaciones ya asociaban la Guerra Peninsular, el mito por excelencia creado

por el liberalismo del siglo XIX como ejemplo de las libertades, a la triste y

caduca dictadura franquista.

35 AGA. Cultura, 36/3738. 36 AGA. Cultura, 36/3930. 37 Entre otros, hacer referencia a que se trata de una coproducción, indicar que no se

rodará una doble versión, atenerse al guión y pagar el guionista, Rafael J. Salvia, las

cuotas sindicales. AGA, Cultura, 36/5371. 38 Ibídem. 39 AGA. Cultura, 36/5361. 40 AGA. Cultura, 36/5586. 41 AGA. Cultura, 36/5102.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

26

5. Conclusiones

Finalizada la guerra civil de 1936, el Régimen franquista pretendió poner

en marcha la industria cinematográfica española y producir un cine acorde con

sus principios políticos, estéticos y morales. Para ello se estableció un marco

ideológico y económico donde la Censura ejercía de representante del Estado. El

objetivo propuesto era cubrir las necesidades mínimas del parque

cinematográfico español y la exportación de unas películas de calidad que

difundieran la cultura nacional. Para ello, el Gobierno diseñó un modelo de

capitalización basado en la protección y en el fomento de la producción que, sin

apenas variaciones, funcionó hasta 1967. Su ejecución se arbitró a través de un

sistema de compensación sustentado en la concesión a las productoras de

licencias de importación de películas extranjeras.

Por otra parte, los cánones de importación y doblaje exigidos a las

producciones extranjeras conformaron un fondo gestionado por el SNE, que

financió los créditos a muy bajo interés para las obras que cumplieran ciertos

criterios políticos y estéticos. Su concesión la decidía la Comisión Clasificadora

de Películas Nacionales, dependiente del Ministerio de Industria y Comercio

hasta 1952, cuando sus competencias son transferidas al Ministerio de

Información y Turismo. Este sistema convirtió al Estado en el socio capitalista

de una producción sin apenas competencia exterior. Evidente, el socio

mayoritario impuso sus reglas y la ejecución o no de cada proyecto dependía del

criterio de sus representantes. Mediante un complejo aparato administrativo que

analizaba el guión, controlaba la filmación y clasificaba la cinta una vez

finalizada, se adjudicaban las ayudas y premios. De este modo se pretendió

construir una gran industria “con un alto valor material y espiritual” (BOE, 21 de

octubre de 1939) que lamentablemente no alcanzó los objetivos propuestos: evitar

la salida de divisas, conquistar el mercado iberoamericano y competir con el cine

internacional.

Las películas históricas referidas a la Guerra Peninsular serán uno de los

temas más esperados por el aparato del Estado pero, en general, van a defraudar

sus expectativas. De las diecisiete, siete cumplieron con la calidad precisa para

lograr una amplia aceptación del público y su comercialización en el extranjero -

El abanderado, El tambor del Bruch, Agustina de Aragón, Lola la Piconera,

Aventuras de Juan Lucas El tirano de Toledo, Carmen la de Ronda y Los

guerrilleros. De ellas sólo tres alcanzaron los beneficios de una exhibición

preferente concedida a través de las categorías de Interés Nacional -El tambor del

Bruch y Agustina de Aragón- e Interés Especial - Los guerrilleros-.

Hasta 1952, el tema de la Guerra Peninsular fue abordado por cineastas

con una larga trayectoria profesional, que utilizaron el género dramático para

reconstruir la lucha desigual contra el francés. A partir de este momento, la

explotación del star-system español degradó la épica de la Guerra Peninsular

hasta convertirla en meros melodramas histórico-folclóricos. Los miembros de la

Censura van a criticar tanto los guiones como la realización, mas, en aras de

apoyar a la industria nacional seguirán beneficiando a las producciones con

calificaciones más elevadas de lo que realmente merecerían.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

27

No se puede atribuir únicamente al “celo censor” la mediocridad de las

cintas. Aunque no existieran unas normas oficiales publicadas, los directores

conocían los criterios de las comisiones y cierto es que tenían que ceñirse a

criterios muy concretos. Pero, los cortes de censura, en conjunto, no parece que

mermen brillantez en los temas presentados, salvo en el caso de Las aventuras de

Juan Lucas. A la vista de los cambios requeridos por las comisiones, el

maniqueísmo de los censores cercenó la fuerza dramática de algunas de las

películas, alejándolas de la realidad social. Pero en la mayoría de los casos fue la

mediocridad y la desidia de productores y directores lo que mermó la calidad de

las obras. Si se hicieron para agradar a la censura, el resultado fue funesto.

A pesar de las adecuaciones económicas previstas para la industria

cinematográfica a lo largo de estos años, las bases ideológicas del régimen

franquista se van a perpetuar en la normativa censora. Sin embargo, los

contenidos de las cintas se alejan cada vez más de los criterios estéticos y los

cuestionamientos existenciales de la sociedad occidental, con lo que el mito

fundacional del estado liberal español va a perder todo su interés al final del

periodo por su tratamiento anticuado y obsoleto. Durante todo el franquismo, el

aparato del Estado deseó contar con una o varias obras que mostraran al mundo

la epopeya nacional, pero en ninguna de las películas que se realizaron, se alcanzó

este objetivo. Aunque algunas contuvieron un dramatismo que conectaba con el

sentir popular.

Referencias bibliográficas

Alarcón y de la Lastra, L. (1940), El triunfo nacional y sus repercusiones en la

industria y el comercio. Madrid: Instituto de Estudios Políticos.

Diez Puertas, E. (2002), El montaje del franquismo. La política cinematográfica

de las fuerzas sublevadas. Barcelona: Alertes.

González, F. (2006), El reinicio de la cooperación cinematográfica hispano-lusa:

1939-1944, Secuencias 23: 36-66.

González Ballesteros, T. (1981), Aspectos jurídicos de la censura

cinematográfica con especial referencia al período 1936-1977. Madrid: Editorial

de la Universidad Complutense.

León Aguinaga, P. (2010), Sospechosos habituales: el cine norteamericano,

Estados Unidos y la España franquista, 1939-1960. Madrid: CSIC.

Maroto de las Heras, J. (2007), Guerra de la Independencia: imágenes en cine y

televisión. Madrid: Cacitel.

Martínez, J. (2008), El cine de los cincuenta, una década de contradicciones, ed.

Abdón Mateos. Madrid: Eneida.

Martínez Álvarez, J. (2010), La pervivencia de los mitos: la Guerra de la

Independencia en el cine, Cuadernos de Historia Moderna 9: 191-213.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

28

Ortiz Muñoz, F. (1946), Criterios y normas morales de censura cinematográfica.

Conferencia pronunciada en el Salón de Actos del Consejo Superior de

Investigaciones Científicas el día 21 de junio de 1946. Madrid: Imprenta de

Editorial Magisterio Español.

Sanz Larrea, G. (2008), El Dos de Mayo y la Guerra de la Independencia en el

cine. Madrid: Comunidad de Madrid.

Vallés Copeiro del Villar, A. (1992), Historia de la política de fomento del cine

español. Valencia: Filmoteca Generalitat Valenciana.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

29

Vasculhando os arquivos: a censura ao cinema português1

Leonor Areal

[email protected]

Centro de Investigação Media e Jornalismo

(CIMJ - FCSH/UNL)

Resumo - Esta comunicação faz um balanço provisório de três anos de pesquisa

no espólio do SNI existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, reúne

alguns dados e contributos de colegas, e deixa apontadas algumas questões em

aberto. Para este acervo inesgotável de informação, teremos que encontrar – nós,

os investigadores – meios de análise que não passem pela exaustão dos arquivos,

mas pela compreensão do sistema em que se inserem. Esta comunicação faz um

balanço transversal de diversas questões, focando-se nas dificuldades e dúvidas

no momento actual da minha investigação.

Palavras-chave - censura | cinema | Estado Novo | arquivos.

Julgo que mais vale não haver espectáculos do que

permitirem-se maus espectáculos, Salazar, 4-9-19532

1. Introdução: balizas da censura aos espectáculos

No seu longo curso desde 1927 (embora só tenhamos conhecidas as actas

do período de 30 anos entre 1945 e 1974), a actuação da censura aos espectáculos

pode considerar-se pautada pela extraordinária frase de Salazar destacada acima

em epígrafe. E é nitidamente o espectro de Salazar que paira sobre todo o espólio

da censura, junto com muitos outros fantasmas, alguns mais papistas que o papa.

Esta comunicação faz um balanço provisório de três anos de pesquisa no

espólio do SNI existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo3, reúne alguns

1 A autora opta pela ortografia tradicional, ao abrigo do artigo 37º da CRP sobre liberdade

de expressão. 2 Em despacho dirigido à Comissão de Censura aos Espectáculos, citado na Acta nº 33 de

8/9/1953. 3 O Fundo do SNI no ANTT integra documentos do SPN – Secretariado de Propaganda

Nacional (1934-1944), depois chamado SNI, abreviatura de Secretariado Nacional de

Informação, Cultura Popular e Turismo (1944-1968) e depois SEIT – Secretaria de

Estado da Informação e Turismo (1968-1974), organismos remodelados mas

essencialmente idênticos e com continuidade de acção. Este espólio encontra-se

disponível para consulta desde 2006. A listagem de documentos pode ser em grande

parte pesquisada através da internet, bem como, desde 2012, os facsimili das Actas da

Comissão de Censura aos Espectáculos (CCE), a partir de 1957 designada Comissão

de Exame e Classificação dos Espectáculos (CECE).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

30

dados e contributos de colegas, e deixa apontadas algumas questões em aberto.

Quando nos dirigimos à Torre do Tombo para consultar os documentos

directamente, percebemos que, embora organizados em caixas ou dossiês, os

papéis estão muitas vezes desorganizados, fora de lugar ou em falta. Assim,

aceder, identificar, reconhecer e organizar esta documentação é um processo nada

imediato e muitas lacunas subsistem. Mais que uma investigação documental, é

quase uma investigação arqueológica, onde os fragmentos dispersos de

informação tem que ser reconstruídos como peças perdidas de um puzzle. O que

pode ser uma demanda fascinante, mas difícil, sobretudo pela sua dimensão

avassaladora: são 30 anos de ofícios, actas, relatórios, listagens, facturas, cartas,

despachos, autorizações, contratos, projectos, contactos, pedidos, procedimentos,

em suma, muita burocracia – que é preciso sujeitar a um crivo interpretativo para

dela retirar algumas conclusões válidas e pertinentes.

Os números compilados por Margarida Sousa4 sobre o acervo da Torre do

Tombo alcançam cerca de 5000 processos de filmes, dos quais cerca de 4000

Aprovados Com Cortes e cerca de 600 Reprovados. Fica evidente que falta

investigar muito para perceber a fundo e fundamentadamente o alcance da acção

da censura sobre o cinema, para não falar do teatro. O arquivo do SNI, só por si,

é um autêntico manancial de informação sobre o cinema e o teatro; ao qual se

associa ainda a acção de propaganda do mesmo SNI, a documentação existente

nos arquivos de vários ministérios e da Presidência do Conselho, e a censura à

imprensa, aos livros, ao cinema amador, aos cineclubes, às palestras, às

universidades e a todo e qualquer evento público naquela época.

Para este rol inesgotável de informação, teremos que encontrar – nós, os

investigadores – meios de análise que não passem pela exaustão dos arquivos,

mas pela compreensão do sistema em que se inserem, para podermos deduzir os

seus efeitos e sequelas a nível da cultura passada e eventualmente presente. Pois,

quando se enfrenta um monstro destes, não podemos deixar de nos precaver

contra a sua latência e permanência. E somos levados a perceber como os seus

métodos e a sua eficácia se reproduzem noutros territórios e noutras épocas

passadas, presentes e futuras.

A censura era um espartilho que condicionava o pensamento próprio e a

liberdade de expressão a todos os níveis. A cultura portuguesa terá sido

gravemente amputada e condicionada por ela, em todos os campos. Mas a censura

era uma constante na maior parte dos países até à década de 70, portanto, falar-se

de liberdade de expressão implica relativizar.

Os demais países da Europa, que gozavam desde o pós-guerra de regimes

de democracia política, mantiveram as suas máquinas de censura aos

espectáculos funcionando até finais dos anos 70, anos 80 e mais tarde, máquinas

ainda hoje presentes – sem que a população, os artistas, os intelectuais tivessem

tido a oportunidade de questionar as bases da sua (limitada) liberdade de

expressão. Curiosamente, Portugal em 1974 libertou-se da censura mais

4 Divulgados em comunicação na Cinemateca, em 13 de Novembro de 2013, a preceder

a apresentação do filme de montagem Cinema - Alguns Cortes: Censura (1999) de

Manuel Mozos.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

31

radicalmente5 do que aqueles países que fizeram uma abertura gradual, como a

Espanha, a Itália, a Inglaterra, etc.

Vale a pena relatar aqui a abolição da censura aos espectáculos, contada

por António da Cunha Telles, testemunho que deu em sessão neste congresso6. O

25 de Abril fora numa quinta-feira, e no sábado seguinte seria a antestreia de

Jaime de António Reis. Recebeu um telefonema da censura a avisar que não

pedira autorização e que eles teriam de actuar. Então, “no dia 27 ou 28”7, reuniu

umas 20 pessoas para irem acabar com a censura (na Inspecção dos

Espectáculos). Zeca Afonso ficou a dormir em casa de Antonio da Cunha Telles,

que lhe deu a sua cama e ficou no sofá, porque “o Zeca era tão distraído...”. No

Sindicato dos Profissionais do Cinema8, com Henrique Espírito Santo, fizeram

uns cartazes. Entretanto o Inspector-Chefe dos Espectáculos9 (que tinha sido

avisado) foi pedir protecção à Cova da Moura10 (onde estava sedeada a Junta de

Salvação Nacional, órgão governativo criado logo após o golpe de 25 de Abril de

1974). Os ocupantes entraram no edifício da Direcção-Geral dos Espectáculos11,

“as dactilógrafas cheias de medo, fechadas numa sala, lá abriram a porta, e

dissemos-lhes que fossem para casa”. E fecharam a censura. Alguém disse que o

melhor era ir entregar a chave ao Conselho da Revolução. Foi então de taxi até à

Cova da Moura, com mais dois cineastas12, entregar a chave. O oficial de dia

achou que não se podia acabar com a censura por causa dos filmes pornográficos.

Cunha Telles deu-lhe a solução: acaba-se a censura para adultos e cria-se uma

comissão de classificação etária dos filmes para crianças e adolescentes. O militar

e a Junta de Salvação Nacional concordaram. Imediatamente escreveram num

papel dactilografado duas ordens13:

5 Por exemplo, O Último Tango em Paris (1972) de Bernardo Bertolucci, esteve proibido

em Itália até 1987 e o seu realizador foi penalizado em tribunal; em Inglaterra teve

cortes (fonte: http://www.bbfc.co.uk/case-studies/last-tango-paris); mas em Portugal

estreou após a revolução. Outro exemplo, dado por António da Cunha Telles: o seu

filme Vidas (1984) foi proibido em França (onde a censura era organizada

regionalmente) e só alguns meses depois, após várias diligências, pôde ser mostrado

em Paris (testemunho dado neste Congresso). 6 Todavia, o relato é feito aqui segundo notas minhas de uma conversa anterior. Um artigo

no jornal Público transcreve um relato coincidente: “Quando eles filmavam a

revolução” (de 31-3-2011) (ver em

http://www.paulomfcunha.com/ncinport/2011/04/05/quando-eles-filmavam-a-

revolucao/) 7 A reunião no Sindicato dos Profissionais do Cinema teve lugar no dia 28, domingo,

segundo está documentado em várias outras fontes. 8 Rua D. Pedro V, 60, 1.º 9 José Maria Alves. 10 Cova da Moura era o palácio, situado junto à Av. Infante Santo, onde ficou o comando

do MFA- Movimento das Forças Armadas, após a revolução. 11 Rua de São Pedro de Alcântara, 81, em Lisboa. 12 Segundo fontes jornalísticas, os outros dois cineastas terão sido Fernando Lopes e José

Fonseca e Costa (Diário Popular de 29-4-1974, pag. 5). Mas na página 11 do mesmo

jornal é referido ainda Manuel Pina (crítico e cineclubista), além de António da Cunha

Telles. Fernando Lopes confirma que foi um deles, na entrevista em O Cinema ao

Poder!, de José Filipe Costa. Lisboa: Hugin, 2012, p. 135. 13 O jornal República publica em 2-5-1974, a seguinte notícia: “COMISSÃO DE EXAME

E CLASSIFICAÇÃO DE ESPECTÁCULOS – Da Junta de Salvação Nacional

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

32

Fica decretado que a partir de hoje deixa de existir qualquer controle

administrativo para espectáculos para adultos.

Para os espectáculos para menores, será criada uma comissão de

classificação.

O oficial ainda perguntou: “– Quando é passa o Couraçado de Potemkin?

– Esta semana”. Cunha Telles tinha comprado uma cópia em França a uns russos,

com um contrato com direitos de exibição por 5 anos a partir da data em que fosse

possível estreá-lo; embora importada oficialmente, nunca a apresentara à

Censura. Assim, o filme estreou na noite do 1º de Maio, tendo Jaime em

complemento, no cinema Império. Na tarde da grande manifestação, desceram o

pano do cartaz, com milhares de pessoas ainda na Alameda14 fazendo “uma

ovação estrondosa”. Na estreia, “um silêncio nunca visto, uma sensação

estranha”.

Com a revolução de 1974, os portugueses puderam livrar-se de um dia para

o outro da censura e pode dizer-se que conquistaram, usufruiram, assumiram e

praticaram o sentimento de liberdade plena, durante pelo menos as três décadas

seguintes; já que hoje está-se tornando claro que essa liberdade é mera ilusão e

que os meios jornalísticos, sobretudo, estão muitissimo condicionados a uma

censura invisível, sem traços, sem rostos, sem lei.

2. Corpus e escopo de investigação

As actas da censura aos espectáculos (1945-74)15 encontram-se acessíveis

na Torre do Tombo desde 200616. Algumas são manuscritas, outras

dactilografadas, seja em rascunho ou em livro, assinadas (nem sempre) pelo

presidente da sessão ou pelo secretário, outras ainda em cópia batida a papel

químico, às vezes apresentando divergências ou correcções após o primeiro

rascunho, sendo redigidas pelo sempre presente secretário da Comissão. Estes

recebemos a directiva para o funcionamento da Comissão de Exame e Classificação de

Espectáculos: 1. De acordo com o parágrafo A. 2. C. do programa do Movimento das

Forças Armadas fica abolida a Censura. 2. Manterá competência para efectuar a

classificação etária dos espectáculos, dentro do espírito do Programa. 3. cessa todas as

funções no respeitante às projecções de Radio Televisão Portuguesa” (pag. 5). Duas

semanas depois, a Junta de Salvação Nacional “extingue as Comissões de Exame e

Classificação dos Espectáculos, de Recurso e de Literatura e Espectáculos para

Menores; determina que, enquanto não for promulgado o novo regime legal de

classificação etária dos espectáculos, possam ser criadas e regulamentadas, por

despacho do Ministro respectivo, comissões ad hoc para esse fim; exonera, com efeitos

retroactivos a 25 de Abril de 1974, os membros das referidas comissões” (Decreto-Lei

n.º 199/74 de 14-05-1974). O Ministério da Comunicação Social autoriza a Junta de

Salvação Nacional a nomear uma comissão ad hoc, de carácter transitório, para

controlo da imprensa, rádio, televisão, teatro e cinema (Decreto-Lei n.º 281/74 de 25-

06-1974). 14 Alameda Afonso Henriques. 15 Desconheço se, antes de 1945, quando é criada a CCE, a censura aos espectáculos tinha

a prática de fazer actas, embora actuasse desde 1929 integrada na Inspecção Geral dos

Teatros, sob chefia de Óscar de Freitas. 16 Outra lacuna existente são as actas da CCE, de 23-9-1952 a 20-1-1953; além de outros

casos pontuais.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

33

vários livros e dossiês (de argolas) provêm, suponho, de diferentes departamentos

ou funcionários do SNI, apresentando algumas repetições e diversas lacunas.

A maior lacuna é a que abrange quatro anos de actas da CECE – 1967,

1968, 1969 e 1970 – constituindo um enorme buraco no conhecimento deste

período, que seria fundamental para compreender as mudanças políticas e de

critério censório ocoriidas na chamada “primavera marcelista”17.

A leitura extensiva destas actas, sobre as quais trabalhei centralmente,

obrigou-me a criar uma base de dados para me permitir organizar, gerir, aceder e

compreender uma massa gigantesca de informação que abrange 30 anos de

política censória.

Quanto aos processos de filmes existentes na Torre do Tombo, a

inventariação está a ser feita por investigadores da Cinemateca18. Os relatórios

dos censores fazem parte de um processo por filme, geralmente acompanhado de

guião planificado, ou argumento, ou lista de legendas e respectiva tradução, e

diversa correspondência, incluindo recursos das empresas sobre as decisões da

Comissão. Dos relatórios de censura a filmes, muitos estão desaparecidos ou não

é fácil localizá-los, lacuna que compromete parcialmente o meu estudo sobre os

filmes portugueses especificamente.

Assim, o meu âmbito de investigação – que inicialmente se direccionava

para a censura aos filmes portugueses19 – veio a alargar-se a um estudo sobre a

17 A maior parte das actas encontra-se também online desde 2012, mas não na totalidade,

faltando as seguintes digitalizações: Unidade de instalação 21 "Actas das Sessões 1961-

1963; 1967"; Unidade de instalação 22 "Actas das Sessões 1965-1966"; Unidade de

instalação 23 "Actas das Sessões 1968-1971"; Unidade de instalação 24 "Actas das

Sessões 1972-1974"; Unidade de instalação 25 "Actas das Sessões 1954-1955". Através

de consulta presencial, pude constatar que as datas indicadas não correspondem

necessariamente ao seu conteúdo; que o dossier 21 (livro 27) contém documentos que

não coincidem com a sua descrição externa, a saber: actas do Conselho Superior da

Inspecção Geral de Espectáculos, datadas de 1931 a 1940; actas de 1961, 1962, 1963,

1967 e 1968 (que aparecem com duplicados junto). 18 Segundo Margarida Sousa, que, junto com Manuel Mozos, tem procurado cotejar os

processos de censura com os cortes em pelicula existentes na Cinemateca, “o número

de filmes de que a Cinemateca tem cortes de censura representa cerca de 11% dos cerca

de 4.000 processos (relatórios) de censura de filmes Aprovados Com Cortes,

encontrados na Torre do Tombo. Esta percentagem tem meramente um valor indicativo,

porque sabemos que a Torre do Tombo não tem a totalidade dos processos de censura;

há perdas de número desconhecido; nos cortes existentes na Cinemateca, há 50 filmes

de que ainda não foi encontrada cota na Torre do Tombo (podem lá estar ou não…)”. 19 Areal, Leonor. 2011. "A Censura no Cinema Português – Estudo de caso: Manuel

Guimarães". Actas da Conferência Internacional Cinema - Arte, Tecnologia,

Comunicação, 481-489. Avanca Cinema;

Areal, Leonor. 2013. “As Imagens Proibidas - A censura ao cinema português”. Censura

nunca mais - A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo, 113-175. Ana Cabrera

(org.). Lisboa: Aletheia, CIMJ;

Areal, Leonor. 2013. “A censura e o fantasma da guerra colonial no cinema português”.

Libro de Actas. XIII Congreso Internacional Ibercom, 3454-3461. Margarita Ledo

Andión, Maria Inmacolata Vassallo de Lopes (org.). Santiago de Compostela:

IBERCOM. Disponivel online em

http://www.estudosaudiovisuais.org/lusofonia/revision/ActasXIIICongresoIBERCOM

.pdf.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

34

actuação da Comissão de Censura aos Espectáculos20, feita com base nas actas,

relatórios, cartas, notas e diversos outros documentos existentes na Torre do

Tombo21, integrando as seguintes vertentes:

1. a questão legal e processual ou os métodos da censura;

2. os conteúdos censurados e as questões ideológicas;

3. as consequências a nível do cinema português especificamente;

4. os objectivos, motivações e causas;

5. a abordagem teórica da questão da censura.

Esta comunicação faz um balanço transversal a estas questões, focando-se

nas dificuldades e dúvidas no momento actual da minha investigação.

Sobre este espólio documental, outros investigadores têm trabalhado, em

particular aqueles que se reuniram no grupo de trabalho que organizou o actual

congresso22, onde foram apresentados alguns ensaios resultantes deste projecto

de investigação23. O congresso conseguiu reunir e chamar várias pessoas que têm

trabalhado sobre este acervo24, entre outros arquivos da Torre do Tombo.

3. Funcionamento da Comissão

A leitura das actas da CCE/CECE permite-nos conhecer diferentes

aspectos do trabalho da Comissão, desde os procedimentos internos à sua

doutrina. O que desde logo me surpreendeu nesta Comissão foi o seu

funcionamento interno seguindo preceitos democráticos simples e efectivos:

discussão com discordâncias lavradas em acta e votação por maioria, podendo o

presidente perder; por vezes, há mesmo desentendimentos e dá-se até o caso de

dois censores que, depois de uma forte discordância interna, apresentam

demissão25. Não deixa de ser irónico que uma comissão obediente a um poder

autoritário e antidemocrático, e encarregada de coarctar as liberdades públicas,

tivesse como procedimento normativo práticas de equidade, respeito e justiça26.

20 Areal, Leonor. 2014. “A censura ao cinema contra o contágio das ideias”. Atas do III

Encontro Anual da AIM, 350-359. Paulo Cunha e Sérgio Dias Branco (ed.). Coimbra:

AIM. Disponível online em http://aim.org.pt/atas/Atas-IIIEncontroAnualAIM.pdf. 21 Actas das sessões da Comissão de Censura (SNI-DGE), disponíveis online em

http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4323540 22 Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro, 13, 14 e 15 Novembro

2013, projecto financiado pela FCT: PTDC/CCI-COM/117978/2010. 23 Nomeadamente por Ana Cabrera, Maria do Carmo Piçarra, Paulo Cunha, Ana Bela

Morais, Miriele Abreu e Leonor Areal. 24 Vale a pena inventariá-los aqui (com risco de alguma involuntária omissão): Gerald

Bär, João Ribeirete, Manuel Mozos, Márcia Regina Rodrigues, Margarida Sousa, Paulo

Tremoceiro, Rita Benis, Tiago Rodrigues. Outros investigadores que trabalharam sobre

o espólio teatral do SNI: Nuno Costa Moura – e Isabel Vidal (cf. bibliografia final). 25 Leite de Sampaio e Lobo de Oliveira, segundo as actas nº 44 e 45 de 24-11-1953 e 2-

12-1953. 26 Aonde remontavam estas práticas, é uma questão que ainda não pude pesquisar noutra

literatura: dever-se-iam à experiência da Primeira República? Ou à prática da

organização associativa? Seriam procedimentos ensinados na Universidade? Sequelas

do trabalho político em assembleia? Ou normas do próprio Estado Novo para

funcionamento do seu regime corporativo? O certo é que os processos e métodos não

ofereciam dúvidas aos seus praticantes, nem foram nunca alterados. Importa destacar

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

35

As discordâncias dos censores incidiam geralmente sobre a classificação e

censura de peças de teatro e filmes, embora – na tentativa de procurarem

concordâncias e preocupados sobretudo em não transigir demasiado – houvesse

tendência para apertarem a bitola do seu critério.

Ao longo dos anos, o número total de vogais variou entre 8 e 18 (além do

Presidente, Vice-presidente e Secretário), mas o seu modo de funcionamento

manteve-se essencialmente o mesmo. Os censores estavam organizados em

grupos de dois, aos quais eram distribuídos semanalmente tanto peças de teatro

como filmes27, que seriam, na sessão seguinte, classificados por escalão etário e

aprovados (sem cortes, com cortes ou reprovados), mediante relatório em

formulário próprio assinado pelo grupo designado. A necessidade de criar grupos

de dois censores foi sentida desde cedo28 para atenuar a subjectividade das

decisões e para dirimir hesitações. Todavia, quando o grupo designado não

chegava a acordo, ou quando se impunha uma proibição, o filme passava a outro

grupo e, na persistência das dúvidas, aos restantes, até chegar, se necessário, ao

escrutínio do Presidente da Comissão.

Ao longo dos anos, conscientes das flutuações de critérios, e até da sua

impossível harmonização, os censores, por diversas vezes, sentem necessidade

de levantar o problema dos critérios gerais, de discutir as suas convicções, e

mesmo de pedir ajuda superior. Surgem então em acta interessantes exposições

acerca da doutrina e da missão de censura, incluindo as divergências internas.

Contudo, a sua actuação tendia a ser previdente, ou seja, na dúvida, cortava-se!

Na verdade essas discussões seriam um tanto estéreis, pois a actuação da

comissão em termos de critérios nunca teve grandes recuos (a não ser se impostos

de cima), visto que o juízo era sempre subjectivo, mesmo quando colectivo. E era

um juízo feito com o temor de ser desaprovado; era pois mais severo do que

individualmente pudesse ser entendido. A rigidez de critérios alimentava-se a si

própria, levando a comissão a reprimir cada vez mais, durante 30 anos, até ao

absurdo gritante que os próprios já não viam. É certo que houve um ou outro

momento de descompressão, deles falarei adiante.

As actas permitem-nos também saber precisamente quem eram os censores

dos espectáculos (ao contrário da censura à imprensa e aos livros), mostrando-

nos uma composição muito estável ao longo dos anos, com algumas

remodelações. Isso possibilita-nos ainda – a partir dos dados em acta, apesar de

tudo escassos – entrever personalidades e atitudes diferentes consoante as

isto hoje, quando se constata que os procedimentos formais de discussão e decisão

democrática se foram perdendo, a ponto de actualmente as novas assembleias,

associações, grupos cívicos, sindicatos mesmo (para não falar dos partidos),

frequentemente desconhecerem, errarem e discutirem continuamente as regras

democráticas de discussão e decisão colectiva. Ocorre dizer-se que houve aqui um

enorme retrocesso organizativo na cultura de cidadania, nos últimos 40 anos de

democracia (!). 27 A partir de 1961, os vogais passam a funcionar em grupos de três; em 1971, os vogais

são distribuídos por duas subcomissões, uma de teatro, outra de cinema, bem como uma

Comissão de Recurso. 28 Desde 1948, segundo Margarida Sousa e Manuel Mozos, conforme escrito na folha de

sala da sessão do filme Cinema Português – Alguns Cortes: Censura (1999) de 13-11-

2013.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

36

personalidades, as sensibilidades pessoais e o grau de responsabilidade dentro da

comissão. Percebemos então a intervenção do elemento subjectivo de forma

pessoalizada.

Os censores não são incultos (ao contrário da fama que tinham cá fora), são

todos “doutores” (licenciados), capitães, (“reverendos”) padres e

“excelentíssimas senhoras donas”. São pessoas inteligentes, com um discurso

fundamentado e capazes até de esgrimir argumentos tortuosos para defender uma

decisão difícil. Alguns são delegados da Comissão de Literatura e Espectáculos

para Menores (CLEM) pertencente ao Ministério da Educação.

Os pareceres constantes nos relatórios mostram também a plena

consciência do seu papel vigilante da função social do cinema. Todavia, como

acontece em situações de poder, arrogam-se mais importância do que a que

deveriam ou mereceriam ter. Os censores consideram-se imbuídos de uma missão

patriótica que só poucos, preparados como eles, estão capazes de desempenhar

sem risco de corrupção moral. Consideram-se simplesmente mais esclarecidos

que os demais mortais, e são paternalistas em relação ao público de cinema. Têm

perfeita consciência do poder subversivo dos filmes e portanto afirmam-se

lealmente ao serviço do regime que prega a moralidade com sentimento de

superioridade. Não ignoram que certas ideias podem atingir a estabilidade do

regime e do poder – que lhes sustenta as decisões arbitrárias só para afirmar a sua

autoridade inquestionável. Sabem que estão proibidos de questionar as decisões

da comissão (mesmo saindo vencidos) e deixar transparecer exteriormente

qualquer divergência. Assim, como fiéis cães de guarda, conseguiram que nada

mudasse durante 48 anos. A censura era um dos pilares do regime29, indispensável

para manter o poder imutável.

Embora com procedimentos de democracia interna, os censores obedecem

a uma hierarquia inquestionável e mostram submissão reverente às ordens

superiores. Afinal, as actas são escritas para serem lidas superiormente; não para

a posteridade que hoje as descobre, creio. As interferências superiores têm

proveniência seja do Presidente da Comissão, ou por indicação do Vice-

Presidente que o substitui nas ausências, seja do Secretário Nacional da

Informação30, e mesmo directamento do Ministro da Presidência ou do Presidente

do Conselho, Salazar.

O Inspector-Chefe dos Espectáculos, Coronel Óscar de Freitas, vice-

presidente da CCE/CECE31 e responsável pela inspecção (e censura) durante mais

29 Junto com a propaganda, além da polícia política e do exército (vide Joaquim Cardoso

Gomes, “Os censores do 25 de Abril: o pessoal político da censura à imprensa”, in

revista Media & Jornalismo, nº 23, “Repressão VS expressão: censura às artes e aos

periódicos”, CIMJ, 2013, p. 77. 30 Secretariado da Propaganda Nacional (SPN): António Ferro (1933-1945). Secretário

Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI): António Ferro (1945-1950);

António Eça de Queiroz (interino, 1950); José Manuel da Costa (1950-1955); Eduardo

Brazão (1955-1958); César Moreira Baptista (1958-1968); Secretário de Estado da

Informação e Turismo (SEIT): César Moreira Baptista (1968-1973); Pedro Feytor Pinto

(1973-1974). 31 Inspector Geral dos Teatros desde 1929 (Portaria de 23 de Setembro, DG II série de 25-

9-1929) e depois Inspector-Chefe dos Espectáculos até 4-4-1962, data em que assiste à

última reunião da CECE (acta nº 243), por ter atingido o limite de idade. Sucede-lhe

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

37

de três décadas (com raríssimas faltas), é a eminência parda desta comissão,

aquele que assegura a continuidade e a estabilidade de métodos, e cuja

experiência ajuda a solucionar todos os problemas que surgem, papel moderador

que se percebe através das actas.

O Presidente da Comissão muda algumas vezes: são sete ao longo de 29

anos32. Só não muda Salazar, até 1968; quando é substituído por Marcelo

Caetano, que, como Ministro da Presidência do Conselho de Ministros, já tutelara

o SNI no período 1955 a 1958.

4. Eduardo Brazão em defesa do teatro e do cinema

Foi precisamente durante esse ministério de Caetano (1956-5833) que

algumas alterações legislativas34 e processuais foram aplicadas, desde logo com

a nomeação para Secretário Nacional da Informação de Eduardo Brazão, que

imprimiu novas regras internas e obrigou a uma abertura dos critérios censórios

– quiçá por ser filho de um homem de teatro, o actor Eduardo Brazão (1851-

1925), um dos maiores do seu tempo. O seu mandato durou só dois anos35, mas

foi determinado no que concerne aos espectáculos36.

Dois meses depois de entrar em funções na CCE, Eduardo Brazão mostra

a intenção de rever o critério de censura das obras teatrais portuguesas:

o Senhor Presidente participou à Comissão que, reconhecida a

João Neves Duque, que assume funções em 27-2-1963 (acta nº 290), após um período

em que o cargo de vice-presidente da CECE é desempenhado por José Fernandes Lebre,

adjunto da IGE. Sucede-lhe José Maria Alves, em 1966, como Inspector-chefe dos

Espectáculos. 32 Manuel Cristiano de Sousa (1945-52), que já em 1941 era presidente da “Comissão de

Censura” (integrada na “Inspecção dos Espectáculos” do Ministério da Educação

Nacional), segundo parecer encontrado na Torre do Tombo (SNI-IGAC, cx. 613, folio

4); José Manuel da Costa (1953-56); Eduardo Brazão (1956-58); Eurico Simões Serra

(1958-60); Fernando Quesada Pastor (1960-65); sendo a direcção da Comissão

assegurada pelo Vice-Presidente João Neves Duque, Inspector-chefe dos Espectáculos,

de Agosto a Dezembro de 1965; Alfredo António Barbieri Cardoso (1966-196?),

António Caetano de Carvalho (1969-74). Nota: o Decreto-lei nº 38964, de 27-10-1952,

designava como Presidente da Comissão o Secretário Nacional de Informação. Pelo

Decreto-lei nº 41051 de 1-4-1957, o presidente passa a ser nomeado pela Presidência

do Conselho e não coincide sempre com aquele cargo. 33 Ministro da Presidência do Conselho de 7 Julho de 1955 até Agosto de 1958. 34 O Decreto-Lei n.º 40572, de 6-4-1956, que cria a Federação Portuguesa dos Cineclubes

e torna a sua existência dependente de aprovação pelo SNI (o que, a curto prazo, viria

impedir a sua sobrevivência); o D.L. nº 41062, de 10-4-1957, que sujeita os filmes de

formato inferior a 35mm ao crivo da censura e da inspecção para “evitar a venda e

divulgação, mesmo em exibições particulares, de filmes de formato reduzido de

carácter imoral ou subversivo”; o D.L. 41051, de 1-4-1957, que “altera o regime em

vigor sobre a assistência de menores a espectáculos públicos” (com nova tabela de

classificação etária e disposições relativas à recém criada Televisão) e cria a nova

Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos (abolindo o termo “censura” da

anterior) que inicia actividade a partir de 23-7-1957; D.L. 41486, de 30-12-1957. 35 De Fevereiro de 1956 a Janeiro de 1958. 36 Das restantes áreas de actuação do SNI, não tenho conhecimento.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

38

necessidade de se proceder a uma revisão das peças de teatro proibidas

pela Censura, não só porque grande número delas são da autoria dos

nossos melhores escritores teatrais, mas ainda pelos benéficos efeitos que

essa medida traduz na obra de ressurgimento do teatro em Portugal,

solicitara da Inspecção dos Espectáculos a lista completa das peças

naquelas condições37.

E com esta justificação inatacável altera radicalmente o critério de

proibição:

Examinada a referida lista havia resolvido, com a concordância de Sua

Excelência o Ministro, levantar desde já a suspensão da representação das

peças reprovadas pelas Comissões anteriores, não o fazendo para as

reprovadas pela actual Comissão, por atenção para com os seus membros,

a quem contudo solicita a revisão da suas decisões tendo presente as novas

directivas para a censura teatral e que se resumem no seu seguinte

despacho:

“Dado o facto que os espectáculos teatrais são hoje classificados para os

menores, há que rever as peças que no passado foram proibidas.

De futuro assenta-se nestas normas para a proibição:

- Imoralidade sem outro objectivo do que a explorar.

- Propaganda velada ou aberta da doutrina comunista.”

Nunca a comissão vira critério tão simples. Além de inesperada, pode

mesmo dizer-se uma decisão de génio. Os obedientes censores logo acataram a

nova directiva, mesmo se esta ia contra tudo o que antes haviam praticado:

No uso da palavra, os vogais srs. drs. Eurico Serra, Caetano Beirão,

Simão Gonçalves e Garcia Domingues manifestaram a sua satisfação pela

fixação de directivas para a censura teatral e solicitaram que igualmente

fossem estabelecidas normas para a censura cinematográfica dadas as

dificuldades que por vezes se encontra no desempenho da missão, que

sendo de confiança do Governo, está sempre sujeita a críticas e

apreciações desfavoráveis

Um mês depois, enquanto as novas regras iam sendo interiorizadas, o

Senhor Vice-Presidente apresentou então a relação das peças teatrais “cuja

suspensão de representação foi, por determinação superior, levantada”, lista de

33 peças portuguesas que é transcrita em acta38.

Outro mês passou39 até que o Coronel Óscar de Freitas, “após a conferência

tida com o Excelentíssimo Presidente da Comissão de Censura”, (na sua

ausência) comunicou que “ficara estabelecido aplicar às peças de autores

estrangeiros de reconhecido valor”, a mesma “doutrina fixada”40 para a censura

das peças de origem portuguesa.

E na semana seguinte41, o Secretário Nacional em pessoa veio avisar a

37 Acta nº 170 da CCE, de 17-4-1956. 38 Acta nº 174 da CCE, de 15-5-1956. 39 Acta nº 179 da CCE, de 19-6-1956. 40 Por despacho do Secretário Nacional de Informação, de 17 de Abril do mesmo ano. 41 Acta nº 180 da CCE, de 26-6-1956.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

39

Comissão de que o mesmo se aplicaria ao cinema, sem mais delongas:

o Senhor Presidente disse haver necessidade absoluta de definir-se

orientação para a censura cinematográfica, paralelamente ao que foi feito

para a censura teatral. Neste sentido, o Excelentíssimo Secretário

Nacional determinou que, de futuro, a censura dos filmes seja feita

segundo as normas vigentes para a censura das peças de teatro, constantes

do seu despacho de 17-4, atendendo, é claro, às circunstâncias em cada

caso.

(…) Citou seguidamente alguns filmes tais como “Piquenique"42 e “Arroz

Amargo"43 - este último proibido unicamente para evitar a especulação

sobre o público -, que pelo seu valor de realização e lógica dos problemas

que tratam, supõe merecerem a imediata aprovação; referindo, por outro

lado, o filme "Paris Canalha"44 como exemplo típido de película que deve

ser interdita ao público, pela indignação que provoca o tema nele versado.

Concluiu recomendando benevolência na censura dos filmes

categorizados, quer de boa realização, quer por tratarem de transportes

para a tela de obras de escritores de nomeada.

Assinale-se a habilidade estonteante desta medida restritiva da

arbitrariedade dos censores, aplicada faseadamente, primeiro ao teatro nacional,

depois ao teatro universal e por fim ao cinema, com indicações concretas sobre

alguns filmes. Tal como a revogação das decisões de todas as comissões

anteriores45. Só dois homens de coragem e visão teriam capacidade pra redefinir

os critérios de censura e limitar a arbitrariedade entranhada no espírito

desenfreado dos censores.

Mas a bonança não durou muito46. Para Eduardo Brazão, diplomata de

carreira, este cargo não lhe agradou: “Desejava intimamente sair daquele

vespeiro, para onde entrara inadvertidamente, sem máscara e sem luvas”, escreve

no seu Memorial (p. 90)47, citado por sua biógrafa48. O presidente que se seguiu,

Eurico Serra, vogal assíduo e empenhado da comissão desde 195349, ao ascender

na categoria em 195850, logo retomou os vícios servilistas e os critérios

mesquinhos.

42 Joshua Logan, 1955, EUA. Estreado em 4-4-1956 no Império (Lisboa). 43 Giuseppe de Santis, 1949, Itália. Estreado em 1-1-1951 no Tivoli (Lisboa), em cartaz

até 14 de Janeiro. “Aprovado, estreado e depois retirado ”por ordem telefónica” [da

Presidência do Conselho], Arroz Amargo tentaria ser reposto por diversas vezes, sempre

sem qualquer resultado”, num processo que Lauro António esmiuçou em Cinema e

Censura em Portugal, 2001: 78-82. 44 Pierre Gaspard-Huit, 1956, França. 45 Presididas por Manuel Cristiano de Sousa (1945-52) e José Manuel da Costa (1953-

56). 46 Teremos que averiguar que repercussão terá tido nos meios teatrais e cinematográficos. 47 Eduardo Brazão, Memorial de D. Quixote, Coimbra, Coimbra Editora, 1976. 48 “Libertou-se logo que possível, nomeado Ministro de 1ª classe, com credenciais de

embaixador para ir ocupar em Roma, no Quirinal (agora elevado a embaixada), o posto

que a morte de António Ferro deixara vago.”, escreve Ana de Leal Faria in

http://idi.mne.pt/images/docs/eduardo_brazao.pdf a partir de

http://idi.mne.pt/pt/eduardo-brazao-uma-biografia.html. 49 E Director-Geral dos Serviços Jurisdicionais de Menores do Ministério da Justiça. 50 Nomeado por portaria de 29 de Janeiro, publicada no D.G. II Série em 14-2-1958.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

40

O senhor que se seguiu, Quesada Pastor, entre 1960 a 1965, decidiu

continuar a “reduzir a bitola”, como está lavrado em acta51. Viviam-se tempos de

guerra nas colónias, o controle social mais tenaz, o ar mais irrespirável, e a

censura afunilando os critérios, até à breve “primavera marcelista” de 1968, que

também foi sol de pouca dura. Mas o cinema estrangeiro e o português

desafiavam sem perdão a estreiteza de vistas dos censores, agora sob direcção de

Alfredo António Barbieri Cardoso, que iniciou funções em Janeiro de 196652. O

seguinte presidente da CECE é António Caetano de Carvalho53, que assume em

1969 os cargos de Secretário-geral e Director-Geral da Cultura Popular e

Espectáculos54, após ter sido censor da CECE e delegado desta junto da Televisão,

desde 1957, e Director dos Serviços de Informação no SNI, entre 1965 e 1969 55.

5. No labirinto de regulamentos, procedimentos e critérios

5.1. Teoria

Ainda no período de Marcelo Caetano, por determinação da nova lei de

195756, foi criado um novo regulamento da Comissão de Exame e Classificação

dos Espectáculos (CECE), elaborado por uma comissão de três vogais. Este

Regulamento – legado de Eduardo Brazão - tem pelo menos 60 artigos e entrará

em vigor no início de 1958, sendo frequentes vezes referido nas actas. Porém,

desconheço o seu paradeiro, não encontrei ainda qualquer cópia dele57. Deixo

aqui apelo aos demais investigadores para que, se o acharem58, avisem!

51 Acta nº 139 da CECE, de 29-03-1960. 52 Não sabemos até que data desempenhou este cargo, por nos faltarem as actas de 1967

a 1970. 53 António Alfredo Barbieri Cardoso passa a vice-presidente, junto com José Maria Alves,

Inspector dos Espectáculos e vice-presidente da CECE desde 1966. 54 Integrada na Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT), criada pelo

Decreto-Lei nº 48686 de 15-11-1968. 55 Segundo a autobiografia: António Caetano de Carvalho, Memória Breve de uma Vida,

Coimbra, Palimage, 2013. Foi também presidente do Conselho do Cinema, entre Abril

1969 e 1971 (Cruchinho, 2001: 340). Em 15 de Março de 1974 é nomeado Sub-

secretário de Estado da Informação e Turismo, lugar de que será destituído com o golpe

de 25 de Abril de 1974. 56 O Art.º 28º do Decreto-Lei nº 41051, que “altera o regime em vigor sobre a assistência

de menores a espectáculos públicos” e cria a nova CECE, “determina que no prazo de

seis meses a contar de um de Abril último a Comissão deverá submeter à Presidência

do Conselho o projecto do Regulamento Interno, nomeou uma Comissão constituída

pelos Excelentíssimos Senhores Dona Mafalda de Castro Vaz Pinto e Doutores Eurico

Serra e Simão Gonçalves, para elaborá-lo” (Acta nº 1 da CECE, de 23-07-1957). 57 Em 29-10-1957 (Acta nº 15) o Vice-Presidente da Comissão “entregou a cada um dos

membros da Comissão um exemplar do Projecto de Regulamento Interno da CECE”

com vista à sua discussão “tempo oportuno”. Em 5-11-1957 (Acta nº 16), Eduardo

Brazão incumbiu o Inspector-Chefe dos Espectáculos de redigir o expediente para o

envio do Projecto de Regulamento à Presidência do Conselho. Em 25-2-1958 Eurico

Serra, recém empossado Presidente da Comissão, declara: “Temos agora um

regulamento, determinado por lei e aprovado superiormente”. 58 O desaparecimento deste regulamento é estranhíssimo, mas é de supor que também

tivesse sido enviado às empresas teatrais e cinematográficas.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

41

São conhecidos outros regulamentos e normas anteriores, de que faço aqui

breve historial. A censura ao Teatro fora extinta na Primeira República pelo

decreto nº 9584 de 9-04-1924, ao mesmo tempo que era criado um Conselho

Teatral, sob alçada do Ministério da Instrução Pública.

Mas logo em 1925 é criada uma censura ao Cinema associada a fins

educacionais, com a Lei n.º 1748 de 16-02 que “proíbe nos salões

cinematográficos a exibição de fitas contrárias à moral e bons costumes”, não

permitindo a entrada a menores de 15 anos

desde que neles se exibam fitas que ao seu espírito possam sugestionar a

prática de actos menos conformes com a moral social. (…) A censura será

feita, em regra, no primeiro dia da sua exibição, excepto do caso em que

os interessados requeiram a sua antecipação.

Em 1926, esta lei é regulamentada, com o Decreto n.º 11459 de 20 de

Fevereiro, ficando a censura (apenas) ao cinema sob tutela da Direcção Geral do

Ensino Primário e Normal.

Em 1927, são regulamentadas num só diploma todas as disposições

relativas à actividade teatral e a todo o tipo de espectáculos públicos, pelo decreto

n.º 13564 de 6 de Maio, todavia sem qualquer menção à censura de teatro para

além da incumbência de “fiscalizar os espectáculos e promover a repressão de

quaisquer factos ofensivos da lei, da moral e dos bons costumes”; no que respeita

ao cinema, o artigo 133º enumera os conteúdos interditos, essencialmente a

censura de cenas que sejam consideradas crime por lei (maus tratos, torturas,

assassínios, etc.):

Art. 133.º É rigorosamente interdita a exibição de fitas perniciosas para a

educação do povo, de incitamento ao crime, atentatórias da moral e do

regime político e social vigorantes e designadamente as que apresentarem

scenas em que se contenham:

Maus tratos a mulheres. Torturas a homens e animais. Personagens nuas.

Bailes lascivos. Operações cirúrgicas. Execuções capitais. Casa de

prostitutição. Assassínios. Roubo com arrombamento ou violação de

domicílio, em que, pelos pormenores apresentados, se possam avaliar dos

meios empregados para cometer tal delito. A glorificação do crime por

meio de letreiros ou efeitos fotográficos.

Note-se que além dos aspectos de moral social, descritos em pormenor,

acresce, em relação à lei anterior, a proibição genérica de fitas atentatórias do

“regime politico e social vigorantes”, ou seja, uma censura de cariz político. Esta

lei vigorará por mais de trinta anos, sendo revogada pelo Decreto-Lei nº 42660

de 20-11-1959.

Contudo haveria outras instruções complementares, segundo se depreende

da Acta nº 144 da CCE, de 18-10-1955, onde, além daquele decreto, “o Senhor

Vice-Presidente achou por bem ler à Comissão as instruções complementares

que, para a orientação dos Censores, foram, em tempo fornecidas superiormente

à Comissão”.

Que instruções complementares seriam estas? Não temos a certeza e

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

42

surgem-nos duas hipóteses:

a) as “instruções especiais elaboradas no tempo do ex-secretário

Nacional sr. dr. António Ferro” que Óscar de Freitas refere na primeira

reunião da CECE em 23-7-1957, onde “elucidou os novos censores sobre

a legislação e normas que vigoram para a Censura;

b) ou “os despachos ministeriais e do actual Secretário

Nacional”, Eduardo Brazão, atrás referidos, e mencionadas na mesma acta,

onde o Vice-presidente “ficou, além disso, de distribuir por todos os vogais

um apanhado de todas essas directrizes”.

As instruções de António Ferro seriam muito provavelmente as que foram

encontradas na Cinemateca59 com a designação “Directrizes para uso da censura

cinematográfica – normas internas”, provavelmente redigidas em 1947 em papel

timbrado sem data, onde se especificam mais detalhadamente os vários “aspectos

morais”, “aspectos sociais e políticos” e “aspectos criminais” a observar, que vêm

acrescentar ao rol das imagens proibidas, o desrespeito pela instituição do

casamento, a exaltação do divórcio, a apologia do adultério, os filmes de intenção

anti-religiosa, os filmes com “exagerada preocupação social ou em que sinta

qualquer tendência comunizante”, ou que foquem “tendencialmente o problema

das injustiças sociais”, “as lutas de classes”, ou que a “atentem contra o prestígio

da forças armadas, filmes que exaltem a guerra, concluindo que “nenhum filme

poderá constituir um facto de perturbação para a paz social”.

E, apesar de prever “circunstâncias excepcionais”, percebe-se como estas

directizes são uma mordaça a que quase nada escapará, uma total sentença de

morte para as artes. Com tal espartilho, não admira que os censores

extravazassem as suas funções. Assim se percebe a necessidade de acção firme

de Eduardo Brazão, ao reduzir as duas páginas de proibições a dois os critérios

apenas.

Porém, como vimos, com a saída de Eduardo Brazão, que é substituído por

Eurico Serra, voltam a estreitar-se os critérios de censura e sai em 1959 nova lei,

o Decreto-Lei n.º 42660, de 20-11-1959, que faz nova redaçcão dos critérios

gerais de censura aos espectáculos:

Art. 40.º A Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos não

poderá autorizar o licenciamento de filmes, peças de teatro ou quaisquer

outros elementos de espectáculo ofensivos dos órgãos de soberania

nacional, das instituições vigentes, dos chefes do Estado ou representantes

diplomáticos de paises estrangeiros, das crenças religiosas e da moral

cristã tradicional, dos bons costumes e das pessoas particulares, ou que

incitem ao crime ou sejam, por qualquer outra forma, perniciosos à

educação do povo.

Assinale-se que os aspectos políticos e de Estado passaram para primeiro

plano, seguidos das questões religiosas e depois dos bons costumes, de descrição

tão geral que tudo pode lá caber, dando aos censores um papel muito mais

59 Facsimile publicado por Margarida Sousa e Manuel Mozos na folha de sala da sessão

de 30-1-2013 já atrás referida, que pela sua extensão de 2 páginas não transcrevo aqui.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

43

arbitrário do que antes tinham.

A investigadora Maria do Carmo Piçarra presenteou-nos também, neste

congresso, com outros documentos dos anos 60, entre os quais as “Directivas

Gerais da Censura” do Ministério do Ultramar, que encontrou no Arquivo

Histórico Diplomático, e explicam as normas de censura relativas à representação

das colónias em jornais e outros meios, incluindo aspectos de linguagem

eufemística.

O retorno de Marcelo Caetano ao governo, em 1968, quando assume a

Presidência do Concelho em substituição de Salazar, assinala-se por uma

mudança imediata no SNI, que passa a chamar-se SEIT – Secretaria de Estado da

Informação e Turismo60. Esta restruturação agrega os serviços existentes e

mantém em funções os seus responsáveis61, não se notando senão episodicamente

a desejada abertura de critérios censórios que se esperava da chamada “primavera

marcelista”62.

Em 1971 é alterado o regime de classificação dos espectáculos63 e criada

uma comissão de recurso independente da CECE, de que fazem parte

representantes da Corporação dos Espectáculos. Mas os critérios censórios

permanecem intocados, com a mesmíssima redacção de 1959 (acima citada).

Segundo Ana Cabrera, “em 1971, já na vigência das novas leis marcelistas, a

análise dos documentos indica que a acção da censura recrudesceu, quer em

actividade, quer em dureza de critérios”, no campo do teatro sobretudo, se

comparado com maior flexibilidade em relação ao cinema.

No final do ano sairá a nova lei do cinema64, pela qual o Instituto Português

de Cinema vem substituir o Fundo do Cinema Nacional no apoio à produção,

criado em 194865. Esta lei não é propriamente uma obra marcelista, pois estava

em preparação já desde 1967, quando foi criada uma Comissão de Revisão da Lei

nº 207166. Este período final do regime, pela sua complexidade e dimensão,

exigirá um estudo dos critérios de censura mais aprofundado, que não estou ainda

em condições de apresentar.

5.2. Praxis

Apesar de todos os censores serem encarregues de censurar tanto peças de

60 Decretos-Lei n.º 48619 de 10-10-1968 e nº 48686 de 15-11-1968. 61 Mantém-se em funções César Moreira Baptista; António Caetano de Carvalho é

nomeado Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, assumindo a presidência

da CECE; passando Alfredo António Barbieri Cardoso a vice-presidente desta. 62 Ver Ana Cabrera (2008), “A censura ao teatro no período marcelista”, Revista Media &

Jornalismo 12: 27-58 63 Pelo Decreto-Lei n.º 263/71, de 18-6-1971. 64 A Lei 7/71 de 7-12-1971, que promulga as bases relativas à protecção do cinema

nacional. 65 Pela Lei n.º 2027 de 18 de Fevereiro de 1948. 66 Esta Comissão reuniu no SNI entre Outubro de 1967 e Abril de 1968, segundo actas

encontradas no Fundo do SNI inseridas em pastas não identificadas como tal; no

mesmo período reuniu uma outra Comissão de Revisão da Lei nº 2041, de 16-6-1950,

que criara o Fundo do Teatro Nacional.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

44

teatro como filmes, os processos e critérios eram necessariamente distintos, dadas

as diferentes naturezas destas artes. Falarei aqui apenas dos procedimentos

respeitantes ao cinema.

Apesar de haver inventários de filmes, faltam muitos processos de censura

que poderão ter desaparecido qundo, no pós-revolução, os arquivos ficaram à

mercê de visitantes mais ou menos irreverentes, ou que ao longo de décadas de

armazenamento e escuridão se terão extraviado.

Na Cinemateca, segundo explicação de Margarida Sousa, havia – e há –

um cofre – o nº 8 – destinado, segundo os documentos, a cortes da censura. Porém

faltam os cortes de cerca de 90% dos filmes67. Como se explica que tenham

desaparecido quase todos, se havia um cofre para eles? Ficariam os cortes lá

temporariamente? Enquanto os filmes estivessem em cartaz? Que tamanho terá

esse cofre?

Outra versão oral (que corre por testemunho indirecto na Cinemateca) diz

que os cortes – feitos nas instalações do próprio SNI no Palácio Foz, onde ficava

a sala de projecção dos censores, ou feitos pelo distribuidor e depois entregues

(em positivo e negativo) para verificação na censura – seriam destruídos, hipótese

que os investigadores da Cinemateca acham improvável. Conta-se ainda que os

cortes que foram encontrados teriam sido sonegados por um funcionário do

SNI/Cinemateca. Na falta de provas, aqui se registam as duas lendas, na

possibilidade que atrás delas esteja alguma verdade.

Mas pode bem ser difícil descobrir o que realmente aconteceu, já que

sabemos por diversos testemunhos e provas documentais que muitos dos

procedimentos da censura eram informais, pessoalizados e bastante irregulares

em relação às normas internas. Por exemplo, sabe-se que era habitual os filmes

proibidos serem repetidamente projectados para os familiares ou amigos dos

censores, espectadores privilegiados de cultura subversiva. Como me contou a

historiadora Irene Pimentel, uma sua tia convidada para essas sessões

“clandestinas” teria explicado assim o seu direito a ver filmes proibidos: “Nós

respondemos por nós”, numa atitude que mostra a sobranceria de uma certa classe

possidónia.

Nas questões da censura inclui-se o aspecto da classificação etária, que

podemos considerar – agora como outrora – uma forma de censura, censura

educacional, chamemos-lhes assim. Ao restringir a visão de certas imagens e

ideias às crianças e jovens (processo que ainda hoje é reconhecido como válido e

relativamente consensual), a censura age com paternalismo, o mesmo que

aplicava a toda a sociedade durante a ditadura, considerando que nenhum adulto

seria tão adulto como as tias que podiam ver filmes proibidos porque sabiam

responder pelos seus actos. Para esta elite no poder, o povo era considerado

irresponsável.

Essencialmente, nas questões de classificação etária invocam-se critérios

educacionais, mas a alteração de critérios (algumas vezes ao longo das décadas),

provocou sempre discordâncias públicas e críticas acérrimas nos jornais68. As

67 Dos filmes de que há relatório, conforme atrás referido. 68 Vide minha comunicação neste congresso: “As críticas à censura de cinema e teatro

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

45

críticas tinham expressão pública, porque, acima de tudo, colidiam com os

interesses de distribuidores e exibidores, que sabiam usar os jornais como meio

de pressão sobre o poder, que a elas fazia ouvidos moucos.

Outro aspecto quase tão pressionante e mutilador das obras

cinematográficas era a censura comercial, em que o distribuidor – negociando

com a comissão – oferecia o sacrifício de certas imagens ou cenas com vista a

baixar a idade de classificação de um filme e poder ter público mais numeroso.

Por vezes o tiro saía-lhes pela culatra e o público – que desejava ver as cenas mais

atrevidas – queixava-se ou debandava. Aí o distribuidor pedia para repor os

cortes69, como aconteceu com O Trigo e o Joio de Manuel Guimarães (1965).

Diante do gigantesco acervo de relatórios de censura existentes, torna-se

impossível, no médio prazo, fazer qualquer estudo sistemático e abrangente

acerca de conteúdos e critérios de censura. Sabemos, por amostragem, que os

principais tópicos censurados têm a ver com:

a) o erotismo e representações “imorais” de família, ou seja, aquilo que cabe

no âmbito da censura de costumes;

b) a política, a guerra, a religião, ou seja, os temas que cabem no âmbito da

política e podem beliscar o poder instituído.

Por exemplo, o tópico da guerra é daqueles que raros ousaram tocar, numa

interiorização das regras de censura que conduzia à autocensura. A autocensura

evita o conflito, é confortável para ambas as partes. Mas a insolência, a revolta, a

desobediência são o reverso da medalha, muito presente nas representações

teatrais, que os inspectores de espectáculos se esforçavam por fiscalizar,

castigando com a proibição dos espectáculos ou mesmo com denúncia à PIDE.

Era uma autêntica caça do gato ao rato.

Inseguros na sua cadeira de censores, a cegueira política levava-os a cortar

(nas Actualidades) qualquer alusão relativa ao nazismo e aos alemães. Mesmo até

bastante tarde (inícios da década de 60), recusavam-se a admitir as atrocidades de

guerra contra os judeus, como se fossem propaganda comunista. Igualmente eram

cortadas quaisquer imagens da Rússia ou da União Soviética.

6. O caso do cinema português

A censura ao cinema tinha por especial missão manter o público nacional

alheado da realidade internacional, fosse no campo da informação política, fosse

no campo dos costumes, com o correr dos anos cada vez mais liberais. Não há

dúvida de que a sua acção foi eficaz e que logrou manter na ignorância e no

obscurantismo largas camadas da população, com excepção dos poucos que

podiam ocasionalmente viajar para lá dos Pirinéus ou receber revistas e livros não

interceptados nas fronteiras.

Assinale-se que os filmes estrangeiros já eram, na sua origem, alvo de

durante o Estado Novo em Portugal”.

69 Neste caso, os cortes não foram imediatamente destruídos, pois já teriam passado 2 ou

3 semanas, o que dever-se talvez ao facto de terem sido feitos pelo distribuidor.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

46

censura, mas a censura lusa era muitíssimo mais restritiva, pois temia ver

instabilizados os alicerces do regime. O poder sabia que havia muitas e boas

razões para o descontentamento popular, que era necessário a todo custo impedir.

Os jornais, como meios de comunicação de massas, eram usados para

assegurar a propaganda oficial – a versão oficial dos acontecimentos, nacionais

ou estrangeiros – e para conter a opinião pública e os seus ânimos, por via do

controlo daqueles que dirigiam esses meios de comunicação, fosse através da

autorização legal concedida às direcções de jornais, fosse por meio da sempre

implacável censura de imprensa.

Mas o cinema era um veículo considerado igualmente perigoso para a

estabilidade social, pois tinha o poder de sugerir e fazer desejar outras realidades

por cá proibidas, tanto mais temíveis quanto não se propagavam através de

palavras, mas pelo poder das imagens para modelar comportamentos individuais

e aspirações sociais.

A censura dos filmes portugueses era de uma severidade muito maior que

a aplicada ao cinema estrangeiro, embora os censores justificassem por vezes que

tinham permitido a exibição de um filme apenas por consideração ao facto de ele

ser nacional, lembrados talvez do esquecido critério de Eduardo Brazão e da

necessidade de não matar todas as ervas daninhas. E não apenas os filmes

irreverentes ou vagamente oposicionistas foram vítimas da tesoura. Também

filmes situacionistas foram cortados70 e até proibidos71. Os mais temerários esses

acabaram estropiados ou proibidos72.

Mas havia uma outra forma de censura pela positiva, a que passava pelo

papel complementar do Fundo do Cinema Nacional, encarregado de distribuir

subsídios parcimoniosamente. Assim, durante duas décadas73 a produção foi

reduzida à quase nulidade mercê dos mitigados apoios ao cinema português, que

beneficiavam com subsídios e empréstimos inúmeros filmes medíocres e

comerciais. Admitamos que a mediocridade os levava a essa preferência, mas é

mais objectivo dizer-se que os critérios beneficiavam a confiança política e o bom

comportamento dos produtores e autores.

Contudo, se os apoios económicos do Fundo favoreciam sobretudo filmes

irrelevantes, ainda assim apoiavam, de vez em quando, alguns experimentais ou

oposicionistas. Não se julgue portanto que os critérios eram monolíticos, pelo

contrário: mitigadamente e com cautelas várias, eram atribuídos aos realizadores

e produtores pequenos subsídios para curtas-metragens – documentários,

institucionais, actualidades – e, por vezes, para algum filme de fundo. Este era o

70 Por exemplo, 29 Irmãos (1965), Rapazes de Taxis (1965), A Maluquinha de Arroios

(1970) ou Os Toiros de Mary Foster (1972). 71 Encontro com a Morte (1965), de Arthur Duarte, uma história de adultério produzida

no Brasil. 72 Vidas sem Rumo (1956) de Manuel Guimarães; Catembe (1965) de Manuel Faria de

Almeida; Deixem-me ao menos subir às palmeiras (1972) de Joaquim Lopes Barbosa

(Piçarra, 2013). 73 Entre 1949, com a criação do Fundo do Cinema Nacional pela Lei n.º 2027 de 18-2-

1948, regulamentada pelo Decretos–lei nº 37369 e 37370 de 11-4-1949, e 1971, quando

é criada a nova lei do cinema, a Lei 7/71 de 7-12-1971, que cria o IPC – Instituto

Português do Cinema.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

47

modo eficiente de lhes tolher as veleidades críticas, dependentes que ficavam da

expectativa de receber algo mais no ano seguinte e aguentar-se à tona de água,

enfim, sobreviver...

É assim que pode explicar-se como um dos realizadores mais mal tratados

pela censura e pelo regime – Manuel Guimarães, o nosso cineasta neo-realista74

– e cujos filmes todos eles foram retalhados até à desfiguração, fosse presenteado

com subsídios para três das suas oito longas-metragens75. Também Manuel de

Oliveira, com numerosos projectos recusados (e chegando a ser preso pela PIDE

em 1963), conseguiu financiamento oficial para três filmes: Acto da Primavera

(1962) e A Caça (1963) e Benilde ou a Virgem Mãe (1974)76.

Muitos filmes ficaram por realizar, arquivados – pedido após pedido – nas

caixas do SNI, até hoje. Um dano irreversível à cultura, que foi efectivamente

uma forma de censura, pela arbitrariedade e instrumentalização dos seus

objectivos.

Além dos subsídios, o Fundo patrocinava a formação de técnicos e artistas,

tanto no país como no estrangeiro, o que, se beneficiou toda uma nova geração

de técnicos e cineastas, também os manteve na situação de expectável gratidão e

expectante recompensa, amansando possíveis resistências.

Os cineastas jogavam como podiam dentro e fora do status quo para

sobreviver na sua profissão vocacional. Foi o caso de quase toda a geração do

novo cinema, criadora de uma nova expressão cinematográfica, mas não a salvo

dos fatais cortes. A resistência possível no campo da criação cinematográfica é

sobretudo estética – a alusão, a elipse, a metáfora constituem-se no âmago da

linguagem cinematográfica característica de uma escola portuguesa então

emergente. No início dos anos 70, alguns novíssimos realizadores – já sem olhar

a gratidões para com o poder – arriscam-se a afrontá-lo e vêem seus filmes

liminarmente proibidos77.

Todavia, o bastião mais forte de resistência à ditadura era o movimento dos

cineclubes78, surgido no pós-guerra (1945) e que, através de filmes de qualidade

(inevitavelmente do circuito comercial e anteriormente autorizados pela censura)

suscitavam o debate de ideias diversas. O Estado via os cineclubes como um foco

de fermentação de ideias subversivas e convencido de que era um coio de

comunistas, tratou de regular esse sector, criando em 1957 uma Federação

Nacional de Cineclubes por si controlada, rigorosamente vigiando e fechando

74 Possivelmente, considerado comunista, embora fosse apenas simpatizante, não

militante. 75 O Crime de Aldeia Velha (1964), Lotação Esgotada (1972) e Cântico Final (1974-75). 76 Paulo Cunha, “Manoel de Oliveira: de autor marginal a cineasta oficial”, in Olhares:

Manoel de Oliveira, Rio de Janeirto, edições LCV, 2010. 77 Nojo aos Cães (1970) de António de Macedo, Grande, grande era a cidade (1972) e

Cartas na Mesa (1973) de Rogério Ceitil, Índia (1972) de António Faria, Sofia e a

Educação Sexual (1973) de Eduardo Geada, Quem espera por sapatos de defunto

morre descalço (1970) de João César Monteiro, O Mal Amado (1973) de Fernando

Matos Silva (Areal, “As Imagens Proibidas – A censura ao cinema português” in

Cabrera, 2013). 78 Como o mostrou Paulo Cunha em comunicação a este congresso: “Cineclubismo e

Censura em Portugal (1956–76)”

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

48

sucessivamente os cineclubes, até à sua quase extinção em meados dos anos 60.

Os danos infligidos pela censura à cultura portuguesa foram

incomensuráveis, irreversíveis e duradouros. A história da cultura durante o

Estado Novo é um rol de tristezas e vergonhas, apesar dos bravos que souberam

resistir. Um campo queimado e estiolado de pessimismo e abdicação. As obras de

arte que ficaram são em número diminuto. Mas o espólio da censura da censura

é gigantesco e medonho.

Sobre este acervo de vastidão inalcansável, há hoje muitos e diversos

investigadores a trabalhar, como se tem revelado ao longo deste congresso. Todos

nós vasculhamos mais ou menos erraticamente por entre papéis desarrumados à

procura de nexos perdidos, de sonhos e vidas roubadas, de obras nunca realizadas,

como quem limpa despojos dum campo de batalha.

Mas nem sempre nos conhecemos ou sabemos o que ao lado foi

encontrado. Andamos talvez à procura de documentos que outros saberão onde

se encontram e poderiam colmatar lacunas e evitar repetições. Este congresso tem

sido uma ocasião especial para essa troca de conhecimentos e espero que este

encontro de interesses possa continuar, beneficiando o nosso trabalho comum,

cuja base consiste na identificação, inventariação e classificação daquele espólio.

A troca de informações sobre esse trabalho preliminar seria fundamental e

enriquecedor para todos. Assim, gostaria de propor a todos os colegas a criação

de uma rede de trabalho de investigadores da censura, que começaria por um

encontro presencial, a agendar no curto ou médio prazo.

Referências bibliográficas

António, Lauro (2001), Cinema e Censura em Portugal. Lisboa: Biblioteca

Museu República e Resistência.

Areal, Leonor (2011), A Censura no Cinema Português – Estudo de caso: Manuel

Guimarães, Actas da Conferência Internacional Cinema - Arte, Tecnologia,

Comunicação. Avanca, 481-489.

Areal, Leonor (2013a), As Imagens Proibidas – A censura ao cinema português.

Cabrera, Ana (org.), Censura nunca mais – A censura ao teatro e ao cinema no

Estado Novo. Lisboa: Aletheia, CIMJ, 113-175.

Areal, Leonor (2013b), A censura e o fantasma da guerra colonial no cinema

português. Libro de Actas. XIII Congreso Internacional Ibercom. Santiago de

Compostela: IBERCOM, AGACOM, 3454-3461. Disponível online em

http://www.estudosaudiovisuais.org/lusofonia/revision/ActasXIIICongresoIBER

COM.pdf.

Areal, Leonor (2014), A censura ao cinema contra o contágio das ideias. Cunha,

Paulo; Branco, Sérgio Dias (eds.), Atas do III Encontro Anual da AIM. Coimbra:

AIM, 350-359. Disponível online em http://aim.org.pt/atas/Atas-

IIIEncontroAnualAIM.pdf.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

49

Brazão, Eduardo (1976), Memorial de D. Quixote. Coimbra: Coimbra Editora.

Cabrera, Ana (2013), Censura e estratégas censurantes na sociedade moderna.

Cabrera, Ana (org.), Censura nunca mais – A censura ao teatro e ao cinema no

Estado Novo. Lisboa: Aletheia, CIMJ, 205-256.

Cabrera, Ana (2014), A Memória e o Esquecimento: A censura do Estado Novo

em Portugal perante três peças de autores espanhóis, 452ºF - Theatre and

Dictatorship in the 20th Century 10. Disponível online em

http://www.452f.com/pdf/numero10/10_452f-completo.pdf

Carvalho, António Caetano de (2013), Memória Breve de uma Vida. Coimbra,

Palimage.

Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo (1980), A Politica de Informação no

Regime Fascista, Presidência do Conselho de Ministros, 2 vols.

Costa, José Filipe (2012), O Cinema ao Poder!. Lisboa: Hugin.

Cruchinho, Fausto (2001), O Conselho do Cinema – Notas sobre o seu

funcionamento». Torgal, Luís Reis (org.), O Cinema sob o olhar de Salazar.

Lisboa: Temas e Debates.

Cunha, Paulo (2010), Manoel de Oliveira: de autor marginal a cineasta oficial.

Cunha, Paulo; Sales, Michelle (org.), Olhares: Manoel de Oliveira. Rio de

Janeiro: Edições LCV.

Gomes, Joaquim Cardoso (2013), Os censores do 25 de Abril: o pessoal político

da censura à imprensa, Media & Jornalismo - Repressão VS expressão: censura

às artes e aos periódicos 23.

Moura, Nuno Costa (2007), Indispensável dirigismo equilibrado - O Fundo de

Teatro entre 1950 e 1974. Dissertação de mestrado em Estudos de Teatro

apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Disponível online

em http://hdl.handle.net/10451/472

Piçarra, Maria do Carmo (2013), Do Minho a Timor somos todos... pássaros de

asas cortadas. Cabrera, Ana (org.), Censura nunca mais - A censura ao teatro e

ao cinema no Estado Novo. Lisboa: Aletheia, CIMJ, 205-256.

Vidal, Isabel Alice Radburn Nunes (2009), Um olhar sobre a actividade teatral,

em Portugal, nos anos trinta do século XX. Dissertação de mestrado em Estudos

de Teatro apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Disponível online em http://hdl.handle.net/10451/1705

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

50

As críticas à censura de cinema e teatro (durante o Estado Novo em

Portugal)1

Leonor Areal

[email protected]

Centro de Investigação Media e Jornalismo

(CIMJ - FCSH/UNL)

Resumo - No longo período de vigência do Estado Novo, a Comissão de Censura

foi alvo de diversas críticas e reclamações provindas de vários quadrantes da

sociedade: as denúncias por demasiada brandura, as queixas por excesso de zelo,

os recursos interpostos pelas empresas de cinema, as críticas surgidas na

imprensa, todas elas incomodavam solenemente os censores. Tanto que faziam

questão de retorquir publicamente às admoestações e deixar escrita em acta a sua

autodefesa. Nas suas reuniões semanais, discutiam-se estes ataques, normalmente

considerados como “campanhas” desonestas contra a função que exerciam

imbuídos de espírito de “missão”, aliás bem ”espinhosa” por não ser bem

compreendida. As críticas, se fossem públicas, eram vistas como afronta e

desrespeito, embora a Comissão admitisse o princípio da crítica, desde que

“construtiva”.

Dos episódios e das farpas lançadas ao poder, pretendo dar conta e expôr

os seus motivos. Como fonte primária, tomo as actas da Comissão de censura

entre 1945 e 1974 e diversos artigos de jornal. O objectivo é compreender a

percepção social relativa à censura e os limites possíveis de oposição a ela. E

discutir o problema da imagem pública da censura, tópico recorrente e inquietante

para as instâncias de censura, que sempre preferem a discrição.

Palavras-chave - comissão de censura | cinema | teatro | crítica| imprensa.

Introdução

Criada em 1945, ainda antes do fim da Grande Guerra, mas prevendo-se já

o seu desfecho próximo, a Comissão de Censura aos Espectáculos2 veio dar

estrutura orgânica e formalizar as práticas de censura já existentes sob alçada da

Inspecção Geral dos Espectáculos, então integrada no Ministério da Educação

Nacional3.

1 A autora opta pela ortografia tradicional, ao abrigo do artigo 37º da CRP sobre liberdade

de expressão. 2 O Decreto-Lei nº 34590 de 11-5-1945 reorganiza a Inspecção Geral dos Espectáculos e

indica a composição da comissão de censura – sem a designar formalmente – composta

pelo secretário geral do Ministério (da Educação Nacional), pelo inspector dos

espectáculos e por 9 vogais (sendo três delegados do SNI) e um secretário nomeados

pelo Ministro. 3 A IGE estava integrada no Ministério da Educação Nacional desde 1942 (Decreto-Lei

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

51

Têm início nesta data as actas que são fonte primária deste ensaio e que

estão acessíveis desde 2006 (CF) no Arquivo da Torre do Tombo e desde 2012

através da Internet. Na sua maior parte, as actas são um inventário minucioso dos

filmes, peças de teatro e outros espectáculos sujeitos a visto da censura – um

inventário burocrático e fastidioso. Porém, quando menos se espera, surgem

pormenores e episódios que nos revelam algo mais acerca do funcionamento da

comissão e do espírito dos seus vogais. Estes episódios – breves e raros – surgem

sobretudo quando os censores entre si discordam da classificação dos filmes e,

entrando em diálogo, afirmam suas respectivas posições em acta, seguidas de

votação final e cumprindo a decisão da maioria – numa surprendente praxis de

democracia interna – mesmo se a posteriori ordens superiores (provindas da

Presidência do Conselho) se sobrepõem ao seu parecer.

Outro tipo de situações perturbadoras da rotina censória acontece quando

a comissão é confrontada com informações exteriores que não controla,

nomeadamente as críticas da imprensa, mas também queixas de pessoas

conhecidas que chegam aos seus ouvidos. É destas que aqui darei conta,

escolhendo quatro episódios significativos.

Episódios

Na sociedade de penúria do pós-guerra, apesar de tudo pacificada e com

esperança renascida, a Comissão de Censura aos Espectáculos (CCE) visionava,

lia, analisava e corrigia as peças de teatro e os filmes que eram vistos no país;

filmes estrangeiros sobretudo, já que os portugueses eram escassos, mas

duplamente controlados através de censura prévia da “planificação” e de censura

posterior do filme; podendo até suspender as filmagens, como no caso do filme

Camões de Leitão de Barros4.

Em Janeiro de 1953, a composição da comissão é totalmente refeita5,

n.º 32.241 de 5 de Setembro). Em 1944, é constituído na dependência da Presidência

do Conselho, o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI)

que integra os serviços do anterior Secretariado da Propaganda Nacional (criado em

1933) e os serviços de censura (Decreto-Lei nº 33.545 de 23 de Fevereiro). A integração

da IGE no SNI é contudo diferida, ficando, em regime de instalação, na dependência

conjunta do MNE e da Presidência do Conselho até 1959, quando é de novo

reorganizada e finalmente integrada no SNI (Decreto-Lei n.º 42.663 de 20 de

Novembro 1959). 4 Em acta nº 29 da CCE de 25-09-1945, foi decidida a suspensão da filmagem de Camões

– o Trinca Fortes, após “aprovação do relatório do vogal Melo Matos, tendo sido

resolvido que se convidasse a Empresa a suspender os trabalhos até resolução definitiva

e que se desse conhecimento do citado relatório a Sua Excelência o Ministro”. Na acta

nº 31 de 9-10-1945, “a Comissão resolveu autorizar a continuação dos trabalhos do

filme (...) em virtude de terem alguns censores, que assistiram à passagem da parte já

[filmada] do referido filme, verificado que os erros e faltas apontados no relatório do

vogal Melo Matos e que realmente se verificam no filme, não são de molde a invalidar

a continuação da filmagem”. 5 O Decreto-Lei nº 38.964 de 27-10-1952 cria a nova Comissão de Censura dos

Espectáculos e ainda a Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores, ambas na

alçada do Ministério da Educação Nacional, definido as suas atribuições e uma nova

tabela de classificação etária dos espectáculos.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

52

passando a ser presidida pelo novo Secretário Nacional de Informação, Cultura

Popular e Turismo, José Manuel da Costa.

A nova comissão já não se limita a registar em acta a distribuição de serviço

e respectivas decisões – mas discute afincadamente os critérios e as normas por

que deve reger-se. Estas são, portanto, actas preciosas para a compreensão e

avaliação das actividades de censura aos espectáculos.

1. A lei da assistência de menores a espectáculos públicos (Fev. 1953)

Logo em Fevereiro, a alteração legislativa6 que pretendia aperfeiçoar e

“regular a assistência de menores a espectáculos públicos” vem estragar o

Carnaval às famílias e às empresas de teatro e cinema. Levanta-se uma celeuma

na imprensa que, aos olhos da comissão, se trata de uma “campanha dos jornais”7.

O presidente da Comissão de Censura, apanhado desprevenido por esta polémica

ao voltar de uma missão oficial no estrangeiro, deixou lavrada em acta a sua

indignação:

Ocupando-se em primeiro lugar da campanha dos jornais, manifestou, em

termos da maior repulsa, os baixos propósitos do ataque contra uma

medida de flagrante oportunidade e necessidade tomada pelo Governo,

que outra coisa não teve em vista senão a sanidade moral do País, a

salvaguarda da formação espiritual das futuras gerações e a defesa das

idades perigosas contra a acção nociva de muitos espectáculos que antes

lhe eram facultados. (…)

A objectividade de tão elevados conceitos morais, bem aceites e

compreendidos pela geral opinião pública mais sensata e menos egoísta

da Nação, foi precisamente aquela a quem se dirigiu o ataque de certos

jornais, que lhe deram lugar de relevo nas suas colunas, colocando-se

assim, franca e preferentemente, ao serviço exclusivo de inconfessados

interesses materiais e dos malefícios maçónicos8.

Esta reacção parece-nos talvez exagerada, já que os protestos provêm até

de figuras insuspeitas, como o embaixador de Portugal em Madrid, Carneiro

Pacheco, que telefonara pessoalmente ao presidente da comissão

6 O Decreto-Lei nº 38.964 de 27-10-1952 cria quatro categorias de espectáculos: “1º – Os

espectáculos cinematográficos são vedados a menores de 6 anos; 2º – Os menores de

13 anos só poderão assistir a espectáculos para crianças; 3º – Aos espectáculos que

tenham classificação especial para adultos só podem assistir indivíduos com mais de

18 anos de idade; 4º – Aos espectáculos aprovados sem classificação especial pela

Comissão de Censura aos Espectáculos poderão assistir todos os indivíduos com mais

de 13 anos de idade.” Esta lei vem substituir a anterior Lei nº 1974 de 16-02-1939 que,

excluindo igualmente os menores de 6 anos, a não ser em casos excepcionais, apenas

estabelecia duas categorias etárias: espectáculos para menores e espectáculos para

adultos; sendo que até aos 12 anos, as crianças só podiam frequentar espectáculos de

dia, e a partir dos 15 anos poderiam assistir a espectáculos nocturnos (para menores)

ou para adultos quando acompanhados de seus pais. 7 “...promovida por órgãos matutinos da imprensa diária de grande expansão” (não

especificados em acta, mas que, após laboriosa pesquisa no Arquivo da Hemeroteca de

Lisboa, consegui descobrir serem, pelo menos, O Século, Diário Popular, República. 8 Acta nº 5 da CCE de 24-2-1953.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

53

para lhe apresentar reclamações com motivo nos impedimentos que lhe

foram postos na admissão de seu filho, menor de 14 anos, que o

acompanhava para assistir ao espectáculo carnavalesco do dia catorze do

corrente mês, no Teatro Nacional de Dona Maria Segunda9.

A agravar a irritação do Secretário Nacional, “só dois jornais diários da

manhã e um semanário tinham feito frente ao ataque, colocando-se abertamente

em defesa da lei em vigor”. Além disso, muito se ofendera com “o silêncio do

órgão da imprensa governamental” – o Diário da Manhã – com cujo director “em

discussões, por telefone, quase chegara à beira do seu sacrifício das relações

pessoais e fora forçado até a perguntar-lhe se o jornal que dirigia já não tinha

princípios de ordem moral a defender”.

Recuemos pois uns dias, ao início da polémica, tal como terá sido obrigado

a fazer José Manuel da Costa. Em 30 de Janeiro de 1953, o Diário Popular

publicara um artigo sobre “A lei que regula a entrada de menores nas casas de

espectáculos e as anomalias verificadas durante o primeiro mês da sua entrada

em vigor” – tema “que continua a dar motivo a muitas dezenas de cartas dos

nossos leitores”. O artigo tenta conciliar essas diversas opiniões, umas mais

“descabeladas” e outras “justas”, assinalando que “o sentido moral da lei deveria

ser melhor entendido”, pois ele se “destina a evitar mais fácil propagação de

ideias e de factos que, mal assimilados por cérebros em formação, só podem, no

futuro, tornar-se prejudiciais”.

Contudo, o artigo indica que “há arestas a limar, pontos a esclarecer”,

salientando algumas incoerências da lei, que impediam, por exemplo, uma

menina de 12 anos de ver o filme Robin dos Bosques, ou outras de 16 ou 17 de

frequentar as salas de chá dos casinos.

A referência seguinte a esta lei encontrei-a, passados 15 dias, no jornal O

Século10, noticiando a intervenção na Assembleia Nacional do deputado Pinto

Barriga que, elogiando a “grande obra de educação moral” do governo, “pede

permissão de consultar nos ministérios da Presidência e da Educação Nacional,

os trabalhos (...) em curso destinados a completar (...) a inevitável fase inicial de

saneamento, forçosamente quase de carácter negativo ou proibitivo”. Mesmo

elogiando veementemente o “engrandecimento patriótico e moral” e a

“cristianização dessas almas e consciências juvenis em ampla formação”, parece

ver-se aqui sinal de que a lei tem suficientes imperfeições que deverão ser

corrigidas.

Depois, a 19 de Fevereiro, também no O Século11, um editorial de primeira

página, intitulado “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, revela que “são tantas

vozes que se levantam” acerca desta lei, que “é forçoso reconhecer que alguma

coisa está a precisar de ponderada revisão”. Defendendo sempre a necessidade de

“proteger a formação moral da juventude”, refere, entre outras incoerências, o

9 Tratava-se da peça O senhor roubado de Chagas Roquete. 10 “Sobre a regulamentação da presença de menores nos espectáculos públicos e a

produção e distribuição de energia eléctrica o sr. prof. dr. Pinto Barriga pediu

esclarecimentos na Assembleia Nacional” in O Século de 14-2-1953. 11 Era seu director João Pereira da Rosa, e director-adjunto Guilherme Pereira da Rosa.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

54

facto de se vedar a entrada a menores de 13 anos em espectáculos que podem ser

ouvidos na rádio “por qualquer criança de colo”.

As principais vítimas, diz o artigo, são as crianças “para as quais não se

criou, em compensação necessária, espectáculos que (...) suprissem os que lhe

foram vedados”; mas salienta também o prejuízo das empresas e seus

trabalhadores, bem como os dos “pais que não podem deixar os filhos em casa

entregues a criadas (que muitas vezes não têm)” e assim não podem eles ir ver

um “filme sem classificação especial” - pois estes estão reservados por lei a

maiores de 13 anos de idade.

Curiosamente, no mesmo jornal, surge um anúncio do filme Amanhã Será

Tarde12 – “o primeiro filme que desvenda arrojadamente o mundo misterioso dos

adolescentes” - que “FOI FINALMENTE AUTORIZADO em virtude da nova

lei que regulamenta a entrada de menores”. A razão poderá ser que a nova lei –

não permitindo de todo o acesso de menores a espectáculos para adultos (nem

acompanhados dos pais) – tenha tornado acessíveis só para adultos certos filmes.

No dia seguinte, 20 de Fevereiro, de novo na primeira página, O Século

publicava um ofício enviado pela União de Grémios dos Espectáculos, chamando

a atenção para “os prejuízos que o decreto ocasiona aos empresários”. Esta carta

revela que já em 18 de Novembro de 1952 fora enviada ao Ministro da

Presidência13 uma exposição onde – “embora se reconhecesse (...) a necessidade

urgente de se levantar à volta da juventude e da infância (...) uma cintura de defesa

com que lhes fiquem vedados todos os caminhos que não levem à Verdade e ao

Bem” – consideravam que “se fora longe demais no aspecto das limitações”.

Decorridos dois meses, os prejuízos das empresas revelam-se significativos não

apenas nas grandes cidades como na província. Com base nestes dados, a União

de Grémios informa que entregará “dentro de dias” uma nova exposição ao

ministro. Em seguida, publica-se uma carta de um empresário das Caldas da

Rainha explicando “como perdeu dinheiro”, e para quem “não oferece dúvida

que, dentro em breve, quase todos – senão todos – os cinemas da província terão

de fechar portas”.

No dia 21, nova notícia na primeira página dá conta de “numerosos

telegramas e cartas de aplauso” ao artigo de ante-véspera n’O Século, citando

uma mensagem enviada pelos empresários do Norte e nomeando mais de uma

vintena de empresas que manifestaram “aplauso” à “doutrina do nosso artigo”. A

pressão da opinião pública vai continuar n’O Século, com mais apoios de

empresas, em 22 e 23 de Fevereiro.

Também o vespertino República, no dia 21, publica uma pequena nota14 de

comentário às “vivas discussões” suscitadas por este decreto-lei, reforçando a

ideia já alhures expressa de que caberia ao Estado, através da classificação dos

filmes, aconselhar os pais: “o que vá além disto parece-nos intervenção excessiva,

num problema cuja resolução pertence, fundamentalmente, aos pais”.

12 Filme italiano de 1949, realizado por Léonide Moguy, com Vittorio de Sica e Anna

Maria Pierangeli, que estreará no Tivoli a 23 de Fevereiro. Classificado para adultos

(maiores de 18 anos). 13 João Pinto da Costa Leite. 14 Assinada por L.O.G.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

55

O problema surge entretanto sob outro prisma: a perspectiva dos

empresários que nem sequer possuem filmes especialmente destinados às

crianças. A 23 de Fevereiro, o Diário Popular afixa na primeira página: “É

impossível organizar espectáculos cinematográficos para crianças por falta de

filmes próprios – diz-nos o presidente do Grémio Nacional das Empresas

Cinematográficas”, que “apresentou já uma exposição ao Ministro da

Presidência”. Afirmando que nenhuma nação produz filmes especialmente para

crianças – além de Branca de Neve e os Sete Anões ou Bambi – Edmundo Ferreira

de Almeida destaca, em entrevista, o exemplo de um filme15 para crianças que

“passa aqui à categoria de “sem classificação especial”“, ou seja, para maiores de

13 anos.

O presidente do Grémio defende que “os menores de 10 a 16 anos,

acompanhados dos pais deveriam poder frequentar qualquer espectáculo”.

Propondo que a classificação “para crianças” seja substituída pela de “para

todos”, “afim de que muitas pessoas deixem de pensar erradamente que aqueles

espectáculos são reservados a crianças”. Propõe ainda a diminuição do limite de

idade do escalão mais alto de 18 para 16 anos, desde que os menores sejam

acompanhados dos pais; e de 13 para 10, “por corresponderem às mudanças de

regime escolar”. Em suma, “seria uma forma de reduzir sensivelmente os

prejuízos causados nos últimos tempos”.

Até que no dia 24, junto com uma nota oficiosa da Presidência do

Conselho, que vem dar a polémica por encerrada – “O governo não deixará de

estudar seriamente as reclamações e sugestões sobre a entrada de menores nos

espectáculos” – é publicado novo editorial n’O Século, intitulado “No meio termo

é que reside a virtude”, que, além de dar exemplos de outros países, demonstra

considerável e irónica contundência:

Não! O que se fez, o que se legislou, o que se ordenou e determinou não

está, não pode estar certo, embora pensem o contrário aqueles que se

empenham em apregoar que nos tempos decorrentes só pode haver povos

15 Jeannot intrepide de Jean Image, o primeiro filme francês de longa-metragem em

desenho animado, inspirado no conto do Pequeno Polegar, tendo obtido em 1951 o

Grande Prémio do II Festival Internacional de Filmes para Crianças de Veneza. Umas

semanas depois, este filme, em português intitulado Aventuras de Joãozinho, volta a

ser referido em acta (24 de Março de 1953), a propósito de protestos ouvidos

pessoalmente pelo presidente José Manuel da Costa: “Do efeito, porventura causado

por essa decisão na opinião pública, tivera a percepção pela estranheza que lhe fora

manifestada por pessoa das suas relações, a qual não compreendera os fortes motivos

que levaram a considerar sem classificação especial um filme premiado”. O vogal

Cortês Pinto “esclareceu que o filme em questão, quer pela natureza da grande maioria

das suas cenas, muito principalmente, quer pela sua enorme extensão, era

absolutamente impróprio para crianças. E, quanto às qualidades que lhe foram

atribuídas, podia afirmar que a classificação que lhe deram apenas servia para

demonstrar que naquele certame de cinematografia internacional os classificadores que

exprimiram semelhante opinião não tinham a menor competência sobre os problemas

da psicologia infantil”. O vogal Dias Saraiva “corroborou os esclarecimentos” do seu

colega, atribuindo essa decisão a “um jogo recíproco de entendimentos entre os

certames cinematográficos internacionais de Veneza e de Cannes”... o que parece

sugerir um suspeito conluio (maçónico?)...

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

56

felizes, aptos para o desempenho das suas missões universais e nacionais,

desde que a Humanidade inteira viva num perpétuo banho de santidade e

inocência, esquecendo a luta, cada vez mais áspera, pela existência para

se entregarem inteirinhos às práticas espirituais, com inteiro desprezo

pelas que conduzem à conquista do pão de cada dia, e se situam na base

de toda a dignidade humana. Há tempo para tudo!

À tarde, a mesma nota oficiosa publicada no Diário Popular faz-se

acompanhar já da resposta do presidente do Grémio, e de uma Nota da Redacção

que parece satisfazer-se com a garantia do governo de que “não deixará de estudar

seriamente” o assunto16. O jornal procura cantar vitória, mas tê-la-á?

É nesse dia, ao fim da tarde, que a Comissão de Censura aos Espectáculos,

pela voz do seu presidente, como vimos, manifestará a sua séria indignação com

o assunto, por escrito e em acta – para leitura dos seu superiores e dos vindouros.

Percebemos pois que “a salvaguarda de altos interesses morais de cuja defesa

nada o demoverá”, nas palavras do comunicado da Presidência do Conselho, vem

carregada de intolerância e determinação. A censura e o governo não gostam de

ser confrontados – e a lei não mudará senão em 1957.

Percebemos também que estava em marcha, de facto, uma reacção

fortemente corporativa contra a nova lei – aquilo que o Secretário Nacional

considera, como vimos, uma campanha “materialista e maçónica” – apesar dos

cuidados reiterados dos intervenientes em aprovar a necessidade de censura dos

espectáculos presentes à juventude...

Desenvolvimentos

José Manuel da Costa parecia realmente enfurecido ao declarar que a

comissão “não podia ficar inactiva perante os propósitos da campanha. Bem sabia

que era mais difícil defender do que atacar, mas era imprescindível e urgente

tomar-se uma atitude”. Assim, propõe dois meios de acção: um relatório a

apresentar superiormente, e um “segundo meio de acção”, que “era o da atitude

individual dos vogais para tanto dispostos, controvertendo desassombradamente,

em artigos a publicar na imprensa, as más intenções da campanha desencadeada”.

A este desafio responde o vogal Leite de Sampaio, que diz já ter escrito um

artigo para a imprensa, “de que só não promoveu a publicação por ter visto nos

jornais a nota oficiosa da Presidência do Conselho, o que o levou a hesitar, pelo

receio de ser inconveniente depois disso”. Outro vogal, Garcia Domingues dirá

“que discordava de atitudes individuais, a tomar pelos vogais (...), pois, em seu

modo de ver, a campanha visava especialmente a doutrina legal” e não a actuação

da comissão, “que se limitara durante o curto lapso de tempo de vigência do

16 Negando que tivesse dado entrada qualquer carta dos Grémios. No mesmo dia 24, no

Diário Popular, e no dia 25, n’O Século, uma rectificação do presidente do Grémio

Nacional das Empresas de Cinema vem dar resposta à nota do governo, corrigindo o

lapso do jornalista que escrevera “foi entregue” em vez de que “ia ser entregue”. A 26,

O Século noticia já foi entregue ao Ministro da Presidência a exposição assinada pelos

Grémios. Até dia 27, o jornal continua a noticiar os apoios expressos aos seus artigos.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

57

decreto a executá-lo, fazendo a classificação dos espectáculos segundo as

categorias legais”:

A defesa do diploma publicado competia, em sua opinião, à imprensa

governamental que tão lamentável e inexplicavelmente se mantinha em

silêncio, o que, felizmente, não se dera com alguns jornais que, sem a

mesma responsabilidade, logo tomaram a defesa dos princípios que o

Governo pretendeu salvaguardar com a publicação do diploma.

Registando assim mais uma crítica ao silêncio inexplicável da imprensa

governamental – que deveria ter defendido o polémico diploma – Garcia

Domingues “entendia que individualmente os vogais não deviam tomar qualquer

“ofensiva” contra a campanha, sem que previamente fosse obtido o assentimento

de sua Excelência o Ministro da Presidência”.

E empurrando para a Inspecção dos Espectáculos a tarefa de elaboração de

um relatório, visto ser a “entidade que podia anotar em relatório a experiência já

colhida sobre o cumprimento do decreto”, Garcia Domingues pensava que à

Comissão competia pôr-se na

incondicional disposição de estudar qualquer aspecto do problema que o

Governo venha a entender dever ser encarado com o fim possível de futura

revisão, embora creia firmemente que estudos dessa natureza não se

compadecem com curtos prazos de experiência e que mais cedo se fará o

silêncio e virá a adaptação ao regime estabelecido que a aceitação de

razões para qualquer alteração legislativa.

Com o ânimo mais serenado, o presidente terá sopesado o argumento do

“silêncio” e pediu então a Américo Cortês Pinto, enquanto representante da

Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (CLEM), uma “breve

organização dos elementos de informação” destinados ao relatório. Este, porém,

alegou fundamentadamente que

a organização desses elementos era incompatível com a brevidade pedida

pelo senhor presidente, visto que os problemas relativos à psicologia

infantil em face do cinema em parte alguma estão suficientemente

estudados.

Lamentando “verificar que não estavam habilitados a apresentar um

trabalho dessa natureza”, o presidente conclui “que deste modo teria de se partir

do caos”. Em seguida, encarregou o senhor Doutor Alambre dos Santos de

proceder à compilação dos factos concretos apontados pelos jornais, para os

trabalhos da comissão especial.

Na sessão da semana seguinte17, o presidente lê à comissão a nota recebida

do Ministro da Presidência18, João Pinto da Costa Leite, precisando que, embora

“a execução da lei tenha tido hesitações e dificuldades”,

um único ponto parece digno de atenção deve ser tratado com urgência

17 Acta nº 6 de 03-03-1953. 18 Datada de 23-02-1953.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

58

(...) – o da organização de espectáculos para crianças. Uma oportuna e

conveniente definição das condições a que esses espectáculos devem

obedecer, por forma a facilitar às empresas a sua organização em termos

aceitáveis, tiraria à campanha que se está fazendo a maior parte da sua

força, porque é esse, ao que se julga, o único ponto fraco na execução do

novo regime.

Assim, 15 dias depois19, três vogais são encarregados de redigirem os

elementos e normas orientadoras quanto à selecção de filmes. A resolução é pois

remetida para outra altura, mas não mais alterada.

Ilações

Este episódio – clamoroso como foi – é demonstrativo da

impenetrabilidade da comissão de censura, tenaz em não ceder a críticas, mesmo

se elas vêm de meios próximos, por receio de se desautorizar, mas sujeitando-se

afinal à antipatia e ao descrédito geral.

Raramente, em três décadas, a comissão aceita rever decisões, mesmo nos

frequentes recursos interpostos pelas distribuidoras para negociação dos cortes.

E se concede, por vezes, alterar as suas decisões, fá-lo apenas em situações

discretas ou informais. A comissão detesta perder a face publicamente. A sua

força ou “autoridade” provinha do seu critério peremptório e imutável. Ao invés

de acompanharem os tempos e os costumes, os censores tendem a encerrar-se

cada vez mais em critérios rígidos.

Por outro lado, este episódio é demonstrativo do papel dos jornais na

formação e na afirmação da chamada opinião pública. Note-se que com o silêncio

de consentimento até no órgão oficioso do governo, segundo as queixas expressas

em acta.

Os jornais, cautelosamente, sempre, apoiando as razões políticas de Estado

(a defesa moral da juventude), mas discordando firmemente na aplicação prática

e, sobretudo, fazendo eco das razões corporativas20 – e apesar da censura de

imprensa – chegam a incomodar o poder e a colocar em causa os funcionários

políticos. Apenas a intervenção directa de Salazar consegue pôr ponto final na

polémica. Reconhecemos, portanto, nos jornais e nos grémios essa capacidade de

pressionar o poder político, mesmo se o resultado foi nulo, neste caso.

Este decreto só virá a ser revogado 4 anos depois, em 1957, com a

reorganização desta comissão que perderá a palavra “censura” para passar a

chamar-se Comissão de Classificação e Exame dos Espectáculos (CECE), mas

sem alterações significativas da classificação etária21.

19 Acta nº 8 da CCE de 17-03-1953. 20 As corporações eram consignadas como organizações de diálogo e negociação na

estrutura política do Estado (vide Patrícia Vieira, 2011: 88). 21 O Decreto-Lei n.º 41.051 de 1-4-1957, “tendo em vista a conveniência de atenuar certas

disposições”, pouco altera as classificações etárias: apenas muda a designação “para

crianças” que passa aplicar-se a espectáculos a partir dos 4 anos, ficando a categoria a

partir de 6 anos a designar-se “para todos”; o terceiro escalão desce de 13 para 12 anos.

É aumentado, de dois para quatro, os números de elementos da CLEM, “escolhidos

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

59

2. Polémica institucional

Em Agosto de 1953, uma nova polémica vem perturbar a rotina dos

censores. Um artigo publicado no Diário Popular a 24 de Agosto, da autoria do

presidente da Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (CLEM),

recentemente criada22 e possuidora, aliás, de dois representantes na Comissão de

Censura aos Espectáculos, é recebido como um ataque traiçoeiro. Trata-se neste

caso de uma crítica por excessiva brandura da comissão. Escreve o professor João

Serras e Silva no artigo "Não há rede que vede peixe" a propósito do filme Hoje

às 8,3023:

Passa a moeda moeda falsa, o género alterado, o joio no trigo, o artigo

escondido na alfândega, passam os estudantes cábulas, e passam filmes

na tela, filmes que às vezes não deveriam passar. Foi o caso, e caso muito

notado, de passar com autorização para menores de 13 anos, o filme Hoje

às 8 e meia, que muitas pessoas acharam venenoso – coisas um tanto cruas

que aos 15 anos emocionam e põem a sensibilidade em grita, cenas

imorais de indiferença e abandono de família e cenas de roubo, feitas com

galanteria. Como passou esta fita, desde que há uma censura rigorosa

para os espectáculos de menores? Como passou?

Preocupado em defender o prestígio da comissão a que presidia, Serras e

Silva presume as culpas noutro lado:

Sabemos que os membros da comissão para a literatura e espectáculos de

menores não a autorizou nem a viu, não lhes cabendo portanto a

responsabilidade desta maléfica exibição. O caminho foi outro. Mas como

encontrou a empresa esse caminho?

As possibilidades apontadas são várias: desde a magra remuneração do

pessoal ao excesso de trabalho dos censores, passando ainda pelo “pequeno

interesse” do público “nesta fiscalização”, onde há “muita gente que tem em

pequena conta os interesses da moral” – estabelecendo um paralelo com a

fiscalização de alimentos. Por fim, conclui esperando que o governo “suprirá a

falta que deu lugar a este perçalco”.

No dia seguinte, em reunião semanal da comissão24, o censor Eurico Serra

propõe que o filme “seja novamente visto para lhe ser mantida ou alterada a

classificação que lhe foi atribuída”, acrescentando que se

devia oficiar ao presidente da Comissão de Literatura e Espectáculos para

Menores (...) esclarecendo-o sobre as condições normais a que estão

sujeitos os filmes para a sua apreciação pela Comissão de Censura. Mas

que, entretanto, achava conveniente que se aguardasse o regresso do

pela Presidência do Conselho”.

22 Pelo mesmo Decreto-Lei nº 38964 de 27-10-1952 que criara a nova lei de assistência

de menores a espectáculos. 23 Meet me tonight, de Anthony Pelissier, estreado em 30-07-1953 no cinema São Jorge

em Lisboa. 24 Acta nº31 da CCE de 25-8-1953.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

60

presidente da Comissão.

Assim o assunto ficou à espera mais uma semana. Então25 Eurico Serra

esclarece o presidente e vai mais longe dizendo que o referido artigo “se permite

levantar dúvidas sobre a isenção dos vogais da Comissão de Censura que

classificaram o filme e consequentemente desprestigiar a mesma Comissão” –

sendo ele próprio um dos dois vogais que classificara o filme.

O Presidente, “já informado anteriormente de um certo número de factos”,

e em presença de um ofício do Presidente do Conselho, entendia que a este

“deveria ser enviado o processo do filme com o respectivo relatório dos vogais

responsáveis, acompanhado de ofício que ele próprio iria redigir e em que exporia

as normas de trabalho seguidas pela Comissão”.

A resposta de Salazar veio no dia seguinte26, subtil e lapidar:

Não sei se aos exploradores de cinemas convirá mais a suspensão durante

alguns meses da classificação do que a reclassificação para maiores de

dezoito. Não sendo provável que seja mantida a classificação actual,

conciliar-se-iam todos os interesses, modificando-a desde já.

Não deixa o Presidente do Conselho de se mostrar compreensivo da

“benevolência” dos censores, reconhecendo a dificuldade criada pela necessidade

de haver “espectáculos para os jovens dos treze aos dezoito e não haver filmes

próprios para eles”. Contudo remata: “Julgo porém que mais vale não haver

espectáculos do que permitirem-se maus espectáculos” – frase extraordinária que

encerra a própria censura num apertado colete moral e define a posição do regime

perante as artes e a cultura.

Ainda na sessão anterior, o presidente da Comissão lamentara também uma

crítica de cinema no Diário da Manhã27, acto que “não parece estar certo (...) dado

tratar-se de um jornal órgão oficioso do Governo”. O Presidente do Conselho,

porém, é mais moderado na condenação do crítico de cinema, apenas considera

que o lugar de destaque era escusado:

Quando à crítica do Diário da Manhã: fez-se saber ao Jornal que não

deveria ter posto na sua crónica em tão evidente posição a Censura e os

seus critérios, podendo aliás a crítica dos filmes ser apresentada com o

rigor que mereçam. 4-IX-953 - a) Oliveira Salazar

Este episódio mostra-nos, primeiro, como uma crítica à tolerância da

comissão é imediatamente aceite e vem reforçar a severidade dos critérios; e, em

segundo lugar, como a comissão de censura por vezes se podia sentir entre a

espada e a parede, entalada entre dois tipos de críticas perfeitamente contrárias –

umas acusando a sua benevolência, outras a sua severidade.

Por isso, o seu desejo, aos poucos, vai sendo o de passar o mais possível

desapercebida – que não se notem os cortes, que não haja alterações de critérios,

25 Acta nº 32 da CCE de 1-9-1953. 26 Datada de 4-9-1953, constando da Acta nº 33 de 8-9-1953. 27 Não consegui encontrar esta crítica.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

61

que não se mencione sequer a existência da comissão – que porém todos sabiam

existir. O receio dos censores de serem postos em causa tem expressão nas

palavras com que (repetidas vezes) se atribuem a dificuldade da sua “missão

espinhosa”28.

A autoridade que possuem fá-los pensar que devem estar isentos dessa

vulnerabilidade, exercendo o seu poder com grande convicção ideológica e

superioridade paternalista. Porque este é afinal o receio de todas as censuras: o

receio de também ser censurado. Por tal, todas as censuras desejam ser discretas,

sabendo o quanto podem desagradar e o quanto lhes desagrada serem eles

mesmos censurados.

3. A ineficaz censura à imprensa

As críticas à comissão continuaram ao longo dos anos, críticas que

rastreámos sobretudo a partir dos comentários dos censores em acta. Assim,

surgem casos em que – perante as críticas de imprensa – os censores dos

espectáculos acusam uma incompreensível benevolência da comissão de censura

à imprensa.

Em Fevereiro de 1957, o vogal Caetano Beirão declara:

que, em face das muito frequentes críticas que a actuação da Comissão

vem sofrendo nos últimos tempos, por parte da imprensa, lhe parece

necessário que seja tomada posição sobre o assunto, já que, não só julga

natural que a Comissão procure salvaguardar o seu prestígio de Serviço

do Estado, como também reputa indispensável que a sua autoridade não

seja diminuída para que (...) se mantenha (...) aquele respeito que advém

do prestígio de que gozam as decisões desta Comissão29.

Apesar de reconhecer “a impossibilidade manifesta de uma eficiente

vigilância ao acatamento das disposições legais relativa à frequência dos

espectáculos públicos segundo a sua classificação”, admite ainda que

uma crítica, feita com seriedade, às decisões da Comissão, apontando

concretamente os erros e advogando uma decisão que pareça mais justa é

perfeitamente aceitável, salutar, benéfica para uma mais acertada

classificação e para uma sempre desejada uniformidade de critérios –

infelizmente as nossas decisões não podem estar isentas de erro, de tão

humanas que têm de ser.

(...) mas que um constante ataque à Comissão, sem concretização dos seus

objectivos, feito com o patente intuito de a desautorizar, sem afirmações

concretas que vinculem os seus autores, além de processo jornalístico

condenável, é procedimento que não tem conhecimento de que tenha sido

pela Censura à Imprensa autorizado para com outro Serviço do Estado.

28 Por exemplo: “Eduardo Brazão chamou a atenção dos Senhores Vogais para a

delicadeza da missão para que foram escolhidos, e que, dada a incompreensão do

público e a aspereza da crítica, a tornam, por vezes, deveras espinhosa” (Acta nº 1 da

CECE, de 23-7-1957). 29 Acta nº 212 da CCE de 5-2-1957.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

62

O problema não é pois já do foro público, mas configura um problema

institucional, interno aos órgãos do regime, atribuído à:

benevolência que Comissão de Censura à Imprensa tem mostrado ao

autorizar a publicação de toda a espécie de ataques à Comissão de

Censura aos Espectáculos.

Contudo, considera ainda que se trata de mais uma “campanha” da parte

da imprensa, que não pode compreender e que considera

tanto mais insólita quanto é certo que, enquanto a orientação da Comissão

era norteada por instruções mais rígidas, as críticas eram muito raras e

geralmente visavam isolados casos concretos; hoje, que há instruções para

aplicação de critérios mais largos, verifica-se que a crítica recrudesce.30

Três meses passaram e, em Maio de 1957, “uma vez que essas críticas,

longe de cessar, estão tomando carácter habitual e crescendo de intensidade”,

dois vogais referem a necessidade de ser chamada para o assunto a atenção do

Presidente da Comissão31,

visto que: ou esses ataques são justos e para pôr-lhes cobro torna-se

preciso sanear as directivas que orientam a Censura; ou são falsos, e nesse

caso, é inevitável e urgente que a Comissão encare a gravidade dos factos

e assuma uma atitude.

O vogal Eurico Serra solicita em acta32 ao presidente da comissão (ausente

na reunião) o esclarecimento público dessas críticas. Como nas actas não se volta

a falar sobre este assunto, não sabemos... se o terá feito.

4. O problema da televisão

Em 1957, a televisão iniciou as suas emissões hertzianas. E maior

tolerância em relação à censura das peças de teatro e de filmes portugueses foi

recomendada pelo então Ministro da Presidência, Marcelo Caetano33. Pouco

30 “A título exemplificativo citou vários insertos (?) nos jornais "Diário de Lisboa" e

"Diário Ilustrado" e, nomeadamente, um artigo de hoje da secção "Espectáculo" do

"Diário de Lisboa"“.

“Para quando afinal a nova Lei de Teatro? (...) Pior do que isso: assim se explica que,

tendo o Conselho de Teatro aprovado uma peça para uma das companhias subsidiadas,

essa peça das companhias seja sujeita a nova fiscalização de ideias e a reprove”. Diário

de Lisboa, 5-2-1957. 31 Era então presidente da Comissão o novo Secretário Nacional de Informação, Eduardo

Brazão, de 7-2-1956 a 28-1-1958. 32 Acta nº 227 de 21-5-1957. 33 “À Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos. As disposições relativas à

Televisão carecem de ser interpretadas e aplicadas com espírito suficientemente

compreensivo para não impedir o lançamento e a expansão da nova modalidade de

informação e espectáculo. (...) Seria muito desejável que a Comissão procurasse uma

forma de facilitar à Televisão a apresentação dos filmes portugueses, cuja exibição

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

63

tempo depois, em Julho desse ano, uma nova lei34 viria substituir a anterior,

ajustando-se (teoricamente) à realidade e aos protestos havidos desde 1953, e

remodelando de novo a comissão (que mudava a designação para CECE). A nova

lei adequava-se à nova realidade: o surgimento da televisão, onde foi colocado

um censor delegado35.

Contudo, em 1958, começam a surgir novas críticas públicas, precisamente

por disparidade de critérios de classificação entre as peças ao vivo e as peças

televisivas – necessariamente destinadas a “todos”. Desta vez, uma verdadeira

campanha foi montada pelo Diário Ilustrado que durante 14 dias a fio publica

todos os dias, na primeira página, um artigo da série “O cinema e a TV em

Portugal”36. Contundente, advogando soluções e entrevistando numerosos

profissionais do sector, o jornalista Nuno Rocha faz um dossier único e

importante, que aqui resumirei a alguns títulos significativos:

“A novidade que o caso português apresenta é o cinema e a televisão não

estarem em situações idênticas - Espectáculos teatrais e cinematográficos “para

maiores de 17 anos” não têm limite de idade na TV”37. O problema é, pois,

colocado a partir da constatação de critérios de censura divergentes entre o teatro

e o cinema, por um lado, e a televisão, por outro, onde a permissividade parece

maior, quando seria de esperar que fosse menor dado ser um espectáculo para

todos.

Porém, a questão central não é tanto a exibição, mas essencialmente a

distribuição, onde as empresas se sentem prejudicadas: “O problema complica-

se e há que encontrar uma solução que evite uma crise da indústria de

espectáculos sem prejudicar a TV”38; “O espírito de coexistência deve substituir

a competição entre a TV e o cinema”39.

Assim, depois de consultados vários profissionais do cinema e da televisão,

contextualizado o panorama da indústria de espectáculos noutros países, e focado

o problema internacional da diminuição de público provocada pela concorrência

da televisão, a série de artigos sugere que: “A dobragem seria uma porta de

salvação para o cinema português – afirmam-nos algumas personalidades

estava a correr com agrado geral. Uma reclassificação desses filmes talvez seja a única

possível só para efeitos da Televisão, uma vez feitos alguns cortes que num caso ou

outro se mostrem aconselháveis. 13-5-1957, Marcello Caetano” (despacho transcrito

na Acta nº 227 da CCE, de 21-5-1957).

Três semanas depois, Eduardo Brasão “deu conhecimento à Comissão de uma Nota (...)

em que o Senhor Ministro da Presidência, focando a dificuldade existente na elaboração

de programas para a Televisão, chama a atenção dos censores para a necessidade de ser

facilitada quanto possível (...) a censura de peças de teatro que se lhe destinam” (Acta

nº 230 da CCE de 11-06-1957). 34 O Decreto-Lei n.º 41051 de 01-04-1957 altera o regime em vigor sobre a assistência de

menores a espectáculos públicos e revoga o Decreto-Lei n.º 38964. 35 Caetano de Carvalho que, “como delegado desta Comissão junto da que funciona na

Radio Televisão Portuguesa, providencia no sentido da uniformização de critérios”

(Acta s/n da CECE de 29-9-1965). 36 Entre 25 de Fevereiro e 13 de Março de 1958. 37 Diário Ilustrado, 26-02-1958 38 Diário Ilustrado, 25-02-1958 39 Diário Ilustrado, 27-02-1958

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

64

representativas”40. Subiste porém o antigo problema da classificação dos

espectáculos:

Por outro lado, o decreto-lei que cria a classificação dos espectáculos,

aceitável quanto às intenções que o determinaram, vem, inopinadamente,

vibrar um novo golpe na exibição em Portugal. A família, que antigamente

aproveitava o sábado ou o domingo para ir ver cinema com os filhos,

deixou de o fazer. A quem deixar os filhos, se estes não podem entrar na

sala escura? 41

Mas a maior concorrência nem é a da televisão per se (pouca gente ainda

possuía televisor em casa), mas dos cafés que com um aparelho de TV atraem o

público para um espectáculo gratuito e isento de taxas. É desta concorrência que

os exibidores de cinema se queixam:

Enquanto os cafés vêem as suas casas repletas de público, e as receitas

elevadas a 4 ou 5 vezes mais, apenas com um aumento de despesa de cerca

de 2$50 diários, os cinemas, que continuam a suportar pesadíssimos

encargos, estão quase vazios, desanimados e com prejuízos que obrigarão

uns a encerrar e outros a reduzir os seus espectáculos por semana42.

Assim, “os cinemas protestam – não contra a televisão. Pedem (...)

eliminação dos espectáculos públicos nos estabelecimentos de porta aberta”,

sugestão aliás defendida no Congresso da União Europeia dos Exibidores de

Filmes, em Madrid. E defendendo que “o cinema é para as massas, a televisão

para o indivíduo”, pedem a proibição de instalar aparelhos de TV em locais

públicos, além da uniformização de critérios de classificação e ainda “não

permitir a passagem de filmes na TV antes de 5 anos após a sua estreia nos

cinemas”43.

A Comissão, começando a sentir-se incomodada, não podia deixar de

acusar o facto. O vogal Caetano de Carvalho, preocupado com o “prestígio da

Comissão”, expõe a situação:

o jornalista sr. Nuno Rocha tem-se referido no "Diário Ilustrado" à diferença

de critério usado pela Comissão perante o mesmo filme ou a mesma peça

de teatro, conforme se destinam ou não à televisão, citando como prova o

caso da peça "Esta Noite Choveu Prata", aprovada para a Televisão, depois

de efectuados cortes, com a classificação para todos. (...) O mesmo tema

fora igualmente tratado nas colunas de "Novidades". Como é de opinião que

para manter o prestígio da Comissão o público deve ser esclarecido

devidamente, aquele Senhor Vogal inquiriu se não poderia aplicar-se ao

caso o artigo 60º do Regulamento que permite um esclarecimento

público44.

40 Diário Ilustrado, 28-02-1958 41 Ibidem. 42 Diário Ilustrado, 01-03-1958 43 Ibidem. 44 Acta nº 33 da CECE de 4-3-1958.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

65

Em resposta, o então presidente Eurico Serra, recomenda aguardar por uma

decisão superior:

pensa porém que a campanha jornalística em causa se refere

principalmente à assistência de menores à exibição de televisão em cafés,

clubes e outros centros semelhantes, matéria que é estranha às atribuições

da Comissão. Que é certo que se poderia aplicar a disposição do artigo

60º do Regulamento no que se refere às críticas dos critérios de

classificação. Trata-se porém de matéria regulada no despacho

interpretativo de Sua Excelência o Ministro da Presidência, de 13 de Maio

de 1957, despacho comunicado à Comissão para seu conhecimento

apenas, o que portanto exclui o seu uso publicamente. Achava por isso

preferível aguardar quaisquer medidas que sobre os problemas de

televisão e dos espectáculos o Governo, eventualmente, possa tomar.

Eurico Serra mostra-se agora mais prudente do que quando era vogal. Mas

a polémica continua diariamente na imprensa e o presidente não perderá a ocasião

– como já um ano antes desejara – de enviar uma nota para a imprensa. Assim, a

15 de Março, a CECE manda publicar uma resposta no Diário Ilustrado – “Não

há regime especial para a exibição na TV de filmes e peças de teatro – afirma a

Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos” – de cujo conteúdo o

presidente informa os vogais da comissão na reunião semanal seguinte: “...deu

conhecimento à Comissão de que, ao abrigo do artigo 12º do Regulamento,

mandou para a imprensa diária a nota que seguidamente se transcreve”, onde se

justifica que

o despacho interpretativo de Sua Excelência o Ministro da Presidência, de

13 de Maio de 1957, (...) admitiu a possibilidade de classificação dos

filmes a exibir na televisão desde que neles fossem feitos os cortes

considerados necessários para poderem ser vistos por todos;

Que, em cumprimento destas determinações, a classificação de peças e

filmes a exibir na televisão só é alterada, em relação à classificação para

fins de teatro ou de cinema, quando sujeitos a cortes e modificações que

permitem, sem diferenças de critérios, a sua exibição para todos;

Não é portanto exacto, contrariamente ao que tem sido referido, que a

televisão seja autorizada a projectar, sem qualquer limitação, filmes de

fundo ou peças de teatro, classificadas para adultos45.

Todo este episódio, que marcou o debate público durante duas semanas,

mostra um outro aspecto do jogo de gato e rato entre Estado e jornais, entre

censores e censurados: que a classificação etária dos filmes é o pomo da discórdia

– ou o pretexto possível para ela – mas que a existência propriamente da censura

raramente é posta em causa. Se isso acontecia por obra e graça da censura de

imprensa não sabemos, mas é bem provável.

45 Acta nº 35 da CECE de 18-3-1958.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

66

Conclusões

Recapitulemos então algumas das ilações atrás retiradas destes (e outros)

casos exemplares.

As autoridades mostram-se por princípio intolerantes e perfeitamente

determinadas, não querendo ceder ou dar azo a perderem razão. É um facto que

a censura e o governo não gostam de ser confrontados.

Mas, por receio de se desautorizar, a censura sujeita-se afinal à antipatia

geral. Por isso, aos poucos, vai tentando passar o mais possível desapercebida.

Nada incomoda mais a censura do que ser notória. (Por exemplo: numa

outra discussão relatada em acta fala-se dos cortes aplicados a priori pelas

empresas, o que pode desprestigiar a comissão, crendo o público que foi ela que

os aplicou.)

A censura gosta de passar incógnita. Porque afinal o receio de todas as

censuras é o receio de ser censurado.

Assim, preferem resolver divergências através de contactos pessoais

discretos e recatados (como diversos testemunhos confirmam).

Do lado das boas intenções, têm a convicção de que devem proteger o país

e o povo ignorante de saber mais da vida e da arte do que eles.

Consideram-se magnânimos por aceitarem que, apesar de tudo, as críticas

são legítimas, desde que... construtivas46.

Mas mostram-se muito humildes e dispostos a rever critérios sempre que a

emenda seja determinada superiormente (vários casos há).

Assinale-se a saudável discordância interna, com discussão de ideias,

acalorada por vezes, e resolução final por voto (havendo casos em que o

presidente é vencido).

Há ainda a registar os desacertos com a Comissão de Censura à Imprensa

– e com a CLEM – que não sei se foram episódicos ou se revelam outras tensões

de cariz orgânico ou meramente pessoal.

A preocupação cimeira dada ao estatuto e imagem pública da censura, que

estes exemplos mostram, não será exclusiva dos regimes totalitários;

efectivamente, outros estudos parecem indicar que esta preocupação é muito

maior nas sociedades ditas democráticas, onde a censura se exerce sub-

repticiamente.

É notório o papel da imprensa enquanto contra-poder efectivo e meio de

pressão temível, apesar de domesticada e censurada. Desenha-se pois,

subtilmente, um jogo de forças que pode ser significante para o estudo da censura

durante o Estado Novo português.

46 Por exemplo, a propósito de uma crítica n’O Século: “por tratar-se de um artigo que em

lugar de encerrar uma crítica construtiva e justa visa unicamente diminuir o prestígio

desta Comissão, deverá ser dado dela conhecimento superiormente para os fins que

forem julgados mais convenientes” (Acta 239 da CECE, de 7-3-1962).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

67

Bibliografia

António, Lauro (2001), Cinema e Censura em Portugal. Lisboa: Museu

República e Resistência.

Cabrera, Ana (2008), A censura ao teatro no período marcelista, Revista Media

& Jornalismo 12: 27-58.

Cabrera, Ana, ed. (2013), Censura Nunca Mais - A censura ao teatro e ao cinema.

Lisboa: Aletheia.

Carvalho, Arons de (1999), A Censura à Imprensa na Época Marcelista. Lisboa:

Minerva.

Pina, Luís de (1993), Estreias em Portugal 1918-1957. Lisboa: Cinemateca.

Príncipe, César (1999), A Censura de Salazar e Marcelo Caetano. Lisboa:

Caminho.

Vieira, Patrícia (2011), Cinema no Estado Novo – A encenação do regime.

Lisboa: Colibri.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

68

Portugal e os Filmes ‘antiguerra’ em Tempos de Revolta Estudantil

Gerald Bär

[email protected]

Universidade Aberta / Centro de Estudos de Comunicação e Cultura

(CECC)

Resumo - Este ensaio sobre a receção problemática de vários filmes rotulados

‘antiguerra’1 e produções que tematizam a revolta estudantil no final dos anos 60

baseia-se na investigação feita na Torre do Tombo e traz aspetos complementares

ao meu artigo ‘The Subversive and the Sublime: Aspects of the British, German

and Portuguese Critical Reception of ‘Anti-War’Films in the Aftermath of May

’68’, publicado no livro Plots of War. Modern Narratives of Conflict 2012 (org.

Isabel Capeloa Gil e Adriana Martins). Uma versão mais abrangente deste texto

será publicada nas atas do III Encontro da AIM (Associação de Investigadores da

Imagem em Movimento); o excerto aqui apresentado foca aspetos da censura em

Portugal e pretende diferenciar a afirmação de Moreira, acima citada,

relativamente às “produções soporíferas” de Hollywood. De facto, muitas

produções críticas e políticas “provenientes de estúdios ocidentais” nunca foram

vistas pelo público português ou só em versões mutiladas pela censura. A minha

abordagem junta intencionalmente duas temáticas e dois géneros

cinematográficos, porque os filmes sobre a juventude rebelde escolhidos

apresentam em muitos casos também atitudes ‘antiguerra’ direcionadas contra a

geração dos pais que foi considerada responsável pelos conflitos armados.

Palavras-chave - filmes “antiguerra”| censura.

Todos sabemos que a censura dos espectáculos públicos e do cinema em

particular atrofiou esta forma de expressão artística e social e que a

linha política imposta durante 48 anos aos cineastas portugueses teve

como resultado castrar à nascença a indústria do cinema em Portugal,

acto que facilitou a penetração no mercado nacional de filmes

provenientes de estúdios ocidentais, muito particularmente de

Hollywood, fábrica de produções soporíferas que ajudaram Salazar,

director da grande tirania fascista, a despolitizar quase 3 gerações de

portugueses.

(Claude Moreira, Cinema Libertário, Cineclube 3, Abril 1975)

1 Pode-se considerar estes filmes um subgénero ambíguo e controverso de filmes de

guerra (cf. Bär, 2012). Na época em questão várias destas películas não passaram a

censura portuguesa, como por exemplo Assim nascem Heroes (Too late the Hero,

Robert Aldrich, 1970): Justificação em 16 de Outubro de 1970: “O filme, todo ele

passado em ambiente de fortíssimo stress psicologico, tendo a influencia no sentido da

criação dum sentimento de horror à guerra. No momento presente julga-se não oportuna

a sua exibição” (SNI / IGAC, cx. 358, proc. 938/70). Cf. para esta temática o artigo

‘Situação do Filme de Guerra’ de Jorge Vaz Pereira, Boletim 8, abc cine-clube de lisboa,

fevereiro 1959, pp. 1-9.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

69

O estudo analisa publicações em revistas portuguesas e aborda problemas

da estetização cinematográfica da violência, o seu potencial subversivo e

sobretudo a censura. O foco incide sobre produções, como If…, Lindsay

Anderson, 1968, Oh! What a lovely War, Richard Attenborough 1969, Alice’s

Restaurant, Arthur Penn, 1969, M*A*S*H, Robert Altman, 1970, Zabriskie

Point, Michelangelo Antonioni, 1970, The Strawberry Statement, Stuart

Hagmann, 1970 e Catch 22, Mike Nichols, 1970.

Após a implementação da comissão para a censura de teatro e cinema em

Maio de 1945, o cinema em Portugal tinha uma dupla função educacional, como

ilustra o título de um artigo publicado por Luís de Pina em 1963: “Educação pelo

Cinema e para o Cinema”.2 Foi impossível evitar os mecanismos de censura e

autocensura, não só para a produção nacional, mas também para a divulgação

comercial de filmes estrangeiros por parte das distribuidoras. O conflito de

interesses económicos e políticos ficou instalado, causando uma estranha

dinâmica entre as expectativas criadas no público pela imprensa, as tentativas das

distribuidoras de satisfazer estas espectativas e a atuação da censura.

A 27 de Setembro de 1968, Salazar confirmou que as “mentiras e ficções

e os receios de algum modo injustificados acabam por criar estados de espírito

que constituem uma realidade política.” – “Em política, o que parece é.” – “De

um ponto político só existe aquilo que o público sabe que existe.”3 Nos últimos

cinco anos do Estado Novo esta situação não se alterou significativamente, nem

para instituições como o Goethe-Institut de Lisboa – antes pelo contrário. A

censura impediu a apresentação de temas políticos, como o Maio de ’68, filmes

‘antiguerra’ ou a literatura de autores como Bertolt Brecht e Peter Weiss (Meyer-

Clason, 2013). Já em 1968 foi proibida a exibição de filmes mudos alemães

previstos para uma retrospetiva: Lucrezia Borgia (R. Oswald, 1922), Die Weber

(F. Zelnik, 1927) e Alraune (H.Galeen, 1928).

2 Pina, Luís de Andrade de (1963) ‘Educação pelo Cinema e para o Cinema’, RUMO, Dir.

Mário Pacheco (Lisboa: Bertrand, Lda.), Ano VII, 81 (Nov. 1963), pp. 304-311. 3 Meyer-Clason, 2013: 47.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

70

Além da hipersensibilidade política exigida pelo ofício, os censores

tiveram o ‘prazer’ de mandar cortar cenas de nudez, ou de homossexualidade

(como por exemplo em Midnight Cowboy de John Schlesinger, 1969). Este

trabalho intelectualmente e estruturalmente exigente serviu para a afirmação dos

valores do regime totalitário (“A bem da Nação”), contra os interesses

económicos das distribuidoras dos filmes. A apreciação dos processos implicava

uma boa formação geral e o conhecimento de línguas para comparar as legendas

com os textos falados. Os censores podiam optar entre formulações vagas,

defensivas com frases pré-concebidas e análises austeras, diferenciadas, sempre

dependente das suas próprias ambições e convicções políticas.4 Nos seus

comentários e justificações a situação política de Portugal, nomeadamente o

regime ditatorial e a guerra colonial foram tratados com delicadeza. Com o

afastamento de influências estrangeiras nefastas sobre a juventude da pátria,

pretendia-se evitar conflitos inter-generacionais e atitudes pacifistas, ou seja o

contágio das ideias (Sperber, 1996).

Apesar dos trajes, praxes e tunas tradicionais que muitos estudantes portugueses

ainda apreciam no século XXI, as revoltas estudantis de Maio de ‘68 tiveram

algumas repercussões no Estado Novo, como mostram, por exemplo os protestos

de estudantes em Lisboa e ‘os contestas’ de Coimbra em 1969.

Folheto subversivo “Queima das Fitas junho 1969 Coimbra”

4 Cf. o filme premiado com um Oscar A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen,

Donnersmarck, 2006) que mostra aspetos da controle de expressão artística na RDA.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

71

Também as Publicações Dom Quixote5, cuja série “Cadernos de Cinema”

tinha sido lançada em 1968, trouxeram uma nova atitude crítica, sobretudo

quando o nº 7 (Out. de 1969) escolheu Censura e Cinema como título. Embora a

situação em Portugal não tenha sido abertamente debatida, a pequena antologia

no final do volume (org. Carlos Araújo) alerta para um total de 145 filmes

proibidos entre 1964 e 1967: “entre os filmes aprovados, houve 695 que sofreram

cortes de maior ou menor extensão. Refere-se também o facto de 29 dos filmes

proibidos terem sido autorizados em Angola e Moçambique” (Censura e Cinema,

1969: 209).

No seu estudo O Imperialismo e o Fascismo no Cinema (1977) Eduardo

Geada junta um quadro elucidativo sobre as películas proibidas e aprovadas com

cortes entre 1964 e 19736 e explica as várias leis e formas de censura, incluindo

a autocensura das distribuidoras. Estas companhias não importavam filmes que

provavelmente iriam reprovar, ou omitiam diálogos potencialmente controversos.

Por exemplo no caso de The Strawberry Statement não há registo de pedido para

a sua importação ou exibição.

Tendo sido autorizada a revisão de filmes proibidos, solicitada numa

exposição que a União de Grémios dos Espectáculos apresentou em Novembro

de 1968, as distribuidoras elaboraram uma lista de 121 filmes para reapreciação.

Mesmo assim, a maioria dos filmes em questão neste estudo só entraram no

circuito comercial dos cinemas após o 25 de Abril de ‘74 – alguns nunca foram

exibidos nos cinemas portugueses.

Durante os conflitos coloniais o debate sobre violência e guerra no ecrã

tinha de ser confinado a um espaço público restrito. Segundo Geada a partir de

meados dos anos sessenta surgiram críticos em algumas revistas culturais e em

jornais diários, dispostos a lutar “por um cinema esteticamente consequente e

socialmente comprometido” (Geada, 1977: 98).

No artigo “Cinema e violência” (baseado no programa 394 e 396 do

Clube de Cinema de Coimbra), publicado em Janeiro de 1969 pela revista Vértice,

o assunto é abordado através de uma camuflagem filosófica. Menciona

timidamente tendências políticas atuais nas quais deteta “um falso conceito de

revolução permanente”, que é imediatamente posto de lado pelo implícito “certo

‘gauchisme’ de Cohen [sic] Bendit a Régis Debray” (Vértice 304, 1969: 61).

Sendo assim, não surpreende que o filme analisado neste contexto seja

Johnny Guitar de 1954, realizado por Nicholas Ray.

As produções mais recentes e potencialmente polémicas só entraram no

circuito do cinema comercial após a Revolução do 25 de Abril: M*A*S*H em

Setembro de 1974, If … em Novembro de 1974, Catch 22 em Maio de 1975,

Zabriskie Point em Abril de 1978 e The Strawberry Statement em Março de 1984.

5 Cf. Cadernos D. Quixote nº 7: Que Futuro para o Vietname? (Julho de 1968); nº 11: A

Revolução de Maio em França (Novembro de 1968), com artigos traduzidos de Jean-

Paul Sartre, Daniel Cohn-Bendit, Henri Lefebvre, etc. e também nº 18: Black Power

Poder Negro. Várias publicações desta série foram alvo da censura, entre elas, o nº 11. 6 Entre 1964 e 1967 145 filmes (11%) foram proibidos e 693 (53%) foram exibidos com

cortes; entre 1971 e 1973 123 filmes (quase 15%) foram proibidos e 352 (44%) foram

exibidos com cortes (cf. Geada, 1977: 210).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

72

Alguns dos filmes em questão, como How I Won the War (Lester, 1967), Oh!

What a lovely War e Alice’s Restaurant não foram exibidos nos cinemas

portugueses, mas chegaram a ser emitidos na televisão.7

Na Torre do Tombo ficam guardados os processos sobre os filmes

examinados juntos em caixas de cartão; alguns já desapareceram. Abrindo a caixa

com a designação SNI / IGAC, 473 encontramos, por exemplo as atas sobre If …

e Weekend, entre outros. Embora a produção de If … tenha coincidido com as

revoltas estudantis, o tema do filme é a violência implícita na sociedade

civilizada, evidenciada no sistema de ensino das escolas privadas inglesas (public

schools).8 Não é invulgar o processo deste filme incluir o texto censurado das

legendas em português, neste caso já traduzidas em 1969 – um investimento

considerável pela distribuidora. Na sua reabertura e consequente aprovação

imediatamente após o 25 de Abril, recebeu um novo número de registo (412/74).

O veredito oficial sobre If … a 10 de Setembro de 1969, utilizou a

fórmula estandardizada pelo Director dos Serviços de Espectáculos: “não pode

ser exibido em território nacional (Continente e Ilhas Adjacentes), alegando que

naquele momento o filme era “inoportuno, dado o clima que se vive na nossa

universidade”. Mesmo assim, o censor reconhece que a “história tem aspectos

muito positivos” implicando uma crítica válida e a existência de “alguma

hipocrisia” tanto no sistema educativo inglês como no português (SNI / IGAC,

cx. 473, proc. 739/69).

A proibição de Alice’s Restaurant não surpreende, pois a intenção de

Arthur Penn e Arlo Guthrie era a de provocar a pequena burguesia. No dia 9 de

Outubro de 1970 foi considerado um “Filme sobre “hippies”, de crítica às

estruturas básicas da sociedade, como a autoridade, a magistratura, o exército etc.

O ambiente em que vive o grupo apresentado com drogas, sexo, abuso de álcool

etc. e as outras razões apresentadas anteriormente levam-nos a propor a não

autorização da importação” (SNI / IGAC cx. 358, proc. 1010/70).9

Todavia, o sucesso que estes filmes obtiveram em cinemas e festivais no

estrangeiro foi registado e frequentemente comentado, confiando em artigos

franceses, como no caso de Zabriskie Point. Já 1968, a Vertíce (XXVIII, 301-3:

899) tinha anunciado que Zabrisky Point (sic) iria ser um “presente político de

7 Estreias Portuguesas: Week-End, Setembro de 1974, Festival de Cinema da Figueira da

Foz; M*A*S*H: Londres, 17/09/1974, Filmes Castello Lopes; If (Se): Apolo 70,

08/11/1974, Lusomundo; Catch 22 (Artigo 22): Apolo 70, 16/05/1975, Sonoro;

Zabriskie Point (Deserto de Almas): Satélite, 28/04/1978, Filmes Castello Lopes; The

Strawberry Statement (Morangos Amargos): Hollywood 1, 23/03/1984, Filmes

Castello Lopes. Este último filme de 1970 nunca foi apresentado a Comissão de Exame

e Classificação dos Espectáculos na altura. 8 “Entretanto, os conflitos académicos são igualmente vedados, como por exemplo no

caso de The Explosive Generation [1961], de Buzz Kulic: “O conflito entre as

autoridades académicas e os estudantes, que é um dos temas deste filme, impede, nesta

oportunidade e atendendo aos acontecimentos recentes, que se dê um voto favorável à

importação do filme”” (António, 1978: 104). 9 O parecer do segundo censor (16/10/1970) confirmou o veredicto: “Trata-se de uma

crítica dissoluta e destrutiva às estruturas da sociedade actual sob a forma da troça mas

intencional. Concordamos inteiramente com a reprovação” (SNI / IGAC cx. 358, proc.

1010/70).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

73

Antonioni” que “constituirá o seu filme mais comprometido”. Em Abril de 1970,

a revista Celulóide reportou reacções durante a estreia deste filme em Nova

Iorque, citando Philippe Labro, correspondente de um jornal francês:

A propósito, Philippe Labro, correspondente nos Estados Unidos de um

grande jornal francês, escreve: «Antonioni dá-nos com esta pintura, ao

mesmo tempo sublime e pessimista da América, uma obra que completa

os mais recentes filmes «yankees» dos últimos anos. Está tudo ali, quer

dizer os novos temas dum cinema que se tornou adulto e francamente

contemporâneo: um pouco de droga um certo humor, muita violência,

muitíssimo sexo. E a par de tais ingredientes estão patentes o absurdo e

a beleza da época que vivemos, a incompreensão e o contraste entre as

aspirações duma juventude revoltada e dum capitalismo deprimente».

Há quem pretenda ver na reacção da crítica a dureza de um retrato que

não procurou atenuar os traços mais desagradáveis. Mas o público,

finda a projecção fica nos seus lugares, esmagado pela visão deste

mundo estranho e alucinante, e aplaude demoradamente o espectáculo

(Celulóide 148, 1970: 15-16).

Posicionando a obra de Antonioni na tradição de filmes recentes sobre a

América10, esta citação transmite uma impressão positiva do filme. O crítico

português adopta a apreciação, louvando a sua fotografia, realização e edição. Em

Julho de 1970, a revista coimbrense Vértice (318) publicou uma retrospectiva

extensa da obra de Antonioni, referindo comentários do realizador sobre

Zabriskie Point nos quais considera a revolução uma experiência interessante:

De «Zabriskie Point» (1969), o seu recente filme rodado nos E.U.A.

ainda desconhecido entre nós, mas já anunciado, disse Antonioni: «o

filme estará ligado a acontecimentos correntes. Trabalho melhor com um

assunto em estado de contínua mudança, e o mundo inteiro está a

experimentar uma revolução: movimentos extraordinários de grande

vitalidade estão a emergir na América e noutros países» (Vértice 318,

1970: 510).

O seu “compromisso moral e político mais visível” nesta produção foi

demasiado óbvio para uma exibição nos cinemas do Estado Novo.

Zabriskie Point foi considerado “inconveniente no momento actual”.11

No dia 10 de Abril de 1970, o censor responsável Pedroso de Almeida, justificou

a sua sentença com a revolta juvenil nas primeiras partes do filme e com a

destruição da civilização na última parte. Acrescentou que as cenas

“pornographicas” na oitava parte poderiam ser facilmente eliminadas (António,

1978: 255).

Apesar disso, a companhia distribuidora Filmes Castello Lopes, recorreu

ao ofício nº 1045/70 e solicitou uma reexaminação do caso “Destino Zabriskie”

no dia 27 de Abril de 1970, sublinhando o sucesso mundial do filme e a fama do

10 Cf.: Norman Kagan, Greenhorns: Foreign Filmmakers Interpret America, 1982. 11 Comentário da censura: “O tema do filme – a revolta da juventude numa América do

Norte que atingiu um nível industrial que não responde aos seus anseios – leva-nos a

considerá-lo inconveniente no momento actual” (António, 1978: 103).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

74

seu realizador. Sem sucesso propôs a exibição do filme num espaço restrito para

intelectuais interessados na problemática da decadência na América, insinuando

a sua falta de atração “para as grandes massas” (Cf. António, 1978: 256).

Em Outubro de 1970, Evaristo de Vasconcelos, colunista de críticas

cinematográficas da revista Brotéria, divulgou um artigo mais arriscado,

intitulado “Filmes que cá não vimos”. Com ironia comenta o isolamento cultural

de Portugal:

Julho – a – Agosto – ponte larga, deserta. Longa. Nada costuma

acontecer. Nada aconteceu desta vez também. Para não falar de coisas

faladas (em cinema precoce é a velhice) porque não curiosar o que se

passa para além deste Jardim da Europa e talvez nunca venha aqui a

passar-se por não o admitir o nosso – estilo – de – vida que, o mesmo é

dizer, a – suavidade – dos – nossos – costumes? Falar-lhes-emos hoje de

algumas obras recentes de que por aí se fala porque têm de quê, notáveis

sob um ou outro ângulo, algumas mesmo caindo na bilheteira como

pedra em formigueiro: fulminantes, inesperados êxitos comerciais

(Brotéria 10, 1970: 349).

Em nota de rodapé acrescenta: “Algumas apenas. Levar-nos-ia longe

falar de Z, L’Aveu (Costa-Gavras), Tristana (Buñuel), António das Mortes

(Glauber Rocha), Adalen 31, Mash, e tantas outras” (Brotéria 10, 1970: 349).

Posteriormente, Vasconcelos analisa Andrei Roublev (1966) de Tarkowski e

Woodstock (1970) de Wadleigh que também foi reprovado, tal como More (1969)

e La Vallée (1972), ambos de Barbet Schroeder e com banda sonora dos Pink

Floyd.

Em Fevereiro de 1972 também Duarte Vieira do jornal Vida Mundial

lamenta “não termos visto certas obras consideradas importantes”. Mas não

consta nenhum filme de ‘antiguerra’ ou sobre a juventude inquieta entre as obras

que menciona neste contexto. Todavia, Duarte Vieira elabora outra lista de obras

cinematográficas dispensáveis:

Entre os filmes mais inúteis ou falseatórios de 1971, lembramos: “Love

Story”, “Ruptura”, de Claude Chabrol; “Coisas da Vida” e “O

Estranho Caso do Inspector Max”, de Claude Sautet; “A confissão” de

Costa Gravas, e o “O Soldado Azul”, de Ralph Nelson (Vieira, 1972:

54).

Os dois últimos filmes desta lista negra são de teor político explícito, e

especialmente o western O Soldado Azul (Soldier Blue, 1970), cujas cenas de

chacina de índios indefesos foram comparadas noutros países12 com os massacres

de civis no Vietnam, ficou desacreditado.

12 Na RDA que costumava criticar as cenas violentes e de terror das produções de

Hollywood, a violência brutal deste Western foi apreciada como “naturalista”. Uma

citação das palavras do próprio realizador, emprestada da Frankfurter Rundschau

(RFA), serviu como justificação: “If the film shocked you, it was my intention. I tried

to show the true face of war” (Prisma 3: 202-3).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

75

Em Portugal, não só filmes sobre a juventude rebelde foram proibidos,

tal como o clássico Rebel without a Cause (1955) de Nicholas Ray, mas também

comédias ‘antiguerra’. Por exemplo: What Did You Do in the War, Daddy?

(1966) de Blake Edwards e Oh! What a lovely War (1969) de Richard

Attenborough.

No seu estudo fundamental sobre cinema e censura em Portugal, Lauro António

cita vários comentários justificativos de censores que localizam o perigo pelo

regime autocrático nas representações humorísticas e irónicas:

… Oh! What a lovely War, de Richard Attenboroug [sic] é impedido de

ser visto entre nós porque, «apesar de ser apresentado como uma farsa,

é um líbelo cruel contra a guerra». Juntamente com o ódio ao pacifismo

e consequente ao antimilitarismo, procura-se salvaguardar as «virtudes

militares». Em The Hill, de Sidney Lumet, «as situações apresentadas

criam um desrespeito completo pela hierarquia militar e até, em certos

aspectos, ódio ao exército». De King and Country, de Joseph Losey, diz-

se: «Num povo como o nosso, em que há o culto pelas virtudes militares,

este filme seria sempre, (…) de reprovar. Mas na actualidade, mais do

que nunca, dada a guerra que temos que sustentar pela sobrevivência da

Pátria (António, 1978: 99-100).

Segundo o relatório da censura datado 20 de Novembro de 1969 Oh!

What a lovely War foi banido por ser um filme contra a guerra. Uma semana

depois acrescentou-se uma justificação mais explícita:

Reprovamos o filme, pois que apesar de ser apresentado como farsa, é

um libelo cruel contra a guerra. O pacifismo e o derrotismo que dele

resultam à evidência desaconselham a sua apresentação entre nós, pois

que as famílias com soldados em África ficariam terrivelmente

deprimidas com a permanente sugestão (dada ao longo de todo o filme)

de (?) nas frentes de batalha e com a frequente afirmação de que não há

nenhum Ideal que justifique o sacrifício. Não deve, pois, consentir-se a

importação (26-XI-1969) (António, 1978: 248).

Na sua edição de Outubro de 1970 (321: 745), a revista Vértice condenou

M*A*S*H alegando que o Grande Prémio do Festival de Cannes foi atribuído

“ao filme que melhor responde aos critérios artísticos dos banqueiros, dos

especuladores, e dos mercadores da moda”. Esta opinião baseia-se na tradução de

um texto da autoria de Nadine Sail, diretora da revista marroquina Cinema 3.

Segundo Lauro António, os jornais públicos foram impedidos de

mencionar M*A*S*H (António, 1978: 47) pois tinha causado uma polémica

interna. No dia 10 de Fevereiro de 1971, o filme foi autorizado pela Comissão de

Exame e Classificação dos Espectáculos, para adultos, maiores de 17 anos, em

exame prévio, com cortes que visavam sobretudo conteúdos sexuais. Esta decisão

foi comunicada ao gerente da FOX FLMES LDª pelo Chefe da Repartição

(Lisboa), Manuel Henriques da Silva, numa carta datada de 12/02/1971, que

indica os seguintes cortes:

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

76

a) redução da cena entre o Burns e a Major, cerca da leg. 348; [o artigo

foi corrigido manualmente de ‘o’ para ‘a’ uma vez que o filme

subverte ‘gender expectations’: a Major é uma mulher]

b) redução e desaparecimento dos sons da cena que decorre da legenda

374 a 387;

c) redução da cena que decorre entre as leg. 574 a 586.

Já no dia 16 de Março, esta deliberação foi revogada para exibições “em

território metropolitano (Continente e Ilhas Adjacentes) ”, pelo ofício nº 705/71

DSE/EV. A base justificativa para esta interdição foi sem dúvida uma segunda

análise, focando os aspetos subversivos antimilitaristas e ‘antiguerra’ em

M*A*S*H. Com indignação, a distribuidora FOX FILMES LDª alerta numa carta

de 7 de Setembro de 1971 para várias irregularidades no processo da avaliação:

Como justificação havia o estado de guerra em que nos encontramos

envolvidos, tendo-nos até sido afirmado que o filme não tinha sido aceite

no Egipto e em Israel, pela idêntica situação (SNI / IGAC, cx. 473, proc.

102/71).

Outra carta junta ao processo da autoria de J.L. Rubin da companhia

CENTFOX / Paris (22/4/1971) serviu para comprovar que M*A*S*H passou

tanto pela censura israelita, como pela egípcia, e foi exibido nestes países: “As

far as I know, there is no territory in the world where the Picture has been

banned”.

O gerente holandês da Fox Filmes em Lisboa alega ainda que “o filme

foi normalmente exibido em Moçambique e em Luanda encontra-se actualmente

em exibição, já na 5ª semana …”. De facto, a publicidade no jornal Delegação do

‘Notícias’ / Beira tinha anunciada a sua exibição no cinema ‘Scala’ para maiores

de 17 anos (27/02/1971), citando referências favoráveis da imprensa estrangeira,

como o Time Magazine: “MASH – Começa onde outros filmes antiguerra

terminam!” (sublinhado pelo censor).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

77

Também a província de Angola fez publicidade pela película no dia

29/08/1971, com um cartaz explícito na página 3, mencionando a companhia

ANGOLA FILMES, mas não a FOX FILMES LDª:

Perante esta falta de critérios coerentes ou falha de comunicação entre as

diversas comissões de Exame e Classificação de Espectáculos, a distribuidora

solicitou a revisão deste caso. No dia 14 Setembro de 1971, o Director-Geral da

Cultura Popular e Espectáculos expõe esta situação desagradável numa carta ao

Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Ministro do Ultramar:

A Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos, que conta com a

colaboração de um ilustre oficial do Estado-Maior, o coronel Almeida

Nave, entendeu que, nas circunstâncias actuais da vida portuguesa, o

referido filme oferecia grandes inconvenientes não só para os nossos

soldados como para a retaguarda (especialmente em relação às famílias

dos que se encontram a combater). Esta aplicação de critérios diferentes,

que nalguns casos até pode ter justificação, noutros suscita dificuldades

que valeria a pena considerar devidamente (SNI / IGAC, cx. 473, proc.

102/71).

Catch 22 (Artigo 22), outro filme ‘antiguerra’, baseado no best-seller homónimo

de Joseph Heller, foi proibido em 1972. Mike Nichols rodeou esta tragicomédia

algo surreal após o seu grande sucesso com A primeira noite (The Graduate,

1968) que o público português também só pôde ver com cortes. A decisão que

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

78

Catch 22 não podia ser exibida em território nacional (Continente e Ilhas

Adjacentes), foi confirmada no dia 17 de Abril de 1973 – um ano antes da

Revolução:

Trata-se de um bom filme; mas dado o momento extraordinário que o

país atravessa o tema do filme e o seu tratamento não nos parece de modo

algum apropriado visto atacar os fundamentos das virtudes militares (SNI

/ IGAC, cx. 483, proc. 362/72).

Contudo, os Portugueses tiveram que esperar até 1975 para ver Catch 22

e mais três anos para a obra proibida de Antonioni que em 1978 foi exibida sob

o título Deserto de Almas. Nessa altura um outro filme mais atual foi muito

debatido devido às suas pretensões ‘antiguerra’ e da sua banda sonora:

Apocalypse Now (1978) de Francis Ford Coppola.

Nos tempos pós-25 de Abril, a estética de receção mudou radicalmente

em Portugal (Claude Moreira, Cinema Libertário, Cineclube 3, Abril 1975) mas

as questões estéticas levantadas no estrangeiro em finais dos anos 60

permanecem:

Em que medida é que o sublime pode ser subversivo? Filmes sobre a

guerra, violência e destruição que captam e fascinam o espectador podem

ser meios apropriados para influenciar a sua atitude contra a guerra, ou

para desenvolverem uma posição crítica no sentido Brechtiano

(alienação)?

Um irónico comentário musical sobre ações militares com helicópteros

(Suicide is painless em M*A*S*H; A Cavalgada das Valquírias de

Wagner em Apocalypse Now)13 revela o cinismo, ou simplesmente

reforça o fascínio estético pela beleza das imagens de destruição em

câmara lenta (Careful with that axe Eugene de Pink Floyd em Zabriskie

Point)?

Em 1978, o crítico da revista Isto é Cinema considerou ‘Deserto de

Almas’ uma produção ‘brilhantemente executada, com música inteligentemente

utilizada […] Um filme magnífico, duma actualidade assombrosa’ (P.M., 1978:

23).

Todavia, o diretor desta revista, Lauro António, suspeitava que o realizador

tivesse feito um filme cheio de preconceitos, provenientes da cultura europeia, ou

seja italiana:

Zabriski Point é assim, um filme de «tese», demonstrativo, falso. O

equívoco resulta da conjugação de duas culturas, procurando

interpretar uma com dados recolhidos noutra. É o europeu que

compreendeu «Maio de 68», que filma a América dos confrontos

violentos dos anos 60. Mas a verdade é que a violência americana tem

raízes e explicações diferentes da violência europeia dos universitários

da Sorbonne, em 68 (António, 1978b: 26).

13 Cf.: a película Hitler über Deutschland (1932), e a cena com o avião em que Hitler

desce das nuvens até ao Reichsparteitag em Nuremberga ao som de Die Meistersinger

em Triumph des Willens (Riefenstahl, 1935).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

79

Aparentemente, a sua reavaliação em Portugal ainda está em curso, como

um comentário no programa da Cinemateca de Abril de 2010 comprova:

“… a “incursão americana” de Antonioni é um filme infinitamente menos

saudado do que aquele que o antecedeu (Blow Up), mas que merece ser

reconsiderado” (Cinemateca, Programa de Abril, 2010).

Imediatamente após o fim do Estado Novo e da censura José Jorge

Ramalho elogiou If … que foi realizado seis anos antes do 25 de Abril: “If

relembra «Zero em Comportamento» de Jean Vigo e o estilo da dramaturgia épica

brechtiana, sendo uma obra plena de força pela atualidade do tema” (J.J.

Ramalho, Celulóide 202/3, Nov. 1974: 30).

Em termos ideológicos a interpretação do filme por Ramalho, vai mais longe que

as recensões contemporâneas inglesas ou alemãs porque a sua crítica abrange a

sociedade burguesa capitalista e a sua infraestrutura económica:

Anderson põe em causa a crise das instituições, ultrapassadas mas

mantenedoras de uma superestrutura ideológica de ordem metafísica, ou

seja invariante, alimentada pela formação de quadros humanos

sucessivos portadores de uma herança classicista. A sociedade burguesa

capitalista é, deste modo, criticada por não reconhecer o princípio da

mutação dialéctica, viciada como se encontra de preconceitos

originados na base, ou mais propriamente, na infraestrutura económica

do seu stato quo (Ramalho, Celulóide 202/3, Nov. 1974: 30).

Nem If …, nem M*A*S*H conseguiram chegar ao topo da lista dos filmes

considerados os melhores em Portugal durante o ano 1974. Esta lista foi liderada

por obras mais radicais como O Encouraçado Potemkin (1925) de Eisenstein e

Week-End de Godard.14

14 Cineclube, 3, Abril 1975: 9-11. Cf. também: a revista Cinex (nº 2, Jan. de 1975), na

qual tanto MASH como If… receberam classificações medíocres de sete peritos de

cinema. Week-End é considerado agora ‘obra prima’, mas tinha sido proibido em 25 de

Junho de 1970 pela censura: “O filme é, em nosso entender, tendencioso e esquerdista.

Cheio de simbolismos, representa uma crítica á sociedade ocidental, que é preciso

destruir” (SNI / IGAC, cx. 475, proc. 661/70).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

80

Numa altura em que se entoa novamente ‘Grândola, Vila Morena’ em Portugal,

pode-se também relembrar a estética cinematográfica reprimida durante o Estado

Novo. Será desatualizada no contexto da atual crise? Ou eventualmente um ponto

de partida, mesmo sendo um gesto de impotência política?

A receção de filmes ‘antiguerra’ depende de vários contextos (históricos,

sociopolíticos, geopolíticos, demográficos, etc.) durante a sua exibição, mas

também na atitude política individual e no background educacional de cada

espetador. Nas recensões da época em países como a República Federal da

Alemanha e o Reino Unido dominaram os discursos estéticos (estetização de

violência, debate sobre o género, etc.). Na RFA esta receção foi condicionada

pela ‘incapacidade de luto’ da geração implicada na II Guerra Mundial

(Mitscherlich, 1967). Na República Democrática Alemã os filmes rotulados

‘antiguerra’ e os que tematizavam a revolta estudantil foram instrumentalizados

para o discurso ‘anti-imperialista’ e ‘anticapitalista’; o mesmo se aplica a grande

parte da crítica portuguesa pós-25 de Abril. Durante o Estado Novo estes filmes

foram suprimidos ou mutilados pela censura devido à perceção que o seu

potencial subversivo poderia questionar a política salazarista, pôr em causa a

guerra colonial, enfraquecer a moral das tropas e os fundamentos da moral

católica em geral. Este último ponto está relacionado com a substituição do Hays

Code, adotado pelas maiores companhias de Hollywood entre 1930 e 1968, pelo

‘MPAA film rating system’. Enquanto o antigo código moral já tinha filtrado as

produções internamente antes da sua chegada aos ecrãs dos Estados Unidos e do

estrangeiro, este novo sistema de autocensura dos produtores incluía os ‘x-rated

movies’ (proibido a menores de 17 anos). As repercussões desta mudança – uma

qualidade voyeurística e dramatúrgica da violência estetizada - e as suas

consequências - filmes mais violentos, como The Wild Bunch (Peckinpah, 1969)

ou de terror, como Night of the Living Dead (Romero, 1968) - foram também

visados pela censura mais severa em países como Portugal e Espanha.

Bibliografia

António, Lauro (1978), Cinema e Censura em Portugal 1926-1974. Lisboa:

Editora Arcádia.

António, Lauro (1978b), artigo em A Memória do Cinema. Anuário

Cinematográfico. 26-27 (previamente publicado no Diário de Notícias).

António, Lauro (dir.) (1978), Isto é cinema. Lisboa: EDP.

Araújo, Carlos (org.) (1969), Censura e Cinema. Lisboa: Publicações Dom

Quixote.

Bär, Gerald (2012), The Subversive and the Sublime: Aspects of the British,

German and Portuguese Critical Reception of ‘Anti-War’ Films in the Aftermath

of May ’68. Gil, Isabel Capeloa; Martins, Adriana (org.), Plots of War Modern

Narratives of Conflict Berlin, Boston: De Gruyter, 177-210.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

81

Brotéria. Cultura e Informação (7/1969 – 10/1970)

Celulóide. Revista Portuguesa de Cultura Cinematográfica (148/ Abril 1970 -

202/3, Nov. 1974).

Cineclube (3 / Abril 1975).

Geada, Eduardo (1977), O Imperialismo e o Fascismo no Cinema. Lisboa:

Moraes Editores.

Kagan, Norman (1982), Greenhorns: Foreign Filmmakers Interpret America.

Ann Arbor, MI: The Pierian Press.

Meyer-Clason, Curt (2013), Diários Portugueses, trad. João Barrento. Lisboa:

Sistema Solar, Documenta.

Mitscherlich, Alexander; Mitscherlich, Margarete (1969 [1967]), Die

Unfähigkeit zu Trauern. Grundlagen kollektiven Verhaltens. München: R. Piper

& Co. Verlag.

Pereira, Jorge Vaz (1959), Situação do Filme de Guerra, Boletim 8: 1-9.

Pina, Luís de Andrade de (1963), Educação pelo Cinema e para o Cinema, RUMO

VII, 81: 304-311.

Prisma. Kino- und Fernseh-Almanach, (1 / 1969 - 18 / 1987).

Sperber, Dan (1996), Explaining Culture: A Naturalistic Approach. Oxford:

Blackwell.

Vértice. Revista de Cultura e Arte (304 / Jan. 1969; 318 / Jul. 1970; 321 / Out.

1970).

Vieira, Duarte (1972), Hábitos de Crítica, Vida Mundial. O mundo numa semana.

(4/II/72).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

82

A censura aos filmes de Ingmar Bergman durante o marcelismo

Ana Bela dos Ramos da Conceição Morais

[email protected]

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e

Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Resumo - Através do estudo dos processos de censura aos filmes do realizador

sueco Ingmar Bergman, em Portugal, durante os anos de governação de Marcello

Caetano (finais de 1968-1974), pretende-se investigar os critérios da Comissão

de Censura em relação ao modo como eram censurados esses filmes. A

investigação apoia-se no estudo dos arquivos do Secretariado Nacional da

Informação e Turismo. Esta informação está concentrada no espólio que se

encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). O estudo aos

processos dos filmes do realizador sueco, durante o marcelismo, é inédito e pode

ajudar a perceber não só como era estruturada a censura portuguesa, a própria

mentalidade da época, mas também qual era a relação de Portugal com a produção

cinematográfica deste realizador que, ao apostar em melodramas familiares

intensos questiona valores considerados inquestionáveis pelo regime de então.

Palavras-chave - censura | cinema | Ingmar Bergman | Marcello Caetano |

mentalidades.

Começando por contextualizar a acção exercida pela Comissão de Censura

sobre os filmes de Ingmar Bergman, e concordando com António Reis, parece-

me pertinente considerar a existência de dois momentos diferentes no governo

marcelista: um primeiro caracterizado por uma abertura relativa e de expectativas

sobre medidas que conduzissem a uma maior liberalização, num clima político

de adaptação e de adiamento de escolhas estruturais que definissem o futuro do

regime e, por isso, constituído por um equilíbrio de poderes instável entre o chefe

do Governo e o do Estado, que se prolonga até finais de 1970 e um segundo

momento, que vai de 1971 a 25 de Abril de 1974, que seria caracterizado por uma

“progressiva crispação repressiva, radicalização das oposições, e isolamento e

degenerescência das instituições, em consequência do impasse colonial.” (Reis,

1996: 546)

Nos primeiros anos de governação de Marcello Caetano, sensivelmente de

1969 a 1971, ainda se acreditou numa mudança de regime para melhor, no qual

deixasse de existir censura, mas que, pouco tempo depois, veio a revelar-se um

logro. De facto, a Comissão de Censura continuou vigente e a deliberar acerca do

futuro comercial de todo o cinema, nacional e estrangeiro, em Portugal. Os efeitos

da censura institucional, no que diz respeito à cinematografia bergmaniana,

fizeram-se sentir até ao final de 1974. Filmes como Noite de Circo (1953) e A

Hora do Lobo (1968), por exemplo, estrearam depois do 25 de Abril,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

83

respectivamente a 8 de Maio de 1974 e a 18 de Agosto de 1974, mas na versão

censurada e aprovada pela Comissão de Censura, ainda antes da Revolução de

Abril.

Assim, entre finais de 1968 e Abril de 1974, encontrei oito processos de

filmes de Ingmar Bergman. Os filmes são: Paixão (1969), A vergonha (1968), O

amante (1971), Ritual (1969), A máscara (1966), Lágrimas e suspiros (1973), A

hora do lobo (1968) e Noite de circo (1953). Estes últimos aprovados para o

Grupo D (maiores de 18 anos), sem cortes, o primeiro a 7 de Março de 1974 e o

segundo a 14 de Fevereiro de 1974. Os títulos e análises dos processos dos filmes

não aparecem por ordem cronológica, mas sim pela ordem em que foram

encontrados nas caixas, contendo os respectivos processos, e que se encontram

no ANTT.

O relatório de censura de a Paixão (1969) é bastante conciso e claro: o

filme foi classificado “para adultos, maiores de 17 anos, com o corte da cena dos

seios nus, cerca das legendas 577, 578 e 581. O trailer foi aprovado para maiores

de 12 anos.” Assumido como o primeiro filme a cores de Ingmar Bergman, é

digno de nota constactar que os censores cortaram cenas de corpo nu e não

aquelas que induzem uma profunda violência psicológica. Uma característica

comum a toda a cinematografia bergmaniana é a representação, embora com

diferentes intensidades, de um centramento excessivo do Eu em si mesmo,

encapsulado nas suas próprias angústias existenciais.

De facto, o realizador sueco representa em todos os seus filmes, ainda que

por vezes de forma intuitiva ou inconsciente, os problemas de um número

significativo de seres humanos na cultura ocidental e as suas perturbações

narcisistas no período histórico pós Segunda Guerra Mundial. Em parte, Ingmar

Bergman evocou para tal ambientes que tendem a favorecer estados depressivos,

através da utilização de uma estética modernista e de um estilo narrativo

fragmentado em muitos dos seus filmes. No entanto, foi através da escolha de

temas a tratar na sua obra cinematográfica que, de uma forma mais explícita, o

realizador sueco representou a questão psicológica crucial da sua era. Se numa

primeira fase os seus filmes abordavam sobretudo temas existenciais,

interpessoais, religiosos e psicológicos, um importante tema que surgiu

posteriormente foi o desequilíbrio psicológico, incluindo o narcisismo, a

depressão, a psicose e formas menos severas de fragmentação identitária. Por si

só, a psicose é o tema preponderante em filmes como Em busca da verdade

(1961), A máscara (1966), A hora do lobo (1968), A paixão (1969), Face a face

(1976) ou Da vida das marionetas (1980). Este último filme constitui uma crítica

explícita aos psicanalistas. Assim, não admira que os seus filmes causassem

perturbação entre os censores. Se quisermos resumir os temas e obsessões do

cineasta sueco, podemos referir: a solidão do ser humano, a morte de Deus, a

turbulência na célula familiar, a relação conturbada entre o casal, o incesto

camuflado, o amor / ódio ao outro, o desejo sexual reprimido e o mundo das

mulheres – como Ingmar Bergman refere por diversas vezes: “o mundo das

mulheres é o meu universo.”

No caso específico do filme Paixão (1969), é de admirar os escassos cortes,

porque centra o seu enredo em torno da complexidade, muitas vezes negra, da

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

84

alma / personalidade de quatro personagens principais, sendo que duas delas,

embora casadas, se envolvem numa relação adúltera. Com o passar do tempo, o

estilo de Ingmar Bergman tornou-se mais pessoal e austero, dando origem a um

novo conceito de discurso fílmico, tomando como referência o paradigma

musical e o teatro de Strindberg, que alguns críticos denominaram de “cinema de

câmara” ou Kammerspielfilm. Este conceito está relacionado com a mesma

designação atribuída a um subgénero do cinema mudo que surgiu na Alemanha,

durante a República de Weimar, e que teve o seu auge entre 1921 e 1925. Ao

contrário do filme expressionista, este subgénero mantém as características

psicológicas das personagens e situações de uma forma mais realista e naturalista.

Max Reinhardt introduziu o conceito de Kammerspiels como termo genérico para

designar a especificidade de peças de teatro de configuração íntima, do mundo

cultural alemão, como as de Henrik Ibsen ou August Strindberg (Cf. estas

informações em: http://de.wikipedia.org/wiki/Kammerspielfilm). Este subgénero

cinematográfico consiste em realizar filmes nos quais o número das personagens,

o tempo e a acção são reduzidos ao máximo. O uso do grande plano é também

uma característica técnica deste tipo de filmagem. Estas características existem

em todos os filmes do realizador sueco, submetidos à censura nos anos de

Marcello Caetano, e que acabam por definir um método narrativo e situações que

remetem para muitos dos seus filmes anteriores: cenários claustrofóbicos, um

número reduzido de personagens, agressões verbais, ódio e amor reprimidos.

Embora Ingmar Bergman se caracterize como um realizador com um estilo

específico e muito pessoal, podemos constactar que existe também nele uma

vinculação explícita à sintaxe teatral, o que torna íntima a relação entre as suas

pesquisas para o teatro e para os seus filmes. Até Sonata de Outono (1978),

verifica-se a ausência do campo / contracampo, o que realça a sua dimensão

teatral bem como a alternância de grandes planos com planos gerais, sendo mais

rara a utilização de planos médios. Em termos de quantidade, Ingmar Bergman

dedicou ao teatro uma carreira mais prolífica e longa, do que ao cinema. Entre

1938 e 2004, por exemplo, o realizador encenou cerca de cento e sessenta peças

teatrais em quase setenta anos de carreira. Esta parte fundamental da sua carreira

artística é habitualmente desconhecida fora da Suécia, país onde foram encenados

a maioria dos seus espectáculos.

Quanto ao processo de censura ao filme A vergonha, a 24 de Março de

1970 foi “classificado para adultos, maiores de 17 anos” sem cortes. A mesma

classificação foi atribuída a 27 de Fevereiro de 1971 com o acrescento de que o

“trailer foi classificado para adultos, maiores de 17 anos, devendo ser suprimida

uma imagem de seios nus, no seu início.” O comentário do grupo de censores no

relatório de censura, a 19 de Fevereiro de 1971, é o seguinte: “Vimos o filme –

que já se encontra aprovado, desde Março do ano passado, época em que os

critérios não eram inteiramente idênticos aos actuais. Trailer aprovado para

maiores de 17 anos, devendo ser suprimida uma imagem de seios nus, no seu

início.” Este último comentário é bastante revelador porque dá a entender que os

critérios da Comissão de Censura, a partir de um dado momento, se tornaram

mais rigorosos. O carácter algo aleatório e subjectivo da censura vigente torna

difícil compreender porque eram algumas cenas cortadas e outras não, mas

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

85

através das Actas da Comissão de Censura é possível acompanhar a

complexidade desta questão. De facto, nelas é evidente que o problema do que é

ou não censurado e / ou proibido depende muito dos critérios da Comissão. A

alusão explícita a este problema surge, por exemplo, na Acta de 16 de Março de

1971, na qual o secretário, Carlos Baptista Pacheco, refere em certa parte:

Em seguida, o Senhor Presidente [Dr. António Caetano de Carvalho]

manifestou a sua preocupação pelo facto de vir a verificar que, nos últimos

tempos, a Comissão se encontra um tanto dividida, em relação a alguns

problemas ou temas que há necessidade de considerar prioritários na

tabela de valores que à Comissão cabe defender. Assim, salientou desejar

fazer um apelo no sentido de obstar a tal situação. É evidente que nas

decisões tomadas por cada um, pesam sempre factores como a idade, a

formação, a maneira de viver, a formação espiritual, as predilecções, etc.

Há, portanto, uma larga dose de subjectivismo nas decisões tomadas pela

Comissão. Sem embargo disso, fala-se, por outro lado, com bastante

frequência, no critério da Comissão, critério que é abstracto e, portanto,

inexistente. Assim, o que a Comissão tem é que aplicar casuisticamente,

determinadas decisões, as quais, de qualquer modo, é conveniente que

assentem em um critério. E, embora a expressão seja abstracta, há

realmente que fazer um esforço para definir um critério que seja o da

Comissão, que em teoria terá de ser o critério do Governo, uma vez que a

Comissão funciona como seu delegado para uma determinada

responsabilidade. Por isso cada um terá de abstrair-se o mais possível do

seu critério pessoal e aplicar também o mais possível o tal critério da

Comissão. (…) Por si entende que o censor tem sempre que pensar na

repercussão do filme ou da peça de teatro sobre o espectador médio e,

para além disso, tem ainda que pensar na maneira de ser da nossa gente

e há que defender certas pessoas que personificam aqueles valores, tais

como a classe militar, os sacerdotes, a magistratura – todas elas têm de

estar na primeira linha do pensamento da Comissão. (…) (SNI – Actas das

sessões 1968-1971 / DGSE Livro 29)

Uns dias depois, mais precisamente a 20 de Julho de 1971, no seguimento

do Decreto-Lei nº 263/71 de 18 de Junho de 1971 - que aprova um novo regime

de classificação de espectáculos, reformulando os quadros etários vigentes, altera

também a constituição da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos,

passando a subdividir-se em dois grupos de vogais diferentes: um para a avaliação

do cinema e outro para as peças de teatro e estabelece a criação de uma comissão

de recurso, independente da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos,

na qual passem a figurar os representantes da Corporação dos mesmos – na Acta

os membros voltam a questionar os critérios da Comissão, debatendo se o referido

Decreto-Lei implica ou não uma abertura nos critérios de censura aos filmes e

peças de teatro, a conclusão acaba por ser: “O Senhor Dr. José Maria Alves

interveio e esclareceu que não há qualquer decreto que determine a abertura ou o

fecho de critérios: à Comissão é que cabe decidir em tal aspecto, segundo as

directrizes que lhe são transmitidas pelo seu Presidente. (...)” (SNI – Actas das

sessões 1968-1971 / DGSE Livro 29)

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

86

A acta de 19 de Outubro de 1971, na sequência da renovação dos quadros

da Comissão, relata o discurso de boas vindas do presidente, António Caetano de

Carvalho, aos novos vogais e,

Depois de referir a forma como a Comissão tem funcionado até aqui, o

Senhor Presidente, salientou que, acerca de muitos casos, nem sempre os

pontos de vista dos senhores vogais são coincidentes, o que, em sua

opinião, é bom que aconteça, pois que as pessoas são de idades diferentes,

têm vivência diferente e, portanto, é natural que, quer em relação a filmes

quer a peças de teatro, a Comissão por vezes se encontre dividida e, em

alguns casos, terá de caber ao Presidente a ingrata posição de fazer o

ponto da questão e de encontrar a melhor saída para a mesma. Sublinhou

o Senhor Presidente pretender afirmar, com isto, que as intervenções dos

senhores vogais são feitas com a máxima liberdade, tanto mais que o

cinema e o teatro apresentam hoje temáticas que oferecem tantas

dificuldades na interpretação, que esta só por acaso poderá ser

coincidente. Prosseguindo, referiu o Senhor Presidente mais adiante que

o Governo dá instruções a esta Comissão e que, assim, em princípio, o

Governo aponta um determinado critério para apreciação das obras e sua

classificação. Assim resulta que, embora por vezes se possa não concordar

pessoalmente com determinada directriz superior, a verdade é que haverá

que, na medida do possível, apreender esse critério e, também o mais

possível, aplicá-lo. Reconheceu que falar em critérios é questão muito

vaga, porquanto o acerto dos mesmos é muito mais alcançado e

conseguido nestas sessões plenárias na apreciação directa dos problemas

que vão surgindo. E, em caso de dúvida, incumbe ao Presidente da

Comissão levar o problema ao conhecimento do Governo e receber deste

as convenientes instruções sobre a matéria, com vista a encontrar-se a

melhor solução.(…) Acrescentou o Senhor Presidente ser seu pensamento

o de que, para o bom e correcto exercício desta função de censor, ajudam

muito o conhecimento do que dia a dia se vai passando à nossa volta –

pois, até, de vez em quando, os próprios jornais de actualidades têm

implicações que, de outra forma, podem passar despercebidas – e,

também, o facto de gostar um pouco de ir ao teatro e ao cinema. Estes

pormenores e a consulta de uma ou outra revista da especialidade são,

sem dúvida, factores de muita importância para a missão do censor,

missão que não pode ser a de um fiscal implacável a cortar a torto e a

direito, mas a de uma pessoa com formação e preparação que lhe permita

ver os problemas com amor e sentindo pena que tenha de cortar alguma

coisa. (…) (SNI – Actas das sessões 1968-1971 / DGSE Livro 29)

Logo no início de 1972, mais precisamente a 11 de Janeiro, a respectiva

Acta revela o mesmo tipo de problemas e na reunião da Comissão de Recursos,

de dia 4 de Março de 1974, continuou patente a dificuldade nos critérios de

censura aos filmes e, já numa data muito próxima da revolução de Abril, na Acta

de 19 de Março de 1974, é referido que António Caetano de Carvalho foi naquela

data empossado no cargo de Subsecretário de Estado da Informação e assim,

nesta sessão se despede das suas funções de Presidente da Comissão. O ex-

presidente referiu, entre outros aspectos:

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

87

(…) não há qualquer razão para alterar os critérios que vêm sendo

aplicados pela Comissão. Assim, até instruções em contrário, deve a

Comissão continuar a praticar esses mesmos critérios. (...) Recordou, a

propósito, o acto em que, em mil novecentos e cinquenta e sete, a

primeira Comissão de Exame foi empossada pelo então Ministro da

Presidência, Sua Excelência o Professor Marcello Caetano, que proferiu

um significativo discurso em que testemunhou publicamente a

importância que o Governo atribuía à Comissão e às funções a esta

incumbidas. (...) (SNI – Actas das sessões 1972-1974 / DGSE Livro 30)

Podemos, assim, constactar como, até ao fim, do governo de Marcello

Caetano, os critérios de censura aos filmes, e espectáculos em geral, foram

sempre marcados pela subjectividade. A prova desta afirmação está também no

processo do filme seguinte: O amante. A 5 de Maio de 1972, o filme foi

classificado “do Grupo D [maiores de 18 anos], com supressão dos ruídos que

precedem a legenda 449. O trailer foi aprovado para o Grupo D.” No entanto é

interessante observar o relatório do processo do filme; a 12 de Abril de 1972 o

primeiro grupo de censores refere:

Trata-se de um filme de tema e conteúdo muito de acordo com as

motivações habituais de Ingmar Bergman, exploradas em vários

sentidos, apontando caminhos e sugerindo pistas. Cada personagem é

um mundo. Cada um tem as suas razões desencantadas, mas nítidas.

Proponho a sua aprovação para o Grupo D, com o seguinte corte:

supressão dos ruídos que precedem a legenda nº 449.

A 12/4/1972, um segundo grupo comenta: “Trata-se na verdade de um

bom filme para o qual, em princípio, não encontro motivos para ditar uma

reprovação. No entanto, como me parece tratar um tema difícil, gostaria que outro

grupo se pronunciasse. Em tempo: não concordamos com o título apresentado.”

De facto, o título do filme foi alterado de O outro para O amante, não especifica

quando – repare-se na subtileza da alteração. A 24/4/1972, um outro grupo refere:

As reservas postas pelos Ex.mos colegas que subscrevem os pareceres

anteriores justificam-se em face da delicadeza do tema tratado no filme e

através do qual um Ingmar Bergman de novo estilo desenvolve um caso de

adultério. No entanto, atendendo a que que estamos perante um assunto já

focado em inúmeras películas exibidas perante as nossas plateias e a que,

embora admitindo o tom mais ou menos realista de uma ou outra situação,

quer as imagens, quer os diálogos não excedem a bitola normalmente

admitida para filmes deste género, entendemos ser de o aprovar para o

grupo D, sem cortes. Trailer classificado para o mesmo grupo.

Se atentarmos na lista de legendas do filme podemos comprovar como era

extremamente subjectiva a avaliação dos filmes por parte dos censores, neste caso

específico o censor sublinhou a caneta azul certas legendas que considerou mais

problemáticas, como por exemplo: “78 – Não tens a tua mulher nua? 79 –

Vejamos a Karin nua. 80 – Lamento desapontar-te David, mas tens de contentar-

te com as orquídeas.” Neste último caso até envolveu as legendas entre parêntesis,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

88

tal como: “108 – Tomaste a pílula? 109 – Hoje não é preciso.” São inúmeros os

casos semelhantes a estes. Em alguns outros, para além de sublinhar coloca

pequenos comentários em frente da legenda, também a caneta azul: “239 – Não

posso demorar-me.’ Cena (ataque!!!)’” ou ainda mais irónicos: “249 – Estás

preocupada com alguma coisa? 250 – Nesta época estou sempre assim.’ My

period is changing!...” Sublinhado do censor. Em frente à legenda 358 comenta:

“Em frente do espelho despe a mulher! Princípio de cena de cama!” Em frente da

legenda 450: “Entrada do marido com a mulher lá!”

O processo do filme seguinte, O ritual, também revela sobretudo

preocupações de ordem moral. A história desenvolve-se em torno de um pequeno

grupo de actores que é julgado por acções consideradas impróprias. A 25 de Abril

de 1973, o filme foi classificado “para o Grupo D, com os seguintes cortes: a)

redução profunda da cena de amor, que se segue à legenda 122, e as imagens do

protagonista deitado ao fundo das costas da rapariga, cerca da legenda 136 e das

imagens do espelho e das mãos do protagonista na rapariga, cerca da legenda 163;

b) não deverão ser gravadas as legendas 334 a 336 (3ª cena, 3ª parte) [334 – Ao

fim da tarde, entrou-lhe na loja um homem de barbas. 335 – Deus em pessoa. 336

– Cortou-lhe também um pedaço e comeu-o.]; c) idem, as legendas 817 a 828,

inclusive (7ª parte) [diálogo sobre como conquistar uma determinada mulher:

‘817 – Não sou capaz de a satisfazer. 818 – tu foste, como fizeste? 819 – A ternura

de atitudes com ela não dá nada. 820 – É tudo uma questão de carícias especiais.

821 e 822 – Sup. 823 – Como descobriste isso? 824 – Quando já desesperava.

825 – Mas não lhe dês a entender que falámos nisto. 826 – Nem procedas como

te disse imediatamente. 827 – Finge antes que vais descobrindo a pouco e

pouco.’]

Um dos grupos de censores escreve no relatório, a 11 de Abril de 1973:

Como todas as produções de Ingmar Bergman, trata-se de um filme de

difícil leitura e, como tal, susceptível de conduzir a interpretações menos

adequadas. A intriga, conduzida através de um diálogo que peca, em

certos momentos, pelo seu excessivo realismo, desenvolve-se em

sequências quase completamente desprovidas de acção, constituindo um

frisante exemplo de teatro filmado, em que é de destacar, principalmente,

a análise psicológica de certos aspectos mórbidos dos seus estranhos

personagens. Daí, talvez, o contraste ou até o inesperado de alguns

comportamentos, de que a moral anda, também, por vezes, arredia. Não

obstante, porém, muitos dos seus aspectos negativos, parece-nos,

atendendo a que, como se afirmou, se trata de uma película de difícil

leitura, cuja história se desenrola através de um diálogo de conteúdo

bastante complexo e dificilmente apreensível pelo grande público, que o

filme deverá merecer a aprovação para o grupo D, desde que sujeito a

alguns cortes (…)

Este comentário é revelador no que respeita à opinião da Comissão de

Censura sobre os espectadores portugueses: a maioria era considerada inculta o

que, neste caso, permitia que muitos filmes de Ingmar Bergman fossem

aprovados com cortes e não proibidos, por serem considerados demasiado

complexos e ininteligíveis para o público pouco instruído. Por isso, também,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

89

muitos filmes eram censurados de uma maneira, quando passados na província,

e de maneira diferente quando exibidos nas grandes cidades, como Lisboa e

Porto.

As mesmas observações são tecidas a respeito de A máscara. O primeiro

grupo de censores, no relatório, a 16 de Julho de 1973, considera o filme

excepcional mas “cuja total compreensão julgamos ser apenas acessível a plateias

cultas” e por isso “parece-nos ser o filme de reprovar pelo realismo dos

monólogos, das situações e das imagens mais chocantes o daqueles do que o

destas.” A 1 de Agosto de 1973, outro grupo de censores comenta:

Mais um filme que nos mostra Ingmar Bergman preocupado com os

problemas do espírito, com a observação da natureza humana. Através

da análise do comportamento de duas mulheres – uma actriz que, por

razões não rigorosamente esclarecidas, perdeu, não a possibilidade de

mas o gosto ou o desejo de falar e uma enfermeira destacada para cuidar

dela – o realizador aborda, em termos que nos parecem pouco acessíveis

ao grande público, um caso de desdobramento de personalidade. A

intriga é conduzida através de um ‘diálogo’ de densa complexidade e de

imagens em que as situações que poderiam assumir um carácter mais

melindroso são apresentados com bastante delicadeza e muita

moderação e dignidade. Nesta linha, o aspecto de eventuais relações

homossexuais é aflorado em termos que, de forma alguma, poderão

chocar o espectador, tanto mais que, sobrepondo-se a ele e surgindo

como elemento fundamental do filme, ressalta a análise das

metamorfoses que se vão operando na personalidade de uma das

personagens. Assim, entendemos ser de aprovar o filme para o Grupo D,

com a supressão das legendas (…)

Acabou por ser esta decisão final: A 9 de Agosto de 1973, o filme foi

classificado “no Grupo D, com supressão das legendas 244–P [Magoou-me

tanto!], 245-E [Foi uma sensação tão agradável como da 1ª vez.], 250-A, 250-B

e 250-C [250A- Fiquei grávida. 250B- O Karl-Henrik, que estuda medicina,

levou-me a um amigo. 250C- Não queríamos filhos por enquanto.].”

Ingmar Bergman foi sem dúvida um dos realizadores que mais salientou

a relação fulcral que une o grande plano, o rosto e o cinema: “Notre travaille

commence avec la visage humaine (...). La possibilité de nos approcher de la

visage humaine c’est l’ originalité prémière et la qualité distintif du cinèma.”

(Bergman, 1959: 37).

Os rostos em Ingmar Bergman são filmados como máscaras. Uma das

características da máscara é a sua capacidade para se modificar – um dos

pesadelos de Johan, o protagonista de A hora do lobo, consiste na imagem de uma

velha cujo rosto vai atrás quando levanta o chapéu. Este tema encontra-se

aprofundado no seu filme A máscara, mas percorre todos os outros. O argumento

deste último filme centra-se na história de uma jovem enfermeira, Alma, que tem

como tarefa cuidar de Elisabeth Vogler: uma actriz que se recusa a falar. À

medida que o tempo passa, Alma fala constantemente com Elisabeth, revelando

os seus segredos, nunca obtendo uma resposta. No entanto, começa a aperceber-

se de que a sua própria personalidade começa a ser fundida com a de Elisabeth.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

90

Persona significa máscara que, por sua vez, se pode traduzir em rosto. Máscara

ou rosto é a mesma pele que tudo revela e tudo esconde em simultâneo, consiste

na mesma composição artificiosa da ilusão artística, da tragicomédia social. Neste

sentido, a actriz Elisabeth, extremamente maquilhada, de A máscara, é atingida

por uma extrema emoção a meio de uma cena, deixa de viver e de representar,

renunciando à sua máscara. Os censores parecem intuir esta como uma das

mensagens mais “perigosas” do filme.

Já os estóicos afirmavam que o mundo é como um teatro onde cada um

desempenha um papel que não escolheu; posteriormente este torna-se um

leitmotiv shakespeareano e barroco. O mundo bergmaniano parece encenado

como um teatro. Em O silêncio (1963), Ester grita em certa passagem do filme:

“Não quero aceitar o meu papel.” Todas as personagens parecem revelar que a

personalidade, que se crê ser o aspecto mais íntimo de cada um, não é mais do

que persona, a máscara que era usada pelos actores na Roma da Antiguidade

Clássica. Ou seja, a personalidade não é mais do que uma aparência,

simultaneamente fruto do acaso, da vida em sociedade e dos conflitos necessários

à sobrevivência de cada um. Como nada mais existe do que uma máscara, o Outro

não consegue mediatizar as carências do Eu, transformando-as em desejo. Em

Sonata de Outono (1978), mãe e filha conversam uma com a outra e Ingmar

Bergman filma muito de perto os dois rostos, as duas máscaras justapostas. A

proximidade espacial entre as duas figuras nada mais faz do que tornar ainda mais

cruel o seu isolamento. Esta é também a explicação de Ingmar Bergman para a

intensidade dos seus longos planos fixos, sobretudo sobre o rosto das actrizes. O

realizador sueco explica:

Plus une scène est violente, crue, terrible, brutale, inconvenante, et plus

il est indiqué de faire de la caméra un agent de communication objectif.

Si la caméra bouge et commence à se balader un peut partout, on perd

beaucoup de l’effet […] et en gardant la caméra immobile, l’effet est

beaucoup plus brutal, beaucoup plus drastique et beaucoup plus vrai.

(Bergman In Ciment e Tobin, 2002: 35)

O processo do filme seguinte, Lágrimas e suspiros, é interessante a vários

níveis. O filme foi proibido em 1973 – não especifica o dia a não ser no relatório:

7 de Setembro de 1973. Porém, a 19 de Outubro de 1973 a Comissão de Recursos

deliberou aprová-lo para o Grupo D, com os seguintes cortes, a precisar

na moviola: a) imagens da cena na cama entre a legenda 137 e 147; b)

nus (da Karin) entre as legendas 219 e 220; c) cena do corte do sexo com

o fragmento do copo, no fim da 7ª parte; d) redução da cena em que Agnes

tenta abraçar Maria e cai da cama, cerca da legenda 350; e) a imagem da

criada com Agnes morta na cama, cerca da legenda 350; f) substituir a

palavra ‘íntimas’ pela palavra ‘amigas’, nas legendas 376 e 380.

A 5 de Dezembro de 1973 é confirmada a classificação do filme para o

Grupo D e o trailer é aprovado para o Grupo C – maiores de 14 anos. No relatório

de censura, um dos censores comenta, a 4 de Outubro de 1973: “Verifiquei os

cortes. Do modo como estão feitos, aceitam-se só para sessão especial em

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

91

cinema-estúdio. A Comissão de Recursos fará a verificação definitiva de cortes,

se possível, em próxima sessão.” Esta sugestão de deixar que o filme seja exibido

apenas em salas de cinema especiais está relacionada com a tal ideia de que só o

público considerado culto poderá compreender os filmes do realizador sueco.

Este argumento serviu também para justificar que certas passagens de filmes de

Ingmar Bergman não fossem sequer legendadas, o que significava que só quem

compreendesse sueco – apenas alguns turistas ou pessoal da Embaixada Sueca -

poderia entender essas cenas. O processo de Lágrimas e suspiros mostra também

como as legendas eram manipuladas, substituindo determinadas palavras por

outras que podem alterar ou suavizar a mensagem que o filme pretende passar.

Neste caso, a substituição de “íntimas” por “amigas” retira uma carga

potencialmente homossexual à cena em questão.

A legendagem foi também motivo de debate nas Actas da Comissão de

Censura. Por exemplo, na Acta do dia 3 de Julho de 1973, pode ler-se:

o Senhor Presidente chamou a atenção da Comissão para o facto de que,

nos termos da Base Cinquenta da Lei número sete, de mil novecentos e

setenta e um, agora regulamentada, a legendagem e locução dos filmes

publicitários é obrigatoriamente feita em português, embora se admita

um ou outro termo em língua estrangeira em casos devidamente

justificados. A propósito, foi apresentada pela Ex.ma Senhora Drª D.

Júlia Maury a questão dos frequentes erros ortográficos gravados nas

legendas, o que prejudica a função cultural do cinema. Esclarecendo,

salientou o Senhor Presidente que aos senhores vogais assiste o direito

de, em tais casos, chamarem a atenção da Direcção de Serviços, através

de menção no próprio despacho, a fim de que os serviços possam actuar

junto dos interessados, recomendando-lhes a correcção dos erros e

prevenindo-os, inclusivamente, de que a repetição de erros desta

natureza poderá ditar a reprovação do filme. (...) (SNI – Actas das

sessões 1972-1974 / DGSE Livro 30)

Já a 8 de Janeiro de 1974, a mesma vogal chama de novo a atenção da

Comissão para o mesmo, e outros problemas, relacionados com a legendagem:

Em seguida, a Exma. Senhora Drª D. Júlia Maury referiu-se à falta de

qualidade da tradução das legendas de determinados filmes, quer no que

respeita à falta de coincidência com o diálogo, quer no tocante à

deficiência do português, pormenores sobre que entende deverem os

vogais tomar posição quando do exame, sugestão que mereceu a

concordância da Comissão. (…) (SNI – Actas das sessões 1972-1974 /

DGSE Livro 30)

De volta ao processo de Lágrimas e suspiros e ainda no relatório de

censura, antes, a 7 de Setembro de 1973, um grupo de censores constituído por

C. Carvalho, J.M. Alves e A. Cortês, entendem que é um filme excepcional, de

Ingmar Bergman, mas infelizmente a natureza do tema, uma análise de psicologia

e o doentio comportamento das três irmãs, com suas frustrações sexuais e

mórbidas relações com a criada, ultrapassa os limites do critério da Comissão,

pelo que reprovam. Não encaram a hipótese de cortes, pelo respeito que lhes

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

92

merece o filme e até porque seriam vários e afectariam a sua compreensão.

Porém, a 2 de Outubro de 1973 foi interposto recurso pela Distribuidora; na

mesma data foi apreciado e a Comissão decidiu conceder provimento ao recurso,

aprovando o filme e classificando-o no Grupo D (maiores de 18 anos) com alguns

cortes.

As distribuidoras nacionais, que negociavam as versões dos filmes a ser

compradas e que corrigiam as legendas a ser introduzidas neles, tinham um

objectivo comercial. Antes do 25 de Abril de 1974, o seu principal objectivo foi

o de tornar possível a estreia comercial dos filmes, e, depois dessa data,

continuaram a pretender chegar a uma faixa etária de público o mais lata possível.

Esta forma de intervenção resultou sempre em versões ligeiras, menos profundas

de Ingmar Bergman. No que respeita a este recurso, o administrador da

Distribuidora, que neste caso é a Filmes Lusomundo, é sensível ao universo do

realizador sueco, no qual as personagens parecem confinadas a uma prisão no seu

mundo interior, da qual parecem ter dificuldades em sair. Precisamente sobre

Lágrimas e suspiros, Ingmar Bergman explica o vermelho do cenário referindo

que quando era criança imaginava “the inside of the soul to be like a damp

membrane in shades of red.” (Bergman In Bergom-Larsson, 1978: 8) De facto,

sente-se que as suas personagens se encontram presas neste útero vermelho

emocional. No recurso, entre outras passagens, o administrador da Distribuidora

refere:

Neste filme, em que uma jovem se extingue dolorosamente, não é a doente

quem sofre mais, mas as suas irmãs, uma agarrada ao ódio, outra à

consciência da sua própria frivolidade, ao passo que a criada, que em

tempos perdeu uma filha nova, transporta para a agonizante um amor

maternal intoleravelmente sufocado. Ao assistirmos às relações da criada

com a jovem agonizante e sobretudo ao assombroso plano final em que ela

a embala ao colo, lembramo-nos dos versos de Fernando Pessoa quando

dizia que ‘todas as mães trazem ao colo um filho morto.’ É esse amor

maternal, sem nada de equívoco, que a criada transporta para a ama,

amor que se [distingue] do amor mundano e torturado das irmãs por ser

dádiva integral, humilde e generosa. De resto, a escolha da própria actriz,

na qual Bergman pôs como se sabe, um cuidado extremo, é revelador: o

tipo físico, opulento facilita a identificação com a figura mítica da Mãe,

cujo amor desinteressado faz dela, no final do filme, quando os outros

personagens saem de cena, o grande personagem de Lágrimas e Suspiros.

Estas pequenas notas sobre um tão grande filme não têm outro sentido que

não seja o de chamar a atenção para a verdadeira problemática de

Lágrimas e Suspiros e para a importância cultural desta obra, tão

afastada dos habituais trilhos demagógicos do cinema (não é por acaso

que Ingmar Bergman é tão atacado em Portugal como um realizador

reaccionário). Seria, para nós, uma profunda injustiça a não autorização

deste filme, exactamente pela seriedade dos seus propósitos e pela

independência artística (e política) do seu autor, tanto mais que o público

de fiéis deste género de obras é ainda (infelizmente) diminuto no nosso

País. (…)

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

93

Por fim, o processo de A hora do lobo exemplifica bem as preocupações

dos distribuidores. O filme foi aprovado a 7 de Março de 1974. Embora a cena

na 11ª parte, localizada entre as legendas 561 e 564 tenha sido levada ao Plenário

da Comissão, foi aprovada sem cortes a 5 de Fevereiro de 1974. A cena é aquela

em que Verónica nua se ri de Johan mascarado de palhaço e ele refere: “561 -

Atingi o limite finalmente e por isso lhes estou grato. 562 – O espelho partiu-se,

mas… 563 - … que reflectem os estilhaços? 564 – São capazes de me dizer o

quê?” É curioso constactar como agora, já muito perto da revolução de Abril,

certas cenas que teriam sido censuradas são agora permitidas para exibição.

Apesar da resistência, o regime foi forçado a adaptar-se às mudanças de

mentalidade que se iam verificando na Europa e no mundo, um pouco por toda a

parte.

O ciúme e a humilhação são dois temas estruturais na obra de Ingmar

Bergman, e em A hora do lobo o realizador consegue definir de uma maneira

sublime o que é o ciúme. O argumento centra-se na história do protagonista,

Johan, que vive isolado numa ilha com a mulher, Alma. À medida que o filme

vai decorrendo a loucura vai tomando conta de Johan, tornando-se cada vez mais

difícil distinguir entre o que é realidade e o que é ficção. Quando vai ao encontro

de Veronica, a mulher amada que mitificou, Johan encontra o barão Von Merkens

– representado por Erland Josephson o mais recente alter-ego do realizador sueco,

depois de Max Von Sydow que neste filme é o protagonista. Este barão, dono do

castelo, é mais um dos seus demónios, e antes do encontro de Johan confessa-lhe

que Veronica tinha sido sua amante antes de conhecer Johan e que por isso sente

ciúme. Nesse momento, o barão afasta-se para o interior de uma sala vazia e sobe

por uma parede até chegar ao tecto de onde fica pendurado de cabeça para baixo.

O ciúme distorce todas as perspectivas do real e por isso esta cena torna-se na sua

metáfora perfeita.

Aparentemente, longe de demonstrar sensibilidade perante este tema

profundo e outras induzidas reflexões, José Peso, da distribuidora do filme,

Doperfilme, ao remeter o pedido de censura prévia refere:

O filme já importado é no entanto apresentado em prévia para evitarmos

cortes de legendas que possam existir. Referentemente ao corte de cenas,

aproveitamos para chamar a atenção da Ex.ma Comissão de Censura para

as existentes entre as legendas 131 A e 132B que consta duma cena de

seios quase nus, muito importante para se perceber o filme (a cena mostra-

nos um sinal que existe no seio). Também entre as legendas 561 a 564

existe uma cena de nu, que se for retirada ficará o filme sem final

compreensível. Filme bastante difícil, como a Exmª Comissão irá verificar,

pelo resumo do argumento e o visionamento do filme. (…)

Sem dúvida que os filmes de Ingmar Bergman são complexos e “difíceis”

de compreender e aprovar pela censura. Talvez a maior dificuldade em enfrentá-

los esteja numa das características específicas que os percorre: a violência externa

que acaba, muitas vezes, por traduzir a violência interna das personagens; ora à

Comissão de Censura não era agradável nem uma nem outra. Em alguns filmes

de Ingmar Bergman, parece verificar-se um paralelo entre a violência interna e a

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

94

externa. O mundo exterior é entendido como uma ameaça: “at least as terrible in

its way as the inner world of desire and its frustration, the more disturbing for

remaining undefined: one has an impression of mystrious and terrible forces quite

beyond the individual’s control.” (Bergom-Larsson, 1978: 77) O mundo exterior

constitui um reflexo do mundo interior das personagens. Tal sucede

explicitamente em Saraband (2003), o seu último filme, quando, no final, surgem

imagens repentinas do corpo ensanguentado de Henrik, após a sua tentativa de

suicídio: o seu estado de espírito interior traduziu-se numa acção violenta

exterior. A própria força da natureza, com os seus vales profundos e solitários e

a melancolia do Outono, traduz o estado de espírito das personagens em

Saraband.

Mas esta situação ocorre também em filmes anteriores. Em A máscara

(1966), por exemplo, uma das protagonistas, Elisabet Vogler, isola-se do mundo

através da imersão no seu silêncio por forma a evitar representar os papéis sociais

que lhe foram impostos pelo mundo exterior. Porém, no interior do seu silêncio

ela é confrontada, ainda mais brutalmente, com a sua própria violência, que acaba

por revelar-se na sua relação com Alma. Quando tenta encarcerar a violência

exterior, a interior explode. O menino aterrorizado e o monge a ser devorado pelas

chamas parecem constituir o lado exterior correspondente ao lado interior da

figura feminina, desdobrada em Elisabet e Alma, que recusa aceitar o filho que

estava no seu útero, incarnando a violência espiritual correspondente à

incapacidade de dar amor e vida. Também em A paixão (1969) e em Cenas da

vida conjugal (1973) o aborto é entendido como uma espécie de metáfora da

esterilidade interior.

Em O silêncio (1964) a ameaça abstracta da guerra é o correlato exterior

dos comportamentos destrutivos das irmãs Ester e Anna, enquanto A vergonha

(1968) descreve, através de um desenvolvimento simultâneo, o modo como a

violência interior e exterior estão interligadas: a guerra e a revolta interior. A

criança que aparece morta no exterior da quinta em chamas é a imagem usada por

Ingmar Bergman para transmitir a ideia da falta de sentido da violência que afecta

de igual modo todos os seres humanos. Neste filme parece óbvio que o realizador

sueco tentou transmitir a sua versão sobre a guerra do Vietnam, transposta para a

vida quotidiana na Suécia: não existe justificação para a guerra; a violência é

injusta em si mesma. Em A paixão, uma violência exterior incompreensível e

avassaladora - imagens da guerra do Vietnam, a matança e tortura de animais e

seres humanos – aparece constantemente inter-relacionada com a violência

interior dos protagonistas. A exigência moral de “verdade” total por parte de

Anna Fromm e o seu fanatismo correspondem a uma incarnação da própria guerra

do Vietnam. Mais uma vez Ingmar Bergman estabelece a relação entre os

conflitos políticos do mundo exterior como o resultado de defeitos pessoais

privados. Por fim, em A hora do lobo (1968), a violência interior, associada neste

caso específico à loucura, ganha todo o controlo conduzindo à destruição do

protagonista do filme.

A relação entre a violência exterior e interior acaba por traduzir-se e

afunilar-se no tema do duplo e do espelho, recorrente nos filmes de Ingmar

Bergman. As duas mulheres de A máscara, as duas irmãs de O silêncio, os dois

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

95

Andreas de A paixão, as duas Katarinas de Da vida das marionetas (1980) e em

Saraband o desdobramento da figura materna em Anna e Marianne, confirma a

existência de dois pólos opostos numa mesma entidade sujeitos a um conflito sem

fim. As suas expressões últimas são o cavaleiro e a Morte, em O sétimo selo

(1957), a vida e a morte: o primeiro chega a confessar à segunda que o vazio é o

espelho do seu rosto.

Assim, não admira que esta maneira velada e metafórica, “difícil” para os

censores, tenha passado muitas vezes despercebida à Comissão de Censura. O

mesmo sucedeu com o cinema novo: os filmes conseguiram passar porque não

eram abertamente contra o poder vigente e usavam formas elípticas e metafóricas

de se exprimirem.

A profundidade escapa ao olhar do censor e os temas mais censurados

acabam por ser os que podemos considerar mais banais hoje em dia: seios nus,

adultério, ruídos eróticos, referências ao aborto, temas religiosos,

homossexualidade. No entanto, e apesar de tudo: ainda bem! A profundidade e

inesgotabilidade dos filmes permaneceu e continua lá, presente em infindáveis

mensagens que passarão de geração em geração. São filmes de Ingmar Bergman.

Fontes

Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Fundo do SNI Processos da Direcção

Geral dos Serviços dos Espectáculos. Processos de Censura: 1968-1971.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Livros das Actas da Comissão de Censura.

SNI – Actas das sessões 1968-1971 / DGSE Livro 29; SNI – Actas das sessões

1972-1974 / DGSE Livro 30.

Referências bibliográficas

António, Lauro (2001), Cinema e censura em Portugal, 2ª ed.. Lisboa: Biblioteca

Museu República e Resistência.

Azevedo, Cândido de (1999), A censura de Salazar e Marcello Caetano –

Imprensa, teatro, cinema, radiodifusão, livro. Lisboa: Editorial Caminho.

Bergman, Ingmar (1959), Cahiers du Cinéma, Outubro: 29-43.

Bergman, Ingmar (2007), Linterna magica. Memorias, 3ª ed.. Barcelona:

Tusquets Editores.

Bergom-larsson, Maria (1978), Film in Sweden. Ingmar Bergman and Society.

Londres e New Jersey: The Tantivy Press.

Cabrera, Ana (2009), A censura ao teatro nos anos cinquenta: política, censores,

organização e procedimentos, Sinais de Cena 12.

Cabrera, Ana. (2008), A censura ao teatro no período marcelista, Revista Media

e Jornalismo 12.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

96

Cabrera, Ana (2006), Marcello Caetano: poder e imprensa. Lisboa: Livros

Horizonte.

Ciment, Michel; Tobin, Yann (ed. lit.) (2002), Dossier Ingmar Bergman, Positif

497-498: 4-63.

Morais, Ana Bela (2011), Processos de cicatrização: qual a profundidade das

feridas? Uma leitura da violência em sete filmes contemporâneos. Dissertação de

Doutoramento em Estudos de Cultura – Especialidade em Teoria da Cultura.

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Morais, Ana Bela (2013), Tensões entre Marte e Vénus – reflexões sobre a

censura ao amor e à violência nos primeiros anos do governo de Marcello

Caetano. Cabrera, Ana (coord.), Censura nunca mais! A censura ao teatro e ao

cinema no Estado Novo. Lisboa: Alêtheia Editores, 257-310.

Reis, António (1996), Marcelismo. Rosas, Fernando; Brandão de Brito, J. M.

(eds.), Dicionário de história do Estado Novo, Vol. 2 – M-Z. Lisboa: Círculo de

Leitores, 546-548.

Sitiografia:

Fundação / Site oficial Ingmar Bergman: http://www.ingmarbergman.se.

Conceito de “cinema de câmara” ou Kammerspielfilm:

http://de.wikipedia.org/wiki/Kammerspielfilm

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

97

Dissidências

(ou a democratização da “geração invisível”)

Helena Sofia Miranda Brandão

[email protected]

Doutoranda em Estudos Artísticos – Estudos do Cinema e Audiovisual

na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Resumo - No contexto do cinema português contemporâneo a palavra censura

não terá a mesma conotação que no período pré-revolucionário. No entanto,

cineastas e pensadores da sétima arte nacional não deixaram de usar o termo,

nomeadamente no que respeita a uma determinada censura económica que tem

vindo não só a estrangular os mecanismos de financiamento à produção como

também a condicionar a difusão das obras. Se esta conjuntura nos permite utilizar

a designação de Geração Invisível para nos referirmos aos mais jovens e

promissores cineastas portugueses, ela predispõe, por outro lado, para que sejam

encontradas formas alternativas de produção, distribuição e exibição. Fazendo

frente a um contexto industrial poderosíssimo, dominado pela hegemonia

americana, mas com as novas tecnologias como poderosas aliadas, um conjunto

significativo de autores nacionais tem vindo a tirar partido de uma crescente

democratização dos meios de produção e a encontrar formas alternativas de

divulgar o seu trabalho diversificado, tendencialmente híbrido, mas acima de

tudo, livre.

Palavras-chave - cinema contemporâneo | indústria | produção | distribuição |

exibição.

Troco tudo por um novo modo de produzir.

Troco tudo por um novo conceito.

Já não é mais a resistência que nos deve unir.

Juntemo-nos na dissidência.

João Botelho (Grilo, 2006: 43)

A perceção desde cedo do Cinema como uma poderosa «arte de massas»

terá tentado os regimes totalitaristas para a sua manipulação, fosse como uma

forma privilegiada de propaganda ou sob a forma de censura. Deleuze dizia

mesmo que, neste sentido, o cinema é a pior das artes, já que é aquela em que é

mais fácil proibir o artista de realizar a sua obra. (Grilo, 2006: 151). Contudo, no

contexto do cinema português contemporâneo a palavra censura não terá

necessariamente a mesma conotação que no período pré-revolucionário. Será

então importante começar por perceber o que está em causa quando falamos de

censura em democracia.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

98

Um mero dicionário da língua portuguesa (Costa e Melo, 1981: 294) dir-

nos-á que censurar significa criticar, condenar ou repreender e que a censura

consiste num exame crítico a que se sujeitam certas obras antes da sua publicação,

do qual pode resultar a sua interdição. Alem disso, o mesmo dicionário acrescenta

que em psicanálise esta palavra se refere a uma função de defesa contra pulsões

perigosas, repelidas para o inconsciente ou para os sonhos. Por seu lado,

interessa-nos aqui também pensar na palavra democracia, mais do que como um

regime político concreto, no seu sentido etimológico, ou seja, no sentido de um

poder, governo ou norma estabelecida pelo povo. Apenas a partir destas

premissas muito simples podemos começar a perceber algumas

incompatibilidades entre os dois conceitos, nomeadamente no contexto em que

nos propomos trabalhar. Se pensarmos aqui o povo como uma comunidade de

artistas ou cineastas livres, como sugeria Wagner, em A arte e a revolução

(Wagner, 2000: 45), entraremos em dissonância com ideias acima referidas como

as de condenação ou interdição das obras, ou mesmo ainda com os mecanismos

de defesa contra perigosas pulsões. É que entre os dois termos (censura e

democracia) existe aquilo a que chamamos lei: uma espécie de pacto que se faz

num determinado momento da história de um país e que resulta sempre de um

processo de certa forma violento, uma vez que não é feita pelo povo, mas pelo

Estado. (Grilo, 2006: 151).

Poderíamos inventar novas palavras que traduzissem o que se passa no

contexto do cinema português contemporâneo, mas a verdade é que cineastas e

pensadores da sétima arte nacional – como João Botelho ou João Mário Grilo -

não deixaram de usar o termo “censura”, nomeadamente no que respeita aos

constrangimentos económicos que tem vindo não só a estrangular os mecanismos

de financiamento à produção como também a condicionar a difusão das obras.

Em “Pequena história do cinema português” (um dos textos compilados

sob o título O cinema da não-ilusão) o professor e cineasta João Mário Grilo

chama-nos a atenção para um novo tipo de censura que, trinta anos depois da

revolução, se perfila no negro horizonte do espetáculo cinematográfico em

Portugal (Grilo, 2006: 28). Ainda que o autor não o sistematize com esta

configuração, através da sua argumentação podemos alegar que essa nova

censura se estrutura sob três formas essenciais e definitivamente interligadas: a

questão da hegemonia americana, que não é de todo recente, mas que assume

atualmente novos contornos; os seus efeitos, que se repercutem no sistema de

distribuição/exibição e, consequentemente, também na produção; e finalmente a

forma como o estado, as leis e o sistema político lidam com essas questões.

Entre 1906 e 1913, apenas um estúdio francês, a Pathé, era responsável por

um terço das estreias mundiais, detendo os meios produção, distribuição e

exibição. O seu maior mercado de exportação era os Estados Unidos onde, na

altura, apenas um terço dos filmes exibidos era americano (Everett, 2005: 15).

Com a inação industrial imposta pela primeira guerra, a França perde para os

Estados Unidos o lugar cimeiro na produção cinematográfica universal (Canudo,

1995: 134). Recorde-se que, nos anos vinte, ela era já a terceira indústria nacional

nos Estados Unidos (Canudo, 1995: 17), sendo hoje a segunda, em termos de

exportação (Everett, 2005: 17).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

99

Durante décadas – sobretudo desde o final da II Guerra -, o cinema

americano investe, planetariamente, na reprodução do seu próprio

público, perante a passividade das instituições culturais europeias. O

que se passa é que, ao contrário da Europa, o cinema americano é

encarado, na América, como um sector verdadeiramente estratégico,

tanto numa dimensão económico-financeira, como enquanto dispositivo

de colonização cultural. (Grilo, 2006: 47).

Atualmente, cerca de oitenta e cinco por cento dos filmes projetados no

mundo são produzidos em Hollywood (Augros, 2004: 23), tendo o domínio do

cinema americano da cena internacional aumentado sem precedentes nos últimos

trinta anos (Hediger, 2004: 43,44). Note-se, no entanto, que se trata de uma

hegemonia medida segundos os critérios da exibição/exportação, uma vez que o

líder mundial em termos de quantidade de filmes realizados é a Índia, com

números entre os setecentos e os mil filmes por ano. Países como o Paquistão, a

Coreia do Sul, a Tailândia, as Filipinas e a Indonésia produzem mais de cinquenta

filmes por ano. Os países asiáticos, todos juntos, são responsáveis anualmente

por mais de metade da produção cinematográfica do mundo (Stam, 2000: 21,22).

As razões para o sucesso americano são complexas e não se podem

justificar apenas como um mero reflexo da escolha dos consumidores. Se é certo

que o profissionalismo do entretenimento mainstream encontrou uma fórmula

comercial de sucesso que atrai as massas pelas narrativas de ação, os efeitos

especiais e um estilo sedutor para as gerações mais jovens, independentemente

da qualidade dos filmes, o que define os seus resultados de bilheteira será a sua

disponibilidade universal e a sua poderosíssima promoção (Everett, 2005: 17). A

chamada wide release (ou large difusion), uma estratégia de lançamento dos

filmes em larga escala, com consequências tentaculares, aposta na sua

omnipresença no mercado através quer da estreia simultânea a nível mundial com

vários milhares de cópias, quer do acompanhamento dessas «estreias-

acontecimento» por uma campanha publicitária intensíssima. Como

consequência, o domínio americano do mercado cinematográfico parece sair

reforçado em dois sentidos: em primeiro lugar porque esta estratégia barra a

entrada no mercado americano de filmes estrangeiros que não têm capacidade

para campanhas publicitárias tão fortes; depois, garante a vantagem dos filmes

americanos no mercado internacional. Ao resto do mundo, cujas produções, neste

contexto, têm grandes dificuldades em se afirmar «dentro de portas» e ainda mais

em ter acesso ao mercado de exportações, parecem apresentar-se poucas

alternativas: a estratégia do «se não podes vencê-los junta-te a eles» (a lei do mais

forte) ou medidas protecionistas, cada vez mais difíceis de aplicar (Hediger,

2004: 54,55).

Não há, pois, um terceiro caminho: ou se assume que a Europa não é

capaz de formar um público para os problemas levantados pela sua

própria identidade cultural e para as questões (de forma e conteúdo) que

directamente lhe dizem respeito, e então podemos passar todos a fazer,

no futuro, «cinema americano» - mas, então, decerto com outros meios -

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

100

, ou então assume-se, de uma vez por todas, que é necessário inverter o

sentido desta marcha imparável e geracional, investindo seriamente na

reforma das instituições culturais europeias, o que significa unir,

concertadamente, os interesses da educação e da cultura. Trata-se,

assim, menos de fazer cinema para o público do que pensar em fazer um

público para o cinema (e também para o teatro, para a música, para a

pintura…). A tarefa pode parecer impossível, mas será, decerto,

preferível tentá-la do que perder mais vinte ou trinta anos à procura de

remendos que nunca chegarão para tapar todos os buracos que logo de

seguida se irão abrir, irremediavelmente (Grilo, 2006: 48).

O que está em causa não é, portanto, tanto o conceito de nação (uma vez

que o «cinema americano» se faz um pouco por todo o globo e “tem os seus

agentes bem implantados no mundo político, nas escolas de cinema – que

repetem, até à insensatez tecnocrata, as fórmulas americanas de produzir e

realizar cinema” - e nos universos da produção, da distribuição e, principalmente,

da exibição), mas o facto dessa hegemonia na representação do mundo funcionar

como “uma arma fortíssima na submissão dos imaginários nacionais e, até,

transculturais e transnacionais que se lhe opõem” (Grilo, 2006: 33), contribuindo,

assim, segundo João Mário Grilo, para uma espécie de “amnésia constitutiva, que

converte os filmes em episódios circunstancias e efémeros” (Grilo, 2006: 35).

No Portugal pós-revolucionário, a recessão atinge a exibição, sobretudo

a partir de 1984: se em 1975/76 se atingiu um pico de mais de quarenta milhões

de espectadores, a frequência das salas desce em 1986 para dezoito milhões e em

1990 está já abaixo dos treze milhões.

As pequenas distribuidoras são as primeiras a soçobrar e a distribuição

«monopoliza-se» em torno de uma única empresa, enquanto o parque de

salas se deteriora inexoravelmente (em 1991, várias capitais de distrito

não possuem já uma única sala de cinema). As condições não são só

adversas para o cinema português, mas para todas as cinematografias,

exceptuando a americana (…). A assimetria entre a produção e a

distribuição provoca, entretanto, um «engarrafamento» de filmes que

não encontram condições de exibição. Será preciso esperar por 1990

para que a atalanta filmes, empresa de distribuição controlada por

Paulo Branco, faça sair uma série desses títulos, conseguindo alguns

deles resultados de bilheteira encorajadores (Grilo, 2006: 28, 29).

Mais recentemente, pudemos passar a consultar nos sites do, hoje,

Instituto do Cinema e do Audiovisual e do Observatório da Comunicação,

informações sobre os números de espectadores enviados eletronicamente pelas

salas de cinema nacionais. Os dados disponíveis remontam ao ano de 2004, com

mais de dezassete milhões de espectadores, e desde então assinala-se uma

tendência de descida (com exceção dos anos de 2006 e 2010 com pequenas

variações positivas). Em 2012 o número é pouco superior a treze milhões e

oitocentos mil espetadores.

Parte do problema poderá residir naquilo a que Grilo chama a «guerra

surda» que sempre existiu entre a produção, por um lado, e a

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

101

distribuição/exibição, por outro, uma vez que, em Portugal, se produz

eminentemente cinema português mas é o cinema americano que ocupa

maioritariamente o circuito comercial de estreias (Grilo, 2006: 45). Para isso

contribui o enquadramento legislativo e institucional, que o autor apelida de

«esquizofrénico», a que se tem assistido nos últimos anos e que se baseia em duas

«ideias peregrinas»: a ideia de indústria e o conceito de produtor como, senão o

único, pelo menos o intermediário privilegiado entre o Estado e o Cinema do país.

Quando os políticos - «figuras pardas de um sistema», que parecem agenciar cá

dentro o cinema de Hollywood - falam de indústria, espetáculo ou

entretenimento, referem-se a um modo de filmar homogeneizado com o objetivo

de “agradar a um público já constituído pelo cinema americano e ao qual todas

as cinematografias parecem ser forçadas a obedecer para poderem sobreviver”.

Neste processo que Grilo apelida de «velho, podre, concentracionário, estrangeiro

e de domesticação da subalternidade», a iniciativa legislativa volta as costas aos

cineastas e, consequentemente, à história, ao património e a uma forma de

manifestação genuína de um país que os próprios filmes são (Grilo, 2006: 31-35).

No entanto, apesar da fragilidade política da sua base económica de

sustentação, o professor reconhece que à entrada do novo milénio o cinema

português se apresenta maduro, “com um património denso e rico, feito de uma

multiplicidade de propostas internacionalmente prestigiadas” (Grilo, 2006: 32) e

que no início dos anos 2000 é possível assinalar um incremento da produção, em

número e em diversidade, fruto quer da continuidade das filmografias das

gerações já consagradas, quer de uma atenção dada a uma política de primeiras

obras que procura também fazer um esforço no sentido da diversificação dos

géneros, nomeadamente no que respeita aos documentários (Grilo, 2006: 32) e à

animação. A esta argumentação acrescentaríamos também a importância das

novas tecnologias na contribuição para a democratização desta arte, permitindo a

redução dos custos (em com isso deselitizando os meios de produção) e uma

maior liberdade aos cineastas: as próprias características dos dispositivos de

captação de imagens - mais pequenos, maleáveis e discretos - permitem a

diminuição dos constrangimentos técnicos e consequentemente a redução das

equipas de rodagem, aligeirando consideravelmente todos os mecanismos de

produção.

Por estas razões, e pelas suas consequências, não poderíamos estar mais

em desacordo com o pessimismo de João Mário Grilo quando nos diz que a

desativação progressiva da geração do Cinema Novo não tem sido substituída por

uma alternativa do mesmo nível (Grilo, 2006: 147), uma vez que uma nova

geração do cinema português muito tarda em aparecer (Grilo, 2006: 106). Nas

palavras do autor, a desilusão parece ter tomado de assalto a esperança nos

criadores (sobretudo nos mais jovens) e na sua capacidade de encontrarem formas

alternativas de preservar a nossa memória e a nossa identidade.

Conscientes que a mera substituição de um discurso apocalítico,

catastrófico por outro, profético, eufórico e utópico, não nos levaria longe, como

nos avisam Philippe Dubois e os seus pares em Cinéma et dernières technologies

(Dubois et al., 1998), as nossas expectativas não se baseiam num otimismo

inconsequente ou gratuito – até porque os tempos em que vivemos não são

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

102

propícios a isso – mas na dedicação de uma atenção confiante aos sinais que nos

permitem, nomeadamente a nós, investigadores, continuar a trabalhar com um

entusiasmo fundamentado.

Em Junho de 2013 foi lançado o livro Geração Invisível – os novos

cineastas portugueses, que compila cerca de quinze textos de diferentes

investigadores sobre outros tantos cineastas nacionais que ameaçam fazer

história. Como os próprios coordenadores do projeto (Ana Catarina Pereira e Tito

Cardoso e Cunha) afirmam do prefácio que o introduz, “uma leitura do passado

recente pode atribuir maior sentido a movimentos artísticos anteriores,

perspetivando, em simultâneo, futuros próximos” (Pereira e Cunha, 2013: 2).

Reconhecendo que essa nova cinematografia é feita de paradoxos: “rotura e

encaixe, aproximação e distanciamento, novidade e nostalgia simultâneos”

(Pereira e Cunha, 2013: 2), é também assumido que esses novos cineastas

trabalham com escassos recursos, contra o tempo e o esquecimento, invisíveis

para a generalidade dos portugueses. (Pereira e Cunha, 2013: 2).

Visto de fora, o cinema Português parece nunca ter estado tão bem. Visto

de dentro, revela ansiedade e descontentamento. Nesse sentido, falar do

seu presente e do seu futuro configura-se uma questão não

exclusivamente académica, mas intrinsecamente política. Se não,

vejamos: em fevereiro de 2012, Miguel Gomes vence, com Tabu, o

prémio da crítica do Festival de cinema de Berlim. No mesmo ano, ao

suspender indefinidamente o programa de apoio financeiro à produção,

o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) bloqueou toda a produção

cinematográfica nacional. Ainda no referido festival alemão, João

Salavisa vence o Urso de Ouro para melhor curta-metragem (Rafa) e

dedica o prémio ao Governo português: na exclusiva condição de este

prestar um maior apoio à produção interna (Pereira e Cunha, 2013: 2).

Todavia, a ideia que mais nos interessa na argumentação deste projeto é

a de que a inquietude, a indignação e a censura da invisibilidade, estão a trabalhar

no cinema português, lado-a-lado com a sua poesia, a sua liberdade e “uma

imensa vontade de chegar às pessoas e de dialogar com elas, não apenas através

dos filmes, mas também do contato pessoal” (Pereira e Cunha, 2013: 5),

nomeadamente pelo recurso a redes de distribuição alternativas. Como afirma

Manuel Mozos:

Há situações difíceis e muito complicadas mas, simultaneamente,

também vão existindo maneiras de as contornar. (…) Há coisas a

serem feitas num sistema «à margem» (…). É necessário acreditar

nas coisas, e isso é um dos princípios que terá de ser incutido em

quem pretende trabalhar no cinema: primeiro que tudo, tem que

se acreditar (Pereira e Cunha, 2013: 24)

Regressando ao livro O cinema da não-ilusão, no texto com o título

“Elogio da dissidência”, João Botelho assegura-nos que os nossos filmes acabam

por ter a grandeza das coisas que o dinheiro não pode pagar, porque o que os

distingue em relação aos outros não tem preço: um modo de produção próprio,

que resulta em «produtos estranhos, diferentes, fora dos formatos», assente na

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

103

liberdade criativa que permite aos realizadores um maior controlo sobre o

trabalho e que privilegia a duração, o tempo e a composição, em detrimento de

uma ação que não têm dinheiro para filmar. Resumindo, trata-se de uma

capacidade de filmar ideias - o que, segundo Botelho, o governo acha uma

«chatice», senão mesmo um crime! (Grilo, 2006: 37-41).

O cineasta denuncia que o sistema de regras criadas para proteger a arte

cinematográfica está a ser agora aproveitado para o negócio e que isso é grave;

que as leis dos políticos são regradas pelos consensos e pelo nivelamento por

baixo; que os próprios produtores não parecem muito interessados em produzir

filmes mais baratos, porque quanto maior for o orçamento, mais eles ganham,

preferindo, por isso, uma equipa maior – de que o realizador nem sempre precisa

– em detrimento de mais tempo de rodagem; e que, finalmente, por todas estas

razões a ideia de inventar um novo modo de produção vai ser contrariada (Grilo,

2006: 39-42).

É evidente que não é fácil: quanto mais violento e independente é um

cineasta mais as portas se fecham. Há uma tendência, há uma corrida

para destruir essa liberdade, embora a única verdadeira censura seja a

económica… – João Botelho (Grilo, 2006: 38).

Resumindo, as palavras de (des)ordem (Grilo, 2006: 48) contra este tipo

de censura de que hoje se continua a falar, no que ao cinema português diz

respeito, assentam certamente na diversidade e também na liberdade com que,

apesar de tudo, se continua a filmar em Portugal. A heterogeneidade que nos

caracteriza, ao introduzir um grão de areia nesse mecanismo (Grilo, 2006: 154),

terá de forçar as instâncias da distribuição e da exibição à recusa de colonização

por parte do cinema americano e da ideologia industrial que lhe está associada,

rejeitando um futuro homogéneo, hegemónico e seguramente triste (Grilo, 2006:

33, 34). Mas essa variedade alimenta-se sobretudo do setor da produção

É preciso fazer filmes pequenos e grandes, ficções e ensaios,

documentários e filmes experimentais; é preciso investir em tecnologias

baratas, dar a possibilidade ao cinema de se exprimir noutros meios

tecnológicos (…). É preciso, sobretudo, pôr gente muito nova a

experimentar, em contextos de produção e co-produção mais

imaginativos e procurar libertar uma nova geração de profissionais da

ideia asfixiante de que só um modelo «industrial» de produção/difusão

lhes assegurará a sobrevivência futura. (Grilo, 2006: 49).

Finalmente, recordemos então, por um momento, a definição psicanalítica

de censura que o dicionário nos deu no início deste texto: a de defesa contra

pulsões perigosas, repelidas para o inconsciente ou para os sonhos. Ora, como

nos ensinou Edgar Morin, o cinema é precisamente uma forma de visualização

dos nossos sonhos, esses ectoplasmas armazenados, esses corpos astrais que se

alimentam de nós e a nós como arquivos da alma, objetivados através de

máquinas e coletivamente partilhados. “Há que interrogá-los”, dizia Morin

(Morin, 1997: 246), para sabermos um pouco melhor que somos e para que a

História saiba quem fomos e porque fomos desta forma (Grilo, 2006: 35).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

104

Roubando-nos os olhos, o Império rouba-nos a alma, pondo no lugar das

nossas vacilantes utopias uma colecção esfarrapada de imaginários de

importação (narrativos e formais) prontos a vestir, a consumir e – seu

supremo desígnio – prontos a reproduzir-se e a reproduzir-nos (Grilo,

2006: 35).

Como outras, a cinematografia portuguesa continua a escolher, filme a

filme, uma estratégia de combate contra a censura da invisibilidade e pela

afirmação da sua dissidência em relação ao modelo americano de colonização

imaginária do planeta. (Grilo, 2006: 33). Já não é pois a resistência que nos deve

unir. Juntemo-nos na dissidência.

Bibliografia

Adorno, T. W. (2006), Teoria Estética. Lisboa: Edições 70.

Augros, J. (2004), H’W’D’ Other People's $$. Esquenazi, Jean-Pierre (ed.),

Cinéma contemporain, état des lieux — actes du colloque de Lyon, 2002. Paris:

L’Harmattan.

Beau, F.; Dubois, P.; Leblanc, G. (1998), Cinéma et dernières technologies. Paris,

Bruxelles: De Boeck Université.

Canudo, R. (1995), L’Usine aux Images. Paris: Séguier Arte Éditions.

Costa, J. A.; Melo, A. S. (1981), Dicionário da Língua Portuguesa. Porto: Porto

Editora.

Everett, W. (2005), Re-framing the fingerprints: a short survey of European film.

European Identity in Cinema. Bristol: Intellected Books.

Grilo, J. M. (2006), O cinema da não ilusão – histórias para o cinema português.

Lisboa: Livros Horizonte.

Hediger, V. (2004), Le cinéma hollywoodien et la construction d’un public

mondialisé. Esquenazi, Jean-Pierre (ed.), Cinéma contemporain, état des lieux —

Actes du colloque de Lyon, 2002. Paris: L’Harmattan.

Manovich, L. (2001), The Language of New Media. Cambridge, Mass., Londres:

The MIT Press.

Morin, E. (1997), O Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa: Relógio d’Água.

Stam, R. (2000), Film and Film Theory: The Beginnings. Film Theory – an

Introduction. Oxford: Blackwell Publishing.

Pereira, A. C.; Cardoso e Cunha, T. (org.), (2013), Geração invisível – os novos

cineastas portugueses. Covilhã: Livros Labcom.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

105

Wagner, R. (2000), A Arte e a Revolução. Lisboa: Antígona.

Sites

“Exibição cinematográfica: Espetadores - evolução mensal 2004/2011”

http://www.ica-ip.pt/Admin/Files/Documents/contentdoc1894.pdf.

“Evolução do número de espectadores, 2004 a 2012”

http://www.obercom.pt/client/?newsId=14&fileName=cinema_11_12.p

df.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

106

I I . T e a t r o

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

107

Um achegamento à censura de Castelao e a sua época

Antonio Iglesias Mira

[email protected]

Universitat de Barcelona

Resumo - Durante o curso 1968/1969, o grupo universitário CITAC teve como

diretor artístico o catalão Ricard Salvat, que preparou, entre outros projetos, um

espetáculo titulado Castelao e a sua época. Este espetáculo despertou grandes

espetativas no mundo cultural da cidade. Infelizmente a censura impediu a estreia

e a PIDE expulsou de Portugal o encenador.

Nesta comunicação analisamos as marcas que a censura deixou no texto

dramático para chegarmos a conclusões sobre o motivo da proibição da peça

numa época (os primeiros anos do marcelismo) onde supostamente a censura

atuava de modo mais leve e as autoridades eram mais permissivas.

Palavras-chave - CITAC | censura | Ricard Salvat | Castelao e a sua época |

relações Portugal.

Contexto histórico

O ano de 1969 é uma data assinalada na história de Coimbra e da sua

Universidade devido à afamada Crise Académica de 1969, um dos picos de maior

visibilidade da luta estudantil em Portugal. Mas esse curso, o 68/69, esconde

também um momento de grande intensidade para o teatro universitário em

Portugal, especialmente na cidade do Mondego. Uma série de encenadores

estrangeiros foram convidados para tomar conta da direção artística de diferentes

grupos de teatro universitário. Foi o caso de Luís de Lima (Teatro dos Estudantes

da Universidade de Coimbra), Adolfo Gutkin (Cénico de Direito, Lisboa) ou

Ricard Salvat (Circulo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra). Os três

realizaram um trabalho muito interessante e corajoso e os três foram pagos com

a mesma moeda: a expulsão do país (Gutkin em 1973 e Lima e Salvat em 1969).

O caso que centra a minha investigação é o de Ricard Salvat que, à frente

do CITAC durante a incompleta temporada 68/69, desenvolveu um importante

trabalho pedagógico e artístico em Coimbra e noutras cidades da região antes de

ser expulso em Abril, no dia da suposta estreia do seu projeto mais ambicioso

com o grupo universitário.

Ricard Salvat (Tortosa, 1934- Barcelona, 2009) foi uma figura importante no

devir do teatro catalão da segunda metade do século passado. Grande conhecedor

das teses de Bertold Brecht, foi um dos introdutores do mesmo na Península

Ibérica. Professor universitário, estudioso do teatro, escritor e encenador, foi um

homem intimamente relacionado com a cena teatral. Em 1969, e depois de

alguma produção pouco rentável, aceitou o trabalho de dirigir o CITAC durante

um ano e se trasladou com a sua família para Coimbra, num Portugal que vivia a

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

108

exoneração do líder e a sua substituição por Marcelo Caetano, que prometia uma

época de abertura política. Como mostra desta abertura e com o aumento das

petições democráticas dentro da academia de Coimbra, as autoridades permitiram

que se celebrassem eleições para escolher a Direcção Geral da Associação

Académica de Coimbra (DG-AAC), que desde 1965 estava nas mãos de uma

Comissão Administrativa nomeada pelas autoridades1. A notícia da celebração

de eleições levantou no ambiente académico da cidade uma onda de ilusão e

contestação, o que surpreendeu agradavelmente o encenador.

É de sobra conhecido o resultado daquelas eleições, obtendo a lista do

Conselho de Repúblicas uma esmagadora maioria, assim como o empenho que o

coletivo estudantil mais comprometido tomou nelas, sendo o grupo de estudantes

relacionado com as Repúblicas e as secções culturais da AAC, entre os que se

encontrava o CITAC, os mais ativos (Oliveira Barata, 2009: 38). Foi este clima

de implicação, alegria e ilusão que Salvat encontrou durante os primeiros meses

do seu trabalho.

O encenador ofereceu, pouco depois da sua chegada, um curso de história

do teatro que logo alcançou uma boa cifra de assistentes. Trabalhava com o

CITAC e, ao mesmo tempo, sobre as teses de Bertold Brecht, do qual resultaria

um espetáculo titulado Brecht+Brecht. Este espetáculo foi apresentado na

Marinha Grande, em Coimbra e em Águeda, sendo a atuação mais destacada a

que se realizou no teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

durante a gala de homenagem ao Prof. Azeredo Perdigão e que se viu envolvida

numa sonora polémica com os setores mais reacionários do coletivo universitário.

Há que destacar que Bertold Brecht, de conhecida ideologia comunista, era

um dos autores "marcados" pelo regime. Uma anterior apresentação de "A alma

boa de Setsuan"2, pela companhia brasileira de Maria Della Costa, fora feita em

1960 no Teatro Capitólio em Lisboa resultando a peça cancelada pouco depois

da estreia, pois um pequeno setor do público acudira com a intenção de formar

tumulto. A polícia do regime acabou por deter alguns manifestantes até que a

peça foi permanentemente proibida para evitar maiores altercados. Já os próprios

censores tinham advertido da inconveniência de representar obras do dramaturgo

alemão, o que nos põe sobre aviso da ideia que a Censura mantinha sobre Brecht

(Abreu, 2013: 353-354).

Mas, como foi que o CITAC conseguiu contornar a censura? Lembremos

que, durante o Estado Novo, era necessário ter a aprovação das autoridades para

realizar qualquer representação e que a censura ao teatro atuava em duas fases: a

textual (os textos dramáticos tinham de ser enviados com antecedência e

aprovados pelo SNI) e o chamado ensaio prévio, onde o grupo apresentava a obra

para os censores antes da estreia. Uma obra tão marcadamente contestatária como

1 Para conhecer mais sobre o Movimento Académico em Coimbra, de muito maior

percorrido e profundidade do que Crise Académica de 1969, ver Caiado, 1990; Cardina,

2008; Cruzeiro e Bebiano, 2006; Estanque e Bebiano, 2007.

Para um conhecimento mais detalhado da Crise Académica de 1969 pode-se consultar

Namorado, 1989 ou Cruzeiro, 1989. 2 Podemos encontrar uma descrição mais detalhada do trabalho da Companhia Maria

Della Costa em Portugal em Abreu, 2013.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

109

Brecht+Brecht teria levantado todas as reticências possíveis por parte da censura,

motivo pelo qual o grupo nunca a apresentou como um espetáculo. Falava-se de

um "ensaio aberto" ou uma "conferência-teatro", sendo sempre as apresentações

gratuitas. Deste modo, a censura era evitada pois aquilo não era, estritamente,

uma peça de teatro. Mas que a censura fosse evitada não era sinónimo das

autoridades desconhecerem o trabalho de Salvat com o CITAC, como

demonstram os diferentes informes apresentados pela PIDE e que se encontram

nas pastas que a polícia do regime mantinha sobre o CITAC e Salvat3. Com a

chegada do polémico sarau realizado no teatro da Faculdade de Letras, era

evidente que a atividade do CITAC sob as ordens do encenador catalão não podia

passar inadvertida para as autoridades do regime e o próprio Salvat mostrava a

sua preocupação nos seus diários, enquanto fazia planos para previr uma possível

extradição a Espanha (Iglesias Mira, 2011). Porém, a encenação sobre Brecht

finalizou, as autoridades não atuaram contra ela4 e o CITAC começou com as

preparações do que devia ser o grande espetáculo da temporada e o objeto de

estudo deste artigo: Castelao e a sua época (de agora em diante CSE).

Este segundo espetáculo estava pensado para ser um dos acontecimentos

da temporada teatral na cidade. Com a parceria Salvat/CITAC, sob o olhar do

mundo cultural de Coimbra, o grupo não hesita e avança com uma arriscada

aposta: um espetáculo de longa duração e alto custo que contava, aliás, com uma

equipa de artistas colaboradores de alta qualidade. Sustentados pelo

financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian, sem a qual a encenação não

poderia ter sido abordada, os estudantes envolveram-se num duro trabalho,

chegando a prescindir das suas férias de Páscoa, para poder apresentar o

espetáculo durante a décimo primeira edição do Ciclo de Teatro do CITAC, que

decorria anualmente no Teatro Avenida de Coimbra e era um dos mais destacados

eventos culturais da cidade (Oliveira Barata, 209: 302-ss).

Focado como um trabalho de "teatro total", Salvat cuida cada elemento

artístico com sumo detalhe. Pediu para isso a ajuda de diferentes colaboradores,

como o músico José Niza, que realizou as músicas de acompanhamento e as

musicalizações dos textos, ou os desenhadores plásticos Isaac Díaz Pardo e Luís

Seoane, que tomaram conta da plástica: figurinos, cenários e cartaz do espetáculo.

Há que destacar que Seoane, incansável agente cultural galego no exílio durante

o período do pós-guerra espanhola, era, naqueles tempos, um destacado criador

gráfico com reconhecimento internacional.

CSE representou, portanto, um interessante projeto do ponto de vista

artístico. Mas também do ponto de vista simbólico, pois o espetáculo só pode ser

compreendido dentro do clima que, naqueles agitados meses de 1969, a academia

de Coimbra vivia, estabelecendo uma relação entre o projeto artístico e o contexto

social, relação essa de autoalimentação muito importante: as realizações culturais

relacionadas com o movimento estudantil eram devedoras do mesmo, mas

também não se poderia entender este movimento sem termos em conta a posição

3 Respetivamente, os processos 3529/62 e UI 10473 (em relação ao CITAC) e o processo

Nº 387111 (relativo a Ricardo Salvat Ferrer). 4 Se bem que o Centro de Formação e Assistência Social de Águeda foi encerrado pela

polícia o dia depois da representação do CITAC (Raposo, 2000: 135).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

110

de importância que a cultura e as secções culturais tinham dentro dele.

As representações de Brecht+Brecht estavam inseridas no clima de desafio

prólogo dos eventos que despoletaram a chamada Crise Académica e,

paralelamente ao trabalho sobre Castelao e a sua época, acontece a famosa

inauguração do Edifício das Matemáticas, onde os estudantes desafiaram às

autoridades de modo público e notório. Concretamente, o famoso evento coincide

com a receção por parte do CITAC da resposta do SNI em relação ao texto de

CSE: "É de reprovar, como se reprova". Em vão tentaram os estudantes chegar a

um acordo com as autoridades da Censura, enviando uma resposta na qual

enumeram os motivos pelos quais a peça deveria ser aprovada e oferecendo uma

solução pactuada: deixar que as autoridades permitissem a estreia no Ciclo de

Teatro, para pagar as grandes despesas e investimentos, e entrar depois num

processo de revisão para a programada turné pelo interior do país. Mas as

autoridades, já com o clima em Coimbra escaldante, negaram qualquer revisão.

No mesmo dia da suposta estreia, um grupo de PIDES irrompia na vivenda de

Salvat para o prender e colocar o encenador na fronteira com Badajoz, emitindo

uma ordem de expulsão de solo português.

A sequência destes eventos indica-nos que a primeira reação da censura

nada teve a ver com a Crise Académica, pois a resposta é anterior ao despoletar

da mesma. Existiam, evidentemente, tensões e por certo que as autoridades

estavam de sobreaviso sobre o que acontecia com a nova DG-AAC, mas não

parece que seja o clima o motivo da censura e proibição de CSE. Posteriormente,

sim, a expulsão de Ricard Salvat pode ser vista como uma operação contra o

teatro universitário, pois o encenador do TEUC (o outro grande grupo de teatro

da Universidade de Coimbra, que vinha de apresentar um corajoso A Ilha dos

Escravos), Luís de Lima, foi posto num avião com rumo ao Brasil no mesmo dia

que Salvat. Mais outra mostra da importância dos grupos culturais no movimento

estudantil da época.

Atrás da expulsão de Salvat vieram os acontecimentos mais conhecidos da

Crise: a greve às aulas, o fecho da universidade, a greve aos exames e a toma da

cidade por parte da polícia, com a consequente contestação por parte dos

estudantes. Depois, as incorporações forçadas ao exército deixaram em quadro a

grande parte dos grupos culturais, e a Salvat substitui-o Juan Carlos Uviedo como

encenador do CITAC. Será com Uviedo, com quem o grupo se vê envolvido num

processo de escândalo público, que se dá o encerramento do grupo por parte do

reitor e a expulsão, outra vez, do encenador que dirigia o CITAC. Na sequência

de tudo aquilo, os arquivos e as instalações do grupo foram vandalizados pela

polícia e a memória de CSE foi caindo, aos poucos, no esquecimento.

Desde o início encarei as minhas pesquisas como uma tentativa de

recuperação do trabalho realizado pelo CITAC com Ricard Salvat. Nas seguintes

páginas centrar-me-ei no texto dramático que o grupo envia ao SNI e nas marcas

que, como cicatrizes, deixaram os censores sobre CSE.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

111

O texto dramático de CSE e as marcas da Censura

O texto dramático de CSE foi planejado como teatro documental, estando

formado por múltiplas textos, de origem e tipologia diferentes. Como se dum

patchwork se tratasse, CSE integra estatísticas, listagens, poemas, fragmentos

dramáticos, cartas ou narrações. Outra das características centrais do texto

dramático de CSE é a adstrição, quase na sua totalidade, a um campo literário

ampliado. Muito conscientemente, Salvat apresentou um espetáculo que

integrava autorias que procediam do sistema literário português, galego, catalão

e espanhol. Observamos que há uma evidente intenção ibérica na escolha dos

textos. 7

Aliás, a influência das teses de Bertold Brecht e do seu teatro épico ou não

aristotélico, faz com que os textos sejam apresentados como pequenas cenas

independentes organizadas sob uma estrutura geral, neste caso cronológica, mas

que podiam ser facilmente tratáveis como unidades ilhadas, cada uma com uma

temática própria. Isto favorecerá em grande parte a nossa análise, como veremos

a seguir.

A estrutura e a apresentação geral da peça era um percurso cronológico

pela história da Europa na primeira metade do século XX, tomando como marcos

de referência a data de nascimento e de passamento do artista e político galeguista

Alfonso Daniel Rodríguez Castelao (1886-1950), uma das principais figuras da

cultura galega. Durante as mais de três horas que duraria o espetáculo, teriam

saído à cena as diferentes correntes artísticas da época, os variados conflitos

armados nos quais se viu envolta Espanha, a situação da arte, o maltrato dos

camponeses e o drama da emigração ou as diferenças sociais. Sendo facilmente

identificáveis os diferentes textos que conformam o texto dramático5, e tratando,

pelo geral, um único tema cada um deles, podemos analisar CSE de modo

organizado.

Os 187 fólios de que consta o documento enviado pelo CITAC ao SNI

contêm um total de 143 textos6 que iam do relato em primeira pessoa por parte

de um emigrante galego sobre a sua vida e a figura de Castelao até a carta que o

professor Rodrigues Lapa enviou à viúva do artista galego depois do

conhecimento da sua morte. Entre estas duas balizas, desenvolver-se-ia

cronologicamente uma panorâmica dos primeiros cinquenta anos do século XX,

panorâmica realizada seguindo os modelos do teatro épico, isto é com uma

orientação claramente ética e ideológica, de marcado caráter esquerdista. Esta

orientação fez com que CSE entrasse em conflito com o que a Censura e o Estado

Novo tinham permitido para os palcos, acabando por fazer com que o espetáculo

fosse rejeitado e proibido.

É necessário lembrar que o Estado Novo estava a iniciar na altura um

período de abertura pela mão de Marcelo Caetano, onde a censura fora suavizada

consideravelmente. Desde os inícios do Estado Novo, este atuara sobre a imagem

5 Falaremos, para não nos confundir, de texto dramático em relação a CSE e simplesmente

de texto em relação a cada um dos distintos documentos que o integram. 6 Numa primeira abordagem do texto achei que estes eram 140 mas posteriores revisões

levaram-me a dividir um fragmento dramático em três textos diferentes.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

112

do país de duas formas: mediante a propaganda, para criar e impor uma imagem

idealizada do mesmo, e mediante a censura, para cortar e reprimir as visões de

caráter contrário à oficial (Santos, 2008). Com a chegada de Marcelo Caetano,

abriu-se inicialmente uma etapa de abertura que abrange os anos de 1969 a 1970,

e onde há de facto uma suavização dos critérios, para entrarmos depois, de 1971

até 1974, numa fase de reendurecimento da mesma (Cabrera, 2008). Porém, e

apesar de contar com uma maior lassitude dos serviços da Censura, CSE foi

impreterivelmente rejeitado.

Sabemos por outras investigações (Cabrera, 2008 e 2013) o modo como se

organizava a censura aos textos dramáticos durante o Estado Novo: os censores

trabalhavam sobre os textos e emitiam um parecer, sendo as opções três:

aprovado, aprovado com cortes ou rejeitado. Mais tarde a Comissão de Censura

aos Espectáculos, formada pelos censores e alguns altos cargos, conformava a

avaliação e analisava as possíveis reclamações dos grupos. No seguimento da

pesquisa que daria lugar à minha tese de mestrado, consegui o exemplar do texto

dramático que se guarda nos arquivos da Torre do Tombo7. Este exemplar

(arquivo da PIDE/DGS, SNI, Processo 1/8868), comparado com os outros

encontrados no espólio de José Niza ou no Institut del Teatre de Barcelona, foi

considerado como o mais representativo e é no que, logicamente, baseio a minha

análise das marcas da censura. Ao longo do exemplar da Torre do Tombo

entontram-se diferentes marcas do censor, que distingo em dois grupos. O

primeiro deles risca por completo palavras, fragmentos e mesmo páginas inteiras.

Parece-me que neste primeiro tipo de marcas se encontra a ação da censura mais

evidente: o revisor não hesita e cerceia o que considera inadmissível. No segundo

grupo de marcas incluem-se sublinhados, linhas na margem ou signos de

interrogação. Entendo que, nos casos em que estas marcas são aplicadas, o censor

não corte diretamente mas sim ressalte para uma avaliação geral posterior.

O texto dramático de CSE que se encontra na Torre do Tombo é composto

por 143 textos, dos quais quarenta e dois recebem marcas de qualquer tipo por

parte do censor. Doze desses textos são riscados completamente e em treze

encontramos fragmentos riscados. As outras marcas, que chamarei "de dúvida",

aparecem em dezanove textos, algum dos quais também possui fragmentos

riscados. Para analisar as marcas da censura e os temas sobre os quais operam,

tomarei em conta principalmente os dois primeiros grupos, os que contêm marcas

que riscam fragmentos ou textos na íntegra.

A professora Ana Cabrera divide as preocupações dos censores em

diferentes tipos: estéticas, morais, religiosas, políticas, sociais e nacionalistas

(Cabrera, 2008: 54). Esta proposta é muito útil, como veremos, para encarar uma

catalogação das temáticas atacadas pela Censura em CSE, pois todas as marcas

encontradas no texto podem ser incluídas dentro desses campos. A seguir

apresentaremos uma série de exemplos para melhor entendermos tanto o tipo de

texto dramático que é CSE como os motivos pelos quais da censura decidiu

7 Descoberta que devo ao trabalho do professor da Universidade de Coimbra José Oliveira

Barata, que se lembrou de mim durante as suas próprias pesquisas na realização do seu

livro sobre o teatro universitário em Portugal.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

113

proibir a sua representação.

Os primeiros textos riscados são de temática social. Qualquer menção às

desigualdades sociais ou as condições de penúria dos trabalhadores era banida

pelo censor. O primeiro texto a aparecer completamente riscado é o poema do

catalão Joan Maragall sobre a sirene da fábrica:

Tu não tens o canto da sereia antiga

que dantes cantava; embora parecida,

quando com a tua voz de imperiosa amiga

atrai até ti, a gente traída.

E, os que querem fugir ao teu império,

vagueiam pela cidade desesperados:

vão pelos bairros ricos, sonhando mistério

arrastrando a fome de mil pés cansados.

(CSE: 29)

Não importava que o texto tivesse como referência a Galiza do século XIX,

os censores eram muito conscientes que o que CSE apresentava no palco seria

lido pelo público como uma denúncia da situação do país. Assim sendo, o

Catecismo do Camponês, obra publicada em 1889 pelo galego Lamas Carvajal,

não podia passar na censura.

P.- Como camponês em que coisas acreditas?

R.- Nos artigos, principalmente como se encontram no credo

P.- Para que servem os artigos?

R.- Para conhecermos os deuses da nossa aldeia

P.- Quem são esses deuses?

R.- O alcaide, nosso senhor; o Secretário, nosso amo; e o Cacique, nosso

dono.

P.- Quem é o alcaide vosso senhor?

R.- É a coisa mais vil que se pode dizer ou pensar: um senhor

infinitamente mau, burro, ladrão, injusto, princípio de todas as nossa

desgraças e fim de todos os nossos haveres.

P.- E a condenadíssima trindade, quen é?

R.- O mesmo Alcaide, o mesmo Secretário e o mesmo Cacique, três

pessoas distintas numa só calamidade verdadeira.

(CSE: 43)

Em relação às questões estéticas, a função da arte e os tipos de linguagem

artística estão por detrás dos cortes que os censores realizam numa peça que

apresenta um percurso pelas diferentes correntes artísticas da primeira metade do

século XX. É principalmente o Neorrealismo o que acapara os cortes, sendo

riscados mesmo os nomes de determinados autores portugueses8 e até a

existência de neorrealistas portugueses. Também é cortada a representação do

"espetáculo futurista" no que Almada Negreiros apresentou o seu Ultimatum

Futurista, assim como considerações de Manuel de Oliveira ou Castelao sobre a

função social da arte.

8 É o caso de Manuel da Fonseca, Álvaro Feijo, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado,

Soeiro Pereira Gómes ou Mário Dionisio.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

114

Encontramos dentro de CSE algumas críticas à religião como um dos

estamentos nos quais se esconde o poder e a injustiça. Num texto no qual se

apresentam diferentes quadras de além e aquém Minho, o censor risca os que são

ofensivos para com a Igreja:

As igrejas são conventos

e os padres comerciantes

e ao repicar9 dos sinos

correm os ignorantes

Preguiçosos do convento

aprendei a trabalhar

que o pão do kirieleison

não há-de sempre durar.

(CSE: 22)

A grande parte dos cortes realizados por motivos estritamente políticos (se

bem que esta categoria é facilmente incluída noutras como a social ou a

nacionalista) estão espalhados ao longo de todo o texto dramático. Um dos

processos pelos quais CSE conseguia coerência na sua estrutura era a repetição

do que chamaremos "títulos", onde diferentes efemérides de caráter artístico,

político ou científico eram apresentadas, assim como nascimentos e mortes de

pessoas destacadas. Como é lógico ao se tratar de teatro épico, esses títulos

tinham uma finalidade política de marcada orientação esquerdista. Vejamos

alguns exemplos de notícias censuradas:

1888:

- Levantamento dos mineiros de Rio Tinto: morrem 20 homens e 150

ficam feridos.

(...)

1901:

- De 17 a 19 de Janeiro reúne-se em Vigo o I Congresso Operário

Internacional galaico-português.

- É aprovado no II Congresso Operário galaico-português o regulamento

da constituição da União Operária galaico-portuguesa. (CSE: 72)

Também foram riscadas duas declarações de importantes figuras do Estado

Novo como foram o cardeal Gonçalves Cerejeira ou Oliveira Salazar. Num

primeiro momento poderia resultar surpreendente a inclusão destes nomes na lista

de autores que acompanhava o texto, mas, se observamos as citações,

encontraremos mais outra vez uma orientação política clara.

1. Do Cardeal Patriarca ao clero e aos fiéis:

Todo o totalitarismo nega a missão e a liberdade da Igreja e sacrifica os

direitos da pessoa no altar do Estado, da classe ou da multidão.

(...)

2. Salazar, entrevistado por António Ferro:

9 Modifico para a sua melhor compreensão este texto, que continha uma anotação da

pessoa que traduziu o texto.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

115

O País não suporta ditaduras violentas nem pode progredir em regime de

partidos. Torna-se necessário fazer regressar a organização corporativa,

com a possível urgéncia, às funções para que foi criada, e, quando isso

se realizar, desaparecerá a maioria das queixas. (CSE: 128)

Dentro da temática política, encontramos um especial empenho por parte

dos funcionários do SNI no relacionado com a guerra:

Os serviços de censura tinham indicação para eliminar a palavra guerra

dos textos dramáticos e, ao mesmo tempo, proibir as peças que

defendessem valores pacifistas. Esta situação, aparentemente

contraditória, está claramente relacionada com a guerra colonial.

Portanto, ao mesmo tempo que se proibia a palavra guerra, para que o

público não recordasse que o País mantinha uma guerra em África,

proibiam-se também peças pacifistas para que o público não fosse

induzido na luta contra a guerra colonial e mantivesse a tenacidade e

vontade de defender os territórios coloniais como parte do território

português (Cabrera, 2008: 43)

Lembremos que Portugal estava envolvido numa série de guerras coloniais

em África desde os inícios dos anos 60, devido às sublevações dos territórios

coloniais de Angola, Guiné e Moçambique. Este teatro de guerra africano foi um

verdadeiro lastro para Portugal, tanto economicamente como, em especial, em

relação à juventude que tinha que abrir um parêntese na sua vida normal para se

incorporar numa frente da qual poderia bem não voltar:

Agora vou pra soldado

maldita seja esta lei

o melhor da mocidade

vai-se-me servindo o rei

(...)

Pássaro que deixou o ninho

navio que vai para o mar

soldado que vai à guerra

Deus sabe se irão voltar

(CSE: 22)

Não encontramos abertas proclamas pacifistas em CSE, mas sim uma

constante nas diferentes guerras nas que se envolveu Espanha durante o final do

século XIX e a primeira metade do XX: a diferenciação social da incorporação

ao serviço no exército:

Vou então fazer a guerra

os do governo mandam.

Como não tenho um centavo

não posso livrar-me disso.

Os ricos ficam em casa,

os pobres vão pr´os canhões. (bis)

(CSE: 96)

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

116

Achamos curioso que os censores tenham deixado passar uma composição

que tinha uma evidente relação com a situação dos estudantes que, finalizado o

seu curso, tinham que se incorporar no exército. Este poema, musicado por José

Niza para CSE, prende entre o coletivo universitário e tornou-se célebre na versão

de Adriano Correia de Oliveira. Trata-se, evidentemente, do poema de Rosalía de

Castro conhecido em Portugal como "Cantar de Emigração" e que começa assim:

Este parte, aquele parte

e todos, todos se vão

Galiza ficas sem homens

que possam cortar teu pão.

(CSE: 28)

Não é difícil entender como esta denúncia da emigração galega do S. XIX

falava diretamente aos estudantes. Também não estranha que, com letra mudada,

fosse entoado pela manifestação de estudantes que, como protesto diante das

incorporações forçadas dos líderes do movimento estudantil no exército,

acompanhou os mesmos até à estação dos comboios (Raposo, 2000: 135). A sua

pertença, nos dias de hoje, ao repertório imprescindível do que se conhece como

Balada de Coimbra, é prova do sucesso da composição dentro do coletivo

estudantil.

Outra das temáticas vigiadas era a defesa da ideia de Portugal defendida

pelo Estado Novo, que desenvolveu uma forte campanha de propaganda desde os

seus inícios. Como aponta Graça dos Santos: "Quando os serviços de propaganda

não conseguirem ser suficientemente convincentes, entram em ação os serviços

de censura para proibirem olhares não conformes com os ideais do regime"

(Santos, 2008: 62). Estamos perante uma censura de caráter nacionalista, que

toma em CSE curiosas tinturas de defesa da fronteira. Por um lado vemos que

qualquer texto que critique ou questione o ideal nacional é riscado, como

acontece com os fragmentos da obra do intelectual espanhol Miguel de Unamuno:

- Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada: o

suicidio é um recurso nobre e uma espécie de redenção moral. Neste mal

fadado país todo aquele que é nobre se suicida. Tudo o que é canalha

triunfa.

(...)

- Os poetas portugueses são, em geral, pouco eruditos. A sua cultura é

pouco variada. (CSE: 58)

Mas também vemos que uma das principais motivações éticas e estéticas

de CSE chocava frontalmente contra o muro nacionalista oficial: a ideia de

fraternidade iberista, em especial as relações entre Portugal e a Galiza. Esta

"obsessão pela fronteira" não podia consentir um exercício como o que CSE

propunha: um diálogo entre as diferentes culturas peninsulares, caminho que se

iniciava desde a ponte comum que oferecem Portugal e a Galiza. As marcas dos

censores chegam a riscar frases como "A Saudade – eis o sentimento que abrange

Portugal e Galiza numa só identidade" (CSE: 85). Qualquer menção à unidade

cultural, linguística ou "sentimental" será banida. Mais ainda se encerra críticas

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

117

ao desconhecimento que, desde Portugal, se tinha dos vizinhos do norte, como

neste texto de Castelao, pertencente ao seu livro Sempre en Galiza:

Os visitantes universitários de Além-Minho esmeravam-se em falar-nos

um castelhano risível e jamais deixaram um só livro português à venda

nas nosas livrarías. Achavam natural que os galegos só pudessem mercar

obras portuguesas traduzidas infamemente em castelhano, porque não

sabiam que podíamos le-las no idioma de origem. Lembro-me que no ano

de 1906 fui eu a Coimbra numa tuna académica e os estudantes lusitanos

assanharam-se quando lhes falava em galego, como se isso lhes lembrasse

qualquer origem bastarda. Não lhes importava que juntos, numa unidade

superior às contingências políticas, tivéssemos criado movimentos

literários, que são marcos da civilização ocidental, numa língua que eles

depuraram e agigantáram mas que nós soubemos manter na pureza e no

estado eminentemente popular daquela literatura. Para eles a Galiza

estava no Norte embrulhada em nevoeiros e chuvas (...)

e os estudantes portugueses trauteavam zarzuelas madrilenas e sonhavam

com amores sevilhanos (CSE: 42)

A censura mantém-se, é claro, quando no exemplo de comunidade

acrescenta-se ao resto dos povos da península, primeiro por centrifugação na

Espanha: "Os senhores reaccionários pretendem renovar os sonhos imperialistas

da monarquia absoluta (...) E por muito que digam, são os únicos separatistas

que conhecemos. Foram-no de Portugal, são-no da Catalunha e sê-lo-ão de

Euzkadi e de Galiza." (CSE: 138) e depois, numa clara declaração, na adscrição

à corrente iberista feita pelo próprio Castelao:

Eu acredito numa Confederação Ibérica, numa Republica Federada

com autonomia para todos os seus povos, respeitando todas as

liberdades políticas e as ideossincrasias nacionais. Até chego a pensar

que a Galiza pode ser o ponto de partida para o diálogo que poderá

levar a essa tão desejada União entre Portugal e Espanha (CSE: 57)

Este ideal iberista como panaceia aos problemas nacionais da Espanha e

configuração ideal da península era contrário aos interesses do Estado Novo, e do

governo vizinho, motivo pelo qual os censores retiraram qualquer referência às

fronteiras estabelecidas e qualquer proposta de reconfiguração política. Todo

CSE fora ideado por Salvat como um "produto iberista", desde a escolha da

temática e da personagem central, Castelao, até a adscrição do texto dramático a

um campo literário antologiado de caráter ibérico. Não surpreende que esta

abordagem tenha incomodado um Estado Novo que se afirmava "orgulhosamente

só" e que acabou por proibir o espetáculo. Poderíamos dizer de CSE e do seu

diálogo abortado o mesmo que no texto dramático se fala da figura de Castelao:

A Galiza e Portugal perdem nele uma das mais perfeitas e genuínas

expressões da sua alma comum. Flor do espírito tão alta e pura, não

podia vingar em plena tempestade de violência. O seu destino, que era o

de unir fraternalmente, malogrou-se na Terra e na Era de Caím. (CSE:

186).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

118

Conclusões e futuros passos

A análise das marcas da censura e a comparação das datas da

correspondência entre SNI e CITAC desbota a ideia de ser a Crise Académica a

causante da censura de CSE. Rejeitado antes do incidente no Edifício das

Matemáticas, o espetáculo proposto por Salvat e o CITAC incomodava as

autoridades de diversas formas, devido ao seu caráter antibelicista, de defessa dos

valores democráticos e solidários com os mais desfavorecidos. A assunção de um

novo campo, o ibérico, e, dentro dele, o consciente posicionamento na periferia

eram motivos suficientes para que a peça fosse terminantemente proibida, embora

o país vivesse num período de abertura no qual a censura relaxava a sua pressão

sobre o teatro.

CSE incorre em praticamente todas as temáticas que os censores vigiam10,

destacando as que se referem à guerra, as questões de caráter social e político, as

estéticas ou as que punham em questão a ideia do país defendida pelo Estado

Novo. Especialmente contrária à visão de Portugal que o governo impunha,

através da propaganda e a censura, são as intenções iberistas de CSE, que nascem

do reconhecimento da afinidade cultural entre o território ao norte e ao sul do

Minho e levam a propor uma nova perspetiva dos territórios da Península Ibérica,

organizados em culturas e não em estados.

No sentido de esclarecer o acontecido com CSE, é necessário completar a

análise das marcas da censura no texto com os livros de atas da Comissão de

Censura, para sabermos qual foi a opinião direta que a Censura manteve sobre

CSE. Sendo que a comissão reunia-se aproximadamente uma vez por semana, é

muito provável que CSE fosse discutido nalguma das sessões. Com esta

informação, junto com o estudo do trabalho do censor, teremos as chaves para

entendermos o acontecido com CSE.

Outra das linhas de pesquisa que se abrem é a relação em comum de CSE

com as diferentes correntes iberistas que se iniciaram em Portugal e na Espanha

(seja partindo de uma perspetiva centralista ou periférica) desde o século XVIII

até os nossos dias.

Documentos

[Salvat, Ricard] Castelao e a sua época: PIDE/DGS, SNI, Processo 1/8868.

Bibliografia

Abreu, Miriele (2013), A censura portuguesa à Companhia Maria Della Costa:

aprovações e reprovações. Cabrera, A. (coord.), Censura Nunca Mais. Lisboa:

Alêtheia Editores.

10 Das nomeadas, unicamente não se trata nestas páginas a moral, pois apesar de aparecer

em CSE, a sua incidência é lateral, como quando se comenta que as mulheres de alta

sociedade, depois de verem as revistas no teatro, deviam ir falar com o confessor.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

119

Cabrera, Ana (2008), A censura ao teatro no período marcelista, Revista Media

& Jornalismo 12: 27-58.

Cabrera, Ana (2013), Censura e estratégias censurantes na sociedade

contemporânea. Cabrera, A. (coord.), Censura Nunca Mais. Lisboa: Alêtheia

Editores.

Iglesias Mira, Antonio (2011), Castelao e a sua época na Coimbra de 1969.

Dissertação de Mestrado apresentrada na Universidade do Algarve.

Raposo, Eduardo M. (2000), Cantores de Abril. Lisboa: Ed. Colibrí.

Oliveira Barata, José (2009), Máscaras da Utopia: História do Teatro

Universitário em Portugal 1938/1974. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Santos, Graça dos (2008), "Política do espírito": o bom gosto obrigatório para

embeleçar a realidade, Revista Media & Jornalismo 12: 59-72.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

120

Tartufos: Acção e Reacção

Isabel Maria Alves Sousa Pinto

[email protected]

Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Universidade Católica

Portuguesa (CECC)

Resumo - Este trabalho visa discutir a relevância sociocultural da comédia

Tartuffe ou l’ Imposteur, de Molière, na segunda metade do século XVIII, em

Portugal. A recepção deste texto, respectivas traduções e adaptações,

nomeadamente no que concerne o protagonista Tartufo, primeiro pela Censura e

depois pela sociedade em geral, é enquadrada por circunstâncias políticas e

sociais determinantes, como a acção governativa do Marquês de Pombal; o

terramoto em Lisboa, em Novembro de 1755; a expulsão dos jesuítas de território

nacional e a emergência de valores reformadores na cultura. O intervalo de tempo

em análise vai de 1768 a 1832, procedendo-se ao levantamento de títulos e

documentação afim relacionado com a implementação em Portugal de um

posicionamento colectivo e identitário anti-Tartufo.

Palavras-chave: Molière | Tartufo | censura | Portugal | século XVIII.

Introdução

A recepção de Tartuffe ou l’ Imposteur, de Molière, em Portugal,

nomeadamente a sua primeira representação em 1768, no Teatro do Bairro Alto,

é conotada com o esconjuro de inimigos do Marquês de Pombal (Martins, 1974:

574; 1982: 294-295; Ciccia, 2003: 170), o que pode, em parte, explicar a licença

concedida pela Real Mesa Censória. A figuração jesuítica de Tartufo nesse

espectáculo, após a expulsão da ordem de Portugal, em 1759, por obra e

persistência do conde de Oeiras, predispõe à acção reformadora que o marquês,

sempre com inegável denodo, encetava também na vertente moral. Neste sentido,

devem ser lidas as palavras de Ricardo Raimundo Nogueira, acerca da obra de

Molière, numa das suas cartas, a primeira, sobre o restabelecimento do teatro do

Porto:

Nós temos um grande número de comédias que nos pintam com vivíssimas

cores o horror do vício e a formosura da virtude. O incomparável Molière,

no século passado, e, no presente, o célebre veneziano Carlos Goldoni,

publicaram muitas peças cheias de sentimentos de virtude, de honra e de

probidade. Quem poderá ver representar O Avarento, sem que se persuada

que a avareza é um vício detestável? O Tartufo, sem que aborreça a

hipocrisia? (Nogueira, 1778: 4).

Este testemunho a favor da acentuada conotação moral da figura de Tartufo

interessa-nos, de sobremaneira, dado que é proferido por uma personalidade

coeva dos espectáculos e dos textos aqui em estudo, que se classifica,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

121

adicionalmente como homem culto, tendo desempenhado vários cargos

institucionais, desde deputado da Junta da Fazenda da Universidade até reitor do

Real Colégio dos Nobres.

A convergência da obra de Molière com a de Carlo Goldoni é igualmente

preconizada por Costa Miranda (1974: 52), que, para o efeito, se centra numa

acepção de cultura associada à “dignidade do espectáculo teatral”:

Mas, não menos me ajuda a insistir em uma aproximação que antes só

quase ousei insinuar: a de que os homens cultos do tempo, interessados na

dignidade do espectáculo teatral e confiantes na sua reforma, elegessem

Molière e Goldoni, simultaneamente, como os modelos a seguir para a

renovação da comédia em língua portuguesa.

Costa Miranda elege, assim, a obra dos dois autores como matéria de

eleição para um grupo de intelectuais, no qual se incluía o já citado Ricardo

Raimundo Nogueira, que aspiravam à reforma do teatro nacional, que, assim,

excederia os dramas para mero divertimento:

Bem sei que os dramas que se representam em muitos teatros são

inteiramente tecidos de lances de amor, e alguns deles cheios de equívocos

indecentes, e representados por actores que, para conseguirem o aplauso

da plebe, se esquecem muitas vezes das regras do decoro e do respeito que

se deve ao público, pondo de sua cara mil visagens ridículas, e mil

expressões grosseiras e indecorosas. Quando os espectáculos são deste

género, ninguém pode negar que eles mais servem de corromper os

costumes, e de estragar os corações da gente moça, do que de lhes fazerem

algum bem (Nogueira, 1778: 3).

A segunda metade do século XVIII, a partir do terramoto de 1755, é

dominada pela discussão em torno da necessidade de o teatro se sujeitar a uma

reforma moral, com a Arcádia Lusitana, criada em 1756, a dar o mote. Da lavra

dos árcades, chegam-nos textos teóricos que reflectem o ensejo de repensar os

géneros teatrais, à luz dos ensinamentos da Antiguidade Clássica: Dissertação

primeira e segunda sobre o carácter da tragédia (1757/1778), de Pedro Correia

Garção; Discurso primeiro e segundo sobre a comédia (1758/1804-1810), de

Manuel de Figueiredo; Dissertação sobre a tragédia (1767), de Miguel Tibério

Pedegache Brandão e Ivo. O teatro, nomeadamente a tragédia e a comédia,

deveria cumprir preceitos educativos, que orientassem moralmente a jovem

mocidade.

É neste contexto que Molière atinge notável difusão enquanto garante de

valia moral e prestígio cultural, ao prestar-se ao processo de (re)construção de

uma sociedade que, após o cataclismo, procurava a renovação a todos os níveis.

Tartufo faz parte dessa iniciativa mais vasta em prol de uma sociedade reforçada

e de uma cultura reavaliada, no âmbito da qual a política do Marquês de Pombal

e, em particular, a remodelação da censura, com a criação da Real Mesa Censória,

em 1768, desempenha papel decisivo. No âmbito do nexo entre a difusão da obra

de Molière e o aparecimento deste último organismo, pode ler-se:

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

122

À partir de 1756 l’Arcádia lusitana reconnaît ou laisse proclamer le génie

de Molière, mais s’abstient d’introduire son théâtre au Portugal. Seule la

reforme de la censure (1768) lui en a ouvert la porte. On commença par

Tartuffe que l’on tourna contre la Compagnie de Jésus et contre la

Jacobeia. En tout, quinze comédies de Molière, au moins, furent traduites

dans la première décennie de la Real Mesa Censória, qui va jusqu’à la

mort du roi, et à la chute du marquis de Pombal (Coimbra Martins, 1983:

198-199).

As iniciativas do governante contra a Companhia de Jesus devem também

ser interpretadas à luz da recusa da sacralização do terramoto, ou seja, da

atribuição da sua origem a causas sobrenaturais, e, simultaneamente, da defesa

de uma eficiente e ágil resposta por parte do poder político (Lima, 2008: 18).

Urgia desmascarar falsos credos, expor tibiezas, erradicar equívocos. A figuração

jesuítica do Tartufo é um culminar desse esforço:

Le théâtre de qualité de Molière est certes une école des moeurs, pour peu

qu’il soit adapte au contexte portugais, mais en outre il touche à des sujets

qui, habilement détournés, servent les vues pombalines en matière

gouvernementale. C’est essentiellement cette perspective qui, à mon avis,

motive les efforts faits en faveur du dramaturge et surtout de sa comédie

Tartuffe, qui devient un réquisitoire anti-jésuitique, l’adptateur ayant fait

du personnage principal un membre hypocrite de la Compagnie de Jésus

(Ciccia, 2003: 170).

[O teatro de qualidade de Molière é certamente uma escola de maneiras,

por pouco que se mostre adaptado ao contexto português, mas, em

contrapartida, visa os indivíduos que, convenientemente distanciados,

serviam os propósitos governamentais pombalinos. É, no essencial, essa

ordem de coisas que, na minha opinião, justifica os esforços desenvolvidos

em torno do dramaturgo e, sobretudo, da sua comédia Tartuffe, que se

torna um requisitório anti-jesuítico, pelo trabalho do tradutor, que faz da

personagem principal um membro hipócrita da Companhia de Jesus.]

A publicação do texto traduzido por Manuel de Sousa, que antecedeu a

respectiva representação, apresenta particularidades que resgatam a ligação

inextrincável de O Tartufo à censura, ao integrar a tradução dos três

requerimentos de Molière “a sua majestade”, para receber “licença”, o que

Molière só lograria em 1669. Este estudo não pretende versar sobre a recepção

de toda a obra de Molière em Portugal, mas sim, mais especificamente, associar

um contexto sociocultural determinado, aquele que prevalecia nos anos seguintes

ao terramoto de 1755, ao impacto que a personagem Tartufo teve junto de

censores e demais gente. Para tal, é necessário proceder a uma análise dos textos

de teatro que recuperam a dita figura, hipócrita, malévola e falsamente devota,

entre 1768, ano da sua primeira impressão e representação, e 1832, quando

ocorreu a extinção da censura. Esta análise implica igualmente uma colecção

actualizada de documentos legais relativos à actividade censória, com duas

finalidades de escopo distinto: 1) identificar variações na personagem de Tartufo,

considerando traduções e adaptações, num dado período da sua difusão em

Portugal (de 1768 até 1832); 2) lobrigar uma perspectiva geral de como essa obra

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

123

de Molière foi historicamente recebida pela censura portuguesa, discriminando

circunstâncias socioculturais relativas à sua recepção.

Tartufos e censura

A censura e o teatro têm uma longa história em comum. Desde o

estabelecimento da Inquisição em Portugal em 1536, o teatro foi sempre matéria

de predicação para censores zelosos. Primeiras evidências podem ser encontradas

na acção censória que recaiu sobre a compilação de 1562 das obras de Gil Vicente

ou na lista de obras proibidas que compõem os índices expurgatórios de 1551,

1564, 1581 e 1624, em que figuram inúmeros textos ligados à prática teatral. No

Índice de 1581 o teatro é explicitamente visado (Rêgo, 1982: 67):

No Catálogo de 1581, sem se aludir a Gil Vicente, entra-se a fundo na

literatura dramática: “Comédias, tragédias, farsas, autos, onde entram

por figuras pessoas eclesiásticas, e se representa algum sacramento, ou

acto sacramental, ou se reprende, e pragueja das pessoas que frequentam

os sacramentos e os templos, ou se faz injúria a alguma ordem, ou estado

aprovado pela Igreja” entram no rol dos livros proibidos.

Em Carreira (1988: 31-111) é feita uma síntese dos principais organismos

tutelares da censura em voga em Portugal, desde o século XVI até ao final do

século XVIII. Não esquecendo que o âmbito cronológico aí em foco é a segunda

metade do século XVIII, o autor destaca dois momentos decisivos, de diferente

ordem, nessa panorâmica histórica: 1) criação da Real Mesa Censória em 1768;

2) a morte de D. José I em 1777, e consequente afastamento do Marquês de

Pombal do governo: “Parece-nos contudo não restarem dúvidas que se seguiu à

morte de D. José um longo período indefinição de política censorial, de ausência

de directrizes” (74). Neste estudo, os censores são, sobretudo, analisados

enquanto agentes primaciais de repressão e omnipotência. Não obstante,

Francisco Xavier de Oliveira, um censor que também mencionaremos mais à

frente, recebe o seguinte comentário: “Francisco Xavier de Oliveira é fértil em

imaginação e luzes literárias. Não perde nenhuma oportunidade para exercer os

seus talentos, num tom por vezes entre o agressivo, o irónico e o cómico” (105-

106). Este breve reparo deixa-nos alerta para a importante abordagem do trabalho

dos censores no âmbito da leitura, o que entreabre espaço para modos de ler e

adjacentes subjectividades:

Os censores são, portanto, leitores especiais, pois liam incessantemente –

eram poucos e tinham de ler todos os livros a serem publicados e todos os

que se pretendia pôr em circulação – e repetidas vezes. Liam não somente

obras consagradas e bem avaliadas, mas, sobretudo, textos que tinham em

baixa conta ou que eram até mesmo proibidos de circular. Liam de forma

especial, já que não deviam se deixar levar pelo enredo ou pela beleza do

texto, tendo que se manterem sempre atentos a qualquer possível erro.

Diferentemente dos leitores comuns, tinham que escrever sobre sua

leitura, anotando, em seus pareceres, suas opiniões sobre a obra e suas

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

124

impressões de leitura, produzindo registros minuciosos de sua relação

com livros (Abreu, 2007: 94).

A esta especificidade do exercício de leitura censório, junta-se o facto,

relevante para o aprofundamento da relação entre censura e teatro, de, por

circunstâncias várias, entre as quais não será de somenos a exiguidade do número

de censores face ao dilatado caudal de requerimentos, o exame dos textos de

teatro, a serem publicados e/ou representados, recair sobre um grupo clausus de

censores: Fr. Joaquim de Santa Ana e Silva; António Pereira de Figueiredo; Fr.

António de Santa Marta Lobo da Cunha; João Guilherme Cristiano Muller e

Francisco Xavier de Oliveira. Isto não exclui que os mesmos não se vissem a

braços com o exame de outras obras que não as de teatro.

De seguida, apresentamos a ordenação cronológica dos textos impressos

e/ou representados, traduções/adaptações, ou meramente inspirados em Tartuffe,

mas em que surge regularmente uma personagem desvirtuada pela hipocrisia, a

despeito das grandes qualidades de espírito que consegue aparentar, em Portugal:

1768 Tartufo ou O Hipócrita, Lisboa: na oficina de José da Silva Nazaré;

representação no Teatro do Bairro Alto.

1770 A Ambição dos Tartufos Invadida, Lisboa: na oficina de José da Silva

Nazaré; requerimento para a representação de O Molière no Teatro do Bairro

Alto, que obteve licença a 25 de Junho.

O Hipócrita, manuscrito de uma comédia, alvo de parecer desfavorável para

impressão a 2 de Dezembro.

1774 A Beata Fingida, Lisboa: na oficina de Francisco Sabino dos Santos; recebe

da Real Mesa Censória indicação de supressão a 6 de Agosto de 1773.

1782 Comédia Intitulada Molière ou Segunda Parte de Tartufo, cópia de António

José de Oliveira, de Dezembro desse ano.

1788 Comédia Tartufo ou Hipócrita, cópia de António José de Oliveira, de

Setembro desse ano.

1796 O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado Hipócrita, cópia

incompleta de António José de Oliveira.

1804 A Hipócrita (entremez) in Aventuras galantes de dois fidalgos…

Parecer favorável a 18 de Dezembro de 1804 por Francisco Xavier de Oliveira

1825 O Beato Ardiloso, farsa da autoria de José Joaquim Bordalo, publicada em

Lisboa: na Imprensa da Rua dos Fanqueiros.

s.d. Hipocrisia castigada – drama

Censor: Manuel Correia da Fonseca

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

125

Começamos pelo fim, reportando-nos à mera notícia, recolhida num

ficheiro de pesquisa manual na Torre do Tombo, mencionada aqui a título de

achega para futuras investigações, de um drama, intitulado Hipocrisia Castigada,

acerca do qual o censor régio Manuel Correia da Fonseca terá emitido um parecer,

não sabemos se favorável ou desfavorável, em resposta a um requerimento para

impressão. Pouco mais nos oferece também dizer sobre A Hipócrita, que figura

num requerimento de 26 de Novembro de João Henriques, livreiro e mercador de

livros, para imprimir três obras. Este requerimento obtém parecer favorável do

censor Francisco Xavier de Oliveira, a 18 de Dezembro de 1804, porquanto o

mesmo declara “Ora assim na novela, como nas tais poesias, nada achei contra o

serviço de V. A. R. e leis do reino”.

Como o capitão Manuel de Sousa assinala, a sua tradução, publicada em

1768, ano que, como já referimos, também marca o início da Real Mesa Censória,

embora bastante fiel ao original no restante, introduz “mudanças no contexto”,

cuja linha de força é sobrepor tartufos e jesuítas, por forma a dar “maior viveza

ao retrato”:

Fizemos outrossim algumas mudanças no contexto dela, mas estas não

desfiguram a substância, antes dão maior viveza ao retrato. E como os

primeiros estragadores da Moral foram aqueles perversos, só bem

conhecidos quando desterrados, porque só então se desabafaram os

ânimos que eles tinham sufocados, faz a primeira personagem um membro

daquela Companhia, porque nos pareceu bem que aqueles que os imitam

nas máximas e manhas ruins vejam de que fontes beberam tão maus

costumes, e nos seus Autores zombada a fraude, os momos e hipocrisia; e

comecem a saborear-se dos seus frutos e a provar d’antemão o merecido

castigo que seus Mestres já experimentaram (Sousa, 1768: III-IV).

A personagem de Tartufo é representada pelo actor cómico Pedro António

enquanto membro da Companhia de Jesus. O jesuíta é, portanto, eleito para

figurar a hipocrisia, nas suas múltiplas vertentes, desencorajando eventuais

sequazes das suas “máximas e manhas ruins”. É claro que a este propósito, tal

como Manuel de Sousa, não poderíamos deixar de invocar o decisivo

acontecimento histórico da expulsão dos jesuítas de Portugal, levada a cabo pelo

Marquês de Pombal. Em 1759, é publicado o decreto que formaliza a ordem de

expulsão. O padre Gabriel Malagrida, autor de uma reflexão sobre as causas do

terramoto, Juízo da verdadeira causa do terremoto, que padeceu a Corte de

Lisboa no primeiro de Novembro de 1755, publicada em 1756, em que afirmava

que a causa do cataclismo remontava à ira divina, suscitada pelos muitos pecados

da corte de Lisboa, foi publicamente supliciado em Lisboa, a 21 de Setembro de

1761. Estas medidas surgem envoltas num sentimento anti-jesuítico, que o

Marquês de Pombal incansavelmente exemplificou.

Ao determo-nos nos textos e documentos que compõem a cronologia

acima, reparamos que a conotação de Tartufo com uma figura religiosa,

nomeadamente jesuíta, e exprimindo uma falsa vivência da fé encontra eco e

ressonância até 1796, na comédia O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O

Disfarçado Hipócrita, pois aí perdura a referência a um padre, não explicitamente

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

126

jesuíta, diga-se, que está muito mais interessado em namorar do que em difundir

a fé.

A nova contextualização introduzida pelo capitão Manuel de Sousa induz

sequela, o que vem a concretizar-se na criação de Leonardo José Pimenta e Antas,

o entremez A Ambição dos Tartufos Invadida, publicado em 1770, pelo impressor

da Real Mesa Censória, António Rodrigues Galhardo. Neste texto mantém-se a

celerada qualificação dos jesuítas como tartufos. Desde as falas iniciais, assume-

se a natureza perniciosa da Companhia: “Eufrásia: Jesuítas, senhor, não são

visões,/ é péssimo cardume de homens vivos,/soberbos, ambiciosos, vingativos”

(1).

O enredo do entremez é simples: Remígio, tio de Eufrásia e amo de

Rasquete, pretende rir-se à custa daqueles que, pela hipocrisia, se aproveitam de

tudo e de todos, os jesuítas. Para tal, envia o seu criado em busca de um padre

jesuíta, que o venha assistir à cabeceira da sua cama, onde jaz enfermo, na

redacção das suas disposições finais, ou seja, a redigir um testamento, no qual

legava todos os seus bens à dita Companhia. O padre aparece, acompanhado de

um leigo. Mas Remígio, que perante o padre se faz passar por mineiro, que

verosimilmente acumulou dinheiro e bens nas suas andanças pela colónia

americana não possui nada digno de nota ou de registo. O equívoco vai-se

desenrolando com Remígio aparentando funesta maleita, discriminando um rol

de bens, para os quais o dito padre vai assegurando a Companhia como o mais

bento dos destinatários. A certa altura, Remígio dá a entender que nada tem de

seu e o padre reage, esclarecendo que não pode dar o que não lhe pertence. A isto

retorque Remígio, com ardil e subtileza, ao lembrar o padre de que não está a

“dar” o que não é seu, apenas a “deixar”. No final do entremez, o padre é expulso

da casa de Remígio, com duras invectivas e apóstrofes. O efeito do entremez é

cómico, incluindo-se numa tradição de crítica de costumes, que, neste caso,

incide sobretudo mas não em exclusivo sobre a Companhia, pois, adicionalmente,

também a relação entre amo e senhor e a caracterização da mulher estimulam uma

leitura social da intriga.

Este texto logrou, em nosso entender, naturalmente a aprovação da Real

Mesa Censória, o que se explica por três ordens de factores: 1) a impressão tinha

a chancela de António Rodrigues Galhardo, que explicita e recorrentemente se

intitulava “impressor da Real Mesa Censória”; cerca de dez anos antes, o poder

régio, na figura do Marquês de Pombal, tinha encetado uma luta sem tréguas

contra os jesuítas, os inimigos do reino de Portugal, por excelência; a ideologia

política e social do entremez coincide com a do poder régio; o autor, Leonardo

José de Pimenta e Antas, mestre de escrever, sabia, pois, como a própria

expressão qualificativa indica, escrever, ou seja, detém estilo escorreito e fluente

na arte do diálogo; logo, o texto estava a salvo dos horríveis atentados à nacional

literatura que os censores amiúde rasuravam nos textos sujeitos à sua apreciação.

Em relação à comédia manuscrita de cinco actos O Hipócrita, inédita até

hoje, também de 1770, a intriga desenrola-se no seio de uma família, constituída

por Teodósio, pai, e quatro filhos: Justino, hipócrita; Florindo, jogador; Roberto,

poeta insone; e Ambrósio, que só pensa em satisfazer as necessidades do

estômago. Anselmo, mercante, amigo de Teodósio, confronta-o com o

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

127

desregramento do seu lar, ao que Teodósio contrapõe que Justino não deve ser

incluído nas críticas, pois é um modelo de filho, em que deposita todas as

expectativas. Na verdade, Justino desempenha perante o pai o papel de grande

devoto, sempre imerso em oração e à margem de todos os pecados. De modo

esperado, o desfecho da intriga coincide com o desmascaramento de Justino,

acerca do qual fica evidente que os verdadeiros intentos eram outros: roubar o pai

para conseguir um avultado dote para casar com Genoveva, a jovem com quem

mantinha encontros regulares a cada noite. Ao reconhecer o verdadeiro Justino,

Teodósio entrega o governo da casa a Anselmo, que determina emenda e

moralização: Florindo vai corrigir-se, abandonando o vício do jogo; Roberto

regressa a Coimbra, onde prosseguirá os estudos; Ambrósio deve providenciar

modo de sustentar o seu desmesurado apetite; e, por último, Justino tem ida

assegurada para o desterro, a Índia.

O veredicto negativo que a Real Mesa Censória consigna a este manuscrito

deriva, em nossa opinião, e na falta do correspondente parecer, do facto de, para

além de o hipócrita ser desmascarado, não há mais nenhuma lição conclusiva a

reter do seu desfecho, ou seja, mesmo após a anulação da figura do hipócrita, o

futuro dos filhos de Teodósio permanece incerto, pois, por exemplo, Roberto, o

poetastro, mesmo nos momentos derradeiros, dá-nos conta da sua intenção, de

escrever um romance dedicado a Anselmo e uma sátira a Justino, mal chegue a

Coimbra. Fica, assim, em aberto o devir dos três filhos, eventualmente

reincidentes nos caminhos de excesso e alheamento em relação aos bons

costumes. Acresce a isto, a existência na peça de uma cena de jogo, em que

participa uma mulher, Dona Rita, sobrinha de Teodósio e prima dos mariolas, o

que também não deve ter colhido as preferências dos censores. Bem podemos

dizer que neste caso nem a estratégia “tartufiana” foi suficiente para obter a

desejada licença.

N’A Beata Fingida, de 1774, igualmente uma comédia em cinco actos,

temos novo enredo familiar, com Ambrósio, em vez de Teodósio, a presidir.

Também os elementos deste agregado familiar são dados a excessos, que montam

a grandes custos. Quer Margarida, sua mulher, quer Timóteo, seu filho, levam

vida mundana e observam meticulosamente os ditames da moda. Por contraste,

Genoveva, aos olhos de seu pai é santa, da qual quase se espera a canonização, o

que, de modo análogo, valia para Justino no texto anterior. No entanto, Genoveva,

que de santa até tem o nome, na primeira fala que a traz a cena explica-se com

todas as letras, pondo ao vento os pensamentos: para fugir a um casamento

indesejado, resolveu incorporar o disfarce da beata, sempre devota, imersa em

altos desígnios; espera que o pai morra a breve trecho, por forma a poder casar

com Fernando, seu amante, a quem sustenta com as moedas que o pai acede a

dar-lhe em benefício das providenciais missas que, supostamente, manda rezar

com toda a regularidade.

Embora, no final Genoveva seja também ela desmascarada e Timóteo

receba castigo pela vida desassisada em que incorria, parece-nos que o motivo da

indicação da sua supressão pela Real Mesa Censória remonta a “fortes” questões

do género: através da impressão seria divulgado o retrato amoral de uma jovem

mulher, o que causaria “forte” impressão aquando da recepção do texto, em

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

128

particular, pelo sector feminino da sociedade. Em termos de valores e conduta, à

época era muito mais esperável e, até admissível, que ao homem, e nunca à

mulher, pudesse caber uma série de óbices e desvios. Todavia, apesar do parecer

negativo, datado de 6 de Agosto de 1773, a comédia logra a sua primeira

impressão em 1774, sendo, posteriormente, reimpressa (1789, 1808 e 1840), com

a necessária chancela da Real Mesa Censória na folha de rosto. Na falta de mais

dados, podemos conjecturar que entre Agosto de 1773 e 1774, a comédia tenha

sido novamente submetida para apreciação e que, fazendo jus à sua condição de

leitores, já atrás enunciada, diferentes censores tenham recolhido do contacto com

o texto outro veredicto. Devemos ainda referir que n’ A Beata Fingida há uma

fala de Faustina, a criada, que não resistimos a citar, porquanto recupera de modo

directo e literal a figura de Tartufo de Molière:

FAUSTINA: Senhor, depois que estive servindo em uma casa, na qual

havia um beato chamado Tartufo, cujo dava demonstrações de santo,

sempre com os olhos no chão, andando com passadas vagarosas, com as

contas na cintura; a qualquer desprezo que lhe faziam, ele chorando dizia

“seja, seja, por amor de Deus”; e, enfim, foi tão diabo que até quis…

Porém, melhor é calar. Vendo aquele, já não me fio, nem de beatos nem

de beatas, e tenho dito (6-7).

Molière ou Segunda Parte de Tartufo, cópia de António José de Oliveira,

de Dezembro de 1782, é tradução de Il Molière, comédia de Carlo Goldoni, em

cinco actos, com primeira representação, em 1751, em Turim. O texto centra-se

na reconstituição de uma parte da vida do comediógrafo francês, fazendo

sobressair o seu enleio amoroso com a enteada e a luta travada contra certas

pessoas, supostamente de bem e de fé, i.e., tartufos, que evitavam a todo o custo,

enovelando-a em difamação, ver-se retratadas na sua comédia Tartuffe ou

l’Imposteur. A história da primeira representação da comédia enquadra quer o

plano biográfico do conflicto vivido por Molière, que teve de ultrapassar

obstáculos vários para conseguir que a comédia chegasse à cena, quer o plano do

funcionamento colectivo de uma companhia de teatro, que subsiste da sua arte e

que, como tal, se vê impelida para cena. A comédia de Molière demandou do seu

autor um brio recalcitrante para conseguir ser representada, com requerimentos a

sua Majestade, Luís XIV, apelando de desditas censórias, que sucessivamente a

foram arredando dos palcos franceses. A abordagem de temas como a relação do

actor com o seu público, as expectativas do público face a um espectáculo teatral,

a posição do autor entre a sua criação e a necessidade de viver da sua arte, convém

à intriga uma tessitura “de teatro no teatro”.

A tradução, cujo autor se desconhece, deixa perceber a preocupação em

seguir de perto, tanto a nível de construção frásica como de léxico, o original

italiano, o que, por vezes, resulta num arrevesamento da sintaxe portuguesa.

Acerca deste testemunho manuscrito, Ciccia (2003: 520-521) destacou

igualmente a temática centrada em Molière, e na sua vida, e a difícil sintaxe.

Este título, pois não há certeza de ter sido esta a tradução lida pelos

censores, de que, até ao momento, não se conhece nenhuma impressão, obtém

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

129

parecer favorável, a par com A Mulher de Garbo ou Juízo, também de Goldoni,

para representação, de três censores a 25 de Junho de 1770:

As duas comédias intituladas O Molière, A Mulher de Garbo ou Juízo

reconhecem por seu autor o doutor Carlos Goldoni. Acham-se vertidas em

o idioma português e pretendem os empresários do Teatro do Bairro Alto

expô-las ao público no mesmo teatro. Eu as julgo muito dignas e que se

lhe deve conceder a licença que pedem.

Foram do mesmo parecer os deputados adjuntos.

Lisboa, em Mesa 25 de Junho de 1770

Frei Joaquim de Santa Ana

Frei João Baptista de São Caetano

Frei Manuel da Ressurreição

Esta boa recepção por parte da censura encontra, em nosso entender,

explicação, mais uma vez, em factores de natureza heterogénea: a) a censura era

sensível aos grandes nomes da arte europeia; Molière era um clássico, um autor

conceituado, que merecia ser traduzido; b) o cunho invariavelmente moralista da

figura de Tartufo, que assenta no valor absoluto da verdade e na defesa da sua

função reguladora; c) o rigor da tradução, no caso de coincidir com o texto

copiado por António José de Oliveira, que se mantinha bastante fiel ao original

italiano, o que era valorizado pelos censores que tinham incluído na lista de

incumbências o zelo pela nacional literatura.

O fólio 300 de Contas do Princípio do Teatro da Casa da Ópera do Bairro

Alto informa-nos de que a despesa relativa a “cópia e partes da comédia intitulada

O Molière” foi lançada na despesa de Junho de 1770 e ascendeu a 2040 réis. Estes

dados interessam-nos, à falta de outros mais concretos e detalhados, enquanto

indicadores de que a comédia foi, de facto, representada, como a licença

concedida deixava antever.

Seis anos depois, ou seja, em 1788, António José de Oliveira conclui uma

cópia de Tartufo ou Hipócrita, a tradução do capitão Manuel de Sousa já

anteriormente referida. Portanto, volvidos 20 anos sobre a sua impressão e

representação. A cópia manuscrita apresenta escassas variantes menores em

relação à lição impressa, não integrando nenhum dos textos introdutórios da

publicação (“Advertência”, “Prefação” e requerimentos de Molière a sua

Majestade, Luís XIV) nem explicitando o nome do tradutor. À partida, a

pertinência e a função de uma cópia manuscrita, passadas duas décadas da

primeira publicação do texto, poderiam suscitar dúvidas. Todavia, como vimos

desenvolvendo aqui, a figura de Tartufo gozou de tão acentuado êxito e vigor ao

longo de toda a segunda metade do século XVIII que justifica a multiplicação de

testemunhos, quer impressos quer manuscritos. É, aliás, expectável que, face a

tal impacto, Tartufo não se limitasse ao circuito do impresso, mas fizesse percurso

semelhante pela via do manuscrito, por forma a responder à demanda do público

leitor.

Em O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado Hipócrita,

comédia incompleta também copiada por António José de Oliveira em 1796, cujo

autor é surpreendentemente referenciado como “familiar oculista”, deparamos

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

130

com novo enredo familiar, em que figuram Marsília, casada a contragosto com

Arsénio, “cândido consorte”, por intervenção de Dorindo, “familiar da casa”, de

quem Marsília procura desforra pela afronta que considera ser o seu casamento

com um homem mais velho. Tartufo, “amigo aparente de Arsénio”, é um jovem

padre, que tem a seu cargo as missas da família, mas, em lugar da oração, é aos

prazeres da vida que parece consignar maior desvelo, sucumbindo, a cada

instante, aos apelos do sexo oposto. E, se por um lado, dona Antonina, na cena

de abertura da comédia, lhe louva a “compostura dos olhos” no altar, durante a

missa, “porque do chão nunca os tira” (fol. 4v), por outro, ao longo de toda a

acção, temos oportunidade de o ver esconder uma viola debaixo do capote,

lisonjear dona Antonina e seduzir Marsília, jogar às cartas, etc. Sobre este texto,

Ciccia (2003: 533) mormente defende a sua relevância para se traçar a evolução

da personagem de Tartufo:

Cette pièce n’a d’autre intérêt que son rapport avec Tartuffe car elle

permet de voir l’évolution du personage au fil des ans. Tartufo ne porte

bien son nom que si l’on s’attache à sa caractéristique d’hypocrite et de

perfide concupiscent. Mais il a perdu sa spécificité de faux dévot.

[Esta peça não tem outro interesse a não ser a sua ligação com Tartuffe,

pois permite traçar a evolução da personagem ao longo dos anos. Tartufo

não faz jus ao nome, senão pela sua hipocrisia e pérfida concupiscência.

Mas ele perdeu a sua especificidade de falso devoto.]

Colocamos algumas ressalvas quanto à alegada perda da “especificidade

de falso devoto”, já que Tartufo não deixa de assumir em várias cenas

comportamentos “beatificantes”. A título de exemplo, uma cena do terceiro acto,

após a saída de Dorindo, revela-nos, em curto espaço de tempo, toda a falsa

beatitude da figura:

TARTUFO: […] Muito bons dias, senhora.

MARSÍLIA: Meu reverendo, outro tanto.

Passou bem a noite estimo?

TARTUFO: Por ora, estou rezando. (Dorindo vai-se.)

MARSÍLIA: Mas como passou a noite?

TARTUFO: Muito desassossegado!

Não preguei olho até agora. (Rezando.)

MARSÍLIA: Pois que teve? Algum abalo?

TARTUFO: O motim que os meus vizinhos

toda a noite me fizeram!

MARSÍLIA: Tem inveja, faça o mesmo.

TARTUFO: Se tivera onde e outro tanto,

fazer pudesse talvez…

MARSÍLIA: Não, olhe, isso a qualquer canto

se encontra; busque, busque!

TARTUFO: Se a mim está tão chegado,

Para que hei-de ir mais longe? (Pega-lhe e a deita sobre a

cama.) (fol. 40)

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

131

Pelo grau de explicitação evidenciado, e à falta de evidências em sentido

contrário, colocamos a hipótese de esta comédia nunca ter sido impressa, nem

tão-pouco ter sido sujeita à apreciação censória. Pelo que se sabe dos ditames da

censura, nunca um manuscrito como este, em que um reverendo padre deita sobre

uma cama a jovem casada poderia receber aprovação, fosse para impressão ou

representação. À semelhança de Lisboa (2005: 248-249), acreditamos que este

constitui, mais ainda do que a comédia anterior, um daqueles casos textuais que

prova a existência de uma via paralela, com requisitos técnicos e etapas de

produção próprias, de difusão de manuscritos, que cumpre o propósito de dar a

ler a mais extenso número de pessoas:

Até ao século XVIII, mesmo em manuscritos de autor é possível reconhecer

uma prática editorial, ou seja, a preparação e multiplicação de

dispositivos que correspondem a normas ou concepções de legibilidade, e

não apenas de preparação ou de conservação de textos. Neste sentido, o

facto de estarmos perante um manuscrito configura uma especificidade

técnica que não compromete, no essencial, a ideia de que um texto foi

preparado para circular, num suporte próprio, e para ser lido por

múltiplos olhos.

Assim, embora, com grande probabilidade, não se destinasse a ser

impresso, tal não obsta a que o texto tenha sido lido por muitas pessoas, e, apesar

de, com alguma certeza, não ter sido representado em nenhum teatro público, isso

também não significava que não fosse objecto de apresentação em casa de

particulares. Como acrescenta Lisboa (2005: 246), à época, é a matéria de

escândalo que torna determinados manuscritos ainda mais apetecíveis e

procurados.

Quanto ao Beato Ardiloso, de José Joaquim Bordalo, farsa publicada em

1825, transporta-nos, mais uma vez, para um ambiente familiar, habitado por

Ambrósio, pai de Luísa, e Lourenço, seu irmão, tio de Luísa e pai de Venâncio.

Trata-se de um texto breve, que obteve autorização para ser impresso da parte da

Mesa do Desembargo do Paço, ostentando a sua chancela na folha de rosto. Aqui

é Lourenço o hipócrita, que engana Ambrósio para ser por ele sustentado,

ambicionando, inclusive, desposar Luísa, sua sobrinha, que, por sua vez, deseja

casar com Venâncio. Lourenço faz-se passar por devoto incondicional, entregue

à oração, aos castigos corporais e ao jejum, mas, em simultâneo, dispõe-se ao

intento de seduzir a criada da casa, Inês. Com efeito, é apanhado por Ambrósio

em flagrante delito ao tentar estreitar a dita, esgrimindo, em simultâneo,

argumentos a persuadi-la da bondade dos seus intentos. A moral deste texto está

subsumida numa fala de Luísa, que, concomitantemente, almeja sintetizar a

tradição teatral de tartufo em contexto português: “INÊS: Na verdade que a

senhora tem grande aversão aos hipócritas./ LUÍSA: Sim, não o nego, porque ter

aversão ao hipócrita é o mesmo que tê-la ao diabo” (9).

Em síntese, verifica-se que, ao longo dos anos, Tartufo foi sendo tratado

como personagem de um quotidiano familiar, no âmbito do qual espoletava, por

vezes, antagonismos, com a visão mais arguta de uma outra personagem a

contrariar o estado de coisas aceite pela maioria (cf. O Hipócrita (1770), A Beata

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

132

Fingida (1774) e O Beato Ardiloso (1825)). Em certos casos, Tartufo exibe

vínculo directo à vida religiosa enquanto padre (cf. A Ambição dos Tartufos

Invadida (1770) e O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado

Hipócrita (1796); noutros limita-se a fazer alarde de uma beatice, já por si

demasiado óbvia. Parte do impacto desta figura na sociedade e cultura

portuguesas da segunda metade do século dezoito e primeiras décadas do século

seguinte resulta da capacidade de introduzir e representar novos desafios

colectivos, de que destacamos três: a verosímil perspectiva de que a hipocrisia

não tinha poiso restrito, dado que podia, inclusive, imperar em qualquer seio

familiar, atingia o objectivo de mobilizar a sociedade em geral para o seu

combate; o retrato cru de certa forma de viver a religião, falsa e apenas aparente,

conduz a novas formas de pensamento sobre a ligação do homem à fé; os

recorrentes lampejos de irreverência feminina (cf. O Hipócrita (1770), A Beata

Fingida (1774) e O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado

Hipócrita (1796)) a que ou o próprio Tartufo, ou o enredo à sua volta, se presta,

introduz variantes importantes no que se pode e deve esperar em matéria de

comportamento feminino. O facto da hipocrisia nivelar homens e mulheres não

deixa de ser, ainda que pela negativa, um dos primeiros reflexos liberalizantes e

emancipatórios.

Observações finais

Do percurso histórico efectuado, por via de impressos e manuscritos, entre

fulgores masculinos e femininos, desde a publicação e primeira representação de

Tartufo ou O Hipócrita, no Teatro do Bairro Alto, em 1768, até à impressão em

1825 da farsa de José Joaquim Bordalo, O Beato Ardiloso, reconhece-se um

crescendo de indignação colectiva contra certa vida religiosa e,

consequentemente, contra certos religiosos. Desde a infâmia jesuítica,

instrumentalizada pelo Marquês de Pombal, e respectivo séquito, até ao tio

Lourenço, personagem que aparentava os mais sofridos castigos corporais para

se poder casar com a sobrinha, cujo dote o acicatava, assistimos ao desenrolar de

uma evolução sociocultural, que faz da verdade valor absoluto. Esta defesa

incondicional da verdade, professando um olhar lúcido e arguto sobre o mundo,

e o que nele acontece, é fundamento da crença iluminista. Como ficou patente, a

censura, e seus oficiantes, perspectivaram, em geral, a acção de Tartufo como

benigna e abonatória das leis morais, religiosas e políticas, reagindo, no geral, em

conformidade, deferindo os pedidos que com ele se relacionavam. No entanto,

se, por um lado, a moralidade fácil e directa de Tartufo, propiciou uma recepção

favorável pela censura, por outro, o seu tão grande êxito e difusão, cunhou uma

sociedade que não mais voltaria a olhar para a religião da mesma forma:

A idéia de que a vida religiosa e a história sagrada eram uma imensa

representação difundia-se, na verdade, no mundo dos livros e na realidade

vivida pelos leitores, num intercâmbio mútuo, de modo circular.

Ultrapassava barreiras sociais. Todas essas ideias e práticas constituíam

uma espécie de atmosfera, que remetia às Luzes (e ao Reformismo

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

133

Ilustrado português, mas indo além dele) e que amalgamava livros (dentre

eles, os romances), disputas e leitores, realidade e ficção… (Villalta,

2008:274).

Logo, censura e censores foram coniventes com uma mudança que veio a

instaurar o primado da razão em detrimento da fé, extensível a homens e

mulheres, porque, entre outros factores, não lhes foi possível prever o impacto da

reacção a Tartufo no Portugal pós-terramoto, em que Deus e a religião se viram

subjugados a uma lógica de causalidade científica e técnica:

De facto, a resposta de emergência foi pensada de uma forma moderna e

racional: o sismo foi dessacralizado e enfrentado com as armas da ciência

e da técnica da altura; foram tomadas imediatamente medidas para

garantir a saúde, a segurança e o alojamento dos cidadãos; os actos de

culto foram preservados e o patriarcado foi mobilizado para ajudar no

esforço de reconstrução (Lima, 2008: 25).

Partindo de um tartufo anti-jesuíta chega-se, então, quase 60 anos depois,

à figuração iluminada de uma mulher que proclama a sua vocação, sem qualquer

pejo: “Em uma palavra: a minha vocação é a de professar a verdade, abominando

a infâmia” (Bordalo, 1825: 4).

Referências bibliográficas

S.A. (1774), A Beata Fingida. Lisboa: Oficina de Francisco Sabino dos Santos.

S.A. (1761-1766), Contas do Princípio do Teatro da Casa da Ópera do Bairro

Alto (manuscrito) [BNP, COD. 7178].

S.A. (1770), O Hipócrita (manuscrito) [Arquivo Nacional da Torre do Tombo,

Real Mesa Censória, caixa 322, nº 2221].

S.A. (1796), O Tartufo Lusitano e a Mulher Vingativa ou O Disfarçado

Hipócrita, cópia incompleta de António José de Oliveira [BNP, COD. 1370//3].

Abreu, Márcia (2007), Leitores por obrigação: quatro séculos de censura em

Portugal, Revista do Livro da Fundação Biblioteca Nacional 48: 93-99.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (1770), Real Mesa Censória, caixa 6, nº

62.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (1773), Real Mesa Censória, livro 5: fol.

128.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (1804), Real Mesa Censória, caixa 19.

Bordalo, José Joaquim (1825), O Beato Ardiloso. Lisboa: Imprensa da Rua dos

Fanqueiros.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

134

Carreira, Laureano (1988), O Teatro e a Censura em Portugal na Segunda

Metade do Século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Ciccia, Maria-Nöelle (2003), Le Théâtre de Molière au Portugal: au XVIIIe siècle

de 1737 à la veille de la révolution libérale. Paris: Centre Culturel Calouste

Gulbenkian.

Coimbra Martins, António (1974), Molière en Portugais, Arquivos do Centro

Cultural Português VII: 573-577.

______________________ (1982), Pombal e Molière, Revista de História das

Ideias 4 (2): 291-315.

______________________ (1983), Rayonnement de Molière au Portugal (1666-

1768). Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais: 195-199

(separata).

Correia Garção, Pedro (1778), Dissertação primeira e segunda sobre o carácter

da tragédia. Obras Poéticas. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica.

Figueiredo, Manuel de (1804-1810), Discurso primeiro e segundo sobre a

comédia. Teatro de Manuel de Figueiredo. Lisboa: Impressão Régia.

Goldoni, Carlo (1782), Comédia Intitulada Molière ou Segunda Parte de Tartufo

(manuscrito), cópia de António José de Oliveira [BNP, COD. 1370//2].

Ivo, Miguel Tibério Pedegache Brandão e (1767), Dissertação sobre a tragédia.

Mégara, tragédia. Lisboa: Oficina Patriarcal.

Lima, Maria Luísa Pedroso de (2008), Tragédia, risco e controlo: uma releitura

psico-social dos testemunhos do terramoto de 1755, Análise Social XLIII (1): 7-

28.

Lisboa, João Luís (2005), Tanta virtude... em papéis correndo. (Persistência e

poder do manuscrito no Antigo Regime). Cultura letrada no Brasil: objetos e

práticas, II Congresso de História do livro e da leitura. São Paulo: Mercado de

Letras, 246-258.

Malagrida, Gabriel (1756), Juízo da verdadeira causa do terremoto, que padeceu

a Corte de Lisboa no primeiro de Novembro de 1755. Lisboa: Oficina de Manuel

Soares.

Miranda, José da Costa (1974), O Teatro de Goldoni em Portugal (século XVIII):

subsídios para o seu estudo, Revista História Literária de Portugal. IV: 35-85.

Molière (1768), Tartufo ou O Hipócrita. Lisboa: Oficina de José da Silva Nazaré.

_______(1788), Tartufo ou Hipócrita (manuscrito), cópia de António José de

Oliveira [BNP, COD. 1370//1].

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

135

Nogueira, Ricardo Raimundo (1778), Cartas sobre o restabelecimento do Teatro

do Porto (manuscrito), 1ª, 2ª e 3ª [J.F. 4-9-5].

Rêgo, Raúl (1982), Os Índices Expurgatórios e a Cultura Portuguesa. Lisboa:

Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.

Villalta, Luiz Carlos (2008), Romances e Leituras Proibidas no Mundo Luso-

Brasileiro (1740-1802). Abreu, Márcia (org.), Trajetórias do Romance:

Circulação, Leitura e Escrita nos Séculos XVIII e XIX. Campinas: Mercado de

Letras.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

136

O teatro do absurdo e a censura salazarista: A bengala, de Prista Monteiro

Márcia Regina Rodrigues

[email protected]

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista

(FCL-UNESP/ FAPESP)

Resumo - Os estudos sobre a censura à arte dramática confirmam o que Luiz

Francisco Rebello sempre problematizou no teatro português e Graça dos Santos

observou: o teatro pelo seu poder de comunicação foi um dos principais alvos das

comissões censórias. Das duas tendências teatrais praticadas em Portugal nos

anos de 1960, a de inspiração épica brechtiana foi a mais interditada de

encenação, enquanto peças do teatro do absurdo lograram subir aos palcos, como

apontou Sebastiana Fadda. Mesmo assim, Prista Monteiro, dramaturgo da linha

absurdista do teatro, viu a tentativa de encenação de sua peça A bengala proibida

pela comissão censória. O presente texto objetiva apresentar apontamentos sobre

peças estrangeiras da linha absurdista de teatro autorizadas pela censura

salazarista e examinar o processo censório de A bengala, de Prista Monteiro, a

fim de mostrar que outros fatores poderiam influenciar a decisão da comissão que

não apenas o conteúdo dos textos.

Palavras-chave - teatro e censura salazarista | teatro do absurdo | Prista Monteiro.

I. Introdução

Os autores escreviam as suas peças, os encenadores e os actores

procuravam montá-las, o público desejaria vê-las: mas a intervenção da

censura obstava a que o teatro acontecesse (Rebello, 1977: 104).

Logo depois da Revolução dos Cravos, Luiz Francisco Rebello escrevia

que o estudo sobre a censura ainda estava por se realizar. O autor de Combate por

um Teatro de Combate nas suas inúmeras contribuições para a reflexão acerca do

teatro português sempre trouxe à tona implícita ou explicitamente o problema da

censura. Era, sobretudo, contra a censura ideológica que os homens de teatro

portugueses lutavam no período ditatorial e criticavam também tanto os

monopólios teatrais quanto a concentração de espetáculos apenas na cidade de

Lisboa, problemas que constituíam o que Rebello nomeou como censura tríplice:

a ideológica, a econômica e a geográfica (Rebello, 1977: 25).

Como se sabe, a censura deveria proibir, segundo a legislação que a

instituiu, tudo o que ofendesse “a moral e os bons costumes”. Com o objetivo de

dominar e reprimir a comunicação, a censura impunha práticas que ameaçavam

as obras – frequentemente mutiladas –; impedia a divulgação da informação e da

notícia e induzia escritores, dramaturgos e jornalistas à autocensura. No decorrer

da longeva ditadura portuguesa, houve, contudo, períodos de afrouxamento do

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

137

rigor censório, especialmente a partir do término da Segunda Guerra, quando

“Salazar foi obrigado a reconhecer – calcula-se com que mágoa! – que ‘a bandeira

da História tremulava ao vento da Democracia’” (Rebello, 1977: 29), o que para

o teatro favoreceu a encenação de peças até então proibidas.

Esse abrandamento da censura, no entanto, durou pouco. O decreto

420663, de novembro de 1959, artigo 13, autorizava “aos funcionários da

Inspecção-Geral dos Espectáculos o porte de arma durante o seu serviço de

inspecção” (Santos, 2004: 225) e, no início dos anos de 1960, com a

intensificação da crise política, as práticas censórias, além de mais ativas,

tornaram-se violentas até o término da ditadura. Mas a intensificação da censura

ao teatro nesse período foi seguida de protestos por parte dos artistas teatrais,

escritores e intelectuais. Basta citar como exemplo o protesto contra a proibição

da peça O motim, de Miguel Franco, em 1965, dirigido ao Ministro da Educação,

assinado por nomes importantes do teatro e da intelectualidade portuguesa.

Um fator que caracteriza a arte teatral dessa década é a preocupação dos

artistas – especialmente dos dramaturgos e encenadores – em dar continuidade a

um movimento de renovação da cena iniciado logo depois do término da Segunda

Guerra, quando começaram a surgir novas companhias e novos dramaturgos com

interesses entusiasmados pelo teatro experimental, pelo teatro épico brechtiano e

mais tarde pelo teatro do absurdo, esse último surgido em França nos anos de

1950, especialmente com Beckett e Ionesco, cujas peças tiveram montagens

portuguesas a partir de 1959.

Era distinto o comportamento da censura em relação às duas principais

tendências teatrais que interessavam os artistas portugueses de então (Rebello,

1977; Fadda, 1998): o teatro épico de Brecht e o teatro do absurdo. As encenações

das peças brechtianas foram totalmente proibidas pela censura salazarista – e

nada mudou a esse respeito na chamada primavera marcelista –, privando-se

assim o público de conhecer a obra encenada do dramaturgo alemão – e, em

contrapartida, provocando nos autores portugueses uma verdadeira atração pelo

teatro épico, levando-os a experimentar os pressupostos de Brecht na criação de

seus textos. Já o teatro do absurdo, por ser essencialmente centrado nas questões

subjetivas e representar a problemática da existência humana, passava mais

despercebido pela comissão de censura em comparação com o teatro engajado

proposto por Brecht.

Quanto à produção dramatúrgica absurdista em Portugal, Sebastiana

Fadda – que historiou a produção do teatro do absurdo no país – faz uma lista de

autores que se inspiraram na linha do absurdo como Augusto Sobral, Fiama Hasse

Pais Brandão, Manuel G. Crespo e Vicente Sanches e elege três dramaturgos

considerados dos mais representativos desse teatro: Miguel Barbosa, Jaime

Salazar Sampaio e Helder Prista Monteiro. Na observação de Fadda, a adesão

desses três dramaturgos ao teatro do absurdo

não se limitou ao simples epigonismo: filtrada ou fundida com o

património experiencial e a sensibilidade individuais, toma impulso uma

obra de contornos nítidos, com múltiplos conteúdos, transmitidos com

um estilo que, através do exercício da escrita ou da prática do palco,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

138

adquire valências e peculiaridades pessoais em todos eles (Fadda, 1998:

238).

Dessa produção relativa ao teatro do absurdo, em 1972, Luiz Francisco

Rebello apontava o dramaturgo Helder Prista Monteiro (1922-1994) como “o

único que [havia tido] acesso aos palcos profissionais” (Rebello, 1972: 118); no

entanto, o autor de A bengala não escapou da vigilância censória. Em 1961,

Emilio Rui da Veiga Peixoto Vilar, que na altura era presidente da direção do

Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC) e assistente de

direção de Luís de Lima – encenador à frente do CITAC –, solicitou à Inspecção-

Geral dos Espectáculos a apreciação de A bengala, mas a peça foi proibida de

subir à cena.

O presente texto objetiva apresentar apontamentos sobre o teatro do

absurdo e a censura, considerando os espetáculos representados nos palcos

portugueses, em 1959 – a partir das obras de Eugène Ionesco e Samuel Beckett –

, e examinar o processo censório da peça A bengala, de Prista Monteiro, a fim de

mostrar que outros fatores poderiam influenciar a decisão da comissão que não

apenas o conteúdo dos textos.

II. O teatro do absurdo e a censura

(...) a linha do absurdo, menos hostilizada pelo regime, pôde contar com

um número maior de contributos, provavelmente estimulados também

pelas primeiras representações do teatro de Beckett e Ionesco nos palcos

lusitanos (Fadda, 1998: 232).

Durante a ditadura, os escritores se viam diante de um duplo processo

criador, o da obra artística e o das formas da linguagem, numa tentativa de passar

incólume pela censura, o que gerava, além da autocensura, uma constante

transformação na estrutura linguística de seus textos. No que se refere ao

empenho dos autores no engenho de burlar a censura, afirma Helder Prista

Monteiro, em entrevista a Sebastiana Fadda: “após a queda do fascismo tudo iria

mudar. Porém não foi assim tão rapidamente. O tal ‘engenho’ tinha levado

demasiados anos a montar e agora era preciso desmontá-lo completamente. Para

alguns não foi nada fácil e outros nunca o atingiram” (Fadda, 1998: 497).

No caso do teatro, a proibição recaia mais sobre as encenações, a ponto

de as peças serem mais lidas que representadas no palco, criando para muitos a

ideia de que havia peças escritas apenas para a leitura. O teatro em tempos de

ditadura, como afirma Rebello, sofria o divórcio entre texto e representação e no

que compete à dramaturgia:

o recurso a uma linguagem crítica, a personagens e situações abstractas,

que deformavam até ao absurdo a realidade circunstante, por um lado,

e por outro a transposição do presente para factos e figuras exemplares

do passado histórico, ou destas para aquele, eram as várias tentativas

de dizer-se o que, directamente, a censura não consentia que se dissesse

(Rebello, 1984: 25).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

139

Os depoimentos de escritores sobre as práticas censórias são reveladores

de uma comissão sem critérios, guiada pela subjetividade e por uma desconfiança

baseada naquilo que os censores subjetivamente acreditavam ser contra a moral

e os bons costumes. O escritor e dramaturgo Fernando Luso Soares em

depoimento a Cândido de Azevedo comenta que a encenação de Victor ou as

crianças no poder, de Roger Vitrac, com encenação de Luzia Maria Martins e

Helena Félix, às vésperas da estréia, foi proibida pela censura porque na peça não

poderia haver um general traidor: “ora, no exército – concluíram – ninguém trai!”.

Na opinião de Luso Soares, esse episódio ilustra bem “o espírito estreito,

mesquinho da Censura, e daqueles que se prestavam a tão indigna actividade”

(Azevedo, 1999: 318). Os episódios grotescos referentes à censura ao teatro no

período ditatorial abundam e refletem o absurdo da situação da arte dramática.

Tanto a censura como a autocensura, a qual os autores se impunham muitas vezes

desistindo de ver a sua obra comunicada ao público a que se destinava, cerceavam

a atividade teatral, provocando em termos estéticos e históricos um singular

desenvolvimento do teatro que atualmente vem sendo estudado com o olhar

apurado e crítico da distância.

A renovação teatral iniciada a partir do término da Segunda Guerra fez

surgir na cena portuguesa uma nova dramaturgia nos anos de 1960 que buscava

desvencilhar-se da hegemonia do teatro naturalista e ao mesmo tempo inserir

inovações teatrais praticadas no resto do mundo, daí o interesse pelo teatro épico

brechtiano e depois pelo teatro do absurdo. Como já referimos, nos palcos não se

podia encenar nada de Brecht, contudo as primeiras obras propulsoras do teatro

do absurdo – de Beckett e de Ionesco – foram autorizadas pela censura salazarista.

Fazendo as contas do número de espetáculos autorizados a partir das

peças de Beckett e Ionesco – considerando as encenações registradas por

Sebastiana Fadda (1998) –, verificamos que de 1959 a 1974 foram

aproximadamente quinze espetáculos de peças de Beckett, sendo a peça mais

representada À espera de Godot, muito provavelmente por conta do sucesso

alcançado por Ribeirinho em 1959 – ele próprio levou-a novamente à cena em

1969 – e mais de trinta espetáculos traduzidos de textos de Ionesco. No ano da

Revolução dos Cravos não se tem notícias de obras desses dois autores nos palcos

portugueses; peças de Beckett e de Ionesco só voltaram a ocupar a cena a partir

de 1980. A explicação para isso é que, sem a censura a asfixiar o teatro, as peças

proibidas durante a ditadura, especialmente as de Bertolt Brecht, finalmente

puderam ser encenadas no país, como que numa tentativa de recuperar o atraso

ao qual o teatro havia sido obrigado a se submeter, ficando de lado as peças que

tinham sido autorizadas pelo regime.

No que se refere à encenação de peças portuguesas que seguiram a linha

absurdista de teatro o resultado não é muito satisfatório. Ao tomarmos a produção

dos três dramaturgos considerados por Sebastiana Fadda os “mais representativos

prosélitos do gênero em questão” (Fadda, 1998: 238), a partir dos registros da

autora de O teatro do Absurdo em Portugal, verificamos que na década de 1960

até o ano da Revolução dos Cravos puderam ser vistos nos palcos do país apenas

quatro espetáculos que contavam com textos de Miguel Barbosa; sete com textos

de Salazar Sampaio e dez peças de Prista Monteiro, sendo três delas parte do

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

140

mesmo espetáculo do Teatro Estúdio de Lisboa, em 1966, A rabeca, O meio da

ponte e O anfiteatro, com direção de Luzia Maria Martins. Consideramos nessa

conta apenas os espetáculos de teatro (e não aqueles criados para a transmissão

da RTP, como algumas peças de Miguel Barbosa), montados por companhias

profissionais, companhias de teatro amador e grupos de teatro universitário, que

foram de grande importância para a renovação da arte teatral e colaboraram na

tentativa de resistência ao regime.

Pelo menos três espetáculos, apresentados no mesmo ano, em 1959,

marcam a cena portuguesa no que concerne ao teatro do absurdo, tornando-se

importantes tanto para a reflexão que se fez posteriormente a respeito desse teatro

quanto para o desenvolvimento da produção dramatúrgica que se seguiu. O

primeiro foi a encenação de À espera de Godot, dirigida por Francisco Ribeiro,

apenas seis anos depois da famosa encenação parisiense da peça de Beckett, com

direção de Roger Blin, que consagrou o escritor irlandês como dramaturgo. À

espera de Godot de Ribeirinho foi, na avaliação de Jorge de Sena, um fato

excepcional, “desta vez uma obra discutida chegou na altura da discussão, e não

trinta anos depois...” (Sena, 1988: 238), referindo-se, como se nota, às

intervenções da comissão de censura que a todo custo procurava silenciar o teatro.

O segundo foi o Festival Ionesco – espetáculo que contava com as peças A

cantora careca, As cadeiras e A lição, do dramaturgo romeno –, dirigido por Luís

de Lima, encenador e ator que revelou Ionesco para as plateias brasileiras e

portuguesas. A encenação, em setembro, de La leçon e Les chaises, de Ionesco,

pelo grupo Théâtre Studio Champs-Elysées, com direção de Maurice

Jacquemont, no Festival de Sintra, foi o terceiro espetáculo importante do ano de

1959, porque contou também com a presença do próprio Ionesco que proferiu

conferência e concedeu entrevistas, declarando sua ácida crítica ao teatro épico

de Brecht. Sebastiana Fadda apresenta uma síntese dessa crítica de Ionesco ao

teatro brechtiano:

O autor [Ionesco] vê no teatro de Brecht a ausência da bondade, o elogio

e a justificação do crime, a servidão à política, uma dramaturgia assente

no ódio entre a classe burguesa e a proletária e que por tal pressuposto

não terá futuro. O teatro, ao contrário das outras artes, não seguiu a

evolução do mundo moderno, não é actual, tornou-se obsoleto por ter

ficado ancorado aos moldes do fim do século passado. Neste atraso

Ionesco coloca a sua obra e a de poucos outros autores por volta dos

anos 20, reafirmando como noutras alturas que a tarefa essencial dos

dramaturgos é a de reinventar o teatro (Fadda, 1998: 128).

As primeiras peças de Ionesco e de Beckett foram autorizadas pela

censura; é, pois, de se pensar que para os censores a fábula que as constitui não

apresentava nada de comprometedor. À espera de Godot, de Beckett, e As

cadeiras, A lição e A cantora careca, de Ionesco, foram consideradas por parte

da crítica portuguesa peças sem referências políticas e a poesia contida nas falas

das personagens beckettianas eliminava qualquer sombra de dúvida sobre um

sentido de subversão nas entrelinhas. Lembramos, no entanto, que, no primeiro

ato de À espera de Godot, Estragon propõe o suicídio e o Godot, que nunca vem,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

141

foi e é interpretado por muitos como o deus que nunca virá salvar os homens.

Ora, tanto o suicídio como a ausência de deus são temas que poderiam ofender a

fé católica, sendo a moral cristã uma das bandeiras hasteadas pelo salazarismo.

Da mesma forma, em A lição, de Ionesco, o erotismo evidente na relação entre

professor / aluna – como bem apontou Jorge de Sena (1988: 249) – e o crime no

desfecho da peça (o professor mata a aluna) poderiam não ter sido vistos com

bons olhos pelos censores. A partir dessas observações, é de se supor que outros

fatores podem ter favorecido a autorização dessas peças; então vejamos.

O fato de Francisco Ribeiro, o diretor e também ator de À espera de

Godot, manter boas relações com o regime salazarista é algo a se considerar.

Como se sabe, ele frequentemente trabalhava com António Lopes Ribeiro, seu

irmão cineasta, que por sua vez contribuía com a propaganda cinematográfica do

regime salazarista. Embora não aprovasse as práticas censórias e em certos

momentos mostrasse uma reação hostil às aplicações da comissão de censura,

Ribeirinho se recusava a “tomar posições públicas que pudessem ter eventuais

interpretações políticas (...), fazia questão de esclarecer que o TNP [Teatro

Nacional Popular] não apresentava ‘peças de escândalo’, antes um teatro

diversificado (e nessa diversidade havia cabido Beckett)” (Patrão, 2012:198).

Assim, a recusa de um teatro de intenções políticas declarada por Ribeirinho,

aliada à colaboração que ele prestava a António Lopes Ribeiro, só poderia surtir

efeitos positivos e a favor das escolhas do ator e encenador junto à comissão

censória.

Sobre as primeiras encenações das peças de Ionesco autorizadas pela

censura também há fatos que precisamos considerar. As declarações do autor de

A cantora careca em entrevistas e conferências, largamente divulgadas em

Portugal, afirmando ele que seu teatro era desprovido de ideologia e de

preocupações políticas, tiravam o autor e a sua obra da mira da censura, afinal a

comissão censória perseguia o teatro declaradamente político e, como observa

Sebastiana Fadda, “os textos aparentemente inofensivos de Ionesco na opinião

dos censores não eram dotados de potencialidades ameaçadoras” (Fadda, 1998:

146). Quanto à relação teatro e política, o encenador do Festival Ionesco, Luis de

Lima – quando diretor artístico do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de

Coimbra (1960-1962) –, em entrevista a José Manuel Beleza e Mário Brochado

Coelho, num comentário sobre a situação do teatro brasileiro – ele havia sido

professor da Escola de Arte Dramática de São Paulo – fez a seguinte afirmação:

Todos estes autores deste teatro político [praticado no Brasil]

esqueceram que a representação de teatro continua em primeira linha a

ser um espetáculo e um divertimento, onde pode ensinar e corrigir, onde

se podem apontar e prevenir os erros, mas não é legítimo sob pena de

provocar tal efeito, confundir representação com política. Que se leiam

os ensinamentos de Brecht e que se confirme o caráter que o teatro teve,

tem e continua a ter de verdadeiro divertimento cênico.1

1 A entrevista de Luís de Lima “Luis de Lima fala à Via Latina” foi integralmente

reproduzida no livro de comemoração dos 50 anos do Círculo de Iniciação Teatral da

Academia de Coimbra: CITAC (2006), Esta danada caixa preta só a murro é que

funciona, Coimbra: Imprensa da Universidade, p. 32-33.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

142

A posição de Luís de Lima se aproxima bem da opinião de Ionesco sobre

o teatro não ter que se confundir com a política, muito embora, ao contrário do

dramaturgo romeno, o encenador português mostrasse consideração pelos

pressupostos brechtianos. Luís de Lima havia sido premiado pela Associação

Brasileira de Críticos Teatrais como melhor ator de 1957 no Brasil e o Festival

Ionesco, considerado o melhor espetáculo do mesmo ano; como prêmio, o

encenador recebeu uma medalha de ouro das mãos do presidente Juscelino

Kubitscheck em ilustre cerimônia. O trabalho teatral de Luís de Lima era,

portanto, reconhecido do outro lado do oceano e, na altura, ele se tornava figura

muito respeitada e considerada pela classe teatral e por boa parte da crítica de seu

país.

Assim, apesar de apresentarem textos que poderiam ter sido interditados,

considerando-se o exagerado e muitas vezes descabido rigor censório, o público

português assistiu às encenações das primeiras peças de Beckett e Ionesco que

tiveram à frente da direção dos espetáculos encenadores que, por diferentes

razões, nãos eram vistos ainda como persona non grata pelo regime; lembrando

que Luís de Lima, poucos anos depois de introduzir obras de Ionesco nos palcos

portugueses, com traduções suas das peças do dramaturgo romeno, acabou sendo

expulso de Portugal pela polícia política, retornando ao país somente depois do

25 de Abril.

Tais conjecturas sobre as circunstâncias acerca das permissões dessas

encenações teatrais tornam-se pertinentes quando observamos que além de não

ter critérios lá muito bem definidos fosse para proibir, autorizar, ou fazer cortes

nos textos, mutilando assim uma obra dramática, a comissão de censura podia

tomar decisões não apenas a partir do exame das peças, mas através das

informações que tinha sobre os artistas envolvidos, ou seja, a comissão poderia

não ter critérios para o julgamento dos textos teatrais, mas era muito bem

informada sobre as atividades das pessoas, ainda mais dos artistas, por isso o

exame da comissão poderia muitas vezes recair sobre o autor, ou encenador, e

não exatamente sobre a obra. De um modo geral, tanto as proibições como as

autorizações comportam uma análise da matéria – no caso do teatro, da peça –,

mas também das relações entre os requerentes (que solicitavam a autorização da

comissão para a encenação das peças) e o regime, dado o caráter vago e subjetivo

das comissões censórias e “um mutismo total sobre a sua actividade” (Santos,

2004: 244).

III. A bengala e a censura

Mas porquê? Porquê? Que estará ele a ver? Que é que ele quer?Que

tenho eu? (De súbito ergue-se e desordenadamente começa a

inspeccionar-se) Haverá?... Ah! Sim! As solas... são as minhas solas! É

isso! Estão rotas... (Prista Monteiro, 1972: 39).

A primeira peça de Prista Monteiro que subiu ao palco foi A rabeca, em

1961, juntamente com duas obras estrangeiras A conversação sinfonieta, de Jean

Tardieu, e Professor Taranne, de Arthur Adamov, pelo Círculo de Iniciação

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

143

Teatral da Academia de Coimbra (CITAC). Na altura, o diretor artístico do

Círculo de Iniciação Teatral era o já consagrado encenador e ator Luis de Lima,

que tencionava também encenar A bengala; então, a 16 de janeiro de 1961, é

solicitada a apreciação dessa peça junto à Inspecção Geral dos Espectáculos, mas

o texto foi proibido pela censura de ser encenado. Luís de Lima conseguira

encenar as peças de Ionesco, mas não esta de Prista Monteiro. A observação de

Graça dos Santos a respeito da censura a peças portuguesas nos dá a explicação

para esse fato:

Embora a lista de textos proibidos incluísse muitos estrangeiros, os

autores dramáticos portugueses eram particularmente visados. Porque

conheciam bem a vida do seu país, as suas peças podiam reflecti-la; por

isso os escritos nacionais eram alvo privilegiado da censura (Santos,

2004:275).

Um dos censores viu no texto de A bengala, em todo o seu nonsense, “um

conteúdo duvidoso, debatendo um problema social suspeito”; vejamos o entrecho

da peça.

Escrita em 1960 e publicada em 1972, A bengala apresenta um casal de

pobres e maltrapilhos – a Mulher traz o aro dos óculos remendado com um

adesivo branco visível; o Marido, os sapatos completamente rotos, com solas

furadas. A ação se passa num restaurante onde o casal resolve gastar todo o

dinheiro que tem numa única refeição, pedindo ao empregado de mesa tudo que

lhe apetece comer como lombinhos, chocolates, sorvetes, bolos e cerveja. O

Criado recrimina o comportamento dos dois, pois suspeita que o casal não terá

dinheiro para pagar as despesas. Sabemos logo que eles têm as contas todas pagas

e que o marido trabalha na confecção (pintura) de placas de anúncios numa loja.

Na lista de personagens temos, então, o casal, dois empregados de mesa (Criado

1 e Criado 2) e um colega de trabalho do marido (Homem) que chega já no final

da peça, senta-se sozinho e fica ali imóvel e mudo o tempo todo. A presença do

recém-chegado incomoda o cônjuge, principalmente o Marido que acredita que o

Homem – funcionário da contabilidade, com um salário três vezes maior que o

do Marido – está a reparar nos pedidos de pratos que eles fazem. Antes da

chegada desse personagem, o Criado, depois da insistência do casal, aceita o

convite para sentar-se à mesa e fartar-se de comer, o que ele faz com alegria, mas

não deixa de censurar aquela despesa toda, afirmando que os dois deveriam

guardar o dinheiro para a compra de artigos de primeiras necessidades. No final

da peça, ao descobrir que o colega de trabalho do Marido, sentado a uma mesa

perto, não se movia porque na verdade estava morto, o casal ri; Marido e Mulher

sentem-se livres de qualquer crítica, podem continuar a saborear a noite e

chamam o empregado (Criado 2) para mais um pedido.

No ano da publicação de A bengala, 1972, João Gaspar Simões apresenta

uma síntese do texto de Prista Monteiro na qual parece estar a chave para a

interpretação da peça, que, segundo o crítico, “pretende proclamar a liberdade de

um casal de atilados funcionários, ou coisa que o valha, decidido, por instigação

do marido, a romper a rotina e gastar, num só dia (...) o que ganhou, aplicada,

servil, burocraticamente, durante um mês inteiro” (Simões, 2004: 248). De fato,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

144

os protagonistas de A bengala enunciam a liberdade de fazer o que lhes apetece,

nem que seja por uma única noite. O Criado critica o comportamento do casal –

“Estou a ver, estou a ver. Vocês hoje gastam aqui, o que lhes vai faltar amanhã”

(Prista Monteiro, 1972: 17), diz ele –; vê irresponsabilidade na ação do Marido e

da Mulher e fala de “princípios”, como o de se evitar contrair dívidas:

“Princípios... princípios que têm séculos... (...) que gerações e gerações

cumpriram! E agora... vêm estes... estes desmiolados, com um ar superior,

ensinar-nos que estava tudo errado” (Prista Monteiro, 1972: 20).

Na referida análise de Simões lemos ainda: “A anedota, no seu relativo

absurdo, afigura-se-nos timidamente. Só o palco nos poderá desmentir. Mas,

naturalmente, A bengala nunca sairá do bengaleiro: deve-lhe estar vedada a

entrada no palco...” (Simões, 2004: 248), referindo-se à proibição da peça pela

censura desde 1961. Sebastiana Fadda, no seu comentário sobre A bengala, tenta

remontar aos motivos da censura que decidiram pela proibição da encenação da

peça de Prista Monteiro e chega a algumas ilações, como, por exemplo, a de que

“O comportamento dos dois protagonistas torna-se amoral do ponto de vista

social, pois instiga à irresponsabilidade e ao consumismo, mas, implicitamente,

denuncia a condição de indigência e precariedade em que vive o povo” (Fadda,

1998: 286); e a autora de O teatro do absurdo em Portugal, vê ainda na peça

“intenções quase moralizantes” pelo fato de o Marido, diante do olhar

recriminador do colega de trabalho que chega depois ao restaurante, deixar

transparecer um “sentimento de culpa de quem, intimamente consciente da

inutilidade da sua própria transgressão, sabe que terá de pagar a seguir as suas

consequências” (Fadda, 1998: 286). Mas a transgressão do casal resulta, na

verdade, da percepção, principalmente do Marido, de que além de sapatos e

roupas eles também necessitam de chocolates, ou seja, tomam consciência de que

precisam de algo mais e enfrentam os olhares críticos – do Criado e do colega de

trabalho do Marido – para experimentar o novo que lhes está vedado. Quando o

marido volta ao restaurante decepcionado por não ter encontrado lá fora uma

revista para a Mulher, ela lhe diz que eles poderão comprá-la no dia seguinte e

ele lhe responde “ [Amanhã] posso não ter coragem” (Prista Monteiro, 1972: 31),

confirmando que aquela noite de coragem poderá ser a única, embora

anteriormente o Marido tenha demonstrado um sentimento de esperança: “Ora!

Vais ver que ainda havemos de ter disto todos os dias.” (Prista Monteiro, 1972:

13). De fato, a denúncia da condição desfavorável dos trabalhadores está

claramente posta nesta peça de Prista Monteiro; a comparação dada pela

aparência das personagens (por exemplo, o casal e o colega de trabalho do

Marido) denuncia a pobreza dos protagonistas; além disso, a esperança de que

essa situação poderá mudar põe A bengala na mira da censura.

O parecer do censor, em 1961, é muito claro:

Dentro de um estilo teatral de vanguarda, possui esta pequena peça

grandes afinidades com obras de “anti-teatro” de Eugène Ionesco. Peça

“abstracta”, tudo nela se exprime através de figuras simbólicas – o

Marido, a Mulher, o Criado, o Homem – e, por esse motivo, o diálogo

torna-se passível de todas as interpretações que lhe quiserem dar.

Quanto a mim – e salvo melhor opinião – creio que a “Bengala” [sic]

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

145

no meio de todo o seu “nonsense” se apresenta com um conteúdo

duvidoso, debatendo um problema social suspeito. Mesmo apesar das

dificuldades de interpretação, creio que os diálogos (...) contribuem para

dar um tom que não abona muito quanto às intenções político-sociais do

autor – que segundo me parece – defende a tese da desumanidade do

“mundo fechado” em que se debatem o Marido – que é operário – e a

Mulher, eternamente presos por outrem, vivendo uma vida sem

horizontes, miserável e mesquinha, mas com esperança em “qualquer

coisa que vai acontecer”. Voto, portanto, pela reprovação da peça. 2

A extensão da citação se justifica para mostrar algumas particularidades

desse parecer censório. É de se notar que o censor tenta explicar a sua decisão

pela reprovação da peça a partir de uma breve análise do texto, considerando o

“antiteatro”, a filiação da peça ao teatro de Ionesco e a caracterização das

personagens, apresentando uma interpretação das dramatis personae. Na

estrutura de A bengala, Prista Monteiro trabalha elementos que filiam a sua peça

ao teatro do absurdo, especialmente à dramaturgia de Ionesco; no entanto, outros

elementos apontados pelo censor praticamente se sobrepõem às características do

teatro do absurdo. Os grifos ou aspas nas palavras ou expressões “mundo

fechado”, “operário” e “qualquer coisa que vai acontecer” indicam que o censor

pretendia chamar a atenção de outros membros da comissão que ainda fariam a

apreciação da peça – mas esses pareceres, se existiram, não constam do processo

censório de A bengala. Especificamente neste parecer, contrariando a frequente

caracterização dada à comissão – a de que os censores, em geral, faziam

apontamentos vagos ou ilegíveis nos textos avaliados –, ficam bastante claros os

motivos que levaram à proibição da peça, tendo em conta as determinações da

censura e as suas práticas no contexto da ditadura.

Em 1973, um ano depois da publicação em livro, A bengala enfrenta a

censura novamente, sendo a solicitação para a apreciação da peça encaminhada à

Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos pelo empresário teatral

Vasco Morgado, concessionário do Teatro Monumental em Lisboa. Numa

tentativa de fazer representar no palco a sua peça, Prista Monteiro encaminhou,

junto com a solicitação de Vasco Morgado, uma carta manuscrita à Comissão –

em 12/04/1973 – na qual solicitava aos membros o obséquio de rever a situação

de A bengala, mencionando no seu texto a proibição de 1961 e também o fato de

ele já ter tido outras peças de sua autoria aprovadas anteriormente. Na tentativa

de convencimento dos censores pela aprovação de sua peça, Prista Monteiro

argumentava:

Na verdade, sendo eu um autor português e havendo uma tão justa

protecção aos originais portugueses, que até nem abundam, permito-me

esperar de Va. Exa. que a referida peça seja agora encarada com a boa

vontade e justiça que creio merecer. 3

2 O Processo de Censura à peça A bengala, de Prista Monteiro, sob o registro 6307,

encontra-se arquivado no Museu Nacional de Teatro (MNT). 3 Carta manuscrita de Prista Monteiro dirigida ao Dr. Caetano de Carvalho, Diretor Geral

de Cultura Popular e Espectáculos, constante do Processo de Censura à peça A bengala,

Registro 6307, arquivado no Museu Nacional do Teatro (MNT), p. 1-2.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

146

Referente à apreciação da peça pela censura em 1973, encontramos a

seguinte nota manuscrita no processo, datada de 15 de Maio:

A peça no seu texto não tem problemas. Poderá ser classificada para o

Grupo C. Entendo, porém, que a encenação será fundamental pelo que,

em princípio, e de acordo com o público a que se destina, será de dar

muita atenção ao ensaio geral. 4

Com data de dois dias depois (17/05/1973), lemos esta nota de outro

membro da mesa censória: “Foi decidido rever oficiosamente a peça”. Apesar de

ainda ter suscitado dúvidas na comissão de censura nesta apreciação de 1973,

quando decorridos mais de dez anos da primeira solicitação requerida pelo

CITAC, A bengala foi finalmente aprovada sem cortes para o Grupo C (14 anos).

Na comparação entre os dois pareceres da censura, notamos que a comissão de

1961 estava muito mais preocupada com os diálogos que constituíam na sua visão

um conteúdo suspeito, diferentemente do censor de 1973 que não viu problemas

no texto e pediu atenção ao ensaio geral da peça. Entre o CITAC e a Empresa de

Vasco Morgado havia uma grande diferença. Pela sua condição de grupo

acadêmico, constituído por artistas universitários que participavam dos debates

sociais e políticos que se intensificaram no país na década de 1960, o CITAC era

extremamente vigiado pela censura; já a empresa de Vasco Morgado – cujos

interesses eram essencialmente comerciais – era subsidiada pelo Fundo de Teatro,

cujo estatuto era regido pelo governo ditatorial.

De acordo com o parecer de 1973, a primeira etapa da censura estava

vencida, se os argumentos de Prista Monteiro ou se o fato de esta solicitação ter

sido feita por Vasco Morgado, cuja empresa aparecia “regularmente na lista dos

que [recebiam] subsídios” (Santos, 2004: 236), influenciaram na decisão da

comissão de censura nunca se saberá. Mas, Prista Monteiro, em entrevista a

Sebastiana Fadda, não se refere a essa aprovação de A bengala em 1973 e

comenta repetidas vezes que a peça havia sido proibida e levada aos palcos

somente depois da Revolução dos Cravos; isso nos leva a crer que A bengala foi

proibida posteriormente, ou seja, na fase de montagem como havia alertado um

dos censores ao escrever que se deveria dar “muita atenção ao ensaio geral”.

IV. Considerações finais

(...) a Censura considera a perigosidade do delito em função da

temperatura política e emocional do momento e não a matéria em si

mesma. (Cardoso Pires, 2001: 167).

Na conjunção teatro e censura, precisamos considerar as relações das

partes envolvidas, seus vínculos implícitos ou explícitos com o regime político e

o posicionamento das personalidades teatrais – especialmente dramaturgos e

encenadores – acerca do teatro. Tanto as declarações de Ionesco em prol de um

4 Processo de Censura à peça A bengala, de Prista Monteiro, sob o registro 6307, Museu

Nacional de Teatro (MNT).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

147

antiteatro apolítico, como o posicionamento de Luís de Lima sobre teatro e

política e as boas relações de Ribeirinho com o regime de Salazar contribuíram

para que o teatro do absurdo, a princípio, não se tornasse um alvo da censura.

Entre as tentativas de encenação de A bengala uma década havia se

passado e a situação do país em 1973 era conflituosa como em 1961. Algo, porém,

de fato havia mudado em dez anos e a mudança não vinha de um afrouxamento

da censura – tampouco da saída de Salazar em 1968, sendo substituído por

Caetano que manteve as mesmas instituições e práticas censórias do salazarismo,

como é sabido –, mas de um fortalecimento dos movimentos oposicionistas ao

regime ditatorial espalhados pelo país, em que os artistas de teatro tiveram voz

ativa. Basta lembrar o relatório elaborado por um grupo da categoria enviado ao

3º Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, em 1973, que, como afirmou

Rebello, procurava mostrar a realidade dos fatos, em referência a nova Lei do

Teatro, promulgada dois anos antes: “uma ‘enunciação demagógica de princípios

gerais, aparentemente saudáveis, que são, na realidade, cerceados ou

completamente anulados no plano real através de proibições e, sobretudo, de uma

estranguladora e asfixiante centralização destinada a evitar uma verdadeira

emancipação do Teatro Português’” (Rebello, 1977: 32-33). Os termos do

relatório são absolutamente claros e revelam que também da parte dos artistas de

teatro não se podia mais tolerar a censura tampouco a ditadura que a havia

promulgado.

Se, por um lado, podemos apenas supor os motivos da censura tanto para

as proibições quanto para as autorizações de peças teatrais, por outro podemos

afirmar com certeza que na produção dos anos de 1960, principalmente no que se

refere à encenação, o teatro português contou com as mais diversificadas

tentativas dos artistas de passar pela censura e chegar aos palcos. Foram tentativas

que implicaram escolhas linguísticas e de tendências estéticas por parte dos

autores; recurso à comunicação mais direta com a mesa censória – como a carta

de Prista Monteiro ao Director Geral de Cultura Popular e Espectáculos em defesa

da encenação de A bengala – ou até outros meios como o de se servir das relações

privilegiadas com o regime, além dos protestos e abaixo-assinados contra a

intervenção da censura a um espetáculo em cartaz. Todos os meios validaram as

tentativas dos homens de teatro, pois de um modo ou de outro conseguiram dar

alguma voz à arte teatral em quase todos os seus aspectos, salvando-a do

completo silêncio.

Referências bibliográficas

Azevedo, C. (1999), A censura de Salazar e Marcelo Caetano: imprensa, teatro,

cinema, televisão, radiodifusão, livro. Lisboa: Editorial Caminho.

Cardoso Pires, J. (2001), E agora, José? Lisboa: Planeta De Agostini.

Fadda, S. (1998), O teatro do absurdo em Portugal. Lisboa: Cosmos.

Patrão, A. S. S. C. (2012), Francisco Ribeiro: determinação e circunstância:

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

148

cenas de um percurso de teatro. Dissertação de Mestrado em Estudos de Teatro,

Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras.

Prista Monteiro, H. (1972), A bengala. Lisboa: Edição do Autor.

Rebello, L. F. (1977), Combate por um teatro de combate. Lisboa: Seara Nova.

______ (1984), Cem anos de teatro português (1880-1980). Porto: Brasília

Editora.

Santos, G. (2004), O espectáculo desvirtuado: o teatro português sob o reinado

de Salazar (1933-1968). Lisboa: Editorial Caminho.

Sena, J. (1988), Do teatro em Portugal, Lisboa: Edições 70.

Simões, J. G. (2004), Crítica IV: o teatro contemporâneo (1942-1982). Lisboa:

Imprensa Nacional Casa da Moeda.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

149

Maria Della Costa em Portugal:

censura à peça Desejo

Miriele Abreu

[email protected]

Centro de Investigação Media e Jornalismo - CIMJ

Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura –

OBCOM/USP

Resumo - Este artigo propõe analisar a atuação da censura portuguesa durante o

governo de António de Oliveira Salazar, o designado Estado Novo, no ano de

1959. Determinou-se o estudo da atividade censória por meio da análise da peça

teatral Desejo, escrita pelo norteamericano Eugene O’Neill e traduzida pelo

brasileiro Miroel Silveira. Esta obra, que foi trazida a Portugal pela companhia

brasileira da atriz Maria Della Costa e de seu marido Sandro Polônio – a

Companhia Maria Della Costa –, norteará a análise aqui pretendida. No presente

estudo, que foi baseado na dissertação de Mestrado Maria Della Costa em

Portugal: Desafio à Censura, defendida na Faculdade de Letras da Universidade

de Lisboa em 2012, serão questionados os motivos por detrás da reprovação da

peça. Com base na coleta de dados obtidos no Arquivo Nacional da Torre do

Tombo (ANTT), além de outras fontes, será possível analisar a obra de O’Neill

na tentativa de compreender o olhar censório português.

Palavras-chave - Companhia Maria Della Costa | censura | teatro | Portugal.

Introdução

O Teatro Popular de Arte (TPA), depois chamado de Companhia Maria

Della Costa (CMDC), foi fundado por Maria Della Costa (hoje com 87 anos) e

por Sandro Polônio1 (1922-1995), com colaboração de Itália Fausta (1878?-

1951). A estreia do grupo se deu com a peça Anjo Negro, um texto de Nelson

Rodrigues que teve encenação do polonês Zbigniew Ziembinski, em 1948. No

ano seguinte, o grupo deslocou-se do Rio de Janeiro para a capital paulista, São

Paulo. Em 1954, o casal conseguiu construir um novo teatro, cuja acústica e

visibilidade eram privilegiadas. O Teatro Maria Della Costa, projetado por Oscar

Niemeyer e Lúcio Costa, encontra-se ainda hoje em funcionamento2.

1 É possível encontrar diferentes formas de grafar seu nome: Sandro Polloni, Sandro

Pollonio ou simplesmente Sandro. O empresário também se identificava como

Alexandre Marcello Polloni no início de sua carreira. A grafia aqui utilizada, no

entanto, seguirá a indicação que o próprio fez a respeito de seu nome, segundo confirma

Tania Brandão (2009:87) em seu livro Uma Empresa e Seus Segredos: Companhia

Maria Della Costa. 2 A APETESP – Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São

Paulo – assumiu o edifício e a programação artística desde 1978.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

150

A Companhia Maria Della Costa, que encerrou suas atividades em 1974,

teve grande relevância na história do teatro moderno brasileiro. Esta modernidade

teatral, surgida especialmente a partir dos anos 40 do século passado no Brasil,

está diretamente ligada ao advento do encenador, enquanto responsável por dar

uma unidade cênica ao espetáculo teatral. Nas peças montadas pelo casal, foi

contínua a presença de grandes nomes do teatro nacional brasileiro da época, de

atores a encenadores do mais alto gabarito. Da companhia de Maria e Sandro,

surgiram muitas propostas inovadoras e contestadoras que se refletiram tanto nas

atividades teatrais brasileiras, como também nas portuguesas.

No período aqui estudado, o governo português era dirigido por António

de Oliveira Salazar (1889-1970), que instaurou o Estado Novo em 1933. Este

regime ditatorial se prolongou até 1974, sob sua direção até 1968 e

posteriormente sob a administração de Marcello Caetano3 (1906-1980) até 25 de

Abril de 1974.

Ao se analisar os contextos político e histórico do final dos anos 50 em

Portugal, pode-se compreender que a repressão tornou-se cada vez mais nítida,

devido às diversas crises atravessadas pelo salazarismo. O endurecimento do

sistema político português se fez refletir em diversas manisfestações, inclusive

nas atividades das companhias teatrais, estrangeiras e portuguesas.

O grupo de Della Costa trouxe a Portugal um total de quinze obras, dentre

as quais duas foram proibidas, durante as temporadas de 1956/1957 e 1959/1960.

A peça Desejo, que será aqui analisada, foi uma das obras vetadas pela Comissão

de Censura portuguesa – a chamada Comissão de Exame e Classificação dos

Espectáculos – em 1959. A importância de escolher uma peça proibida pela

ditadura portuguesa reside no fato de se tentar analisar os motivos por detrás da

atuação censória, mostrando aquilo que se tentou calar há mais de cinquenta anos.

1 O aparelho censório português

O Estado Novo português foi comandado por António de Oliveira Salazar

entre 1933 e 1968, quando foi substituído por Caetano devido a uma incapacidade

física causada por um acidente. Marcello Caetano governou Portugal até 25 de

Abril de 1974 – a Revolução dos Cravos –, momento histórico de grande

relevância para o país, em que o regime ditatorial foi substituído pela democracia.

Foram diversas as crises que o regime salazarista atravessou entre 1958 e

1962. Ressaltam-se dois pontos de grande instabilidade para o governo de

Salazar: em 1958, a eleição fraudulenta para cargo presidencial, que fez vencedor

o apoiante salazarista, Américo Tomás, em detrimento do membro da oposição,

Humberto Delgado; e, em 1961, o início da Guerra Colonial.

A verdadeira crise dos anos 50 no sistema Salazar iniciou-se com a

candidatura à presidência de Humberto Delgado em 1958, o que foi, segundo

Fernando Rosas, um fator decisivo para “eliminar a eleição directa do presidente

da República” (Rosas, 1994: 511)4 e para causar uma instabilidade jamais

3 Há bibliografias em que seu nome vem grafado como Marcelo Caetano. 4Na obra de ampla investigação e de grande rigor documental que José Mattoso dirigiu –

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

151

restabelecida pelo governo de Salazar. O desagrado de membros civis e militares

para com o salazarismo foi crescendo e refletiu-se na audaciosa atitude de

Delgado, que, com alguma razão, acabou por ser considerado “o general sem

medo”.

Em 1961, iniciou-se a Guerra Colonial ou Guerra do Ultramar, um

confronto entre Angola, Guiné-Bissau e Moçambique contra as Forças Armadas

portuguesas. As antigas colônias reivindicavam sua liberdade perante o país

europeu. É importante lembrar que, em 1951, Salazar procurou se prevenir contra

intervenções internacionais, passando a considerar os territórios africanos como

“províncias ultramarinas” e não mais como colônias, conforme Fernando Rosas

cita:

[…] para prevenir previsíveis ingerências e pressões dos organismos

internacionais, Salazar procede […] à revisão constitucional, de penhor

integrista, que transforma as colónias e o império em «províncias

ultramarinas» e em «ultramar português», concebido o «todo português»

como uno e pluricontinental. (Rosas, 1994: 514)

No entanto, este procedimento legal utilizado nos anos 50 não amenizou

as futuras rebeliões nos países da África Negra, tendo como consequência a

sangrenta Guerra Colonial, que perdurou até 1974.

A crescente insatisfação com o governo originou manifestações, greves e

tentativas de golpe de Estado, o que veio a precipitar uma repressão mais explícita

e voraz. As humilhações e espancamentos eram frequentes em homens e

mulheres que foram detidos pela polícia política portuguesa, a PIDE, e entre eles

era possível encontrar artistas e intelectuais, que, ao longo de mais de quatro

décadas de repressão, não perderam, todavia, a coragem de pôr em causa o

regime. Nas palavras de Luiz Francisco Rebello, a polícia política “reprimia

ferozmente o movimento oposicionista, perseguia, encarcerava e torturava os

mais consequentes democratas.” (Rebello, 1977: 29). Foi neste período

conturbardo que a Companhia Maria Della Costa lutou para levar algumas de

suas obras ao público lusitano.

O teatro português, considerado uma atividade subversiva, foi alvo da

mordaça governamental. Para assegurar que a ideologia salazarista fosse

cumprida, os vogais da Comissão de Censura trabalhavam com minuciosidade na

verificação das peças que lhes eram enviadas. Os cortes e proibições eram

comuns durante o período aqui analisado – final dos anos 50 – e serviam para

controlar atores, escritores e encenadores, tanto portugueses como estrangeiros.

A censura pode ser definida como um instrumento repressor, podendo agir

física ou psicologicamente sobre um indivíduo, e rege-se de acordo com

interesses específicos de uma pessoa, um grupo ou um governo. A censura

governamental portuguesa limitou não somente as produções artísticas durante

História de Portugal –, no seu volume 7 é possível encontrar uma análise esclarecedora

de autoria de Fernando Rosas sobre a situação política, econômica e social entre 1950 e

1962.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

152

mais de quatro décadas de ditadura, mas também incutiu a autocensura em muitos

dos artistas.

Os censores eram responsáveis por analisar as obras – aprovação,

aprovação com cortes ou reprovação –, e por assistir ao ensaio geral, que

antecedia a estreia da peça. Neste ensaio, os vogais verificavam se os cortes

haviam sido acatados, averiguavam se a conduta corporal dos atores condizia com

os “bons costumes” e analisavam se os vestuários e o cenário eram adequados às

diretrizes defendidas pela Comissão de Censura, e, consequentemente, pelo

Estado Novo português. Caso o ensaio geral ocorresse como o esperado, o censor

liberava o espetáculo, que se tornaria posteriormente um evento público. No caso

de Desejo, a peça foi proibida mesmo antes de chegar ao ensaio geral.

A tentativa de compreensão dos motivos por detrás da proibição da peça

de O’Neill se baseará especialmente na análise dos documentos obtidos no

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), localizado em Lisboa. Na Torre

do Tombo, encontram-se arquivadas atas de reuniões semanais da Comissão de

Censura, contendo informações como a aprovação ou reprovação das peças

teatrais, possíveis declarações do presidente da Comissão e dos vogais presentes

etc.. Além das atas, a análise das obras teatrais poderá ser complementada através

dos processos do ANTT, que poderão conter pareceres de um ou mais censores

sobre a peça e/ou autor, cartas enviadas pela Comissão de Censura a quem solicita

a aprovação de uma obra e o respectivo retorno à solicitação, cortes efetuados

pelos censores, dentre outros itens. Ademais, o contexto político português dessa

época não deverá ser esquecido, já que a engrenagem repressora do governo de

Salazar tornou-se cada vez mais nítida no final dos anos 50, como já referido

anteriormente.

2 Desejo de O’Neill

Desire Under the Elms é uma peça do americano Eugene O’Neill (1888-

1953) escrita em 1924. Traduzida por Miroel Silveira, que a denominou Desejo,

a obra não foi liberada pela Comissão de Censura para representação no Teatro

Capitólio em Lisboa no ano de 1959, mesmo depois de adaptada para filme em

1958, com Sofia Loren, Anthony Perkins e Burl Ives.

O grupo Os Comediantes teve primazia na montagem da peça Desejo no

Brasil, com a encenação de Ziembinski e a participação de Sandro Polônio em

um dos papéis principais. Em uma segunda versão, Maria Della Costa

desempenhou o papel de Abbie. Representada largamente no Brasil, a peça foi

“um dos mais notáveis êxitos artísticos da Companhia de Maria Della Costa.”

(Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT).

No Brasil, o processo censório da peça não foi localizado no Arquivo

Miroel Silveira5, bem como no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e no Arquivo

5 O Arquivo Miroel Silveira, coordenado pela Profa. Dra. Cristina Costa, faz parte da

biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

(ECA/USP), sediada na capital. Possui um acervo de mais de 6.000 peças teatrais

censuradas no estado de São Paulo, no período de 1926 a 1970.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

153

Nacional do Distrito Federal. Neste, foi encontrado um processo referente à peça

Desejo de Eugene O’Neill de 1986, sem indicar Miroel Silveira como tradutor.

2.1 O infanticídio na obra de O’Neill

O enredo acontece na casa dos Cabot em uma fazenda em Nova Inglaterra

em 1850. Abbie Putnam, uma mulher de 35 anos, casa-se com Efraim Cabot (75

anos), um senhor já viúvo por duas vezes. Ele possui dois filhos do primeiro

casamento, Simão (39 anos) e Pedro (37 anos), e um filho mais novo da segunda

união, Eben (32 anos), que culpa Efraim pela morte de sua mãe. Abbie propõe ao

velho que o futuro bebê do casal seja o herdeiro da fazenda, objeto de desejo dos

três irmãos e especialmente do pai. Apesar de Eben afirmar categoricamente que

as terras pertencem à sua falecida mãe, compra a parte da fazenda dos outros

irmãos, que vão em busca de ouro na Califórnia. Eben aparentemente odeia a

madrasta por esta representar a possível disputa pela posse da propriedade,

contudo não consegue resistir à sua sedução.

Nasce o bebê de Abbie, fruto de seu relacionamento incestuoso com o filho

mais novo de Efraim. Na tentativa de provar seu amor a Eben, Abbie comete um

infanticídio, matando o próprio filho. Eben, cego de ódio, chama o delegado para

prendê-la, no entanto, acaba por admitir à polícia ser cúmplice de um crime que

não havia premeditado. O desejo ardente de Eben e Abbie resulta em uma relação

incestuosa seguida de infanticídio.

2.2 Recurso e reprovação

A peça Desejo recebeu o registro n° 5.924 e foi analisada por um grupo

de censores no dia 6 de Outubro de 1959, conforme consta na Ata n° 114 do

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Actas da Comissão de Censura. SNI-

DGE. Livro 10: ANTT). Desejo foi proibida pela Comissão de Censura no dia 27

de Outubro de 1959. Desta decisão, Sandro Polônio interpôs recurso, o que lhe

custou Mil Escudos. Apesar de o empresário, explicitamente, dizer aceitar cortes

ou suavização de algumas cenas, o recurso foi negado e a peça novamente

reprovada em 29 de Novembro do mesmo ano.

Os pareceres dos vogais no processo da peça n° 5.924, correspondente à

obra de O’Neill, suscitaram muitas dúvidas no que se refere às letras manuscritas.

Nestes processos, os censores escreviam à mão aquilo que analisavam a respeito

de cada peça no que concerne ao tema, à ação, ao valor literário, ao valor

dramático, ao valor moral e à repercussão sobre o público. As peças encontradas

na Torre do Tombo costumam vir com aproximadamente quatro ou cinco grafias

diferentes, ou seja, variando de acordo com o número de censores. Devido ao

recurso solicitado por Sandro Polônio quanto à proibição da peça, passaram no

processo três censores na primeira avaliação e outros cinco vogais no julgamento

do recurso.

A justificativa da Comissão de Censura a respeito do não provimento do

recurso baseou-se em um dos pareceres dos censores sobre a peça:

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

154

Para o conhecimento de V. Exa. comunico que a Comissão de Exame e

Classificação dos Espectáculos negou provimento ao recurso, interposto

por essa Empresa [Figueira de Gouveia], da decisão da peça

“DESEJO”, de Eugénio O’Neill, o qual foi baseado no facto da mesma

decorrer em ambiente e circunstâncias de demasiada crueza, de

sensibilidade e realismo mórbido que a tornam desaconselhável para o

publico em geral. (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT)

Os motivos descritos para justificar a reprovação da peça demonstram que

nenhum dos argumentos do recurso foi acatado, pois, segundo Sandro, a obra a

ser representada não continha situações que pudessem levar os censores a

interpretar o conteúdo com uma carga de crueza e realidade mórbida,

especialmente levando em conta as características do filme anteriormente

aprovado pela Comissão. O fato de ter havido a liberação de Desejo sob os

Ulmeiros (título do filme em Portugal) fez com que a CMDC prevesse que a peça

tivesse o mesmo desfecho, sobretudo porque a adaptação cinematográfica

utilizou, segundo Sandro, “uma interpretação mais detalhada e mais sensual do

que a peça de teatro” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Ainda do

mesmo recurso:

Acresce que a artista que interpreta o principal papel do filme, Sofia Loren,

estrela mundialmente conhecida e admirada pela sua beleza física e muito

especial “sex appeal”, situou a sua interpretação num clima de manifesta

sensualidade e interpreta nele publicamente cenas de viva sugestão para o

público, que a obra teatral não contem nem comporta. (Processos de

Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT)

A sensualidade muito explorada no filme não seria enfatizada no teatro,

conforme descreveu Sandro, pois a interpretação seria feita “com sobriedade e

em nível muito mais idealista e abstracto do que com exibição das fraquezas

humanas da carne ou exagerada exaltação dos instintos sexuais.” (Processos de

Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Além disso, a quantidade de público recebido

nos cinemas portugueses foi maior do que supostamente o teatro receberia. No

entanto, o que os censores realmente temiam era a aproximação e consequente

identificação do público com os atores de teatro por se tratar de um espetáculo ao

vivo. Aos olhos dos censores, o teatro costumava ser visto como um elemento

“perigoso”, capaz de influenciar o comportamento do espectador, segundo

confirma Ana Cabrera em Censura, teatro e o fim da ditadura em Portugal6:

A censura era de facto mais rigorosa na apreciação dos espectáculos

teatrais que em relação ao cinema. O que perturbava a censura era a

relação directa entre os actores e o público, onde este era envolvido e

convidado a partilhar cumplicidades, sentimentos, emoções e reflexões

que podiam desencadear efeitos no seu comportamento. De facto,

enquanto o palco proporcionava uma relação directa, sempre próxima da

6 Disponível em: Censura, teatro e o fim da ditadura em Portugal.

<URL:http://pluralpluriel.org/index.php?option=com_content&view=article&id=117:

censura-teatro-e-o-fim-da-ditadura-em-portugal&catid=52:numero-02&Itemid=55>

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

155

realidade dos espectadores, […] o cinema mantinha a distância e o ecrã

constituía o filtro que separava o público da cena ficcional.

O filme protagonizado por Sophia Loren traz cenas bastante sensuais

como, por exemplo, o momento em que Abbie e o enteado se entregam um ao

outro pela primeira vez; ou cenas densas que retratam um ambiente mórbido.

Apesar de o infanticídio ficar apenas implícito, por não ter sido exposto na

produção cinematográfica, os olhares, a volúpia, o desejo de Abbie e Eben são

mostrados ao longo de todo filme.

No relatório da primeira avaliação contido no processo da peça, de 20 de

Outubro de 1959, um dos censores, aqui chamado de 1° vogal, descreveu os

quesitos “valor literário” e “valor dramático” como “bom”. No item “valor

moral”, o censor enfatizou ser “muito perigoso” e, quanto à “repercussão sobre o

público”, o 1° vogal advertiu: “Julga-se que provocará algum escandalo visto

tratar-se dum incesto seguido de um infanticídio…”. O censor admitiu a

importância da obra de O’Neill, todavia destacou o perigo do tema abordado. Em

26 de Outubro do mesmo ano, um outro integrante da Comissão, o 2° vogal,

defendeu que a produção cinematográfica acabava por abrandar os efeitos

textuais:

Com a versão teatral presente já o mesmo não sucede; o ambiente é

restrito, denso de sensualidade, provocante e chocante. Esses efeitos

atenuam-se […] no cinema.

O teatro é mais perigoso, mais comunicativo…

(Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT)

Em ambas as reprovações, os censores seguiram a mesma linha de

posicionamento.

No julgamento do recurso do dia 15 de Novembro de 1959, um dos

censores – 3° vogal – acrescentou que na peça “as situações são realmente mais

delicadas do que no filme que dela foi extraído e o diálogo é muitíssimo mais

violento e crú.” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). É interessante

analisar que o ensaio geral nunca existiu, portanto, “as situações” fazem parte da

interpretação do censor e não da encenação da companhia. O vogal ainda

ressaltou que “tudo parece mais sórdido, mais animal – e o incesto e o infanticídio

mais repugnantes.” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Se o critério

moral fosse realmente utilizado para a liberação do filme, provavelmente também

não seria aprovado, porém, é possível que a importância da atriz e/ou da produção

cinematográfica tenham sido levados em consideração na análise censória.

Ainda no recurso, outro integrante da Comissão, denominado 4° vogal,

descreveu que o Teatro de Eugene O’Neill – e, especificamente, a peça Desejo –

apresenta traços de ambição, ódio, sensualidade e traição. No mesmo parecer, de

25 de Novembro de 1959, o 4° vogal finalizou sua argumentação: “Não vemos

que qualquer interpretação […] possa remediar a estructura moral da peça”

(Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT). Seguindo esta linha de

raciocínio, é preciso afirmar novamente que a estrutura textual da obra foi seguida

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

156

no filme, e, por este motivo, não parece ser muito coerente o argumento acima

utilizado.

A primeira peça de Eugene O’Neill representada em solo português foi

Electra e os Fantasmas em 21 de Fevereiro de 1943. De acordo com os dados

coletados na CETbase (Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa),

o autor Eugene O’Neill já havia sido representado em Portugal antes da

encenação da Companhia Maria Della Costa, com as peças: Electra e os

Fantasmas, de 1943, pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro; Ana

Cristina, de 1947, adaptação de Henrique Galvão para uma encenação de Maria

Matos no Teatro Avenida; Le Deuil Sied à Electre, de 1950, uma adaptação de

Paul Blanchart trazida pelos Comediantes de Paris que Erico Braga produziu para

o Teatro da Trindade, com o apoio da Aliance Française; Jornada para a Noite,

de 1958, tradução de Jorge de Sena, pelo Teatro Experimental do Porto; Óleo, de

1958, pelo Teatro Universitário de Lisboa; Antes do Pequeno Almoço, sem data

definida (anos 50), com tradução de António Pedro.

O Arquivo Nacional da Torre do Tombo disponibilizou uma obra de

O’Neill intitulada Ao Amanhecer, cujo título estava descrito como “provisório”.

A peça, com tradução de Alice Ogando, foi aprovada sem cortes no dia 14 de

Maio de 1943 (Processos de Censura: 2824 SNI-DGE: ANTT). Não se pode

concluir, no entanto, que o texto tenha sido levado ao palco.

A quantidade de obras de Eugene O’Neill encenadas em Portugal

pressupõe uma certa maleabilidade da censura perante o autor, que não teve

outras peças proibidas, exceto Desejo. Pôde-se notar nos pareceres dos censores

do processo Desejo que o “inconveniente” estava vinculado à temática da obra e

não necessariamente ao seu dramaturgo. Vale lembrar, no entanto, que o

empresário Vasco Morgado conseguiu aprovação (com cortes) para a peça Desejo

sob os Ulmeiros, com tradução de Jorge de Sena, em 1962 (Processos de

Censura: 6944 SNI-DGE: ANTT).

O’Neill aborda em sua obra assuntos como o incesto, a solidão humana, o

assassinato, a relação entre Deus e o Homem. Estes temas encontram-se nas

tragédias gregas, mas ganhavam renovada importância por influência de

correntes teóricas como a psicanálise, tendo sido transpostos para a literatura, o

teatro e o cinema no século XX de maneira magistral. Cabe ressaltar que algumas

das temáticas abordadas em Desejo foram muito malvistas pelos censores

portugueses, pois remetem a assuntos polêmicos como o infanticídio e a relação

amorosa entre madastra e enteado, além da descrença de Eben em Deus.

Diferentemente, seu pai preferiu ver o bebê morto a aceitar que não fosse seu,

dando à sua crença um teor mais pesado, na medida em que acreditava na

vingança divina. Abbie, pelo seu lado, afirma, antes de matar o filho, que poderia

tirar uma vida, ou seja, assumir uma função que deveria ser prerrogativa apenas

de Deus. Todos estes elementos, juntos numa mesma peça, serviram para alarmar

em demasia os censores, que viram na proibição a posição mais segura para a

peça do dramaturgo americano. E, sem dúvida, o questionamento a Deus é um

insulto à Igreja Católica.

Aos olhos dos censores, muitos motivos poderiam ser destacados para

justificar a reprovação, entretanto, não houve qualquer preocupação em relação à

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

157

companhia, que já se encontrava em Portugal com todo o aparato cênico. A

Companhia Maria Della Costa trouxera 42 integrantes, entre artistas e técnicos, e

toneladas de material, que incluía guarda-roupa, adereços e cenário. No recurso

enviado à Comissão de Censura, Sandro relembrou do prejuízo que sofreria caso

não fosse concretizada a temporada de Desejo, o que fatalmente ocorreu.

Maria Della Costa enfatizou durante uma entrevista concedida em São

Paulo: “Desejo é pior que A Alma Boa de Se-tsuan”, porque “é um drama muito

violento”, demonstrando com isso que a CMDC pressentia, de alguma forma, o

risco que havia de a peça ser reprovada devido à sua temática, mas, por outro

lado, persistia a esperança pelo fato de que o filme já tinha sido aprovado

anteriormente.

O’Neill foi citado por Sandro Polônio no recurso como forma de

demonstrar que o dramaturgo sempre primou por um trabalho distinto, e sua

atuação não se firmava em criticar os valores morais tão defendidos pela censura

salazarista: “… a sua ideologia [de O’Neill] não é revolucionária nem ultra-

moderna, no sentido de criticar os princípios morais basilares da nossa civilização

ocidental e cristã.” (Processos de Censura: 5924 SNI-DGE: ANTT).

Por mais que Desejo tivesse um desfecho construtivo com a prisão de Eben

e Abbie, a obra foi considerada subversiva e moralmente desaconselhável. Ainda

que o filme estivesse, pouco tempo antes, em exibição nos cinemas portugueses,

os oito censores foram unânimes na reprovação de uma obra de grande valor

artístico, sem dar ao menos a oportunidade de um ensaio geral, como fora

solicitado por Sandro no recurso.

Considerações finais

A mordaça governamental simbolizada pela censura às peças teatrais e

demais atividades artísticas foi, pouco a pouco, tornando-se mais explícita. O

governo português temia o teatro por considerá-lo, por vezes, uma atividade

imoral e subversiva, além de mobilizadora, visto que os espectadores poderiam

ser “contaminados” por aquilo que era sugerido em cena. As medidas mais

drásticas e mais nitidamente repressoras do governo em relação às atividades

teatrais ocorreram a partir do final dos anos 50 e recrudesceram-se, sobretudo,

depois do início da Guerra Colonial em 1961.

A Comissão de Censura, através de seu presidente e atendendo as regras

do Estado Novo, impunha as diretrizes de atuação de seus vogais. No entanto,

havia um caráter pouco coerente de certas decisões dos censores, o que pode ser

confirmado nos processos existentes na Torre do Tombo. A coerência, ou a falta

dela, pode ser explicada pelo fato de certas decisões censórias descritas em alguns

dos processos do ANTT – tendo em vista o contato com vários processos

censórios ao longo da pesquisa de Mestrado – serem demasiadamente

abrangentes, não explicando os motivos dos cortes ou reprovações de uma forma

clara. Os agentes teatrais deveriam aceitar a decisão dos censores para poderem

levar adiante o projeto do espetáculo, o que não quererá dizer que não houvesse

pedidos de recursos – como foi o caso de Desejo.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

158

Em se tratando da peça de O’Neill, mesmo que a CMDC fosse flexível a

algumas mudanças, a censura portuguesa viu na proibição a única posição a ser

tomada diante da temática de Desejo. Nem mesmo um autor de renome mundial

como o norteamericano Eugene O’Neill conseguiu escapar da reprovação da

Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos. Pena foi que o público

português não teve acesso a um grande texto, Desejo, e à encenação de um

importante e respeitado grupo brasileiro de teatro, a Companhia Maria Della

Costa.

FONTES

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO

Fundo do SNI – Processos da Direcção-Geral dos Serviços dos Espectáculos

SNI-DGE 5924 (Desejo de Eugene O’Neill, tradução de Miroel Silveira)

SNI-DGE 2824 (Ao Amanhecer de Eugene O’Neill, tradução de Alice

Ogando)

SNI-DGE 6944 (Desejo sob os Ulmeiros, de Eugene O’Neill, tradução de Jorge

de Sena)

Actas das reuniões da Comissão de Exame e Classificação de Espectáculo

Livro 10: Atas 1959-1960.

Bibliografia

Cabrera, Ana, Censura, teatro e o fim da ditadura em Portugal. Disponível em:

http://www.pluralpluriel.org/index.php?option=com_content&view=article&id

=117:censura-teatro-e-o-fim-da-ditadura-em-portugal&catid=52:numero-

02&Itemid=55. Consultado a 20 de Agosto de 2012.

O’Neill, Eugene (1970), Desejo, trad. de Miroel Silveira. Rio de Janeiro: Bloch.

Referências eletrônicas

CETbase. Disponível em: http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/. Consultado a 20 de

Agosto de 2012.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

159

I I I . M e d i a e I n t e r n e t

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

160

Mulheres, censura e internet: os casos Anne Frank e Xuxa Meneguel

Barbara Heller1

[email protected]

Docente do Mestrado e Doutorado em Comunicação

da Universidade Paulista (Unip)

Resumo - Analisamos duas notícias referentes a censura e gênero, veiculadas na

mídia virtual, para entender algumas motivações que ainda cerceiam a liberdade

de expressão, quando estão em pauta o corpo feminino e as liberdades

individuais. A primeira trata sobre a multa que a rede de Rádio e Televisão

Bandeirantes terá de pagar à Xuxa, celebridade midiática brasileira, por ter

veiculado fotos dela sem autorização. Comparamos os sites Última Instância e

Conjur e analisamos as implicações políticas das diferentes estratégias

discursivas empregadas em cada um. Na outra notícia, o pedido de proibição de

O Diário de Anne Frank, no site da Folha de S.Paulo, analisamos, numa

perspectiva bakhtiniana, o emprego das palavras supostamente geradoras da

polêmica. Finalmente, por meio das ideias de Iuri Lotman, destacamos a

importância da cultura, pois é ela que impede o esquecimento gerado pelos

sucessivos atos censórios. Chegamos à conclusão de que vivemos num sociedade

de controle, conceito desenvolvido por Sergio Amadeu, e que estamos longe de

resolver a tensão entre direitos individuais e liberdade de expressão.

Palavras-chave - censura | gênero | liberdade de expressão | direitos individuais

| memória.

“Censura é o controle estatal arbitrário sobre a informação, sobre a

atividade jornalística e sobre o entretenimento” (Zylbersztajn, 2008: 1).

Ela também significa,

Do ponto de vista do direito constitucional, [...] todo procedimento do

Poder Público visando a impedir a livre circulação de ideias contrárias

aos interesses dos detentores do Poder Político. Vale dizer, o Estado

estabelece previamente uma tábua de valores que deve ser seguida pela

sociedade. Os censores oficiais aniquilam qualquer manifestação

diferente da ideologia do Estado (Farias, 1)

Seja qual for a definição que quisermos adotar, o fato é que a censura no

Brasil converteu-se numa prática cotidiana e ritualizada, pelo menos desde o

século XVII, como já denunciava o Padre Antonio Vieira no sermão “Visitação

1 Graduada em Teoria Literária pela Unicamp (1982), mestre em Ciências da

Comunicação pela Usp (1990), doutora em Teoria Literária pela Unicamp (1997) e pós-doutora em Comunicação pela Umesp (2011). Atualmente realiza pós-doutorado em Comunicação na Eca/Usp. e-mail: [email protected]

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

161

de Nossa Senhora”, proferido em 02 de julho de 1640:

O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe

a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir

o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na

garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum

gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as

vozes do poder, e venceram os clamores da razão. (apud Lima)

No século XIX, mais precisamente em 1808, quando os portugueses

chegaram por aqui, impediram o livre funcionamento da Imprensa Régia. Ao

longo de todos esses séculos a censura passou por diversas modulações e

regulamentações; atualmente, as elites dirigentes ainda perseguem a opinião

pública, o pensamento crítico, os discursos, as imagens, por meio de mecanismos

mais difíceis de serem identificados e combatidos. (Costa, 2012: 3).

As motivações para cercear a livre expressão, dependendo de quem as

aplica, podem ser econômicas, políticas ou morais e muitas vezes elas se

misturam, especialmente depois da Constituição de 1988, que aboliu,

oficialmente, a censura. Citamos apenas um exemplo recente, mas bastante

representativo do que estamos querendo mostrar da aplicação censória na

contemporaneidade: a jornalista e psicanalista Maria Rita Kehl, que colaborava

desde fevereiro de 2010 no Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, foi demitida em

outubro do mesmo ano depois de ter escrito o artigo “Dois Pesos”, no qual

abordou a “desqualificação” do voto dos pobres “pelos cidadãos que se

consideram classe A”. (Kehl). Segundo entrevista concedida ao site viomundo, a

causa de sua demissão deveu-se não apenas às suas ideias, consideradas um

“delito de opinião”, mas também à grande repercussão dos leitores na internet.

(Lemes, 2010)

Perguntamos, então: a alegação de O Estado de S. Paulo que, por sinal,

também está sob censura desde junho de 2009, impedido de divulgar qualquer

notícia referente sobre a Operação Boi Barrica, que investiga o envolvimento do

filho de José Sarney, suspeito de fazer caixa 2, na campanha de Roseana Sarney,

na disputa pelo governo do Maranhão em 2006, é de ordem política, moral ou

econômica? Dependendo dos argumentos utilizados poderemos reconhecer a

predominância de um sobre o outro, ou uma oscilação entre eles, uma vez que

são ideológicos e se concretizam por meio da linguagem, cujos sentidos são

determinados conforme o momento histórico e o contexto discursivo em que

foram produzidos.

Assim, conclui-se que hoje a censura é decorrente de mecanismos de poder

e busca silenciar ou apagar discursos que não lhe são convenientes até mesmo em

regimes democráticos, como o que estamos vivendo no Brasil.

Mas o silêncio, diferentemente do que gostariam os que o impõem, tem

significado, é opressivo, mas não consegue calar o interlocutor; apenas o impede

de sustentar outro discurso. (Orlandi, 2007: 102). Quando isso ocorre, muitas

vezes por meio de ameaça à integridade física ou do expurgo e manipulação de

textos, imagens e palavras etc., afetam-se a memória dos sujeitos, sua capacidade

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

162

de se posicionar em diferentes contextos e de se expressar.

A associação entre a palavra dita e a memória e, o seu contrário, entre a

censura, o silêncio e o esquecimento é parte constituinte da nossa cultura

ocidental e remonta à mitologia grega:

Esquecimento ou silêncio é a potência da morte que se ergue frente à

potência da vida, Memória, mãe das musas. Por trás do elogio e da

censura, o par que representa fundamentalmente as potências antiéticas é

formado por Mnemosine e Lete [um dos rios de Hades, do mundo

subterrâneo, cujas águas, se bebidas, levariam ao completo

esquecimento]. (Detienne, 1988: 20)

O poeta, para os gregos, é o responsável pela memória, por meio de seus

cantos e palavras. No entanto, elas podem ser boas ou más, uma vez que tanto

podem colaborar para a lembrança do mérito, quanto apenas exaltar os nobres,

seus gastos e suas vaidades. Essa ambiguidade da função do poeta permite

observar que censura e louvor nem sempre são antagônicas, uma vez que se

misturam e se confundem:

o campo da palavra poética parece estar polarizado por estas duas

potências religiosas: por um lado, a censura, por outro, o louvor. [...] Se

em determinadas tradições a censura é palavra malévola, crítica positiva,

ela se define, também, através de alguns de seus aspectos, como uma

ausência, uma falta de louvor (Detienne, 1988: 20).

Como se pode observar, há diversas teorias, desde as mais antigas, como a

grega, até a análise do discurso contemporânea, que explicam o que é memória e

sua relação com a censura e esquecimento/silenciamento. Para efeito de clareza,

partimos do princípio de que memória “é a capacidade humana de reter fatos e

experiências do passado e retransmiti-los às novas gerações através de diferentes

suportes empíricos (voz, música, imagem, textos, etc.)” (Von Simon). Ela pode

ser individual, guardada por um indivíduo e suas próprias vivências e

experiências, bem como do grupo social onde se formou e se socializou; coletiva,

“formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes e que são guardados como

memória oficial da sociedade mais ampla” e subterrâneas ou marginais, “que

correspondem a versões sobre o passado dos grupos dominados de uma dada

sociedade [...] geralmente muito bem guardadas no âmago de famílias ou grupos

sociais dominados nos quais são cuidadosamente passados de geração a geração”

(Von Simon). Com o avanço das tecnologias e o acesso às informações, quase

sempre em tempo real, estamos, segundo Olga Rodrigues de Moraes Von Simon,

perdendo a capacidade de selecionar aquilo que nos interessa saber, aprender e

também a criticar. Para os profissionais da informação, são essas as condições

ideais para a formação das chamadas sociedades do esquecimento.

Finalmente, recorrermos a Iúri Lotman, para quem cultura é informação

codificada: “Somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a

ser patrimônio da memória” (apud Ferreira, 1995: 117). Mais ainda: para esse

semioticista, a cultura combate o esquecimento, que tanto pode ser o da falha da

memória, quanto o da destruição desta memória (apud Ferreira, 1995: 118). Por

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

163

isso, para ele, uma das formas mais agudas de luta social no campo da cultura é

saber diferenciar a seleção da memória coletiva da imposição de uma espécie de

esquecimento obrigatório de determinados aspectos da experiência histórica.

Isso posto, apresentamos na sequência dois exemplos de censura na

contemporaneidade, veiculadas na mídia virtual, que tentam impedir a circulação

de representações do corpo feminino com o objetivo de apagá-las da memória de

telespectadores e leitores.

Nesses dois exemplos não reconhecemos mais as formas tradicionais de

censura – prévia e estatal – mas outras, decorrentes do desenvolvimento da

democracia no ocidente, dos meios de comunicação, da participação e interação

dos sujeitos nas mídias (Costa, 2012: 4).

Veremos em ambos os casos que o censor fardado, do estado autoritário,

foi substituído pelo censor togado: um civil, que busca interromper, por meio da

aplicação das leis e sanções econômicas, a reprodução de determinadas

informações, imagens ou campanhas.

Antes, porém, apresentamos algumas ponderações sobre a censura na

mídia virtual, uma vez que, ao contrário da impressa, permite, potencialmente,

maior interação entre censores e censurados.

A censura nas mídias digitais

Embora numa primeira instância pareça legítimo considerar que o advento

da comunicação em redes digitais anula as diferenças socioculturais no

ciberespaço, críticos da cibercultura já demonstraram, em diversos artigos, que a

cultura e as restrições de uma determinada nação migram para a rede.

Assim, embora a sociedade da era da informação2 esteja baseada em

princípios liberais, isto é, de acordo com a

ideia de que o poder político estatal deve respeitar os direitos individuais:

a propriedade privada, a livre iniciativa econômica e as liberdades

fundamentais, entre elas a liberdade de expressão, de associação e de

imprensa [...] nem todas as culturas e hegemonias políticas nacionais

aceitam ou interpretam do mesmo modo tais valores políticos (Amadeu,

2010: 66).

Portanto, a suposição de que a veiculação de qualquer ideia na rede é isenta

de conflitos mostra-se ingênua. Trata-se, isso sim, de administrar diferentes

interesses. Se não há uma regulação legislativa de cada país, o que acaba

prevalecendo são as relações de mercado.

Tampouco existe anonimato na rede. A internet, como lembra Sérgio

Amadeu, não é uma lei da selva, sem controle e sem lei. Internautas que

compartilham músicas sem pagamentos dos direitos autorais podem ser

identificados e multados. De um lado, como se pode apreender, estão os

2 Entendemos por era da informação o período a partir dos anos 1980, quando ocorreram

mudanças drásticas nas tecnologias, por meio de novas ferramentas, equipamentos,

capacitações e especializações.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

164

defensores dos fluxos de informação sem controle e, de outro, os que veem

ameaçados seus modelos de negócios por esses mesmos usuários.

Não são apenas os defensores dos copyrights e de lucros financeiros que

buscam mecanismos de controle na internet, mas também os que combatem

redes de pedofilia, golpistas e autores das mais diversas ameaças pessoais.

Se, de um lado, se faz cada vez mais ouvida a pressão de que é necessário

associar um número de IP a uma identidade civil, por meio de um controle técnico

de pacote de dados, a fim de garantir a integridade física e emocional dos

internautas, de outro, como raciocina Sérgio Amadeu, esse mesmo mecanismo

permite rastrear todas as movimentações do indivíduo na rede. Configura-se,

assim, o que Deleuze denomina de “sociedade de controle”, no lugar da

“disciplinar”.

As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o

indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição na massa. É

que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois [...] Nas

sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma

assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo

que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem

(tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). (apud

Amadeu, 2010: 75.)

Em outras palavras: enquanto nas sociedades disciplinares, pensadas por

Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1975), os espaços são nitidamente

demarcados e separados (escolas, hospitais, indústrias), com rigorosa ordenação

do tempo de trabalho, na de controle os espaços se interpenetram e o tempo é

contínuo.

Na sociedade disciplinada os sujeitos estão em constante observação e, o

poder, exercido de forma vertical, fora do alcance (panóptico). A reivindicação

decorrente seria maior transparência do poder, para sabermos quem vive nos

espiando e controlando. Na de controle, marcada pela interconexão, dispersão do

poder e horizontalidade, rastreiam-se padrões de comportamento e não sabemos

quem intercepta nossas mensagens e como nos proteger.

Não parece precipitado afirmar, portanto, que desde o advento da internet

experimentamos uma sociedade de controle, o que configura um paradoxo nos

regimes democráticos: afinal, por um lado, podemos ter acesso às mais diversas

informações, interagir diretamente e nos manifestar, mas, por outro, nunca fomos

tão observados horizontalmente e transformados, pois não somos mais

individualidades, mas perfis. Ao mesmo tempo em que temos a sensação de que

tudo podemos, o novo sistema de vigilância eletrônica tudo intercepta e

se preocupa em saber de que modo essas informações estão sendo

acessadas pelos indivíduos. Parece que o mais importante agora é a

vigilância sobre a dinâmica da comunicação não apenas entre as pessoas,

mas sobretudo entre estas e as empresas, os serviços on-line, o sistema

financeiro, enfim, todo o campo possível de circulação de mensagens.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

165

(Costa, 2004: 164)

Para Sérgio Amadeu, o controle na internet não é pernicioso ou benéfico

por definição, mas uma ferramenta técnica, cujos protocolos definem limites e

possibilidades de comunicação.

Consequência direta do controle também é a censura, sempre a serviço de

interesses particulares, como veremos nos dois exemplos a seguir.

O caso Xuxa Meneguel

Maria da Graça Meneguel, mais conhecida como Xuxa, nasceu no Rio

Grande do Sul, em 1963. Iniciou sua carreira profissional como modelo aos 16

anos. Aos 20, foi convidada para apresentar na TV o Clube da Criança na extinta

Rede Manchete. Em 1986 estreou na maior emissora brasileira de TV aberta, a

Rede Globo. Desde então tem encabeçado os mais diversos programas

televisivos, a maioria voltada ao público infantil. Também é atriz de cinema.

Sua relação com a censura é longeva, mas, para fins de clareza, ater-nos-

emos apenas a alguns episódios, os que consideramos mais ilustrativos para

compreender a complexidade de, num mundo interconectado, uma celebridade

processar sites ou pedir para retirar conteúdos da rede.

Em 1991, portanto, depois de ficar famosa, Xuxa mandou recolher, por

meio de uma liminar judicial, todas as fitas originais de locadoras e lojas do Brasil

do filme Amor, estranho amor, rodado em 1982, no qual interpretava Tamara,

personagem que seduzia um menino de 12 anos. Mas, apesar de seu esforço, não

conseguiu tirá-lo de circulação. Atualmente, é possível baixar o filme completo

no Youtube, comprá-lo na Amazon.com, ouvir depoimentos do ator com quem

contracenou sobre as filmagens, além das entrevistas que ela mesma concedeu na

década de 1990 em diversos programas televisivos.

Em 2010, Xuxa ganhou, em primeira instância, uma ação contra a maior

empresa de buscas do mundo, a Google, porque disponibilizava, para quem

teclasse as palavras “Xuxa” e “pedofilia”, “50100 textos e vídeos e mais 21400

fotos da apresentadora, em parte delas nua ou em cenas de sexo [...]. (Jardim,

2010.)

Inicialmente, a juíza concedeu a liminar a favor de Xuxa sob o argumento

“de que as imagens causavam danos ‘de difícil reparação’ à apresentadora e que,

portanto, teriam de ser retirados” (Roncolato, 2010). Se a Google não seguisse tal

determinação seria obrigada a pagar R$ 20 mil por cada resultado que

relacionasse a apresentadora à palavra “pedofilia” e valor idêntico para cada foto

ou vídeo que a mostrasse nua.

Em maio de 2013, no entanto, o Superior Tribunal de Justiça revogou a

interdição, pois considerou que a Google é tão somente uma indexadora de

conteúdos e não deve fazer controle prévio sobre os resultados publicados.

Um mês mais tarde Xuxa foi vitoriosa na justiça, dessa vez contra a Rede

e Televisão Bandeirantes, por ter veiculado, sem autorização, no programa

Atualíssima, fotos suas, sem roupas, de vinte anos antes, extraídas de uma revista

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

166

masculina.

Reconhecemos nesses dois episódios a presença da censura togada, isto é,

da realizada por meio de juízes e liminares. Os advogados de Xuxa alegam que,

quando são veiculadas imagens não autorizadas de uma celebridade, ocorrem

prejuízos materiais e também morais. Portanto, os argumentos não giram mais

exclusivamente em torno da moral, da religião e da política, como durante os anos

autoritários no Brasil, mas põem em evidência o debate entre liberdade de

expressão (nas mais diversas mídias) e respeito aos direitos individuais.

A ação contra a Google, dos exemplos citados, é a que mais bem

exemplifica essa tensão, uma vez que, para alguns juristas, ela deveria ser

responsável pelos conteúdos que disponibiliza mas, para outros, tratar-se-ia de

censura prévia, injustificável para um site de buscas.

No entanto, também reconhecemos na ação contra a Rede Bandeirantes,

dependendo do site consultado, essa oscilação entre liberdade de expressão e

direitos individuais. No site do jornal Última Instância há duas motivações

alegadas pelos advogados de Xuxa: o dano material “pelo uso indevido das

imagens [que] não se baseou no que a apresentadora deixou de ganhar, mas no

que ganharia pela sua autorização para a exibição das fotos” [sic] (Última

Instância) e o dano moral, pois:

o exercício do direito de informação jornalística e a liberdade de

manifestação do pensamento não são garantias absolutas, quando em

colisão com outros direitos e garantias constitucionais. O direito de

informar, segundo o órgão, encontra limite no direito de imagem de

qualquer cidadão. (Última Instância)

O texto é um tanto confuso. O leitor, para compreender a argumentação de

defesa dos danos materiais, precisa preencher dois vazios: “quanto Xuxa deixou

de ganhar, caso tivesse feito o quê, exatamente?”

Já em relação aos “danos morais” observamos o esgarçamento dos sentidos

atribuídos a essa expressão, uma vez que não comparecem argumentos sobre a

inconveniência de o programa ter veiculado imagens da apresentadora nua para

um público potencialmente com idade inferior a 18 anos. A redação, nessa

passagem, é organizada, linear e acaba por atualizar o debate sobre o direito à

informação versus preservação dos direitos do cidadão. Parafraseando o site,

diríamos que ele postula a seguinte questão: qual é o limite que separa a missão

de uma emissora – informar as mais diversas notícias, seja do passado, seja do

presente, de figuras – dos direitos de preservação de imagem desses mesmos

sujeitos?

Nesse site reconhecemos duas naturezas argumentativas dos Tribunais de

Justiça, autores das sentenças: a que protege o patrimônio de personalidades,

como Xuxa, e a que põe em xeque a missão de emissoras de televisão.

Já no site do Ministério da Justiça os aspectos morais comparecem, no

sentido estrito do termo, uma vez que os advogados de Xuxa alegam que ao exibir

indiscriminadamente as imagens, sem seu consentimento, o canal permitiu que

as fotografias chegassem a “todo tipo de audiência, inclusive menores” (Conjur).

Afinal, como já dissemos anteriormente, Xuxa havia autorizado a reprodução das

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

167

fotos exclusivamente para uma revista masculina, de tiragem limitada, destinada

a maiores 18 anos – condições que, se atendidas, garantiriam uma circulação

compatível com o público-alvo previsto.

Podemos começar a concluir que, embora reconheçamos, imediatamente,

argumentos jurídicos e sanções econômicas no site da Revista Consultor Jurídico

a emissoras que veiculam imagens de uma celebridade feminina nua para

menores de idade, essa questão também comparece no da Última Instância, mas

de forma implícita. Nesse caso, a discussão sobre a missão das mídias televisivas

acaba por encobrir se os direitos individuais dos sujeitos, que são os protagonistas

das notícias, devem ser preservados. Afinal, são eles que rendem lucro e dão

visibilidade às emissoras.

Não podemos deixar de comentar que, ainda que haja argumentos de

naturezas diferentes dos advogados de Xuxa, eles reforçam a ideia de que, ao

retirar das mídias as imagens não autorizadas, acabam por colaborar para seu

esquecimento. Esse possivelmente não é o objetivo da apresentadora, mas tão

somente o de receber alguma indenização.

Ao final desse artigo retomaremos essa discussão, uma vez que o caso da

Xuxa Meneguel contra a rede Bandeirantes é apenas um dos vários que expõem

as interdições impostas aos meios da comunicação ou à liberdade de expressão

na contemporaneidade. A edição definitiva de O Diário de Anne Frank, como

veremos na sequência, é mais um exemplo que põe em evidência outras

manifestações da censura, motivadas, aparentemente, por aspectos morais, no

sentido mais estrito do termo.

O caso Anne Frank

Embora esse caso não tenha ocorrido no Brasil, mas nos Estados Unidos,

a tentativa de uma mãe de estudante da sétima série para recolher do circuito

escolar a edição definitiva de O Diário de Anne Frank3 merece análise, uma vez

que ele ilumina a discussão, que também é nossa, sobre a suposta inadequação de

um texto canônico, simplesmente porque faz referências ao corpo feminino.

Gail Holarek, a referida mãe do parágrafo anterior, considerou essa edição

pornográfica e portanto inadequada para sua filha por ter incluído uma passagem

que havia sido expurgada pelo pai de Anne, desde sua primeira edição: “Até eu

ter 11 ou 12 [anos], eu não percebi que havia outros lábios dentro [da vagina],

porque não podia vê-los. O que é mais engraçado é que eu achava que a urina

saía do clitóris”. (Folha de S. Paulo)

A tônica do diário, no entanto, é totalmente diversa da que está provocando

a sra. Holarek. Escrito entre 12 de junho de 1942 e 1º de agosto de 1944, descreve

as impressões da menina de 13 anos, obrigada a morar escondida com seus pais

e irmã, juntamente com a família Van Daan, em Amsterdã, para não ser presa

pelos nazistas. O relato inicia-se pouco antes de sua ida ao esconderijo, com

3 O Diário de Anne Frank foi publicado a primeira vez em 1947 e traduzido em diversos

idiomas.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

168

descrições sobre amizades, tarefas escolares, o cerco aos judeus etc.

Durante o tempo em que esteve escondida, Anne escreve sobre o que

entende do contexto político e também sobre suas primeiras sensações amorosas

com Peter, um dos membros da família Van Daan, como o que segue:

às oito e meia me levantei e fui à janela, onde sempre nos despedíamos.

[...] Ele veio até mim, enlacei o seu pescoço e beijei-o no rosto, do lado

direito. Ia beijar do outro lado quando minha boca encontrou a dele e

comprimimos os lábios. Atordoados, nos abraçamos, de novo e de novo

para jamais terminar. Ah! (Frank, 2013: 285)

Após essa breve contextualização, interessa-nos investigar por que, numa

obra tão extensa em páginas, em temas e best-seller há muitas décadas, a inclusão

de um parágrafo sobre a fisiologia feminina gerou polêmica; mais ainda: por qual

motivo não responderam juridicamente e descartaram a demanda da Sra. Holarek.

Nossa primeira hipótese é por nele terem comparecido, explicitamente, as

palavras “lábios” e “clitóris”, enquanto no trecho reproduzido anteriormente as

que sugerem contato físico são expressões quase assexuadas: “enlacei o seu

pescoço”, “beijei-o no rosto”, “minha boca encontrou a dele”, “nos abraçamos”.

Não parece exagerado ponderar que, para os que defendem ou se

identificam com a sra. Holarek, a mídia impressa, desde os tempos de Lutero até

a contemporaneidade, é perigosa porque pode veicular ideias heterodoxas,

desviar condutas de comportamento e, portanto, necessita de supervisão e

também de censura.

Sabemos que enunciados nunca são neutros; tampouco as palavras que os

constituem. Essas, na perspectiva bakhtiniana são

produto ideológico vivo, funcionando em qualquer situação social do

diálogo (leia-se aqui ideológica), tornando-se signo ideológico porque

acumula as entoações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores

sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na

base da sociedade e, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas

estruturas sociais estabelecidas. (Stella, 2005: 178).

O desconforto que a Sra. Holarek afirma que sua filha sentiu ao ler o tal

parágrafo pode ser explicado pela sua adesão a uma ideologia mais conservadora,

que convive e disputa uma posição de poder com outras, mais liberais, também

compartilhadas socialmente. Afinal, como ainda afirma Mikhail Bakhtin, os

valores atribuídos ao que é dito pelo locutor “devem ser entendidos, apreendidos

e confirmados ou não pelo interlocutor” (Stella, 2005: 178).

Portanto, nossa hipótese é que existe uma ambiguidade nas palavras que

dão nome aos elementos dos genitais femininos: elas tanto podem ser

compreendidas como ofensivas à moral e desviantes de conduta, quanto

“pedagógicas”, uma vez que “ensinam” que meninas não urinam pelo clitóris e

que a vagina contém lábios menores e maiores.

Certamente, não é esse o viés da mãe reclamante, uma vez que, além de

pleitear que nenhum estudante da escola leia o livro (e não apenas sua filha),

sugere, ainda, que a escola deveria ter advertido as famílias sobre o conteúdo do

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

169

livro, como se o tema predominante em O Diário de Anne Frank fosse de caráter

sexual e não um testemunho de época e a luta de uma menina para sobreviver ao

holocausto.

Trata-se, nesse caso, de uma tentativa explícita de levar a geração presente

ao esquecimento, uma vez que o parágrafo em debate, como já dissemos

anteriormente, não foi publicado nas edições anteriores e, se retirado da

considerada definitiva, não terá sido do conhecimento das diversas gerações de

leitores.

A discussão sobre a edição definitiva ainda não chegou ao final. Algumas

entidades estadunidenses, como Projeto das Crianças de Ler, A Colisão Nacional

Contra a Censura, para ficar em apenas duas, têm reagido e argumentam que:

A passagem em questão se relaciona a uma experiência que pode

acontecer a qualquer um dos seus estudantes: mudanças físicas associadas

à puberdade. Anne não tinha livros ou amigos para responder suas

perguntas, então ela era forçada a confiar em suas observações. A

literatura prepara estudantes para o futuro, provendo oportunidades de

explorar problemas que eles podem encontrar durante a vida. Uma boa

educação depende da proteção ao direito de ler, perguntar, questionar e

pensar por si próprio. (Folha de S. Paulo)

Diferentemente do que reconhecemos no episódio de Xuxa, nesse não há

presença de liminares ou da censura togada, mas apenas de argumentos

moralistas. A mãe da estudante revela como determinadas palavras provocam

perturbação em sua filha; as entidades que defendem a permanência dessa edição

do livro no circuito escolar não defendem a liberdade de expressão propriamente

dita, apenas justificam as razões que teriam levado Anne Frank a descrever suas

descobertas fisiológicas: não ter a quem consultar sobre as modificações do

corpo.

Podemos começar a concluir que, embora os argumentos utilizados a favor

da preservação da circulação do livro no circuito escolar não manifestem

explicitamente a defesa da liberdade de expressão, eles foram eficientes para

coibir, pelo menos até o momento, a sua exclusão imediata do circuito escolar.

Considerações finais

“O corpo é o mais desejável objeto de consumo. [...] exibi-lo

ininterruptamente, em todo lugar, converteu-se numa condição de sua própria

existência” (Couto, 2002: 1).

O que quisemos mostrar neste artigo é que, embora a afirmação acima

corresponda ao que observamos nas mais diversas mídias contemporâneas, ainda

há grande diferença quando estão expostos corpos femininos ou masculinos. Às

mulheres, historicamente, têm sido atribuídas características de fragilidade,

dependência e sensibilidade, responsáveis “pela excessiva sensualidade feminina

e por sua transformação em feiticeira” (Chauí, 1984: 134-5.). Ao se tornarem

mães esses valores negativos são naturalmente transformados em positivos, pois

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

170

“tudo, na mulher, vem da natureza, e é por natureza que está destinada a ser mãe.

Seu espaço é a casa”. (Chauí, 1984: 135).

A figura masculina ainda é o seu oposto: ela encontra-se totalmente voltada

ao lado da cultura. Exceto pela virilidade, que é um dado natural, “os demais

atributos masculinos são sociais: responsabilidade, autoridade, austeridade.

Provedor da casa, seu espaço próprio é o público: o mercado e a política”. (Chauí,

1984: 135).

Para alguns pesquisadores sobre o corpo, os limites que separam

representações de homens e mulheres não deveriam mais ser tão dicotômicos,

especialmente a partir dos anos 1980, quando se buscou o estímulo físico de

ambos os gêneros por meio de dietas, de atividades de lazer e esportivas nas

academias de ginástica que se proliferavam nas cidades, nos parques, spas e, nos

anos 90, da novas tecnologias de reprodução e da tecnociência (Santana, 2000:

247).

Apesar dessa aproximação de mulheres e homens, em pleno século XXI,

diferentemente dos teóricos referidos acima, celebridades ou pessoas comuns

ainda procuram, por meio do aparato jurídico, retirar de circulação imagens ou

referências textuais do corpo feminino. Não há notícias semelhantes em relação

aos corpos masculinos, talvez por estarem menos erotizados nas mídias e,

portanto, menos suscetíveis à censura de ordem moral.

Nos exemplos que analisamos neste artigo reconhecemos que tanto Xuxa

quanto a sra. Holarek tiveram a mesma motivação para censurarem sites, rede de

televisão ou livros: a associação do corpo feminino com sexualidade e, portanto,

com falta de moral.

Como lembra Michelle Perrot, apesar dos movimentos feministas iniciados

desde os anos 1960, das leis sobre assédio sexual, da repressão ao incesto e ao

estupro, “a conveniência ordena às mulheres da boa sociedade que sejam

discretas, que dissimulem suas formas com códigos, aliás variáveis, segundo o

lugar e o tempo.[...] O prazer feminino é negado, até mesmo reprovado: coisa de

prostitutas” (2003: 15-6).

Gostaríamos de finalizar destacando que enfrentamos grandes paradoxos:

por um lado, vivemos uma larga experiência democrática, uma vez que na maior

parte dos países ocidentais leis são votadas, políticos são eleitos, podendo perder

seus mandatos quando não correspondem às expectativas sociais; que estamos

muito bem informados, pois o mundo está interconectado e sabemos de tudo e de

todos em tempo real, podendo até interagir; que há maior equilíbrio entre os

gêneros, pois homens e mulheres aprenderam a conviver mais e melhor nos

espaços públicos e privados. Mas, por outro, faz-se necessário reconhecer que,

mesmo nesses regimes democráticos, ainda cerceia-se, por liminares e

argumentos morais, a liberdade de expressão, principalmente quando a voz ou o

corpo em evidência são de mulheres, ainda mais se forem celebridades. Que não

temos mais privacidade, pois na sociedade em rede em que estamos mergulhados

todos são controlados e nossas movimentações convertidas em possibilidades de

negócios. Que os espaços, antes tão bem demarcados, estão interpenetrados e

difusos.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

171

Que, apesar da sensação de que podemos ter acesso aos mais diversos

produtos culturais, ainda há agentes que buscam mais o silêncio e o esquecimento

do que o louvor, para retomar o pensamento dos gregos. Que a censura tenta, por

meio de expurgo de imagens e textos, destruir a memória coletiva, como afirma

Iúri Lotman.

Como podemos resolver a tensão entre direitos individuais e liberdade de

expressão? Ainda não há respostas e talvez elas nunca se configurem, mas

entender as motivações aparentes e subliminares de personagens como Xuxa e a

mãe norte-americana, conforme relatamos, pode ser uma contribuição.

Referências

Amadeu, Sergio (org.) (2010), Ambivalências, liberdade e controle dos

ciberviventes. Cidadania e redes digitais. São Paulo: Comitê Gestor da Internet

no Brasil : Maracá – Educação e Tecnologias. Disponível em:

http://www.cidadaniaeredesdigitais.com.br/_files/003samadeu.pdf Acesso: 03

jul 2013.

Chauí, Marilena (1984), Repressão sexual; essa nossa (des)conhecida. São

Paulo: Brasiliense.

Costa, Cristina Castilho (2012), Relatório Científico Parcial do Projeto

Temático 2012. São Paulo: Eca.

Costa, Rogério (2004), Sociedade de controle. São Paulo em Perspectiva, 18(1):

161-167. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/spp/v18n1/22238.pdf Acesso:

04 jul 2013.

Couto, Edvaldo Souza (2002), O corpo polifônico. Projeto História, 25.

Disponível em: revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/download/10579/7869.

Acesso: 8 jul 2013.

Detienne, Marcel (1988), Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Rio de

Janeiro: Zahar.

Farias, Edilson, Democracia, Censura e Liberdade de Expressão e Informação

na Constituição Federal de 1988. Disponível em:

http://www.pi.trf1.gov.br/Revista/revistajf1_cap6.htm Acesso: 31 jul 2013.

Ferreira, Jerusa Pires (1995), Cultura é memória. Revista USP; S.Paulo, n 24,

p.115-120. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/24/14-jerusa.pdf.

Acesso: 04 ag.2013.

Folha de S. Paulo, Nos EUA, mãe pede à escola que proíba “Diário de Anne

Frank” por ser “pornográfico”. Disponível em:

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

172

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/05/1274941-nos-eua-mae-pede-a-

escola-que-proiba-diario-de-anne-frank-por-ser-pornografico.shtml Acesso: 31

jul 2013.

Frank, Anne (2013), O Diário de Anne Frank. Edição definitiva. 35. ed. Rio de

Janeiro: Record.

Jardim, Lauro, Xuxa versus Google. Disponível em:

http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/tag/pedofila Acesso: 03 jul 2013.

Conjur, Band é condenada a exibir fotos de Xuxa nua. Disponível em:

http://www.conjur.com.br/2013-jun-15/band-condenada-milhoes-exibir-

fotografias-xuxa-nua. Acesso em: 10 jul. 2012.

Kehl, Maria Rita, Dois pesos... Disponível em:

http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/maria-rita-kehl-dois-pesos.html

Acesso: 03 jul 2013.

Lemes, Conceição, Maria Rita Kehl, Os bastidores de sua demissão pelo

Estadão. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/politica/maria-rita-kehl-

os-bastidores-de-sua-demissao-pelo-estadao.html Acesso: 6 ag. 2013.

Lima, Venício A., A censura disfarçada. Disponível em:

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed715_a_censura_disfa

rcada. Acesso: 04 ago.2013.

Orlandi, Eni (2007), As formas do silêncio. Campinas: Editora da Unicamp

Perrot, Michelle (2003), Os silêncios do corpo da mulher. Matos, Maria Izilda;

Soihet, Rachel, O corpo feminino em debate. São Paulo: Unesp, 13-27.

Roncolato, Murilo, Xuxa e Google travam disputa judicial. Disponível em:

http://blogs.estadao.com.br/link/xuxa-e-google-travam-disputa-judicial/

Acesso: 11 jul 2013.

Santana, Denise (2000), As infinitas descobertas do corpo. Cadernos Pagu 14,

235-249. Disponível em:

http://ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/Pagu/2000(14)/SantAnna.pdf.

Acesso: 15 mai. 2013.

Stella, Paulo (2005), Palavra. Brait, Beth, Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo:

Contexto, p.177-200.

Última Instância. Band terá de pagar R$ 1,1 milhão indenização para Xuxa.

Disponível em:

http://ultimainstancia.uol.com.br/band+tera+de+pagar+indenizacao+para+xuxa.

shtml Acesso: 10 jul 2103.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

173

Vieira, Padre Antonio, Visitação de Nossa Senhora. Lima, Venício A., A censura

disfarçada. Disponível em:

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed715_a_censura_disfa

rcada. Acesso: 04 ago.2013.

Von Simon, Olga Rodrigues de Moraes, Memória, cultura e poder na sociedade

do esquecimento. Disponível em: http://www.ufpa.br/nupe/artigo1.htm. Acesso:

04 jul 2013.

Zylbersztajn, Joana (2008), Regulação de mídia e colisão entre direitos

fundamentais. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Direito

do Estado, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008.

Sites consultados

http://xuxa.globo.com/secoes/pagina/3/biografia Acesso: 03 jul. 2013

http://ne10.uol.com.br/canal/cultura/celebridades/noticia/2013/03/27/xuxa-50-

anos-relembre-momentos-e-polemicas-dessa-trajetoria-408401. Acesso: 03 jul.

2013

htp://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/tag/pedofila/ Acesso: 04 jul. 2013

http://blogs.estadao.com.br/link/xuxa-e-google-travam-disputa-judicial/ Acesso:

04 jul. 2013

http://www.emrevista.net/2013/05/google-vence-xuxa-na-justica.html Acesso:

04 jul. 2013

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

174

Lúcio Flávio – sobre a censura ao livro e à adaptação cinematográfica

Sandra Reimão

[email protected]

Universidade de São Paulo, USP

Resumo - O livro Lúcio Flávio - passageiro da agonia, escrito por José Louzeiro,

e publicado pela Editora Civilização Brasileira em 1975, gerou quatro pareceres

discordantes entre eles, tendo sido finalmente liberado. Em um segundo

momento, a possibilidade da adaptação do livro para filme foi tema de parecer

prévio do Departamento de Censura e Diversões Públicas, DCDP, que indicou

cortes e modificações. E, por fim, em um terceiro momento, o filme foi

examinado, foi vetado e, depois de cortes e modificações, liberado para maiores

de 18 anos. Esse artigo visa reconstituir e analisar, através dos pareceres

censórios, os passos principais da tumultuada trajetória desse livro e também de

sua adaptação cinematográfica pelo DCDP. O filme Lúcio Flávio – passageiro

da agonia, dirigido por Hector Babenco, com roteiro de José Louzeiro, Hector

Babenco e Jorge Duran, protagonizado por Reginaldo Faria, lançado em 1977,

foi visto por mais de cinco milhões de pessoas e foi uma forte denúncia da polícia

violenta e corrupta.

Palavras-chave - Lúcio Flávio - passageiro da agonia | José Louzeiro | censura

| DCDP.

Introdução

Há uma caixa nos arquivos do Departamento de Censura e Diversões

Públicas, DCDP, uma pasta indicada como O caso Lou – assim é se lhe parece e

Lúcio Flávio – passageiro da agonia. Os livros de Carlos Heitor Cony e José

Louzeiro foram publicados Editora Civilização Brasileira em 1975 como os

volumes iniciais de uma coleção denominada Romance-reportagem.

Não há indicações de como esses livros foram encaminhados ao DCDP.

Em lá estando, seguiram-se o trâmite usual: encaminhamento a censores-

pareceristas. Os pareceres teriam, por finalidade, subsidiar a decisão de interação

ou liberação das obras. (Reimão, 2011: 17-56)

O livro de Carlos Heitor Cony foi liberado no primeiro parecer. Já com a

obra de José Louzeiro a história foi mais tumultuada e complexa.

Vejamos os capítulos dessa história mais de perto:

1.Lúcio Flávio - um livro, quatro pareceres

O livro gerou quatro pareceres discordantes (dois pela interdição, um

inconclusivo e um pela liberação) tendo sido finalmente liberado.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

175

O primeiro parecer (812/76), de 12 de maio, assinado pelo técnico de

censura Augusto da Costa indica a interdição e o faz por três motivos:

1) mensagem negativa pois “apresenta o bandido com uma aureola de

bom moço e a polícia como única culpada por ele ter enveredado no crime”; 2)

“desmoraliza o aparelho policial apresentando alguns de seus integrantes como

corruptos /e/ (...) como tarados”; 3) “O palavreado é do mais baixo calão,

pornográfico”. (Sobre os censores, ver Stephanou, 2001).

O segundo parecer (861/76), de 20 de maio, assinado por Maria Ribeiro de

Almeida, tem uma visão totalmente diferente do primeiro no que tange ao

personagem título que, segundo a parecerista-censora, é retratado no livro como

“um homem audacioso e inteligente, que forçado pelas circunstâncias se

transformou em herói (ou bandido) (...) perseguido pelas autoridades”. Na mesma

linha de argumentação, o parecer destaca que o personagem-título foi

“covardemente assassinado, por um companheiro de cela”.

A censora, depois de observar que tanto o personagem-título quanto várias

outras presentes no romance são “personagens verídicos que, durante alguns anos

foram notícia”, salienta que antes de morrer Lúcio Flávio “expiou seus erros e

pecados”.

O parecer ainda indica que “o linguajar é do mais baixo calão até hoje

usado” e que o livro é contra “elementos que representam o lado deteriorado da

polícia”. Ou seja, o parecer não afirma que o romance visa denegrir a imagem da

polícia e sim que coloca-se contra os polícias corruptos.

Surpreendentemente, de maneira incoerente com a ressalva feita de que

apenas alguns elementos da polícia são deteriorados, o parecer indica o veto, pois

“as acusações são feitas com tal habilidade e astúcia que se chega a duvidar que

seja fruto apenas da imaginação fértil do autor.” E conclui: “Os fatos são

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

176

evidentes e mostram os métodos monstruosos praticados nas delegacias e

presídios”.

O terceiro parecer (324/76), inclonclusivo, assinado por Hellé Prudente

Carvalhedo em 24/06/1976, começa afirmando que a linguagem de baixo calão é

“própria do ambiente em que se desenrolam os fatos”; que a crítica à organização

policial é genérica e, por fim, a trajetória de Lúcio Flávio “embora narrada de

forma a humanizar e desculpar seus erros, revela-se condenatória (...). Não há a

preocupação de criar um mito”.

Depois dessas ponderações, o parecer afirma que o veto ao livro, caso

venha a ocorrer, seria devido às “acusações acerca de corrupção de policiais (...)

citações constantes de pessoas reais” e que esse tipo de problema foge “à

atribuição censória no que diz respeito às publicações literárias”.

O parecer 325/76 de J. Antonio S. Pedroso, de 24/06/1976 começa por

localizar que o personagem-protagonista é “o conhecido assaltante Lúcio Flávio

Vilar Lírio, famoso por suas fugas espetaculares e prisões rumorosas,

amplamente divulgadas pela imprensa”.

A seguir, o parecer afirma que a obra apresenta-se como um romance-

reportagem e que “o livro procura sempre emprestar aos fatos o máximo de

realidade” e que a presença de palavras e termos chulos nos diálogos são

“desculpáveis pela características do veículo, livro, e pela fidelidade (...) na

representação dos personagens” (grifo nosso).

O parecer indica a liberação do livro pelo motivo já apontado no parecer

3, qual seja, que a narrativa não induz ao crime “pois relata mais percalços e

desgraças do personagem central que seus efeitos vitoriosos”. No final, em uma

redação um tanto confusa, é destacado que a tortura a presos, presente na obra,

pode desestimular o crime.

Não sabemos dizer se os censores-pareceristas conheciam os outros

pareceres. Aparentemente os dois pareceres iniciais foram elaborados de forma

independente. Deduz-se que os pareceres 1 e 2 não tiveram continuidade, ou seja,

não foram utilizados como subsídios para despachos de interdição. Quanto aos

pareceres 3 e 4, a coincidência de datas indica que eles devem ter sido

simultaneamente solicitados.

2. Sobre a adaptação do livro para o cinema: a pergunta de Roberto Farias

Em 2 de agosto de 1976, Roberto Farias, diretor geral da Empresa

Brasileira de Filmes S.A., Embrafilme, escreveu para Rogério Nunes, diretor do

DCDP, indagando sobre a viabilidade da adaptação para cinema do livro, do

ponto de vista daquele órgão censório.

Encontrando-se em tramitação nesta Empresa um projeto de filme cujo

roteiro baseia-se no livro Lúcio Flávio – passageiro da agonia (...)

agradeceria se nos fosse dado conhecer, por antecipação, o ponto-de-vista

da censura sobre a conveniência de participarmos desse empreendimento.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

177

Lembro que não pesa sobre o livro nenhuma restrição de parte do órgão

dirigido por V. Sa.

Na realidade, antes mesmo do pedido formal de Roberto Farias já havia

sido elaborado no DCDP um parecer a respeito dessa adaptação – com data de 24

de junho de 1976, assinado por Hellé Prudente Carvalhedo e J. Antonio S.

Pedroso – os mesmos autores dos pareceres 3 e 4.

A manifestação dos censores em respeito já estava feita em data anterior à

questão de Roberto Farias, o parecer sobre a “Transformação do livro em roteiro

para filme cinematográfico” (326/76) começa considerando que o filme terá apelo

comercial devido à violência e por ser um caso real. A seguir, o parecer fala da

grande capacidade de comunicação do cinema, especialmente para criar mitos e

acaba por concluir que:

consideramos viável a transformação do livro em roteiro cinematográfico,

desde que sejam configurados, de forma clara, o arrependimento do

criminoso com seu estilo de vida (...) e, finalmente, seu propósito em tentar

regenerar-se, dias antes de ser morto por seu companheiro de cela.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

178

O parecer salienta ainda que o filme deva mostrar policiais “em serviço

normal”.

2.Mais e mais documentos

Ao parecer 326/76 seguiram-se ainda:

1) Ofício (508/76) de Moacyr Coelho, diretor geral do DCDP ao Ministro

da Justiça, Armando Falcão, relatando o caso e afirmando que há 25 palavras de

baixo calão no livro mas que “a proibição do livro (...) somente viria a aumentar

a curiosidade popular em torno do criminoso”;

2) Manifestação do chefe de gabinete, Alberto Rocha, ao Ministro

afirmando que o livro “não incensa um criminoso” e que é importante que “a

sociedade conheça seus reais problemas”;

3) Correspondência de Fernando Falcão, assessor especial, de agosto de

1976 (sem indicação de dia) ao Ministro condensando as posturas de Moacyr

Coelho pela liberação do livro;

4) Ofício (584/76) do Diretor do DCDP ao diretor-geral da Embrafilme

informando que o caso foi apresentado ao Ministro;

5) Novo ofício (663/76) do Diretor do DCDP ao diretor-geral da

Embrafilme informando “não haver inconveniente, sob o ponto de vista censório,

no aproveitamento do roteiro de filme inspirado no livro Lúcio Flávio –

passageiro da agonia, de José Louzeiro”.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

179

Encerrando, o ofício assinala que o filme deve cuidar-se para “não

apresentar cenas ou situações que possam provocar incitamento contra as

autoridades e seus agentes, proibidas pela legislação em vigor” e toma o cuidado

que indicar o Decreto 20493, artigo 41, alínea d como fonte para essa ressalva.

O Decreto 20493, de 24 de janeiro de 1946, criou e regulamentou Serviço

de Censura e Diversões Públicas. Citemos o Artigo 41:

Art. 41. Será negada a autorização sempre que a representação,

exibição ou transmissão radiotelefônica:

a) contiver qualquer ofensa ao decoro público;

b) contiver cenas de ferocidade ou for capaz de sugerir a prática de

crimes;

c) divulgar ou induzir aos maus costumes;

d) for capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a

ordem pública, as autoridades constituídas e seus agentes;

e) Puder prejudicar a cordialidade das relações com outros povos;

f) for ofensivo às coletividades ou às religiões;

g) ferir, por qualquer forma, a dignidade ou o interesse nacionais;

h) induzir ao desprestígio das forças armadas.

4. Polícia, bandido, jornais, livros e cinema – a visão do DCDP

O conjunto dos documentos censórios relativos ao livro Lúcio Flávio –

passageiro da agonia nos dá ocasião para dois âmbitos de reflexão: o primeiro

deles é sobre os argumentos utilizados pelos censores pra justificar a interdição

de uma obra: a suposta louvação do crime, da contravenção, em contraposição à

ordem é o primeiro deles; e a possibilidade de denegrir, de manchar a reputação

da polícia é outro.

As observações sobre se o livro é ou não uma louvação e uma indução ao

crime são centrais nos quatro pareceres, sendo que só o primeiro conclui que sim.

A questão da corrupção policial é decisiva para os vetos dos pareceres 1 e 2, já o

parecer 3 faz a ressalva que se essa denúncia disser respeito a pessoas concretas

a questão extrapolaria as funções do DCDP.

Uma segunda ordem de questões que esses pareceres censórios permitem

a abordagem é a da especificidade dos diversos meios de comunicação - do ponto

de vista do DCDP.

Comentemos inicialmente a relação entre livros e jornais tal como

assinaladas nos pareceres censórios.

Os pareceres 2 e 4 indicam que os fatos da vida do personagem-título do

livro Lúcio Flávio Vilar Lírio já foram amplamente noticiados pelos jornais.

Sendo que o parecer 4 indica o gênero de livro um romance-reportagem e que “o

livro procura sempre emprestar aos fatos o máximo de realidade” e que a presença

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

180

de palavras e termos chulos nos diálogos são “desculpáveis pela características

do veículo, livro, e pela fidelidade (...) na representação dos personagens” (grifo

nosso). O parecer não explicita, mas podemos concluir que o que ele está

afirmando é que a leitura de livros pressupõe um receptor com uma postura mais

adulta e informada.

Essa consciência de que os livros atingem um público menor que os jornais

fica clara na correspondência de Alberto Rocha para o Ministro da Justiça. Depois

de falar do livro O caso Lou o missivista afirma: “Tudo que se diz no livro já foi,

ad nauseam, publicado pelos jornais, com público muito maior e mais

indiscriminado” (grifo nosso).

Essa correspondência do chefe de gabinete diverge totalmente dos

pareceres 1 a 4 em relação à representação da polícia no livro em questão. Ao

contrário dos pareceres, essa carta apóia que o livro denuncie os métodos e as

conexões da polícia com o mundo do crime, pois elas “existem e suprimi-las em

uma obra de ficção não chega a significar a limpeza que a realidade exige e que

tantas autoridades se tem dedicado com resultados muito relativos” (grifo nosso).

Mais do que isso, o chefe de gabinete afirma que é preciso conscientizar a

sociedade para que essa faça pressão para corrigir a polícia e cita, nesse sentido,

o filme Sérpico, sobre a polícia de Nova York. Esse filme, dirigido por Sidney

Lumet com Al Pacino no papel-título, conta a história de um policial honesto no

meio de um grupo corrupto.

Os jornais são vistos pelos documentos censórios acima citados como

dirigidos a um público mais amplo, menos especificado, e, portanto, deduz-se,

com menor capacidade de julgamento que os livros. Já o cinema, além de

abranger um público mais genérico é também visto como tendo uma linguagem

e uma forma de recepção mais emotiva. O parecer sobre a “Transformação do

livro em roteiro para filme cinematográfico” (326/76) é claro nesse sentido:

Com maior poder de comunicação em termos de massa, o cinema, por suas

características, deverá procurar as situações de maior impacto visual,

justamente aspectos de assaltos, detalhes de fugas, brigas entre os

prisioneiros, torturas e outros aspectos que no livro são diluídos na

introspecção e recriminação de Lúcio Flávio de seus próprios atos. (grifo

nosso)

Ou seja, a forma narrativa cinematográfica tende a privilegiar a ação e com

isso não apresentar a reflexão interna, auto recriminadora, do personagem Lúcio

Flavio sobre seus atos.

Além disso, segundo o parecer, o filme, por esse privilégio da ação, pode

induzir a criação de mitos:

A exploração exagerada da figura do criminoso frio, do prisioneiro que

não hesita em fazer valer sua autoridade dentro da cela (...) transformará

Lúcio Flávio no herói que o livro não pretendeu.

Para evitar essa heroização do protagonista e do crime o parecer sobre a

adaptação cinematográfica, além de afirmar que os policiais devem ser mostrados

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

181

em seus “serviços normais”, chega a especificar alterações a serem feitas,

indicando que:

1) deve-se reduzir cenas onde aparecem “planejamento de assalto, revolta

na penitenciária”;

2) na revolta na penitenciária “os presidiários deverão necessariamente

atirar primeiro, gerando a repressão”;

3) a cena de tortura “deve ser simplificada e, se possível, descaracterizar a

ação como passada numa delegacia policial”. Sobre a cena de tortura o grau de

intervenção do parecer é tão elevado que ele se permite sugerir que essa

“seqüência poderia ter se passado” na solitária de um subúrbio distante e não

“‘numa delegacia do centro’ como marca o livro”.

Além de sugerir modificações o parecer julga o potencial de adaptação do

livro que “oferece possibilidades ilimitadas para um bom roteiro”, para depois

insistir que a adaptação deve se manter nos trilhos, qual seja, “mantenha o espírito

do livro: narrar o fato e não transformar criminosos em mártires do sistema ou da

sociedade”.

Mais tarde, decorridos 14 meses, em 9 de outubro de 1977, no exame do

filme realizado, o primeiro parecer (4398/77) inicia-se exatamente com

considerações sobre a especificidade do cinema. Citando:

tendo em vista as seguintes considerações:

- cena e áudio atingem muito mais a sensibilidade do que a palavra

escrita;

- a força da penetração do veiculo cinema, no circuito comercial, é

comparativamente mais poderoso do que o da obra literária;

Depois dessas considerações sobre o meio, o parecer sobre o filme enfoca

questões da história propriamente dita, destacando que: o filme fala do tempo

presente; o protagonista é apresentado como vítima; e o filme não mostra sanção

aos policiais corruptos. Essas considerações levam o parecer a indicar a não

liberação do filme.

Menos de 10 dias depois desse parecer, em 18 de outubro, a empresa H. B.

Filmes informa ao DCDP que ao final do último rolo acrescentou a seguinte

informação:

OS POLICIAIS QUE PARTICIPARAM DESSA OCORRENCIA JÁ NÃO

PERTENCEM AOS QUADROS POLICIAIS E JÁ SOFRERAM AS SANÇOES

PENAIS ADEQUADAS

e que com isso acredita que “salvaguarda a figura respeitável do policial, bem

como a nobreza de sua missão em defesa da sociedade.

No mesmo dia em que recebeu essa correspondência o DCDP emite

parecer (4430/77) liberando o filme para 18 anos desde que obedecidos 4 cortes

indicados nesse parecer.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

182

Em Roteiro da intolerância – a censura cinematográfica no Brasil, do

pesquisador Inimá Simões, pioneiro no estudo dos arquivos cinematográficos do

DCDP, o autor vincula a liberação do filme à demissão do general Sylvio Frota,

ministro do Exército, conhecido como um radical que não desejava a

redemocratização do país, conhecido como um militar “linha dura” que se opunha

ao projeto de abertura política de Geisel:

O filme foi liberado uma semana depois do afastamento do general Silvio

Frota num episódio que representou o momento decisivo a favor da

abertura política depois de inúmeras batalhas internas desde o início do

governo Geisel, com pesadas baixas. (Simões, 1998: 201)

Elio Gaspari em A ditadura encurralada, ao analisar a demissão do

ministro Sylvio Frota afirma que era uma questão de enfrentamento entre “a

anarquia militar e o poder republicano do presidente”, enfrentamento esse “que o

regime evitava desde 1964” e que ao efetuar a demissão “coube ao general

Ernesto Geisel a defesa do poder constitucional” (Gaspari, 2004: 14). Após a

morte de Sylvio Frota, em 1996, foi publicado, com o título Ideais traídos, um

texto autobiográfico em que o ex-ministro explicava a sua versão dos fatos.

O conjunto dos quatro pareceres relativos ao livro Lúcio Flávio –

passageiro da agonia, acrescido daquele que enfoca a possibilidade da adaptação

e mais dois sobre o filme e mais as correspondências com o Ministro sobre o tema

mostram agentes censórios conscientes de suas funções de manutenção da ordem

vigente, tal qual a polícia, e argumentando em como executá-la. Esta

argumentação inclui reflexões sobre os diferentes meios de comunicação. Nesse

caso, a atuação dos censores e assessores é muito distinta daquele estereótipo

folclórico que vê a censura como destrambelhada e ignorante. Em alguns casos,

ela o foi, mas não em todos. Embora sempre nefasta.

Os censores e assessores do caso em foco parecem ter consciência de que

a função de censura a livros “não é apenas motivada pela interdição, articulando-

se em cada época, com a questão da manutenção ou subversão das hierarquias

(...)”(Belo, 2002: 56), como observou André Belo em História & livro e leitura.

Anotação final

O parecerista que redigiu o texto sobre a “transformação do livro em roteiro

para filme cinematográfico” afirmou que o filme tinha uma implicação que era

“ao mesmo tempo principal atração sob o ponto de vista comercial” que era o fato

de retratar uma época e personagens reais e de se concentrar em “relatar situações

de extrema dramaticidade e violência da vida de um marginal, famoso por suas

fugas espetaculares”.

A observação do parecerista revelou-se um prognóstico verdadeiro: o país

estava sedento de ver-se nas telas e o filme Lúcio Flávio – passageiro da agonia,

dirigido por Hector Babenco, com roteiro de José Louzeiro, Hector Babenco e

Jorge Duran, protagonizado por Reginaldo Faria foi “um dos maiores êxitos do

cinema brasileiro contemporâneo, tendo sido visto por mais de cinco milhões de

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

183

pessoas”, informa o Dicionário de Filmes Brasileiros, de Antônio Leão da Silva

Neto.

A revista Veja na edição de 8 de março de 1978 dedicou a capa e uma

matéria de cinco páginas ao filme Lúcio Flávio – passageiro da agonia, com o

título ‘A realidade em cena’ e o subtítulo ‘Cem cinemas mostram “Lúcio Flávio

e o “esquadrão da morte”’ onde o certo e o torto se confundem”. A matéria afirma

que “a história de ‘Lúcio Flávio’ é a da violência policial brasileira” e que o filme

parece “ter descoberto o dom de falar às platéias sobre elas mesmas”.

Graças, especialmente, a um escritor audacioso e a um cineasta ousado,

José Louzeiro e Hector Babenco, a polícia corrupta e violenta com a qual os

espectadores conviviam estava sendo naquele momento, enfim, desmascarada.

Um passo na história do cinema nacional; um passo na história do Brasil, sob

ditadura militar, tentando caminhar em direção à construção de uma sociedade

democrática.

Bibliografia

Belo, André (2002), História & Livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica

Frota, Sylvio (2006), Ideais traídos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed..

Gaspari, Elio (2004), A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras.

Reimão, Sandra (2011), Repressão e resistência: censura a livros na ditadura

militar. São Paulo: Edusp/ FAPESP.

Silva Neto, Antonio Leão (2006), Dicionário de Filmes Brasileiros. São Paulo:

Edição Autor.

Simões, Inimá (1998), Roteiro da Intolerância. São Paulo: Ed. Senac/ Ed.

Terceiro Nome.

Stephanou, Alexandre Ayub (2001), Censura no regime militar e militarização

das artes. Porto Alegre: EDIPUCRS.

Revista Veja, 8 de março de 1978.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

184

Notícias da Amadora: Estratégias de enfrentamento da censura e

desobediência civil

Orlando César

[email protected]

Jornalista/ Escola Superior de Educação - Instituto Politécnico de Setúbal

Resumo - A censura salazarista à imprensa desempenhou um papel central de

controlo político, económico, social e ideológico. Controlou empresas e pessoas,

designadamente o acesso a cargos de direcção. A censura, a propaganda e a

polícia política constituíram um recurso de poder para controlo e formação da

opinião pública. A abordagem baseia-se no estudo de caso ao Notícias da

Amadora (arquivos do jornal e do SNI/Direcção dos Serviços de Censura). Incide

sobre as estratégias de enfrentamento da censura e de desobediência civil

desenvolvidas pelo jornal.

Palavras-chave - agendamento | comunidade interpretativa | economia de

censura | Gatekeeper | resistência.

1.Introdução

Quero, em primeiro lugar, declarar a familiaridade com o Notícias da

Amadora. Nele iniciei a carreira profissional de jornalista e aí experimentei os

cortes de censura do salazarismo. Já no século XXI, após mais de duas décadas

de exercício profissional em diversos jornais,1 regressei ao Notícias da Amadora

e conheci a censura contemporânea, que conduziu ao encerramento do jornal por

asfixia financeira.

Esta comunicação radica nessa experiência, na posterior reflexão à

actuação censória e à sua envolvente política e, na incursão investigativa, em dois

momentos distintos, ao acervo de provas censuradas do Notícias da Amadora. A

primeira pesquisa traduziu-se na publicação de 24 cadernos temáticos, entre 2001

e 2004, onde foram divulgadas 781 peças jornalísticas cortadas na íntegra ou

parcialmente (28% das provas censuradas do arquivo do jornal).2

A segunda investigação foi conduzida no âmbito da tese de doutoramento.3

O estudo de caso sobre o Notícias da Amadora implicou também a pesquisa ao

arquivo do Secretariado Nacional de Informação-Direcção dos Serviços de

1 O Metalúrgico (imprensa sindical), o diário, Diário Económico, Semanário Económico

e Notícias da Amadora e revistas Sábado, Exame e Cambio16, entre outras publicações. 2 César, Orlando, org. (2001-2004), Censura 16. Notícias da Amadora, Inéditos do

Arquivo de Censura (1958-1974), nºs 1 a 40. Disponível em

http://casacomum.net/cc/arquivos?set=e_7472#!e_3976 3 Tese elaborada para obtenção do grau de Doutor em Sociologia, ISCTE - Instituto

Universitário de Lisboa, em 2012.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

185

Censura, depositado nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT).

Implicou ainda a observação do conjunto da colecção do jornal, dos anos de 1958

a 1974, e a comparação entre os textos censurados e os que foram publicados.

A familiaridade foi ultrapassada através de distanciamento analítico e

mediante um enquadramento teórico-conceptual que superasse a armadilha das

evidências vivenciadas e a ilusão de clareza de juízos. Em primeiro lugar, análises

e interpretações sucessivas depuraram percepções superficiais e antigas, num

processo comparável ao do arqueólogo que penetra os sedimentos depositados

para conjecturar o sentido do texto censurado e proceder à validação da

interpretação.

Uma abordagem que evoca os raciocínios filosóficos postulados por David

Hume para a compreensão das relações de ideias e questões de facto, na obra

Investigação sobre o entendimento humano (Fieser, 2011). Princípios de

raciocínio que envolvem demonstração (na relação de ideias) e juízos de

probabilidade (em matéria de facto). E que aspira à validação da interpretação em

termos de “uma lógica da incerteza e da probabilidade qualitativa” (Ricoeur,

2012: 111), em termos dialécticos “entre a compreensão como conjectura e a

explicação como validação” (Ricoeur, 2012: 112).

Em segundo lugar, colocado o foco no “observador do notável”, o autor do

texto jornalístico, segundo a expressão de Cornu, a interpretação da realidade

baseia-se em acontecimentos que a palavra exprime. A sua leitura inscreve-se

“num esforço hermenêutico, na medida em que a hermenêutica supõe

precisamente a existência de acontecimentos sobre os quais as interpretações

sucessivas se depõem como estratos e deixam sedimentos” (Cornu, 1999: 333).

Finalmente, tomado o texto como “um quase indivíduo” (Ricoeur, 2012:

111), importava reconhecer o que o autor do texto jornalístico quis dizer e,

simultaneamente, identificar o que o autor do acto censório intentou negar à

interpretação da realidade. Impôs-se, por isso, a convocação da experiência

vivida, isto é, a observação participante deferida ou revivescente. Embora tenha

o carácter de pesquisa em meio natural, é admissível a possibilidade de “usar os

mesmos métodos que usamos na observação participante na análise de textos

mediáticos” (Berger, 2000: 170).

Apesar de constituir uma maneira não convencional de conduzir a

observação, Berger considera que pode render resultados bastante interessantes.

A observação participante está “focada no que que as pessoas fazem umas com

as outras, no que fazem umas às outras e dizem umas às outras” (Berger, 2000:

168). Os textos produzidos por jornalistas e colaboradores no Notícias da

Amadora correspondem a comportamentos, a modos de proceder, assim como os

golpes de censura, para utilizar a expressão de José Cardoso Pires, no seu texto

ensaístico sobre as técnicas da instituição censória4.

4 “Técnica do Golpe de Censura”, publicado na revista Índex (Londres) e Esprit (Paris),

em Setembro de 1972. O texto foi publicado em Portugal em Pires, José Cardoso

(1999), Técnica do Golpe de Censura, E Agora, José?, 2ª ed. (161-213), Lisboa:

Publicações Dom Quixote.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

186

A selecção dos acontecimentos, a sua interpretação e a narrativa produzida

exprimem as interacções estabelecidas com fontes e leitores e traduzem o agir

comunicacional adoptado pelo Notícias da Amadora. Ekström observa que as

epistemologias são desenvolvidas e aplicadas em todas as formas de práticas

sociais que produzem e comunicam conhecimento. No estudo sociológico, a

“epistemologia refere-se a regras, rotinas e procedimentos institucionalizados que

operam dentro de uma posição social e decidem a forma de conhecimento

produzido e o conhecimento expresso (ou implícito) afirmado” (Ekström, 2002).

É através da informação produzida pelos media que as pessoas adquirem

conhecimento fora da sua experiência imediata. Num quadro de economia de

censura, inscrever temas em agenda e ousar representar a realidade assumia uma

importância determinante. Observar nos textos e em diversas fontes documentais

o modus operandi do Notícias da Amadora contribui para compreender as

relações institucionalizadas e padrões de acção, assim como os quadros

cognitivos e sistemas de intervenção social e política que orientam a ideologia

jornalística e a maneira de agir no contexto da ditadura.

2.Singularidade e natureza do Notícias da Amadora

O Notícias da Amadora foi fundado em 25 de Outubro de 1958, mas é com

Orlando Gonçalves, que assumiu a direcção do jornal e a sua propriedade em 26

de Junho de 1963, que adquire a expansão e um estatuto distintivo. Nos primeiros

quatro primeiros anos de existência foram produzidas 110 edições e o jornal teve

quatro directores. Entre 1963 e o 25 de Abril de 1974 publicaram-se 548 edições

do jornal. Um total de 1.130 colaboradores, dos quais 96 mulheres, assinaram

artigos e peças jornalísticas até 1974.

Quando assumiu a direcção, Orlando Gonçalves já estivera preso no Aljube

e Caxias e tinha um percurso de activismo político, sujeito à vigilância e

perseguição policial. Era escritor e tornou-se jornalista no Notícias da Amadora,

onde exerceu a profissão até 1974 sem obter reconhecimento, que era recusado a

quantos exerciam actividades nos jornais desportivos e na imprensa regional. Mas

foi-lhe igualmente recusado figurar como proprietário, editor e director do jornal.

Recusa baseada na sua actividade política antifascista e no seu cadastro na polícia

política.

O jornal evoluiu da “tribuna regionalista” até atingir a condição de

“semanário moderno, arejado, ambicioso”, como se apresentou em 27 de Junho

de 1970. Progrediu dos 400 assinantes de 1963 e distribuição restrita ao concelho

de Oeiras até ao número de 7.000 assinantes, de que dispunha em 1973, com uma

tiragem de 15 mil exemplares e distribuição nacional.

A equipa que o produzia constituía uma comunidade interpretativa

(Zelizer, 2000), com princípios e valores partilhados que se expressavam na

função editorial, a qual contribuiu para a constituição da ideia de grupo de

referência no âmbito da expressão do pensamento e da palavra para parte

substantiva dos opositores ao regime.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

187

Para Orlando Gonçalves, a época mais empolgante do Notícias da

Amadora coincidiu com o ascenso da luta da oposição democrática, a partir de

1969, quando o jornal se projectou em termos nacionais. Em 27 de Junho de 1970

passou a dispor de oficinas gráficas próprias e a ter distribuição nacional nas

bancas de jornais. Além de criar condições para aumentar o número de páginas e

a tiragem do jornal, a tipografia tornou possível relançar a edição de livros e

produzir trabalhos para outros.

A evolução é gradual e em etapas. Entre 1963 e o final de 1968, o jornal

expande-se da então freguesia da Amadora para Oeiras e Sintra. A partir de 1969,

com o impulso proporcionado pelo debate de ideias promovido pela oposição

democrática na campanha eleitoral para as legislativas, o Notícias da Amadora

enceta um percurso de afirmação e crescimento.

A partir de 1970, Orlando Gonçalves surge como coordenador, uma

designação alternativa à de director, que lhe era vedado apresentar. Joaquim

Benite, que começou a carreira profissional no jornal, retomou a sua colaboração

e tinha o cargo de redactor principal. Entre 1972 e 1974 inicia-se um novo ciclo,

inicialmente com Sérgio Ribeiro e Helena Neves e, posteriormente, entre outros,

Carlos Carvalhas e João Paulo Guerra. As fichas técnicas do jornal evidenciam o

núcleo mais próximo e regular dos colaboradores. Todavia, centenas de outros

contribuíram para a escrita do jornal, a partir de diferentes zonas do país e do

estrangeiro, designadamente de núcleos de emigração portuguesa.

O Notícias da Amadora representou para muitos jovens uma etapa do seu

percurso de entrada na profissão. Aí exercitaram a escrita, fizeram a

aprendizagem da investigação jornalística, esgrimiram argumentos, receberam

golpes da censura oficial e encetaram um processo de invenção da sociabilização

das práticas profissionais.

A cultura editorial do jornal foi traçada em editoriais e notas de redacção,

publicados entre 26 de Junho de 1963 e 26 de Janeiro de 1974. Aí se destacam os

atributos da acção e os objectivos a que o jornal se propõe. A redacção

considerava que o jornal constituía uma arma poderosa, útil para a acção e em

ligação com o público. Não abdicava de posições, não era neutro e assumia a

independência num amplo leque de inscrição editorial.

A pertença a uma comunidade profissional e também a diferentes grupos

que desenvolviam acções contra o regime conferia um apoio indispensável. Esses

laços foram ampliados com a rede de fontes e de leitores activos, mas igualmente

com os clientes das oficinas gráficas do Notícias da Amadora, onde eram

impressos materiais para o movimento sindical e livros para várias editoras.

As relações da redacção do Notícias da Amadora com as fontes traduziam

uma interdependência que assentava em estratégias de cooperação, que tinham

em vista propósitos comuns, combater a ditadura pela inscrição da palavra e

revelar factos e acontecimentos. Essa estratégia de cooperação era extensível aos

leitores, que justificavam a existência do jornal e de quem o jornal dependia para

a prossecução do seu fim.

A autonomia da propriedade e da produção gráfica, nos anos cruciais da

expansão do jornal, conferem-lhe a capacidade de dispor dos seus meios e

recursos. Essa convergência de interesses e motivação política entre a redacção,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

188

administração e leitores culmina em 1973 com a constituição da sociedade

anónima. Uma direcção contínua, entre 1963 e 1974, criou condições para fundar

uma política editorial colectiva e uma cultura jornalística estruturante do projecto.

A empresa agiu em prol da liberdade de expressão e nunca se deixou

condicionar por estratégias comerciais nem sucumbiu à pressão de outros

campos, como os do poder económico e da política. Em Outubro de 1972, a

sociedade por quotas transformou-se em sociedade anónima. Das 8.000 acções

emitidas, três mil destinavam-se a ser rateadas entre redactores, colaboradores e

assinantes. Pretendia-se consolidar o projecto e assegurar que quem produzia o

jornal e aqueles que o liam dispusessem de poder de decisão.

O seu percurso foi sempre acompanhado pelo aumento da coerção e por

iniciativas diversas de calar a voz do jornal. As visitas da PIDE e da sua sucessora,

a Direcção-Geral de Segurança (DGS), à redacção e à tipografia eram frequentes.

Mas também foram várias as tentativas para comprar o jornal e tipografia. A

última das propostas, no Verão de 1973, ascendia a alguns milhares de contos. A

recusa foi imediata, tal como escreveu Orlando Gonçalves na Nota Semanal de 2

de Março de 1974. Idêntica resposta fora dada em 1972. Nessa ocasião foi escrito

que “um jornal não visa apenas fins lucrativos”. “Mais do que um modo de ganhar

a vida” é “uma maneira de estar presente no mundo”.

O fracasso das várias iniciativas conduziu a um derradeiro assalto da

PIDE/DGS às Oficinas Gráficas do Notícias da Amadora, em vésperas do 1º de

Maio de 1974, sob a alegação de que lá estavam a ser impressos panfletos

subversivos. Apreenderam muito material e prenderam Orlando Gonçalves e

Sérgio Ribeiro.

Mas o jornal não deixou de publicar-se nem a sua equipa de afirmar uma

posição política face à repressão. Em termos comunicacionais, “é a participação

no discurso público que permite aos indivíduos adquirirem reflexivamente

consciência da sua situação política e definirem uma posição face ao poder”

(Esteves, 2003: 130).

Leitura política que fez José Cardoso Pires quando escreveu que Salazar

fez da censura “uma sintaxe do pensamento colectivo” e que, ao produzir pelo

corte a eliminação da verdade, impôs “a mentira por omissão” e oficializou-a

(Pires, 1999: 163). Num outro registo, José Manuel Paquete de Oliveira procedeu

a uma análise à censura no Portugal de Salazar e às formas de “censura oculta”

na imprensa portuguesa, entre 1974 e 1987, que enquadra como um capítulo do

controlo social.

Para contextualizar a censura oculta, Paquete de Oliveira fez a revisão da

censura do salazarismo. A censura era, como o escreveu, um “facto público”,

“elogiada e legitimada pelo poder político”, “estava consagrada nas leis”,

“merecia o apoio das classes dominantes” e era vista pelos “grupos censurantes”,

“grandes famílias”, “grandes grupos económicos”, “instituições corporativas” e

“igreja”, como “natural aos “superiores interesses da nação”“ (Oliveira, 1988:

130).

A sua abordagem à imprensa censurada baseia-se também num estudo que

realizou em Fevereiro de 1973 e que incluiu um questionário a directores de

jornais, entre eles o Notícias da Amadora, e “um inquérito-piloto tendente a obter

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

189

informação sobre o “posicionamento” dos jornais5 face ao governo (“à situação”)

e ao “comportamento” dos mesmos jornais” (Oliveira, 1988: 181-183) em relação

aos problemas nacionais. Paquete de Oliveira considerou os “resultados

elucidativos para alguns confrontos”.

Destacou o dado referente aos jornais Diário de Notícias e Diário Popular

indicados como os únicos que não obtiveram nenhuma resposta que os referisse

como “oposição” ao governo. Inversamente, o República, o Comércio do

Funchal e o Notícias da Amadora estavam “nitidamente demarcados como os

únicos jornais portugueses de “oposição” ao governo” (Oliveira, 1988: 184).

Paquete de Oliveira asseverou que Comércio do Funchal e Notícias da Amadora

foram dois casos notáveis da imprensa “de resistência”“.

Os jornais indicados como “os mais «responsabilizados» frente aos

problemas nacionais” são o República, o Comércio do Funchal e o Notícias da

Amadora, que são, simultaneamente, considerados “como os mais

oposicionistas”.

3.Ordem informativa do salazarismo

O sistema de censura visa assegurar o controlo social e, simultaneamente,

regular a construção social da realidade. O acto de censurar, isto é, o exercício do

censor, integra--se numa ordem informativa com funções multifacetadas que

concorrem para o objectivo final de garantir a dominação directa pela força e de

influenciar ou distorcer a opinião dos públicos por consentimento. A ordem

informativa do salazarismo baseava-se nesta dupla perspectiva, na qual a censura

se procurava legitimar pela propaganda.

Na ordem salazarista, a polícia de espírito e a polícia política, como forças

de coerção, eram elementos constituintes da propaganda, da narrativa política e

da fabricação da agenda que organizavam o consenso. Mas esses mecanismos de

coerção e consenso não estavam polarizados apenas em instituições específicas e

em campos exclusivos. Replicavam-se em diferentes instâncias e em diferentes

níveis e círculos para assegurar a reprodução das relações sociais. A ordem

informativa do salazarismo cumpria a dupla função de vigilância e de

doutrinação. Regulava as relações sociais e as relações interpessoais. Projectava

os mecanismos de auto e heterocensura na vida quotidiana.

O estudo ao aparelho de coerção permite constatar que a importância das

leis tutelares da imprensa era superada pela armadura normativa emanada da

Presidência do Conselho de Ministros e dos Serviços de Censura. Esse acervo era

constituído por instruções gerais e específicas, por regulamentos, por circulares,

por directivas e por disposições.

Parte deste acervo tratava a doutrinação instrumental e visava a

socialização da subjectividade, entendida na perspectiva do conceito de habitus

5 Os jornais considerados no inquérito são 12 e apresentam-se de acordo com a ordenação

da tabela: Capital, Época, República, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Diário

Popular, Jornal de Comércio, Novidades, Comércio do Porto, Primeiro de Janeiro,

Comércio do Funchal e Notícias da Amadora.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

190

(Bourdieu, 2006: 290). Os seus primeiros destinatários eram os censores, mas

também se dirigia aos directores dos jornais e aos jornalistas, como incorporação

de prática corrente. Outra parte dos instrumentos era normativa e tinha como

finalidade regular o exercício da censura e também a conduta da comunicação

social.

A censura como método produtor de hegemonia tem a sua

conceptualização fundadora em 1928. As instruções gerais6 destinadas aos

serviços definiam a censura “como uma arma política” ao estatuírem que ela seria

o instrumento para evitar que a imprensa fosse utilizada “como arma política”

contra a realização do programa do regime. De acordo com as directivas, a sua

função não era de colaboração jornalística, mas sim a de um organismo de

repressão. A função da imprensa também estava estabelecida. O seu principal

papel era tido como o de “acalmação dos espíritos”, o qual concorria com o de

“mais poderoso e eficaz meio de propaganda”.

No entanto, essa colaboração constituiu sempre um objectivo da ditadura.

Justificado pela vantagem mais pragmática de atenuar a mutilação dos textos e os

prejuízos para as empresas. Colaboração que pretendia alcançar mediante

interacção entre censores e jornalistas, e não apenas como fruto da coerção. As

indicações anotadas nas provas pelos censores correspondiam a funções precisas.

Umas eram meramente informativas, enquanto outras traduziam ordens para

edição. Destas, umas respeitavam a regras editoriais da censura e outras à

participação colaborativa do censor.

As provas do jornal ostentavam indicações de todo o tipo. Uma delas, por

exemplo, consistia em substituir a designação de bairros de barracas, existentes

na periferia de Lisboa, por “bairro”, “bairro degradado”, “habitação” ou

“habitação provisória”. Mas havia outras mais elaboradas. Em Março de 1974,

por exemplo, o jornal noticiou que a gasolina passou a ser mais cara em Angola

e que em Moçambique também aumentou, ficando os preços “praticamente

idênticos aos que vigoram em Portugal”. Em nota manuscrita, o censor chamava

“à atenção do sr. Orlando Gonçalves” para substituir “Portugal” por “Metrópole”.

A revisão de estilo censório incluía também exemplos como o da

substituição do substantivo depuração por mudança, num artigo sobre a situação

em França, após o Maio de 1968. O autor aludia ao novo governo e escrevia que,

“como tentativa de sanar a situação explosiva em França, uma grande depuração

foi levada a cabo nas altas esferas governamentais”. Mas também intervinha nos

títulos para dissipar o interesse no primeiro nível de leitura. A sua mira apontava

à titulação (antetítulo, título, subtítulo e intertítulo) e à entrada do texto.

6 O texto da Direcção Geral dos Serviços de Censura, designado por Instruções Gerais, é

constituído pelos “fins” da censura, “publicações abrangidas”, “directivas” e

“instruções”. Texto que Gomes [Gomes, Joaquim Cardoso (2006), Os Militares e a

Censura: A censura à Imprensa na Ditadura Militar e Estado Novo (1926-1945, Lisboa,

Livros Horizonte.] e Azevedo [Azevedo, Cândido de (1999), A censura de Salazar e

Marcelo Caetano: imprensa, teatro, televisão, radiodifusão, livro, Lisboa, Editorial

Caminho.] datam de 1928 e cujo fac-simile é reproduzido pela Comissão do Livro

Negro sobre o Regime Fascista, em 1980, no volume 1 de A política de informação no

regime fascista, Portugal, editado Presidência do Conselho de Ministros, pp. 49-52,

com data manuscrita de 1932.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

191

O corte nos títulos visava expurgar o sentido da mensagem e retirar-lhes

impacto. Muitas vezes os títulos ficavam reduzidos a uma referência, que lhes

negava o seu carácter distintivo e esvaziava a função apelativa. O censor matava

o interesse pela notícia. A extensão desses actos está deduzida numa tabela

elaborada com base em 651 provas do Notícias da Amadora: traduziu-se em

cortes em 151 títulos e em 236 intertítulos; e foram introduzidas 256 alterações e

anotadas 100 observações.

O exercício da censura tinha no seu enunciado múltiplas funções. A

ditadura considerava-a como a função natural de um regime de autoridade.

Impunha a integração e o consentimento, através do apertado controlo da

formação da opinião pública. Todo o aparato concorria para que a censura fosse

a mensagem produtora de significados da política de espírito.

A censura, a propaganda e a polícia constituíam os elementos do aparato,

que disseminavam normas e valores e, simultaneamente, os consubstanciavam

como realidade. As práticas e actividades reproduzidas por cada uma das

organizações constituíam sistemas de significação para a acção dos governantes,

para a actividade profissional dos jornalistas e para a percepção do papel que os

indivíduos deveriam desempenhar na sociedade.

O paradigma do salazarismo é a sociedade incivil, expropriada dos direitos

civis e políticos e privada da expressão livre do fenómeno secular noticioso,

mundano. Uma sociedade desapossada do seu espaço público que lhe outorgasse

voz e objectivasse a sociedade civil. O contexto societário e o sistema da ditadura

geravam a incivilidade.

O conceito de incivilidade pode prestar-se a diversas abordagens. Pode

significar a ausência de hábitos civilizacionais ou a mera falta de competências

relacionais, mas também referir-se — questão que aqui interessa — a uma

sociedade tornada incivil pela derrogação de direitos, liberdades e garantias.

O controlo social dos jornalistas e da imprensa não se restringia à

instituição da censura. Muitos outros instrumentos convergiam para exercer o

domínio do campo. Uma teia fina, complexa e vasta foi edificada com o concurso

de instrumentos legislativos, jurídicos, administrativos, policiais e políticos. No

vértice do topo da pirâmide ficava a Presidência do Conselho de Ministros, onde

se sentaram Oliveira Salazar e depois Marcelo Caetano.

O controlo social incidia sobre o exercício da profissão de jornalista, a

criação de empresas e jornais, assim como sobre a escolha de proprietários e

directores. Mas também estendia a sua acção hegemónica às corporações de

enquadramento, à formação das receitas e dos recursos, aos mecanismos de

propaganda, à determinação dos crimes e punições e aos instrumentos de

eficiência repressiva.

Os jornalistas eram dessa forma compelidos a colaborarem com a censura,

mas também o eram os directores dos jornais diários que, por direito próprio e

obrigação, tinham assento no Conselho de Imprensa,7 tal como o director dos

Serviços de Censura e o chefe da repartição da Informação.

7 Criado em 1944, pelo diploma que organizou os serviços do SNI, cabia-lhe “assegurar

o contacto entre os jornais e o Estado” para a sua elucidação “acerca do pensamento

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

192

4.Economia de censura

Nada acontecia sem que a censura se pronunciasse. Fundar um jornal,

aprovar o seu proprietário, editor e director, estabelecer uma garantia financeira,

contratar uma tipografia e aumentar o número de páginas, entre outras exigências,

constituíam matérias sujeitas a aprovação. Qualquer registo de um periódico ou

a sua alteração pressupunha a consulta dos Serviços de Censura a pelo menos três

entidades: PIDE/DGS, União Nacional/ Acção Nacional Popular (UN/ANP) e

câmara municipal do domicílio da entidade requerente.

O estudo ao aparelho de coerção do salazarismo evidencia a existência de

uma classificação tipológica dos jornais8 que a ditadura manteve, pelo menos,

desde 1932. A Direcção-Geral dos Serviços de Censura e o Secretariado da

Propaganda Nacional contribuíram para a construção da tipologia, que media o

grau de colaboração prestada pelos jornais, a incidência de cortes e a aceitação

da propaganda. Variava entre os jornais que eram favoráveis ao regime e aqueles

que eram considerados seus inimigos.

A classificação dos jornais tinha a finalidade declarada de proibir a

publicação de publicidade de organismos oficiais em periódicos que se

opusessem ao regime. Mas também visava, em termos políticos e administrativos,

aferir o grau de internalização da censura nas redacções dos jornais. Se a

internalização fosse elevada, o exercício do censor tornava-se quase dispensável.

Pelo contrário, a rejeição da internalização da censura provocava uma acção

censória acutilante.

A diferenciação de procedimentos da Censura era determinada pelas

opções editoriais do jornal, mas também influenciada pela composição

sociográfica dos leitores e pela expansão que tivesse atingido. Disposição que é

patente nos cortes que incidiam em peças transcritas de outros meios. De uma

amostra de apenas 20 peças, enquadradas no género revista de imprensa,

referentes aos anos de 1967 a 1974, com excepção do de 1972, nove delas foram

cortadas na íntegra no Notícias da Amadora, outras nove foram autorizadas com

cortes e duas sem cortes.

Das nove peças proibidas, três foram reproduzidas do Comércio do

Funchal (todas de 1969), duas do Expresso (1973), duas do Diário de Lisboa

(1970 e 1971), uma da Seara Nova (1968) e outra do Comércio do Porto (1969).

A nota de um censor9, apensa a uma prova do jornal, esclarece este tipo de acção.

governativo”. Em 1968, Marcelo Caetano não abdicou do Conselho de Imprensa e criou

um órgão de cúpula, o Conselho Nacional da Informação, que se pronunciava sobre “as

questões de interesse para a informação pública”. 8 Referem-se a três entidades e datas: Censura, 1932; SPN, 1933/1934; e Salazar, 1958.

Têm como fontes, respectivamente: Dias, Luís Augusto Costa (2006), ““por força da…

força”. A fascização da censura entre o advento da Ditadura Militar e a construção do

Estado Novo”, em 4 olhares sobre a cultura (57), Barreiro: Cooperativa Cultural

Popular Barreirense; Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista (1980), A

política de informação no regime fascista (57), Portugal: Presidência do Conselho de

Ministros, vol. 1; e Discurso proferido em 1 de Julho de 1958, na sede da União

Nacional, citado em Carvalho, Alberto Arons de e A. Monteiro Cardoso (1971), Da

Liberdade de Imprensa (403), Lisboa: Editora Meridiano. 9 A prova do Notícias da Amadora (edição n.º 619, de 28-7-1973) referia-se à peça “O

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

193

Remetia-a para apreciação superior, o director dos Serviços de Censura, e

informava ter sublinhado “o que me parecia pior, tendo em atenção que se trata

do Notícias da Amadora, de leitores especiais”.

O estudo de caso ao Notícias da Amadora identificou a gramática censória

a que os jornais se deviam submeter e que estavam plasmadas, designadamente,

nas Instruções emanadas pela Direcção-Geral dos Serviços de Censura em 1932,

nas Instruções emanadas pela Presidência do Conselho de Ministros em 1968 e

na Lei de Imprensa de 1971 e diploma que a regulamentou em 1972.

O conjunto de instrumentos conformava a ordem informativa do

salazarismo, que visava prevenir a crítica à superstrutura do regime, reprimir a

palavra sobre interpelações políticas e sociais e aniquilar a notícia da acção. Três

peças com uma gramática comum, cujas diferenças residem na objectivação da

sua temporalidade, que introduz elementos de especialização no foco que instruía

os censores e que aferia o mecanismo de orientação política transmitida aos

jornalistas explicitamente ou através dos cortes onde a regra ficava implícita.

A polícia do espírito exercia uma repressão semelhante à da polícia do

corpo. E se Hermínio Martins fala em “campo da economia do terror” (Martins,

1998: 45) ao referir-se ao efeito potenciado pelo aparelho repressivo para inculcar

o medo de existir, pode-se igualmente falar com substância em campo da

economia da censura. Inculcava tanto o medo de informar como o de informar-

se.

Uma abordagem às implicações e efeitos do conceito de economia da

censura pode ser equacionado não só pelo seu resultado, traduzido nos cortes e

consequente estratificação de acesso à informação, mas também na sua função

operativa geradora de um processo de regulação censória que envolvia censores

e censurados. Ocorria num fluxo de dois passos, no primeiro o que influía era o

custo dos cortes para a empresa e, no segundo, o mecanismo da autocensura.

5.Agendamento como liberdade positiva

O jornalismo de causas do Notícias da Amadora questionou o papel e o

conceito tradicional da imprensa regional e o papel da imprensa diária acomodada

ao salazarismo, por vontade própria ou imposta pelo poder económico. No seu

agir comunicacional o jornal pretendia que o direito à informação e o direito de

se informar não fosse um privilégio de uma minoria. O agendamento de

acontecimentos e temas constituía a aspiração à liberdade positiva, a

possibilidade de agir e concretizar o fim editorial.

A ideologia editorial do jornal inscrevia-se na perspectiva reclamada pelas

oposições à ditadura. Uma tabela elaborada no âmbito da investigação, com base

em comunicações proferidas nos congressos de Aveiro, distingue três níveis de

acção. O primeiro deles refere-se à fonte de direito (liberdade como primeira

retábulo do Flautista” e citava a crítica de Carlos Porto publicada no Diário de Lisboa.

A peça foi encenada pelo Grupo de Teatro do Centro de Cultura e Recreio Oliva que,

ironicamente, venceu o Concurso de Teatro Amador da Secretaria de Estado da

Informação e Turismo.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

194

condição), o segundo à acção política (extinção de qualquer censura) e o terceiro

à reivindicação dos jornalistas (acesso às fontes e direito à criação de conselhos

de redacção).

Todos estes atributos estavam incorporados nas práticas do jornal. Cada

edição era planeada para inscrever novos temas no espaço público. A redacção

não se limitava ao acompanhamento noticioso dos acontecimentos. O jornal

intentava o tratamento de matérias que a ditadura proscrevia, quer de natureza

política quer societária, pretendia “influir na relevância das questões do

reportório público” (McCombs, 2006: 24).

A particularidade no Notícias da Amadora decorre da análise da autonomia

profissional e da independência institucional (interna e externa). No contexto

organizacional, a autonomia profissional estava adquirida. O funcionamento

interno e as relações estabelecidas no seio da redacção pautavam-se por uma

política editorial inconformista. Isto é, em ruptura com o conjunto de factores

promotores de conformismo identificados por Breed no seu estudo sobre o

controlo social nas redacções (Breed, 1999: 152-166 e Traquina, 1999: 135).

Prevalecia uma ideologia baseada na função do jornalismo e na aspiração

às liberdades, o que constituía o factor agregador das diferentes perspectivas

políticas que se expressavam na redacção e entre colaboradores, mas que também

polarizava as relações estabelecidas com fontes e leitores. Esse contexto

impulsava a independência institucional, que se manifestava internamente coesa

e que, externamente, só se confrontava com as instituições do aparelho de

coerção. Em termos de paralelismo político, definido como o grau e a natureza

das ligações entre os media e os poderes (Hallin e Mancini, 2010: 35), era

publicamente reconhecida a opção oposicionista assumida pelo jornal.

Como não existiam constrangimentos no seio da redacção e como a

internalização da censura ocorria apenas no acto de sujeição do texto ao exame

do censor, a redacção agia contra o filtro censório em vagas sucessivas e mediante

diferentes abordagens e estratégias para lograr superar os guardiões da ditadura.

Intentava inscrever uma agenda distinta daquela que era imposta pela censura e

que obtinha o consentimento dos meios, para que emergissem no espaço público

os temas que interessavam aos leitores do jornal e que eram susceptíveis de

contribuir para o juízo público e para transpor obstáculos ao conhecimento da

realidade.

A perspectiva adoptada enquadra-se no conceito de finalidade de Parsons,

o qual “implica sempre uma referência futura para um estado de coisas

antecipado, mas que não existirá sem a intervenção do actor” (Gomis, 1997: 51).

Segundo Gomis, Parsons “concebe a influência como um meio simbólico

generalizado de interacção social” (Gomis, 1997: 153) e que visava por parte do

Notícias da Amadora provocar um efeito nas atitudes dos leitores.

O estabelecimento da agenda por parte do jornal supunha, desde logo, a

elaboração de condições contingentes, a que alude McCombs na teoria de

agendamento. Na sua acção, o jornal potenciava a relevância dos assuntos e as

implicações sobre os atributos. Mas também visava assegurar o acesso a fontes

de informação fora do campo do regime e pôr em prática os procedimentos que

conformam o ethos do jornalismo.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

195

Entre as matérias de agenda destacavam-se acontecimentos não cobertos

por outros meios ou aqueles que excluíam a perspectiva de fontes alternativas,

informações obtidas em publicações clandestinas ou na imprensa estrangeira de

esquerda, particularmente francesa, e nos serviços da agência Novosti, de que o

jornal tinha o exclusivo. Problemáticas sociais como o desemprego, greves e

emigração, quer na óptica dos que partiam quer no contexto dos países de

acolhimento, eram objecto de tratamento noticioso permanente. Mas também o

eram a guerra colonial, a repressão interna e a acção política e armada no país, o

aumento do custo de vida, os grupos económicos, os media e a emancipação da

mulher.

O internacional e a cultura ocupavam espaço substantivo nas colunas do

jornal. Por opção editorial, mas também para suscitar a comparação. A

informação sobre a guerra do Vietnam, por exemplo, visava também a

representação reflexa da guerra colonial mantida pela ditadura. A análise e crítica

política encontravam na cultura um campo fértil para difundir informação

subentendia ou explícita. Das 2.776 provas censuradas (cerca de sete mil páginas)

do acervo do jornal10, os artigos e notícias de sociedade representam 33,1% do

total, as de cultura 22,7%, as de internacional 17,4% e as de nacional 14,3%.

A questão fulcral que se colocava no Notícias da Amadora reportava-se à

função auto-atribuída e ao exercício da liberdade de expressão. Produzia um

discurso jornalístico distintivo e as suas práticas profissionais partilhadas

decorriam da acção comunicativa e da concepção do fenómeno informativo como

uma construção dialéctica da realidade, resultante da colisão de perspectivas, a

do jornal e a da censura. A comunidade interpretativa do Notícias da Amadora

fixava a sua grelha de interpretação da realidade pela selecção dos assuntos a

abordar, escolha de fontes de informação e contexto preferente para atribuição de

significado.

A relação com os leitores refere-se não só aos objectivos partilhados e à

intencionalidade recíproca no processo de comunicação, mas também às

estratégias adoptadas pela redacção nesse diálogo, incluindo a troca de

correspondência. A redacção instava à mudança, como atestam diversas notas

publicadas, concitando uma atitude activa por parte dos leitores. O apelo lançado

traduzia-se na organização de leituras em grupo, difusão da mensagem,

angariação de novos leitores e cooperação como fonte ou colaborador.

A acção desenvolvida por militantes políticos e activistas sindicais

potenciou o efeito do apelo. Primeiro chegaram cartas de leitores e depois as de

leitoras. Expunham problemas concretos, denunciavam situações, transmitiam o

apoio ao jornal, davam sugestões de reportagem. Assumiam as palavras escritas

e, na sua maioria, deixavam o nome impresso em letra de jornal, embora alguns

pedissem que a identidade não fosse revelada.

A carta de um dos leitores11 evidencia a interacção estabelecida. “Queria

eu, levar aos quatro ventos o seu jornal, mas o meu eco é fraco e rouco e só eu

10 Número que não corresponde ao total dos textos censurados. Não existem provas em

arquivo entre 25 de Outubro de 1958 e 8 de Fevereiro de 1964 e perderam-se muitas

outras ao longo dos anos. 11 Carta de um leitor dos Açores que sofreu cortes de censura. Destinava-se ao número

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

196

me oiço”. Talvez por isso escrevesse que “precisamos de uma imprensa nova que

fale connosco”. Um outro leitor, de Mem Martins, escreveu que “um jornal só

pode ser vivo quando os seus leitores podem participar no seu conteúdo”. Uma

leitora de Luanda12 escreveu que o jornal oferecia uma “leitura que prende e

agarra”, “embora faça doer”. Agradeceu ainda “os bons momentos que me

fizeram passar e as reflexões que tive forçosamente que fazer”.

Onde quer que se encontrassem os leitores — nos Açores, Porto, aldeia de

Rio de Onor, Lisboa, sul do país ou na emigração —, onde quer que o lessem,

constituíam o apoio da redacção. O jornal era escrito e impresso para eles. Liam,

sugeriam, apoiavam e criticavam o jornal. As suas cartas e os seus telefonemas

não exprimiam apenas elogios. Também escreviam para discordarem do que era

publicado, para manifestarem a sua opinião. Talvez por isso muitos sublinhassem

a aprendizagem democrática desta forma de fazer informação.

Além das cartas individuais, o jornal acolheu também abaixo-assinados de

intervenção política colectiva, quer reagissem ao aumento de preços quer

sustentassem reivindicações dirigidas aos órgãos municipais ou assumissem a

forma de exposição dirigida ao Presidente do Conselho de Ministros. Atitude que

contribuía para desconstruir o mito da intangibilidade do poder.

Além da relação que estabelecia entre jornal e leitores, tinha como

motivação demonstrar que a liberdade se alcança pelo seu exercício e, ao fazê-lo,

o jornal confrontava-se com uma das orientações dos censores, que deviam não

só preservar as figuras do regime como garantir a imagem incontestada do

aparelho simbólico da autoridade.

6.Estratégias de fuga e desobediência civil

Eram várias as estratégias adoptadas pelo jornal para maximizar a

informação que chegava aos leitores. Incluía o protesto contra cortes ou retenção

de provas junto da Direcção dos Serviços de Censura, o envio à censura do

mesmo texto, a alegação de ignorância fingida sobre o conteúdo das normas, a

sonegação de envio de textos a exame e a ocultação da publicação de textos

censurados, mediante o envio aos organismos oficiais de jornais em que os cortes

eram respeitados.

Com base numa amostra aleatória de 68 provas, uma tabela incluída no

estudo evidencia o resultado dessa acção quer no que respeita a provas retidas e

cortadas quer à sua estratégia transgressora. O balanço traduziu-se em 48 textos

publicados e 20 proibidos. De um total de 34 provas suspensas, apenas cinco não

foram publicadas, enquanto de 13 provas cortadas na íntegra só em duas foi

mantida a proibição. Das suspensas, 13 foram publicadas sem cortes e o mesmo

sucedeu a cinco cuja decisão mereceu o protesto do jornal. Há na amostra seis

provas cujos cortes, pela sua dimensão, as tornaram impublicáveis. No entanto,

544, de 19 de Fevereiro de 1972, mas só foi publicada no número 545, de 26 de

Fevereiro de 1972. 12 A carta da leitora de Luanda sofreu cortes e foi publicada na edição 629, de 6 de Outubro

de 1973.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

197

foram publicadas três que estavam proibidas. A outra acção transgressora,

traduzida em envios duplicados do mesmo texto, na mesma semana ou em

períodos desfasados, resultou na autorização de cinco provas e na proibição de

sete.

No domínio das transgressões, foram publicadas, por exemplo, três peças

proibidas: um apontamento para o futuro, uma entrevista a Francisco Pereira de

Moura e uma crítica de teatro de Joaquim Benite, transcrita do suplemento Mesa

Redonda do Diário de Lisboa. No caso da entrevista, o jornal foi instado a

apresentar justificação.

Uma outra transgressão consistia em não enviar as fotografias à Censura.

Procedimento que nunca causou maiores problemas, do que responder à

interpelação dos Serviços de Censura e aumentar o número de faltas no cadastro

do jornal. Só há registo de quatro casos em que a Censura solicitou o envio das

fotografias, por serem mencionadas no texto, e apenas uma delas foi proibida.

Uma fotografia do I Festival Internacional de Jazz de Cascais da autoria de

Eduardo Gageiro foi autorizada, enquanto foi proibida a de Cecília Supico Pinto,

presidente do Movimento Nacional Feminino, que, com ar mundano,

confraternizava com soldados. Foi também necessário explicar a publicação de

uma fotografia de barracas de Algés, apesar da censura ter solicitado o seu envio.

Há também um conjunto de seis peças que foram enviadas duas vezes à

Censura, que teve como desfecho a publicação de cinco delas, embora com cortes.

O primeiro desses envios ocorreu em 1968, na mesma edição, e o último em 1973,

uma delas enviada em Julho e a outra em Outubro. Neste último caso, a peça

narrava trabalhos de alunos de português de uma escola técnica de Lisboa, a quem

tinha sido proposto escreverem sobre o tema “aumento do custo de vida”. Um

outro caso refere-se ao recenseamento e à reclamação do direito de voto aos 18

por parte de uma comissão criada no Barreiro que deu origem a duas notícias

idênticas na sua essência, enviadas à Censura na mesma edição, em Fevereiro de

1973, e que foram ambas proibidas.

Também há registo do que José Cardoso Pires qualificou como “morte

civil”, “terrorismo cultural”, “ghetto literário” e “apartheid intelectual”,

caracterizados por apagar a existência social de vivos e mortos. Apagavam

aqueles que eram sujeito de notícia como Bento de Jesus Caraça, José Afonso ou

Adolfo Casais Monteiro. Mas também proscreviam as obras, não escapando ao

corte Platão, Aristóteles, Thomas More, Ilya Ehrenburg e até o poema Bangla

Desh do Beatle George Harrison. Essa atitude persecutória obrigava a que não se

identificassem nas provas enviadas à censura os autores de alguns dos textos.

Para prevenir as consequências decorrentes da detecção pela censura da

publicação de provas proibidas, era impresso um número reduzido de jornais sem

a sua inclusão para enviar às entidades oficiais. Solução que era também adoptada

nos casos em que as páginas começavam a ser impressas, antes de ser conhecida

a decisão da censura sobre alguma das provas e estas sofressem cortes.

Mas isso não obstou a que o jornal fosse sancionado. Há duas sanções

pesadas, uma multa em 1965 e a suspensão do jornal em 1967. A multa de 375

escudos foi motivada pela publicação de uma notícia sobre desacatos provocados

por legionários na Amadora sem que fosse submetida à censura. Também por não

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

198

ter enviado à censura um artigo sobre mercenários no Congo o jornal foi suspenso

por duas edições e ficou obrigado a não “fundamentar na penalidade sofrida

qualquer notícia que pretenda publicar para justificar a sua falta de publicação”

em 9 e 16 de Setembro de 1967.

Mas há registo de muitas outras faltas sem que, no entanto, tivessem

idêntico desfecho sancionatório. Há, aliás, uma expressiva troca de

correspondência entre Orlando Gonçalves e os Serviços de Censura, quer para

justificação de incumprimentos (entre 1964 e 1970) quer para apresentação de

reclamações (entre 1964 e 1971). Existiam 41 cartas em processos depositados

no arquivo da Direcção dos Serviços de Censura que não cobrem todo o período

de relações do jornal com a censura.

Não teve castigo o caso que constituiu a mais flagrante desobediência civil.

É substantiva a documentação referente ao assunto que, em 8-6-1970, a Secretaria

de Estado da Informação e Turismo (SEIT) designou como “substituição do

director do jornal Notícias da Amadorapelo sr. Orlando Bernardino Gonçalves”.

Na pesquisa ao arquivo da Direcção dos Serviços de Censura foram consultadas

12 cartas e informações, suscitadas por iniciativa de Orlando Gonçalves, que

solicitou autorização para assumir o cargo de director em 1964, 1967, 1968 (na

sequência da nomeação de Caetano), 1969 e 1970 (por ocasião da nomeação de

Geraldes Cardoso para o cargo de director-geral da Informação).

Todavia, não existe documentação relativa a datas subsequentes,

designadamente relativa a 1973, ano em que o jornal funcionou num registo

anormal em 35 das suas 52 edições do ano, abarcando os períodos que vão do 3º

Congresso da Oposição Democrática às eleições legislativas. Orlando Gonçalves,

sem autorização, figurou no cabeçalho do jornal como director-adjunto e depois

como director em 14 edições, numa tentativa de consumar o facto. Posteriormente

figurou Sérgio Ribeiro durante 11 edições, mas também foi rejeitado. Carlos

Carvalhas foi, finalmente, aceite depois do seu nome ter constado interinamente

como director durante dez edições.

O reconhecimento do exercício do cargo de director por Orlando

Gonçalves arrastava-se desde 1963 e constitui um episódio revelador da privação

de direitos por delito de opinião e da hipocrisia da ditadura. Desde a primeira

recusa em 1964 até à última, não documentada, em 1973, a justificação baseou-

se sempre em informação da PIDE, a qual determinava que Orlando Gonçalves

era, desde 1944, incapaz para o exercício de cargos por ser “adversário do Estado

Novo”, não dar “garantia política para o desempenho de cargos directivos”, por

ser “elemento de tendências comunistas, não dando garantias de cooperação na

realização dos fins superiores do Estado”.13

Todavia, os Serviços de Censura não ignoravam que Orlando Gonçalves

desempenhava de facto o cargo de director. Dele recebiam a correspondência e a

ele se dirigiam para tratar de todos os assuntos respeitantes ao Notícias da

Amadora. Com data de Maio de 1970, um responsável da censura escreveu em

carta que lhe fora remetida: “Recebi o Director do Notícias da Amadora, a quem

13 Fichas de Orlando Gonçalves no arquivo da PIDE com referência a inscrições datadas

de 1946, 1954, 1964.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

199

foi satisfeito parte do pedido que faz”. Orlando Gonçalves reclamava contra os

cortes em provas sobre assuntos publicados em outros jornais, rádio e televisão e

aludia aos prejuízos que essa intervenção causava.

Orlando Gonçalves designou a rejeição do seu nome como caso insólito,

em carta enviada em 1970 ao director-geral da Informação, a que Geraldes

Cardoso respondeu que “ainda não era oportuno” o reconhecimento do

desempenho do cargo. Além deste episódio que perdurou por mais de dez anos,

o Notícias da Amadora foi alvo de constantes obstáculos e perseguições.

Traduziram-se inclusive em dificuldades criadas à actividade empresarial, quer

em relação às instalações da tipografia própria quer ao crédito bancário e à

garantia bancária.

6.Conclusões

Como enunciação prévia, mas ilustrativa de uma conclusão sobre todo o

acto censório, dois excertos de Aristóteles14 cortados pela censura em 1973

sintetizam o propósito do Estado tirânico que era o de “levantar obstáculos à

instrução e tudo o que diga respeito às luzes” e, simultaneamente, perseguir “os

homens de bem como inimigos directos do seu poder, não somente porque estes

homens afastam todo o despotismo como degradante, mas ainda porque

acreditam em si próprios e obtêm a confiança dos outros”.

Em consonância com a tirania sobre a qual reflectiu Aristóteles, o

salazarismo visava criar um mercado de coacção e consentimento. A economia

da censura tinha como efeito a apropriação do valor informativo por parte da

censura. Estratificava o acesso à informação e ao conhecimento e determinava

uma distribuição desigual e cerceava a cognição. Mas a censura representava

ainda um custo suplementar no processo produtivo. Parte do trabalho jornalístico,

do trabalho tipográfico e do trabalho de estafetas e de horas de máquina eram

desperdiçados. Poder-se-á estabelecer a formulação de uma hipótese de equação

financeira da censura, introduzindo, nomeadamente, os conceitos de “taxa de

censura” e de “margem de carência de produto jornalístico”.

Releva, todavia, como conclusão central aqui equacionada o agir

comunicacional do Notícias da Amadora, cuja autonomia e independência

permitiu-lhe confrontar a ditadura e estabelecer, face aos guardiões

externalizados da censura, uma agenda própria que era guiada pelo ethos do

jornalismo, no contexto da resistência ao fascismo.

14 Excertos do texto de Aristóteles [do livro Política, VI] traduzido por Arlindo

Mota, que se destinavam à edição do “Notícias da Amadora”, n.º 592, de 20 de Janeiro de 1973, e que, tal como outro de Platão [República, livro VIII], também sobre a tirania, foram proibidos.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

200

Referências bibliográficas

Berger, Arthur Asa (2000), Media and Communication Research Methods – an

Introduction to Qualitative and Quantitative Approaches. Thousand Oaks: Sage

Publications.

Bourdieu, Pierre (2006), As Estruturas Sociais da Economia. Porto: Campo das

Letras Editores.

Bourdieu, Pierre (2005), The Political Field, the Social Science Field, and the

Journalistic Field. Neveu, Erik; Benson, Rodney (org.), Bourdieu and the

Journalistic Field. Cambridge: Polity Press, 29-47.

Breed, Warren (1999), Controlo social na redacção. Uma análise funcional.

Traquina, Nelson (org.), Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”. 2ª ed.

Lisboa: Vega Editora, 152-166.

César, Orlando (2012), O agir jornalístico face à censura. O caso do Notícias da

Amadora. Tese de doutoramento em Sociologia, apresentada ao Instituto

Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Instituto Universitário de Lisboa.

Cornu, Daniel (1999), Jornalismo e Verdade – Para uma Ética da Informação.

Lisboa: Instituto Piaget.

Ekström, Mats (2002), Epistemologies of TV journalism, A theoretical

framework, Journalism 3: 259–282.

Esteves, João Pissarra (2003), Espaço Público e Democracia. Comunicação,

Processos de Sentido e Identidades Sociais. Lisboa: Edições Colibri.

Fieser, James (2011), David Hume (1711-1776). The Internet Encyclopedia of

Philosophy. Disponível online em http://www.iep.utm.edu/hume/

Gomis, Lorenzo (1997), Teoria del periodismo. Cómo se forma el presente. 2ª

ed.. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica.

Hallin, Daniel C.; Mancini, Paolo (2010), Sistemas de Media: Estudo

Comparativo – Três Modelos de Comunicação e Política. Lisboa: Livros

Horizonte.

Martins, Hermínio (1998), Classe, Status e Poder. Lisboa: Imprensa de Ciências

Sociais.

Mccombs, Maxwell (2006), Estableciendo la Agenda – El impacto de los médios

en la opinión pública y en el conocimiento. Barcelona: Paidós.

Oliveira, José Manuel Paquete de (1988), Formas de “censura oculta” na

imprensa escrita em Portugal no pós 25 de Abril, (1974-1987). Tese de

doutoramento em Sociologia, especialidade de Sociologia da Comunicação,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

201

apresentada ao Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa,

Universidade Técnica de Lisboa.

Pires, José Cardoso (1999), Técnica do Golpe de Censura. E Agora, José? 2ª ed..

Lisboa: Publicações Dom Quixote, 161-213.

Ricoeur, Paul (2013), Teoria da Interpretação. O Discurso e o Excesso de

Significação. Lisboa: Edições 70.

Traquina, Nelson (org.) (1999), Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias”. 2ª

ed.. Lisboa: Vega Editora.

Zelizer, Barbie (2000), Os jornalistas enquanto comunidade interpretativa.

Comunicação e Linguagens, 27: 33-61.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

202

Para inglez ver, ou as representações da “Nação” nos primeiros anos do

Estado Novo

Maria Cândida Pacheco Cadavez

[email protected]

Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril

Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, Universidade Católica

Portuguesa

Fundação António Quadros

Resumo - As “entrevistas” concedidas a António Ferro serviram também a

Salazar para esclarecer o “problema da censura”, que, nas palavras do ditador,

constituía a “legítima defesa dos Estados livres, independentes, contra a grande

desorientação do pensamento moderno” (Ferro, 2007 [1938]: 158). Também

Ferro, o arquiteto das representações da “Nação”, entre 1933 e 1949, opinou

acerca da legitimidade da censura enquanto forma de defesa de invasões

estrangeiras (vd. Ferro, s/d: 221, itálicos nossos). Partindo destes pressupostos,

e retomando a lógica de Aleida Assman (Assman, 2010) sobre estratégias de

esquecimento e lembrança, este artigo discute o modo como, nos primeiros anos

do Estado Novo, o regime escondia ou exibia histórias ao sabor de imperativos

ideológicos com o propósito de exibir uma “Nação” impar e diferente. Tal era

particularmente pertinente nas representações turísticas agenciadas pelos

mecanismos de propaganda que se socorriam das sombras da censura para pintar

o ambiente mais adequado “para inglez ver”.

Palavras-chave – Salazar | Ferro | censura | propaganda | turismo.

A censura, hoje por muito paradoxal que a afirmação pareça,

constitui a legítima defesa dos Estado livres, independentes,

contra a grande desorientação do pensamento moderno, a revolução

internacional

da desordem.

Salazar, 2007 [1933]: 46

O jogo das memórias nos primórdios do Estado Novo: lembrar para (fazer)

esquecer

Em “From Collective Violence to a Common Future: Four Models for

Dealing with a Traumatic Past” (Assmann, 2010) Aleida Assmann propõe um

modelo de interpretação que permite sistematizar a forma como as comunidades

gerem, ou são impelidas a organizar as suas memórias traumáticas. A autora

sugere quatros estratégias que identificam os modos como são negociados a

lembrança e o esquecimento, em função de imperativos que visam resguardar o

passado ou, por outro lado, estabelecer uma orientação relativamente ao futuro

de uma comunidade. Assmann entende que a convivência com o passado

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

203

processar-se-á fundamentalmente de acordo com um dos seguintes formatos:

esquecimento dialógico, lembrança para evitar o esquecimento, lembrança para

promover o esquecimento e lembrança dialógica.

O primeiro rótulo remete-nos para uma estratégia diversas vezes utilizada

ao longo da história da humanidade e evoca, sobretudo, o uso de um silêncio

aceite de forma tácita por dois grupos com o objetivo de manter a paz. A etiqueta

seguinte, lembrança para evitar o esquecimento, foi identificada por Assmann,

por exemplo, no contexto que se seguiu ao Holocausto, no qual a promoção das

recordações surgia como uma eficaz técnica terapêutica para lidar com

experiências coletivas particularmente destrutivas e devastadoras. Pretendia-se,

neste caso concreto, transmutar a experiência assimétrica da violência em formas

simétricas de lembrança. Por outro lado, a promoção da lembrança para provocar

o esquecimento terá sido, no entendimento da estudiosa, o caminho seguido como

reação a outro tipo de experiência traumática, como no caso das ditaduras sul-

americanas ou no regime do apartheid na África do Sul. Assmann ressalva,

porém, a necessidade de não se entender o termo “esquecimento” nesta terceira

via como um apagamento total da memória; devendo, preferencialmente,

entender-se o mesmo como uma necessidade de deixar “ficar para trás”. Deste

modelo resultam, então, formas transitórias e transicionais de lembrança. A

lembrança dialógica aplicar-se-á, segundo o discorrer de Assmann, às políticas

de gestão de memórias que lidam com um conjunto de dois ou de mais estados

que partilham uma história comum de violência.

Apesar de estes modelos sugeridos por Aleida Assmann terem por

propósito entender o modo como se gerem e negoceiam as memórias associadas

a passados traumáticos, acreditamos poder sugerir um modelo em linha com este

com o objetivo de melhor entender como o regime do Estado Novo português

usava mecanismos de censura para implementar de forma o mais subreptícia

possível a propaganda legitimadora de uma “Nação” apresentada como única e

diferente e que importava promover, sobretudo a públicos estrangeiros. Assim,

defendemos que, principalmente, nos primeiros anos do referido novo paradigma

político português, estimulou-se a evocação de recordações e de memórias

distantes com a finalidade de distrair nacionais e estrangeiros da real essência do

Portugal dos anos Trinta. Este jogo de escondidas com as histórias da memória

coletiva da “Nação” foi particularmente bem negociado e arquitetado nos

contextos preparados para acolher turistas, sobretudo aqueles que provinham de

origens estrangeiras, fossem eles visitantes ou refugiados, tal como iremos

demonstrar mais adiante.

Antes, porém, a propósito do presente argumento, importa evocar as

principais tonalidades do regime político que António de Oliveira Salazar fez

implantar em Portugal e que António Ferro encenou e representou ao longo de

dezasseis anos. O contexto instaurado pela Revolução Nacional de 1926 abriu

caminho à legitimação de um paradigma ideológico com as características que

encontramos no Estado Novo português, ou seja, uma orgânica de governação

alicerçada e justificada em função de narrativas condicionantes e condicionadas

por memórias oficialmente selecionadas em detrimento de outras, menos

convenientes aos objetivos do novo catecismo ideológico. Na verdade, o regime

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

204

nacionalizante e totalizante de Salazar, como o adjetiva Fernando Rosas (vd.

Rosas, 2008: 35), parecia encontrar, à imagem do que sucedia em ambientes

governativos coevos que admirava, nas narrativas e nas memórias da história e

da designada cultura popular da “Nação” elementos suficientemente poderosos

para convencer acerca da legitimidade de uma orgânica de governação que, em

primeira instância, anunciava pretender pôr cobro ao clima de agitação e

desregramento que impedira o desenvolvimento nacional durante a 1.ª República.

O ano de 1933 assistiu a uma série de iniciativas governativas que terão

desempenhado um papel primordial no sentido de permitir ao Estado Novo

anunciar à “Nação” a verdadeira natureza do regime que ia tomando conta da

sociedade portuguesa. Assim, foi nesta ocasião que decorreu a regulamentação

da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e que foi promulgada a Constituição

Política da República Portuguesa, que de imediato entrou em vigor. Além de estes

momentos, gostaríamos de referir dois outros acontecimentos que marcaram

lugar no ano de 1933 e que permitiram a clarificação de elementos sobremaneira

importantes para a longevidade do regime. Referimo-nos à edição em livro das

“entrevistas” concedidas por Salazar a António Ferro, que o Diário de Notícias

publicara em dezembro do ano anterior, e à criação do Secretariado de

Propaganda Nacional (SPN).

O primeiro terá tido como principal propósito apresentar o novo chefe

político à “Nação” através de cinco conversas alegadamente descomprometidas

e quase informais, nas quais o presidente do conselho opinava sobre as mais

variadas temáticas, desde política internacional, liberdade e autoridade,

antiparlamentarismo e antipartidarismo, União Nacional ou até mesmo artes.

Contudo, tão ou mais importante que o conteúdo destas conversas, é, sem dúvida,

o prefácio da referida edição redigido pelo próprio “entrevistado” e que, além de

proporcionar um guia de interpretação para as páginas que se seguem, acentua o

cariz sério das mesmas e a ferocidade do inquérito a que Salazar teria sido

submetido por Ferro.

O segundo momento referido, o estabelecimento do SPN, corporizou uma

circunstância pertinente na dinâmica de doutrinação veiculada acerca do

significado que o novo regime atribuía à orgânica propagandista, vital a um

paradigma político como aquele que, por volta de 1933, começava a impor-se. O

decreto n.º 23:054 de 25 de setembro de 1933 apresentava o Secretariado de

Propaganda Nacional como um órgão à medida da “Nação” portuguesa e que, por

essa mesma razão, não tinha necessidade de se tornar ministério, como sucedia

em outros países, à época. O mesmo texto jurídico justificava a criação de uma

entidade cujo propósito era o de “integrar os portugueses no pensamento moral

que deve dirigir a Nação” e zelar para que fosse mantido o “espírito de unidade

que presidia à obra realizada e a realizar pelo Estado Português”, cuidando para

que não fossem difundidas “ideias perturbadoras e dissolventes da unidade e

interesse nacional” (vd. decreto n.º 23:054, 25 de setembro de 1933).

Curiosamente, ou talvez não, este decreto anunciava que o setor turístico seria

uma estratégia válida para ser usada pela propaganda, quando indicava a

importância de desenvolver iniciativas tradicionalmente associadas à atividade

de lazer, como fosse a organização de “manifestações nacionais e festas públicas

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

205

com intuito educativo ou de propaganda” (vd. decreto n.º 23:054, 25 de setembro

de 1933). A 26 de outubro do mesmo ano decorreu a inauguração das instalações

do secretariado, ocasião em que, através do discurso “Propaganda Nacional”,

Salazar explicou como a propaganda deveria ser a “ciência” de mostrar a verdade

e ajudar a ver além daquilo que se vê da “janela do nosso quarto” (Salazar, 1961

[1935]: 263). As palavras do chefe político esclareciam, ainda, que

“politicamente só existe o que o público sabe que existe” (ibidem: 263), e que,

por isso, uma propaganda nacional eficaz seria aquela que, ao serviço da

governação, permitisse corrigir os erros e as ignorâncias que pudessem denegrir

a imagem que nacionais e estrangeiros eventualmente possuíssem acerca de

Portugal. Ao Secretariado de Propaganda Nacional caberia, então, a nobre tarefa,

atribuída pelo chefe do governo, de mostrar e divulgar o que de benéfico e de

bom existia, para o que iria ser promovida uma propaganda correta e verdadeira

(vd. ibidem: 263). É assaz interessante verificar que, também neste discurso,

Salazar anunciou que [e]“stão abertas, de par em par, as fronteiras e a nossa vida

pública; é além disso sempre obsequiosa a hospitalidade portuguesa” (vd. ibidem:

263). Esta referência tão clara e óbvia ao turismo não deixa margem para dúvidas

no que toca ao seguinte: a atividade turística constituía um setor tão válido como

qualquer outro para ser negociado pela dinâmica da máquina propagandista do

regime no sentido de legitimar e implementar o novo regime.

Nestes primeiros anos do Estado Novo português os mecanismos de

censura foram adquirindo cada vez mais o estatuto de instrumento preferencial

para melhor moldar a verdade da “Nação” que deveria ser ensinada a nacionais e

a estrangeiros. A sua pertinência foi esclarecida por Salazar, na segunda conversa

que teve com António Ferro em 1932. Assim, num encadeamento de paradoxos

e confessando ter sido ele próprio vítima da censura, o que lhe terá causado

“pensamentos revolucionários” (Salazar, 2007 [1933]: 32), Salazar argumenta a

favor da manutenção da mesma. Em resposta a uma alegada pergunta do

“entrevistador”, afirma que a revogação da censura seria “o mesmo que

reconhecer o direito à calúnia”, devendo, então, justificar-se a sua permanência

como “elemento de elucidação, como correctivo necessário” (Salazar, 2007

[1933]: 32). O cariz doutrinário que o presidente do conselho atribui à censura

será, pois, a justificação para a seguinte afirmação:

A não revogação da censura deve-se ao facto de não [ser] legítimo, por

exemplo, que se deturpem os factos por ignorância ou por má fé, para

fundamentar ataques injustificados à obra dum Governo, com prejuízos

para os interesses do País. Seria o mesmo que reconhecer o direito à

calúnia.

(Salazar, 2007 [1933]: 46)

Também o diretor do Secretariado de Propaganda Nacional se

pronunciou acerca da censura, ao afirmar a legitimidade da mesma enquanto arma

legítima contra os imperialismos ideológicos e as invasões estrangeiras,

personificados, por exemplos, na disseminação de ideais marxistas (vd. Ferro,

1941: 221-222, 226).

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

206

O jogo de escondidas censório promovido pelo regime de Salazar e que

resultava da negociação e da exibição autorizadas de imaginários nacionais que

se impunham como únicos encontrava nas representações turísticas um habitat

particularmente acolhedor e subreptício para se impor, como iremos demonstrar

de seguida. Esta dissimulação visava a divulgação das designadas memórias

monológicas, como as rotula Assmann. Ou seja, forçava a elaboração e a

autocelebração de imagens positivas e assépticas da comunidade nacional, para o

que contribuíam grandemente as evocações dos mitos da “Nação”. As narrativas

situadas para além dessas memórias intocáveis e perfeitas deveriam ser

simplesmente votadas ao esquecimento (vd. Assmann, 2010: 17).

Por diversas vezes, Salazar assumiu claramente o empenho da sua

governação em agenciar e hierarquizar as memórias mais convenientes para

serem exibidas e aquelas que, por outro lado, deveriam ser esquecidas. Uma

dessas ocasiões sucedeu aquando da redação do prefácio ao primeiro volume dos

seus discursos, quando destacou precisamente a “feição predominantemente

doutrinal” (Salazar, 1961 [1935]: xi) das suas preleções, justificando a sua

manipulação das memórias presentes e futuras da “Nação” com as seguintes

palavras:

a história ver-se-á sèriamente embaraçada para desenvencilhar um dia

tam importantes questões. Por isso me lembrei de poupar aos futuros

investigadores muitos trabalhos e erros, deixando escrito o que eu

mesmo posso saber acêrca da matéria.

(ibidem: xxv)

O turismo ao serviço da “Nação”

Como ficou explícito pela referência ao conteúdo do decreto que

estabeleceu o Secretariado de Propaganda Nacional, a atividade turística

constituiu uma importante arena para a manipulação e negociação de memórias

e de imagens da “Nação”, principalmente nos primeiros anos do novo paradigma

governativo. Num setor em que a receção é maioritariamente acrítica e que se

pauta por uma avidez do conhecimento das “verdades” de uma comunidade, é

interessante verificar como o turismo parece, de facto, surgir como um terreno

particularmente propício ao jogo das escondidas típico das necessidades

ideológicas que faziam uso de mecanismos de censura para mais

convenientemente se imporem.

Diversos foram os momentos promovidos pelo Estado Novo com o intuito

de celebrar o chefe político e comemorar as aquisições do regime. Evoquemos,

por exemplo, o I Congresso da União Nacional, o encontro que, no ano de 1934,

teve por principal propósito promover um balanço positivo da ação de Salazar e

do seu novo estado de governação. Sete das teses proferidas nesta reunião magna

eram dedicadas à atividade que apresentavam como um setor benéfico para o

desenvolvimento e a divulgação dos cânones da nova “Nação”. Todas as

comunicações acerca do turismo em Portugal concordaram que o mesmo

representava um dos principais promotores de riqueza do país e que a indústria

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

207

deveria rapidamente ser sujeita a uma renovação, à imagem do que sucedia com

os restantes setores da sociedade portuguesa. Num contexto de exaltação

nacionalizante criado por afirmações que destacavam Portugal do resto do

mundo, não é difícil entender a afirmação de Manitto Torres, segundo a qual o

setor representava mais do que uma mera fonte de rendimento nacional,

materializando igualmente um valioso instrumento de revivalismo histórico e

tradicional. Seria, pois, fácil reconhecer a importância deste “fixador das riquezas

materiais e morais do património (...) duma consciência nacional do passado, do

presente e do futuro” (Torres, 1935: 71), e adivinhá-lo como um útil veículo de

propaganda. As sete comunicações insistiam igualmente no louvor aos

intervenientes mais empreendedores e dinâmicos na indústria turística nacional,

como o Automóvel Club de Portugal ou os Caminhos de Ferro, e alertavam para

necessidades e alterações prementes, sem as quais o setor corria o risco de

estagnar. O turismo foi igualmente aludido como um cenário ideal para a

recuperação e a valorização da tradição e dos costumes “tipicamente”

portugueses que importava exibir à luz do novo conceito de governação (vd

Torres, 1935: 93), e que também eram representados por património que urgia

restaurar (vd. Silva, 1935: 55). Igualmente interessante é verificar como todos

estes oradores referiram que o turismo apenas poderia desenvolver-se em

contextos marcados pela paz social, pela estabilidade e pela confiança, como

sucedia em Portugal e na Itália, nas palavras de Manitto Torres (vd. Torres, 1935:

70-71).

Dois anos depois, em 1936, decorreu na Sociedade de Geografia de Lisboa

e na Câmara Municipal da “capital do império” o primeiro grande encontro

nacional dos profissionais do turismo, que reuniu cerca de cento e oitenta

participantes e que contou com diversos membros do governo nas suas comissões

de honra e de patrocínio, como o presidente Óscar Carmona e o diretor do SPN,

António Ferro. O I Congresso Nacional de Turismo demonstrou, mais uma vez,

o que o decreto que instituíra o Secretariado de Propaganda Nacional anunciara

três anos antes, i.e. as atividades de lazer e as representações dos imaginários

turísticos eram consideradas pelo regime do Estado Novo como um importante

aliado para a divulgação da “Nação” de Salazar. Repetiram-se e enfatizaram-se

as crenças de que este era um setor propício à exaltação dos ícones nacionais e

que, por isso, merecia a intervenção estatal, ou seja, tal como em todas as outras

esferas da sociedade portuguesa, era competência superior zelar para que o

turismo se desenvolvesse condignamente por cá, tal como se via suceder em

países como, por exemplo, a Espanha ou a Itália. A preleção de Antunes

Guimarãis, o presidente da Comissão Organizadora do congresso, na sessão

solene inaugural é bem reveladora das reais intenções do regime sempre que

apelava ao incentivo da atividade:

(…) acima das importantes vantagens materiais que a Nação há-de auferir

do turismo, eu coloco, entre as preocupações que me assoberbam o

espírito, a ânsia de que Portugal, continuando a grande politica que

restabeleceu a ordem nas ruas e a paz entre os portugueses, que restaurou

as finanças e os monumentos nacionais, que vai compensando com

numerosas obras da maior utilidade o tempo que perderamos no caminho

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

208

do progresso, seja o solar nobilĩssimo da raça lusíada. (…) É

comovidamente que eu antevejo, mais do que as excursões de turistas

estrangeiros, as romagens de portugueses e de todos os povos oriundos da

nossa raça, espalhados na América, na África, na Ásia, em todo o Mundo,

ao solar dos lusíadas, aos lugares sagrados da Pátria, aos monumentos

que perpetuam as façanhas dos nossos avoengos, e aos museus e arquivos

que guardam as relíquias da nossa História gloriosa!

(Guimarãis, 1936: 48-49)

Como seria de esperar, muitas das intervenções que o eloquente diretor do

Secretariado de Propaganda Nacional proferiu nos mais diversos contextos

corroboraram o que os participantes nos congressos referidos defenderam,

constituindo-se, desse modo, um consenso claro acerca das intenções do regime

em relação ao turismo. António Ferro, que já desde a década de Dez, exaltava

publicamente o seu gosto apaixonado pela cultura popular, encontrava agora no

turismo, atividade que passou a tutelar em 1939, um espaço confortável para a

exibir e com a bênção do Estado Novo. Ferro acreditava que o “prestígio

internacional duma nação é consequência, em certos aspectos, da sua organização

de turismo” (Ferro, 1949: 35) e que Portugal se havia tornado a “casa de repouso

duma Europa combalida, fatigada e doente” (Ferro, 1949: 54).

As exibições da “Nação”

Tal como estipulado pela alínea e) do artigo 4.º do decreto que criava o

Secretariado de Propaganda Nacional, o diretor do novo órgão deveria “organizar

manifestações nacionais e festas públicas com intuito educativo ou de

propaganda” (vd. decreto n.º 23:054, 25 de setembro de 1933). E foi isso mesmo

que António Ferro fez. Dedicou-se à organização de inúmeras exposições, feiras

e festejos públicos, que deveriam ser acolhidos e apreciados de igual forma por

públicos nacionais ou estrangeiros. Pretendia-se, desta forma, ensinar lições

válidas sobre a “Nação”, pelo que os conteúdos das mesmas incluíam apenas os

elementos oficialmente autorizados, fomentando, assim, o esquecimento de tudo

o que não importava ao novo imaginário ideológico. Todas estas iniciativas

serviam para (re)criar e promover a existência de uma cultura popular, fiel

depositária da verdade da “Nação”, bem como para recordar uma memória única

da historia pátria, em momentos nos quais dificilmente se destrinça os propósitos

propagandísticos dos objetivos lúdicos turísticos.

Das inúmeras iniciativas organizadas por António Ferro e pelo SPN ao

longo dos primeiros anos do Estado Novo cumpre-nos aqui destacar o papel

fundamental representado pelo concurso A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal,

e por algumas feiras e exposições nacionais e internacionais em que a “Nação”

se fez exibir, segundo os moldes mais convenientes à ideologia, e que resultavam,

naturalmente, do jogo de escondidas de narrativas e de memórias que já foi

referido antes. Todos estes eventos replicavam os ditames da Política do Espírito,

anunciada por Ferro, em 1932, a propósito da urgência de valorizar as artes, e

apresentavam-se através de estratégias delineadas pelo próprio diretor do SPN

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

209

que resultavam, no nosso entender, em momentos apropriados em simultâneo

pela propaganda da “Nação” e pelo setor turístico.

No ano de 1938, i.e. em pleno decurso da guerra civil espanhola,

considerada como um potencial e temido desestabilizador da “paz social”

portuguesa pelo regime, o Secretariado de Propaganda Nacional lançou um

concurso que visava eleger a aldeia mais portuguesa de Portugal, e cujo principal

objetivo seria a estilização das manifestações culturais populares. O Boletim

Oficial de 7 de fevereiro de 1938 divulgava as regras da competição, convidando

as localidades rurais a procurar “no mistério das suas gavetas (…) tudo quanto

era raiz, tradição, tudo quanto era passado com restos de vida” (Ferro, 1948: s/p).

Oficialmente, o evento justificava-se como um necessário combate às influências

perturbadoras da unidade nacional, ao mesmo tempo que se anunciava como uma

manifestação pública que tinha por propósito educar e fazer propaganda da

verdadeira “Nação”. Em última instância, esta iniciativa visava eleger os

elementos que exibissem de modo inequívoco a autenticidade portuguesa, tal

como apregoada pelo poder. Assim, convidava-se as localidades menos

transformadas pela “civilização dos outros” (Ferro, 1948: s/p) a participar num

concurso que iria simultaneamente servir para identificar e para ocultar práticas,

hábitos e rotinas, consoante fossem, ou não, úteis para a divulgação da história

da nova “Nação”. A escolha oficial acabou por recair sobre uma aldeia beirã,

Monsanto, e, ao contrário do inicialmente previsto, o concurso não tornou a

realizar-se, tendo a seleção de ícones nacionais levada a cabo pelo júri de 1938

sido adotada como a mais autêntica mostra da essência de Portugal, representado

como um espaço pobre, primitivo, e arcaico, mas, ao mesmo tempo, calmo,

trabalhador e pobre.

Ao longo dos primeiros anos do Estado Novo português o país associou-

se a inúmeras feiras e exposições nacionais e internacionais, como organizador

ou apenas como participante, e nas quais António Ferro protagonizou papeis de

destaque ao desempenhar funções de comissário ou de secretário. Estes eventos

constituam também indubitáveis momentos de doutrinação acerca da “Nação” e

reproduziam os mesmos objetivos de propaganda que encontrámos na orgânica

do concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal. Evoquemos, por exemplo, a

Exposição Internacional de Paris, de 1937, comissariada por Ferro. O pavilhão

português, concebido por Keil do Amaral e premiado pelos jornalistas

estrangeiros presentes no certame, fazia recurso dos elementos autorizados pelo

regime para exibir o país no seu duplo estatuto de território antigo e diferente,

mas, ao mesmo tempo, como um novo estado, resultante da ação de Salazar, e,

por isso, digno de figurar numa feira organizada em torno do tema “Artes e

Técnicas da Vida Moderna”. A “Nação” dos descobridores, das figuras heroicas,

do artesanato e das festas populares divulgada pela comissão portuguesa, na qual

António Ferro e a mulher, Fernanda de Castro, desempenharam funções de

protagonismo, ocultava das suas representações todos os descontentamentos e

situações menos risonhas que povoavam a pátria de Salazar. Em 1939, o diretor

do SPN tornou a comissariar outra ida da “Nação” ao estrangeiro, desta feita para

que Portugal se mostrasse na New York World’s Fair arquitetada sobre o tema

“O Mundo do Amanhã” e onde, de novo, se exibia o contributo português para a

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

210

civilização (vd. decreto-lei n.º 28: 707, 2 de junho de 1938), consolidado pela

mostra dos ícones encontrados em certames semelhantes.

No ano seguinte, a exibição da “Nação” aconteceu em território português.

Assim, em 1940, quando o mundo sofria com graves conflitos bélicos

internacionais, Portugal comemorava dois momentos importantes para a história

preferida pelo Estado Novo: 1140, o nascimento da “Nação”, e 1640, a

restauração da independência portuguesa. Este evento agregou uma série de

acontecimentos, dos quais importa destacar a Exposição do Mundo Português que

ocupou uma área significativa da zona ribeirinha de Lisboa, perto da Junqueira.

A António Ferro foi atribuído o pelouro do Turismo, da Propaganda e da Receção

de megaevento que, como seria de esperar, mostrava a nacionais e a estrangeiros

a face mais “genuína” e “cristalina” da longa história da “Nação” e que servia

para explicar, entre outros, o motivo por que Portugal insistia nas construções de

paz, quando o resto do mundo se dedicava a construções de guerra (vd. Ferro,

1949: 87). De facto, os visitantes da exposição teriam oportunidade de

(re)observar a pacata e ordeira vivência feliz quer dos habitantes das extensões

africanas do império português (no Pavilhão dos Portugueses pelo Mundo), quer

a dos representantes da vertente mais pura da “Nação” que viviam fora dos

centros urbanos (no espaço “Aldeias Portuguesas”).

O que os visitantes (não) viam e por que (não) viam

Abordemos agora a “Nação” turística que podia ser encontrada em

Portugal nos primeiros anos da implementação do paradigma ideológico de

Salazar. Uma consulta despreocupada da imprensa generalista publicada por cá

entre 1933 e 1940 leva-nos de imediato a assumir duas constatações no que toca

à prática turística. Por um lado, são cada vez mais as notícias que discutem a

pertinência do setor e a publicidade que convida às deslocações internas; por

outro lado, estes elementos remetem muito claramente para a existência de dois

destinos turísticos distintos em território lusitano: um dedicado a nacionais, outro

a estrangeiros.

Neste âmbito, o designado Turismo Médio, expressão referida por ocasião

do I Congresso Nacional de Turismo, que já tivemos oportunidade de mencionar,

tinha por missão cativar a população nacional com parcos recursos financeiros

para atividades como excursões ou passeios-mistério que serviam para promover

iniciativas ao ar-livre, passeios aos designados símbolos da “Nação”, como

Guimarães, Alcobaça e Batalha, e, ainda, para visitas a feiras e exposições de arte

popular. O Automóvel Club de Portugal, os Caminhos de Ferro e a Fundação

Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) desempenhavam um importante

papel nestes meandros, pois que lhes cabia a organização da maioria destes

momentos de lazer destinados às classes trabalhadoras mais desfavorecidas.

Criada por decreto-lei de junho de 1935 e por inspiração nas congéneres alemã

(Kraft durch Freude) e italiana (Opera Nazionale Dopolavoro), a FNAT assumia

ser o braço interventivo do regime nos tempos livres da população com o objetivo

de “acarinhar a existência das camadas mais modestas da população e

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

211

directamente fortalecer, educar e distrair o corpo e o espírito dos que trabalham”

(vd. decreto-lei n.º 25:495, 13 de junho de 1935).

Para estes viajantes, o regime pensara num tipo de alojamento de

inspiração tradicional, modesta, asseada e com características arquitetónicas e de

decoração que replicassem o espírito da região onde estava localizado, tal como

explicado, por exemplo, pelo concurso “Hotel Modelo”, organizado pelo Diário

de Notícias e regulamentado por Raúl Lino, ou pela Cartilha da Hospedagem

Portuguesa, um guia simples e claro editado pelo SPN acerca das mais

convenientes formas de acolher os turistas médios.

A par deste universo de acolhimento, podemos identificar um outro

destinado aos mercados estrangeiros, aludidos, aliás, sempre como os principais

móbiles para o desenvolvimento turístico. A vontade de cativar os “outros” é

emblematicamente representada pela visita dos intelectuais, promovida por

António Ferro, no ano de 1935, antes do início da guerra civil espanhola. Este

grupo incluía, entre outros, Miguel Unamuno e Luigi Pirandello, e foi acolhido,

na estação de Santa Apolónia, em Lisboa, por Fernanda de Castro, a poetisa e

mulher do diretor do SPN. Seguiu-se um passeio por Portugal, guiado pelo

próprio António Ferro, do qual fizeram parte, por exemplo, recriações históricas

na área do Mosteiro dos Jerónimos ou visitas a diversos formatos de mostras de

cultura popular no norte do país, ou seja, o programa incluía a exibição dos

elementos que compunham os imaginários da “Nação”, quer em termos de

divulgação ideológica, quer em termos de promoção turística. Ferro justificou

estas visitas com a necessidade de “esclarecer a opinião política internacional

sobre o caso português” (Ferro, 1943: 14-15). O regime esperava que estes

visitantes, bem como os inúmeros palestrantes convidados pelo SPN e

posteriormente pelo SNI pudessem, de volta aos seus países, onde grassavam os

desastres ausentes de solo português, anunciar a paz e a tranquilidade que

existiam nesta “Nação” única e protegida.

A vontade oficial de exibir uma “Nação” diferente e distante dos diversos

tipos de conflitos que assolavam outros povos terá eventualmente constituído o

motor que desencadeou um tão grande investimento financeiro e de “boa vontade

e tolerância” que visava a preparação de um acolhimento perfeito para aqueles

que, fugindo de zonas de conflitos e desastres, procuravam Portugal, como

destino mais ou menos provisório. A zona mais emblemática desta vontade do

regime foi certamente a designada Costa do Sol, que compreendia a faixa costeira

entre São Julião da Barra e o Guincho, mas mais especificamente os Estoris, i.e.

São Pedro do Estoril, São João do Estoril e Santo António do Estoril.

Identificada por Fausto de Figueiredo ainda na primeira década do século

XX, e alvo de um projeto megalómano que pretendia a edificação de uma estância

de luxo capaz de atrair mercados externos, a Costa do Sol viu-se verdadeiramente

catapultada para a ribalta internacional por ocasião dos grandes conflitos

referidos anteriormente, como a guerra civil espanhola e a segunda guerra

mundial. Fruto de condições climáticas favoráveis, graças a um espaço termal já

reconhecido e por influência de uma nova moda que incentivava as atividades ao

ar livre, a Costa do Sol foi assistindo à construção de infrastruturas destinadas a

acolher principalmente visitantes estrangeiros. De todos os hotéis de luxo

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

212

inaugurados por aquelas bandas, destacamos a abertura do Hotel Palácio, em 30

de agosto de 1930. Um dia depois, foi a vez de o Sud Express chegar ao Estoril

com proveniência direta de Paris. No início da década seguinte, realizou-se o

sonho antigo de construir uma “estrada turística”, que ligasse a “capital do

império” e Cascais e, no âmbito dos planos para a Exposição do Mundo

Português, o incentivo do Ministro Duarte Pacheco serviu finalmente para que o

projeto tantas vezes adiado tomasse forma e a Estrada Marginal fosse uma

realidade. A ACP. Revista Ilustrada de Automobilismo e Turismo, de setembro

de 1938, referia que esta seria mais uma obra para esclarecer o público estrangeiro

acerca dos progressos que iam ocorrendo nesta “Nação” de paz e tranquilidade.

Estes eram três instrumentos que deveriam, aos olhos do regime, e tal como Ferro

tão bem elucidou, servir para que Portugal se tornasse a pátria do turismo e ficasse

“sendo, por muitos anos, a casa de repouso duma Europa combalida, fatigada e

doente, o seu jardim, a sua mais bela pousada” (Ferro, 1949: 54).

Os visitantes estrangeiros, fossem turistas ou refugiados, ou apenas

viajantes em trânsito para outros destinos, pareciam ceder aos encantos desta sala

de visitas, mas, ao mesmo tempo, entendiam a artificialidade de um espaço criado

propositadamente para aqueles que tentavam escapar aos conflitos numa clara

manobra de propaganda da “Nação”, tal como escreveram o jornalista britânico

Ralph Fox (Fox, R. (2006) [1936]), Saint Exupery (Saint-Exupery, 1944), ou Ann

Bridge e Susan Lowndes (Bridge et al, 208 [1949]). Como também registaram

Branca de Gonta Colaço e Maria Archer (Colaço et al, 1943), era notória a

diferença quando se fazia o percurso em direção a Cascais pelas zonas interiores

mais pobres e degradadas da “Nação”, ou quando o percurso ocorria pela estrada

marginal “apenas enquadrada pelo mar, a praia, as escadarias monumentais, do

outro lado os arvoredos e os muros das quintas” (Colaço et al, 1943: 214).

Já em 1919 Fernando Pessoa alertara para a necessidade de se dar a

conhecer esta faixa costeira de forma diferente. Tal atitude é perfeitamente visível

se atentarmos ao modo como este destino “para inglez ver” era divulgado na

época que nos interessa. Ao contrário do que sucedia com a promoção de outros

destinos, dirigidos ao mercado nacional, a Costa do Sol e do Riso (como a

imprensa designava a zona por alturas de mais afluência de público espanhol em

fuga à guerra civil) era apresentada através de imagens que apelavam a gostos

mais sofisticados e prometiam espaços e atividades que permitiriam aos visitantes

substituir as rotinas abandonadas devido aos desastres por que os seus países

passavam. Este era um microdestino turístico que podia ser (devia ser?) divulgado

com imagens que exibiam mulheres meio desnudas, por exemplo, ou a fumar em

esplanadas. Este era o microdestino turístico onde as práticas sociais e de lazer

pareciam nunca parar em consecutivos chás dançantes, matinés, cinemas,

atividades ao ar livre, tal como se sabia acontecer em estâncias de luxo

internacionais agora interditadas como resultado dos desastres europeus e

mundiais. Apesar de estes visitantes estrangeiros terem consciência da

artificialidade representada pela Costa do Sol, era aqui que podiam prosseguir

com uma rotina semelhante àquela que fora interrompida em resultado dos

conflitos em que as suas nações se tinham visto envolvidas.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

213

Fim do percurso

Este artigo pretendeu exibir o modo como, sobretudo nos primeiros anos

do Estado Novo português, as vozes autorizadas do regime utilizavam os diversos

setores da sociedade para arquitetar os estratagemas de propaganda mais eficazes

para dar a conhecer e legitimar o novo paradigma governativo, e o turismo foi

precisamente um deles. À semelhança do que sucedia em ambientes políticos

coevos referidos como modelos pelo modelo ideológico português, mecanismos

de censura, baseados em ostensivos jogos de escondidas ou de exibição de

determinados ícones ou práticas permitiam que as memórias passadas, presentes

e futuras de alvos nacionais e estrangeiros fossem manipuladas pelo poder para

que se negligenciasse ao máximo todas as representações que não mostrassem a

“Nação” asséptica que deveria ser ostentada aos quatro ventos.

Na voz autorizada do regime, este era um território diferente, de paz e

protegido dos diversos desastres e conflitos que assolavam outros destinos, graças

à ação sábia e ponderada de um chefe político abnegado e protetor. Neste âmbito,

todos os caminhos e estratégias pareciam ser válidos para arquitetar as

representações da “Nação”, principalmente aquelas que eram concebidas para “

inglez ver” …

Referências bibliográficas

A.C.P. Revista Ilustrada de Automobilismo e Turismo. Orgão Oficial do

Automovel Club de Portugal. 1938, Ano VIII Setembro. N.º 7. Lisboa:

Automóvel Club de Portugal.

Assmann, A. (2010), From Collective Violence to a Common Future: Four

Models for Dealing with a Traumatic Past. Silva, Helena Gonçalves et al. (ed.),

Conflict, Memory Transfers and the Reshaping of Europe. Newcastle upon Tyne:

Cambridge Scholars Publishing.

Bridge, A.; Lowndes, Susan (2008) [1949], Duas Inglesas em Portugal. Uma

Viagem pelo Portugal dos Anos 40. Lisboa: Quidnovi Viagens.

Colaço, B.; Archer, Maria (1999) [1943], Memórias da Linha de Cascais. Edição

Fac-similada. Vila Real de Santo António: Câmara Municipal de Cascais e

Câmara Municipal de Oeiras. Parceria A. M. Pereira.

Ferro, A. (1941), Homens e Multidões. Lisboa: Bertrand.

_______ (1943), Dez Anos de Política do Espírito. 1933-1943. Lisboa: SPN.

_______ (1948), Fundação António Quadros, Caixote 015A, Discursos de AF,

Envelope III. Informação n.º 1328 SNI.

_______ (1949), Turismo, fonte de riqueza e de poesia. Lisboa: SNI.

Fox, R. (2006) [1936], Portugal Now. Lisboa: Tinta da China.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

214

Guimarãis, J. (1936), Palavras de Saüdação e Homenagem Proferidas pelo Sr. Dr.

Antunes Guimarãis. I Congresso Nacional de Turismo. IV Secção.

Rosas, F. (2008), O Salazarismo e o Homem Novo. Ensaio sobre o Estado Novo

e a Questão do Totalitarismo nos Anos 30 e 40. Torgal, Luís Reis; Paulo, Heloísa

(eds.), Estados Autoritários e Totalitários e suas Representações. Coimbra:

Imprensa da Universidade de Coimbra.

Saint-Exupery, A. (1944), Lettre a un otage. S/l: Librairie Gallimard.

Salazar, A. (1961) [1935], Discursos. Volume Primeiro. 1928-1934. Coimbra:

Coimbra Editora.

_______ (2007) [1933], 2.ª Entrevista. Na fronteira das ideias. Ferro, António,

Entrevistas a Salazar. Lisboa: Parceria A. M. Pereira.

Silva, H. (1935), Monumentos Nacionais – Orientação técnica a seguir no seu

restauro. I Congresso da União Nacional. Volume IV.

Torres, M. (1935), Bases do desenvolvimento e organização do turismo nacional.

I Congresso da União Nacional. Discursos, teses e comunicações. Volume II.

Textos legislativos

FNAT

Decreto-lei n.º 25:495, 13 de junho de 1935.

New York World’s Fair

Decreto-lei n.º 28: 707, 2 de junho de 1938.

Secretariado de Propaganda Nacional

Decreto n.º 23:054, 25 de setembro de 1933.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

I V . G é n e r o

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

216

Mulheres em pretérito (im)perfeito: audiências femininas do passado e

memória

Maria João Silveirinha

Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra

Resumo - O texto procura pensar alguns dos elementos teóricos que servem de

base ao projeto de investigação “Media, recepção e memória” que procura

introduzir a dimensão histórica nos estudos de receção, analisando a memória da

rádio e da televisão em Portugal durante o período do Estado Novo, por

audiências femininas. Analisamos, assim, em particular, a questão da memória

com a qual se articula todo um outro conjunto de elementos teóricos que nos

parecem pertinentes para uma análise situada da memória dos media: a dimensão

da receção dos textos mediáticos enquanto prática do quotidiano, a dimensão da

identidade dessas práticas e o contributo do conceito gramsciniano de hegemonia

para pensar os mecanismos presentes nos contextos de censura social e simbólica

que produziram uma poderosa cultura patriarcal em Portugal, em meados do

século XX.

Palavras-chave – media | memória | género | hegemonia.

Introdução

No texto que se segue procuramos pensar alguns dos elementos teóricos

que servem de base ao projeto de investigação “Media, recepção e memória” que

procura introduzir a dimensão histórica nos estudos de receção, analisando a

memória da rádio e da televisão em Portugal durante o período do Estado Novo,

por audiências femininas das cidades de Covilhã e Lisboa1. No seu

desenvolvimento, o projeto recorre a entrevistas e grupos focais, estudando as

formas pelas quais as mulheres de diferentes grupos sociais, idades e culturas

urbanas, recordam as tecnologias e os textos e mediáticos, situados nas suas

práticas quotidianas e explorando como as identidades destas mulheres são

moldadas pelas próprias práticas de lembrar os media e os contextos que estão

associados às suas experiências deles. Em causa, está a análise do uso dos media

na articulação de relatos autobiográficos, a fim de mostrar como as identidades

de género são produzidas e mantidas ao longo do tempo, num arco temporal que

inclui um passado totalitário (Carvalheiro e Tomás, 2013; Carvalheiro, 2013).

Como enquadramento para a referida análise, centramo-nos aqui em

particular na questão da memória, com a qual se articula todo um outro conjunto

1 Projeto liderado por José Ricardo Carvalheiro, da Universidade da Beira Interior,

financiado pela FCT com a referência PTDC/CCI-COM/119014/2010.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

217

de elementos teóricos que nos parecem pertinentes para uma análise situada da

memória dos media: a dimensão da receção dos textos mediáticos enquanto

prática do quotidiano, a dimensão da identidade dessas práticas e o contributo do

conceito gramsciniano de hegemonia para pensar os mecanismos presentes nos

contextos de censura social e simbólica que procuraram produzir uma cultura

patriarcal particularmente poderosa em Portugal, em meados do século XX.

Memória e práticas do quotidiano

A presença do termo “memória” no título deste nosso trabalho implica que

mobilizamos para ele um termo contestado, de difícil sistematização, mas que é

simultânea e crescentemente usado como uma “prisma através do qual a

academia de diferentes áreas disciplinares analisa a relação entre o indivíduo e a

sociedade, entre o passado e o presente” (Van Dijck, 2004: 262).

O ato de lembrar existe, de facto, numa pluralidade de formas. Muitos dos estudos

da memória e das relações vividas no tempo enfatizam a natureza coletiva da

reconstrução do passado, traduzida, por exemplo, nas narrativas culturais da

nossa história. Tais narrativas culturais, no entanto, não podem ser separadas do

sentido temporal que fazemos da nossa experiência pessoal. O lembrar público e

privado atuam sobre um outro numa relação recíproca e estão, portanto,

entrelaçados no processo de construção do significado temporal que tem uma

clara incidência sobre a forma como construímos a nossa própria identidade

pessoal. Por isso, a memória é o processo pelo qual as pessoas, individuais ou

coletivas, constroem narrativas sobre o passado, de uma forma que se articula

com as suas identidades no presente. Neste entendimento, sem memória,

indivíduos e grupos não podem fazer sentido da sua existência atual, nem traçar

o seu futuro.

Tanto as memórias, como as identidades individuais e de grupo são, assim,

o produto de criação ativa, e não uma herança passiva. Através do ato seletivo de

lembrar e esquecer, as pessoas constroem, a partir da aleatoriedade e da

fragmentação da experiência humana, histórias, onde os eventos passados

cumulativamente determinam a existência presente e fornecem sinais para

orientar a ação futura.

Lembrar é, do ponto de vista da psicologia, um processo que ocorre apenas na

mente individual e envolve os eventos que o indivíduo tenha experienciado ou

que tenham tido algum tipo de impacto sobre si. Fora da experiência individual,

o termo "memória" aponta para o conhecimento mediado de eventos passados. É,

portanto, impreciso referirmo-nos a "memória coletiva" reificando a mente do

grupo. Por esta razão, Olick e Robbins sugerem que, em vez de nos referirmos à

memória coletiva, deveríamos referir-nos a “conjuntos distintos de práticas

mnemónicas em vários lugares sociais” (Olick e Robbins 1998: 112). As práticas

mnemónicas apontam para a natureza substantiva do processo de lembrar na

medida em que enfatizam o facto de as memórias serem construídas e

reproduzidas por meio de práticas sociais, tendo simultaneamente em conta

aspetos temporais e históricos.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

218

A ligação entre memória e práticas sociais sublinha o facto de a primeira

ser sempre socialmente enquadrada. Como argumentou Maurice Halbwachs

(1980), a memória individual, por exemplo, é sempre estruturada pelos grupos,

pela família, pela classe, pela religião, ou pela nação a que um indivíduo pertence.

Essa estruturação traduz-se nas práticas culturais simbólicas tais como as

tradições orais, os textos, os rituais, as comemorações, os monumentos ou os

museus que criam uma memória social, ou um conjunto de narrativas sobre o

passado. E, entre estas práticas simbólicas estão também, naturalmente, as

relacionadas com os media. Como afirma Andreas Huyssen, “não podemos

discutir a memória pessoal, geracional ou pública independentemente da enorme

influência dos novos media como portadores de todas as formas de memória”

(Huyssen, 2003: 18). No seu conjunto, todas estas práticas fornecem uma matriz

para a formação e manutenção das identidades individuais e coletivas.

Emily Keightley e Michael Pickering estendem o aspeto mnemónico das

práticas do quotidiano à imaginação, sublinhando o aspeto criativo da memória

que nos permite adaptar, recriar e, ao longo do tempo, desenhar o entendimento

de nós próprios/as e dos outros. Memória e imaginação interagem, levando as

nossas memórias para além da experiência vivida e tecendo uma narrativa

identitária feita de fragmentos unidos numa coerência transfiguradora que nos

define no presente. Esta ênfase no carácter imaginativo e produtivo da memória

parece-nos especialmente útil porque nos permite pensar o sujeito como “alguém

que é operativo dentro das relações sociais, sustentadas nas práticas da vida

quotidiana, mas capaz de pensar criticamente sobre si mesma e sobre a sua

situação, capaz de avaliar diferentes experiências e entender como foram feitos

diferentes investimentos nessas experiências, ou como o envolvimento pessoal

afetou a sua perceção no momento em que elas ocorreram” (Keightley and

Pickering, 2012: 18).

Além disso, a experiência das práticas quotidianas e o modo como as

ligamos criativamente ao nosso sentido de identidade ao longo do tempo tem o

efeito de desvalorizar uma noção memória como algo que reside nos objetos e

defini-la mais como um processo dinâmico que é o resultado das práticas

simbólicas de indivíduos e grupos. As memórias partilhadas de um povo, de um

lugar, dos acontecimentos ou simplesmente dos objetos são, com efeito,

construídas pela cultura e pela comunicação. A comunicação mediática, em

particular, liga o nosso sentido de passado e de presente e articula ativamente os

sentidos de nós e dos outros. Mas, numa experiência saturada de mediação, as

batalhas pelos significados das ações coletivas e individuais fazem-se também

pelas práticas dos seus usos. Tais práticas, colocadas num eixo temporal, têm,

portanto, necessariamente, uma forte implicação para a definição do que somos

e do modo como nos entendemos.

Por outro lado, é fundamental não perder de vista o quadro mais amplo das

estruturas de vivência. Já vimos que a memória individual é sempre estruturada

por elementos como a classe, a religião, ou a nação a que um indivíduo pertence

e essa pertença tem sempre um enquadramento histórico. Ora, esse aspeto

histórico, como veremos mais adiante, tem também de ser introduzido na análise

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

219

da dimensão simbólica e ideológica da memória, sob pena de nos perdermos

numa fragmentação individualizada e a-histórica da experiência e da identidade.

Media, memória e identidade

John Gillis (1994) faz notar que a noção de identidade depende da ideia de

memória e que o contrário também é verdade. Todas as identidades estão

enraizadas na memória e o que é lembrado é definido pelas identidades

assumidas. No entanto, nem memória nem identidade são coisas fixas: são

representações subjetivas que, como construções da realidade, têm um caráter

dinâmico e de inscrição (mais do que descrição), sendo objeto de lutas em torno

do seu significado que está muito dependente das próprias relações de poder que

sustém tanto a memória como a identidade. Nas suas palavras: “estamos

constantemente a rever as nossas memórias para as adequar às nossas atuais

identidades. As memórias ajudam-nos a fazer sentido do mundo em que vivemos;

e o «trabalho da memória» está, como qualquer outro tipo de trabalho físico ou

mental, enraizado em complexas relações de poder que determinam o que é

lembrado (ou esquecido), por quem e para que fim” (Gillis, 1994: 3).

A memória e os seus sujeitos assim concebidos não são estranhos aos

estudos dos media e da comunicação (Roediger e Wertsch, 2008). Os media são,

como efeito, como sabemos, fundamentais para a definição ideológica das

paisagens sociais e políticas que nos definem e estão, por outro lado, intimamente

relacionados com a estruturação do tempo e da sua experiência nas nossas vidas

quotidianas. Por isso, na última década, tem havido um foco crescente relação

entre os processos de recordar e o fluxo mediático, passado e presente. Este foco

tem assentado sobretudo na articulação da memória com as propriedades textuais

dos produtos mediáticos e, em menor medida, nos usos e a receção dos media

(Keightley, 2011; Neiger et al., 2011; Stacey, 1994; van Dijck, 2007; Bourdon,

2012, 2003; Bourdon e Kligler-Vilenchik, 2011).

Estes trabalhos identificam claramente um nexo de relação entre media,

tempo e identidade que a definição de José Van Dijck de “memórias mediadas”

traduz bem. Elas são “as atividades e objetos que nós produzimos e apropriamos

por meio de tecnologias dos media, para criar e recriar um sentido de passado,

presente e futuro, de nós mesmos, em relação aos outros. Os objetos e atos de

memória mediada são lugares cruciais para negociar as relações entre o sujeito e

a cultura em geral, entre o que conta como privado e como público e para a forma

como a individualidade se relaciona como coletividade” (Van Dijk, 2007: 21).

De entre os media que afetam de forma relevante o conteúdo e a forma

como as audiências se relacionam com a coletividade e os seus eventos temporais,

encontra-se a televisão. No entanto, o imediatismo deste meio e o seu fluxo

contínuo de imagens e textos articulados sobre o presente faz com que televisão

seja genericamente vista como facilitando o esquecimento e como um meio que

produz uma relação regressiva, amnésica ou nostálgica entre o passado e o

presente. É, assim, frequente ouvirmos que a televisão produz “esquecimento,

não a memória; fluxo, não a história” (Stephen Heath apud Holdsworth, 2010:

130). No entanto, um número crescente de estudos reconhecem que a televisão

não produz, de forma irrevogável, um estado de amnésia cultural. Por exemplo,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

220

Amy Holdsworth (2010), opondo-se à noção de que a televisão é um meio

amnésico, explora diversos tipos de montagem televisiva e sugere que estes

podem funcionar como “textos de memória” (nos termos de Annette Kuhn,

2010), onde as técnicas de fragmentação e de colagem de algum modo

correspondem aos imprevisíveis modos de funcionamento da própria memória

humana. Na verdade, a televisão tem um forte potencial mnemónico que permite

produzir a construção e reconstrução do passado no presente e, simultaneamente,

de nós próprias: “a televisão é fundamental para a nossa compreensão do passado

e prestando atenção à recirculação do próprio passado da televisão, aos

dispositivos e formas de re-contextualização, podemos revelar atitudes

específicas em relação à televisão como uma forma cultural e atitudes em relação

aos nossos próprios seres históricos” (Holdsworth 2011: 96).

No entanto, as formas precisas como os textos televisivos estão envolvidos

na memória e nos processos vivos de lembrar e em particular as possibilidades

que se apresentam para a identificação identitária com o passado, tanto pessoal e

coletivo, requerem algum cuidado. O que podem, ao certo, os programas ou

textos de televisão dizer-nos sobre os contextos da sua receção, sobre as mentes

ou as identidades dos membros individuais do seu público? Referindo-se à

ligação entre os textos televisivos e a memória Jerome Bourdon aponta,

precisamente, para o perigo da arbitrariedade se a base para entendermos a forma

como a televisão molda as memórias forem os textos televisivos, em vez dos

agentes sociais. Por isso, argumenta que "o melhor é começar pelo processo de

receção, pelos agentes sociais, em vez de partir dos textos" e defende que isto

pode ser feito nomeadamente através da metodologia de "histórias de vida"

(Bourdon, 2003: 9; Bourdon, 2011).

Essa é, pois, uma das bases teóricas do projeto a que nos referimos e que,

combinada com a ênfase acima sublinhada tanto das práticas de uso dos media

como da localização ideológica da memória e da identidade na teia das relações

de poder, nos permite analisar a relação entre memória, media e identidade de

género.

Media e memória numa perspetiva de género

Os estudos fundadores da perspetiva de género na receção dos textos da

cultura mediática e popular nos durante os anos oitenta e princípio de noventa

traçaram todo um programa de investigação em torno do uso e negociação do

significado dos textos dos media na construção e reconstrução de identidades de

género. Centrando-se nas micro-políticas do uso quotidiano dos media numa

perspetiva feminista, de modo crucial, questionou-se: “ como é que a receção por

parte da audiência interage com a construção do género ao nível da formação da

identidade, da subjetividade e do discurso?” (Van Zoonen, 1994: 108). As

respostas a esta questão, no entanto, tenderam a celebrar os consumos das

audiências e as suas práticas como formas de resistência, pelo que os estudos

foram acusados de ignorar os contextos materiais e ideológicos mais vastos da

vida das mulheres (McRobbie, 1990; Corner, 1991; Curran, 1990). Estas críticas

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

221

refletiram, em parte, a dificuldade de articular as perspetivas feministas dos

estudos culturais com os da economia política dos media (Gray, 1999), mas

também puseram em evidência uma aparente antinomia entre as perspetivas

etnográficas dos media, preocupadas com a compreensão de como o significado

é produzido no quotidiano e as perspetivas que abordam estes significados na

forma como eles se encontram codificados nos textos mediáticos pelas macro-

estuturas sociais, políticas e económicas (Moores, 1993; Gray, 2002; Modleski,

1986).

Quando se junta ao problema da recepção mediática pelas mulheres a

questão da memória, são escassas as referências disponíveis. Na verdade, para

além de trabalhos como o de Jackie Stacey (1994), Annette Kuhn (2002) ou de

Emily Keightley (2011), muito pouca investigação documenta a memória

mediática quotidiana das mulheres. Também aqui, no entanto, não poderemos

ignorar como a própria memória é estruturada e limitada por variáveis sociais

como o género (para além da etnia, idade e classe) e pelas correspondentes

estruturas e relações de poder, ou nem esquecer as forças materiais e ideológicas

que influenciam o processo da receção dos media.

Na verdade, estas componentes materiais e ideológicas parecem-nos igualmente

cruciais não apenas quando a articulamos com as representações mediáticas ou o

registo jornalístico de acontecimentos e factos presentes e históricos na

estruturação da memória coletiva (por exemplo Edy, 2006; 2011; Zelizer, 1992,

2008, 2011; Berkowitz, 2011), mas também quando adotamos a perspetiva

etnográfica dos estudos de receção. Nesse sentido, parece-nos que, também aos

estudos da memória, podemos aplicar a sugestão de Parameswaran de que “em

vez de defender a total renúncia à audiência, os estudiosos dos media podem

começar a procurar melhorias nas teorias interpretativas e modos inovadores de

análises que sejam melhor equipados para transcrever o amplo espectro das

relações quotidianas entre as estruturas de poder e as práticas das audiências”

(Parameswaran, 2003: 314).

É nesse mesmo sentido que Ricardo Carvalheiro (2013), argumentando

pela necessidade de introduzir a dimensão histórica nas análises de receção,

defende que estudar a história da receção significa “tentar perceber como um

conjunto de transformações de vasta amplitude se concretizou nas vidas

quotidianas através da instituição progressiva de novas práticas sociais que

continham um variado leque de possibilidades: acesso a novos universos

simbólicos, inéditas ligações comunicativas e opções de filiação coletiva; mas

também reconfigurações da regulação social, de relações hierárquicas e de

mecanismos de dominação ideológica” (Carvalheiro, 2013: 72-73).

A inclusão dos atos de receção mediática na vida quotidiana das mulheres

permite, portanto, analisar não apenas como os modos de nos relacionarmos com

os media se enraizaram devido a condições, circunstâncias e relações de forças

específicas, mas como o relato dessas memórias mediáticas, enquadrado por uma

narrativa de história de vida, configura e reflexivamente constrói uma identidade

de género situada no tempo e profundamente mergulhada em relações de poder e

estruturas ideológicas de subalternidade.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

222

Parece-nos também muito pertinente o aviso de Keightley (2011) de que a

experiência da memória de género não é unitária, nem ocorre de forma previsível,

dado que outras diferentes afiliações e identificações sociais, como a classe, a

etnia e a idade podem ser postas em jogo nos atos de consumir televisão, em

diferentes momentos temporais. Estas múltiplas filiações sociais não são apenas

implicadas nas memórias, mas revistas e reconstruídas continuamente em cada

novo momento histórico e, muitas vezes, a experiência das mulheres é

caracterizada pela mudança e pelas posições de sujeito relacionais que ocupam

ao longo das suas vidas. Por isso, “Lembrar é o processo através do qual as

complexas inter-relações entre experiência pessoal, as estruturas sociais e os

recursos culturais são jogados e reconciliados, resultando na construção de

identidades individuais, mas ao mesmo tempo sociais” (Keightley, 2011: 399).

Dimensões históricas da memória: género e hegemonia

Como já referimos, os anos em estudo no projeto incluem um passado

nacional particularmente marcado pela imposição de fortes mecanismos

repressivos e ideológicos do Estado no controlo das identidades dos sujeitos em

geral e das mulheres em particular. Falamos do período histórico que marcou

Portugal durante uma boa parte do século XX: a vigência do Estado Novo.

Como acontecia com outras ditaduras do sul da Europa no período entre as

duas guerras, o Estado Novo produziu a manutenção de um quadro normativo

rígido e estrito de regulação dos comportamentos sociais e políticos das mulheres

que as afastava dos mais elementares direitos de cidadania e as mantinha numa

situação de subordinação em relação aos homens (Belo et. al, 1987; Cova e Costa,

1997).

Tal política era articulada sob forte inspiração pelo catolicismo social e

mandatava, de forma desigual e subalterna, os papéis sociais para as mulheres,

cuja principal função era, na verdade, a manutenção de uma certa moral familiar,

crucial que o quadro normativo da organização social. Com efeito, à defesa da

diferença “natural” entre os sexos e à divisão dos papéis de mulheres e homens

estava associada a importância da família nuclear. Na Constituição de 1933, a

própria existência dos cidadãos dependia da família, a quem estavam ligados pela

natureza. E a família projetava, naturalmente, o valor da maternidade, que

marcava, de forma irredutível, o próprio papel da mulher. Como explicam Anne

Cova e António Costa Pinto: “se a mãe era glorificada, era por desempenhar um

papel importante no seio da família. A sua ‘missão’ era a de se ocupar do lar e de

ser a sua guardiã. A sua influência benéfica não se limitava aos seus filhos,

refletia-se em toda a casa: cabia-lhe assegurar a tranquilidade de espírito do seu

marido e o ambiente harmonioso do lar” (Cova e Costa, 1997: 73).

Em termos gerais, podemos então identificar, no sistema ideológico do

Estado Novo, alguns elementos que, de forma mais ou menos explícita,

articulavam o posicionamento das mulheres na ordem patriarcal. Tais elementos

incluem a defesa das diferenças naturais; a família como organização nuclear da

sociedade; a moral sexual associada à maternidade e à procriação; o catolicismo

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

223

como a grande plataforma de aliança ideológica do Estado Novo; o trabalho das

mulheres articulado entre uma retórica de “regresso ao lar” e uma crescente

feminização do trabalho; a opressão e a violência como momentos de um arco de

submissão constante a que as mulheres eram forçadas. Estes elementos articulam,

de facto, de uma forma particularmente exacerbada de desigualdade e

subalternidade as estruturas que, para Sylvia Walby (1992), compõem o

patriarcado: o trabalho remunerado, o trabalho doméstico, o Estado, a violência,

a sexualidade e a cultura.

Para a manutenção desta ordem de profunda desigualdade e para o seu

exercício político em geral, o Estado Novo, para além da sua aliança com o

conservadorismo do Catolicismo, recorria ao controlo policial apertado dos

cidadãos e das cidadãs, à propaganda e ao controlo de toda a produção cultural,

nomeadamente dos órgãos de comunicação social (Cádima, 1995; Cabrera,

2006). Tal controlo assumiu a forma de censura enquanto normativa de

vigilância, proibição e punição, mas também enquanto conjunto de interditos

sociais e morais que atravessavam os próprios conteúdos culturais e simbólicos,

produzindo um forte discurso social de subordinação. A eficácia deste discurso,

no entanto, dependia, de modo crucial, da sua interiorização por parte das/os

subordinadas/os. Quer isto dizer que, embora a repressão censória tenha sido

nuclear na imposição do regime, ao considerar o papel da produção e da receção

cultural e simbólica na manutenção da ordem de desigualdade das mulheres,

deveremos também olhar para os diferentes aspetos da hegemonia como

elementos estruturantes da experiência e, portanto, da própria memória simbólica.

É aqui que nos parece interessante uma releitura de António Gramsci.

Preso pelo regime fascista Italiano, Gramsci não se concentrou diretamente no

estudo do fascismo, embora se possa argumentar que "o universo conceptual dos

Cadernos da Prisão foi inventado para entender a natureza do domínio fascista e,

na verdade, de toda a história das revoluções falhadas de Itália entre 1848-1920,

de que o fascismo foi o trágico epílogo" (Adamson, 1980: 615). Por outro lado, a

sua compreensão da "ditadura do proletariado" foi levada além de Marx e a sua

principal preocupação centrou-se, de fato, nas razões que explicavam a

persistência mais ampla do capitalismo e a coesão das democracias liberais. Na

busca dessas explicações, ele questionou as formas como as classes dominantes

adquirem e mantêm o poder e como são desafiadas por grupos das classes

subalternas. Como refere Thomas Bates, "pode ser que cada Estado seja

finalmente uma ditadura e mostre os seus dentes quando confrontado por um sério

concorrente, de fora ou de dentro, mas não é verdade que a ditadura é a única

forma de poder político. Há uma outra forma que é a «hegemonia»" (Bates, 1975:

352). Para Gramsci, a verdadeira força do sistema político não reside na violência

ou poder coercitivo do aparelho de Estado, mas na aceitação por parte dos

dominados da visão de mundo dos seus dominadores. Esta perspetiva do mundo

da classe dominante aparece como “senso comum” e constitui a estrutura de

sentido com que as massas aceitam a moral, os costumes e as lógicas instituídas.

A hegemonia está, portanto, diretamente ligada à produção discursiva do poder

como a capacidade de estabelecer o "senso comum" enquanto explicações auto-

evidentes da realidade social, expressando a posição de vantagem dos grupos

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

224

sociais dominantes na produção discursiva dessa mesma realidade social. No

entanto, como nos refere Nancy Fraser, “isso não implica que o conjunto de

descrições que circulam na sociedade compreendam uma rede monolítica e sem

marcas, nem que os grupos dominantes exerçam um controle absoluto, de cima

para baixo, do significado. Pelo contrário, a "hegemonia" designa um processo

em que a autoridade cultural é negociada e contestada. Ela pressupõe que as

sociedades contêm uma pluralidade de discursos e lugares discursivos, uma

pluralidade de posições e perspetivas a partir das quais falam. Naturalmente que

nem todos têm igual autoridade. No entanto, o conflito e a contestação são parte

da história" (Fraser, 1990: 85).

Para pensar o papel dos media na produção da hegemonia importa ainda

recordar que o estudo de Gramsci sobre o papel dos intelectuais na sociedade o

levou a dividir a superestrutura ideológica, como pensada por Marx, em duas

grandes plataformas: a "sociedade civil" e a "sociedade política". Nas suas

palavras: "O que podemos fazer, por enquanto, é fixar dois grandes" níveis"

superestruturais: o primeiro pode ser chamado de" sociedade civil ", isto é, o

conjunto de organismos vulgarmente denominados "privados", e o segundo

denominado de "sociedade política" ou "Estado". Esses dois níveis

correspondem, de um lado às funções de "hegemonia" que o grupo dominante

exerce em toda a sociedade e, por outro lado à "dominação direta" ou comando

exercido através do Estado e do governo «jurídico» " (Gramsci, 1971: 12). É,

portanto, na sociedade civil que encontramos o âmbito das ideias e do simbólico,

circulando informação nas escolas, igrejas, partidos e jornais que dão um

contributo nuclear para a formação de consciência social e política. A sociedade

civil é o âmbito do mercado das ideias, da comunicação, onde os intelectuais

produzem hegemonia, estendendo a visão do mundo dos governantes para os

governados e, assim, obtendo o consentimento "livre" das massas para a lei e a

ordem.

Ao pensar, portanto, o papel da televisão e da rádio na estruturação das

ideias de senso comum, por um lado e, por outro, o modo como este mesmo senso

comum nunca é radicalmente fechado e isento de contestação, encontramos,

então, em Gramsci, elementos cruciais para compreender a dimensão simbólica

da experiência. É certo que, como David Forgacs escreve em Introdução ao

Escritos Culturais de Gramsci, "é significativo que as formas emergentes de

rádio e cinema recebam uma atenção mínima nos Cadernos" (Forgacs apud

Landy, 2008:104). No entanto, tal ausência pode ser explicada não apenas em

termos do próprio estatuto de prisioneiro de Gramsci e de ausência de acesso a

esses mesmos media, mas também pelo próprio estado de desenvolvimento dos

media na Itália de 1930, durante o regime fascista (Landy, 2008). Por isso, as

ideias sobre hegemonia, como ferramenta de crítica, têm sido apropriadas e

repensadas por diversos autores para pensar os media na sociedade presente.

Entre os teóricos que a utilizaram de forma sistemática estão Stuart Hall (1988)

e Todd Gitlin (1980). Stuart Hall tem sido reconhecido como um dos grandes

expoentes de um uso de Gramsci no pensamento sobre a cultura e a produção

cultural, especialmente no contexto nacional britânico. É Todd Gitlin, no entanto,

que especifica mais claramente a ligação entre as ideias de Gramsci e

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

225

compreensão dos media. Estes estabelecem, nas sociedades capitalistas, o quadro

de significados e ideias que limitam potenciais compreensões do mundo. Gitlin

explica o conceito de Gramsci de hegemonia como " a combinação (ou da

aliança) de uma classe dominante com as classes e grupos subalternos por meio

da elaboração e penetração da ideologia (ideias e pressupostos) no seu senso

comum e práticas quotidianas" visando a "engenharia sistemática do

consentimento das massa para a ordem estabelecida" (Gitlin, 1980: 253). Hall e

Gitlin baseiam-se também na leitura de Gramsci feita por Raymond Williams

(1977), que identifica a hegemonia como um processo que molda as perceções

individuais como um sistema vivido de significados e valores que permeia todos

os aspetos da vida. A hegemonia define a realidade na cultura e os seus limites,

além dos quais é difícil escapar. No entanto, como processo complexo que é, a

hegemonia não existe passivamente como forma de dominação, uma vez que

continuamente tem de ser renovada, defendida e ajustada.

Já no que toca às questões de género, em si, Gramsci não escreveu muito

sobre as questões das mulheres, para além das suas perspetivas sobre a

sexualidade, que ele via como um aspeto básico da emancipação - discutida em

"Americanismo e Fordismo" (Gramsci, 1971) - e demonstrou pouca consciência

feminista nas práticas de vida quotidiana (Holub, 1992). No entanto, alguns dos

seus conceitos-chave oferecem um conjunto de ferramentas úteis para o

pensamento e política feminista que têm sido exploradas por algumas autoras (eg,

Garcia, 1992; Showstack Sassoon, 1987; Holub 1992; Fraser 1990; Hennessy

1993, Slaughter, 2011). Nesse sentido, pode-se dizer que ele "fez uma imensa

contribuição para o feminismo sem o saber, tal é a natureza invisível do poder e

da dominação" (Ledwith, 2009: 686). Mas, talvez o principal contributo de

Gramsci, nesta perspetiva, tenha disso o alertar-nos "para a divisão

público/privado e para a forma como a dominação permeia os aspetos mais

íntimos do nosso ser, através das nossas interações na sociedade civil, por

exemplo, a família, a comunidade, as escolas e religiões formais que permanecem

locais-chave da dominação masculina (…). Ao explorar a natureza do

consentimento, compreendemos que a hegemonia está sempre em processo, em

luta contínua, e começamos a ver que a consciência feminista é o começo para

questionar a natureza desse consentimento em relação ao patriarcado" (Ledwith,

2009: 687). Naturalmente que, no caso em estudo, esse trabalho de negociação e

de interiorização relativo às imposições e interdições do passado ditatorial

também se faz à luz do presente democrático, o que potencia, na memória

biográfica, as dimensões de emancipação que podem, de algum modo, já ter

estado presentes nas próprias de teias das práticas simbólicas e identitárias do

quotidiano passado.

Todas estas ideias se reúnem nas leituras dos estudos de receção que se

afastaram da localização de efeitos ideológicos no sentido de encontrar simples

práticas emancipatórias na receção dos meios de comunicação. Mas, mais do que

serem colocadas ao serviço de leituras celebrativas do poder das audiências, as

ideias de Gramsci podem ajudar-nos a compreender os contextos de receção dos

media e da sua memória, em termos de incorporação, mas também de negociação,

durante um tempo histórico particularmente impositivo da cultura patriarcal no

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

226

Portugal de meados do século XX, nomeadamente na articulação da receção com

a vida quotidiana, com as dimensões públicas e privadas dos media e das suas

memórias.

Notas conclusivas: memórias dos media nos quotidianos de género

Neste texto procurámos identificar alguns dos elementos teóricos que

baseiam o projeto Media, recepção e memória, com especial destaque para a

memória e para a forma como esta se liga a questões de identidade e contextos

de uso dos media. Essas ligações são especialmente visíveis quando as memórias

mediáticas se tecem juntamente com fragmentos de experiências passadas vividas

das mulheres e as suas leituras presentes dos quadros ideológicos do Estado e da

sociedade, articulando certos lugares e papéis para si, no sistema social e político

maior. Analisando os discursos das histórias de vida de mulheres que nasceram

em meados do século XX, podemos encontrar essas interligações entre memória,

experiência, identidade e hegemonia, nos lugares ideológicos de produção do

género criados pelo Estado Novo: nos media, na família, na moral, no

catolicismo, no trabalho das mulheres e na opressão e na violência masculina.

Com a revolução democrática de 1974 vieram profundas alterações não

apenas dos regimes de funcionamento da comunicação, agora em liberdade, em

termos dos conteúdos mediáticos, como dos quadros políticos que suportavam as

relações de poder entre homens e mulheres. No espetro ideológico mais amplo,

no entanto, a noção de que a identidade de género tem que ver fundamentalmente

com questões de poder e domínio mantém-se. Ela está enraizada nas políticas das

relações entre homens e mulheres definindo os padrões, comportamentos e

distribuição do poder dentro da esfera familiar e também entre as esferas públicas

e privadas. Além disso, as experiências vividas de género normalizam as

estruturas de poder, domínio e desigualdade, deslocando as propriedades

essenciais da feminilidade e da masculinidade enquanto elementos individuais

para um sistema de produção de relações sociais e internacionais. É neste quadro

temporal e ideológico, portanto, que podemos observar como as narrativas

biográficas se entrelaçam mnemonicamente com as memórias dos media e os

seus contextos de receção, produzindo identidades de género que ligam, numa

teia tecida com o mesmo fio, roturas e continuidades ideológicas ancoradas nas

relações de poder que situam as mulheres no tempo e no espaço social e político.

Nos discursos que identificamos, vemos também como, apesar da força

repressiva da ideologia do Estado Novo sobre as mulheres, a memória dos media

e a articulação com o presente faz com que estes elementos ideológicos não se

imponham de forma passiva, como algo que opera apenas de cima para baixo e

que se limita a um dado momento no tempo, mas produzem resistência e uma

dinâmica de género que configura a abertura das identidades de género a

processos de emancipação e de resistência, configurando, assim, passados e

presentes (im)perfeitos.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

227

Bibliografia

Bates, T. R. (1975), Gramsci and the Theory of Hegemony, Journal of the History

of Ideas, 36(2): 351-366.

Belo, M., Alão, A. P. & Cabral, I. (1987), O Estado Novo e as mulheres. AA.VV.

O Estado Novo: das origens ao fim da autarcia. 1926-1959. Vol. II, 263-279.

Berkowitz, Dan (2011), Telling the Unknown through the Familiar: Collective

Memory as Journalistic Device in a Changing Media Environment. Neiger, M.,

O. Meyers, E. Zandberg (eds.), On Media Memory: Collective Memory in a New

Media Age. London: Palgrave McMillan, 201-212.

Bourdon, Jêrome (2003), Some sense of time: remembering television, History &

Memory 15(2): 5-35.

Bourdon, Jérôme (2011), Media Remembering: the Contributions of Life-Story

Methodology to Memory/Media Research. Neiger, M., O. Meyers, E. Zandberg

(eds.), On Media Memory: Collective Memory in a New Media Age. London:

Palgrave McMillan, 62-63.

Bourdon, Jêrome e Kligler-Vilenchik, N. (2011), Together, nevertheless?

Television memories in mainstream Jewish Israel, European Journal of

Communication. 26 (1): 33-47.

Cabrera, Ana (2006), Caetano: Poder e Imprensa. Lisboa: Livros Horizonte.

Cádima, Francisco Rui (1995), Salazar, o Regime e a Televisão, Revista de

Comunicação e Linguagens: 319-337.

Carvalheiro, José Ricardo e Tomás, Diana (2013), The day women took over the

tavern: harsh memories, hegemony and media reception”. Carvalheiro, J. R.

(org.), Media, Gender and the Past: Qualitative approaches to broadcasting

audiences and memories. Covilhã: Livros LabCom.

Carvalheiro, Ricardo (2013), Sobre recepção, história e memória: notas

epistemológicas e metodológicas, Revista Media & Jornalismo 22: 71-100.

Corner, J. (1991), Meaning, Genre and Context: The Problematics of "Public

Knowledge" in the New Audience Studies. Curran, J.; Gurevitch, M. (eds.), Mass

Media and Society. London: Edward Arnold.

Cova, Anne; Pinto, António Costa (1997), O Salazarismo e as Mulheres. Uma

Abordagem Comparativa. Penélope 17: 71-94.

Curran, J. (1990), The New Revisionism in Mass Communication Research: A

Reappraisal, European Journal of Communication 5 (2-3): 135-164.

Edy, Jill A. (2006), Troubled Pasts: News and the Collective Memory of Social

Unrest. Philadelphia: Temple University Press.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

228

Edy, Jill A. (2011), The Democratic Potential of Mediated Collective Memory.

Neiger, M., O. Meyers, E. Zandberg (eds.), On Media Memory: Collective

Memory in a New Media Age. London: Palgrave McMillan, 37-47.

Fraser, Nancy (1990), The Uses and Abuses of French Discourse Theories for

Feminist Politics, boundary 2, 17(2): 82-101.

Garcia, Veronica V. (1992), Gramsci, Women and the State, Alternate Routes 9:

1–25.

Gillis, John R. (1994), Memory and identity: The history of a relationship.

Gillis, J.G. (ed.), Commemorations: The Politics of National Identity.

Princeton: Princeton University Press, 3–24.

Gitlin, Todd (1980), The Whole World is Watching: Mass Media in the Making

and Unmaking of the New Left. Berkeley: University of California Press.

Gramsci, Antonio (1971), Selections from the Prison Notebooks. New York:

International Publisher.

Gray, A. (1999), Audience and reception research in retrospect. The trouble with

audiences. Alasuutari, P. (ed.), Rethinking the media audience. London: Sage.

Gray, Anne (2002), Research Practice for Cultural Studies: Ethnographic

Methods and Lived Cultures. London: Sage.

Hall, Stuart (1988), Gramsci and Us. The Hard Road to Renewal. London: Verso.

Hennessy, Rosemary (1993), Materialist Feminism and the Politics of Discourse.

New York: Routledge, Chapman and Hall.

Holdsworth, Amy (2010), Televisual Memory, Screen 51(2): 129–142.

Holdsworth, Amy (2011), Television, Memory and Nostalgia, Basingstoke:

Palgrave Macmillan

Holub, Renate (1992), Antonio Gramsci: Beyond Marxism and Postmodernism.

London: Routledge.

Hoskins, A. (2004), Television and the collapse of memory, Time & Society

13(1) 109–127.

Huyssen, Andreas (2003), Present Pasts: Urban Palimpsests and the Politics of

Memory. Stanford: Stanford University Press.

Keightley E.; Pickering, M. (2012), The Mnemonic Imagination: Remembering

as Creative Practice. Basingstoke: Palgrave Macmillan.

Keightley, Emily (2011), From Dynasty to Songs of Praise: Television as

Cultural Resource for Gendered Remembering, European Journal of Cultural

Studies, 14(4): 395–410.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

229

Kuhn, Annette (2010), Memory texts and memory work: Performances of

memory in and with visual media. Memory Studies 3(4): 298-313.

Landy, Marcia (2008), Gramsci, Passive Revolution, and Media, boundary 2,

35(3): 99-131.

Ledwith, Margaret (2009), Antonio Gramsci and feminism: the elusive nature of

power, Educational Philosophy and Theory, 41(6): 684-697.

Modleski, Tania (1986), Studies in Entertainment: Critical approaches to mass

culture. Bloomington: Indiana University Press.

Moores, S. (1993) Interpreting Audiences: The Ethnography of Media

Consumption. London: Sage.

Olick, Jeffrey K.; Robbins, Joyce (1998), From «Collective Memory» to the

Historical Sociology of Mnemonic Practices, Annual Review of Sociology, 24:

105–40

Parameswaran, R. (2003), Resuscitating feminist audience studies: Revisiting the

politics of representation and resistance. Valdivia, A. (ed.), A companion to media

studies. Oxford: Blackwell Publishers, pp. 311-336.

Showstack Sassoon, Anne (1987), Women and the State. London: Routledge.

Slaughter, Jane (2011), Gramsci's place in women's history, Journal of Modern

Italian Studies 16(2): 256–272

Stacey, Jackie (1994), Star Gazing: Hollywood Cinema and Female

Spectatorship. London: Routledge.

Van Dijck, José (2004), Mediated memories: personal cultural memory as

object of cultural analysis, Continuum: Journal of Media & Cultural Studies

18(2): 261-277.

Van Dijck, José (2007), Mediated Memories in the Digital Age. Stanford, CA:

Stanford University Press.

Van Zoonen, Lisbeth (1994), Feminist media studies. London: Sage.

Walby, Sylvia (1992), Theorizing Patriarchy. Oxford: Blackwell.

Williams, Raymond (1977), Marxism and Literature. Oxford: Oxford

University Press

Zelizer, B. (1992), Covering the body: The Kennedy assassination, the media,

and the shaping of collective memory. Chicago: University of Chicago Press.

Zelizer, Barbie (2008), Why memory’s work on journalism does not reflect

journalism’s work on memory, Memory Studies 1(1): 79-87.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

230

Zelizer, Barbie (2011), Cannibalizing Memory in the Global Flow of News.

Neiger, M., O. Meyers, E. Zandberg (eds.), On Media Memory: Collective

Memory in a New Media Age. London: Palgrave McMillan, 27-36.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

231

The male as a fragile object of desire: Fernando Matos Silva’s The Unloved

(O Mal Amado)

Érica Valente

[email protected]

School of Arts, Birkbeck College - University of London

Abstract - The objective of this paper is to look at Fernando Matos Lopes’ 1973

film The Unloved (O Mal-Amado) as a representational paradigm of male socio-

political and sexual crisis in the 1970s. The main protagonist’s plight is

contextualised and problematised against both gender and cinematic theory, in

what aims to be an exposition of the transformation of gender perspectives in the

wider context of Portuguese cinema, has a mirror of deeper gender remouldings

in Portuguese society. The study of this film in comparison with other films from

the period (both national and international) leads us to the conclusion that pre-

revolution sexual rebellion was being openly depicted and portrayed on the

screen by filmmakers who knew a priori that they would be censored.

Keywoords – dictatorship | feminism | colonial war | revolution | sexual

revolution.

Masculinity has always been defined in relation to the other

(Michael Roper and John Tosh, 1991: 1)

The Unloved (O Mal-Amado), is nodal for the evaluation of pre-revolution

censorship and pos-revolution exhibition: it was the last feature film to be banned

by the Estado Novo (Portuguese dictatorship) censors and the first to be released

after the revolution of 25 April 1974. In the film, the protagonist (João), embodies

the antithesis of the patriarchal alpha male. João is the object of a woman’s desire

(Inês) – an empowered woman. In an upturned representation, she is his boss and

he is her employee. Furthermore, contrary to mainstream representations of

heterosexual desire, João is being seduced, along with being socio-economically

a step below. Inês is the sexually demanding alpha in a film that does not stay shy

from portraying explicit female sexual desire and fantasy, male entrapment and a

profound disenchantment with the colonial war. This film helps us to understand

that, as the pre and post-revolution years triggered changes in female

representation, the same was happening with male representation. The objective

of this short essay is to shed some light on this shifting image, to “demonstrate

that masculinity has a history: that it is subject to change and varied in its forms”

(Roper and Tosch, 1991: 1). What then needs to be learned is why this might be

a film rendering an identity crisis of the young men of the time, why it counteracts

so vehemently the prevailing state notion of the masculine and why it was

censored.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

232

An Empire on the break of collapse

First of all, it is important to contextualise this film into the last moments

of an empire over stretched by colonial war, decadently breathing out its last puffs

of imperial rule. May 68, the feminist movement and the democratisation of

female contraception were echoing strongly against the Portuguese patriarchal

society. Despite the censorship, a generation of young Portuguese men and

women were aware of the Beatles and the Rolling Stones, of the sexual

revolution, of widespread contestation to the Vietnam war, and of the Civil Rights

movement in the United States. Rock and Jazz were important for this young

generation; a good example of this being the success of the Cascais Jazz Festival,

a privileged space for ‘other’ perceptions of the world. Student protest and dissent

in opposition to the regime was also growing, and was being imprinted in the

national psyche. The image of what sexuality can or cannot be could no longer

be handcuffed by the regime’s moral code, although government voices were still

repeating the old mantra that “...the submission of woman to man is only valid...”

(...defende-se a submissão da mulher ao homem...) (Cabrera, 2013: 70). With the

opening up of this new terrain of sexual exploration and daring, not solely the

morals of the church were being put into question, but also the morality of the

state. We need to remember that the church and the fascist regime were

inseparable partners in fear production and reinforcement to maintain the order,

and that, when expressing themselves sexually outside imposed norms, the

Portuguese were going against the fear of the divine, but also of earthly

punishment - sexuality was starting to defeat religious morality, and overcome

the fear of punishment from both god and dictator.

What is also happening is the fracturing of an important concept upholding

the profoundly catholic values of the Portuguese dictatorship: female pre-

marriage virginity. By bringing visibility to women’s desire outside marriage, the

social role of men is thus also brought into question. Furthermore, in 1972, the

scandal of the book Novas Cartas Portuguesas (The Thee Marias), a book written

by three women - which unashamedly unravels the injustices and the decadence

of the patriarchal regime - explodes a further intellectual bomb: that women

desire. Generational moral battles were not specific to the Portugal of the early

70s. Around Europe, the rights of women to access contraception, abortion and

independence from both fathers and husbands was being fought across many

fronts, independently of it being democracies or the last bastion of fascism. This

generational battle was leading to the radicalisation of sexual behaviour across

Europe, and it was clear for both intellectuals and artists that “The construction

of gender is both the product and the process of its representation.” (Lauretis,

1987: 4)

1972 is also the year of production of The Unloved. After a decade of

colonial war, young Portuguese men had in front of them the perspective of an

endless fight and, because of this presage, nationalistic sentiments were starting

to fragment, in part triggered by the overwhelming consciousness of being

trapped in a succession of Quixotic endeavours. The working classes, especially

working class men, were leaving the country in flocks, to escape poverty, an

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

233

unforgiving class system and the fight for the crumbling Portuguese Empire. For

the sons of the middle classes and elites, the sense of entrapment was even

greater: the reputation of the family and the consequences for it of putting the

shadow of doubt into its loyalty to the regime made it even more difficult to find

straightforward escape routes. We need to understand that past discourses of the

natural entitlement of Portugal to its African colonies were being more

questioned than believed (as with so many other things) by these younger

generations. This erosion of the image young men could have of themselves, as

heroes who will honourably fight and die for the good of the nation, to keep the

empire together, will subsequently profoundly corrode the basis of a society that

was sustained (at its core) by a patriarchal and imperialistic ideology. João says

to Inês, regarding her brother’s death in the colonial war “-I don’t want to die,

especially for the sake of what he died for”.

Sound, sexuality and the Empire - Soundtrack as a device of subversion

In The Unloved, the soundtrack acts as a vector of constant reinforcement

of the spectator’s awareness that both regime and João have their time running

out. The use of diegetic and non-diegetic (off screen) sound enhances meaning

and subsequently our semantic understanding through listening. The soundtrack

is rich in elements that magnify the subversive and revolutionary thoughts of the

team that was making the film.

The film starts with a plethora of shots of different clocks, together with

the overlapping of a clock’s tick-tock over the opening credits, over the images

of the city, and over João’s voice. We see clocks at certain times but the

overwhelmingly high pitch of the sound is non-diegetic, akin to the tick-tock of

a personal clock. The unnerving tick-tock continues to the first scene, where João

appears for the first time, as he switches off his alarm clock, making the sound

suddenly become diegetic, while waking up João to the narrative that will unfold

in this first scene. We see João appearing, bare chested, just in his underpants, as

to immediately become established as an object of desire; appended to the door

of his bedroom, a poster with the image of a fist braking chains, an openly

subversive sign. The clocks and the ticking soundtrack anticipating, perhaps, that

his time is running out, or, in a wider context, that the traditional role of the

Portuguese man in a strongly patriarchal society is about to be challenged.

Afterwards, while João’s mother gets his suit ready, we hear the acousmatic

sound of shots from what seems to be a western, perhaps playing on the television

or on the radio. João’s mother proceeds to switch off the light, engulfing the suit

and João’s room in darkness. Only later will we realise that this first day of work

is his first step into a brutal death.

Later, João desperately struggles to make the knot of his tie, almost to the

point of seeming to suffocate himself - the diegetic sound exaggerated in its high

pitch. He is saved by his god devoted mother, who, making his tie knot, comments

on the decades she has been doing it for her husband.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

234

Days later, while João and his family are having breakfast, the melody of

Fernando Tordo’s and José Ary dos Santos’ Tourada (Bullfight) plays diegetically

on the radio. Although in this scene we can only hear the melody without any

words, we know that the middle classes of the time were aware of its lyrics’

caustic comment on the regime, with its metaphors of decadence and hypocrisy,

and its disappointment with the failed promises of change of the so-called

Marcelist Spring. Bullfight won the competition to Portugal’s Eurovision song

contest entry, despite its subversive words. The Marcelist spring owing its name

to the fact that when Marcelo Caetano took power, following Salazar’s rule, there

had been hope of great change - this change did not materialise. In this scene,

Bullfight is followed by a pop song: protest followed by the superficiality of

consumer society.

Diegetic sound is used further along, in all its potential, in a scene where a

hippie girl speaks about structuralism and then a wider group of hippies sings -

we see also the image of Che Guevara. They speak about strikes and the

revolutionary feelings of the first republic, once again reiterating the open anti-

regime ethos of the film.

In another scene, João meets a colleague from University and says that

“ -...to do nothing is not a solution”. The tick-tock of the clocks plays again louder

than ever; as we see João running the streets, looking frightful, and we catch sight

of images of the police. “...[S]ound vectorizes or dramatizes shots, orienting them

toward a future, a goal, and creating a feeling of imminence and expectation. The

shot is going somewhere and is orientated and is oriented in time..” (Chion, 1994:

14). We hear the loud clock tick-tock, mixed with what is perhaps the cadence of

military steps. João looks anxious and afraid, the walls of the building behind him

are ramshackle and the paint is peeling. Next, a shot of a crowd of people on the

streets, followed by images of the police with batons and dogs. The tick-tock

increases in intensity, João runs. The influence of sound on the perception of time

in this image is overwhelming, giving again two distinctive pulsations: that time

is running out and that something is about to explode.

Later, in an outrageous scene that aims straight at the jaws of catholic

morality and the regime’s conception of the role of women, Inês performs oral

sex on João, while he speaks on the phone to his mother - oral sex is not an

imposition on her, but rather it is imposed on him. What we can see and hear in

this moment of the film is that by taking the sexual lead, Inês embodies the

symbol of the predator and João of the prey. The male is the fragile object of

desire. In this sexual encounter, João stands between the woman of the heyday of

the dictatorship, represented by his devout and religious mother, who he calls to

give false explanations to the reason why he is not at home, and the woman who

chose him. João is not independent; he is the child of his mother, the mother who

sacrificed everything for her son. And because she sacrificed everything, he needs

to conform to being her “grown-up child”. João mumbles when trying justify his

actions to his mother, a cliché of the assumption that gender identity is more

problematic for men than women because of the difficulties boys have in

extricating themselves from childhood identification with the mother. While João

talks to his mother, Inês is simply not bothered to wait for his phone call to finish

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

235

and feels that she can do what she wants with his body. She is the queen bee, he

is the bumblebee. Inês defiantly shows João her naked breasts while randomly

speaking lines of the theatre play she rehearses outside office hours, The Soul’s

Journey (O Auto da Alma) by Gil Vicente. João’s voice cracks, distorts and

weakens, as Inês starts the fellatio, he succumbs to the catharsis Inês wilfully

bestows. As the wave of ‘imposed’ pleasure makes his voice brake and weaken,

the strength of his male speech evades him - he is controlled by her. In this scene,

we are as far away as we possibly can from female characters like Marta in The

Circle (O Cerco), who is a creature of male sexual desire. In this scene the woman

is established as having the sexual upper hand. During the completion of

intercourse, Inês is silent in her fellatio and in control of her body. João has lost

control of both is voice and his body. His vision goes blurry as he mumbles “-

mother, mother, mother”.

Male body, visual pleasure and alienation from fellow man

Jean-Luc Godard took to the big screen, in the 60s and 70s, the image of

women as a product for and an object of consumption (Mulvey, 2009: 53).

Fernando Matos Silva plays with the other side of the same coin, by putting in

the cinema the image of the young man in consumer society. From the outset of

the film, João is defined as an object to be consumed, an object of desire. We see

him in his underwear, priming himself, shaving, applying deodorant. Before

setting off to his first day of work, we see João dropping by the barber to get a

hair cut, his face less than happy. João is Sansom, his vital force is being clipped,

trimmed, perhaps a symbol of the conformism he will have to embrace as a

working man.

As he sets off to work, he randomly kicks a young boy who cries and

threatens to tell his mother. This random act of violence immediately establishes

João in the narrative as a childish man, and establishes his alienation from other

male figures, something that is reiterated all through the film in the constant

disdain he has for his father’s statements. It is important to note that João’s father

keeps on his desk a bust of the former Portuguese dictator, Salazar. João seems to

only find solace amongst women, be it his mother, his boss, his colleagues or his

sisters. As the man amidst the women, he is devalued, in a society that

undervalues the female and puts the male at the top of the hierarchal pile.

In another scene, as João is sat in his office, just starting his new secretarial

job, he is treated as one of the girls (-Vocês ainda não estão todas). The use of the

feminine pronoun “todas” (feminine) instead of “todos” (masculine) immediately

undermining him, since in the Portuguese language the collective usually takes

the masculine form of the pronoun. A man compared to women is a taboo in the

“...hierarchy of Western civilization which posits God, Man, Woman, and Child

in descending order of importance.” (Haskell, 1974: xi). João is both a

commodity and the proletariat, he is one with the women, his fellow colleagues.

It is also important to note that The Unloved is not a marginal underground

production, that it was in fact the first film produced under the wings of the

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

236

Gulbenkian Foundation, and, as such, the first to be “...completely banned..”

(“...integralmente proibido...”) (Bénard da Costa, 2007: 35). Rather than the child

of isolated production, the film was part of a wave that was being created by a

group of filmmakers that made “...cinema with an ultra self-awareness.” (... um

cinema que se sabe ultraconsciente.) (Areal, 2011: 449), and which wanted to

make a difference. The Unloved is also not an isolated example of cinema where

male protagonists are adrift and end tragically. João César Monteiro’s Fragments

of an Ans-Film (Fragmentos de um filme Esmola: A Sagrada Família), whose

release was as well attempted in 1973, was likewise a victim of the censors. In

Monteiro’s case, he refused to screen the film with cuts. Coincidently or not,

Fragments of an Ans-Film also portrays a man adrift, who is not up to following

the rules of social behaviour and who ends tragically, shot by a woman.

For the generation of the New Wave of Portuguese cinema, it seems

endemic that women that are “too free”, that they will pay with ultimate violence

for their daring independence, that they will be killed or be the cause of death and

loss of someone who is close. We can see examples of this in films such as

Rocha’s 1963 The Green Years (Os Verdes Anos), Cunha Telles’ 1970 The Circle

(O Cerco), or Vasconcelos’ 1973 One Hundred Times Lost (Perdido por Cem).

We wonder why male protagonists (especially the young ones) always carry

redeeming features and represent a freedom that is utopian and quasi-innocent,

while young women are always, in one way or another, affiliated with doom.

Could this be because this new generation of Portuguese filmmakers, in the years

that predate the 1974 revolution, does not count amongst its ranks a single young

woman director? Or is this just symptomatic of the wider malaise of female status

in Portuguese society?

Feminism, capitalism and the fragile male

In The Unloved, we can see that, in the Portuguese society of the seventies

(erected upon a strong foundation of class division), if you were an upper class

woman, you would have a degree of liberty to act and be in ways that were closed

to other women, and even to working class men.

Inês, João’s boss, lives alone, drives her own car, and offers car rides to

both João and his father. We need to note that in the seventies, both in the worlds

of film and of advertising, to own a car is a symbol of independence, so important

for the status of the protagonists as was the horse for a cowboy in a western. The

car is many things: first and foremost, it is an expensive commodity and, as such,

a symbol of power in capitalist society. Inês is independent and unconstrained,

and her owning her own car is the symbol of this. João has to run after the bus

and in several moments we see how he observes the working and lower middle

classes in their daily commute. Most of all, he observes men who are the

representation of what he will become: dressed in suits like his, but older and still

having to commute by bus, looking tired, a life of work behind them that has not

been enough to grant them the surplus to buy their own car. We can grasp, from

the way João inspects his fellow male bus passengers, that he is aware of the

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

237

future entrapments of his petit-bourgeois status. We can read in his face what he

knows about the tired middle-aged man wearing a suit, sat on the bus, as his own

image a few decades down the line.

All the sexual charge, male empowerment and glamour that the world of

advertising associated with ownership of a car in the early seventies is overturned

in The Unloved. The car is not owned by a successful man but rather by a

successful woman. The object of desire, the pray, is not Inês, but rather João. He

has to walk and needs a ride; she invites him to take the passenger seat and traps

him in her space. When João sits inside the car, she immediately proceeds to ask

him for a cigarette. He naively promptly ensues to hand her one. But she

flirtatiously mutters that he needs to hand her a lit cigarette. João obeys. He lights

the cigarette and with this passage of the lit cigarette from his to her lips a pact is

sealed. Their mouths have shared the same phallic object, an object full of

symbolic power, as much as the car. Decades earlier, advertisers in the United

States had managed to make the association of cigarette smoking with freedom

and sexuality. To smoke was to be sexy, to be a rebel, and this association was

subsequently used to great effect by Hollywood to impart an image of the

glamorous vice of the free and the sexy. And the symbology is used to great effect

by Fernando Matos Silva in this scene.

It is also important to understand that women smoking was not well

received in Portuguese society. The phallus, like the car, was supposed to be

controlled and used firstly for the pleasure of men. And in this film Inês is the

catalyst for the phallic symbology, she is the representation of the freedom that

João aspires to.

João works in a marketing company. Throughout the film, João and his

colleagues mock the way the portuguese answer the questionnaires, how they lack

in urban sophistication. João’s work comprises the gathering of information on

Portuguese consumers, to be later used by advertising agencies. In this process

we can envisage the market economy gearing up in Portugal. In the final scene of

the film, after João is brutally murdered by his boss, Leonor, unaware of the tragic

events, waits anxiously for him at a digital data training session, where we hear

about the importance of digitising Portugal. For the Portuguese, capitalism has

arrived to stay.

Ultimate taboo

A big crucifix over Inês’ bed always frames the lovers in the bedroom

scenes. The rest of Inês’ bedroom’s decoration is an unsettling shrine to her

brother, with pictures of him, african masks and ornaments - symbols of

catholicism and of paganism mixed. Inês seems to hover always between

contradictory moral values, enquiring to both João and his father what they think

of her, resembling Ava Gardner in Barefoot Contessa, where “despite her

licentiousness, [she] does not attack established values - [and] she condemns her

own instincts by admitting that she likes to ’walk in the mud’.” (Beauvoir, 1960:

22). Inês asks them what they think, but we know that she knows what they think,

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

238

that she is a woman of loose morals. João’s father very politely tells her that she

and her house remind him of another woman he met in Seville when he was

young.

Inês constantly praises her brother’s heroism in dying fighting the colonial

war, and calls the africans he was fighting “terrorists”, endorsing the

government’s war rhetoric. Her perversion goes a step too far and into complete

taboo breaking when she forces João to dress in her dead brother’s uniform,

threatening to kill him with her brother’s gun if he refuses to obey. When João is

finally dressed in her brother’s uniform, she embraces him and rolls on the bed

ardent with desire. The woman is in control of the perversion, the man is the

vehicle of fetishism. Dead brother and present lover are finally one. We can see

that this perversion becomes too much for João and so he turns his attention to

his colleague Leonor, a more balanced woman.

When João tries to end the relationship with Inês, she kills him with her

brother’s gun. The champion of the colonial war comes in the guise of an insane

woman. And here it is, the ultimate taboo of The Unloved: the colonial war is

manufacturing collective neurosis and killing young Portuguese men. This

representation of an independent modern Portuguese woman, over and above as

the ultimate femme fatal, who kills the young man wanting to break free from

their relationship, while supporting the colonial war, is the utmost perverse

concoction. How could the censors ever let this pass in a mainstream cinema?

In conclusion, The Unloved is a paradigmatic example of how cultural

production was expressing Portuguese society’s readiness for the revolution that

would soon unfold. As discussed, this is not an isolated example of artistic

willingness to portray a desire for change: in other films, in music, in literature,

and in the theatre, examples of this were proliferating. This was a film destined

from the outset to be banned by the dictatorship’s censors, an artistic act of

defiance. The Unloved is rich with the symbols and statements that were in the

minds of the artists that made it, but also with what was in the minds of a large

mass of the population. It is also a complex work, with the representations of both

the masculine and the feminine undergoing a revolution. In a way, it is a case of

expressing a deeper social cataclysm through the enactment of a gender crisis.

What should remain with us is not entirely the notion that this film

expresses the subjugation of male to female desire, but the fact that by

constructing the image of a man who is equal to women, the possibility of gender

equality is given a cinematic canvas and is unchained. In 1962 François Truffaut

outlined for a French generation the change in sexual rules, in the way men and

women could relate to each other in Jules et Jim. In this film, famously, Catherine

(Jeanne Moreau) runs ‘encircled’ by Jules (Oskar Werner) and Jim (Henry Serre).

In Portugal, Fernando Matos Silva’s The Unloved includes a glorious scene where

João runs laughing, surrounded by his sisters, his friends.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

239

Bibliography

Almeida, São José (2010), Homossexuais no Estado Novo. Sextante Editora

Areal, Leonor (2011), Cinema Português Um País Imaginado. Vol. 1 – Antes de

1974. Edições 70

Bénard Da Costa, João (2007), Cinema Português: Anos Gulbenkian. Fundação

Calouste Gulbenkian.

Beauvoir, Simone de (1960), Brigitte Bardot and The Lolita Syndrome. Four

Square Books.

Cabrera, Ana (ed.) (2013), Censura Nunca Mais!. Aletheia Editores.

Chion, Michel (1994), Audio-Vision. Columbia University Press.

Haskell, Molly (1974), From Reverence to Rape: The Treatment of Women in The

Movies. Holt Rinehart and Winston.

Lauretis, Teresa de (1987), Technologies of Gender: Essays on Theory, Film and

Fiction (Theories of Representation and Difference). Indiana University Press.

Mulvey, Laura (2009), Visual and Other Pleasures (Language, Discourse,

Society). Hampshire: Macmillan.

Roper, Michael and Tosh John (ed.) (1991), Manful Assertions - Masculinities in

Britain since 1800. Routledge.

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro | 2013

240

ISBN

978-989-20-5358-5

eBook financiado pelo

Estas Atas surgem na sequência do Congresso Internacional

Censura ao Cinema e ao Teatro1 que se realizou em Lisboa, na Faculdade

de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, entre 13

e 15 de Novembro de 2013.

O congresso foi o culminar do projeto de investigação Censura e

mecanismos de controlo da informação no Teatro e no Cinema. Antes,

durante e após o Estado Novo, financiado pela Fundação para a Ciência e

Tecnologia.

Durante três dias congressistas provenientes de diversos

países como Espanha, Reino Unido, Irlanda, Polónia, Brasil e

Portugal puderam não só apresentar o resultado das suas

investigações, como participar num profícuo debate sobre a censura

ao cinema, ao teatro e à imprensa.

Neste congresso apostou-se em abordagens transdisciplinares, na

participação de profissionais do teatro, cinema, da imprensa e do Arquivo

Nacional da Torre do Tombo. Tornou-se assim possível a problematização

dos efeitos da censura a diversos níveis: a mutilação das obras dramáticas

e cinematográficas, os autores que nunca foram representados, as peças

jornalísticas que não foram publicadas e lidas e os atores, realizadores e

encenadores que viram o seu trabalho inutilizado.

O Congresso foi também palco de debate sobre as censuras na

atualidade e as suas novas configurações, tornando presente um assunto

que não diz só respeito ao passado e não se confina aos regimes políticos

totalitários e autoritários, mas que surge em novos formatos nas

democracias.

Assim convidámos os congressistas à apresentação de artigos que

agora publicamos em formato eBook.

O projeto de investigação, o Congresso e agora este eBook foram

financiados por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a

Ciemcia e a Tecnologia, no âmbito do projeto com Refª PTDC/CCI-

COM/117978/2010 e apoiados pelo CIMJ – Centro de Investigação Media

e Jornalismo e pela FCSH/UNL - Faculdade de Ciências Sociais e

Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

A todos os nossos agradecimentos.