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AS REFORMAS DO ENSINO NA CASA PIA DE LISBOA OU A PRIMEIRA IMAGEM DA ESCOLA
PRIMÁRIA MODERNA (ANOS DE 1860-1870) THE TEACHING REFORMS ON THE CASA PIA OF LISBON OR THE FIRST IMAGE OF THE MODERN
PRIMARY SCHOOL (YEARS OF 1860-1870)
Carlos Manique da Silva
Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação da Universidade de Lisboa
RESUMO: O artigo analisa a série de reformas do ensino introduzidas na Casa Pia de Lisboa a
partir do ano lectivo de 1866-1867. O modelo escolar que se consolida nesse contexto – falo
de um modelo que se elabora e difunde a nível mundial, se mantém praticamente imutável até
os dias de hoje e tipifica, portanto, o próprio conceito de escola – é, em larga medida, tributário
de uma concepção contemporânea de controlo e eficiência. Defendo que o modelo de escola
graduada vem a ser o que melhor corresponde ao projecto de integração social concebido
pelo provedor José Maria Eugénio de Almeida.
Palavras-chave: Escola graduada; Portugal; educação popular; ensino intuitivo.
ABSTRACT: This article analysis the series of the teaching reforms introduced on the Casa Pia
of Lisbon starting from the school year of 1866-1867. The school model which is taking its
roots in that context – the model which I’m speaking about draws up and spreads to a
worldwide level; remains unchangeable till our days and represents the school concept itself –
is largely responsible for a contemporary conception of efficiency and control. It’s about the
pedagogical integration of childhood, concerning to an integral education project. The
graduated school model is still defended as the one that better corresponds to the social
integration project conceived by the ombudsman José Maria Eugénio de Almeida.
Keywords: Graduated school; Portugal; popular education; intuitive teaching.
2
1. INTRODUÇÃO
«Quando entrei eram 9 ½, estavam as classes trabalhando em boa ordem; a 1.ª a fazer retas e
curvas nas ardósias e a 2.ª dividida em três grupos, dois dos quais estavam soletrando os
silabários, e o 3.º tinha lição direta pelo professor, o assunto era uma nora e as crianças iam
dizendo as partes de que ela se compõe e o professor escrevia no quadro preto as palavras
que elas iam dizendo, que eram depois soletradas e lidas por todas; é este um processo que
tenho recomendado ao professor por muitas vezes me parecer que tem o duplo fim e utilidade
de dar ideias claras às crianças e de ao mesmo tempo se irem amestrando na leitura»1.
As palavras são de José António Simões Raposo, provisor dos estudos da Casa Pia
de Lisboa, e reportam-se a um cenário educativo – o da sala de aula da 1.ª cadeira (ou
grau, se preferirmos) – marcado pela regularidade. Regularidade que só se obtinha,
segundo o mesmo Simões Raposo, «com uma inspeção contínua […], com a perfeita
unidade do ensino, com o gradual desenvolvimento dos programas aprovados», sem
esquecer a continuidade do corpo docente2.
O testemunho em causa é importante, na medida em que permite destacar dois
grandes pressupostos da escola graduada: a uniformização e a padronização3. Não se
estranha assim ser num contexto institucional muito peculiar, caracterizado por aliar
preocupações de ordem social e pedagógica, em que pela primeira vez em Portugal se
ensaia a escola graduada.
Mas essa afirmação, o leitor concordará por certo comigo, não pode ser aceite sem
outras considerações. Na verdade, o modelo escolar que se consolida na Casa Pia de
Lisboa nos anos de 1860 – e estou a falar, importa frisá-lo, de um modelo organizativo que
se elabora e difunde no plano mundial, se mantém praticamente imutável até aos dias de
hoje e tipifica, portanto, o próprio conceito de escola – é, em larga medida, tributário de uma
conceção contemporânea de controlo e de eficiência, para lembrar David Hamilton4.
De forma mais operacional, a emergência da escola graduada nesse espaço
institucional não se explica, fundamentalmente, no âmbito de um processo de expansão da
escolarização, isto é, enquanto resposta ao aumento do número de alunos – entre outros
1 Arquivo Histórico da Casa Pia de Lisboa (AHCPL): Inspeção Diária do Provisor, Diário Geral
das Aulas, 8/11/1866, s. p. 2 RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa, Lisboa,
Typographia de M. da Costa, 1869, p. 21. 3 SOUZA, Rosa Fátima de: Templos de civilização: a implantação da escola primária
graduada no Estado de S. Paulo (1890-1910), S. Paulo, UNESP, 1998. 4 HAMILTON, David: Towards a Theory of Schooling, London, The Falmer Press, 1989.
3
aspetos, a temporalidade do ensaio na Casa Pia denuncia-o desde logo5. Explica-se sim,
decisivamente, em torno daquilo que Ramos do Ó colocou de forma muito clara:
O desenvolvimento do aparato pedagógico, em espaços institucionais próprios, devidamente
isolados das […] influências deletérias do meio, esteve diretamente associado aos programas
de intensificação do treino moral das crianças e jovens marginais6.
Para mim, o que se afigura inequívoco, na referência concreta da Casa Pia de Lisboa
no decénio de 1860, é a existência de um nexo causal entre a racionalização da
organização escolar e o desígnio de integração social dos órfãos, na sua maioria oriundos
das classes populares.
Se avaliarmos bem, outra coisa não sugere o pensamento de José Maria Eugénio de
Almeida, designadamente quando, nos primeiros anos da sua provedoria, iniciada em
Outubro de 1859 a convite de Fontes Pereira de Melo, estabelece num horizonte pontuado
ainda por muitas incertezas o objetivo central da futura obra educativa da instituição. Vale a
pena acompanhar o seu raciocínio:
O que me parece destacar-se, como verdade apurada, do meio de todos os exames e dúvidas,
é que a educação literária de que convém tratar na Casa Pia é a primária; e que esta deve ser
tão extensa e perfeita quanto for possível. É esse o melhor meio de educar aqui mancebos
que tenham aptidão e préstimo para todas as carreiras laboriosas e modestas […] Se um ou
outro tiver de subir a uma instrução mais alta, a instrução primária desenvolvida e
aperfeiçoada, que tiver recebido aqui, fará que a outra lhe aproveite melhor7.
A minha tese é, pois, a de que o modelo de escola graduada, para além de dar
resposta a um anseio de modernidade, nitidamente alinhado pela experiência dos Estados
alemães, não tardaremos a percebê-lo, vem a ser o que melhor corresponde ao projeto de
integração social, se quisermos, de preparação para a vida (impossível esquecer aqui a
5 Para se ver, a experimentação da escola graduada em países como Brasil e a Espanha
inicia-se em cronologias bem mais tardias e no quadro dos sistemas nacionais de ensino, respetivamente nos anos de 1894 e 1898. Sobre o assunto, consultar, na mesma ordem, os estudos de SOUZA, Rosa Fátima: Templos de civilização…, op. cit. e de VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica. La Escuela Graduada Pública em España (1898-1936), Madrid, Akal, 1990 e «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada», in OSSENBACH, Gabriela (coord.): Psicología y pedagogia en la primera mitad del siglo XX, Madrid, UNED, 2003, pp. 73-104. 6 Ó, Jorge Ramos do: O governo de si mesmo. Modernidade pedagógica e encenações
disciplinares do aluno liceal (último quartel do século XIX – meados do século XX), Lisboa, Educa, 2003, pp. 104-105. 7 ALMEIDA, José Maria Eugénio de: Relatorio da Administração da Real Casa Pia de Lisboa
[de 20 de Out. de 1859 a 31 de Out. de 1860], Lisboa, Imprensa Nacional, 1861, p. 75, itálico meu.
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prática do aprendizado), concebido pelo provedor José Maria Eugénio de Almeida, e muito
justamente pelo facto das características formais desse modelo (classificação dos alunos
em classes o mais homogéneas possível, promoção rígida ao grau superior através de
exame, graduação dos programas, rigoroso controlo do tempo, existência da figura do
director…) garantirem políticas de controlo e de eficiência escolar.
Importa, no entanto, fazer notar que a primeira imagem da escola moderna – um
professor, uma sala, uma classe, convergência que só acontece de facto a partir das
décadas de 1860/1870 – é marcada por um antagonismo:
O ensino em classe, unidade por excelência da escola graduada, baseado no princípio de
“ensinar a muitos como se fossem um só”, resultou em processos de homogeneização num
momento em que a pedagogia científica [emergente ainda nos citados decénios] propagava a
necessária atenção às diferenças individuais8.
Assim, na sua origem, o modelo de escola graduada encontra-se intimamente ligado a
uma conceção unidimensional e massificada da criança, e percebemo-lo em larga medida,
não é demais enfatizá-lo, em função de um argumento de ordem racional: «quanto mais
iguais estiverem os alunos no seu grau de instrução, mais fecundo se torna o ensino que se
lhes dá»; quem o assevera é Elias Garcia, no quadro de um debate travado no município
de Lisboa sobre a reorganização das escolas graduadas9.
Mas, para lá das vantagens decorrentes do princípio económico da divisão do
trabalho, na sua conexão aos discursos da racionalidade/eficiência escolar, a proposta de
renovação pedagógica que encerra a escola graduada, e situo-me já num segundo
argumento, desta feita de natureza sociopedagógica, traz consigo importantes mudanças
na organização do ensino primário. Como elucida Viñao:
Se decía que solo la escuela graduada permitía una educación integral, completa e moderna,
además de la aplicación de los principios y técnicas de la pedagogía científica, entonces
emergente, la organización concéntrica del currículo y su ampliación. Este nuevo modelo
organizativo, se añadía, contribuiría a extender la enseñanza obligatoria (como efectivamente
sucedió), haciendo que los alumnos de más edad, al disponer de aulas, programas e maestros
específicos, permanecieran en la escuela durante más tiempo, en especial si se introducían
materias y tareas de índole profesional. Además, solo la escuela graduada, se argumentaba,
8 SOUZA, Rosa Fátima de: Templos de civilização…, op. cit., p. 281.
9 Atas das Sessões da Camara Municipal de Lisboa, sessão de 12/3/1886, p. 164.
5
podía asegurar la acción directa, sin intermediarios, del maestro sobre el niño, sin el recurso a
los monitores10
.
Creio que o leitor ficará com uma outra perceção da mais-valia contida nesse
fundamento, se atender à próxima intervenção de Simões Raposo; tradutora, ao mesmo
tempo, de um facto da maior relevância, a drástica redução no início dos anos de 1860 do
número de alunos da Casa Pia, em simultâneo de resto com o fim das aulas públicas11.
Tudo sintomático de uma ideia – a da formação integral dos alunos:
Se o que pode satisfazer racionalmente a 20 o distribuirdes a 30 ou 50, haverá uma grande
deficiência na educação que ministrardes, e, desejando atender ao maior número, não
colhereis senão um resultado imperfeitíssimo e quase nulo!!
Foi isto o que por bastante tempo se passou com os órfãos da Real Casa Pia de Lisboa,
quando a cargo de algumas das antigas administrações; as quais admitindo o primeiro
princípio, isto é, que convinha educar o maior número, descuraram até certo ponto o seguinte:
isto é, que devia ser pura e sem joio a educação, para que pudesse preencher o seu fim
debaixo do aspeto – físico, intelectual, moral e social – sem o que não pode haver perfeita e
completa educação12
.
Ora, esta posição é essencial para compreender a dinâmica educativa da instituição
no período imediatamente posterior a 186613, refletindo, aliás, um profundo sentido da
«escola» enquanto locus de experimentação – Simões Raposo chega mesmo a falar em
«sociedade democrática popular em miniatura»14, numa aceção que elucida bem a
especificidade do universo estudantil casapiano.
Em síntese, o que me interessa, admitindo a pertinência de um conceito caro a
Marcelo Caruso, o de regulação – e o autor reporta-se à integração pedagógica do
processo de crescimento da infância, tornando assim necessário, como diz, «darle
dirección a través de diversas formas de instrucción»15 –, é acompanhar as modalidades de
organização pedagógica e de conceção do trabalho escolar que marcaram no devir,
10
VIÑAO, Antonio: «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit., pp. 78-79. 11
SILVA, César da: Noticia da Real Casa Pia de Lisboa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892. 12
RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 7, itálico meu. 13
A data assinala o ingresso de Simões Raposo na Casa Pia de Lisboa, protagonista a partir de então de uma relevante ação pedagógica. 14
RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 19. 15
CARUSO, Marcelo: La biopolítica en las aulas. Prácticas de conducción en las escuelas elementales del Reino de Baviera, Alemania (1869-1919). Buenos Aires, Prometeo Libros, 2005, p. 59.
6
creditando para o efeito a ideia de especialização, algo que tem obviamente a ver com o
desenvolvimento científico da pedagogia e com a transação do saber pedagógico no seio
de uma comunidade de «especialistas».
2. OS PRIMEIROS PASSOS DA REFORMA DOS ESTUDOS DE EUGÉNIO DE ALMEIDA…
ALGUMAS INCERTEZAS E INDEFINIÇÕES (1859-1866)
A experimentação da escola graduada começa a desenhar-se a partir de 1859, com a
chegada à provedoria de José Maria Eugénio de Almeida. Não por acaso, coincide no
tempo com o momento final do ensino mútuo, depois de um longo e ininterrupto ensaio de
vinte e cinco anos. Na verdade, é na sequência da extinção da aula de ensino mútuo que o
governo manifesta a intenção de a administração da Casa Pia estabelecer várias escolas
de ensino primário divididas em graus16. Devo afirmar que o «plano de ensino» elaborado
pela instituição, consagrado na citada Portaria de 10/1/1860, apesar de ser provisório, não
divergiu das orientações superiormente emanadas. O traço estruturante era de facto a
divisão do ensino primário (elementar e superior) em graus, não menos de três, nem mais
de seis, impondo-se ainda assinalar uma outra medida plena de significado. Esta: ser
condição necessária para o acesso ao magistério possuir as habilitações exigidas no
ensino oficial.
E se à entrada da década de 1860 parecem estar definidas as grandes linhas
ordenadoras do projeto educativo casapiano, certo é que até 1866, ano em que Simões
Raposo assume o lugar de provisor dos estudos, não se registam progressos significativos.
Julgo no entanto útil descrever os principais passos dessa evolução. De acordo com o
Relatório de Eugénio de Almeida17, durante o primeiro ano do seu mandato foram criadas
três «aulas» de ensino primário, não obstante apenas duas terem sido providas. À data, lê-
se nesse mesmo documento, a questão essencial para o provedor era elevar o número de
«aulas» a cinco ou seis, e facultar assim aos alunos a instrução primária superior.
Se nos ativermos ao circunstanciado e insuspeito testemunho do inspetor Mariano
Ghira18, a situação seria em tudo semelhante no ano letivo de 1863-1864. Porém, é
precisamente a partir de 1863 que se intensificam as tentativas para alterar esse estado de
coisas. Um acontecimento da maior relevância pedagógica foi por certo a viagem de estudo
que Eugénio de Almeida efetuou à Alemanha, segundo creio nos primeiros meses de 1863.
Num périplo muito orientado, tem de dizer-se, para o conhecimento do ensino da ginástica
16
Portarias da Administração da Real Casa Pia…, 1862, Portaria n.º 12, de 10/1/1860. 17
ALMEIDA, José Maria Eugénio de: Relatorio da Administração da Real Casa Pia de Lisboa [de 20 de Out. de 1859 a 31 de Out. de 1860], Lisboa, Imprensa Nacional, 1861. 18
GHIRA, Mariano: Relatorio sobre a visita de inspecção ás escolas do districto de Lisboa feita no anno lectivo de 1863-1864, Lisboa, Typographia Portugueza, 1865.
7
(uma das linhas de força do seu projeto educativo), mostrar-se-ia então de sobremaneira
impressionado com a Escola Normal de Dresden19.
O vínculo com a Alemanha manter-se-á nos anos seguintes, conforme prova uma
interessante carta dirigida por Eugénio de Almeida ao diretor da Escola de Schepfenthal,
em 14 de Março de 1866:
Je désire prêter a mon pays un service que je crois de la plus haute importance, en cherchant
à établir et faire connaître pratiquement les bonnes méthodes d’enseignement suivies depuis
longtemps en Allemagne et ignorées encore au Portugal.
Je viens donc Monsieur vous demander la grâce de faire inscrire dans la liste de ceux qui
attendent une place dans votre école, six (6) élèves de Real Casa Pia de Lisboa, pour y
recevoir une éducation élémentaire complète, et suivre en suite le cours d’une des plus
célèbres écoles normales allemandes, afin qu’ils puissent plus tard retourner au Portugal et
professer ici en suivant les méthodes qu’ils auront appris en Allemagne20
.
Em si, a missiva espelha a preocupação de Eugénio de Almeida com a preparação
pedagógica do professorado, linha de pensamento insistentemente perseguida desde o
início do seu mandato (recorde o leitor os termos da Portaria de 10/1/1860). Assim se
compreende que, em Agosto de 1866, num gesto de grande visão pedagógica, importa
sublinhá-lo, o provedor da Casa Pia de Lisboa tome a iniciativa que maior influência terá ao
nível da organização dos estudos nos anos subsequentes; ou seja, o recrutamento em
exclusivo de professores habilitados com o curso normal, incidindo a seleção no universo
de antigos alunos pensionistas da Escola de Marvila.
É de facto impensável conceber o processo de modernização pedagógica que tem
lugar na Casa Pia, a partir do ano letivo de 1866-1867, dissociado da constituição de um
corpo homogéneo de docentes, nem tão-pouco fora da liderança de uma personalidade
como Simões Raposo.
19
Esta informação, ao que julgo inédita, foi extraída de um ofício dirigido por Eugénio de Almeida ao diretor-geral de instrução pública, em 13 de Abril de 1863. Nele se menciona uma visita recente à Alemanha (AHCPL, Real Casa Pia de Lisboa. Livro de Registo de Ofícios para os Ministérios, n.º 1, 1859-1876). 20
AHCPL, Real Casa Pia de Lisboa. Livro de Registo dos Ofícios para Particulares, n.º 1, 1859-1891, p. 20.
8
3. O MODELO DE ORGANIZAÇÃO ESCOLAR ESTABELECIDO NO ANO LETIVO DE 1866/1867
A citação é longa, mas situemos agora, na primeira pessoa, a chegada de Simões
Raposo à Casa Pia de Lisboa:
Quando em 1866 entrei para a Casa Pia, na qualidade de Provisor dos Estudos, devo
confessá-lo, encontrei este estabelecimento perfeitamente organizado no que respeita à
educação física dos alunos tanto alimentar como higiénica; o grande espírito de José Maria
Eugénio de Almeida havia planeado uma reforma salutar, e o seu génio reformador havia feito
introduzir na Casa Pia todos os melhoramentos que a ciência prescrevia […]
Não sucedia porém o mesmo à educação intelectual e moral dos órfãos da Casa Pia.
O plano entrevisto, os desejos manifestados e as tentativas empreendidas por José Maria
Eugénio de Almeida, durante os 6 anos decorridos da sua administração notabilíssima, não
haviam produzido resultados satisfatórios.
No campo da pedagogia aplicada à educação intelectual, moral e disciplinar, havia tudo a
fazer.
As aulas e os estudos achavam-se numa desordem inconcebível. Não havia programas; não
havia métodos regulares de ensino; não havia exames de classificação; não havia estatística
de aproveitamento; não havia escrituração das aulas; não havia instruções escolares; não
havia estímulo por parte dos alunos; não havia solidariedade entre os professores!
Cada uma das cadeiras, em que se achavam distribuídos os órfãos da Casa Pia, representava
uma nação à parte, sem ligação ordenada, sem solidariedade preestabelecida pelo programa
geral dos estudos, sem relação ou dependência gradual e progressiva com as outras cadeiras,
inferior ou superiormente colocadas21
.
Nas suas linhas gerais, posso afirmar ser o testemunho marcado pelo rigor histórico,
sem que isso me exima de assinalar um certo olhar niilista para o passado, frequente de
resto quando os protagonistas de processos reformadores refletem, a posteriori, sobre os
mesmos. Mas não é de todo em todo aceitável por esquecer, neste caso concreto, o
contributo das experiências do ensino mútuo e do método repentino de Castilho22 para a
graduação dos estudos (há obviamente uma via de ensaio pedagógico na instituição que
tem de ser considerada).
21
O Ex-Director da Casa Pia de Lisboa Francisco Antonio da Silva Neves e o Actual Director, Lisboa, Typographia da Bibliotheca Municipal, 1881, pp. 53-55. 22
O curso experimental do método repentino, dirigido por Luís Filipe Leite, iniciou-se na Casa Pia em 8 de Janeiro de 1853, terminando no ano de 1857 (AHCPL, Divisão dos alunos. Aula de Leitura Repentina. Matriculas, 1853-1857; LEITE, Luís Filipe: Do Ensino Normal em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892). Nesse período, matricularam-se cerca de 120 alunos, quase todos provenientes da aula de ensino mútuo.
9
3.1. A NOVA FIGURA DO PROVISOR DOS ESTUDOS
Julgo importante deter-me em primeiro lugar na figura do provisor dos estudos23,
equivalente no fundo à de um diretor, e muito justamente por ser intrínseca ao novo modelo
organizativo. É assim útil compreendê-la à luz do próprio conceito de escola graduada,
designadamente na aceção que Antonio Viñao toma para si, ou seja, a de «modalidad que
sólo se produce cuando la graduación implica la existencia de varias aulas de clase o
grados con varios maestros, un director, clases lo más homogéneas posible y un currículo
asimismo graduado por cursos»24.
Em boa verdade, como refere ainda Viñao, a entrada no campo educativo da figura
institucional do diretor traz consigo mudanças significativas, notoriamente de índole mental
e organizacional:
La escuela graduada, al introducir en la enseñanza primaria la nueva figura del director, antes
inexistente, trastocaba […] las relaciones de poder en el seno del sistema educativo y de la
organización escolar. Éste era el núcleo fundamental del problema y el que más debates
suscitaría: la figura del director escolar. Una figura que confería unidad de acción y sentido a la
graduada, que se identificaba con ella, que nacía gracias a ella y que hacía de ella, como se
decía, una comunidad orgánica y no una reunión de [escuelas] unitarias bajo un mismo
techo25
.
Ora, esta última ideia, a de o diretor ser o elemento capaz de conferir unidade
orgânica à escola graduada, que nos remete para questões tão relevantes como as do
relacionamento profissional e pessoal entre professores ou mesmo da distribuição do
poder, dada a existência de um superior hierárquico, assume contornos invulgares na Casa
Pia, particularmente durante a segunda metade dos anos de 1860. Pensemos apenas nas
relações pessoais que envolvem o provisor dos estudos – em quem está de facto
centralizado o poder, atuando de resto como administrador-delegado da provedoria – e os
demais professores chegados à instituição, todos seus colegas do curso normal de Marvila.
Interessa, pois, compreender o reposicionamento de Simões Raposo perante os
antigos condiscípulos, no fundo apreciar a representação do cargo de provisor dos estudos,
sendo desde logo legítimo considerar que o modelo de escola graduada – em contraponto
23
Figura institucional criada em 4 de Janeiro de 1866 (AHCPL, Real Casa Pia de Lisboa Ordens n.º 1, 1863-1871, ordem n.º 42). Simões Raposo viria a ser nomeado para exercer o lugar de provisor dos estudos em 1 de Setembro de 1866 (AHCPL, Registo das ordens da administração da Casa Pia, II, 1865-1868, ordem n.º 814). 24
VIÑAO, Antonio: «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit., p. 75. 25
Idem, Ibidem, p. 83.
10
à escola unitária, na qual, excetuando eventuais visitas de inspeção, não existe qualquer
controlo direto sobre o professor – restringe a autonomia dos docentes.
Documento I – Representação do cargo de provisor dos
estudos da Casa Pia de Lisboa (1866).
. É o superior imediato dos professores. . Indica, mediante exame, a cadeira que os alunos irão frequentar aquando do ingresso no instituto. . Aprova a passagem dos alunos de uma cadeira para outra. . Autoriza a alteração de programas e de horários. . Condiciona a divisão das aulas em mais de três classes (excetuando a primeira cadeira).
Fonte: RAPOSO (1869).
É todavia possível apreender um pouco melhor as funções do provisor dos estudos –
na sua essência, assim o deixa perceber o Documento I, de natureza pedagógica – a partir
de uma peça discursiva chave na nova organização, se bem que a preceda. Refiro-me ao
diário do professor, também designado na literatura pedagógica por diário da classe ou da
aula. Mais não era, e sigo a par e passo o Dicionário Universal de Educação e Ensino, do
que um «mapa destinado a registar, dia a dia, o resumo das matérias ensinadas às
diversas divisões da classe», no pressuposto claro de que nenhuma lição pode ser «bem
ensinada se não for preparada com todo o cuidado»26.
A próxima passagem corresponde a uma observação exarada pelo provisor dos
estudos no diário de um professor – diárias, convém notar, eram também as visitas de
inspeção às salas de aula –, e ajuda a precisar a sua imagem funcional:
O professor teria andado melhor se, em lugar de explicar aos alunos as hipóteses sobre a sua
natureza e transmissão, tivesse feito ver aos alunos os efeitos do calor, a sua influência sobre
a natureza animal e sobre a vegetação das plantas, aplicando tudo isto a factos conhecidos
das mesmas crianças e finalmente a utilidade do calor – o como se torna indispensável […]
convido o Sr. Professor a que o faça para outra vez27
.
26
CAMPAGNE, E. M.: Diccionario Universal de Educação e Ensino, Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1886, vol. I, p. 686, entrada Diário da classe. 27
AHCPL, Diário da 6.ª cadeira, professor António Sérvulo da Mata, aula de 6/11/1866, documento s. p.
11
No domínio do exercício da autoridade, pode afirmar-se que o ascendente do provisor
dos estudos decorre em larga medida da sua competência a respeito de questões
pedagógicas. É essencial notar aqui que o provisor, em 1866, não detém a prerrogativa de
advertir os docentes, fazendo por isso sentido falar, e as palavras supracitadas elucidam-no
de alguma maneira, já o entenderemos melhor, em função integradora da direção. De resto,
este aspeto pode ser ilustrado a partir de um debate travado na vizinha Espanha nos
primeiros anos do século XX, opondo então duas conceções distintas de direção escolar
(uma «débil», outra «forte»), respetivamente traduzidas por Viñao em função integradora e
função policial28.
Com o tempo as competências do provisor dos estudos da Casa Pia são em muito
ampliadas, sendo certo que nesse devir, e situo-me agora no ano de 1879, pela simples
razão de ter sido então aprovado um Regulamento para o provisor das aulas, se torna
tangível a dimensão administrativa do exercício desse cargo. Para já, o que se me oferece
dizer, do ponto de vista pedagógico, é que tarefas como observar diariamente as salas de
aula, classificar os alunos num momento inicial e promovê-los a cadeiras superiores
durante o percurso escolar, através de exame, claro está, elaborar horários e programas…
se mantêm na esfera do provisor em 187929. No entanto, a partir dessa data e, segundo
estou em crer, até 1889, altura em que o lugar é extinto, precisamente pela criação de um
conselho escolar, o provisor passa a ter a prerrogativa de advertir os professores
(registando-se assim um certo afastamento da função integradora da direção). O
Documento II dá-nos uma perspetiva abrangente das mudanças introduzidas na provedoria
de Carlos Maria Eugénio de Almeida30.
28
VIÑAO, Antonio: «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit. 29
Confirmadas, de resto, as ditas tarefas no Regulamento para o serviço interno das aulas de 19/5/1881 (cf. Portarias e Respectivos Regulamentos da Administração da Real Casa Pia de Lisboa, 1881). 30
A presente investigação centra-se fundamentalmente em duas provedorias, impondo-se por isso balizá-las no tempo: José Maria Eugénio de Almeida, Outubro de 1859 a Abril de 1872; Carlos Maria Eugénio de Almeida, Janeiro de 1873 a Abril de 1887 (cf. 220 Anos Casa Pia de Lisboa. Instruir, Educar e Amparar, Lisboa, Centro Cultural Casapiano, 2000).
12
Documento II – Representação do cargo de provisor das aulas da Casa
Pia de Lisboa (1879).
. Assiste diariamente às aulas. . Zela para que os programas sejam rigorosamente observados. . Adverte particularmente os professores em caso de incumprimento de «deveres». . Repreende publicamente os alunos. . Avalia o progresso dos alunos. . Requisita por escrito os objetos necessários para o ensino. . Obsta a que os professores, por livre vontade, apliquem castigos corporais aos alunos. . Presta aos professores orientações «tendentes ao progresso intelectual e moral dos alunos». . Informa a administração dos alunos que «pelo seu adiantamento e bom procedimento» mereçam prémios. . Preside aos exames realizados na Casa Pia e acompanha os alunos, em idênticas situações, nos estabelecimentos do Estado. . Remete à administração, no final de cada trimestre, uma relação nominal dos alunos matriculados em cada cadeira, assim como as notas das lições diárias.
Fonte: Regulamento para o provisor das aulas, 15/2/1879, in Portarias
da Administração da Real Casa Pia de Lisboa, 1883.
Encontramo-nos, é evidente, num momento muito inicial da configuração da direcção
escolar, no qual estão ainda ausentes questões como a forma de eleger o director, o
exercício cumulativo (ou não) da docência por parte dessa figura, a partilha de tarefas com
o conselho escolar….
3.2. «INSTRUÇÕES ESCOLARES», ORGANIZAÇÃO DO TEMPO, DIVISÃO DO TRABALHO
DOS PROFESSORES, PRÁTICAS LETIVAS E ENSINO INTUITIVO
A partir de Setembro de 1866, o estabelecimento da nova ordenação funda-se em
larga medida num documento elaborado por Simões Raposo e especificamente dirigido a
docentes e alunos – as «Instruções Escolares». Foi aliás com base nesse normativo, na
parte respeitante aos professores, que ilustrei, no Documento I, a representação do cargo
de provisor dos estudos. Cumpre agora olhar com outro cuidado essa peça discursiva,
porventura a mais estruturante da intervenção reformadora de Simões Raposo.
Para além dos aspetos já nossos conhecidos, destaco em primeiro lugar a
preocupação com a eficácia das aulas, manifesta na seguinte observância:
13
Deverão [os professores] manter a ordem nas suas aulas, fazendo com que os alunos entrem,
estejam, e saiam com sossego, a fim de obter deles a atenção precisa para que as lições
sejam compreendidas e aproveitadas31
.
Ora, a ideia de as lições serem compreendidas está desde logo vinculada à finalidade
maior de o ensino ser «real e não aparatoso», numa instituição em que, como se enfatiza
no mesmo texto, a maior parte dos alunos se direcionava às artes e ofícios. «Mais praticar
que definir – mais compreender que decorar» é a expressão adotada por Simões Raposo32
para elucidar tal pensamento, colocando de resto a intuição e uma das aplicações do
método intuitivo – as «lições de coisas» – na base do ensino. Mas esse é um assunto a
analisar com algum pormenor mais adiante.
Entretanto, e na linha ainda da citada observância, tem agora de dizer-se que se
encontrava vedada aos professores a possibilidade de utilizarem o tempo destinado à
prática letiva em «escrituração das aulas»33, admitindo-se excecionalmente um período de
cinco a dez minutos para anotações. Ambos compreensíveis, o princípio e a exceção, se
pensarmos na quantidade de informação que os docentes tinham de coligir para
preencherem os mapas mensalmente exigidos pelo provisor dos estudos. O documento
seguinte situa por certo essa ação.
Documento III – Mapa mensal das lições (boas – sofríveis – más), faltas e castigos de cada aluno.
Fonte: RAPOSO (1869).
31
RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 28. 32
Idem, Ibidem, pp. 28-29. 33
Idem, Ibidem, p. 28.
NUMEROS
LIÇÕES
CASTIGOS
FALTAS
Total
liquido
de
Bons
Pontos
OBSERVAÇÕES
de or-
dem
de matricula
Boas
Total
Soffríveis
Total
Más
Total
Moraes
Corpo- raes
Total
Por doen-
ça
Por gym-
nastica
Total
TOTAES GERAES
14
Um outro comentário que quero aqui deixar acerca das «Instruções Escolares» de
1866 prende-se com o papel do exame na nova organização. A centralidade que o mesmo
assume decorre do facto de permitir constituir agrupamentos de alunos em função do nível
de conhecimentos – a essência da escola graduada. Afirma-se categoricamente no texto
que «nenhum aluno poderá passar a frequentar outra cadeira, sem que nos exames tenha
dado provas de que satisfez ao programa da cadeira que frequentava»34.
Importa, no entanto, explicitar o tipo e a periodicidade dos exames: trimestrais de
classificação, para avaliar os progressos de cada aluno e decidir da passagem à cadeira
imediata; final, já se deixa ver, no término do ano letivo, com o duplo objetivo de atribuir
prémio/louvor e de possibilitar, da mesma forma, a passagem à próxima cadeira.
Devo ainda reportar-me aos exames de classificação realizados aquando do ingresso
dos órfãos no instituto (o mesmo é dizer de admissão). Em bom rigor histórico iniciam-se no
ano de 1862, antes portanto da chegada de Simões Raposo à instituição, mantendo
sensivelmente idêntico figurino a julgar pela vigência do formulário adotado nesse início da
década de 1860, século XX adentro35.
Convém agora referir que a classificação dos alunos de três em três meses encerra o
pressuposto de controlar continuamente a aprendizagem e evitar a repetência. É, aliás,
nessa perspetiva, da resolução de um problema criado pela não acomodação das práticas
educativas aos casos particulares, que se deve entender a racionalidade do exame regular.
Explico: a repetência, a acontecer de facto, não implica que o aluno permaneça
necessariamente muito tempo na mesma cadeira ou grau – em boa verdade, trimestre a
trimestre abre-se uma nova oportunidade de progressão. Mas significa isso também admitir,
já se vê, a possibilidade de percursos escolares extremamente céleres, algo que em meu
entender nos aproxima (e regressarei a esta ideia) do próprio fundamento de os
professores se especializarem por graus com vista à eficácia educativa.
Documento IV – Datas do exame de admissão e dos exames de passagem do aluno José Marques, admitido na Casa Pia de Lisboa em 19 de Fevereiro de 1872.
Fonte: AHCPL, Registo dos Alunos, 486 a 633, n.º 4, 1869-1872.
34
Idem, Ibidem, p. 29. 35
Cf., no AHCPL, a série admissões de alunos.
CADEIRA ANO MÊS DIA
1.ª cadeira
2.ª cadeira
3.ª cadeira 1872 Fevereiro 19
4.ª cadeira 1872 Abril 29
5.ª cadeira 1872 Agosto 1
6.ª cadeira 1873 Fevereiro 6
15
Começo agora a centrar-me na questão do tempo escolar, realçando desde logo uma
mudança intrínseca à nova organização: a substituição do dia pela semana como unidade
temporal para a distribuição do trabalho escolar36. Trata-se de um passo decisivo, e no
essencial por permitir o princípio da graduação, o mesmo é dizer, a ordem cíclico-
concêntrica das matérias (disciplinas), ministradas pois ao longo dos vários graus com
aprofundamentos sucessivos. Entre outros aspetos, o próximo documento elucida essa
articulação.
Documento V – Número de lições em cada disciplina e total semanal por cadeira.
Fonte: RAPOSO (1869).
Nota: As «lições educativas» correspondem às «lições de coisas».
Ora, a ideia de o trabalho escolar ser regulado nos seus máximos semanais traz
também consigo a pontual definição de cada um dos dias letivos (logo, a sua
diferenciação). No fundo, o que se sente é a necessidade de elaborar horários diários,
tarefa especialmente visada pelo provisor dos estudos.
36
VIÑAO, Antonio: «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit.
Cadei-ras
Religi-ão
Leitura Grammatica
Cally- gra- phia
Arithmetica e systema metrico
Historia e geographia
Desenho Principios de
Gym- nas- tica
Total
por
sema-
na So
letr
ad
a
Corr
en
te e
exp
lica
da
Art
ística
e r
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Alg
eb
ra
His
tori
a n
atu
ral
Me
ca
nic
a
Eco
no
mia
e e
scri
ptu
raçã
o
Li- ções
edu- cati- vas
1.ª 2 5 1 0 3 0 0 0 2 3 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 5 25
2.ª 2 2 4 0 2 0 0 0 4 2 3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 4 25
3.ª 2 0 4 0 2 2 2 1 4 2 4 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 4 30
4.ª 1 0 4 1 1 2 2 2 3 1 3 1 2 0 2 0 0 0 0 0 0 2 3 30
5.ª 1 0 3 2 0 2 2 2 3 1 3 2 2 0 3 0 0 0 0 0 0 2 2 30
6.ª 1 0 1 2 0 1 1 2 2 0 2 2 0 1 0 4 2 2 1 1 2 1 2 30
Totaes em cada disciplina
9 7 17 5 8 7 7 7 18 9 17 6 4 1 5 4 2 2 1 1 2 11 20 170
16
Documento VI – Horário da primeira cadeira (quinta-feira).
Horas
Classes
Disciplinas
Regência
8 ½ - 9 3/4
1.ª 2.ª 3.ª
- Leitura em grupos nas tabelas pelos três processos do Método Por- tuguês [de Castilho]. Valores das letras, correção da pronúncia. - Cálculo mental e escrito formação de números na ordem ascendente e descendente progressivamente. - Leitura rítmica e corrente. Explicações – substâncias materiais etc. Intuição direta (vista-ouvido-tato).
Professor e Monitores
10-11
1.ª 2.ª 3.ª
- Escrita nos papéis-vidro e nas ardósias das letras e palavras já ex- plicadas. - Leitura por sílabas e palavras. Explicações, coisas, partes, qualida- des quanto à forma e à cor. - Somar e diminuir praticamente. Conhecimento intuitivo do metro, li- tro, quilograma, decímetro, decilitro, etc.
”
1 ½ - 3
1.ª 2.ª 3.ª
- Leitura em grupos nas tabelas pelos três processos do Método Por- tuguês. Valores das letras, correção da pronúncia. - Cópia nas ardósias e palavras escritas em exemplares ou no quadro preto e já explicadas. - Leitura rítmica e corrente. Tons e pausas; (educação dos órgãos do ouvido e da voz).
”
3 ¼-4
1.ª 2.ª 3.ª
- Cálculo intuitivo no contador etc. e mental na ordem ascendente e descendente a 3 e 3, a 5 e 5, a 6 e 6 etc., etc. - Leitura em grupos nas tabelas por sílabas e palavras de uma lição já explicada pelo professor. - Escrita nos cadernos, calcar exemplares, ou imitar palavras escritas no quadro preto.
”
Fonte: RAPOSO (1869).
Interessa notar que o ensino diário – ministrado em dois períodos distintos, apesar da
variação do número de horas de cada um consoante as cadeiras (2 h e 15 m, na 1.ª; 2 h e
45 m, da 2.ª à 5.ª; 1 h e 45 m, na 6.ª) – se inscreve num quotidiano muito longo e
ritualizado, o do internato, com início pelas cinco e meia da manhã. Este aspeto é
importante para a inteligibilidade do Documento VI, no sentido em que acentua uma
conceção de tempo escolar centrada na maximização do rendimento dos alunos; indicia-o a
elevada carga horária semanal, os intervalos reduzidos entre lições (uns estritos quinze
minutos), o próprio facto destas poderem prolongar-se por uma hora e meia…, não sendo
sensível no discurso pedagógico, e impõe-se ainda considerar a ausência de férias (para
alunos e professores), o tópico da fadiga escolar.
Poderia enfatizar esta ideia lembrando, por exemplo, a impossibilidade de os
professores utilizarem o tempo destinado à prática letiva em «escrituração das aulas», à
exceção, como vimos, de um período máximo de dez minutos para anotações relacionadas
com o comportamento, faltas e aprendizagem dos alunos (cf. Documento III), ao que
acresce a ausência de «rituais litúrgicos», isto é, as orações de entrada e de saída da sala
de aula, prática vulgarmente seguida nas escolas elementares desse período histórico.
17
Como fez notar Marcelo Caruso, o que se instala é um «principio positivo de
utilización del tiempo en función de una mayor productividad y utilidad»37. E é nesse sentido
que a «construção do tempo escolar está dependente da correspondente conquista de um
espaço próprio para as atividades escolares»38.
Julgo chegado o momento de abordar o tópico da divisão do trabalho dos docentes,
sendo que a este respeito indiciei atrás uma relação entre a especialização dos professores
por graus e a eficácia educativa, cabendo agora explorá-la na sua complexidade. Antes
porém de o fazer no que respeita à Casa Pia de Lisboa, creio muito importante dar ao leitor
uma imagem abrangente das alternativas e possibilidades em jogo relativamente a esta
matéria, passando o problema, com o advento da escola graduada no século XIX, por saber
como se deveriam distribuir os vários professores pelas classes.
No caso espanhol, por exemplo, um investigador como Antonio Viñao39 identifica no
debate pedagógico dos primeiros anos de Novecentos uma divergência em redor de duas
grandes opções: a rotação de classes, por um lado, em que o professor acompanha os
mesmos alunos ao longo de todas as secções ou graus da escola; por outro, a
especialização em uma secção ou grau. Viñao40 refere ainda uma terceira hipótese, muito
raramente defendida, no entanto: a especialização por matéria ou área de conhecimentos.
É interessante perceber os argumentos expendidos pelos partidários de cada uma
das principais fações. Para os defensores da rotação, afigurava-se decisivo que a ação do
professor sobre o aluno se exercesse de forma contínua durante o percurso escolar, o
mesmo é dizer, que existisse «unidade diretiva», garantindo assim maior «mutualidad de
afectos, relaciones, conocimientos» entre eles41. Em causa estava a realização perfeita da
«función educativa de la Escuela»42.
A essa conceção, nota Vinão, «etérea, ambiental, espiritual, emocional o afectiva»43,
opunha-se uma outra mais racional e científica, fundada na especialização. E, desta parte,
as teses adiantadas valorizavam a ideia de confronto e variedade emergente do contacto
dos alunos com diversos professores, logo diferentes maneiras de ensinar…, não obstante
o fundamento maior da continuidade do professor à frente de um grau ser, em última
instância, o da própria escola graduada: a eficácia educativa. A grande questão aqui,
37
CARUSO, Marcelo: La biopolítica en las aulas.., op. cit., p. 38. 38
CORREIA, António Carlos: Os sentidos dos ponteiros do relógio. Representações do tempo na construção simbólica da organização escolar portuguesa (1772-1950), Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova (tese de mestrado), 1996, p. 55. 39
VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica…, op. cit. e «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit. 40
Idem, Ibidem. 41
Citado em VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica..., op. cit., p. 75. 42
Idem, Ibidem, p. 75. 43
VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica..., op. cit., p. 75.
18
adivinha-se de alguma maneira, é o domínio (das matérias) que o docente adquire por se
especializar num determinado grau.
Se deslocarmos agora a nossa atenção para o cenário educativo da Casa Pia de
Lisboa, percebemos que a opção inicial de especializar os professores por graus se afirma
sem qualquer contestação (não se vislumbra mesmo alternativa no discurso pedagógico)
até ao início da década de 1890, momento em que se questiona já a eficácia do modelo
organizativo definido nos anos de 186044.
Persuado-me que a especialização dos professores está diretamente associada ao
pressuposto de obter maior eficiência no ensino. Trata-se, no caso da Casa Pia de Lisboa,
de uma ideia bem interpretada por Simões Raposo. De facto, quando em nome da
racionalidade do ensino assinala a importância de um corpo docente estável, a
«continuação dos mesmos professores»45, não está mais, embora subliminarmente, do que
a dar crédito ao princípio da especialização. Tudo se orienta, aliás, e a ação pedagógica do
provisor dos estudos demonstra-o claramente (recordem-se as «Instruções Escolares»,
confira ainda o leitor o Documento IV), para que, em cada grau ou cadeira, os alunos
permaneçam apenas o tempo indispensável. E é neste particular que se assume como
decisiva a especialização, mormente pelo domínio das matérias que o professor acaba por
ter. A este respeito, o melhor exemplo que se pode dar – Simões Raposo refere-o de resto
– é o do professor Domingos Coelho Ribeiro, que durante mais de uma década lecionou na
Casa Pia de Lisboa a 6.ª cadeira46.
Tempo agora para lançar um olhar sobre as práticas letivas e tentar, no fundo,
perceber o que se passava na sala de aula nesses longínquos anos de 1860, algo passível
de ser perspetivado a partir de uma peça discursiva chave na nova organização e já aqui
referenciada – o diário das aulas.
44
É útil referir que Simões Raposo deixa a Casa de Pia de Lisboa em 1885, passando a exercer diversos cargos, entre eles, o de inspetor escolar. 45
RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 21. 46
O Ex-Director da Casa Pia de Lisboa…, op. cit.
19
Documento VII – Diário da 3.ª cadeira, 1866-1867, registo da 13.ª aula do ano letivo, período da
manhã.
1.ª classe 2.ª classe 3.ª classe
Fonte: AHCPL, Diário das Aulas da 3.ª Cadeira, 1866-1867.
Há, obviamente, várias entradas possíveis para analisar o Documento VII, embora em
meu entender seja desde logo importante notar a impossibilidade de operacionalizar o
«ensino de classe» sem o auxílio de monitores, selecionados de resto por entre «os alunos
mais adiantados da 4.ª, 5.ª e 6.ª cadeiras»47. E, porventura, tal ideia afasta-nos de um dos
argumentos teóricos veiculados pelos defensores da escola graduada, ou seja, segundo
relata Viñao, o de que só essa modalidade organizativa «podía asegurar la acción directa,
sin intermediarios, del maestro sobre el niño»48. Mas é preciso ver com mais detalhe esta
questão para se verificar que a convergência de um professor, uma sala, uma classe – de
facto, a primeira imagem da escola moderna – acontece apenas nas cadeiras superiores
(4.ª, 5.ª e 6.ª), e em determinados momentos da aula.
Por via de regra, o professor leciona alternada e sucessivamente cada uma das três
divisões (a chamada «lição direta»), permanecendo as demais, nesse período de tempo,
sob orientação de um monitor, que sobretudo repete e aplica na prática as teorias já
explicadas pelo docente.
Gostaria de ilustrar agora a convergência de que há pouco falei – um professor, uma
sala, uma classe – e que a partir do ocaso de Oitocentos não mais deixará a «paisagem
pedagógica».
47
RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 31. 48
VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica…, op. cit., p. 79.
1.ª hora Professor e monitor Imitação de traslados.
2.ª hora
Monitor
Exercícios práticos nas ardósias sobre a conta de divisão por um só algarismo.
3.ª hora
Monitor Exercícios sobre a tabuada da multiplicação e divisão.
1.ª hora
Professor e monitor Imitação de traslados.
2.ª hora
Professor Explicaram-se os termos espetáculo, repelir, confiança, amor, pregar.
3.ª hora
Monitor Cópia de um trecho de história sagrada.
1.ª hora
Professor e monitor
Imitação de traslados.
2.ª hora
Monitor Exercícios práticos nas ardósias sobre ortografia. Cópia de um trecho de história sagrada.
3.ª hora
Professor Explicaram-se os termos bondade, serenidade, tempes- tuoso, autoridade, penitencia.
1.ª M.
Um homem deve
fazer no amo de
1960 80 anos, em
que época fará 20
anos?
Exercícios sobre
a conta da
divisão nas
ardósias.
Explicação do
mesmo objecto
no quadro preto
aos que ainda
não sabem
dividir [quadro
preto a criar
espaço autónomo
de explicação]
2ª
Leitura, exercícios sobre os tons e pausas
3.ª
L.D. branco papel parede livros cortina giz
Várias
circunstâncias me
obrigaram a formar na minha
aula uma classe à
parte para os incorrigíveis. Em
virtude do que
deixo dito, veio
mais um decurião
para assistir a todos
os exercícios daquela classe. Em
estabelecimentos
desta ordem onde não há uma cadeira
para os
incorrigíveis mal se pode conseguir a
disciplina. É este o
único recurso que a pedagogia nos
apresenta para
conseguir o fim em
questão.
20
Documento VIII – Diário da 5.ª cadeira, 18 de Outubro de 1866, período da manhã.
1.ª classe 2.ª classe 3.ª classe
Fonte: AHCPL, Diário das Aulas da 5.ª Cadeira, 1866-1867.
Há de facto uma nova realidade que começa a ganhar corpo nesse momento histórico
– a organização global da aula –, intimamente associada, creio não restarem dúvidas, a
processos de homogeneização e a uma visão uniforme e invariável da população escolar.
Retomo a expressão que Simões Raposo adotou como lema: «mais praticar que
definir – mais compreender que decorar»49, muito justamente para me referir a um aspeto
que simbolizou o movimento de renovação pedagógica ocorrido no século XIX – a base
percetiva do ensino na sua concretização das «lições de coisas». E nada melhor para
enquadrar o problema do que recorrer à seguinte passagem do Nouveau Dictionnaire de
Pédagogie et d’Instruction Primaire:
Écrire l’histoire des développements de la leçon de choses dans l’enseignement primaire de ces
divers pays, ce serait écrire l’histoire même de l’enseignement primaire; car, ainsi qu’il fallait s’y
attendre, la leçon de choses représentant le nouvel ordre d’études, le procédé caractéristique
de la méthode moderne dans l’instruction populaire50
.
O que julgo muito importante afirmar desde logo é que a progressiva adoção do
método intuitivo a partir da década de 1860 significa, em larga medida, o reconhecimento
49
RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., pp. 28-29. 50
BUISSON, F.: «Leçons de choses», en BUISSON, F. (dir.): Nouveau Dictionnaire de Pédagogie et d’Instruction Primaire, Paris, Librairie Hachette, 1911, p. 990.
8 ½ - 10
Lição direta – Classes reunidas. Sistema métrico decimal. Medidas lineares; o que é o metro? De onde deriva? Seus múltiplos; suas correspondências com as medidas antigas; reduções das medidas antigas a modernas e das modernas a antigas; aplicação no quadro preto.
10 ¼ - 11 ½ Lição direta – Classes reunidas. História de Portugal: D. Sancho I, guerra contra os mouros; tomada de Silves ajudada pelos cruzados; guerra contra D. Afonso IX de Leão...
8 ½ - 10
Idem
10 ¼ - 11 ½
Idem
8 ½ - 10
Idem
10 ¼ - 11 ½
Idem
21
dos processos de cognição infantil. E é também por essa via (a da perceção como base do
ensino) que a «escola» começa paulatinamente a descobrir a singularidade que existe em
cada aluno, no fundo a entrelaçar os princípios da homogeneização com os da
individualização. Mas na década de 1860 é a centralidade da memorização no processo de
ensino que efetivamente se contesta. Contrapõe-se, tradu-lo muito bem a divisa adotada
por Simões Raposo, o valor da compreensão (em rigor, veremos, uma forma de trazer
ordem ao mundo das representações infantis, se preferirmos, de integrar pedagogicamente
o processo de crescimento da infância).
Não creio, no entanto, ser possível avançar neste ponto sem antes fixar o sentido da
expressão «lições de coisas», algo dúbia, tem de dizer-se, pelas muitas e diversas aceções
que assume, embora correspondendo a três ideias nucleares (com evidente ligação entre
si):
1.º d’abord la leçon de choses consistant à mettre un objet concret sous les yeux de l’élève à
titre d’exemple pour lui faire acquérir l’intelligence d’une idée abstraite: ainsi quand on lui
présente quatre pommes, quatre noix, quatre livres, quatre personnes, etc., pour éveiller en lui
la notion du nombre quatre, etc.; 2.º la leçon de choses consistant à lui faire voir, observer,
toucher, discerner les qualités de certains objets par le moyen des cinq sens: c’est à
proprement parler l’éducation des sens; 3.º la leçon des choses consistant à lui faire acquérir la
connaissance d’objets, de faits, de réalités fournies soit par la nature, soit par l’industrie, et dont
il ignorait jusqu’au nom: c’est une double leçon tendant à faire apprendre à la fois une chose et
un mot, un fait et son expression, un phénomène et le terme qui le désigne, et par extension
toute une classe de phénomènes et toute une classe de mots qui les expriment51
.
E ainda que no texto da Didática Magna Coménio enuncie já os princípios do ensino
baseado na perceção – «que cada coisa seja apresentada àquele dos sentidos a que
convém, ou seja, as coisas visíveis à vista, as audíveis ao ouvido, as odorosas ao olfato, as
saborosas ao gosto, as tangíveis ao tato»52 –, somente em finais de Setecentos, na
Alemanha, pela mão de Basedow, Campe e essencialmente de Pestalozzi, a intuição é
valorizada como fundamento de todo o conhecimento53, algo que se institucionaliza sem
precedentes no último terço do século XIX54.
Importa agora, com este tipo de enquadramento, perceber por que ordem de razões o
ensino percetivo obteve na Casa Pia de Lisboa um lugar autónomo no currículo desde 1866
51
Idem, Ibidem, p. 990. 52 COMÉNIO, João Amós: Didática Magna, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996
[1657 a 1.ª edição], p. 307. 53
SOUZA, Rosa Fátima: Templos de civilização…, op. cit. 54
CARUSO, Marcelo: La biopolítica en las aulas…, op. cit.
22
(cf. Documento V), emergindo a explicação de tal facto do próprio pensamento pedagógico
de Simões Raposo:
A inteligência ou entendimento manifesta-se debaixo de uma série de operações que, no
apurar da verdade, se dão na alma, tais são: perceção, atenção, juízo, raciocínio, memória,
imaginação; se a inteligência se manifesta pelo conjunto destes poderes secundários, é claro
que devem estes ser desenvolvidos e aperfeiçoados também no seu conjunto […]
Desprezar umas [faculdades] para só cuidar de outras, sobrecarregar a memória das crianças
com futilidades ou com abstrações sem aplicação imediata nos usos da vida e de reconhecida
utilidade, é desmerecer, é menoscabar o título respeitoso e nobre de professor!55
Não obstante, é o tratamento da faculdade da atenção que recebe a primazia durante
os anos de 1860, querendo isso significar que a abordagem percetiva do ensino nas «lições
de coisas», materializada na observação analítica de certos objetos, visará em primeira
instância auxiliar os alunos a dominar a sua atenção, preparando-os para a aprendizagem
latu senso. Marcelo Caruso já o havia notado no caso das escolas elementares do Reino da
Baviera56. Subjacente está, na verdade, uma estratégia ordenadora intuída, de resto, num
trecho anteriormente citado das «Instruções Escolares» de 1866, no qual, lembro, se
associava a ideia de «ordem» na sala de aula à possibilidade de os alunos estarem atentos
e compreenderem as lições.
Isto suposto, passemos a comentar alguns exemplos de «lições educativas» ou
«lições de coisas».
55
RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., pp. 12-13. 56
CARUSO, Marcelo: La biopolítica en las aulas…, op. cit. Segundo o autor, no Reino da Baviera as «lições de coisas» têm lugar autónomo no currículo a partir de 1869, algo que evidencia bem a modernidade pedagógica da experiência casapiana.
23
Documento IX – Diário da 2.ª cadeira, 16 de Março de 1867.
1.ª classe 2.ª classe 3.ª classe
Fonte: RAPOSO (1869).
Constata-se, pelo Documento IX, ser o procedimento socrático, isto é, a interrogação
constante, o fio condutor das «lições de coisas», muito vinculadas, acresce dizer, à
descrição isolada das características de determinados objetos/seres vivos, pouco reflexivas
portanto, e fundamentalmente baseadas na perceção visual.
Entende, no entanto, Simões Raposo que as «lições de coisas» devem superar a
simples descrição e, não menos importante, fazer eco da experiência dos alunos57.
Sem embargo, a vontade de Simões Raposo em reconfigurar as «lições de coisas»
não aponta para o reconhecimento da atividade espontânea da criança, nem tão-pouco
atribui qualquer significado ao fenómeno lúdico no desenvolvimento infantil (decerto,
pensará o leitor, pouco expectável num regime de internato). E se dúvidas existissem a
esse respeito, as próximas palavras dissipá-las-iam por completo: «nós já dissemos que
pertencíamos à escola dos que preferem o útil ao agradável»58.
Mas a perspetiva ordenadora das «lições de coisas», e estou novamente de regresso
ao cenário educativo da Casa Pia de Lisboa, supera por vezes o simples procedimento
57
Recorde o leitor a observação de Simões Raposo à aula do professor António Sérvulo da Mata (6/11/1866), citada em páginas anteriores. 58
RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 140.
1.º exercício
Cálculo mental e escrito nas ardósias. Se duas laranjas custam 30 réis quanto deve custar 1? – 15 réis Quanto 3? – 45 “ Quanto 6? – 90 “ Quanto 4? – 60 “ Quanto 8? – 120 “ Quanto 5? – 75 “ Quanto 10? – 150 “ Quanto 7? – 105 “ Quanto 14? – 210 “ … Quanto 58? – 870 “
1.º exercício Cópia para os cadernos das seguintes frases explicadas na lição educativa antecedente e escritas pelo professor no quadro preto: O pombo tem asas. O pombo tem penas. O pombo tem rabo. O pombo tem cabeça. O pombo tem olhos. O pombo tem pernas. O pombo tem unhas. O pombo é bonito. O pombo é manso. O pombo é voador. nasce, cresce, vive, O pombo sente, voa, arrulha envelhece, morre.
1.º exercício Lição educativa. Apresentei aos alunos a paisagem n.º 3. Preparados os alunos com as suas ardósias fui apontando para a paisagem e interrogando socraticamente sobre o conteúdo da paisagem; e da análise que fizemos resultou escrever-se no quadro preto e nas ardósias o seguinte: A paisagem tem uma casa. A paisagem tem um jardim. A paisagem tem um rio. A paisagem tem um prado. A paisagem tem um rebanho. A paisagem tem um pastor. A paisagem tem um cão. A paisagem tem um bosque. Estas frases deram lugar a uma conversação que durou toda a hora da lição.
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analítico de observação, assinalado que foi no Documento IX. Em contraponto, veja-se
como o professor José Jorge da Silva Teixeira, através de processos intuitivos, procura
levar os seus alunos a compreender relações de lugar.
Documento X – Diário da 3.ª cadeira, 16 de Março de 1867.
3.ª classe
Fonte: RAPOSO (1869).
Nota: Neste caso é evidente a tentativa de um trabalho compreensivo, obedecendo ao princípio, teorizado de resto por Simões Raposo, de que a «observação e a reflexão [constituíam] o único meio de adquirir ideias claras e distintas»
59.
Por outro lado, fácil é perceber que a adoção do método intuitivo reduz em muito
(para não dizer em tudo) o papel do compêndio. Com efeito, Simões Raposo chega
mesmo, como confessa, a retirar das «mãos das crianças todas as gramáticas, todos os
compêndios», aconselhando então os professores a utilizarem a «análise presencial direta,
figurativa ou analógica, isto é, mostrando, desenhando ou descrevendo o objeto», no
pressuposto de que «para definir bem, ou para compreender bem uma definição, é
necessariamente preciso que conheçamos tudo o que temos a definir»60.
59
Idem, Ibidem, p. 121. 60
Idem, Ibidem, p. 18.
1.º exercício Exercícios de linguagem e de inteligência. Processo intuitivo e forma socrática. Relações de lugar Tendo na mão um livro principiámos por analisá-lo do que resultou o seguinte: O livro tem capas, O livro tem folhas, O livro está escrito, O livro é útil, O livro é bom etc. Depois, colocado sucessivamente o livro em diversos lugares, fui encaminhando o espírito das crianças a conhecer as relações de lugar em que um objeto se podia encontrar. Esta digressão dos sentidos e da inteligência deu em resultado conhecerem-se intuitivamente as seguintes relações: O livro está em cima da mesa, O livro está debaixo da mesa, O livro está ao pé da mesa, O livro está perto da mesa, O livro está ao pé da parede, O livro está perto da parede, O livro está longe da mesa, O livro está dentro da aula, O livro está no chão, O livro está na mão. Concluído este exercício, fez-se uma leitura geral e em recapitulação se concluiu que as frases em cima da mesa, debaixo da mesa, perto da parede, no chão, etc. etc. significavam as relações de lugar em que o livro podia estar.
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A modernidade do pensamento pedagógico de Simões Raposo manifesta-se na
verdade em múltiplos aspetos: admitindo a «intuição presencial direta» como o melhor
processo de ensinar a disciplina de corografia, o mesmo é dizer, viajando, algo que
prefigura a ideia dos passeios ao ar livre, mais tarde considerados uma importante forma de
instrução; no que concerne ao estudo da história, recusando sobrecarregar a «memória
[dos alunos] de nomes e factos sem consequências nem filosofia»61; na referência do
ensino da aritmética, fomentando atividades baseadas em situações concretas, nas quais o
material didático constitui importante recurso.
Está assim traçado o quadro geral do modelo de organização escolar estabelecido na
Casa Pia de Lisboa no ano letivo de 1866/1867, amplamente divulgado, tem agora de dizer-
se, nas Exposições Universais de Viena (1873) e de Paris (1878).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Terminada a minha exposição, frisaria, em jeito de síntese, que a série de reformas
do ensino introduzidas no contexto institucional da Casa Pia a partir do ano letivo de 1866-
1867, que tivemos ocasião de acompanhar, deve entender-se como parte de uma nova
forma de conceber o trabalho escolar (num sentido mais lato, se quisermos, de governar o
próprio sistema de ensino). Não deixa de ser particularmente interessante que a tentativa
de racionalização da organização do ensino e do trabalho pedagógico, obviamente
marcada pela ideia de racionalidade científica, e nesse sentido associada à ascensão de
um pessoal pedagógico especializado, venha a acontecer num regime de internato. Crédito,
pois, à tese de que a «pedagogização do espaço e do tempo […] é indissociável da
institucionalização do espírito de internato»62. Em causa, como se disse, a integração
pedagógica do crescimento da infância, no quadro de um projeto de educação integral.
Uma última palavra para sublinhar que a experimentação da escola graduada, na
Casa Pia de Lisboa, constitui um marco educativo profundamente inovador – era este o
modelo de organização escolar a imitar (e que se impõe, aliás, como o único possível).
61
Idem, Ibidem, p. 172. 62
Ó, Jorge Ramos do: O governo de si mesmo…, op. cit., p. 198.