BIOPODER E AUTOIMUDIDADE: O COLAPSO DA SEGURANÇA NO RASTRO DA DESCONSTRUÇÃO – FOUCAULT E...

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BIOPODER E AUTOIMUDIDADE: O COLAPSO DA SEGURANÇA NO RASTRO DA DESCONSTRUÇÃO FOUCAULT E DERRIDA EM DEBATE 1 Isabela Costa 2 Manoel Uchôa 3 Resumo: Na biopolítica, Foucault refuta o modelo da soberania como discurso de legitimação. Para tanto, propõe duas formas de analisar o Estado. Primeiro, o poder estatal sustenta-se por dispositivos não derivados dele. Contudo, encontramos, na forma estatal, uma organização desses mecanismos difusos e heterônomos atualizados numa homologia. Segundo, a guerra é o princípio de sua análise política. O poder só se exerce na luta. Nessa medida, o biopoder é assunção da vida biológica dos corpos individuais e populacionais: “fazer viver, deixar morrer”. Numa contrapartida suplementar, Jacques Derrida propõe um novo tratamento à soberania. Na salvação (saúde) de seu corpo artificial, a soberania constitui-se num processo de imunização de si mesma, construindo defesas para o “Eu” soberano contra si: “fazer viver, fazer morrer”. Essa é a aporia radical da biopolítica. Sendo assim, o objetivo deste artigo é analisar a relação entre biopoder e auto-imunidade na constituição de uma nova perspectiva de soberania. Palavras-chave: Biopoder; Auto-imunidade; Soberania Introdução: duas genealogias do poder. A análise tradicional do poder é balizada principalmente pela categoria de legitimidade. Por um lado, a produção da crença de um fundamento do poder permite afirmar sua justiça e validade. Por outro, as formas que regulam esse processo precisam se instalar nas instâncias mais específicas da sociedade. Nesse sentido, dois modos de tratar o funcionamento do poder se sobressaem. Um pretende encontrar a justificação da estrutura de dominação; outra desloca o problema da fundamentação em virtude de uma ramificação das relações de dominação. Embora não se possa resumir o poder à questão da legitimação, as análises daquele provem das construções dessa. 1 Trabalho preparado para sua apresentação no 1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: governamentalidade e segurança, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 13 a 15 de maio de 2014; 2 Isabela Maria Bezerra Costa. Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: [email protected] 3 Manoel Carlos Uchôa de Oliveira. Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail: [email protected]

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BIOPODER E AUTOIMUDIDADE: O COLAPSO DA SEGURANÇA NO RASTRO DA

DESCONSTRUÇÃO – FOUCAULT E DERRIDA EM DEBATE1

Isabela Costa2

Manoel Uchôa3

Resumo: Na biopolítica, Foucault refuta o modelo da soberania como discurso de legitimação. Para tanto, propõe

duas formas de analisar o Estado. Primeiro, o poder estatal sustenta-se por dispositivos não derivados dele. Contudo,

encontramos, na forma estatal, uma organização desses mecanismos difusos e heterônomos atualizados numa

homologia. Segundo, a guerra é o princípio de sua análise política. O poder só se exerce na luta. Nessa medida, o

biopoder é assunção da vida biológica dos corpos individuais e populacionais: “fazer viver, deixar morrer”. Numa

contrapartida suplementar, Jacques Derrida propõe um novo tratamento à soberania. Na salvação (saúde) de seu

corpo artificial, a soberania constitui-se num processo de imunização de si mesma, construindo defesas para o “Eu”

soberano contra si: “fazer viver, fazer morrer”. Essa é a aporia radical da biopolítica. Sendo assim, o objetivo deste

artigo é analisar a relação entre biopoder e auto-imunidade na constituição de uma nova perspectiva de soberania.

Palavras-chave: Biopoder; Auto-imunidade; Soberania

Introdução: duas genealogias do poder.

A análise tradicional do poder é balizada principalmente pela categoria de legitimidade.

Por um lado, a produção da crença de um fundamento do poder permite afirmar sua justiça e

validade. Por outro, as formas que regulam esse processo precisam se instalar nas instâncias mais

específicas da sociedade. Nesse sentido, dois modos de tratar o funcionamento do poder se

sobressaem. Um pretende encontrar a justificação da estrutura de dominação; outra desloca o

problema da fundamentação em virtude de uma ramificação das relações de dominação. Embora

não se possa resumir o poder à questão da legitimação, as análises daquele provem das

construções dessa.

1 Trabalho preparado para sua apresentação no 1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos:

governamentalidade e segurança, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais e pelo Programa de Pós-

Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 13 a 15 de maio de 2014; 2 Isabela Maria Bezerra Costa. Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. E-mail:

[email protected] 3 Manoel Carlos Uchôa de Oliveira. Doutorando no PPGCJ-UFPB. Professor Assistente I na Unicap. E-mail:

[email protected]

A posição de Michel Foucault surge enquanto uma negação do paradigma da

legitimidade na medida em que desloca a questão do fundamento para o problema do

funcionamento do poder. Foucault pretende redefinir a pergunta pelo poder justamente na

negação da legitimidade, logo, negação do modelo de soberania vigente na modernidade. A

genealogia enquanto estratégia de estudo evoca a emergência dos mecanismos de poder a partir

das relações de força. Em contrapartida, Jacques Derrida assume o problema da tradição a fim de

desconstruir os pressupostos da fundamentação do poder. Sua estratégia não é menos

genealógica, porém lida com as forças que sustentam a própria autoridade legitima e soberana.

O ponto de partida desse trabalho assume a dificuldade em decidir pela negação ou

afirmação do fundamento de poder e da soberania. O que chama a atenção é que entre uma

posição e outra há um limiar de negociação oferecendo novas perspectivas para o estudo do

poder. Não é à toa que referências contemporâneas, como Agamben, Negri, Laclau, Esposito,

tentaram lidar com o choque dessas duas formas de conceber o poder. Por isso, pretende-se

tomar a posição limítrofe na mediada em que um espaço de contaminação possibilite às duas

genealogias um debate em torno do problema da Soberania.

Tomando a obra de Foucault primeiramente, o binômio “morrer-viver” está no cerne da

discussão deste trabalho. No modelo de soberania, há o postulado do “fazer morrer, deixar

viver”; enquanto no paradigma biopolítico, “fazer viver-deixar morrer” é o contraponto de uma

nova maquinação das relações de poder. A primeira parte é dedicada a essa exposição. Por outra

via, o poder ao tentar marcar a conservação de seu corpo segue em uma autodestruição que, antes

de ser um acidente, é fator constitutivo de sua legitimação. Por isso, entre a soberania e o

biopoder foucaultianos, haveria um terceiro elemento transversal e intrigante: a auto-imunidade,

cujo funcionamento é uma repetição infernal, “fazer viver, fazer morrer”. Nesse sentido, pode-se

pensar um desvio dessa maquinação no intuito de pensar um poder de liberação que signifique

um “deixar viver, deixar morrer”, o verdadeiro sentido da liberdade derridiana. Mesmo assim,

não tão distante da proposta ética de Foucault.

1 A genealogia foucaultiana do poder; a descontinuidade entre soberania e biopoder

Michel Foucault, no seminário “Em Defesa da Sociedade”, preocupa-se em delimitar

uma analítica do poder. Sua pretensão é oferecer uma genealogia a partir das forças que

constituem mecanismos de produção da verdade e da dominação. Para tanto, é necessário pensar

na instância da guerra permanente como ponto emergência das formas jurídicas modernas: o

poder só se exerce na luta. O mecanismo de poder é fundamentalmente o mecanismo de

combate:

Primeiramente isto: que as relações de poder, tais como funcionam numa sociedade

como a nossa, têm essencialmente como ponto de ancoragem uma certa relação de força

estabelecida em dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra

(FOUCAULT, 1976. p 15).

Numa inversão do aforisma de Clauzewitz4, a política é pensada como a continuação da

guerra. Nesse sentido, o poder político insere essas relações de força, e as perpetua dentro das

instituições, na própria linguagem, na economia, em suas desigualdades, e principalmente na

normalização dos corpos individuais e coletivos: “A repressão nada mais seria que o emprego,

no interior dessa pseudopaz solapada por uma guerra contínua, de uma relação de força

perpétua” (FOUCAULT, 1976. p 17). Se, na modernidade primeira, a segurança tem seu escopo

no interior da escatologia pacificadora do soberano, a biopolítica, ao contrário, atua na

estabilização do fluxo metabólico da sociedade.

O edifício jurídico de toda a Idade Média for construído em torno do poder régio. Com

isso, o poder soberano era tratado sobre duas óticas: como era perfeitamente encaixado e

legitimado pelas normas jurídicas, sendo efetivamente o corpo vivo da soberania, e como, para

conservar sua legitimidade, ele teria seu poder limitado e enquadrado em regras de direito. “O

papel essencial da teoria do direito, desde a Idade Média, é o de fixar a legitimidade do poder: o

problema maior, central, em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o problema da

soberania” (FOUCAULT, 1976. p 23). O corpo vivo se legitima em uma dupla injunção: a

maquinação jurídica permite operar a morte materialmente, ao mesmo tempo, inclina a salvação

do corpo mortal (ainda que vivo) no etéreo corpo real (KANTOROWICS, 1998).

Tal técnica terá como finalidade mascarar o mecanismo principal de governo: a

dominação, a obrigação legal de obediência. O direito é quem instaura e vincula as relações de

dominação. Sua dinâmica se constitui em uma tática de regressão em que o ato normativo mais

concreto é subsumido em uma cadeia que se encerra e sustenta na vontade soberana. Num

contraponto, Foucault observa a descontinuidade nessa forma tradicional, ao passo que não

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Foucault, em pensamento baseado no princípio de Carl von Clausewitz: “A guerra não é mais que a continuação

da política por outros meios”; Ela não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento da política, seu

prosseguimento por outros meios” (Vom Kriege, liv. I, cap. 1).

apenas a dominação centralizada e descendente do rei para seus súditos, mas a funcionalidade de

uma rede mais complexa e abrangente, de relações de força e dominação dentro da própria

sociedade, semeada dentro das próprias relações recíprocas entre os indivíduos. Essa é a nova

característica atuação do poder. O poder se exerce em cadeias dentro dessas relações

interpessoais.

A análise do direito deve ser feita, primordialmente, a partir dos constantes processos de

sujeições que ele instaura. Enquanto a lei pretende ser entendida como sinônimo de paz, ao

contrário, a norma é a ritualização guerra para a produção constante das verdades. Essa “paz” da

lei é onde, surdamente, acontece a guerra. É uma guerra é silenciosa. A ritualização da guerra

depende de uma estratégia histórica que Foucault explicita: o racismo. A guerra racial é o

paradigma da nova configuração do poder. Na luta entre as raças, o biopoder encontra sua

emergência. A genealogia da biopolítica está ligada a “genética” dos indivíduos e populações.

Desde sua formação, a soberania moderna construiu-se baseada principalmente na

centralização do poder. Evidenciada pelo surgimento de unidades políticas resistentes ao tempo,

como as grandes dinastias, criou-se assim solidas instituições burocráticas de governo e o mais

importante: o consenso sobre a necessidade de existência de um soberano e sobre o dever básico

de obediência e submissão completa a esse poder.

A noção da soberania moderna conclui-se efetivamente na noção do Estado possuir

direitos absolutos, incondicionais e indiscutíveis. Com isso, o poder soberano era exercido

justamente no poder de decisão sobre vida e morte de seus súditos.

Porém, o contexto e fundamento das relações de soberania, a partir do século XVII,

sofreriam mudanças essenciais em suas fórmulas de governo. Métodos de disciplina e

regulamentação surgiram como novos aparatos de governo visando maior controle e regulação

social. Tal mudança foi a revolução da biopolítica na forma de atuação do Estado e da soberania.

Onde antes reinava o “deixar viver, fazer morrer”, típico do poder absoluto do soberano sobre os

corpos de seus súditos, agora a ordem é o “fazer viver, deixar morrer” dentro de uma assunção

da vida biológica dos corpos individuais e populacionais.

A biopolítica da espécie humana, trabalhada por Foucault, consiste em um conjunto de

processos de controle da natalidade, de mortalidade e longevidade de uma população. A

biopolítica nada mais é do que a inclusão da vida propriamente dita na política. O que se instaura

agora é uma mudança na forma de dominação, que irá se dar em duas formas e em dois

momentos que se conectam e prescindem um do outro: o da disciplina e o da regulamentação.

O primeiro trata-se de uma organização individual do sujeito, de técnicas de como

aprimora-lo, dentro de uma rede complexa onde o poder iria se exercer visando a uma

“tecnologia disciplinar do trabalho”. “Mais precisamente eu diria isto: a disciplina tenta reger a

multiplicidade dos homens na medida em que deve ser vigiados, treinados, utilizados e

eventualmente punidos” (FOUCAULT, 1976. p 204). Já a segunda ultrapassa os limites de uma

disciplina. Ela preocupa-se com o homem na multiplicidade e pluralidade, na sua “massa

global”. É a “biopolítica da espécie humana”: o interesse no indivíduo, mas como membro de

uma coletividade.

Dentro desse biopoder irá surgir outro mecanismo de controle: a questão do Estado de

Segurança. O policiamento, a higienização, o discurso da necessidade da preservação da

segurança social e o controle dos contingentes sociais são técnicas de subjetivação e

governamentalidade usadas pelo Estado. A questão central da análise de Foucault será onde e

como os mecanismos de segurança vão atuar dentro das questões sociais e biológicas das

espécies. O mecanismo da disciplina necessita da segurança. Segundo Foucault:

Porque, afinal de contas, para de fato garantir essa segurança é preciso apelar, por

exemplo, e é apenas um exemplo, para toda uma série de técnicas de vigilância, de

vigilância dos indivíduos, de diagnóstico do que eles são, de classificação da sua

estrutura mental, da sua patologia própria, etc. Todo um conjunto disciplinar que viceja

sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar. (FOUCAULT, 2008. p 11)

Tais técnicas de segurança consistem em boa parte na transformação e remodelagem de

técnicas jurídicas-legais e de disciplina já existentes em busca de uma nova justificativa para sua

aplicação. “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos

mecanismos propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina”

(FOUCAULT, 2008). Ou seja, o soberano estará constantemente criando novas medidas para

assim criar novas justificativas para o exercício do controle da população. É recriação de

justificativas de dominação clamando por uma maior e constante necessidade de segurança

social.

2 A genealogia de Jacques Derrida: da crítica da violência à auto-imunidade.

Nesse sentido, Jacques Derrida, em Força de Lei, tece um contraponto ao argumento da

ordem pacificadora do Direito. Enquanto Foucault expõe o índice das formas jurídicas na guerra,

Derrida reativa a crítica da violência de Walter Benjamin. O conceito de violência no sentindo

Gewalt5

é introduzido: é sempre uma força estatal autorizada e legitima. O conceito de violência

(Gewalt) pertence à ordem simbólica do direito, da política e da moral – de todas as formas de

autoridade ou autorização, ou pelo menos de pretensão à autoridade.

O Estado, e por tanto o direito, agem sempre dentro da dimensão do enforciability, que

Derrida (2003, p. 12) qualifica como a força intrínseca do direito: “Ela é a força essencialmente

implicada no próprio conceito de justiça enquanto direito, da justiça na medida em que ela se

torna lei, da lei enquanto direito. ” A justiça só pode tornar-se justiça quando recorre à violência

desde seu início, para assim adentrar à lei e ao direito

Isso nos permite analisar a relação da violência no direito em sua homogeneidade. “A

violência não é exterior ao direito, ela ameaça o direito no interior do direito” (DERRIDA, 2007.

p 81). Ela não consiste, essencialmente, em exercer sua potência ou uma força brutal para obter

específicos resultados, mas em ameaçar ou destruir específica ordem do próprio direito.

Numa contrapartida suplementar, Derrida propõe um novo tratamento à soberania dento

do aspecto do biopoder. Na salvação (saúde) de seu corpo artificial, a soberania constitui-se num

processo de imunização de si mesma, construindo defesas para o “Eu” soberano contra si: o

“fazer viver, fazer morrer”.

Numa linha paralela ao que Derrida propõe, é interessante anotar a reflexão de

Roberto Esposito enquanto paradigma da imunização na superação da concatenação da

biopolítica em relação ao poder soberano. Na tentativa de reconciliar esses dois processos

modernos, Esposito admite o trabalho do negativo entre vida e poder no processo de

subjetificação da modernidade. O paradigma da imunidade desenvolvido por Roberto Esposito

possibilita um entremeio na leitura entre a biopolítica e a desconstrução:

A imunidade não é apenas a relação que liga a vida ao poder, mas o poder de

conservação da vida. Ao contrário, de tudo que pressupõe o conceito de biopolítica -

entendido como resultado do encontro que em certo momento se dá entre dois elementos

componentes - deste ponto de vista não existe poder externo à vida, assim como a vida

não se dá nuca fora das relações de poder. Olhada nessa perspectiva, a política não é

senão a possibilidade, ou o instrumento, de conservar viva a vida. (2010, p. 74)

5

Termo Gewalt – Walter Benjamin “Por uma crítica da violência”: Frequentemente traduzido por “violência”, mas

possui um significado mais amplo. Significa também poder legítimo, autoridade, força pública. Pode significar o

domínio ou soberania do poder legal, a autoridade autorizante ou autorizada: a força de lei.

O soberano seria a primeira figura imunitária no cerne da conservação da vida. Ao passo

que não antes ou depois do soberano em relação ao biopoder, para o filosofo italiano, não haveria

uma presença fantasmagórica do soberano, porém, em virtude disso, a relação entre vida e morte

passa a ser borrada. Na verdade, a condição espectral não é um pressuposto, mas aquilo mesmo

que sustenta a dinâmica biopolítica do soberano. Não é à toa que esta demanda o sacrifício e

edifica a lei e o direito em torno desse rito. Mesmo a guerra não é senão uma exigência soberana

para que o corpo mortal dos súditos verte seu sangue. Por isso, opera-se por dentro, nem antes

nem depois, na possibilidade efetiva da auto-imunização.

A questão da auto-imunidade é tratada onde a razão do Estado, ao mesmo tempo que

torna-se ameaçante, teria o poder de ameaçar a si própria, constituindo uma aporia radical da

biopolítica. Hora é ameaça, hora ameaça-se. Ela ataca-se para proteger-se:

De se perder a si própria, de naufragar por si própria, eu preferiria dizer de se auto-

imunizar para designar uma estranha lógica ilógica pela qual um vivente pode

espontaneamente destruir, de forma autônoma, aquilo mesmo que, nele, se destina a

protegê-lo contra o outro, a imunizá-lo contra a intrusão agressiva do outro.

(DERRIDA, 2009)

Não pode existir soberania que não alimente sua própria auto-imunidade. Mesmo tendo

em vista que o princípio da autodestruição auto-imunitária causará a ruína de outro princípio,

proteção de si (integridade intacta de si), ele se faz necessário por ter sempre em vista uma

“sobre-vida invisível e espectral” (DERRIDA, 2003). Essa é a grande aporia do auto-imune.

Essa aporia tem necessidade fundamental, pois será a forma que o Soberano poderá abrir-

se, para assim, poder decidir sobre o outro, ao futuro, à incerteza, às variações, à morte, em fim,

ao que é distinto e ainda fora de seu controle e previsão. Esse será o constante processo do

reenvio auto-imunitário.

Em Vadios, Derrida propõe essa análise a partir do conceito de Democracia porvir. O

processo auto-imunitário, portanto, é a própria democracia que consiste sempre no reenvio. Esse

reenvio consiste em sempre enviar a algum lugar a democracia. Ela se expulsa ou se rejeita, se

exclui a pretexto de se proteger e para isso, deve se rejeitar, expulsar, alocar ou suspender,

colocando para fora seus inimigos domésticos. O reenvio, nesse ponto, já dificulta a condição do

poder e do político, pois no discurso interna a cidadania democrática não há pressuposto teórico

imediato para distinguir o amigo e o inimigo enquanto cidadãos. Todo cidadão é ao mesmo

tempo potencialmente amigo e inimigo. Uma repetição constante do incluir e excluir:

Este duplo reenvio (reenvio de - ou ao - outro e adiamento) é uma fatalidade auto-

imunitáia inscrita mesmo [à même] na democracia, mesmo no conceito de uma

democracia sem conceito, mesmo numa democracia desprovida de mesmidade e de

ipseidade, de uma democracia cujo conceito permanece livre, sem embraiagem

determinada, em roda livre, no livre jogo da sua indeterminação, mesmo nesta coisa ou

nesta causa propriamente o que é, nunca ela mesma. (2009, p. 94)

Não se pode perder de visa que ao tratar do corpo democrático ou da soberania está-se

tratando de uma multiplicidade de corpos. Não se pode não falar em corpos, isto é, na articulação

imanente que esse reenvio produz até mesmo no instante em que se calcula e, principalmente, se

decide “cortar a própria carne”. Essa dinâmica carnívora é a instância “cruel” da violência mítica

(aquela que funda e conserva do direito). A crueldade é a condição de expor a carne viva ao osso

do processo de violência legítima.

Cortar, ainda que a suture posteriormente, mantém o corpo soberano a capacidade de

reorganizar a si mesmo na mesmidade, mesmo que nunca coincida consigo mesmo. O corpo

mortal do soberano está à disposição da violência que o sacrifica a fim de que sacraliza seu corpo

etéreo. A violência que submete a vida para assegurar a vida possui seu discurso na geração de

uma teologia política, segundo Derrida. É o poder de todo uma cultura e mentalidade de “cortar

na própria carne”, propriedade da carne auto-imunizada. Em suma, o carnofalo-

logogocentrismo:

Na nossa cultura, o sacrifício carnívoro é fundamental, dominante, regulado pela mais

ala tecnologia industrial, tal como é também a experimentação biológica sobre o animal

- tão vital a nossa modernidade. [...], o sacrifício carnívoro é essencial à estrutura da

subjetividade, quer dizer, também ao fundamento do sujeito intencional e, senão da lei,

pelo menos do direito, permanecendo aqui a diferença entre a lei e o direito, a justiça e o

direito, a justiça e a lei aberta sobre um abismo. (2003, p. 32)

A marca disso é a excepcionalidade constitutiva da soberania, desde Carl Schmitt

(AGUILAR, 2004) que Derrida assume enquanto problema a desconstrução. É o processo que o

soberano pode ferir ou até suspender o próprio direito, justificando a necessidade de proteção do

ordenamento ou de preceitos fundamentais, como a segurança nacional. Constantemente os

direitos dos cidadãos são feridos e usurpados visando tal “sobre-vida invisível e espectral”. Aqui,

tal ato de quebra remeterá sempre ao processo de reenvio desse direito visando a remodelação

das estruturas sociais.

A relação entre soberania, representada pelo Poder Legislativo, como o governo, Poder

Executivo, será sempre fadada à destruição. A própria necessidade de existência de um Poder

Executivo para garantir e afirmar sua própria soberania já mostra sua subjetivação. Essa é a

própria característica constitutiva e originária do corpo político: uma característica de auto-

imunidade. Num constante ato de opressão, o soberano acabará sempre por usurpar o poder do

Legislativo ao quebrar com a lei.

3 Valorização da vida e clamor à morte

3.1 O racismo

É dentro dessa análise que pode-se entender como o Soberano atua nessa lógica do

biopoder. A análise a ser feita é como, nesse cenário de valorização da vida, a partir dos

mecanismos de segurança, disciplina e regulamentação, o Estado irá clamar a morte e decidir

sobre quem irá morrer.

Foucault mostra claramente qual será o critério para tal seleção: O racismo. Mas não

apenas o biológico, evolucionista ou étnico, e sim em relação aos criminosos, doentes mentais,

adversários políticos, etc. Ele será justamente a representação da auto-imunidade. Será o corte

entre o que deve viver e o que deve morrer. A construção social e hierarquia de raças mediante

sua qualificação como boa ou ruim vai permitir o Estado fazer cesuras, divisões, no interior do

biológico ao qual o biopoder se dirige.

Outra característica do racismo irá aparecer na relação guerreira de “o quanto mais você

matar, mais viverá”, mas agora será um enfrentamento não guerrilheiro, mas biológico. A

exterminação do grupo inferior, da parcela degenerada da população, trará à parcela boa e

saudável fortalecimento. A morte do outro acarreta na segurança pessoal dos demais. É a criação

de um inimigo por seu biótipo para exterminá-lo clamando à segurança social. A busca é pela

eliminação do perigo biológico e o fortalecimento da própria espécie.

Nesse sentindo, em duas obras como “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex e “A

Ralé Brasileira” de Jessé de Souza, é possível fazer análises iniciais relacionando como o

racismo do biopoder pode ser, e foi, aplicado durante toda a história brasileira.

O primeiro fala de um verdadeiro holocausto dentro de um hospício Colônia, na cidade

mineira de Barbacena, com cerca de sessenta mil mortos. A grande maioria, estimada em 70% da

população que residia ali, não tinha doenças mentais, mas eram ditos diferentes da sociedade e

ameaçadores da ordem pública, os chamados “Ignorados de Tal”.

Por isso, o Colônia tornou–se destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos,

mães solteiras, alcoólatras, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos

os tipos de indesejados, inclusive os chamados insanos. Mas eram apenas vítimas do

poder político e social (…). Muitas ignoradas eram filhas de fazendeiros as quais

haviam perdido a virgindade ou adotavam comportamento considerado inadequado para

um Brasil, à época, dominado por coronéis e latifundiários. Esposas trocadas por

amantes acabavam silenciadas pela internação no Colônia. Havia também prostitutas, a

maioria vinda de São João del-Rei, enviadas para o pavilhão feminino Arthur Bernardes

após cortarem com gilete os homens com quem haviam se deitado, mas que se

recusavam a pagar pelo programa. (ARBEX, 2013. p 25)

As internações, assinadas por delegados e concretizadas por viaturas policiais, mostra

como o manicômio Colônia, assim como os campos de concentração nazistas, é a representação

clara do Estado de Exceção como norma e como desejo. Desejo não só governamental, mas

social. E, dessa forma, segundo uma perspectiva de Giorgio Agamben (2010.p 166), quando a

exceção, a quebra com o próprio direito, é desejada, inaugura um novo paradigma jurídico-

político, onde a norma torna-se indiscernível da exceção.

O campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado,

no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer medição. Por isso o

campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política torna-se

biopolítica (AGAMBEN, 2010. p 167)

Esse é a verdadeira face do racismo: a tentativa de eugenização da sociedade por uma

aniquilação propriamente dita justificada por uma situação fictícia de perigo que tais “Ignorados”

supostamente oferecem. Seja em hospícios, como o Colônia, ou nos presídios brasileiros, onde

um inimigo penal de características físicas e econômicas precisas são tratados como escória

social.

3.2 Os presídios brasileiros e o inimigo do direito penal

Esse será o ponto chave do livro “A Ralé Brasileira”. A discriminação de uma parcela da

sociedade dentro de uma visão “economicista”, onde haverá uma cesura entre quem “nasceu para

o sucesso” e quem já “nasceu para o fracasso” (SOUZA, 2009). Tal visão economicista, baseada

na divisão de classes, leva em conta apenas a renda como critério de divisão dos indivíduos e

será o argumento de decisão de qual será o lugar dele no sistema social. Porém, tal critério

camufla fatores e precondições sociais, emocionais, morais e culturas que constituem a vida de

cada cidadão. Esses são os grandes fatores que permitem compreender como é a desigualdade

social no Brasil ontem e hoje.

A classe denominada como “ralé” não tem essa denominação apenas por não ter dada

renda mensal, mas principalmente por não se encaixar nos padrões éticos e comportamentais

compartilhados pelas classes alta e média. O estilo de vida, a educação e o comportamento

perante a sociedade é o primeiro choque e divisor do “homem bom” para o “homem ruim”.

Esse processo de distinção é reiteradamente reproduzido no seio social constituindo uma

legitimação da desigualdade tão enraizada no pensamento social. Sobre isso Jessé de Souza

argumenta:

Na realidade, a “legitimação da desigualdade” no Brasil contemporâneo, que é o que

permite a sua reprodução cotidiana indefinidamente, nada tem a ver com esse passado

longínquo. Ela é reproduzida cotidianamente por meios “modernos”, especificamente

“simbólicos”, muito diferentes do chicote do senhor de escravos ou do poder pessoal do

dono de terra e gente, seja esta gente escrava ou livre, gente negra ou branca. (SOUZA,

2009)

Tal ato de escolha de uma parcela social como ruim, típica do racismo, será a escolha de

um inimigo do direito penal. E essa escolha sempre será uma escolha política, seja em âmbito

nacional ou internacional. As decisões estruturais (dos governos) atuais assumem, na prática, a

forma pré-moderna definida por Carl Schmitt, ou seja, limitam-se ao mero exercício do poder de

designar o inimigo para destruí-lo ou reduzi-lo à impotência total (ZAFFARONI, 2011).

E cisão do inimigo acarretará no tratamento diferenciado: o direito lhe nega a condição de

pessoa. Ele é visto tanto para o governo, tanto para sociedade, apenas como um ser perigoso que

fatalmente causará danos em qualquer local que esteja, e com isso é justificada a privação de

certos direitos fundamentais supostamente inalienáveis. Essa qualificação “coisificou-os sem

dizê-lo, e com isso deixou de considerá-los pessoas, ocultando esse fato com racionalizações”

(ZAFFARONI, 2011).

A privação do caráter de pessoa e da abstenção aos direitos que os ditos inimigos sofrem

é a primeira e mais clara incompatibilidade com os princípios básicos do Estado de Direito que

se apresenta:

Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de

pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é,

quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e

simplesmente como um ente perigoso (ZAFFARONI, 2011).

A tática preponderante para justificação de todas essas relações de exclusão será o medo.

Se a população tem medo, ela apoiará qualquer discurso e medida que acabe com o perigo, seja o

assassinato em massa - visto claramente nas “pacificações” em favelas brasileiras - seja a perda

da privacidade, tudo em nome do reiterado discurso de segurança.

O mais denso, entretanto, virá depois disso: a tendência de despersonalização de toda a

sociedade. A precisão e cautela dos atos cotidianos torna-se extremamente necessária para evitar

confrontos com os interesses políticos governamentais. Uma sociedade que vive em torno da

necessidade de segurança como primordial e a leva até suas últimas consequências - como

segregar, enjaular e indiretamente matar pessoas no cárcere ou legitimamente por ações de

“pacificação” policial - de certa forma, autoriza e clama o aumento do controle punitivo do

Estado, assim como a diminuição da sua própria liberdade em função de uma preservação de sua

segurança.

A política, nacional ou internacional, constitui-se no constante movimento de definição

entre amigo e inimigo. Tal movimento será a justificativa para a aplicação de futuras retaliações.

O movimento de escolha do inimigo nacional mostra-se ao excluir a parcela frágil da sua própria

sociedade, e em caráter internacional, quando coloca como inimigo a nação que contraria seus

interesses.

A partir do momento que alguém é tratado como perigoso têm-se argumentos que

legitimem a retirada de direitos, segregação destes e a aplicação de qualquer medida necessária

para conter o mal que esse ser pode causar, em nome de um bem posto como superior: a

segurança social.

Conclusão

A auto-imunidade é constitutiva da soberania ao mesmo tempo que é o limiar do

biopoder. Ao incorporar a negação da vida para afirmar sua conservação, o soberano lida com

seu corpo múltiplo oscilando práticas que são balizadas do ciclo da vida e da morte. Na produção

do seu corpo vivo, há a estruturação de um corpo etéreo que trabalha a negatividade no seu

interior. Por um lado, “fazer morrer, deixar viver” é condição para negar a vida na morte a partir

de uma distinção interna de seu próprio corpo. Isto é, produzindo seus corpos estranhos como um

estranhamento de si mesmo. Por outro lado, “fazer viver, deixar morrer” consiste no reenvio do

estranhamento para adiar sua aniquilação total. A fim de sobreviver, gera práticas difusas que

reorganizam e suturam as escaras soberanas. Contudo, se até mesmo as escaras são soberanas, á

o risco iminente de autodestruição de si. Não há uma reconciliação simétrica e identitária na

relação de um com o outro, pois a auto-imunidade é o que impossibilita a ipseidade do soberano,

embora, ao mesmo tempo, seja ela a condição de sua possibilidade. A capacidade de decidir

sobre si mesmo na vida e na morte é o fundamento da própria soberania. A auto-imunidade é o

traço de um poder que encontra seu não-poder enquanto uma forma de transgressão de si mesmo.

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