As reformas do ensino na Casa Pia de Lisboa ou a primeira imagem da escola primária moderna (anos...

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AS REFORMAS DO ENSINO NA CASA PIA DE LISBOA OU A PRIMEIRA IMAGEM DA ESCOLA PRIMÁRIA MODERNA (ANOS DE 1860-1870) THE TEACHING REFORMS ON THE CASA PIA OF LISBON OR THE FIRST IMAGE OF THE MODERN PRIMARY SCHOOL (YEARS OF 1860-1870) Carlos Manique da Silva Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação da Universidade de Lisboa RESUMO: O artigo analisa a série de reformas do ensino introduzidas na Casa Pia de Lisboa a partir do ano lectivo de 1866-1867. O modelo escolar que se consolida nesse contexto falo de um modelo que se elabora e difunde a nível mundial, se mantém praticamente imutável até os dias de hoje e tipifica, portanto, o próprio conceito de escola é, em larga medida, tributário de uma concepção contemporânea de controlo e eficiência. Defendo que o modelo de escola graduada vem a ser o que melhor corresponde ao projecto de integração social concebido pelo provedor José Maria Eugénio de Almeida. Palavras-chave: Escola graduada; Portugal; educação popular; ensino intuitivo. ABSTRACT: This article analysis the series of the teaching reforms introduced on the Casa Pia of Lisbon starting from the school year of 1866-1867. The school model which is taking its roots in that context the model which I’m speaking about draws up and spreads to a worldwide level; remains unchangeable till our days and represents the school concept itself is largely responsible for a contemporary conception of efficiency and control. It’s about the pedagogical integration of childhood, concerning to an integral education project. The graduated school model is still defended as the one that better corresponds to the social integration project conceived by the ombudsman José Maria Eugénio de Almeida. Keywords: Graduated school; Portugal; popular education; intuitive teaching.

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AS REFORMAS DO ENSINO NA CASA PIA DE LISBOA OU A PRIMEIRA IMAGEM DA ESCOLA

PRIMÁRIA MODERNA (ANOS DE 1860-1870) THE TEACHING REFORMS ON THE CASA PIA OF LISBON OR THE FIRST IMAGE OF THE MODERN

PRIMARY SCHOOL (YEARS OF 1860-1870)

Carlos Manique da Silva

Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação da Universidade de Lisboa

RESUMO: O artigo analisa a série de reformas do ensino introduzidas na Casa Pia de Lisboa a

partir do ano lectivo de 1866-1867. O modelo escolar que se consolida nesse contexto – falo

de um modelo que se elabora e difunde a nível mundial, se mantém praticamente imutável até

os dias de hoje e tipifica, portanto, o próprio conceito de escola – é, em larga medida, tributário

de uma concepção contemporânea de controlo e eficiência. Defendo que o modelo de escola

graduada vem a ser o que melhor corresponde ao projecto de integração social concebido

pelo provedor José Maria Eugénio de Almeida.

Palavras-chave: Escola graduada; Portugal; educação popular; ensino intuitivo.

ABSTRACT: This article analysis the series of the teaching reforms introduced on the Casa Pia

of Lisbon starting from the school year of 1866-1867. The school model which is taking its

roots in that context – the model which I’m speaking about draws up and spreads to a

worldwide level; remains unchangeable till our days and represents the school concept itself –

is largely responsible for a contemporary conception of efficiency and control. It’s about the

pedagogical integration of childhood, concerning to an integral education project. The

graduated school model is still defended as the one that better corresponds to the social

integration project conceived by the ombudsman José Maria Eugénio de Almeida.

Keywords: Graduated school; Portugal; popular education; intuitive teaching.

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1. INTRODUÇÃO

«Quando entrei eram 9 ½, estavam as classes trabalhando em boa ordem; a 1.ª a fazer retas e

curvas nas ardósias e a 2.ª dividida em três grupos, dois dos quais estavam soletrando os

silabários, e o 3.º tinha lição direta pelo professor, o assunto era uma nora e as crianças iam

dizendo as partes de que ela se compõe e o professor escrevia no quadro preto as palavras

que elas iam dizendo, que eram depois soletradas e lidas por todas; é este um processo que

tenho recomendado ao professor por muitas vezes me parecer que tem o duplo fim e utilidade

de dar ideias claras às crianças e de ao mesmo tempo se irem amestrando na leitura»1.

As palavras são de José António Simões Raposo, provisor dos estudos da Casa Pia

de Lisboa, e reportam-se a um cenário educativo – o da sala de aula da 1.ª cadeira (ou

grau, se preferirmos) – marcado pela regularidade. Regularidade que só se obtinha,

segundo o mesmo Simões Raposo, «com uma inspeção contínua […], com a perfeita

unidade do ensino, com o gradual desenvolvimento dos programas aprovados», sem

esquecer a continuidade do corpo docente2.

O testemunho em causa é importante, na medida em que permite destacar dois

grandes pressupostos da escola graduada: a uniformização e a padronização3. Não se

estranha assim ser num contexto institucional muito peculiar, caracterizado por aliar

preocupações de ordem social e pedagógica, em que pela primeira vez em Portugal se

ensaia a escola graduada.

Mas essa afirmação, o leitor concordará por certo comigo, não pode ser aceite sem

outras considerações. Na verdade, o modelo escolar que se consolida na Casa Pia de

Lisboa nos anos de 1860 – e estou a falar, importa frisá-lo, de um modelo organizativo que

se elabora e difunde no plano mundial, se mantém praticamente imutável até aos dias de

hoje e tipifica, portanto, o próprio conceito de escola – é, em larga medida, tributário de uma

conceção contemporânea de controlo e de eficiência, para lembrar David Hamilton4.

De forma mais operacional, a emergência da escola graduada nesse espaço

institucional não se explica, fundamentalmente, no âmbito de um processo de expansão da

escolarização, isto é, enquanto resposta ao aumento do número de alunos – entre outros

1 Arquivo Histórico da Casa Pia de Lisboa (AHCPL): Inspeção Diária do Provisor, Diário Geral

das Aulas, 8/11/1866, s. p. 2 RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa, Lisboa,

Typographia de M. da Costa, 1869, p. 21. 3 SOUZA, Rosa Fátima de: Templos de civilização: a implantação da escola primária

graduada no Estado de S. Paulo (1890-1910), S. Paulo, UNESP, 1998. 4 HAMILTON, David: Towards a Theory of Schooling, London, The Falmer Press, 1989.

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aspetos, a temporalidade do ensaio na Casa Pia denuncia-o desde logo5. Explica-se sim,

decisivamente, em torno daquilo que Ramos do Ó colocou de forma muito clara:

O desenvolvimento do aparato pedagógico, em espaços institucionais próprios, devidamente

isolados das […] influências deletérias do meio, esteve diretamente associado aos programas

de intensificação do treino moral das crianças e jovens marginais6.

Para mim, o que se afigura inequívoco, na referência concreta da Casa Pia de Lisboa

no decénio de 1860, é a existência de um nexo causal entre a racionalização da

organização escolar e o desígnio de integração social dos órfãos, na sua maioria oriundos

das classes populares.

Se avaliarmos bem, outra coisa não sugere o pensamento de José Maria Eugénio de

Almeida, designadamente quando, nos primeiros anos da sua provedoria, iniciada em

Outubro de 1859 a convite de Fontes Pereira de Melo, estabelece num horizonte pontuado

ainda por muitas incertezas o objetivo central da futura obra educativa da instituição. Vale a

pena acompanhar o seu raciocínio:

O que me parece destacar-se, como verdade apurada, do meio de todos os exames e dúvidas,

é que a educação literária de que convém tratar na Casa Pia é a primária; e que esta deve ser

tão extensa e perfeita quanto for possível. É esse o melhor meio de educar aqui mancebos

que tenham aptidão e préstimo para todas as carreiras laboriosas e modestas […] Se um ou

outro tiver de subir a uma instrução mais alta, a instrução primária desenvolvida e

aperfeiçoada, que tiver recebido aqui, fará que a outra lhe aproveite melhor7.

A minha tese é, pois, a de que o modelo de escola graduada, para além de dar

resposta a um anseio de modernidade, nitidamente alinhado pela experiência dos Estados

alemães, não tardaremos a percebê-lo, vem a ser o que melhor corresponde ao projeto de

integração social, se quisermos, de preparação para a vida (impossível esquecer aqui a

5 Para se ver, a experimentação da escola graduada em países como Brasil e a Espanha

inicia-se em cronologias bem mais tardias e no quadro dos sistemas nacionais de ensino, respetivamente nos anos de 1894 e 1898. Sobre o assunto, consultar, na mesma ordem, os estudos de SOUZA, Rosa Fátima: Templos de civilização…, op. cit. e de VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica. La Escuela Graduada Pública em España (1898-1936), Madrid, Akal, 1990 e «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada», in OSSENBACH, Gabriela (coord.): Psicología y pedagogia en la primera mitad del siglo XX, Madrid, UNED, 2003, pp. 73-104. 6 Ó, Jorge Ramos do: O governo de si mesmo. Modernidade pedagógica e encenações

disciplinares do aluno liceal (último quartel do século XIX – meados do século XX), Lisboa, Educa, 2003, pp. 104-105. 7 ALMEIDA, José Maria Eugénio de: Relatorio da Administração da Real Casa Pia de Lisboa

[de 20 de Out. de 1859 a 31 de Out. de 1860], Lisboa, Imprensa Nacional, 1861, p. 75, itálico meu.

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prática do aprendizado), concebido pelo provedor José Maria Eugénio de Almeida, e muito

justamente pelo facto das características formais desse modelo (classificação dos alunos

em classes o mais homogéneas possível, promoção rígida ao grau superior através de

exame, graduação dos programas, rigoroso controlo do tempo, existência da figura do

director…) garantirem políticas de controlo e de eficiência escolar.

Importa, no entanto, fazer notar que a primeira imagem da escola moderna – um

professor, uma sala, uma classe, convergência que só acontece de facto a partir das

décadas de 1860/1870 – é marcada por um antagonismo:

O ensino em classe, unidade por excelência da escola graduada, baseado no princípio de

“ensinar a muitos como se fossem um só”, resultou em processos de homogeneização num

momento em que a pedagogia científica [emergente ainda nos citados decénios] propagava a

necessária atenção às diferenças individuais8.

Assim, na sua origem, o modelo de escola graduada encontra-se intimamente ligado a

uma conceção unidimensional e massificada da criança, e percebemo-lo em larga medida,

não é demais enfatizá-lo, em função de um argumento de ordem racional: «quanto mais

iguais estiverem os alunos no seu grau de instrução, mais fecundo se torna o ensino que se

lhes dá»; quem o assevera é Elias Garcia, no quadro de um debate travado no município

de Lisboa sobre a reorganização das escolas graduadas9.

Mas, para lá das vantagens decorrentes do princípio económico da divisão do

trabalho, na sua conexão aos discursos da racionalidade/eficiência escolar, a proposta de

renovação pedagógica que encerra a escola graduada, e situo-me já num segundo

argumento, desta feita de natureza sociopedagógica, traz consigo importantes mudanças

na organização do ensino primário. Como elucida Viñao:

Se decía que solo la escuela graduada permitía una educación integral, completa e moderna,

además de la aplicación de los principios y técnicas de la pedagogía científica, entonces

emergente, la organización concéntrica del currículo y su ampliación. Este nuevo modelo

organizativo, se añadía, contribuiría a extender la enseñanza obligatoria (como efectivamente

sucedió), haciendo que los alumnos de más edad, al disponer de aulas, programas e maestros

específicos, permanecieran en la escuela durante más tiempo, en especial si se introducían

materias y tareas de índole profesional. Además, solo la escuela graduada, se argumentaba,

8 SOUZA, Rosa Fátima de: Templos de civilização…, op. cit., p. 281.

9 Atas das Sessões da Camara Municipal de Lisboa, sessão de 12/3/1886, p. 164.

5

podía asegurar la acción directa, sin intermediarios, del maestro sobre el niño, sin el recurso a

los monitores10

.

Creio que o leitor ficará com uma outra perceção da mais-valia contida nesse

fundamento, se atender à próxima intervenção de Simões Raposo; tradutora, ao mesmo

tempo, de um facto da maior relevância, a drástica redução no início dos anos de 1860 do

número de alunos da Casa Pia, em simultâneo de resto com o fim das aulas públicas11.

Tudo sintomático de uma ideia – a da formação integral dos alunos:

Se o que pode satisfazer racionalmente a 20 o distribuirdes a 30 ou 50, haverá uma grande

deficiência na educação que ministrardes, e, desejando atender ao maior número, não

colhereis senão um resultado imperfeitíssimo e quase nulo!!

Foi isto o que por bastante tempo se passou com os órfãos da Real Casa Pia de Lisboa,

quando a cargo de algumas das antigas administrações; as quais admitindo o primeiro

princípio, isto é, que convinha educar o maior número, descuraram até certo ponto o seguinte:

isto é, que devia ser pura e sem joio a educação, para que pudesse preencher o seu fim

debaixo do aspeto – físico, intelectual, moral e social – sem o que não pode haver perfeita e

completa educação12

.

Ora, esta posição é essencial para compreender a dinâmica educativa da instituição

no período imediatamente posterior a 186613, refletindo, aliás, um profundo sentido da

«escola» enquanto locus de experimentação – Simões Raposo chega mesmo a falar em

«sociedade democrática popular em miniatura»14, numa aceção que elucida bem a

especificidade do universo estudantil casapiano.

Em síntese, o que me interessa, admitindo a pertinência de um conceito caro a

Marcelo Caruso, o de regulação – e o autor reporta-se à integração pedagógica do

processo de crescimento da infância, tornando assim necessário, como diz, «darle

dirección a través de diversas formas de instrucción»15 –, é acompanhar as modalidades de

organização pedagógica e de conceção do trabalho escolar que marcaram no devir,

10

VIÑAO, Antonio: «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit., pp. 78-79. 11

SILVA, César da: Noticia da Real Casa Pia de Lisboa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892. 12

RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 7, itálico meu. 13

A data assinala o ingresso de Simões Raposo na Casa Pia de Lisboa, protagonista a partir de então de uma relevante ação pedagógica. 14

RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 19. 15

CARUSO, Marcelo: La biopolítica en las aulas. Prácticas de conducción en las escuelas elementales del Reino de Baviera, Alemania (1869-1919). Buenos Aires, Prometeo Libros, 2005, p. 59.

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creditando para o efeito a ideia de especialização, algo que tem obviamente a ver com o

desenvolvimento científico da pedagogia e com a transação do saber pedagógico no seio

de uma comunidade de «especialistas».

2. OS PRIMEIROS PASSOS DA REFORMA DOS ESTUDOS DE EUGÉNIO DE ALMEIDA…

ALGUMAS INCERTEZAS E INDEFINIÇÕES (1859-1866)

A experimentação da escola graduada começa a desenhar-se a partir de 1859, com a

chegada à provedoria de José Maria Eugénio de Almeida. Não por acaso, coincide no

tempo com o momento final do ensino mútuo, depois de um longo e ininterrupto ensaio de

vinte e cinco anos. Na verdade, é na sequência da extinção da aula de ensino mútuo que o

governo manifesta a intenção de a administração da Casa Pia estabelecer várias escolas

de ensino primário divididas em graus16. Devo afirmar que o «plano de ensino» elaborado

pela instituição, consagrado na citada Portaria de 10/1/1860, apesar de ser provisório, não

divergiu das orientações superiormente emanadas. O traço estruturante era de facto a

divisão do ensino primário (elementar e superior) em graus, não menos de três, nem mais

de seis, impondo-se ainda assinalar uma outra medida plena de significado. Esta: ser

condição necessária para o acesso ao magistério possuir as habilitações exigidas no

ensino oficial.

E se à entrada da década de 1860 parecem estar definidas as grandes linhas

ordenadoras do projeto educativo casapiano, certo é que até 1866, ano em que Simões

Raposo assume o lugar de provisor dos estudos, não se registam progressos significativos.

Julgo no entanto útil descrever os principais passos dessa evolução. De acordo com o

Relatório de Eugénio de Almeida17, durante o primeiro ano do seu mandato foram criadas

três «aulas» de ensino primário, não obstante apenas duas terem sido providas. À data, lê-

se nesse mesmo documento, a questão essencial para o provedor era elevar o número de

«aulas» a cinco ou seis, e facultar assim aos alunos a instrução primária superior.

Se nos ativermos ao circunstanciado e insuspeito testemunho do inspetor Mariano

Ghira18, a situação seria em tudo semelhante no ano letivo de 1863-1864. Porém, é

precisamente a partir de 1863 que se intensificam as tentativas para alterar esse estado de

coisas. Um acontecimento da maior relevância pedagógica foi por certo a viagem de estudo

que Eugénio de Almeida efetuou à Alemanha, segundo creio nos primeiros meses de 1863.

Num périplo muito orientado, tem de dizer-se, para o conhecimento do ensino da ginástica

16

Portarias da Administração da Real Casa Pia…, 1862, Portaria n.º 12, de 10/1/1860. 17

ALMEIDA, José Maria Eugénio de: Relatorio da Administração da Real Casa Pia de Lisboa [de 20 de Out. de 1859 a 31 de Out. de 1860], Lisboa, Imprensa Nacional, 1861. 18

GHIRA, Mariano: Relatorio sobre a visita de inspecção ás escolas do districto de Lisboa feita no anno lectivo de 1863-1864, Lisboa, Typographia Portugueza, 1865.

7

(uma das linhas de força do seu projeto educativo), mostrar-se-ia então de sobremaneira

impressionado com a Escola Normal de Dresden19.

O vínculo com a Alemanha manter-se-á nos anos seguintes, conforme prova uma

interessante carta dirigida por Eugénio de Almeida ao diretor da Escola de Schepfenthal,

em 14 de Março de 1866:

Je désire prêter a mon pays un service que je crois de la plus haute importance, en cherchant

à établir et faire connaître pratiquement les bonnes méthodes d’enseignement suivies depuis

longtemps en Allemagne et ignorées encore au Portugal.

Je viens donc Monsieur vous demander la grâce de faire inscrire dans la liste de ceux qui

attendent une place dans votre école, six (6) élèves de Real Casa Pia de Lisboa, pour y

recevoir une éducation élémentaire complète, et suivre en suite le cours d’une des plus

célèbres écoles normales allemandes, afin qu’ils puissent plus tard retourner au Portugal et

professer ici en suivant les méthodes qu’ils auront appris en Allemagne20

.

Em si, a missiva espelha a preocupação de Eugénio de Almeida com a preparação

pedagógica do professorado, linha de pensamento insistentemente perseguida desde o

início do seu mandato (recorde o leitor os termos da Portaria de 10/1/1860). Assim se

compreende que, em Agosto de 1866, num gesto de grande visão pedagógica, importa

sublinhá-lo, o provedor da Casa Pia de Lisboa tome a iniciativa que maior influência terá ao

nível da organização dos estudos nos anos subsequentes; ou seja, o recrutamento em

exclusivo de professores habilitados com o curso normal, incidindo a seleção no universo

de antigos alunos pensionistas da Escola de Marvila.

É de facto impensável conceber o processo de modernização pedagógica que tem

lugar na Casa Pia, a partir do ano letivo de 1866-1867, dissociado da constituição de um

corpo homogéneo de docentes, nem tão-pouco fora da liderança de uma personalidade

como Simões Raposo.

19

Esta informação, ao que julgo inédita, foi extraída de um ofício dirigido por Eugénio de Almeida ao diretor-geral de instrução pública, em 13 de Abril de 1863. Nele se menciona uma visita recente à Alemanha (AHCPL, Real Casa Pia de Lisboa. Livro de Registo de Ofícios para os Ministérios, n.º 1, 1859-1876). 20

AHCPL, Real Casa Pia de Lisboa. Livro de Registo dos Ofícios para Particulares, n.º 1, 1859-1891, p. 20.

8

3. O MODELO DE ORGANIZAÇÃO ESCOLAR ESTABELECIDO NO ANO LETIVO DE 1866/1867

A citação é longa, mas situemos agora, na primeira pessoa, a chegada de Simões

Raposo à Casa Pia de Lisboa:

Quando em 1866 entrei para a Casa Pia, na qualidade de Provisor dos Estudos, devo

confessá-lo, encontrei este estabelecimento perfeitamente organizado no que respeita à

educação física dos alunos tanto alimentar como higiénica; o grande espírito de José Maria

Eugénio de Almeida havia planeado uma reforma salutar, e o seu génio reformador havia feito

introduzir na Casa Pia todos os melhoramentos que a ciência prescrevia […]

Não sucedia porém o mesmo à educação intelectual e moral dos órfãos da Casa Pia.

O plano entrevisto, os desejos manifestados e as tentativas empreendidas por José Maria

Eugénio de Almeida, durante os 6 anos decorridos da sua administração notabilíssima, não

haviam produzido resultados satisfatórios.

No campo da pedagogia aplicada à educação intelectual, moral e disciplinar, havia tudo a

fazer.

As aulas e os estudos achavam-se numa desordem inconcebível. Não havia programas; não

havia métodos regulares de ensino; não havia exames de classificação; não havia estatística

de aproveitamento; não havia escrituração das aulas; não havia instruções escolares; não

havia estímulo por parte dos alunos; não havia solidariedade entre os professores!

Cada uma das cadeiras, em que se achavam distribuídos os órfãos da Casa Pia, representava

uma nação à parte, sem ligação ordenada, sem solidariedade preestabelecida pelo programa

geral dos estudos, sem relação ou dependência gradual e progressiva com as outras cadeiras,

inferior ou superiormente colocadas21

.

Nas suas linhas gerais, posso afirmar ser o testemunho marcado pelo rigor histórico,

sem que isso me exima de assinalar um certo olhar niilista para o passado, frequente de

resto quando os protagonistas de processos reformadores refletem, a posteriori, sobre os

mesmos. Mas não é de todo em todo aceitável por esquecer, neste caso concreto, o

contributo das experiências do ensino mútuo e do método repentino de Castilho22 para a

graduação dos estudos (há obviamente uma via de ensaio pedagógico na instituição que

tem de ser considerada).

21

O Ex-Director da Casa Pia de Lisboa Francisco Antonio da Silva Neves e o Actual Director, Lisboa, Typographia da Bibliotheca Municipal, 1881, pp. 53-55. 22

O curso experimental do método repentino, dirigido por Luís Filipe Leite, iniciou-se na Casa Pia em 8 de Janeiro de 1853, terminando no ano de 1857 (AHCPL, Divisão dos alunos. Aula de Leitura Repentina. Matriculas, 1853-1857; LEITE, Luís Filipe: Do Ensino Normal em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892). Nesse período, matricularam-se cerca de 120 alunos, quase todos provenientes da aula de ensino mútuo.

9

3.1. A NOVA FIGURA DO PROVISOR DOS ESTUDOS

Julgo importante deter-me em primeiro lugar na figura do provisor dos estudos23,

equivalente no fundo à de um diretor, e muito justamente por ser intrínseca ao novo modelo

organizativo. É assim útil compreendê-la à luz do próprio conceito de escola graduada,

designadamente na aceção que Antonio Viñao toma para si, ou seja, a de «modalidad que

sólo se produce cuando la graduación implica la existencia de varias aulas de clase o

grados con varios maestros, un director, clases lo más homogéneas posible y un currículo

asimismo graduado por cursos»24.

Em boa verdade, como refere ainda Viñao, a entrada no campo educativo da figura

institucional do diretor traz consigo mudanças significativas, notoriamente de índole mental

e organizacional:

La escuela graduada, al introducir en la enseñanza primaria la nueva figura del director, antes

inexistente, trastocaba […] las relaciones de poder en el seno del sistema educativo y de la

organización escolar. Éste era el núcleo fundamental del problema y el que más debates

suscitaría: la figura del director escolar. Una figura que confería unidad de acción y sentido a la

graduada, que se identificaba con ella, que nacía gracias a ella y que hacía de ella, como se

decía, una comunidad orgánica y no una reunión de [escuelas] unitarias bajo un mismo

techo25

.

Ora, esta última ideia, a de o diretor ser o elemento capaz de conferir unidade

orgânica à escola graduada, que nos remete para questões tão relevantes como as do

relacionamento profissional e pessoal entre professores ou mesmo da distribuição do

poder, dada a existência de um superior hierárquico, assume contornos invulgares na Casa

Pia, particularmente durante a segunda metade dos anos de 1860. Pensemos apenas nas

relações pessoais que envolvem o provisor dos estudos – em quem está de facto

centralizado o poder, atuando de resto como administrador-delegado da provedoria – e os

demais professores chegados à instituição, todos seus colegas do curso normal de Marvila.

Interessa, pois, compreender o reposicionamento de Simões Raposo perante os

antigos condiscípulos, no fundo apreciar a representação do cargo de provisor dos estudos,

sendo desde logo legítimo considerar que o modelo de escola graduada – em contraponto

23

Figura institucional criada em 4 de Janeiro de 1866 (AHCPL, Real Casa Pia de Lisboa Ordens n.º 1, 1863-1871, ordem n.º 42). Simões Raposo viria a ser nomeado para exercer o lugar de provisor dos estudos em 1 de Setembro de 1866 (AHCPL, Registo das ordens da administração da Casa Pia, II, 1865-1868, ordem n.º 814). 24

VIÑAO, Antonio: «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit., p. 75. 25

Idem, Ibidem, p. 83.

10

à escola unitária, na qual, excetuando eventuais visitas de inspeção, não existe qualquer

controlo direto sobre o professor – restringe a autonomia dos docentes.

Documento I – Representação do cargo de provisor dos

estudos da Casa Pia de Lisboa (1866).

. É o superior imediato dos professores. . Indica, mediante exame, a cadeira que os alunos irão frequentar aquando do ingresso no instituto. . Aprova a passagem dos alunos de uma cadeira para outra. . Autoriza a alteração de programas e de horários. . Condiciona a divisão das aulas em mais de três classes (excetuando a primeira cadeira).

Fonte: RAPOSO (1869).

É todavia possível apreender um pouco melhor as funções do provisor dos estudos –

na sua essência, assim o deixa perceber o Documento I, de natureza pedagógica – a partir

de uma peça discursiva chave na nova organização, se bem que a preceda. Refiro-me ao

diário do professor, também designado na literatura pedagógica por diário da classe ou da

aula. Mais não era, e sigo a par e passo o Dicionário Universal de Educação e Ensino, do

que um «mapa destinado a registar, dia a dia, o resumo das matérias ensinadas às

diversas divisões da classe», no pressuposto claro de que nenhuma lição pode ser «bem

ensinada se não for preparada com todo o cuidado»26.

A próxima passagem corresponde a uma observação exarada pelo provisor dos

estudos no diário de um professor – diárias, convém notar, eram também as visitas de

inspeção às salas de aula –, e ajuda a precisar a sua imagem funcional:

O professor teria andado melhor se, em lugar de explicar aos alunos as hipóteses sobre a sua

natureza e transmissão, tivesse feito ver aos alunos os efeitos do calor, a sua influência sobre

a natureza animal e sobre a vegetação das plantas, aplicando tudo isto a factos conhecidos

das mesmas crianças e finalmente a utilidade do calor – o como se torna indispensável […]

convido o Sr. Professor a que o faça para outra vez27

.

26

CAMPAGNE, E. M.: Diccionario Universal de Educação e Ensino, Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1886, vol. I, p. 686, entrada Diário da classe. 27

AHCPL, Diário da 6.ª cadeira, professor António Sérvulo da Mata, aula de 6/11/1866, documento s. p.

11

No domínio do exercício da autoridade, pode afirmar-se que o ascendente do provisor

dos estudos decorre em larga medida da sua competência a respeito de questões

pedagógicas. É essencial notar aqui que o provisor, em 1866, não detém a prerrogativa de

advertir os docentes, fazendo por isso sentido falar, e as palavras supracitadas elucidam-no

de alguma maneira, já o entenderemos melhor, em função integradora da direção. De resto,

este aspeto pode ser ilustrado a partir de um debate travado na vizinha Espanha nos

primeiros anos do século XX, opondo então duas conceções distintas de direção escolar

(uma «débil», outra «forte»), respetivamente traduzidas por Viñao em função integradora e

função policial28.

Com o tempo as competências do provisor dos estudos da Casa Pia são em muito

ampliadas, sendo certo que nesse devir, e situo-me agora no ano de 1879, pela simples

razão de ter sido então aprovado um Regulamento para o provisor das aulas, se torna

tangível a dimensão administrativa do exercício desse cargo. Para já, o que se me oferece

dizer, do ponto de vista pedagógico, é que tarefas como observar diariamente as salas de

aula, classificar os alunos num momento inicial e promovê-los a cadeiras superiores

durante o percurso escolar, através de exame, claro está, elaborar horários e programas…

se mantêm na esfera do provisor em 187929. No entanto, a partir dessa data e, segundo

estou em crer, até 1889, altura em que o lugar é extinto, precisamente pela criação de um

conselho escolar, o provisor passa a ter a prerrogativa de advertir os professores

(registando-se assim um certo afastamento da função integradora da direção). O

Documento II dá-nos uma perspetiva abrangente das mudanças introduzidas na provedoria

de Carlos Maria Eugénio de Almeida30.

28

VIÑAO, Antonio: «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit. 29

Confirmadas, de resto, as ditas tarefas no Regulamento para o serviço interno das aulas de 19/5/1881 (cf. Portarias e Respectivos Regulamentos da Administração da Real Casa Pia de Lisboa, 1881). 30

A presente investigação centra-se fundamentalmente em duas provedorias, impondo-se por isso balizá-las no tempo: José Maria Eugénio de Almeida, Outubro de 1859 a Abril de 1872; Carlos Maria Eugénio de Almeida, Janeiro de 1873 a Abril de 1887 (cf. 220 Anos Casa Pia de Lisboa. Instruir, Educar e Amparar, Lisboa, Centro Cultural Casapiano, 2000).

12

Documento II – Representação do cargo de provisor das aulas da Casa

Pia de Lisboa (1879).

. Assiste diariamente às aulas. . Zela para que os programas sejam rigorosamente observados. . Adverte particularmente os professores em caso de incumprimento de «deveres». . Repreende publicamente os alunos. . Avalia o progresso dos alunos. . Requisita por escrito os objetos necessários para o ensino. . Obsta a que os professores, por livre vontade, apliquem castigos corporais aos alunos. . Presta aos professores orientações «tendentes ao progresso intelectual e moral dos alunos». . Informa a administração dos alunos que «pelo seu adiantamento e bom procedimento» mereçam prémios. . Preside aos exames realizados na Casa Pia e acompanha os alunos, em idênticas situações, nos estabelecimentos do Estado. . Remete à administração, no final de cada trimestre, uma relação nominal dos alunos matriculados em cada cadeira, assim como as notas das lições diárias.

Fonte: Regulamento para o provisor das aulas, 15/2/1879, in Portarias

da Administração da Real Casa Pia de Lisboa, 1883.

Encontramo-nos, é evidente, num momento muito inicial da configuração da direcção

escolar, no qual estão ainda ausentes questões como a forma de eleger o director, o

exercício cumulativo (ou não) da docência por parte dessa figura, a partilha de tarefas com

o conselho escolar….

3.2. «INSTRUÇÕES ESCOLARES», ORGANIZAÇÃO DO TEMPO, DIVISÃO DO TRABALHO

DOS PROFESSORES, PRÁTICAS LETIVAS E ENSINO INTUITIVO

A partir de Setembro de 1866, o estabelecimento da nova ordenação funda-se em

larga medida num documento elaborado por Simões Raposo e especificamente dirigido a

docentes e alunos – as «Instruções Escolares». Foi aliás com base nesse normativo, na

parte respeitante aos professores, que ilustrei, no Documento I, a representação do cargo

de provisor dos estudos. Cumpre agora olhar com outro cuidado essa peça discursiva,

porventura a mais estruturante da intervenção reformadora de Simões Raposo.

Para além dos aspetos já nossos conhecidos, destaco em primeiro lugar a

preocupação com a eficácia das aulas, manifesta na seguinte observância:

13

Deverão [os professores] manter a ordem nas suas aulas, fazendo com que os alunos entrem,

estejam, e saiam com sossego, a fim de obter deles a atenção precisa para que as lições

sejam compreendidas e aproveitadas31

.

Ora, a ideia de as lições serem compreendidas está desde logo vinculada à finalidade

maior de o ensino ser «real e não aparatoso», numa instituição em que, como se enfatiza

no mesmo texto, a maior parte dos alunos se direcionava às artes e ofícios. «Mais praticar

que definir – mais compreender que decorar» é a expressão adotada por Simões Raposo32

para elucidar tal pensamento, colocando de resto a intuição e uma das aplicações do

método intuitivo – as «lições de coisas» – na base do ensino. Mas esse é um assunto a

analisar com algum pormenor mais adiante.

Entretanto, e na linha ainda da citada observância, tem agora de dizer-se que se

encontrava vedada aos professores a possibilidade de utilizarem o tempo destinado à

prática letiva em «escrituração das aulas»33, admitindo-se excecionalmente um período de

cinco a dez minutos para anotações. Ambos compreensíveis, o princípio e a exceção, se

pensarmos na quantidade de informação que os docentes tinham de coligir para

preencherem os mapas mensalmente exigidos pelo provisor dos estudos. O documento

seguinte situa por certo essa ação.

Documento III – Mapa mensal das lições (boas – sofríveis – más), faltas e castigos de cada aluno.

Fonte: RAPOSO (1869).

31

RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 28. 32

Idem, Ibidem, pp. 28-29. 33

Idem, Ibidem, p. 28.

NUMEROS

LIÇÕES

CASTIGOS

FALTAS

Total

liquido

de

Bons

Pontos

OBSERVAÇÕES

de or-

dem

de matricula

Boas

Total

Soffríveis

Total

Más

Total

Moraes

Corpo- raes

Total

Por doen-

ça

Por gym-

nastica

Total

TOTAES GERAES

14

Um outro comentário que quero aqui deixar acerca das «Instruções Escolares» de

1866 prende-se com o papel do exame na nova organização. A centralidade que o mesmo

assume decorre do facto de permitir constituir agrupamentos de alunos em função do nível

de conhecimentos – a essência da escola graduada. Afirma-se categoricamente no texto

que «nenhum aluno poderá passar a frequentar outra cadeira, sem que nos exames tenha

dado provas de que satisfez ao programa da cadeira que frequentava»34.

Importa, no entanto, explicitar o tipo e a periodicidade dos exames: trimestrais de

classificação, para avaliar os progressos de cada aluno e decidir da passagem à cadeira

imediata; final, já se deixa ver, no término do ano letivo, com o duplo objetivo de atribuir

prémio/louvor e de possibilitar, da mesma forma, a passagem à próxima cadeira.

Devo ainda reportar-me aos exames de classificação realizados aquando do ingresso

dos órfãos no instituto (o mesmo é dizer de admissão). Em bom rigor histórico iniciam-se no

ano de 1862, antes portanto da chegada de Simões Raposo à instituição, mantendo

sensivelmente idêntico figurino a julgar pela vigência do formulário adotado nesse início da

década de 1860, século XX adentro35.

Convém agora referir que a classificação dos alunos de três em três meses encerra o

pressuposto de controlar continuamente a aprendizagem e evitar a repetência. É, aliás,

nessa perspetiva, da resolução de um problema criado pela não acomodação das práticas

educativas aos casos particulares, que se deve entender a racionalidade do exame regular.

Explico: a repetência, a acontecer de facto, não implica que o aluno permaneça

necessariamente muito tempo na mesma cadeira ou grau – em boa verdade, trimestre a

trimestre abre-se uma nova oportunidade de progressão. Mas significa isso também admitir,

já se vê, a possibilidade de percursos escolares extremamente céleres, algo que em meu

entender nos aproxima (e regressarei a esta ideia) do próprio fundamento de os

professores se especializarem por graus com vista à eficácia educativa.

Documento IV – Datas do exame de admissão e dos exames de passagem do aluno José Marques, admitido na Casa Pia de Lisboa em 19 de Fevereiro de 1872.

Fonte: AHCPL, Registo dos Alunos, 486 a 633, n.º 4, 1869-1872.

34

Idem, Ibidem, p. 29. 35

Cf., no AHCPL, a série admissões de alunos.

CADEIRA ANO MÊS DIA

1.ª cadeira

2.ª cadeira

3.ª cadeira 1872 Fevereiro 19

4.ª cadeira 1872 Abril 29

5.ª cadeira 1872 Agosto 1

6.ª cadeira 1873 Fevereiro 6

15

Começo agora a centrar-me na questão do tempo escolar, realçando desde logo uma

mudança intrínseca à nova organização: a substituição do dia pela semana como unidade

temporal para a distribuição do trabalho escolar36. Trata-se de um passo decisivo, e no

essencial por permitir o princípio da graduação, o mesmo é dizer, a ordem cíclico-

concêntrica das matérias (disciplinas), ministradas pois ao longo dos vários graus com

aprofundamentos sucessivos. Entre outros aspetos, o próximo documento elucida essa

articulação.

Documento V – Número de lições em cada disciplina e total semanal por cadeira.

Fonte: RAPOSO (1869).

Nota: As «lições educativas» correspondem às «lições de coisas».

Ora, a ideia de o trabalho escolar ser regulado nos seus máximos semanais traz

também consigo a pontual definição de cada um dos dias letivos (logo, a sua

diferenciação). No fundo, o que se sente é a necessidade de elaborar horários diários,

tarefa especialmente visada pelo provisor dos estudos.

36

VIÑAO, Antonio: «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit.

Cadei-ras

Religi-ão

Leitura Grammatica

Cally- gra- phia

Arithmetica e systema metrico

Historia e geographia

Desenho Principios de

Gym- nas- tica

Total

por

sema-

na So

letr

ad

a

Corr

en

te e

exp

lica

da

Art

ística

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His

tori

a n

atu

ral

Me

ca

nic

a

Eco

no

mia

e e

scri

ptu

raçã

o

Li- ções

edu- cati- vas

1.ª 2 5 1 0 3 0 0 0 2 3 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 5 25

2.ª 2 2 4 0 2 0 0 0 4 2 3 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 4 25

3.ª 2 0 4 0 2 2 2 1 4 2 4 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 4 30

4.ª 1 0 4 1 1 2 2 2 3 1 3 1 2 0 2 0 0 0 0 0 0 2 3 30

5.ª 1 0 3 2 0 2 2 2 3 1 3 2 2 0 3 0 0 0 0 0 0 2 2 30

6.ª 1 0 1 2 0 1 1 2 2 0 2 2 0 1 0 4 2 2 1 1 2 1 2 30

Totaes em cada disciplina

9 7 17 5 8 7 7 7 18 9 17 6 4 1 5 4 2 2 1 1 2 11 20 170

16

Documento VI – Horário da primeira cadeira (quinta-feira).

Horas

Classes

Disciplinas

Regência

8 ½ - 9 3/4

1.ª 2.ª 3.ª

- Leitura em grupos nas tabelas pelos três processos do Método Por- tuguês [de Castilho]. Valores das letras, correção da pronúncia. - Cálculo mental e escrito formação de números na ordem ascendente e descendente progressivamente. - Leitura rítmica e corrente. Explicações – substâncias materiais etc. Intuição direta (vista-ouvido-tato).

Professor e Monitores

10-11

1.ª 2.ª 3.ª

- Escrita nos papéis-vidro e nas ardósias das letras e palavras já ex- plicadas. - Leitura por sílabas e palavras. Explicações, coisas, partes, qualida- des quanto à forma e à cor. - Somar e diminuir praticamente. Conhecimento intuitivo do metro, li- tro, quilograma, decímetro, decilitro, etc.

1 ½ - 3

1.ª 2.ª 3.ª

- Leitura em grupos nas tabelas pelos três processos do Método Por- tuguês. Valores das letras, correção da pronúncia. - Cópia nas ardósias e palavras escritas em exemplares ou no quadro preto e já explicadas. - Leitura rítmica e corrente. Tons e pausas; (educação dos órgãos do ouvido e da voz).

3 ¼-4

1.ª 2.ª 3.ª

- Cálculo intuitivo no contador etc. e mental na ordem ascendente e descendente a 3 e 3, a 5 e 5, a 6 e 6 etc., etc. - Leitura em grupos nas tabelas por sílabas e palavras de uma lição já explicada pelo professor. - Escrita nos cadernos, calcar exemplares, ou imitar palavras escritas no quadro preto.

Fonte: RAPOSO (1869).

Interessa notar que o ensino diário – ministrado em dois períodos distintos, apesar da

variação do número de horas de cada um consoante as cadeiras (2 h e 15 m, na 1.ª; 2 h e

45 m, da 2.ª à 5.ª; 1 h e 45 m, na 6.ª) – se inscreve num quotidiano muito longo e

ritualizado, o do internato, com início pelas cinco e meia da manhã. Este aspeto é

importante para a inteligibilidade do Documento VI, no sentido em que acentua uma

conceção de tempo escolar centrada na maximização do rendimento dos alunos; indicia-o a

elevada carga horária semanal, os intervalos reduzidos entre lições (uns estritos quinze

minutos), o próprio facto destas poderem prolongar-se por uma hora e meia…, não sendo

sensível no discurso pedagógico, e impõe-se ainda considerar a ausência de férias (para

alunos e professores), o tópico da fadiga escolar.

Poderia enfatizar esta ideia lembrando, por exemplo, a impossibilidade de os

professores utilizarem o tempo destinado à prática letiva em «escrituração das aulas», à

exceção, como vimos, de um período máximo de dez minutos para anotações relacionadas

com o comportamento, faltas e aprendizagem dos alunos (cf. Documento III), ao que

acresce a ausência de «rituais litúrgicos», isto é, as orações de entrada e de saída da sala

de aula, prática vulgarmente seguida nas escolas elementares desse período histórico.

17

Como fez notar Marcelo Caruso, o que se instala é um «principio positivo de

utilización del tiempo en función de una mayor productividad y utilidad»37. E é nesse sentido

que a «construção do tempo escolar está dependente da correspondente conquista de um

espaço próprio para as atividades escolares»38.

Julgo chegado o momento de abordar o tópico da divisão do trabalho dos docentes,

sendo que a este respeito indiciei atrás uma relação entre a especialização dos professores

por graus e a eficácia educativa, cabendo agora explorá-la na sua complexidade. Antes

porém de o fazer no que respeita à Casa Pia de Lisboa, creio muito importante dar ao leitor

uma imagem abrangente das alternativas e possibilidades em jogo relativamente a esta

matéria, passando o problema, com o advento da escola graduada no século XIX, por saber

como se deveriam distribuir os vários professores pelas classes.

No caso espanhol, por exemplo, um investigador como Antonio Viñao39 identifica no

debate pedagógico dos primeiros anos de Novecentos uma divergência em redor de duas

grandes opções: a rotação de classes, por um lado, em que o professor acompanha os

mesmos alunos ao longo de todas as secções ou graus da escola; por outro, a

especialização em uma secção ou grau. Viñao40 refere ainda uma terceira hipótese, muito

raramente defendida, no entanto: a especialização por matéria ou área de conhecimentos.

É interessante perceber os argumentos expendidos pelos partidários de cada uma

das principais fações. Para os defensores da rotação, afigurava-se decisivo que a ação do

professor sobre o aluno se exercesse de forma contínua durante o percurso escolar, o

mesmo é dizer, que existisse «unidade diretiva», garantindo assim maior «mutualidad de

afectos, relaciones, conocimientos» entre eles41. Em causa estava a realização perfeita da

«función educativa de la Escuela»42.

A essa conceção, nota Vinão, «etérea, ambiental, espiritual, emocional o afectiva»43,

opunha-se uma outra mais racional e científica, fundada na especialização. E, desta parte,

as teses adiantadas valorizavam a ideia de confronto e variedade emergente do contacto

dos alunos com diversos professores, logo diferentes maneiras de ensinar…, não obstante

o fundamento maior da continuidade do professor à frente de um grau ser, em última

instância, o da própria escola graduada: a eficácia educativa. A grande questão aqui,

37

CARUSO, Marcelo: La biopolítica en las aulas.., op. cit., p. 38. 38

CORREIA, António Carlos: Os sentidos dos ponteiros do relógio. Representações do tempo na construção simbólica da organização escolar portuguesa (1772-1950), Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova (tese de mestrado), 1996, p. 55. 39

VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica…, op. cit. e «La Renovación de la Organización Escolar: la escuela graduada»…, op. cit. 40

Idem, Ibidem. 41

Citado em VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica..., op. cit., p. 75. 42

Idem, Ibidem, p. 75. 43

VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica..., op. cit., p. 75.

18

adivinha-se de alguma maneira, é o domínio (das matérias) que o docente adquire por se

especializar num determinado grau.

Se deslocarmos agora a nossa atenção para o cenário educativo da Casa Pia de

Lisboa, percebemos que a opção inicial de especializar os professores por graus se afirma

sem qualquer contestação (não se vislumbra mesmo alternativa no discurso pedagógico)

até ao início da década de 1890, momento em que se questiona já a eficácia do modelo

organizativo definido nos anos de 186044.

Persuado-me que a especialização dos professores está diretamente associada ao

pressuposto de obter maior eficiência no ensino. Trata-se, no caso da Casa Pia de Lisboa,

de uma ideia bem interpretada por Simões Raposo. De facto, quando em nome da

racionalidade do ensino assinala a importância de um corpo docente estável, a

«continuação dos mesmos professores»45, não está mais, embora subliminarmente, do que

a dar crédito ao princípio da especialização. Tudo se orienta, aliás, e a ação pedagógica do

provisor dos estudos demonstra-o claramente (recordem-se as «Instruções Escolares»,

confira ainda o leitor o Documento IV), para que, em cada grau ou cadeira, os alunos

permaneçam apenas o tempo indispensável. E é neste particular que se assume como

decisiva a especialização, mormente pelo domínio das matérias que o professor acaba por

ter. A este respeito, o melhor exemplo que se pode dar – Simões Raposo refere-o de resto

– é o do professor Domingos Coelho Ribeiro, que durante mais de uma década lecionou na

Casa Pia de Lisboa a 6.ª cadeira46.

Tempo agora para lançar um olhar sobre as práticas letivas e tentar, no fundo,

perceber o que se passava na sala de aula nesses longínquos anos de 1860, algo passível

de ser perspetivado a partir de uma peça discursiva chave na nova organização e já aqui

referenciada – o diário das aulas.

44

É útil referir que Simões Raposo deixa a Casa de Pia de Lisboa em 1885, passando a exercer diversos cargos, entre eles, o de inspetor escolar. 45

RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 21. 46

O Ex-Director da Casa Pia de Lisboa…, op. cit.

19

Documento VII – Diário da 3.ª cadeira, 1866-1867, registo da 13.ª aula do ano letivo, período da

manhã.

1.ª classe 2.ª classe 3.ª classe

Fonte: AHCPL, Diário das Aulas da 3.ª Cadeira, 1866-1867.

Há, obviamente, várias entradas possíveis para analisar o Documento VII, embora em

meu entender seja desde logo importante notar a impossibilidade de operacionalizar o

«ensino de classe» sem o auxílio de monitores, selecionados de resto por entre «os alunos

mais adiantados da 4.ª, 5.ª e 6.ª cadeiras»47. E, porventura, tal ideia afasta-nos de um dos

argumentos teóricos veiculados pelos defensores da escola graduada, ou seja, segundo

relata Viñao, o de que só essa modalidade organizativa «podía asegurar la acción directa,

sin intermediarios, del maestro sobre el niño»48. Mas é preciso ver com mais detalhe esta

questão para se verificar que a convergência de um professor, uma sala, uma classe – de

facto, a primeira imagem da escola moderna – acontece apenas nas cadeiras superiores

(4.ª, 5.ª e 6.ª), e em determinados momentos da aula.

Por via de regra, o professor leciona alternada e sucessivamente cada uma das três

divisões (a chamada «lição direta»), permanecendo as demais, nesse período de tempo,

sob orientação de um monitor, que sobretudo repete e aplica na prática as teorias já

explicadas pelo docente.

Gostaria de ilustrar agora a convergência de que há pouco falei – um professor, uma

sala, uma classe – e que a partir do ocaso de Oitocentos não mais deixará a «paisagem

pedagógica».

47

RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 31. 48

VIÑAO, Antonio: Innovación Pedagógica y Racionalidad Científica…, op. cit., p. 79.

1.ª hora Professor e monitor Imitação de traslados.

2.ª hora

Monitor

Exercícios práticos nas ardósias sobre a conta de divisão por um só algarismo.

3.ª hora

Monitor Exercícios sobre a tabuada da multiplicação e divisão.

1.ª hora

Professor e monitor Imitação de traslados.

2.ª hora

Professor Explicaram-se os termos espetáculo, repelir, confiança, amor, pregar.

3.ª hora

Monitor Cópia de um trecho de história sagrada.

1.ª hora

Professor e monitor

Imitação de traslados.

2.ª hora

Monitor Exercícios práticos nas ardósias sobre ortografia. Cópia de um trecho de história sagrada.

3.ª hora

Professor Explicaram-se os termos bondade, serenidade, tempes- tuoso, autoridade, penitencia.

1.ª M.

Um homem deve

fazer no amo de

1960 80 anos, em

que época fará 20

anos?

Exercícios sobre

a conta da

divisão nas

ardósias.

Explicação do

mesmo objecto

no quadro preto

aos que ainda

não sabem

dividir [quadro

preto a criar

espaço autónomo

de explicação]

Leitura, exercícios sobre os tons e pausas

3.ª

L.D. branco papel parede livros cortina giz

Várias

circunstâncias me

obrigaram a formar na minha

aula uma classe à

parte para os incorrigíveis. Em

virtude do que

deixo dito, veio

mais um decurião

para assistir a todos

os exercícios daquela classe. Em

estabelecimentos

desta ordem onde não há uma cadeira

para os

incorrigíveis mal se pode conseguir a

disciplina. É este o

único recurso que a pedagogia nos

apresenta para

conseguir o fim em

questão.

20

Documento VIII – Diário da 5.ª cadeira, 18 de Outubro de 1866, período da manhã.

1.ª classe 2.ª classe 3.ª classe

Fonte: AHCPL, Diário das Aulas da 5.ª Cadeira, 1866-1867.

Há de facto uma nova realidade que começa a ganhar corpo nesse momento histórico

– a organização global da aula –, intimamente associada, creio não restarem dúvidas, a

processos de homogeneização e a uma visão uniforme e invariável da população escolar.

Retomo a expressão que Simões Raposo adotou como lema: «mais praticar que

definir – mais compreender que decorar»49, muito justamente para me referir a um aspeto

que simbolizou o movimento de renovação pedagógica ocorrido no século XIX – a base

percetiva do ensino na sua concretização das «lições de coisas». E nada melhor para

enquadrar o problema do que recorrer à seguinte passagem do Nouveau Dictionnaire de

Pédagogie et d’Instruction Primaire:

Écrire l’histoire des développements de la leçon de choses dans l’enseignement primaire de ces

divers pays, ce serait écrire l’histoire même de l’enseignement primaire; car, ainsi qu’il fallait s’y

attendre, la leçon de choses représentant le nouvel ordre d’études, le procédé caractéristique

de la méthode moderne dans l’instruction populaire50

.

O que julgo muito importante afirmar desde logo é que a progressiva adoção do

método intuitivo a partir da década de 1860 significa, em larga medida, o reconhecimento

49

RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., pp. 28-29. 50

BUISSON, F.: «Leçons de choses», en BUISSON, F. (dir.): Nouveau Dictionnaire de Pédagogie et d’Instruction Primaire, Paris, Librairie Hachette, 1911, p. 990.

8 ½ - 10

Lição direta – Classes reunidas. Sistema métrico decimal. Medidas lineares; o que é o metro? De onde deriva? Seus múltiplos; suas correspondências com as medidas antigas; reduções das medidas antigas a modernas e das modernas a antigas; aplicação no quadro preto.

10 ¼ - 11 ½ Lição direta – Classes reunidas. História de Portugal: D. Sancho I, guerra contra os mouros; tomada de Silves ajudada pelos cruzados; guerra contra D. Afonso IX de Leão...

8 ½ - 10

Idem

10 ¼ - 11 ½

Idem

8 ½ - 10

Idem

10 ¼ - 11 ½

Idem

21

dos processos de cognição infantil. E é também por essa via (a da perceção como base do

ensino) que a «escola» começa paulatinamente a descobrir a singularidade que existe em

cada aluno, no fundo a entrelaçar os princípios da homogeneização com os da

individualização. Mas na década de 1860 é a centralidade da memorização no processo de

ensino que efetivamente se contesta. Contrapõe-se, tradu-lo muito bem a divisa adotada

por Simões Raposo, o valor da compreensão (em rigor, veremos, uma forma de trazer

ordem ao mundo das representações infantis, se preferirmos, de integrar pedagogicamente

o processo de crescimento da infância).

Não creio, no entanto, ser possível avançar neste ponto sem antes fixar o sentido da

expressão «lições de coisas», algo dúbia, tem de dizer-se, pelas muitas e diversas aceções

que assume, embora correspondendo a três ideias nucleares (com evidente ligação entre

si):

1.º d’abord la leçon de choses consistant à mettre un objet concret sous les yeux de l’élève à

titre d’exemple pour lui faire acquérir l’intelligence d’une idée abstraite: ainsi quand on lui

présente quatre pommes, quatre noix, quatre livres, quatre personnes, etc., pour éveiller en lui

la notion du nombre quatre, etc.; 2.º la leçon de choses consistant à lui faire voir, observer,

toucher, discerner les qualités de certains objets par le moyen des cinq sens: c’est à

proprement parler l’éducation des sens; 3.º la leçon des choses consistant à lui faire acquérir la

connaissance d’objets, de faits, de réalités fournies soit par la nature, soit par l’industrie, et dont

il ignorait jusqu’au nom: c’est une double leçon tendant à faire apprendre à la fois une chose et

un mot, un fait et son expression, un phénomène et le terme qui le désigne, et par extension

toute une classe de phénomènes et toute une classe de mots qui les expriment51

.

E ainda que no texto da Didática Magna Coménio enuncie já os princípios do ensino

baseado na perceção – «que cada coisa seja apresentada àquele dos sentidos a que

convém, ou seja, as coisas visíveis à vista, as audíveis ao ouvido, as odorosas ao olfato, as

saborosas ao gosto, as tangíveis ao tato»52 –, somente em finais de Setecentos, na

Alemanha, pela mão de Basedow, Campe e essencialmente de Pestalozzi, a intuição é

valorizada como fundamento de todo o conhecimento53, algo que se institucionaliza sem

precedentes no último terço do século XIX54.

Importa agora, com este tipo de enquadramento, perceber por que ordem de razões o

ensino percetivo obteve na Casa Pia de Lisboa um lugar autónomo no currículo desde 1866

51

Idem, Ibidem, p. 990. 52 COMÉNIO, João Amós: Didática Magna, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996

[1657 a 1.ª edição], p. 307. 53

SOUZA, Rosa Fátima: Templos de civilização…, op. cit. 54

CARUSO, Marcelo: La biopolítica en las aulas…, op. cit.

22

(cf. Documento V), emergindo a explicação de tal facto do próprio pensamento pedagógico

de Simões Raposo:

A inteligência ou entendimento manifesta-se debaixo de uma série de operações que, no

apurar da verdade, se dão na alma, tais são: perceção, atenção, juízo, raciocínio, memória,

imaginação; se a inteligência se manifesta pelo conjunto destes poderes secundários, é claro

que devem estes ser desenvolvidos e aperfeiçoados também no seu conjunto […]

Desprezar umas [faculdades] para só cuidar de outras, sobrecarregar a memória das crianças

com futilidades ou com abstrações sem aplicação imediata nos usos da vida e de reconhecida

utilidade, é desmerecer, é menoscabar o título respeitoso e nobre de professor!55

Não obstante, é o tratamento da faculdade da atenção que recebe a primazia durante

os anos de 1860, querendo isso significar que a abordagem percetiva do ensino nas «lições

de coisas», materializada na observação analítica de certos objetos, visará em primeira

instância auxiliar os alunos a dominar a sua atenção, preparando-os para a aprendizagem

latu senso. Marcelo Caruso já o havia notado no caso das escolas elementares do Reino da

Baviera56. Subjacente está, na verdade, uma estratégia ordenadora intuída, de resto, num

trecho anteriormente citado das «Instruções Escolares» de 1866, no qual, lembro, se

associava a ideia de «ordem» na sala de aula à possibilidade de os alunos estarem atentos

e compreenderem as lições.

Isto suposto, passemos a comentar alguns exemplos de «lições educativas» ou

«lições de coisas».

55

RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., pp. 12-13. 56

CARUSO, Marcelo: La biopolítica en las aulas…, op. cit. Segundo o autor, no Reino da Baviera as «lições de coisas» têm lugar autónomo no currículo a partir de 1869, algo que evidencia bem a modernidade pedagógica da experiência casapiana.

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Documento IX – Diário da 2.ª cadeira, 16 de Março de 1867.

1.ª classe 2.ª classe 3.ª classe

Fonte: RAPOSO (1869).

Constata-se, pelo Documento IX, ser o procedimento socrático, isto é, a interrogação

constante, o fio condutor das «lições de coisas», muito vinculadas, acresce dizer, à

descrição isolada das características de determinados objetos/seres vivos, pouco reflexivas

portanto, e fundamentalmente baseadas na perceção visual.

Entende, no entanto, Simões Raposo que as «lições de coisas» devem superar a

simples descrição e, não menos importante, fazer eco da experiência dos alunos57.

Sem embargo, a vontade de Simões Raposo em reconfigurar as «lições de coisas»

não aponta para o reconhecimento da atividade espontânea da criança, nem tão-pouco

atribui qualquer significado ao fenómeno lúdico no desenvolvimento infantil (decerto,

pensará o leitor, pouco expectável num regime de internato). E se dúvidas existissem a

esse respeito, as próximas palavras dissipá-las-iam por completo: «nós já dissemos que

pertencíamos à escola dos que preferem o útil ao agradável»58.

Mas a perspetiva ordenadora das «lições de coisas», e estou novamente de regresso

ao cenário educativo da Casa Pia de Lisboa, supera por vezes o simples procedimento

57

Recorde o leitor a observação de Simões Raposo à aula do professor António Sérvulo da Mata (6/11/1866), citada em páginas anteriores. 58

RAPOSO, José António Simões: Relatorio das Aulas da Real Casa Pia de Lisboa…, op. cit., p. 140.

1.º exercício

Cálculo mental e escrito nas ardósias. Se duas laranjas custam 30 réis quanto deve custar 1? – 15 réis Quanto 3? – 45 “ Quanto 6? – 90 “ Quanto 4? – 60 “ Quanto 8? – 120 “ Quanto 5? – 75 “ Quanto 10? – 150 “ Quanto 7? – 105 “ Quanto 14? – 210 “ … Quanto 58? – 870 “

1.º exercício Cópia para os cadernos das seguintes frases explicadas na lição educativa antecedente e escritas pelo professor no quadro preto: O pombo tem asas. O pombo tem penas. O pombo tem rabo. O pombo tem cabeça. O pombo tem olhos. O pombo tem pernas. O pombo tem unhas. O pombo é bonito. O pombo é manso. O pombo é voador. nasce, cresce, vive, O pombo sente, voa, arrulha envelhece, morre.

1.º exercício Lição educativa. Apresentei aos alunos a paisagem n.º 3. Preparados os alunos com as suas ardósias fui apontando para a paisagem e interrogando socraticamente sobre o conteúdo da paisagem; e da análise que fizemos resultou escrever-se no quadro preto e nas ardósias o seguinte: A paisagem tem uma casa. A paisagem tem um jardim. A paisagem tem um rio. A paisagem tem um prado. A paisagem tem um rebanho. A paisagem tem um pastor. A paisagem tem um cão. A paisagem tem um bosque. Estas frases deram lugar a uma conversação que durou toda a hora da lição.

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analítico de observação, assinalado que foi no Documento IX. Em contraponto, veja-se

como o professor José Jorge da Silva Teixeira, através de processos intuitivos, procura

levar os seus alunos a compreender relações de lugar.

Documento X – Diário da 3.ª cadeira, 16 de Março de 1867.

3.ª classe

Fonte: RAPOSO (1869).

Nota: Neste caso é evidente a tentativa de um trabalho compreensivo, obedecendo ao princípio, teorizado de resto por Simões Raposo, de que a «observação e a reflexão [constituíam] o único meio de adquirir ideias claras e distintas»

59.

Por outro lado, fácil é perceber que a adoção do método intuitivo reduz em muito

(para não dizer em tudo) o papel do compêndio. Com efeito, Simões Raposo chega

mesmo, como confessa, a retirar das «mãos das crianças todas as gramáticas, todos os

compêndios», aconselhando então os professores a utilizarem a «análise presencial direta,

figurativa ou analógica, isto é, mostrando, desenhando ou descrevendo o objeto», no

pressuposto de que «para definir bem, ou para compreender bem uma definição, é

necessariamente preciso que conheçamos tudo o que temos a definir»60.

59

Idem, Ibidem, p. 121. 60

Idem, Ibidem, p. 18.

1.º exercício Exercícios de linguagem e de inteligência. Processo intuitivo e forma socrática. Relações de lugar Tendo na mão um livro principiámos por analisá-lo do que resultou o seguinte: O livro tem capas, O livro tem folhas, O livro está escrito, O livro é útil, O livro é bom etc. Depois, colocado sucessivamente o livro em diversos lugares, fui encaminhando o espírito das crianças a conhecer as relações de lugar em que um objeto se podia encontrar. Esta digressão dos sentidos e da inteligência deu em resultado conhecerem-se intuitivamente as seguintes relações: O livro está em cima da mesa, O livro está debaixo da mesa, O livro está ao pé da mesa, O livro está perto da mesa, O livro está ao pé da parede, O livro está perto da parede, O livro está longe da mesa, O livro está dentro da aula, O livro está no chão, O livro está na mão. Concluído este exercício, fez-se uma leitura geral e em recapitulação se concluiu que as frases em cima da mesa, debaixo da mesa, perto da parede, no chão, etc. etc. significavam as relações de lugar em que o livro podia estar.

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A modernidade do pensamento pedagógico de Simões Raposo manifesta-se na

verdade em múltiplos aspetos: admitindo a «intuição presencial direta» como o melhor

processo de ensinar a disciplina de corografia, o mesmo é dizer, viajando, algo que

prefigura a ideia dos passeios ao ar livre, mais tarde considerados uma importante forma de

instrução; no que concerne ao estudo da história, recusando sobrecarregar a «memória

[dos alunos] de nomes e factos sem consequências nem filosofia»61; na referência do

ensino da aritmética, fomentando atividades baseadas em situações concretas, nas quais o

material didático constitui importante recurso.

Está assim traçado o quadro geral do modelo de organização escolar estabelecido na

Casa Pia de Lisboa no ano letivo de 1866/1867, amplamente divulgado, tem agora de dizer-

se, nas Exposições Universais de Viena (1873) e de Paris (1878).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Terminada a minha exposição, frisaria, em jeito de síntese, que a série de reformas

do ensino introduzidas no contexto institucional da Casa Pia a partir do ano letivo de 1866-

1867, que tivemos ocasião de acompanhar, deve entender-se como parte de uma nova

forma de conceber o trabalho escolar (num sentido mais lato, se quisermos, de governar o

próprio sistema de ensino). Não deixa de ser particularmente interessante que a tentativa

de racionalização da organização do ensino e do trabalho pedagógico, obviamente

marcada pela ideia de racionalidade científica, e nesse sentido associada à ascensão de

um pessoal pedagógico especializado, venha a acontecer num regime de internato. Crédito,

pois, à tese de que a «pedagogização do espaço e do tempo […] é indissociável da

institucionalização do espírito de internato»62. Em causa, como se disse, a integração

pedagógica do crescimento da infância, no quadro de um projeto de educação integral.

Uma última palavra para sublinhar que a experimentação da escola graduada, na

Casa Pia de Lisboa, constitui um marco educativo profundamente inovador – era este o

modelo de organização escolar a imitar (e que se impõe, aliás, como o único possível).

61

Idem, Ibidem, p. 172. 62

Ó, Jorge Ramos do: O governo de si mesmo…, op. cit., p. 198.