África - Bahia nas fotorreportagens de Verger, Freyre e Tavares em O Cruzeiro (1946-1960)

129
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO– MESTRADO EM HISTÓRIA Karine Costa Oliveira África - Bahia nas fotorreportagens de Verger, Freyre e Tavares em O Cruzeiro (1946 – 1960) Feira de Santana 2013

Transcript of África - Bahia nas fotorreportagens de Verger, Freyre e Tavares em O Cruzeiro (1946-1960)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO– MESTRADO EM HISTÓRIA

Karine Costa Oliveira

África - Bahia nas fotorreportagens de Verger, Freyre e Tavares em O Cruzeiro (1946 – 1960)

Feira de Santana 2013

Karine Costa Oliveira

África - Bahia nas fotorreportagens de Verger, Freyre e Tavares em O Cruzeiro (1946 – 1960)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação-Mestrado em História como pré-requisito para obtenção do grau de Mestre em História. Universidade Estadual de Feira de Santana - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

Orientadora: Drª Ione Celeste de Jesus Sousa

Feira de Santana 2013

FOLHA DE APROVAÇÃO

A banca examinadora considera esta dissertação adequada como requisito para a obtenção do título de Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana.

Feira de Santana, ________________________

______________________________________________ Profª. Drª Angela Lühning

Universidade Federal da Bahia - UFBA

______________________________________________ Profº. Drº Rinaldo César Nascimento Leite

Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS

______________________________________________ Profª Drª Ione Celeste de Jesus Sousa

Orientadora Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS

3

Ficha Catalográfica – Biblioteca Central Julieta Carteado

Oliveira, Karine Costa O47a África – Bahia nas fotorreportagens de Verger, Freyre e Tavares em

O Cruzeiro (1946-1960) / Karine Costa Oliveira. – Feira de Santana, 2013.

128 f. : il.

Orientadora: Ione Celeste de Jesus Sousa. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Programa de Pós-Graduação em História, 2013.

1. África - Representações. 2. Bahia - Representações. 3. O Cruzeiro - Crítica e interpretação. I. Sousa, Ione Celeste de Jesus, orient. II. Universidade Estadual de Feira de Santana. III. Título.

CDU: 96:39

4

AGRADECIMENTOS

Como dizem uma pesquisa nunca termina. A gente para e escreve! Agradeço

agora aos que colaboraram para que eu chegasse até aqui!

Para começar, agradeço ao Programa de Pós-Graduação, Mestrado em História,

aos professores e professoras que acreditaram no meu projeto que hoje se materializa

nesta dissertação.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (capes) pela

bolsa de pesquisa.

Agradeço, especialmente, ao querido professor Juvenal de Carvalho. Grande

incentivador de minha pesquisa, desde o período da graduação, disposto a me ouvir,

aconselhar e apoiar. Muito obrigado pela amizade, por me ajudar nos caminhos

acadêmicos e ter me ensinado a olhar para África!

Minha gratidão à professora e também amiga Ione Sousa. Primeiro, agradeço por

ter me acolhido como orientanda, pelas orientações, pela autonomia nos caminhos da

pesquisa, o que me permitiu amadurecer e crescer, pelos conselhos. Enfim, pelo carinho

e confiança!

À professora Lucilene Reginaldo, pelas sugestões quanto à escrita e por ter me

dado à oportunidade de cumprir o estágio docente na disciplina História da África que

lecionava. Foi um grande aprendizado!

Ao professor Jacques Depelchin, agradeço a honra de ter ouvido suas histórias

fascinantes sobre África, suas experiências, sua sabedoria!

Ao professor Rinaldo Leite, agradeço por sua disponibilidade em ajudar. Pelas

sugestões de leituras, correções pertinentes no texto da qualificação, por me chamar

atenção para a Bahia e a sua relação com a África. E, pela presença como examinador

na banca de defesa.

Ao professor Clóvis Ramaiana, agradeço a atenção, as indicações de leituras

sobre fotografia, a presença e as correções coerentes no exame de qualificação.

À professora Elizete Silva e ao professor Onildo Reis pelo interesse quanto aos

resultados da pesquisa.

5

À professora Angela Lühning pela gentileza e presença como examinadora na

banca de defesa.

Aos funcionários do Museu Casa do Sertão, particularmente, a professora

Cristiana Oliveira, pela delicadeza e profissionalismo sempre que estive pesquisando o

acervo da revista O Cruzeiro.

Agradeço à Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), ao Mestrado em

História, aos professores, funcionários, colegas de turma e de curso, a todas as pessoas

maravilhosas que conheci! Os conhecimentos que compartilhei, pelo amadurecimento

profissional nestes últimos anos e as amizades que fiz!

Aos colegas do Colégio Estadual Luiz Viana Filho, pela compreensão.

À minha colega de turma e amiga de vida Miranice Silva. O que seria de mim

sem nossas “resenhas”? Obrigado por sua amizade de todas as horas, pela força nos

momentos mais difíceis, pelas palavras de apoio e afeto, pelas conversas online, por

tornar a caminhada mais leve!

À minha amiga Ana Paula Lima, obrigado por dividir comigo as angústias da

escrita, eu com minha dissertação e você com sua tese em nossas infinitas conversas ao

telefone, sempre reconfortantes!

Aos meus familiares, pelo cuidado e por tanto amor! Em especial, a minha mãe

Celi, ao meu pai Deval, ao meu irmão Ricardo. Obrigado por estarem sempre ao meu

lado e por me apoiarem nas minhas escolhas! À Débora, Bárbara, Bruno e Romeu pelo

carinho e amizade! As amigas e aos amigos de Nova Itarana e de Feira de Santana pela

torcida!

6

RESUMO Este estudo tem por objetivo analisar imagens e representações difundidas sobre a

África e sobre uma Bahia africana na revista O Cruzeiro. Para tanto, foram selecionados

dois conjuntos de fotorreportagens: a série constituída por fotografias de Pierre Verger e

textos de Gilberto Freyre, intitulada “Acontece que são baianos” e o grupo de

fotorreportagens produzidas na Bahia, mas que fazem referência a um universo

africano, constituídas novamente por fotografias de Pierre Verger e textos de Odorico

Tavares. As balizas temporais entre 1946-1960 fazem referência à entrada de Pierre

Verger na referida revista como fotógrafo e o enfoque que deu a elementos do

continente africano nos seus trabalhos. Tomamos como aporte teórico duas noções: a de

fotografia, segundo Sontag, Kossoy e Mauad; e a tríade da História Cultural

representação, prática, apropriação.

Palavras chave: África; Bahia africana; Pierre Verger; fotorreportagem; O Cruzeiro. ABSTRACT This study aims to analyze images and representation widespread on Africa and on the

African Bahia in the magazine O Cruzeiro. Therefore, we selected two sets of Photo

Reports: Series consists of photographs of Pierre Verger and texts by Gilberto Freyre,

entitled "turns that are Bahia" and the group Photo Reports produced in Bahia, but that

reference a universe African constituted again photographs by Pierre Verger and texts

Odorico Tavares. The temporal boundaries between 1946-1960 refer to the entry of

Pierre Verger in that magazine as a photographer and focus that gave the elements of

the African continent in its work. We take as a theoretical two notions: the shooting,

according to Sontag, Kossoy and Muad, and the triad of Cultural History representation,

practice ownership.

Keywords: Africa, African Bahia; Pierre Verger, photojournalism, O Cruzeiro

7

LISTA DE IMAGENS

Fotografia 1 Primeira capa de O Cruzeiro 10 de novembro de 1928.............................34

Fotografia 2 1º contrato entre a revista O Cruzeiro e o fotógrafo Pierre Verger...........49

Fotografia 3 2º contrato entre a revista O Cruzeiro e o fotógrafo Pierre Verger...........50

Fotografia 4 Acontece que são baianos O Cruzeiro 11/08/ 1951..................................58

Fotografia 5 Acontece que são baianos O Cruzeiro 11/08/ 1951...................................59

Fotografia 6 Acontece que são baianos O Cruzeiro 11/08/ 1951..................................59

Fotografia 7 Acontece que são baianos O Cruzeiro 11/08/ 1951...................................60

Fotografia 8 Acontece que são baianos O Cruzeiro 18/08/1951...................................63

Fotografia 9 Acontece que são baianos O Cruzeiro 18/08/1951....................................64

Fotografia 10 Acontece que são baianos O Cruzeiro 18/08/1951..................................64

Fotografia 11 Acontece que são baianos O Cruzeiro 18/08/1951.................................65

Fotografia 12 Acontece que são baianos O Cruzeiro 25/08/1951................................67

Fotografia 13 Acontece que são baianos O Cruzeiro 25/08/1951................................68

Fotografia 14 Acontece que são baianos O Cruzeiro 25/08/1951................................68

Fotografia 15 Acontece que são baianos O Cruzeiro 01/09/1951...............................71

Fotografia 16 Acontece que são baianos O Cruzeiro 01/09/1951..................................72

Fotografia 17 Acontece que são baianos O Cruzeiro 01/09/1951...............................72

Fotografia 18 Acontece que são baianos O Cruzeiro 01/09/1951..................................73

Fotografia 19 Acontece que são baianos O Cruzeiro 08/09/1951..................................77

Fotografia 20 Acontece que são baianos O Cruzeiro 08/09/1951...............................78

Fotografia 21 Acontece que são baianos O Cruzeiro 08/09/1951...............................78

Fotografia 22 Acontece que são baianos O Cruzeiro 08/09/1951..................................79

Fotografia 23 A Cozinha da Bahia O Cruzeiro 02/12/1950...........................................91

Fotografia 24 A Cozinha da Bahia O Cruzeiro 02/12/1950..........................................92

Fotografia 25 A Cozinha da Bahia O Cruzeiro 02/12/1950...........................................93

Fotografia 26 Cosme e Damião O Cruzeiro 18/11/1950................................................96

8

Fotografia 27 Cosme e Damião O Cruzeiro 18/11/1950...............................................97

Fotografia 28 Cosme e Damião O Cruzeiro 18/11/1950...............................................97

Fotografia 29 Rafael, o pintor O Cruzeiro 06/01/1951.................................................99

Fotografia 30 Rafael, o pintor O Cruzeiro 06/01/1951...............................................100

Fotografia 31 A escultura afro-brasileira na Bahia O Cruzeiro 14/04/1951...............102

Fotografia 32 A escultura afro-brasileira na Bahia O Cruzeiro 14/04/1951...............105

Fotografia 33 A escultura afro-brasileira na Bahia O Cruzeiro 14/04/1951...............106

Fotografia 34 Inflação dos reis africanos O Cruzeiro 29/09/1951.............................109

Fotografia 35 Inflação dos reis africanos O Cruzeiro 29/09/1951..............................110

Fotografia 36 Inflação dos reis africanos O Cruzeiro 29/09/1951..............................111

Fotografia 37 Inflação dos reis africanos O Cruzeiro 29/09/1951..............................112

Fotografia 38 Inflação dos reis africanos O Cruzeiro 29/09/1951..............................113

9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................10

1. CAPÍTULO 1 O Cruzeiro, a fotorreportagem e o fotógrafo Pierre Verger..............29

1.1 A construção de um império: Chatô e o Diários Associados...................................29

1.2 Na constelação dos Diários Associados à estrela maior: O Cruzeiro.......................32

1.3 A revolução da imagem: a fotorreportagem em O Cruzeiro....................................39

1.4 O Esquadrão de Ouro...............................................................................................41

1.5 No Esquadrão de Ouro: o fotógrafo Pierre Verger..................................................45

2.CAPÍTULO 2 Acontece que são baianos: África sob as lentes de Pierre Verger e

textos de Gilberto Freyre................................................................................................55

2.1 Os retornados: Festas populares e Catolicismo no Benin.......................................55

2.2 As heranças materiais e a dinastia do Xaxá.............................................................66

2.3 Áfricas: entre Verger e Freyre..................................................................................81

3. CAPÍTULO 3: A Bahia africana de Pierre Verger e Odorico

Tavares............................................................................................................................84

3.1 Heranças africanas na Bahia de Verger e Tavares....................................................84

3.2 África na Bahia ......................................................................................................114

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................117

5. FONTES.................................................................................................................121

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................123

10

INTRODUÇÃO

No Brasil os estudos sobre interfaces afro-brasileiras vêm se ampliando

depois de uma já consolidada historiografia sobre a presença africana neste país. De

acordo com Alberto da Costa e Silva1 é válido o esforço de tentarmos entender a África,

pois as ligações deste continente ao Brasil ajudariam a explicar-nos, visto que grande

parte de nossos antepassados são originários do mesmo.

Nesta perspectiva, vale ressaltar o pioneirismo de José Honório Rodrigues2. Para

o autor, o Brasil sempre manteve relações estreitas com o continente africano ou com

certas regiões deste. Contudo, na imagem brasileira do continente houve influência das

ideias europeias, mais precisamente, dos portugueses. Estes, desde o século XVI,

disseminaram “[...] a impressão de bestialidade, brutalidade e maldade que tiveram dos

negros” 3 e, consequentemente, da África.

Assim, para além da representação criada em relação às pessoas, criou-se

também uma relacionada ao clima, considerado extremante quente e demais aspectos

geográficos, estereótipos em torno das pessoas e do clima, difundindo- os na Europa e

no Brasil.

A ideia que os brasileiros de outros séculos fizeram da África, ou de partes do

continente, foram as transmitidas pelos próprios escravizados, pelos traficantes, pelos

senhores, por instituições como a Igreja Católica e o Estado. Com a extinção do tráfico,

a África teve sua imagem reduzida a uma terra improdutiva, de onde vinham os

escravizados, gente bárbara, e repleta de animais selvagens.

Anani Dzidzienyo,4 pesquisador ganês, analisou a representação sobre África no

Brasil no artigo A África vista do Brasil: Uma pesquisa sobre o modo pelo qual o

Jornal da Bahia encarou a África de 1958 a 1969, inclusive as relações do Brasil com

1 SILVA, Alberto da Costa e. A História da África e sua importância para o Brasil. In: Um Rio Chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. Ed. UFRJ, 2003 2 RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro Horizonte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961. Coleção Retratos do Brasil: v. 9. 3 Idem, p. 3 4 DZIDZIENYO, Anani. A África vista do Brasil: Uma pesquisa sobre o modo pelo qual o Jornal da Bahia encarou a África de 1958 a 1969, inclusive as relações do Brasil com os países africanos IN: África- Revista do centro de estudos africanos. USP, São Paulo, 1970.p.p. 79-97

11

os países africanos. Neste texto, apresentou notícias sobre como países africanos

procuraram estabelecer relações Brasil - Portugal - África. Escolheu o período de 1958 a

1969, quando aconteceram as lutas de libertação na África. Questionou se a partir destas

independências fomentou-se no Brasil uma nova consciência a respeito daquele

continente. Dzidzienyo elencou as notícias encontradas sobre a África, no referido

jornal, apontando que, a maioria generalizava sobre o mesmo. Percebeu que na maioria

das vezes as notícias eram mal estruturadas, sem explicações maiores ou comentários e

geralmente em linhas curtas.

Valdemir Zamparoni5 em A África e os Estudos Africanos no Brasil: Passado e

Futuro considerou que no Brasil a composição racial formada por negros e mestiços é

algo que chama bastante atenção. Contudo, o interesse em estudos direcionados a

presença de negros e mestiços no Brasil faziam pouca ou mesmo nenhuma referência à

África. O que se configura em uma contradição: “tínhamos negros e até mesmo

africanos, mas nada da África”. Sobre a presença negra no Brasil, nos ambientes de

ensino o autor afirmou que:

[...] estava restrita a algumas lamúrias nas poucas páginas dedicadas à escravatura e a África e os africanos – mas também a Ásia – apareciam não como possuidores de historicidade própria, mas como meros apêndices na história da expansão europeia. Passado esse capítulo da história europeia desapareciam misteriosamente, deixavam de "existir". [...] o Brasil precisava reconhecer de fato que era herdeiro cultural da África, que a construção da identidade passava "pelo conhecimento da própria história, não no sentido de resgatá-la idealisticamente, mas de fazê-la presente como referência Cultural”. Pois bem, qual a referência cultural que temos da África e dos africanos no Brasil? Qual a imagem da África e dos africanos que circulam em nossos meios midiáticos e acadêmicos e que ajudam a formar nossa identidade? A resposta é que o que ainda hoje predomina é a de uma África exótica, terra selvagem, como selvagem seriam os animais e pessoas que nela habitam: miseráveis, desumanos, que se destroem em sucessivas guerras fratricidas, seres irracionais em meio aos quais assolam doenças devastadoras. Enfim, desumana. Em outra vertente o continente é reduzido a uma cidade, nem mesmo um país. O termo África passa, nesses discursos, a servir para referenciar um lugar qualquer exótico e homogêneo. Essas imagens não são aleatórias. 6

Para Zamparoni, estas imagens foram produzidas na Europa ao longo dos

séculos e se encorparam no Brasil. Discursos médicos, por exemplo, geraram produção 5ZAMPARONI, Valdemir. A África e os Estudos Africanos no Brasil: Passado e Futuro. Cienc. Cult. vol.59 nº 2 São Paulo, Apr./June 2007 p.p. 46-49 6 Idem, p. 46

12

de conhecimentos que alimentaram o “racismo científico”. O auge desta discussão no

Brasil foi o período em que a escravidão estava sendo questionada. Confirme o autor,

com o fim do sistema escravista, em 1888, parece ter havido um esquecimento da África

e da presença africana no Brasil que buscava o “embranquecimento” da população com

as levas de imigrantes europeus. Se enquadrar nos “moldes do pensamento europeu”

com as ideias do “positivismo, evolucionismo e darwinismo”.

A abolição em 1888, e a instalação da República no ano seguinte, exigiam repensar a identidade nacional. Qual nação? O que fazer com o ex-escravo, agora tornado ao menos oficialmente cidadão da nova república? A nova identidade nacional se fez visando acentuar a diferença e a superioridade brasileira face aos vizinhos latino-americanos, republicanos sim, mas majoritariamente indígenas. Ao Brasil era preciso buscar o caminho para inserir-se no rol das nações ditas superiores, por definição, brancas.7

Afirma que apesar dos horrores do tráfico, o Brasil estabeleceu com a África

trocas culturais, a criação de laços familiares e simbólicos dos dois lados do Atlântico,

como por exemplo, as comunidades “brasileiras” na África Ocidental. Mas, estes laços e

histórias foram deixados de lado ao longo de décadas no Brasil. No ano de 1922 com a

“Semana de Arte Moderna” surgiram discussões para repensar a noção de brasilidade.

Nesse contexto foi preciso “recolocar os negros no cenário” nacional. Outro momento

foi o “Congresso Afro-Brasileiro” realizado em Recife, em 1934, e depois em Salvador,

em 1937 que propuseram, a partir do âmbito acadêmico, repensar o “lugar do negro na

identidade brasileira” destaque para “Gilberto Freyre, Edson Carneiro. No entanto, a

África, nestes eventos não era o objeto de estudo.

A África só re-emergiu no Brasil, numa perspectiva das relações internacionais – e anticolonialista – com José Honório Rodrigues em obra que coincidiu com o desencadear da luta armada de libertação nacional na Guiné-Bissau e Angola e com a chamada política externa independente levada a cabo pelo governo Jânio Quadros. É desse período a criação de três centros de estudos africanos existentes ainda hoje no Brasil. Em 1959 foi fundado o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) na Universidade Federal da Bahia; em 1961 o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos (IBEAA) ligado à presidência da República, fechado com o golpe militar; em 1963, o Centro de Estudos e Cultura Africana, junto à Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, hoje denominado Centro de Estudos Africanos

7 Ibidem, p.46,47

13

(CEA) e, em 1973, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) do Rio de Janeiro, uma espécie de herdeiro do IBEAA.8

E, novamente o Brasil se afastou da África após o golpe militar de 1964 devido à

subordinação aos interesses colonialistas portugueses. O autor conclui com

questionamentos sobre a relação Brasil – África.

Mas qual o lugar da África no atual cenário brasileiro? Com certa simplificação, podemos dizer que, de maneira geral, prevalece em um polo certa imagem hegeliana, e no outro, não menos exotizante, uma "Mama África", originária, profunda, virgem, paradisíaca, que serviria de inspiração para uma política anti-racista no Brasil: persegue-se uma história da "verdadeira África", de um tempo na qual esta viveria num paraíso, conspurcado pelo colonialismo. Os africanos e a África que se busca sob esta perspectiva é aquela colocada num freezer, onde a cultura se inscreve num tempo mítico, que se repete, onde não há criação, nem história. Essa imagem mitificada da África tem dado lugar a usos e abusos. Nessa mesma ótica cria-se um tipo "o africano", uma cultura "africana" que supostamente corresponderia ao continente. É difícil crer que essa busca de inspiração, a-histórica, na história, possa efetivamente ajudar de maneira sólida na formação de uma consciência política e social anti-racista. Temos já desde 2002 uma lei federal (10.639) que torna obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira do ensino fundamental ao médio, mas o desafio fundamental que encontramos é capacitar pessoas para que ambos os pólos dicotômicos sejam superados. O que fazer diante desse quadro? Minha contribuição e de meus colegas, poucos ainda é verdade, tem sido no sentido de batalhar para que os estudos africanos ampliem espaço no Brasil, principalmente através da introdução de cursos nas universidades que capacitem, mesmo que superficialmente, novos formadores sociais. E nisso temos tido certo êxito. Há vinte anos havia no Brasil cerca de meia dúzia de disciplinas voltadas para os estudos africanos em universidades brasileiras, hoje seu número é incontável e continua a crescer. [...] há uma onda crescente que envolve também a publicação de livros e materiais didáticos diversos. Tudo isto nos parece extremamente importante, pois enquanto a África permanecer desconhecida dos brasileiros, tanto à direita, quanto à esquerda, tanto os reacionários racistas, travestidos de liberais, quanto os que labutam arduamente para sua extinção, vão continuar prisioneiros de uma visão da África que foi criada para dominar.9

Veja: Um Olhar sobre a Independência de Angola, dissertação de Juvenal de

Carvalho,10 é um estudo sobre o modo como “uma parte” da imprensa brasileira viu

“uma parte” da África: Angola. O autor refletiu sobre “imagens da África”, que foram

construídas pelas “classes dirigentes” brasileiras. Seu objeto foi a cobertura que a

Revista Veja deu ao processo de independência de Angola (1968-1979). Parte do 8 Ibidem, p.48 9 Ibidem, p. 48,49 10 CARVALHO, Juvenal de. Veja: Um olhar sobre a independência de Angola. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia: Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002.

14

pressuposto de que a “ideia” em torno da África foi um aspecto decisivo na construção

da identidade nacional brasileira, afirmou que e a imprensa tem sido usada pelas

“classes dirigente”, para difundir e consolidar sua supremacia na sociedade.

Carvalho analisou o discurso da Veja identificando a relação entre a abordagem

da revista e as imagens que foram construídas da África ao longo da história do Brasil.

Em seguida, começou a tratar de seu objeto específico, a independência de Angola,

descrevendo seu processo de libertação a partir do discurso produzido pela revista. Para

uma compreensão mais ampla de tal processo, o autor trabalhou com a análise da

política externa brasileira e de como o regime militar reconheceu a proclamação de

independência de Angola.

Concluiu que “classes dirigentes” brasileiras desenvolveram uma política de

cortar vínculos entre o Brasil e a África. Deste modo, a imagem da África passou em

primeiro lugar por esse distanciamento, pela falta de informação, e depois, por noções

carregadas de valores negativos. Assim, foram essas ideias que predominam na

mentalidade coletiva do brasileiro. Conforme o autor, a Independência de Angola para a

Revista Veja não foi uma conquista e sim uma concessão, uma retirada do governo

português. Nesse sentido, às imagens produzidas sobre a independência de Angola,

“reproduziu o padrão de relações que as ‘classes dirigentes’ brasileiras desenvolveram

com relação à África: omissão e distanciamento” 11.

Lucilene Reginaldo12 em Vagas informações, fortes impressões: A África nos

livros didáticos de História identificou e analisou representações sobre a África em uma

série de manuais de 1º grau utilizados em escolas públicas de Salvador e Feira de

Santana – Bahia na década de 1990. Em seu artigo, a autora considerou que o continente

foi retratado como uma caricatura “tribal, selvagem, primitivo e habitado por uma raça

inferior” 13. E, argumentou que o século XIX foi o momento de produção desse tipo de

representação, naturalizada pelos europeus e pelas teorias de racialização.

Nas fontes analisadas, observou que, para os autores dos textos didáticos,

prevaleceu à relação entre a escrita e a história. Desse modo, justificaria a

11 Idem, p.118 12 REGINALDO, Lucilene. Vagas informações, fortes impressões: a África nos livros didáticos de história. Humanas, 2, 2002, p.p .99- 121 13 Idem, p.102

15

insignificância da África nos manuais didáticos, o que explicaria o porquê do continente

africano só passar a contar para a história dos manuais depois da presença europeia.

Concluiu que a história da África foi relegada a um lugar menor e seus estudos ainda

estão permeados por preconceitos, e limitações. Reginaldo ressaltou que a omissão e as

informações vagas, produzem “fortes impressões” e que a África, apresentada pelos

manuais didáticos, parece nada acrescentar além, das caricaturas já perpetuadas pela

mídia.

Em sintonia com esta discussão está o trabalho de Anderson Ribeiro Oliva,14 A

História da África nos bancos escolares: Representações imprecisões na literatura

didática, que analisou como a História da África e os africanos foram representados em

um determinado livro didático que dedicou um capítulo exclusivo a história do

continente africano. Oliva considerou que apesar de alguns avanços, como ter um

capítulo dedicado a História da África, essa ainda continua permeada por “[...]

distorções, simplificações e generalizações [...]” 15 e as imagens e informações que

dominam os livros didáticos incorporam as tradições racistas e preconceituosas de

estudos sobre o continente africano.

Meire dos Reis16 em sua dissertação A Cor da Notícia: discursos sobre o negro

na imprensa baiana 1888-1937 analisou a partir de jornais baianos, a construção e

reprodução do imaginário sobre o negro na sociedade baiana. O discurso da imprensa

desse período evidenciou a absorção e adaptação das teorias raciais, dos conceitos de

civilização e da ideia de democracia racial da “elite” baiana. A autora salienta que a

construção da ideia sobre o negro estava associada ao seu continente de origem, por

isso, a África foi também representada nos jornais. Reis concluiu que as imagens sobre

África estavam geralmente ligadas a um continente selvagem e de povos semibárbaros.

No âmbito da “relação África e Bahia” está o trabalho de Patricia Pinho17

Reinvenções da África na Bahia em que analisou como a África foi conhecida e

14 OLIVA, Anderson Ribeiro. A África nos bancos escolares: Representações e imprecisões na literatura didática. In: Estudos afro-asiáticos. Ano 25. n° 3. 2003, p.p 421-461 15 Idem, p.431 16 REIS, Meire Lúcia Alves dos. A Cor da Notícia: discursos sobre o negro na imprensa baiana 1888-1937. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia: Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. 17 PINHO, Patricia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004.

16

imaginada na Bahia. A autora escolheu a Bahia como objeto de estudo no processo da

diáspora africana, concentrar grande parte da população afrodescendente do país.

Pinho efetuou debates como as categorias negritude e cultura negra no Brasil

interviram na construção de identidades negras na Bahia. Enfocou esta cultura negra na

Bahia de um modo geral, especialmente as representações dos blocos afros nas suas

relações com a política local. Observou como as imagens de negritude foram associadas

ao discurso oficial de baianidade.

Concluindo que a chamada “cultura afro-baiana” faz referência a uma “Mama

África”, uma África “reinventada” constantemente ao longo do processo histórico

baiano da história desde que os africanos chegaram à Bahia.

Anderson Oliva18 em estudo mais recente, tomou a revista Veja como objeto de

pesquisa entre os anos de 1991 e 2006, e propõe que o imaginário coletivo sobre África

no Brasil passou por desconhecimentos e estereótipos. Afirmou que é interessante

observar o papel da imprensa na formulação e perpetuação dos conjuntos de imagens

referentes à África e aos africanos.

Conforme Oliva, a segunda metade do século XIX e a primeira do XX o Brasil

esteve de costas para o continente africano, e a memória coletiva de grande parte da

população brasileira teve como referência “algumas poucas imagens estereotipadas e

muitas simplificações” 19. Considerou que nas décadas de 1960 e 1970 o Brasil retomou

olhares para a África ampliando os estudos dedicados às temáticas afro-brasileiras e

africanas. Ainda assim, para Oliva, nem as reinvenções no âmbito da religiosidade, da

música e da estética, nem quanto às novas identidades afro-brasileiras foram

satisfatórias, no sentido, “de internalizar no imaginário coletivo brasileiro a importância

da África como um dos eixos centrais para o entendimento da trajetória histórica

brasileira”.20

Segundo Oliva, a imprensa escrita e televisiva contribuem na veiculação e na

vinculação da África à imagens de tragédias e de conflitos. Assim, recortou “paisagens

do imaginário brasileiro contemporâneo acerca de África” na revista Veja, e considerou

18 OLIVA, Anderson Ribeiro. Notícias sobre a África: representações do continente africano na Revista Veja (1991-2006). Afro-Ásia, nº38 (2008) p.p 141-178 19 Idem, 2008 p.177 20 Idibem, 2008 p. 147

17

que o espaço reservado ao continente africano refletiu um imaginário negativo. Apontou

que, houve outra tendência, ainda que em pequena porcentagem,21 de textos que

apresentaram comentários positivos sobre algumas personalidades africanas, sobre

temas ligados à História, daquele continente e sobre a natureza para o turismo.

Oliva conclui que o continente africano é ainda apresentado como símbolo do

fracasso da humanidade, com universos isolados, povos bárbaros, governos corruptos,

doenças, tragédias, flagelos e genocídios. Ressaltou que não teve a pretensão de afirmar

que certas realidades descritas não possam ter existido em determinadas regiões ou

experiências africanas, mas não se pode resumir a África e a sua história a estes

mecanismos explicativos, pois seria um equívoco intelectual e analítico.

Estes estudos apontam que as imagens em torno da África construídas desde o

século XVI são na maioria das vezes vinculadas às ideias de “inferioridade, brutalidade,

maldade”. Que o continente também é visto como algo “distante” e “homogêneo”.

Partindo destes estudos que investigam representações de África, inclusive na

Bahia, esta dissertação tem como objeto de pesquisa a revista O Cruzeiro em dois

conjuntos de fotorreportagens que publicou sobre “África” entre 1946 a 1960. Um

primeiro conjunto de fotorreportagens realizadas pelo francês Pierre Verger com textos

de Gilberto Freyre. O segundo com fotos de Verger e textos de Odorico Tavares.

As balizas temporais fazem referência ao período em que Pierre Verger

trabalhou como fotógrafo na referida revista, embora a análise do corpus documental

seja especificamente nos anos 1950 e 1951. A escolha do conjunto de fotorreportagens

em parceria com Freyre se deve a temática abordada: “os retornados” em África. Já o

conjunto com Tavares, pelo mesmo, residir na Bahia e ser parceiro de Verger no

trabalho em O Cruzeiro, além da publicação do livro: Bahia: imagens da terra e do

povo que explora a temática relacionada à África e Bahia em que utiliza as

fotorreportagens como base. Nos conjuntos, Verger enfocou “elementos” do continente

africano, sobretudo, culturais. O principal suporte documental é uma revista – O

Cruzeiro.

21 Imagens negativas: 60% e imagens neutras ou positivas: 37,5%. Idem, p.170

18

Quanto ao uso de revistas e demais periódicos em trabalhos historiográficos De

Luca22 considerou que foi nas décadas finais do século XX que ocorreu significativa

alteração nas práticas historiográficas. Jornais e revistas ganharam credibilidade na

produção acadêmica, possibilitando ampliação de estudos com temas ligados às

representações.

A autora informa que houve um aumento dos estudos sobre a própria história da

imprensa no Brasil e que tais estudos23 evidenciaram o uso da imprensa como uma fonte

importante, pois, são instrumentos de intervenção na vida social, De Luca24 analisa que

há muitas discussões sobre o que se publica na imprensa periódica: questões quanto ao

caráter de objetividade, e de neutralidade da notícia, assim como sobre as interpretações

das fontes.

Uma peculiaridade desta revista eram as fotorreportagens, constituídas de textos

e das fotos, fontes iconográficas. Referindo-se ao uso destas fontes Paiva25 considerou

que nas últimas décadas a historiografia brasileira renovou-se e ampliou a relevância da

fonte iconográfica:

[...] as pessoas representam sua história e sua historicidade e se apropriam da memória cultivada individual e coletivamente. Essa fonte nos possibilitou ainda, por meio de outros valores, interesses, problemas, técnicas e olhares, compreender, enfim, essas construções históricas. Refiro-me às representações iconográficas, às imagens construídas historicamente que, associadas a outros registros, informações, usos e interpretações, se transformaram, em um determinado momento, em verdadeiras certidões visuais do acontecido, do passado. Essas imagens são geralmente e não necessariamente de maneira explícita, plenas de representação do vivenciado e do visto e, também, do sentido, do imaginado, do sonhado, do projetdo. São, portanto, representações que produzem nas e sobre as variadas dimensões do tempo e no espaço.26

A ressaltar que assim como outras fontes, existem as escolhas de quem a produz

e do contexto de produção. Devem ser analisadas com cuidado para não serem tomadas

22 LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. 23 Ver os trabalhos pioneiros de: Maria Helena Capelato. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920 – 1945) 1988; e Nelson Werneck Soderé. História da imprensa no Brasil, 1966. 24 Idem, p.139 25 PAIVA, Eduardo França. História e Imagens. 2ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 26 Idem, p.p. 13, 14

19

como verdade, refletindo-se sobre as apropriações sofridas por esses registros ao longo

do tempo, percebendo seus silêncios e ausências.

A imagem bela, simulacro da realidade, não é a realidade histórica em si, mas traz porções dela, traços, aspectos, símbolos, representações, dimensões ocultas, perspectivas, induções, códigos, cores e formas nela cultivadas.27

Ao serem analisadas pelos historiadores é possível identificar os contextos, os

significados destas imagens. Paiva enfatizou ainda, que a leitura de uma imagem

“sempre pressupõe partir de valores, problemas, inquietações e padrões do presente” 28

Também pensando os usos da fotografia como fonte na História, Borges29

afirmou que “comporta múltiplos caminhos e diferentes abordagens”.

[...] No entanto, esse diálogo, cada vez mais fértil, nem sempre foi celebrado de maneira positiva. No decorrer do século XIX, um grupo significativo de historiadores se recusou a lançar mão da fotografia como fonte de pesquisa histórica, muito embora os diferentes setores da sociedade e de outras áreas científicas tenham valorizado e utilizado esse tipo de imagem desde o seu surgimento. [...] Transformada em espelho do real, a fotografia dispensa o emprego de metodologias capazes de fazê-la falar. Assim, concebida, o tratamento dado à fotografia é o mesmo que os historiadores do século XIX davam aos documentos por eles considerados como fonte de pesquisa histórica. [...] quando o conceito de conhecimento histórico deixa de ser percebido como dado natural e passa a ser entendido como conteúdo cultural sujeito a interpretações, estamos diante de um outro paradigma. 30

Para a autora, atualmente a cognição em História percorre caminhos diferentes e

as fotografias vêm sendo cada vez mais usadas como fontes, uma vez que podem

funcionar como mediadoras e não como reflexo de um dado universo sociocultural.

Ainda sobre o uso de imagens por historiadores, Burke31 considerou que não

devem ser utilizadas como meras ilustrações, e defendeu que as imagens, assim como os

textos, e os testemunhos orais, constituem importantes evidências históricas. Portanto, é

preciso interrogar estas “testemunhas oculares” como os advogados interrogam as

testemunhas durante um julgamento. Em particular, sobre a fotografia, Burke ressaltou

27 Ibidem, p. 19 28 Ibidem, p. 31 29 BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. p.15 30 Ibidem, p.p.15-17 31 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Tradução Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004 p.p 14,232,233,238

20

que podem ser consideradas tanto evidências da história, quanto a própria história e que

em sua análise é importante atentar para os detalhes.

O uso de imagens por historiadores não pode e não deve ser limitado à “evidências” no sentido estrito do termo. [...] A proposta essencial é a de que imagens, assim, como textos e testemunhas orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica. Elas registram atos de testemunho ocular.32

Considerou ainda, que as imagens “não são nem reflexos da realidade social e

nem um sistema de signos sem relação com a realidade social, porém ocupam várias

posições entre tais extremos”. Acreditou que as imagens são testemunhas dos arranjos

sociais passados, das maneiras de ver e de pensar do passado. Neste texto, Burke

apontou algumas questões fundamentais: a) as imagens dão acesso não ao mundo social

diretamente, porém as visões contemporâneas daquele mundo; b) os testemunhos das

imagens precisam ser colocados nos contextos, políticos, material, cultural; c) uma série

de imagens oferece testemunho mais confiável do que imagens individuais; d) é preciso

ler nas entrelinhas, perceber os detalhes das imagens.33

Numa perspectiva não historiográfica Sontag34 abordou a produção da

fotografia, que considerava complexa, porque para esta autora, as fotos ao apresentarem

um novo código visual permitem modificações e ampliações das ideias sobre o que vale

a pena olhar.

As fotos são, de fato, experiência capturada, e a câmera é o braço ideal da consciência [...] Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir [...] as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos.35

Argumenta que as fotos são “recortes” da realidade, e que fotografar é participar

da “mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade” dos sujeitos ou objetos, pois

este ato “corta uma fatia” de um determinado momento e o congela. As fotos podem ser

memoráveis, pois, são “uma fatia do tempo”. Podem carregar múltiplos significados,

pois, fotografar é atribuir importância a um determinado tema tendência inerente a todas

as fotografias: conferir valor a seus temas.

32 Idem, p. 17-20 33Ibidem, p.p.232-238 34 SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 35 Idem, p.p 14,15,17

21

[...] os fotógrafos que se concentraram em interferir no realismo supostamente superficial da foto foram os que transmitiram, de modo mais exato, as propriedades surrealistas da fotografia. [...] O surrealismo se situa no coração da atividade fotográfica: na própria criação de um mundo em duplicata, de uma realidade de segundo grau, mais rigorosa e mais dramática do que aquela percebida pela visão natural. Quanto menos obviamente capacitada, quanto mais ingênua – mais confiável havia de ser a foto. O surrealismo sempre cortejou acidentes, deu boas-vindas ao que não é convidado, lisonjeou presenças turbulentas. O que poderia ser mais surreal do que um objeto que praticamente produz a si mesmo, e com um mínimo de esforço? Um objeto cuja beleza, cujas relações fantásticas, cujo peso emocional serão, provavelmente, realçados por qualquer acidente que possa sobreviver? 36

Conforme Sontag foi neste momento “ao observar a realidade dos outros com

curiosidade” que os fotógrafos e a fotografia alcançaram o reconhecimento como uma

extensão do olho, do flâneur.

O flâneur não se sente atraído pelas realidades oficiais da cidade, mas sim por seus recantos obscuros e sórdidos, suas populações abandonadas – uma realidade marginal por trás da fachada da vida burguesa que o fotógrafo “captura”, como um detetive captura um criminoso.37

A fotografia compreendida enquanto documento social foi um instrumento desta

atitude de uma classe média, “zelosa e meramente tolerante, curiosa e também

indiferente”, chamada de “humanismo”. Para Sontag, a fotografia na Europa foi

bastante orientada por “noções do pitoresco (fotografar, os pobres, os estrangeiros, os

antigos) do importante (fotografar, os ricos, os famosos) e do belo”, 38 na perspectiva

que o olhar era neutro sobre a ação entre a fotografia e o “belo”, Sontag enfatizou como

é comum na visão do “belo”, o lamentar-se o não fotografar. “O papel da câmera no

embelezamento do mundo foi tão bem-sucedido que as fotos, mais do que o mundo,

tornaram-se o padrão do belo” 39

Quanto à relação da fotografia com a realidade Sontag afirmou:

36 Surrealismo: escola de arte e literatura ou modismo artístico cujos processos de criação e de expressão utilizam recursos de sonho, do inconsciente, do irracional. In: BIDERMAN, Tereza Camargo. Dicionário Didático de Português. São Paulo: Ática, 1998. 37 Susan Sontag 2004 Op. Cit p.70 38 Idem, p. 78 39 Ibidem, p. 101

22

A fotografia acarreta, inevitavelmente, certo favorecimento da realidade. O mundo passa de estar “lá fora” para estar “dentro” das fotos. [...] As fotos não se limitam a apresentar a realidade – realisticamente. A realidade é que é examinada, e avaliada, em função da sua fidelidade às fotos [...] Em lugar de simplesmente registar a realidade se mostram a nós, alterando por conseguintes a própria ideia de realidade e de realismo. [...] as fotos são indícios não só do que existe, mas daquilo que um indivíduo vê; não apenas um registro, mas uma avaliação do mundo. [...] Tornou-se claro que não existia apenas uma atividade simples e unitária denominada “ver” (registrada e auxiliada pelas câmeras), mas uma “visão fotográfica”, que era tanto um modo novo de as pessoas verem como uma nova atividade para elas desempenharem.40

Outra discussão apresentada por Sontag foi sobre a fotografia ser considerada

uma das belas-artes. A autora afirmou que durante um século houve lutas para que a

fotografia fosse considerada uma “bela arte”. Alguns fotógrafos criticaram o argumento

de que as fotografias eram uma “cópia mecânica e sem alma da realidade”, mas sim

uma “arte tão digna quanto à pintura”. Embora outros fotógrafos considerassem essa

questão irrelevante, o compromisso da fotografia com o realismo que a pôs em uma

relação de incerteza com a arte e depois a herança modernista. Houve controvérsias no

estabelecimento da fotografia enquanto arte. Seu prestígio veio justamente desta

“ambivalência quanto a se tornar uma arte”.

Para Sontag, a noção de fotografia como arte pôde ser observada na atitude de

alguns fotógrafos, como, por exemplo, quando publicam suas fotografias em revistas e

jornais, emolduradas, o que invoca o exemplo de outra arte, a pintura. Ou quando os

fotógrafos preferem fotografias em preto e branco, consideradas mais delicadas que as

imagens coloridas. No caso de Pierre Verger, não foi uma escolha, pois a fotografia em

preto e branco era a única opção. Mais tarde, com os avanços tecnológicos produziu

algumas fotografias coloridas, mas as fotos em preto e branco prevaleceram.

Numa perspectiva mais historiográfica a fotografia para Kossoy41 é um dos

grandes desenvolvimentos no campo da ciência advindos da Revolução Industrial,

invenção que teria papel importante na possibilidade de novas informações e

conhecimentos.

A palavra fotografia significa desenho pela luz. Em 1839 foi empregada na Alemanha num relatório sobre a descoberta da fotografia em papel de William Henry Fox Talbot e no mesmo ano em carta a Talbot, Herschell.[...]

40 Ibidem, p.p 95, 104, 105 41 KOSSOY, Boris. Fotografia e História. Editora Ática: São Paulo, 1989. p14

23

Os inventores da fotografia foram Joseh Nicephore Nièpce (1765-1833) e Louis Jacques Daguerre (1787-1851), na França. Enquanto que no Brasil Hercules Florence (1804-1879) também a desenvolvia. Foi em 1839 que Daguerre apresentou-a na Academia de Ciências da França ao qual deu o nome de deguerreótipo. No Brasil tal técnica chegou em 1840 pelas mãos de Louis Compte e faz grande sucesso até aproximadamente 1860, mas foram, sobretudo, os cartões de visita e os estúdios os grandes produtores de fotografia no século XIX. [...] 42

O grande crescimento e consumo da fotografia facilitou o aperfeiçoamento da

técnica. A partir da década de 1860 foram criados impérios industriais e comerciais.43

Conforme Guran,44 a fotografia “[...] é uma extensão da nossa capacidade de olhar e

constitui uma técnica de representação da realidade [...] por mais próximo que esteja do

real, [...] não é o real em si, mas sim sua representação”. Kossoy considerou ainda que a

fotografia:

[...] é indiscutivelmente um meio de conhecimento do passado, mas não reúne em seu conteúdo o conhecimento definitivo dele. A imagem fotográfica [...] mostra apenas um fragmento da realidade, um e só um quadro da realidade passada: um aspecto determinado. 45

Para Kossoy, vale ressaltar os fatores envolvidos na produção fotográfica como

a intencionalidade do fotógrafo e da linha editorial na interpretação dos receptores

contemporâneos de uma determinada imagem. Para ele, toda fotografia é composta por

três elementos essenciais: o assunto, o fotógrafo e a tecnologia, que se concretizam em

um definido espaço e tempo. Assim, cada fotografia [...] um meio de informação, um

meio de conhecimento, e conterão sempre valor documental, iconográfico” 46.

Também discutindo os usos da fotografia como fonte histórica, Mauad47 propõe

que a fotografia:

[...] é interpretada como resultado de um trabalho social de produção de sentido, pautado sobre códigos convencionalizados culturalmente. É uma mensagem, que se processa através do tempo, cujas unidades constituintes

42 FILHA, Sofia Olszewski. A Fotografia e o Negro na Cidade do Salvador 1840-1914. Salvador: EGBA – Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989:32; Boris Kossoy.1989. Op cit p.p 104-05; Maria Eliza Borges Op. Cit. 2005. p.15 43 VASQUEZ, Pedro. A fotografia no Império. Editora, Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2002. 44 GURAN, Milton. Linguagem fotográfica e informação. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 1999. p.p 6,7 45 Boris Kossoy. 1989. Op cit p.72 46 Idem. p.p 31-36 47 MAUAD, Ana Maria. Através das imagens: Fotografia e História interfaces. Tempo, Rio de Janeiro, Vol 1, nº 2, 1996, (73-98) p.79

24

são culturais, mas assumem funções sígnicas diferenciadas, de acordo tanto com o contexto no qual a mensagem é veiculada, quanto com o local que ocupam no interior da própria mensagem.

Para estes estudiosos a fotografia representa determinados aspectos da realidade

e não esta. Assim, por mais que as imagens fotográficas possam ser vistas como uma

“verdade” são sempre construções que resultam da “mistura de técnica, estética e

ideologia”, e sempre foi um poderoso instrumento para veiculação de ideias. Seus

conteúdos não podem ser pensados como meras ilustrações de texto.

Quanto ao uso das fotografias veiculadas pela imprensa, deve-se considerá-las

sempre enquanto mensagem político – ideológica, como aqueles do fotojornalismo ou

fotorreportagem,

[...] uma atividade sem fronteiras claramente delimitadas. O termo pode abranger quer fotografias de notícias, quer as fotografias dos grandes projetos documentais, passando pelas ilustrações fotográficas e pelos features (as fotografias intemporais de situações peculiares com que o fotógrafo depara), entre outras. De qualquer modo, como nos restantes tipos de jornalismo, a finalidade primeira do fotojornalismo [...] é informar. 48

O fotojornalismo, com a possibilidade de união da impressão de textos e fotos de

forma simultânea, já existia por volta de 1884. No caso das revistas, as fotos começaram

a ser publicadas em torno de 1890. No Brasil, a Revista da Semana foi pioneira na

introdução da fotografia em 1900. No entanto, somente a partir da II Guerra Mundial o

fotojornalismo brasileiro ganhou impulso.49 O Cruzeiro deu destaque ao uso do

fotojornalismo a partir da década de 1940 com a contratação de fotógrafos vindos da

Europa, onde tal prática já era consagrada, como Jean Manzon e Pierre Verger.

Sobre o uso de fotografias em reportagem, a fotorreportagem, Peregrino50

afirmou que:

Toda fotografia de reportagem está diretamente associada à captação de notícia que antecede a busca do olhar na representação do mundo externo. Sob este prisma, a prática fotográfica é um reflexo da série de

48 SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo: uma introdução à história, às técnicas e a linguagem da fotografia na imprensa. Porto, 2002. p.p7, 8 49 LINS, Alene e VALENTE, Rosangela. Fotojornalismo: informação, técnica e arte. Editora da Universidade Federal de Moto Grosso do Sul, 1997. p.28 50 PEREGRINO, Nadja. O Cruzeiro: a revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991. P.44

25

acontecimentos que ela retrata, posto que no seio de sua própria linguagem recria situações que se cristalizam na superfície da imagem. No campo da comunicação, uma fotografia isolada é incapaz de explicar o sentido de um fato: entre outras, ela é uma das variáveis utilizadas para consubstanciar o significado e o sentido da informação. É certo que as imagens se tornaram uma forma peculiar de referenciar o discurso jornalístico. Isto, porém, não nos autoriza a partilhar a ideia de que uma fotografia fale por si mesma; embora ela tenha autonomia icônica, precisa do texto ou da legenda para contextualizar as marcas indicativas da sua expressão

Ainda conforme Peregrino,51 é fundamental perceber as fotografias de imprensa

como mensagens que fazem parte de um processo de produção fragmentado, visto que,

há diversos níveis de operacionalização presentes na publicação de uma foto. Deste

modo, a construção de uma fotorreportagem, como no caso da revista O Cruzeiro, passa

por diversas etapas com o intuito final de informar ou testemunhar um acontecimento a

partir da fotografia.

A escolha da foto, determinada pelo acontecimento, começa no momento do click (opção dos recursos técnicos para a realização de uma foto à disposição do repórter fotográfico), passa pelo editor de fotografia (que seleciona, entre um amplo universo de imagens, aquelas que vão ser publicadas) e, em seguida, é encaminhada para a editoria geral, que determina o espaço que ela vai ocupar junto com o texto. Até a sua forma final, a foto pode ser cortada, ampliada, distorcida [...] a foto de imprensa se encontra estreitamente determinada pela correlação e interseção das diferentes partes que se estruturam nas páginas impressas. Como tal, essas páginas não são senão a representação do espaço real, onde se estendem as fotografias, as legendas, os títulos e textos escritos, que se completam entre si para mútua interpretação do fato.

Na construção dos conjuntos de fotorreportagens produzidas por Verger, por

exemplo, ficava ao seu critério a escolha dos assuntos a serem registrados pelas

fotografias.52

A partir destas considerações, sobre as revistas e a fotografia como fatores

históricos, é perceptível a importância analítica da categoria “representação cultural”.

Esta categoria foi trabalhada por Chartier53 no processo de acúmulo de contribuições de

outros intelectuais, a exemplo, de Bourdieu, que tratou das lutas de representações, e

51 Idem, p.p 44, 45,46 52 Angela LÜHNING Pierre Verger: repórter fotográfico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004:19 53CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p.p16, 17

26

anteriormente por Durkheim e Mauss quanto as representações coletivas, entendidas

como verdadeiras instituições coletivas.54 Para Chartier:

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. [...] As lutas de representação têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio.[...] [...] a noção de representação [...] permite articular três modalidades da relação com o mundo social: em primeiro lugar, o trabalho de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos; seguidamente, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns “representantes” (instancias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade. [...] “mundo como representação”, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real.55

Em seu trabalho sobre práticas, representações e apropriações de leituras na

França no século XVI Chartier56 discutiu como a leitura de livros foram entendidas e

utilizadas pelos leitores/receptores. Considerou a leitura uma prática criadora, uma

atividade produtora de sentidos particulares de significações que não se reduziram as

intenções dos autores. Embora os autores e editores acreditassem que os leitores

pudessem fazer uma compreensão literal e “correta do texto”, estes provavelmente, se

“apropriaram” dos mesmos, de acordo com seus universos simbólicos. Muitos textos

produziam na prática comportamentos diversos do intencional autoral, pois os leitores

possuem certo grau de autonomia na leitura e, um mesmo texto ou imagem, era

diversamente apreendido, lido, manipulado e compreendido.57

54 CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v.9, n.1, p. 143-165, 2006. 55 Roger Chartier Op. Cit. 1990.p.17- , 22, 23 56 Idem. 57 Sobre Leitura e leitores, ver: CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo de Moraes. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999.

27

Ginzburg58 ao tratar de questões sobre rituais fúnebres também usou o conceito

de representação. Para este historiador, “representação” teria então um duplo sentido:

“faz às vezes da realidade, evoca a ausência”, desse modo, as representações podem

tornar presente um sujeito, um objeto, substituindo-o por uma imagem que o represente;

“torna visível à realidade representada, sugere presença” nesse sentido, a representação

equivale a uma presença, o referente e sua imagem precisam se identificar.

Assim, o conceito de “representação” seria ambíguo. O autor argumenta que as

representações não são universais. Há uma pluralidade de leituras possíveis entre uma

representação proposta e os sentidos construídos pelos sujeitos.

Estas reflexões apresentadas acima foram fundamentais para problematizar as

práticas, as representações e apropriações sobre África-Bahia na revista O Cruzeiro,

realizadas por Verger, Freyre e Tavares na percepção de produção de sentidos da revista

e as diversas formas de apropriação dos autores das fotorreportagens.

Esta dissertação é composta por três partes: no capítulo 1, “O Cruzeiro, a

fotorreportagem e o fotógrafo Pierre Verger” procuro apresentar e discutir a construção

da revista O Cruzeiro, sua estrutura, os profissionais, fotógrafos e jornalistas, a figura

do seu proprietário Assis Chateaubriand; a trajetória de Pierre Verger enquanto

fotógrafo, seu trabalho na revista enfocando seu interesse por “elementos” do continente

africano.

O capítulo 2 “Acontece que são baianos: África sob as lentes de Pierre Verger e

textos de Gilberto Freyre” é dedicada à análise das fotorreportagens da série “Acontece

que são baianos” que tratou dos chamados “retornados”, os sujeitos ex-escravizados que

voltaram à África, principalmente para a região do Golfo do Benin, com fotografias de

Pierre Verger e textos de Gilberto Freyre. O enfoque deste capítulo é nos diálogos entre

a fotografia de Verger e os textos de Freyre na compreensão das representações que

construíram sobre a África.

Por último, no capítulo 3, “A Bahia africana de Pierre Verger” dei continuidade a

análise das fotorreportagens elaboradas por Pierre Verger e Odorico Tavares que fazem

referência à África. Argumento que estas fotografias foram feitas na Bahia, “buscando” 58 GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P.85

28

a África na Bahia no cotidiano dos afro-brasileiros, na perspectiva de apropriações de

representações culturais já construídas na Bahia.

29

CAPÍTULO 1

O Cruzeiro, a fotorreportagem e o fotógrafo Pierre Verger

“O Cruzeiro aconteceu - e era um acontecimento, não se duvide”.

Luiz Carvalho

1.1 A construção de um império: Chatô e o Diários Associados

Neste capítulo apresento alguns sujeitos que vivenciaram a história da revista O

Cruzeiro, como seu proprietário Assis Chateaubriand e o fotógrafo Pierre Verger. O

contexto da produção desta revista a partir de biografias.

Conforme Borges,59 de modo geral a biografia foi vista como um “gênero

menor”, tido como “problemático, confuso e duvidoso”. No entanto, é preciso

considerar sua importância e seus limites. O termo biografia vem do grego bios = vida e

grapheim = escrever, e significava “relatos de vida”. São variados os tipos de textos

podem ser considerados biografias: verbetes de dicionários, relatos de filmes,

documentários entre outros. Seus tipos e usos foram classificados Dosse60:

[...] uma primeira que chama de “idade heróica”, na qual a biografia transmitiria modelos, valores para as novas gerações; uma segunda fase, a da “biografia modal”, em que a biografia do indivíduo teria valor somente para ilustrar o coletivo (a sociedade do biografado em tempos e em espaços diversos); e uma terceira e última fase, a atual, que chama de “idade hermenêutica”, momento em que a biografia tornou-se terreno de experimentação para o historiador, aberto a várias influências disciplinares”.

59 BORGES,Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005 p.p 203-233 60 François Dosse, Le pari biographique: écrire une vie, Paris, La Découverte, 2005. Apud: Vavy Borges 2005 Op. Cit, p. 207

30

Borges considera que há diferentes tipos de biografias, desde um rápido percurso

de vida do biografado ou o que chama de “um mergulho na alma” do biografado até a

biografia de cunho “científico” dita “literária”, que se configura em fonte interessante

para o historiador, pois, apresenta documentação numerosa e variada. A partir da leitura

de uma biografia é possível se conhecer, além da história de vida de um sujeito, o

contexto sobre uma época, sobre a sociedade em que ele viveu.

Considerou que para na adentrar a história da imprensa no Brasil61 é preciso

apresentar a figura do jornalista Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello.

Nascido em 04 de outubro de 1892, paraibano da cidade de Umbuzeiro, Chatô, como

era conhecido, ou “velho capitão”, como o jornalista David Nasser gostava de chama-lo,

foi o mentor e executor da construção de um verdadeiro império jornalístico no Brasil.62

Chateaubriand teve na infância um problema de gagueira que o impedia de

frequentar a escola. Foi alfabetizado aos doze anos. Autodidata, interessou-se pela

leitura e pela escrita e aos quinze anos já trabalhava em jornais de Recife, como

recortador de classificados e repórter. Aos vinte e um anos formou-se em Direito, ainda

trabalhando como jornalista no Diário de Pernambuco.

No ano de 1915 foi aprovado em um concurso para na área de Direito da

Faculdade de Direito no Recife. Tal concurso foi alvo de polêmicas e desconfianças do

concorrente e dos estudantes. Chateaubriand viajou então para o distrito federal, a

cidade do Rio de Janeiro, em busca de ajuda entre jornalistas e intelectuais e até do

presidente da República Wenceslau Brás. Vitorioso retornou a Recife, mas logo em

seguida voltou ao Rio de Janeiro o que transformaria sua vida. A partir deste momento,

se estabeleceu no Rio de Janeiro, como advogado sem deixar de lado sua paixão, o

jornalismo. Chateaubriand construiu uma grande rede de amizades, principalmente com

empresários poderosos e políticos. Assim, em setembro de 1924, comprou seu primeiro

veículo de comunicação O Jornal, que gerou uma cadeia de diários por todo o Brasil.

61 Sobre a história da imprensa no Brasil. Ver: Juarez Bahia. Jornal, História e Técnica: história da imprensa brasileira, 1990. 62 MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil, a vida de Assis Chateaubriand. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

31

No auge do seu império de comunicações, os Diários Associados,63 totalizavam

34 jornais, 36 emissoras de rádio, 18 de televisão e 1 agência de notícias, a

Meridional.64 Chatô foi um homem polêmico que gostava do poder. Por duas vezes foi

eleito senador pelo nordeste. Fazia questão de enfatizar sua origem nordestina, até criou

uma espécie de honraria, “a ordem do Jagunço”, que costumava entregar aos amigos

influentes. Sempre sobrepondo sua vontade, muitas vezes em trocas de favores, foi

embaixador do Brasil na Inglaterra durante o governo do presidente Juscelino

Kubitscek.

Os recursos com que construiu seu império de comunicações vieram, em grande

parte, de acordos, chantagens, alianças convenientes, com empresários, fazendeiros e

políticos em troca de publicidade e apoios. Não era nada agradável ter como inimigo o

todo poderoso Assis Chateaubriand e sua gigantesca rede de comunicações. Sua fortuna,

segundo Luiz Carvalho, 65 também foi construída na sonegação sistemática de impostos.

Mas, havia também o sonhador, apaixonado pela comunicação que vibrou com

as emissoras de rádio, com a implantação da primeira estação de televisão da América

Latina, com o grandioso projeto de construção do Museu de Arte de São Paulo e outros

museus, Brasil adentro, como por exemplo, o Museu de Arte em Feira de Santana,

interior da Bahia.

Mesmo acometido por uma trombose dupla em fevereiro de 1960 que o deixou

tetraplégico lutou para se restabelecer e com um único dedo, ditalografava seu artigo

diário em sua máquina de escrever adaptada. Faleceu em abril de 1968 de colapso

cardíaco. Anos antes, em 1959, convocou seus funcionários no 20° cartório de São

Paulo para anunciar que seus veículos de comunicação seriam herdados por seus filhos

e amigos. Deixou em doação a 22 de seus empregados 49% da propriedade de seu

império, que passou a ser chamado “Condomínio Associado” com o intuito de perpetuar

o sonho do visionário jornalista de manter viva sua rede de comunicações.

63 Como foi registrado o grupo de empresas. Idem, 1994 p. 261 64 A Revista no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000. 65 CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2001. p. 61

32

1.2 Na constelação dos Diários Associados à estrela maior: O Cruzeiro

No ano de 1928, Assis Chateaubriand já era dono de jornais e revistas, mas

estava para “nascer” o veículo mais importante do seu império. Segundo Morais,66

Chatô soube por meio de amigos que o jornalista Carlos Malheiros planejava a

circulação de uma revista em âmbito nacional, sem ter recursos suficientes, Chatô

interessou-se por comprá-la. O valor do investimento era quinhentos contos de réis,

dinheiro que não tinha, mas com seu prestígio, recorreu a empréstimos, prática que

sempre usava em seus negócios.

Nesta empreitada foi em busca do então ministro da Fazenda, Getúlio Vargas e

ele explicou que planejava uma revista de qualidade com boa impressão, bons

profissionais, e de circulação nacional com uma tiragem de 50 mil exemplares semanal.

Vejamos seu diálogo com Vargas, apresentado por Morais:

-De quanto tu precisas para pôr a revista nas ruas em doze meses? -Com 250 contos eu assumo imediatamente o controle da empresa, que já está montada. O resto do dinheiro eu arranco nas primeiras semanas de circulação. Tenho a promessa de contratos de publicidade com a Antarctica, a Sul-América de Seguros, a fábrica de vitrolas e rádios Victor e a estamparia América Fabril. Com a revista na rua triplico isso em dois dias. Eu vou vender pessoalmente os anúncios nobres, impressos em cores. -Tu és um homem de sorte. Daqui a meia hora vou receber em audiência o banqueiro Antônio Mostardeiro, um compadre do sul que nomeei presidente do Banco do Brasil. Ele vai te arranjar esses 250 contos. E esse dinheiro não vai ser de Banco do Brasil. Mostardeiro vai te emprestar dinheiro do Banco da Província, que é dele.

Estava selado o negócio: Chateaubriand teve o dinheiro para o lançamento de

Cruzeiro, que só passou a se chamar O Cruzeiro em 1929.67 Mais que isso, estava

selada a amizade com Vargas que diretamente esteve envolvido nos rumos dos “Diários

Associados” ao longo de décadas, entre altos e baixos, e trocas de favores. Vargas foi

uma figura importante na história da revista, pois, além de intermediar o financiamento

para seu lançamento, foi com a reportagem que anunciou sua morte em agosto de 1954,

66 Fernando Morais 1994 Op. Cit, p.177 67 Luiz Maklouf Carvalho 2001 Op. Cit, p.20.

33

que O Cruzeiro atingiu o recorde de tiragem semanal de 720 mil exemplares vendidos.68

Segundo Accioloy Netto69 o lançamento da revista foi algo bem planejado o que não era

costume no período.

[...] à hora em que as repartições públicas encerravam o expediente e pouco antes de o comércio fechar as portas, a Avenida Rio Branco foi inundada por uma chuva de papel picado. [...] estava nevando na mais importante via pública da cidade Maravilhosa, com 40 graus a sombra. [...] E milhares de transeuntes, surpresos, começaram a apanhar no ar, nas calçadas ou sobre o asfalto escaldante os pedaços de papel que nada mais eram do que pequenos folhetos impressos, atirados dos andares mais altos dos edifícios, e que diziam: Compre amanhã Cruzeiro, em todas as bancas, a revista contemporânea dos arranha-céus.70

Para o lançamento da revista que se auto intitulou contemporânea dos arranha-

céus, houve toda uma estratégia comercial, com a mobilização de uma multidão na

Avenida Rio Branco. Dos prédios e aviões que sobrevoavam caíram panfletos,

serpentinas e confetes, foi uma grande festa de inauguração. A redação da revista estava

localizada na Rua Buenos Aires, 152, no Rio de Janeiro, a partir de 1938, depois de

funcionar por algum tempo na Avenida 13 de maio, a sede da revista foi transferida para

a Rua do Livramento, um prédio projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, reafirmando

sua aspiração ao moderno. O texto de abertura dizia:

Depomos nas mãos do leitor a mais moderna revista brasileira [...] Cruzeiro encontra já, ao nascer, o arranha-céo, a radiotelephonia e o correio aéreo: o esboço de um mundo novo no Novo Mundo. Seu nome é o da constelação que, ha milhões incontaveis de annos, scintila, aparentemente immovel, no céo austral, e o da nova moeda em que resuscitará a circulação do ouro. Nome de luz e de opulencia, idealista e realistico, synonymo de Brasil na linguagem da poesia e dos symbolos [...] 71

A estratégia de markting funcionou. No dia 10 de novembro de 1928 a revista

Cruzeiro estava nas bancas e nas principais cidades do país. Chegou a circular também

em cidades como Buenos Aires e Montevidéu. Vejamos a primeira capa da revista:

68 A revista no Brasil. 2000 Op. Cit, p.53. 69 Jornalista que trabalhou na revista O Cruzeiro. Entrou como secretário de redação em 1931, chegou ao cargo de Diretor da revista em 1933 e permaneceu na revista até 1965 quando a deixou. NETTO ACCIOLY, Antonio. O Império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998. 70 Idem, p. p.36, 37 71

Fragmento disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/ Acesso em: 10 de abril de 2013.

34

Fotografia 1 - Revista Cruzeiro 10 de novembro de 1928 nº 01

A edição número um da revista trazia na capa a imagem de uma jovem mulher,

inclusive, que se tornou marca registrada da revista ao longo de sua história: figuras

femininas. Ao redor do rosto da mulher estrelas prateadas representando a constelação

do Cruzeiro do Sul, que inspirou o nome da revista. A jovem mulher, “jogava” um

beijo, como a seduzir os novos leitores. No miolo da revista, segundo Morais72,

impresso em sofisticado papel cuchê, havia muito anúncios, artigos, reportagens,

fotografias, contos. Era o início de uma fase promissora para os Diários Associados.

Os anos iniciais da revista foram marcados por um luxo jamais visto. Sua linha

editorial esteve voltada para a publicação de contos, novelas, algumas reportagens e

muitos anúncios. Era grandiosa também a colaboração de intelectuais e artistas de

renome como:

72

Fernando Morais 1994 Op. Cit, p. 188

35

Gustavo Barroso, Menotti Del Pichia, Viriato Correa, Manuel Bandeira, Humberto de Campos, Guilherme de Almeida, Mário de Andrade [...] Carlos e Rodolpho Chamberand, Henrique Cavaleiro, Emiliano Di Cavalcanti, Oswaldo Teixeira, Aldo Bonadei, Ismael Nery, Anita Malfatti, Rodolpho Amoedo, Fernando Correa Dias [...] Peregrino Júnior, Gilberto Trompowski, Martine poin-Carré [...] Austregésilo de Athayd.73

Era uma revista de variedades, ou seja, que tratava de assuntos relacionados aos

modos de vida, moda, esporte, lazer e política. Foi moldando comportamentos ao longo

de décadas. Adentrando os anos de 1930 cobriu grandes acontecimentos, como o

movimento político que abriu caminho para a era Vargas; os concursos de Miss

Universo, cujo auge foi a eleição em 1930 da brasileira Yolanda Pereira como ícone de

beleza mundial74.

Apesar do instável quadro político e econômico dos anos 1930 que acabou

atingindo os negócios de Chateaubriand, a revista ganhou uma nova sede “[...] em 1931

terminado o edifício dos Diários Associados, à Rua 13 de maio, com oito andares, e

dois pavimentos subterrâneos, O Cruzeiro mudou-se para lá” 75. Para as novas

instalações Chateaubriand mandou comprar nos Estados Unidos o que havia de mais

avançado em tecnologia do período a “[...] rotativa Hoe, capaz de imprimir em poucas

horas 300 mil exemplares de um caderno de oito páginas inteiramente em quatro cores.” 76 Neste período, dos anos de 1930, também o corpo editorial foi aumentado, Accioly

Netto77 assumiu o cargo de redator-chefe e diretor-secretário; Amélia Whitaker foi

diretora-presidente; Leão Gondim o diretor-secretário e Austregésilo de Athayde como

diretor-secretário. Ao assumir o cargo de redator-chefe e de diretor-secretário Accioly

Netto78 relatou as dificuldades encontradas e as mudanças promovidas n’ O Cruzeiro

que possibilitou seu ingresso na era em que a reportagem teria o peso cada vez maior.

Vejamos seu relato:

[...] quando entrei para a redação de O cruzeiro, naquele ano de 1931, cheio de entusiasmo e grandes planos, fiquei pasmo com a falta de recursos financeiros da famosa revista [...] Na certeza de que não poderia contar com

73 Idem, p.37 74 A revista no Brasil 2000 Op. Cit, p.22 75 Antonio Acciloy Netto 1998 Op. Cit, p. 38 76 Fernando Morais 1994 Op. Cit, p.369 77 Antonio Acciloy Netto 1998 Op. Cit, p. 53, 78, 80 78 Idem, p.p. 48, 49, 50

36

qualquer recurso extra e apesar das dificuldades aparentemente invencíveis, decidi que a saída era dar outro rumo editorial a O Cruzeiro: o das grandes reportagens, ao estilo da revista norte-americana Life ou da VU francesa, que evoluíra para a excelente Paris Match. Tomei, assim, o caminho do meio termo, já que, por outro lado, estava consciente de que nos faltavam não só recursos financeiros, mas também jornalísticos de alta qualidade. Foi a partir daí que O Cruzeiro começou a explorar as atualidades fotográficas do faits divers nacional e internacional. Essas histórias eram colhidas das sobras dos instantâneos da vida política, social e artística obtidos por O Jornal da Noite e devidamente recondicionados. Explorávamos também bastante a figura feminina em diferentes situações, nas festas da alta sociedade ou nos desfiles de moda que se realizavam periodicamente no Golden Room do Copacabana Palace. Os desfiles mais importantes eram os de Miss Elegante Bangu e também os da Glamour Girl, que despertavam grandes polêmicas entre os colunistas sociais.[...] As agências de publicidade de Hollywood nos forneciam gratuitamente magníficas fotografias de suas estrelas e galãs. Este material era aproveitado com destaque, formando histórias ou servindo para as capas coloridas. [...] O carnaval também oferecia material abundante para reportagens, pelo menos durante um mês por ano. As atrações eram os bailes nos teatros e os animados corsos, que reuniam centenas de automóveis de cpota arriada, cheios de moças e rapazes, lançando confetes e serpentinas [...].

Portanto, as mudanças ocorridas n’O Cruzeiro, foram inspiradas na norte

americana Life e na VU francesa. A partir daquele momento, a revista começou a

explorar cada vez mais as atualidades nacionais e internacionais. Foram sendo

implantadas seções fixas como “Mundanismo”, “Graça saúde e beleza”, “As garotas”,

“Amigo da Onça”. Posteriormente outras como “Lar Doce Lar”, “Mulher para a

Mulher” e “Última página”.

Morais e Accioloy Netto demarcaram que foi a partir da década de 1940 que O

Cruzeiro entrou em sua fase gloriosa. Devido a sua expansão, a revista foi instalada

numa nova, e definitiva sede, na Rua do Livramento, no prédio projetado pelo arquiteto

Oscar Niemeyer.79 A revista passou a valorizar cada vez mais o trabalho dos repórteres,

que eram tratados como verdadeiras “estrelas”. A cada semana se fazia uma reunião de

pauta, a partir da qual eram definidas as reportagens. Os fotógrafos e repórteres

escolhiam o assunto de acordo com seus interesses, e os propunham à chefia da

redação.80

79 Ibidem, p. 76 80 PEREGRINO, Nadja. O Cruzeiro: a revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991. p.22

37

Accioly Netto81 enfatizou o papel central de Amélia Whitaker nas decisões de

publicações. Ela era casada com o primo de Chateaubriand, Leão Godim. Whitaker não

era jornalista, mas tinha poder dentro de O Cruzeiro. Muitas vezes, censurou e mesmo

vetou reportagens que considerou uma ofensa “à moral e aos costumes”, causando

inclusive, prejuízos a revista. Accioly comentou o exemplo de uma reportagem sobre os

índios bororós, cujo próprio Chateaubriand participou, com fotografias de homens e

mulheres nus. O material fotográfico, ao chegar às mãos de Amélia Whitker, foi

queimado.

A revista, que era um verdadeiro fenômeno editorial foi usada por

Chateaubriand para divulgação de suas campanhas sociais e políticas, como por

exemplo, a construção do Museu de Arte de São Paulo e suas candidaturas a cargos

políticos. Eram as chamadas “matérias recomendadas”, que ocupavam várias páginas da

revista. Nesse sentido, apesar de sensacionais furos jornalísticos, O Cruzeiro esteve

“[...] longe de ser um modelo de rigor e isenção jornalísticos. Chegou a apresentar com

real a fotomontagem do que teria sido um desfile de discos voadores no céu do Rio de

Janeiro” 82.

EXTRA DISCO VOADOR NA BARRA DA TIJUCA O CRUZEIRO apresenta, num furo jornalístico espetacular, a mais sensacional documentação jamais conseguida sôbre o mistério dos discos voadores – O estranho aparelho veio do mar, com enorme velocidade e foi visto durante um minuto – Côr cinza azulada, absolutamente silencioso, sem deixar rastro de fumaça ou de chamas - Relato completo da fascinante aparição na Barra da Tijuca. Reportagem de ED. KEFFEL e JOÃO MARTINS O Cruzeiro 17 de maio de 1953

Na década de 1950, no auge do sucesso da revista, foi elaborado e colocado em

prática o projeto de O Cruzeiro Internacional, em língua espanhola com cerca de 300

mil exemplares que circulou na Argentina, no Paraguai, no Uruguai, na Venezuela e no

Chile. No início foi um sucesso, entretanto, faltou publicidade internacional para mantê-

la. O final da edição internacional representou também o processo de decadência que O

81 Antonio Acciloy Netto 1998 Op. Cit, p. 80 82 A revista no Brasil 2000 Op. Cit, p.50

38

Cruzeiro viveu. Em 1965 Accioly Netto83, que ocupava o cargo de diretor-chefe deixou

a revista e afirmou:

Em 1974, O Cruzeiro ainda conservava uma vendagem relativamente boa, embora suas contas fossem pagas com grande atraso. E, devendo a todo mundo, os corifeus dos Diários Associados nada tentaram para salvá-lo. [...] o título O Cruzeiro foi cedido a Hélio Lo Bianco [...] as magníficas máquinas, que haviam custado mais de dois milhões de dólares eram vendidas a preço de ferro-velho. Da mesma forma, os arquivos da revista, considerados os melhores do Brasil, seguiram de caminhão para Belo Horizonte, entregues à guarda do Estado de Minas, único jornal do grupo [...] com dinheiro suficiente para arrematá-los. Os oito gigantescos quadros de Portinari, [...] foram vendidos por cifras jamais reveladas a um banco de São Paulo [...] Parte do mobiliário e das oficinas, o prédio e partes do arcevo acabaram ficando com O Jornal do Comércio.

Por trás da dilapidação do patrimônio havia a má administração. Com a saída de

Chateaubriand84, O Cruzeiro, entrou na fase da decadência.85 Ainda por mais duas vezes

houve a tentativa de ressuscitar a revista, porém em vão. A “maior” revista do Brasil

tinha chegado ao fim. Accioly, Peregrino e Carvalho ressaltaram a importância da

revista ao logo de décadas para o Brasil. Com uma significativa tiragem, a partir da

década de 1940. Inclusive, atingiu o ápice de 720 mil86 exemplares distribuídos

semanalmente, durante alguns meses do ano de 1954, número maior que qualquer outro

índice de circulação na imprensa até então. Tal recorde só foi superado pela revista

Veja, em 1985, com 729 mil, e 1986, com 820 mil exemplares.

O Cruzeiro chegava a praticamente todas as grandes cidades do país. Em um

misto de variedades, que incluía diversos assuntos e interesses, atingindo um grande

público leitor. Conforme o fotografo Flávio Damm87 serviu de referência para

jornalistas e o público leitor de um modo geral.

Era a melhor publicação ilustrada e, mesmo sem as facilidades contemporâneas, conseguiu imprimir um dinamismo às suas reportagens que outras revistas não tinham [...] fazíamos uma revista que no inicio da semana,

83 Antonio Acciloy Netto 1998 Op. Cit, p. 164 84 Em 1959 Assis Chateaubriand, paralítico e bastante debilitado em razão do derrame, criou o grupo “Condomínio Associado” que passou a gerenciar suas empresas. Idem, p. 162 85 Nadja Peregrino 1991 Op. Cit, p. 32 86

O Cruzeiro 30 de outubro de 1954 nº03- Ano XXV, Tiragem semanal: 720.000 exemplares. 87 DAMM, Flávio. Entrevista concedida a Karen Worcman e a autora, 1984. Apud: PEREGRINO, Nadja. O Cruzeiro: a revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro: Dazibao, 1991.p.25

39

traçava uma síntese do que tinha acontecido na semana anterior [...] O Cruzeiro oferecia, assim, uma informação muito rica para os acontecimentos.

Antes da difusão da televisão, a revista era um panorama atualizado sobre

acontecimentos no Brasil e também no âmbito internacional. Era o maior meio de

comunicação social nos anos de 1950. Reinando sozinha no mercado editorial brasileiro

até a criação da concorrente, a revista Manchete lançada em 1952 por Adolfo Bloch88. O

surgimento da televisão e a concorrência de novos grupos, como a Abril e a Bloch,

também colaboraram para o declínio do semanário.

De acordo com Bahia89, em 1975 a ruína chegou definitivamente, quando o título

da revista foi a leilão judicial. Atolada em dívidas trabalhistas, com salários atrasados,

seu diretor-geral Leão Gondim de Oliveira e o diretor da redação, Gomes Maranhão,

confirmaram a “morte” da revista.

O Cruzeiro reduz em 50% o número de páginas, de semanal passa a quinzenal e a mensal em vão [...] o último capítulo de O Cruzeiro é escrito em 1979 [...] proprietário da Editora Von Baumgarten Indústria e Comércio Ltda; ele arremata o título e anuncia uma “nova fase”. A primeira edição dessa fase sai em outubro de 79. O novo O Cruzeiro é apenas uma pálida, infeliz lembrança do original. Mensal, ao atingir o número 6, as suas vendas não passam de 11.800 exemplares, embora distribuídas as bancas.

O Cruzeiro deixou de existir no fim dos anos 1970, mas certamente ficou no

imaginário de muitos. Contribuiu com a inovação e renovação da imprensa brasileira.

Influenciou nos padrões de comportamento sociais e serviu de “vitrine” que importou

modelos norte-americanos e europeus de “ideais de civilização e modernidade”.

1.3 A revolução da imagem: a fotorreportagem em O Cruzeiro

Conforme a edição comemorativa sobre a história das revistas no Brasil90

publicada pela editora Abril, a fotografia incorporada à reportagem era uma estratégia

88 A revista no Brasil 2000 Op. Cit, p.53 89 Juarez Bahia 1990 Op. Cit, p.p.191,192 90 A revista no Brasil 2000 Op. Cit, p. 44

40

antiga. Desde 1900 a Revista da Semana usava tal recurso ao cobrirem com reportagens

fotográficas vários acontecimentos. Por exemplo, as únicas imagens conhecidas da

Revolta da Vacina, 1904, foram publicadas nesta revista. Outras revistas do início do

século XX também usaram as fotografias em suas reportagens: a Fon-Fon, O Malho,

Careta, A Ilustração Brazileira. Todavia, coube a revista O Cruzeiro a consolidação da

reportagem ilustrada, o fotojornalismo91. Esta revolução nos usos das imagens

fotográficas veio na década de 1940, e teve como protagonista o fotógrafo francês Jean

Manzon:

[..] a partir de 1943 implantou na revista uma nova linguagem visual vibrante e carregadas de dramaticidade que lhes conferia um viés opinativo, suas fotos davam às reportagens ares grandiloquentes, às vezes sensacionalista. Exigiam complicado aparato técnico, com flashes e tripés, e ocupavam páginas inteiras [...]92

Portanto, as fotografias já existiam nas revistas no início do século XX, tais

fotografias serviam de ilustração ao texto como imagens dispersas. Somente a partir da

II Guerra Mundial, que as fotografias retratavam as imagens do conflito, e com as

inovações trazidas por Manzon, O Cruzeiro transformou seu olhar para a fotografia.

Deste momento em diante houve uma nova valorização da imagem fotográfica, que

passou a “dialogar” diretamente com o texto; e dos fotógrafos que passaram a ter status

de “estrelas” da revista. De modo que:

[...] um novo padrão de concepção gráfica, no mesmo estilo das revistas Life e Match: a abertura em página dupla; prioridade absoluta para a imagem, com foto sangrada na página ímpar; titulação de impacto no tamanho e no conteúdo, geralmente sensacionalista. Os chamados “boxes” – textos de apoio à matéria principal – [...] Subtítulos e linhas finas completam as novidades. O resultado é a integração do trabalho de repórter e fotógrafo num terceiro produto padronizado pela edição93.

As grandes fotorreportagens passaram a ser constantes na revista, marcadas por

uma sequência de fotografias em variados tamanhos que narravam por meio das

imagens um acontecimento. Dessa maneira, a foto era um elemento essencial nas

91 Ibidem, p 95. 92 Ibidem, p 95 93 Luiz Maklouf Carvalho 2001 Op. Cit, p.90.

41

reportagens. De acordo com Peregrino,94 o modo da diagramação era determinado pela

disposição das fotos, que deveria produzir um sentimento, um significado a partir das

várias associações feitas entre as imagens fotográficas. Eram organizadas com fotos de

páginas inteiras, alternando com fotos menores em sequência. Outro elemento

importante era a legenda que demonstrava um conjunto de informações que ajudavam a

identificar o que estava sendo mostrado na fotografia, complementando no processo de

comunicação através da imagem.

1.4 O Esquadrão de Ouro95

As transformações na diagramação e na implantação da fotorreportagem

desenvolvidas pela revista foram de responsabilidade do fotógrafo francês Jean

Manzon. Conforme Accioly Netto,96 o fotógrafo chegou ao Brasil com bastante

experiência jornalística, pois já havia trabalhado na consagrada revista Paris Match,

famosa por suas grandes reportagens. Manzon, já era mundialmente conhecido por ter

feito no ano de 1940 fotografias do famoso um bailarino, o russo Vaslav Nijinki, que

estava doente e não se deixava fotografar, então publicadas na Paris Match.

Conforme Carvalho,97 o fotógrafo Jean Manzon foi responsável por

significativas mudanças na revista O cruzeiro. A partir da década de 1930 trabalhou

para o vespertino L’Intransigeant, na agência Meurice, na revista Vu, no jornal Paris–

Soir e na revista Match. Manzon trabalhava com o pitoresco, o sensacional recorrendo

muitas vezes a truque ou falsificações para obter a foto perfeita. Chegou ao Rio de

Janeiro em 1940 em decorrência das suas viagens para cobrir a II Guerra Mundial.

Permaneceu no Rio de Janeiro e começou a trabalhar para o Departamento de Imprensa

94 Nadja Peregrino 1991 Op. Cit, p. 62 95 Esquadrão de Ouro – termos de David Nasser. NETTO ACCIOLY, Antonio. O Império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998. p.105 96 Idem, p.p.107, 109 97 Luiz Maklouf Carvalho 2001 Op. Cit, 63

42

e Propaganda – DIP,98 o fotógrafo trabalhou ainda na revista Sombra. Em 1943,

Manzon foi contratado como fotógrafo de O Cruzeiro, sua primeira impressão foi de

uma revista que mais parecia um catálogo, um álbum de família, com fotos fixas e

idênticas99 e foi nestes aspectos que Manzon iniciou suas transformações na revista.

Segundo Peregrino,100 Manzon teve papel pioneiro na revista e pode ser

considerado:

[...] um mestre de uso consciente da linguagem fotográfica. Suas imagens indicam uma clara intervenção do fotógrafo na captação do fato, com reportagens que refletem montagens e encemações que construía com base na manipulação de procedimentos formais, utilizados para reforçar o caráter opinativo que conferia ao seu trabalho [...] marcado pela representação e pelo simulacro.

Manzon raramente utilizava o flagrante, sendo a pose o elemento primordial de

suas fotografias, com o devido preparo técnico na elaboração das suas fotografias e

fotorreportagens. Sua marca registrada foram as fotografias pousadas e o

sensacionalismo, explorado na parceria com o jornalista David Nasser. Accioly e

Carvalho afirmam que Nasser foi um jornalista de destaque em O Cruzeiro. Antes de

chegar à revista em 1943, trabalhou em O Globo e em O Jornal, muito criativo e com

uma linguagem bastante popular, formou com o fotógrafo Manzon a dupla de maior

sucesso da revista.

Conforme Carvalho,101 Nasser foi uma figura polêmica, visto por seus colegas

como excelente repórter, porém, desprovido de caráter, visto que suas reportagens eram

muitas vezes montadas a partir de uma rede de mentiras, mas que rendiam lucros à

revista. Accioly resumiu a prática profissional de Nasser da seguinte maneira: “a

verdade fica mais verdadeira quando exposta com um razoável dose de fantasia”102

Assim, dentre as duplas de fotógrafos e jornalistas atuantes na revista Manzon e

Nasser formaram uma bem sucedida parceria que rendia fotos e histórias sensacionais,

por exemplo, a reportagem sobre os índios xavantes em 1944; e a reportagem com o

deputado federal Edmundo Barreto Pinto pousando de cuecas em 1946. 98 DIP – órgão criado no período da ditadura do Estado Novo para censurar a imprensa e cultuar o presidente Getúlio Vargas. 99 Luiz Maklouf Carvalho 2001 Op. Cit, p.70 100 Nadja Peregrino 1991 Op. Cit, p. 86, 102 101 Luiz Maklouf Carvalho 2001 Op. Cit, p.p 96-127 102 Antonio Acciloy Netto 1998 Op. Cit, p.109

43

Antes do auge nos anos de 1950 O Cruzeiro tinha figuras interessantes,

pioneiros que construíram o sucesso da revista como José Amádio, Eugenio Silva, João

Martins, Eduardo Keffel, esse com grandes qualidades técnicas na área fotográfica,

responsável pela famosa fotorreportagem sobre um disco voador no Rio de Janeiro, uma

grande fotomontagem em encarte de oito páginas.103

Outras duplas célebres se destacaram em O Cruzeiro: o repórter Mário de

Morais que cobria diversos furos de reportagens e o repórter Ubiratan de Lemos. Uma

das suas reportagens, sobre os retirantes que saiam do nordeste rumo ao sul do Brasil,

ganhou o Prêmio Esso de jornalismo. Ubiratan de Lemos também formou dupla com o

fotógrafo Indalécio Wanderley que se tornou muito popular na revista.104

Outra estrela do “esquadrão de ouro” era o fotógrafo Flávio Damm, e a coluna

“Pessoas, coisas e animais” do prestigiado escritor Gilberto Freyre105; o repórter Jorge

Ferreira; o repórter–fotográfico Luciano Carneiro. Destacavam-se também os fotógrafos

Marcel Cognac, Peter Scheier, Utaro Kanai e Henri Bollot.106

Outro renomado fotógrafo foi José Medeiros. Conforme Acciloy,107 foi “um

nordestino apaixonado pelo folclore, pelos aspectos culturais, pelos mistérios, pelas

lendas Brasil a fora”. Seu estilo fotográfico era baseado na espontaneidade das

personagens e das situações. A linha de produção de Medeiros foi característica de 1950

na revista, marcada, sobretudo, pelo espírito jornalístico intuitivo, de improviso, e pelo

uso de câmeras de formato menor e mais modernas – como a Rollieflex e a Leica.108

Peregrino,109 considerou que Medeiros foi expoente de uma nova concepção

fotográfica n’O Cruzeiro, baseada em uma nova postura do fotógrafo diante da

103 A revista no Brasil 2000 Op. Cit, p.50 104 Antonio Acciloy Netto 1998 Op. Cit, p.p116, 117 105 O escrito Gilberto Freyre possui uma vasta obra Ver: FREYRE, Gilberto. Problemas brasileiros de antropologia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959; Bahia e baianos. Salvador: Fundação das Artes/EGBA, 1990; Arte Ciência e trópico. São Paulo: DIFEL, 1980; Casa Grande e Senzala (1933-1973): formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973; O mundo que o português criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas. Lisboa: Livros do Brasil, 1940; Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: Olympio, 1981; Entre outras. 106 Luiz Maklouf Carvalho 2001 Op. Cit, p.240, 246 107 Antonio Acciloy Netto 1998 Op. Cit, p.p.119, 120 108 Nadja Peregrino 1991 Op. Cit, p.p.96, 98 109 Idem, p. 100

44

realidade, da produção de uma fotografia mais espontânea. Enfatizou ainda que a partir

desta corrente:

[...] o fotógrafo interage com seu tema, suas imagens apresentam facetas inéditas com inesperadas denúncias da realidade. A abordagem de temas sociais reflete o posicionamento de José Medeiros e de outros repórteres que ao retratarem a questão das minorias e da adversidade de certas regiões brasileiras, transformam a fotografia em uma “bandeira” que aparece à luz de um novo conteúdo ideológico.

Portanto, nas fotorreportagens de Medeiros havia um destaque para o sujeito no

âmbito cultural retratando as tensões e conflitos que envolviam tais questões. Ainda

segundo Peregrino,110 na obra de Medeiros foi possível observar três aspectos

fundamentais: o primeiro a ênfase no lado humano dos personagens retratados; o jogo

de luzes e sombras, principalmente, iluminação ambiente; o último, mais subjetivo, foi a

intuição, sua capacidade de registrar momentos decisivos dos acontecimentos. Sua obra

foi marcada pela naturalidade do olhar.

A atração de Medeiros por aspectos culturais o levou a produção de uma

fotorreportagem sobre o candomblé em Salvador – Bahia em 1951. Fernando de Tacca

no livro “Imagens do Sagrado”111 um estudo no campo da Antropologia e imagem

analisou um conjunto de fotografias publicadas n’O Cruzeiro. Tacca considerou que as

fotografias retratavam a complexidade do ritual e ficou impressionado com a

proximidade e o consentimento com que Medeiros produziu as fotografias. Ao

entrevistar Medeiros, em 1988, esse, revelou que naquele ano de 1951 se sentiu

incomodado com uma publicação estrangeira112 sobre o candomblé, por isso, resolveu

fazer uma fotorreportagem que mostrasse aspectos inacessíveis aos olhos leigos dos

leitores sobre a iniciação desta religião afro-brasileira, “o verdadeiro candomblé” 113. A

partir daí, o fotógrafo de O Cruzeiro foi à Salvador - Bahia, em busca da sua

fotorreportagem.

110 Ibidem, p. 124 111 TACCA, Fernando Cury de. Imagens do Sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 112 Idem, p. 26. No cruzamento de fontes Tacca identificou esta publicação “Les possédées de Bahia” publicadas na Paris Match fotografias de Henri-Georges Clouzot em 12 de maio de 1951. 113 Ibidem, p. 19

45

Ainda conforme Tacca,114 o fotógrafo Medeiros relatou que teve dificuldades em

encontrar um terreiro de candomblé tradicional que permitisse fotografar. Assim,

através de um guia encontrou uma casa não tradicional e realizou as fotografias - o

Terreiro de Oxóssi da mãe-de-santo Mãe Riso da Plataforma. Essa fotorreportagem foi

publicada em 15 de novembro de 1951 contendo 38 fotografias. Posteriormente, Pierre

Verger foi acusado de ter produzido as fotografias, pois trabalhava na revista, na filial

da Bahia, e era ligado ao universo do candomblé.

Conforme Souty,115 Verger teria sido solicitado pela revista para produzir uma

fotorreportagem que revelasse, por meio das imagens, os segredos e mistérios do

candomblé. Ele se recusou a publicar fotografias deste caráter por razões pessoais e

éticas. Verger tivera acesso a rituais que fotografou, compartilhou tais fotografias com

Roger Bastide116, e sempre alertou e solicitou que Bastide não as publicasse. De modo

que Verger não compactuou com a publicação das fotografias de Medeiros. Um

exemplo significativo da sua posição enquanto fotógrafo não sensacionalista foram as

fotografias sobre candomblé publicadas na revista A Cigarra117 em 1949, com texto de

Bastide, abordando pela primeira vez aspectos detalhados desta religião afro-brasileira,

o candomblé, a partir de um viés positivo da religião118

1.5 No Esquadrão de Ouro: o fotógrafo Pierre Verger

Quando tiro fotos, não sou eu quem fotografa, é algo dentro de mim que aperta o disparador sem

que eu tome realmente a decisão. Não procuro fazer um belo enquadramento; o lugar das pessoas e

114 Ibidem, p.p.19,20 115 SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. p. 329 116 Bastide ligado à história das ciências sociais na USP e ao estudo de aspectos sociológicos das religiões afro-brasileiras. Ver: http://www.f-pierreverger.org/fpv/index.php/br/pierre-fatumbi-verger/biografia Acesso: 10 de abril de 2013. 117 A Cigarra (1914-1956) pertencia aos Diários Associados desde 1933. Teve grande importância na década de 1930, muitos jornalistas e fotógrafos foram transferido dela para O Cruzeiro. Luiz Maklouf Carvalho 2001 Op. Cit, p.p 55, 56 118 Fernando Cury de Tacca 2009 Op. Cit, p. 81

46

das coisas parece evidente no visor. Depois o clique deixa a foto em suspenso, ela só vai existir

muito tempo depois, no laboratório, o momento do seu verdadeiro nascimento.

Pierre Verger119

Lotados na sucursal da Bahia outra dupla fez sucesso em O Cruzeiro: o repórter

Odorico Tavares120 e o fotógrafo Pierre Verger. Eles realizaram diversas reportagens

com temas relacionados, sobretudo, a cultura afro-baiana. O francês Pierre Verger

nasceu em Paris em quatro de novembro de 1902. Pertencia a uma família da burguesia

parisiense, e levou uma “vida convencional” para sua família e para as pessoas de sua

classe social, até os anos 1930121. Contudo, conforme Souty,122 desde a infância Verger

demonstrava um comportamento não-conformista, de recusa ao meio social em que

vivia. O próprio Verger em entrevistas relatou que seu temperamento rebelde vinha da

“necessidade de não ser o menino bonzinho que a família queria que fosse”. Assim,

bastante introspectivo, viveu rebelando-se contra seu meio social, e foi expulso diversas

vezes de diferentes escolas.

Nos anos de 1920 Pierre Verger trabalhou na gráfica de seu pai, Établissements

Léopold Vreger et Cie, e também prestou o serviço militar. Ainda segundo Souty,123 a

partir da metade dos anos de 1920, e nos anos de 1930, Verger se aproximou cada vez

mais de pessoas de outros meios sociais, pessoas que partilhavam de valores

anticonformistas. Eram pintores, músicos, escritores, antropólogos, fotógrafos, um

grupo124 de artistas em geral. Inclusive, o fotógrafo Pierre Boucher ligado à Alliance

Graphique, que iniciou Verger na prática fotográfica.

No trabalho fotográfico de Pierre Boucher havia marcas do surrealismo, de

maneira que na fotografia de Verger havia certa aproximação de tal movimento,

sobretudo, na questão da valorização do cotidiano. Todavia, ainda que seja possível 119 Le messager: photographies 1932 - 1962 (1993), p. 5. Apud: SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático. São Paulo, Editora Terceiro Nome: 2011 p.20 120 O conjunto de fotorreportagens da dupla: Pierre Verger e Odorico Tavares será analisado no capítulo 3. 121 Biografia. Fundação Pierre Verger. Disponível em www.pierreverger.org/fpv Acesso em 30 de janeiro de 2012. 122 Jérôme Souty 2011 Op. Cit, p.p 236-237 123 Idem, p. p. 238,239 124 Este grupo tinha certa aproximação com o movimento surrealista e outros estilos alternativos. LÜHNING, Angela. Pierre Fatumbi Verger e sua obra. Afro-Ásia, 21-22 (1998-1999) 315-364. p.318

47

identificar marcas surrealistas na formação da obra fotográficas de Verger, o mesmo,

não aderiu oficialmente ao movimento, pois não compartilhava das concepções

intelectuais de seus integrantes125.

Outra influência determinante na vida e obra de Verger foi o contato com o Bal

Nègre (Baile Negro) da Rua Bloment, ainda em Paris na década de 1930. Local em que

se dançava a biguine uma dança antilhana, ele frequentava este ambiente com o amigo

Alfred Métraux, que era etnólogo. Verger declarou que foi naquele lugar que pegou

“[...] o vírus do mundo negro. Era maravilhoso [...] Senti aquele ambiente alegre, livre,

leve e descontraído que encontrei depois no Brasil” 126.

A partir de 1932, com o episódio da morte de sua mãe Marie Adèle Samuel

Verger, que era o último membro vivo de sua família e a quem Pierre Verger declarou

não querer magoar com uma vida errante. Sem algo que o fizesse permanecer em Paris,

iniciou uma vida entre duas paixões: a fotografia e as viagens. Conforme Lühning127 a

partir deste período Verger passou a viver da venda de suas fotografias:

[...] A sua primeira viagem mais longa o levou, em 1933, à Polinésia. A partir desta viagem, ele passou a viver de suas fotografias, colaborando com os mais diversos jornais: para o Paris Soir ele fez, em 1934, junto com o escritor Marc Chadourne e o jornalista Jules Sauerwein, uma viagem ao redor do mundo, passando pelos Estados Unidos, Japão, China e outros países; no Daily Mirror (Londres), encontra-se, entre 1935-36, uma série de fotografias com curtas legendas, especialmente da Indochina, assinadas por Mr. Lensman, um pseudônimo de Verger; para a agência Alliance Photo, ele fez a cobertura fotográfica da exposição mundial de Paris, em 1937; para a revista Life, ele viajou, em 1937, como correspondente de guerra para a China; e para a Mach (Londres), ele fez uma reportagem sobre o Vaticano, em 1938. Em 1941-42, durante a sua estada na Argentina, trabalhou para a Argentina Libre, um jornal tido como anarquista por alguns, difícil de se encontrar em bibliotecas ou instituições oficiais, pelo fato de provavelmente ter sido ligado à oposição, e para EL Mundo Argentino, uma revista com fotografias [...] trabalhou para diversos outros jornais ou revistas com os quais não tinha nenhum contrato específico ou de exclusividade, como, por exemplo, o Unesco Courier, que publicava fotos de Verger em 1959. Desenvolveu ainda, outras atividades ligadas à fotografia, como encarregado do laboratório fotográfico do Musée de I’Ethnographie (Trocadero), mais tarde Musée de I’Homme, em Paris, entre 1935-37 e como colaborador do Museu Nacional, em Lima, entre 1942-46 [...] Verger fez parte de duas agências fotográficas – a Alliance Photo (1934-1940) e A.D.E.P (1943?-1958) – além de ter colaborado também com a MAGNUM [...]

125 Toque Verger: estudo da obra fotográfica de Pierre Verger. Disponível em www.pierreverger.org/fpv Acesso em 30 de janeiro de 2012. 126 Entrevista a V. Mortaigne, “Ethnoloque Sans Carnets” (17 de junho de 1993) p.36. Apud: Jérôme Souty 2011 Op. Cit, p.252 127 Angela Lühning (1998-1999) Op. Cit, p.p317, 318

48

Esta vida de viajante com destino incerto começou a mudar quando Verger

chegou ao Brasil. Ele se dirigiu à Bahia - Salvador em 1946, já como funcionário da

revista O Cruzeiro. Conforme Souty128 a leitura da obra Jubiabá (1935) romance do

escritor Jorge Amado teria despertado em Verger o desejo de conhecer a cidade baiana,

além das influências exercidas por Roger Bastide que havia conhecido em São Paulo e

que se tornou um grande amigo no Brasil. Pierre Verger apaixonou-se pela cidade mais

africana do Brasil, suas tradições culturais e o modo de vida das pessoas. Verger

permaneceu em Salvador até sua morte em 1996.

Foi também neste período de 1946 que Verger começou a trabalhar como

fotógrafo na revista O Cruzeiro, seu amigo Alfred Métraux através da amiga Vera

Pacheco Jordão, conseguiu o primeiro contrato com a revista, o que lhe garantiu o visto

de residência no Brasil.129 Com teor próximo de 1957. Abaixo, o segundo contrato, não

há o documento do primeiro contrato.

128 Jérôme Souty 2011 Op. Cit, p.p 256-257 129 Idem, p.102

Fotografia 2 - 2º contrato entre a revista Angela Lühning Pierre Verger

contrato entre a revista o Cruzeiro e o fotógrafo Pierre Verger. Disponível em:Pierre Verger: repórter fotográfico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004

49

e o fotógrafo Pierre Verger. Disponível em:

: repórter fotográfico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p.28

50

Fotografia 3 - 2º contrato entre a revista o Cruzeiro e o fotógrafo Pierre Verger. Disponível em: Angela Lühning Pierre Verger: repórter fotográfico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p.29

51

Conforme Lühning,130 o primeiro para trabalhar na editoria nacional (1946-

1951) e o segundo (1957-1960) para O Cruzeiro Internacional. Mas, entre 1951 a 1957,

como observado acima, não houve assinatura de contratos. Contudo, o nome de Pierre

Verger já era registrado na revista como pertencente ao Departamento de Fotografia.

Neste período, as fotografias de Verger eram publicadas de modo avulso.

Percebe-se nos contratos que Pierre Verger tinha autonomia quanto à escolha

dos temas e dos lugares a serem fotografados. Assim, fotografou em Salvador, no

Recôncavo e outras regiões do interior da Bahia, como nos estados de Pernambuco, Rio

Grande do Norte, Pará. Nestes locais, “Cobre as manifestações festivas e religiosas,

interessa-se pelo artesanato, pelas figuras da cultura local e pelos ofícios tradicionais”.

Aprofundou seu interesse pela cultura afro-brasileira, principalmente, por questões

ligadas a religiosidade no Brasil - Bahia e na África - Golfo do Benin e os laços entre

estas regiões. Já a partir de 1950 Verger viajou à África financiado pelo Institut

Français d’Afrique Noire (IFAN). Além, do Ifan, Vreger manteve vínculos com o

Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e com a Universidade Federal da

Bahia desenvolvendo pesquisas sobre tais ligações131.

Verger tinha um projeto de publicação para a revista O Cruzeiro, pautado em

fotorreportagens que tratassem de questões ligadas aos sujeitos e seu contexto cultural

no âmbito maior das relações Brasil – África. Conforme Lühning,132 a partir do segundo

contrato Verger propôs diversos artigos sobre países da América e da África. No

entanto, estes artigos relacionados à África não foram publicados, a revista devolveu o

material argumentando que “não era precisamente aquilo que a O Cruzeiro queria”.

Ressaltou ainda, que houve uma “incompatibilidade de expectativas e de

projetos”, pois, certamente Pierre Verger não compartilhava da linha editorial

desenvolvida por O Cruzeiro. Ainda que, a relação profissional de Verger com O

cruzeiro não tenha sido de todo satisfatória para o fotógrafo, devido as não publicações

e aos atrasos constantes de salários, possibilitou através das viagens, o despertar de

temáticas que realmente importaram para o fotógrafo.

130 LÜHNING, Angela. Pierre Verger: repórter fotográfico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004 p.p 14,15,22 131 Jérôme Souty 2011 Op. Cit, p.p 46, 102 132 Angela Lühning 2004 Op. Cit, p.p.36,38,41

52

Na vigência do primeiro contrato, Verger teve diversas fotografias publicadas.

Além das avulsas, houve um conjunto de fotorreportagens “Acontece que são baianos”

com textos de Gilberto Freyre, que enfatizou as ligações luso-afro-brasileiras entre

Bahia e Benin. Outro conjunto de fotografias foram tiradas na Bahia, mas que fizeram

referência à herança africana, com textos de Odorico Tavares. Outro parceiro

importante na interlocução e colaboração de suas pesquisas foi o seu grande amigo

Roger Bastide133.

O olhar de Pierre Verger sempre esteve direcionado para o “outro” nas cenas

cotidianas, relacionadas ao trabalho (como os vendedores de rua, os estivadores, os

pescadores, etc), as brincadeiras; cenas banais, os corpos em movimentos, sobretudo

dos negros do nordeste brasileiro e dos iorubás e fons da África134. Em suas fotografias

segundo Souty135:

[...] está condensada a particularidade do estilo de Verger: revelar o que o outro lhe transmitiu, algo de sua intimidade, a alteridade que seduziu o fotógrafo. As fotografias de Verger traduzem um olhar sensível e permeado de curiosidade benevolente sobre a grande família humana. Homens únicos por toda parte, e por toda parte idênticos.

Segundo Souty,136método fotográfico e de pesquisas foi marcado pelo encontro

com o “outro”, porém de maneira sutil e natural. Em entrevista137 Verger relatou que se

empenhou para que os fotografados esquecessem o seu status de fotógrafo, “Só me

sinto à vontade para fotografar se estou sozinho, se consigo que esqueçam e, sobretudo,

se ninguém olha para a máquina, [se] sinto que as pessoas não sabem que estou ali”.

Neste sentido, a técnica da máquina fotográfica utilizada por Verger favoreceu seu

133 Ver: BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; Ensaios de metodologia afro-brasileira; método linguístico. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, São Paulo, 1939; Estudos afro-brasileiros. Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, 1944; Entre outros. 134 Jérôme Souty 2011 Op. Cit, p.53 135 Idem, p. 51 136 Ibidem, p.p.56, 57 137 “Pierre Verger, etnoloque”, Mémoires du siècle, Rádio France Culture (8 de outubro de 1989). Apud: Jérôme Souty 2011 Op. Cit, p.58

53

método, pois a Rollieflex138 era pequena, leve e móvel com grande precisão no

enquadramento fixava de modo instantâneo todos os ângulos. Ao escolher a Rollieflex:

[...] Verger se apropria de um instrumento que se ajusta a sua própria psicologia e se torna suporte de sua visão de mundo [...] o formato quadrado (negativo 6X6) [...] implica uma estética particular da imagem, um tipo específico de enquadramento. É uma máquina de visor central, que fica suspensa do nível do peito até o baixo-ventre, o que leva Verger a tirar vários retratos de baixo para cima (o chamado ângulo de tomada contrapicado) sem provocar o fotografado olhando-o pelo visor como se fosse um ciclope, como acontece com as câmeras clássicas de uma lente. Mas o eixo da tomada da imagem não pode ser horizontal (como quando a foto é feita no nível dos olhos), porque o corpo da câmera é levemente orientado para cima. A Rollieflex obriga o fotógrafo a inclinar ligeiramente o busto diante das pessoas ou paisagens, como numa saudação, numa prece ou num rito de celebração da beleza do mundo.139

Desta maneira, a Rolleiflex foi perfeita para Verger, pois era discreta, assim os

indivíduos nem se davam conta de que estavam sendo fotografados, possibilitando uma

espontaneidade e naturalidade. Verger procurou captar suas fotos sem o uso do flash, ou

seja, usando a luz natural. Assim, grande parte, das suas fotografias foram feitas em

preto e branco, no jogo de sombras e contrastes com a intensidade da luz, e também sem

recorrer a efeitos como montagens ou deformações. Preocupou-se menos com técnicas

estetizantes, o fundamental mesmo foi sua relação com os sujeitos fotografados.

Pierre Verger foi um mensageiro entre “vários mundos”, sobretudo, partes da

América central, o Brasil e partes da África. Seu interesse pela cultura negra foi

demonstrado através de suas fotografias. Partilhar imagens, construir laços, aproximar

pessoas em um intercâmbio transatlântico. Dedicou-se a pesquisar as questões culturais

e religiosas entre o Golfo do Benin (África) e o Nordeste brasileiro (Bahia), as

semelhanças entre os cultos afro-brasileiros e os cultos africanos. De modo que

mergulhou a fundo nestas questões, foi iniciado no universo religioso do candomblé em

Salvador (Bahia) e no Ifá140 em Ketu (África). Preocupou-se em traçar as semelhanças,

os parentescos entre as crenças, os valores espirituais, as formas de expressão dos

rituais, a produção material, os saberes imateriais (como a adivinhação e a farmacopeia)

138 Introduzida na França em 1928. Idem, p.56 139 Ibidem, p.56 140 Neste universo religioso do Ifá Pierre Verger foi rebatizado com o nome de Fatumbi que significa “Ifá me fez renascer”. Ibidem, p.259

54

e as formas de organização social. Seu interesse pelas trocas entre o Brasil – Bahia e a

África – Golfo do Benin resultou na sua tese de doutorado “Fluxo e refluxo do tráfico

de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a

XIX” defendida em 1966 na Sorbonne e publicada em 1968. A produção deste trabalho

obrigou Verger a enveredar pelo caminho da escrita, e sua dedicação ao longo da vida

ao universo do negro o consagrou como fotógrafo, historiador, antropólogo, etnólogo e

botânico. Por conseguinte, deixou uma vasta obra tanto de produção fotográfica e

publicações, quanto em organização de fontes na Fundação Pierre Verger

possibilitando assim, a continuação de suas pesquisas.

55

CAPÍTULO 2

Acontece que são baianos: África sob as lentes de Pierre Verger e os textos de Gilberto Freyre

2.1 Os retornados: Festas populares e Catolicismo no Benin

No ano de 1951 a revista O Cruzeiro lançou uma série de reportagens chamadas

“Acontece que são baianos” com fotografias exclusivas de Pierre Verger e textos de

Gilberto Freyre versando sobre a região do Golfo do Benin na África141.

O CRUZEIRO inicia, hoje, nestas páginas, a publicação de uma série de reportagens de Gilberto Freyre e Pierre Verger, em que são fixados aspectos da vida e da conduta social de descendentes de brasileiros e de africanos que, tendo estado longos anos no Brasil, e especialmente na Bahia, regressaram à terra de origem portanto, nesse retôrno, costumes, cantigas, danças, canções e hábitos alimentares tipicamente brasileiros. Portanto, no regresso ao Continente Negro, crenças, ritos e também estilos arquiteturais do Brasil. Embora O CRUZEIRO não seja uma revista especializada em assuntos de antropologia, etnografia e sociologia, não procurou abordar tema tão apaixonante apenas pelo aspecto pitoresco que êle pudesse apresentar. O Cruzeiro 11 de agosto de 1951 nº43- Ano XXIII p.p 72,73.74,75,76,104,45

Nesta apresentação da série de reportagens posso hipotetizar uma sensibilidade

à temática que hoje dialoga com a História Cultural, como as sociabilidades, o

cotidiano, no caso, de descendentes de ex-escravizados, nascidos no Brasil ou em

África, que retornaram ao continente africano. A justificativa para esta série se baseou

141Este material fotográfico e de identificação de documentação diversa sobre os chamados “retornados” deu origem posteriormente a tese de doutoramento de Pierre Verger publicada em 1968 na França. VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. Tradução Tasso Gadzanis. São Paulo: Corrupio, 1987. Sobre os retornados ver também: BRAGA, Júlio Santana. Notas sobre o “Quartier Brésil” no Daomé. Estudos Afro-asiáticos nº6-7, 1968.

56

no interesse de elementos e influências culturais nas trocas entre Brasil, sobretudo a

Bahia, e a região do Golfo do Benin, África. A proposta da série foi abordar temas em

África para além dos “aspectos pitorescos”.

Estes temas foram tratados separadamente nas fotorreportagens. A

primeira abordou as festas.

Festas populares levadas do Brasil para África por africanos abrasileirados pela Bahia – Cantigas do Brasil ainda hoje cantadas em português – Erotismo contido por familismo – Explicação da sobrevivência do “brasileiros” na África e de sua resistência à reabsorção pela cultura africana. Não é de admirar que dentre os elementos de cultura brasileira levados à África por africanos abrasileirados por longo contato com o Brasil, destaquem-se as festas. As festas populares, com sua gorda e bonita substância folclórica. As festas profanas, das quais nem sempre é fácil separar as religiosas propriamente ditas. Quase todos os africanos “brasileiros” voltaram à África, da Bahia. Às vêzes de outros pontos do Brasil, mas “via Bahia”. Abaianados, portanto. Amaciados, urbanizados, polidos pela Bahia. E quem diz Bahia ou baiano diz festa, bôlo,doce, mulata, alegria e até pecado: os sete pecados mortais refugiados à sombra de todos os santos. Diz música, dança, canto, foguete, capoeiragem, pastel enfeitado com papel de cor e caprichosamente recortado, caruru, violão, balangandã, chinelinha leve na ponta do pé da mulher (em contraste com o tamanco pesadamente português do homem), saia de roda, camisa ou cabeção picado de renda, de mulatas, de quadraronas provocantes Não é de admirar que as cantigas em língua portuguêsa do Brasil um tanto estropiada pela distância e pelo tempo [...] descendentes de “brasileiros” ou “baianos”, estejam salpicadas de brasileirismos de dia de festa.

O Cruzeiro 11 de agosto de 1951 nº43- Ano XXIII p.p 72,73.74,75,76,104,45

No texto acima, os autores consideraram que foi a partir da Bahia que muitos

elementos festivos existentes entre os “retornados” à África como a culinária, a música,

as danças, o vestuário foram conservados na região de Porto Novo. Estes “retornados”,

que foram “amaciados, urbanizados, polidos pela Bahia” regressaram a África e

produziram representações de “festa”. Para Freyre, tal conservação se deu por via

materna:

[...] esses “brasileiros”ou “baianos” vêm-se conservando “brasileiros”à sombra do culto da família ou da casa cristãmente organizada em tôrno da mulher de monogania, culto que os tem distanciado social e psicologicamente da maior parte dos demais africanos [...] A grande mãe – a mãe das mães – parece que, para os africanos “brasileiros” de Pôrto Novo, vem se conservando a Bahia. Mãe das mãe – ou mãe comum – à qual os descendentes das simples mães individuais se conservavam fieis através de um culto de família cristãmente organizada que transparece nos próprios cantos de festas de rua, ou profanas, cujo erotismo é contido pelo familismo ou pelo domesticismo. Esse culto é que principalmente parece explicar a sobrevivência, na África, daquele grupo de descendentes de africanos “brasileiros”: sua resistência à reabsorção pela cultura africana.

O Cruzeiro 11 de agosto de 1951 nº43- Ano XXIII p.p 72,73.74,75,76,104,45

57

Retomando estes mesmos sujeitos, os “retornados” à região do Golfo do

Benin, em estudo realizado trinta anos depois, Cunha142 ressaltou as diferenças

culturais entre estes “brasileiros” e os chamados “negros da terra”, tendo as práticas do

catolicismo entre estes dois grupos também como enfoque. Cunha143 partiu da hipótese

de que a presença do catolicismo entre os “brasileiros” desta região seria como uma

“identificação necessária para se definirem as fronteiras de um grupo de interesse,

desejoso de se apropriar do comércio com o Brasil e da posição de intermediário no

comércio com o interior”. Assim, o catolicismo forneceu ao grupo de “brasileiros” uma

identidade que os tornou diferentes da população local tida com “animista” e dos

“saros” protestantes.

Freyre e Verger tiveram esta percepção da existência de diferenças nos modos

de crer:

Ao contrário: êles continuam a influir sobre essa cultura no sentido de sua cristanização e do seu luso-abrasileiramento. Reconhece-o A. B. Loatar em TheTorch Bearers. Aí escreve que escravos e filhos de escravos africanos, tendo absorvido, na América, alguma coisa de civilização e da religião de seus senhores, comunicaram à África, no seu regresso, os valores adquirido na América. O Cruzeiro 11 de agosto de 1951 nº43- Ano XXIII p.p 72,73.74,75,76,104,

Observamos que o autor considera que estes “brasileiros” resistiram à

“reabsorção pela cultura africana”. Conforme o texto estes “brasileiros” absorveram

“alguma coisa de civilização e de religião”, no caso à católica, e levaram à África tais

valores quando regressaram. Para Freyre estes “brasileiros” buscavam converter os

sujeitos da comunidade ao catolicismo a partir de um viés “luso-abrasileirado” e resistir

a uma “reabsorção da cultura africana”.

142 CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. 2ª ed. rev. ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 143CUNHA, Manuela Carneiro da.. Religião, comércio e etnicidade: uma interpretação preliminar do catolicismo brasileiro em Lagos no século XIX. IN: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. Brasiliense, São Paulo, 1987.

58

Fotografia – 4 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos O Cruzeiro 11/08/ 1951

59

Fotografia – 5 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos I. O Cruzeiro 11/08/1951

Fotografia – 6 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos I. O Cruzeiro 11/08/1951

60

Fotografia –7 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos I. O Cruzeiro 11/08/ 1951

Partindo para a análise das fotos que juntas em uma série, produzidas por Pierre

Verger, que constituem a parte visual das fotorreportagens, nas fotos de número 4, 5, 6 e

7 as imagens retratadas apresentam a festa do Bonfim em Porto Novo. Nelas, Verger

destacou que era intensa a presença dos descendentes dos “retornados” no Benin,

África. Nas fotos 4 e 5 temos os retratos em close, com o semi-perfil, ou seja, o

enquadramento que não mostrou o corpo inteiro dos fotografados, isso permitiu

evidenciar os rostos, os sujeitos em suas ações, característica de Verger. Estas fotos

mostram os descendentes dos “retornados” com instrumentos musicais, cantando,

conforme o texto, canções brasileiras e dançando o samba. É possível observar também

os trajes que os indivíduos estavam usando, com influências brasileiras. Embora as

fotos sejam em preto e branco o texto nos informou que os trajes eram coloridos, nas

cores da bandeira do Brasil.

61

A festa começava com um grande desfile, com aspectos típicos do carnaval

baiano, com as pessoas fantasiadas. A ênfase diferencial foi a existência de uma

bandeira de abre-alas com a inscrição “Grande Soirée Brésilienne de Buorihan” como

observamos na foto 3. Nesta faixa, destacou-se as bandeiras do Benin e do Brasil

entrelaçadas, e o desenho de um cavalo, “a burrinha” na África ou o “bumba meu boi”

no Brasil, o que mostrou o significado da festa, a união das culturas brasileiras e

africanas. Na foto 4 temos um casal fantasiado com máscaras e trajes dançando, uma

menção ao carnaval do Brasil. Nas fotografias, Verger evidenciou as pessoas, os corpos,

os movimentos, as danças, a parte profana da festa religiosa reforçando a ideia

apresentada por Freyre nos textos, as fotografias evidenciaram a valorização de uma

cultura luso-brasileira em África.

Na segunda reportagem da série, o tema festa do Bonfim continuou sendo

explorado, sobretudo as questões relacionadas ao catolicismo. Esta fotorreportagem foi

intitulada – “O Senhor do Bomfim domina a África”.

Festas e cerimônias religiosas entre africanos “brasileiros” de Lagos – Nomes cristãos e de famílias – Cemitérios e Capela cristãs – Irmandade e culto do Senhor do Bomfim – Testamento cristão de um “ioiô” rico e dono de escravos. Já sugerimos esta explicação para a sobrevivência dos africanos “brasileiros” em Lagos e noutros pontos da África como grupos não só predominantemente endogâmico – isto é, de gente que vem casando entre si – como culturalmente diferenciado da cultura puramente africana pelo conjunto de costumes, hábitos e estilos de vida abaianados que conservam: o fato de sua fidelidade ao catolicismo à moda festivamente baiana. Fidelidade não só teológica e litúrgica, através da fé e do culto dos santos católicos, como moral ou social, através da organização senão monogâmica, patriarcal, de família e do culto, ao mesmo tempo religioso e familial, da Mulher-Mãe. (...) Não se pense, porém, que essa fidelidade dos “brasileiros” da África ao catolicismo venha sendo absoluta. No seu The Torch Beares (Lagos1943) A. B. Laotan lembra que a “colônia brasileira” nem sempre tem sido homogêneamente Católica e brasileira. Ao bloco “brasileiro” juntaram-se, mais de uma vez, repatriados da América espanhola, principalmente de Cuba. E ainda que do conjunto se deva dizer que se caracteriza pela religião Católica adquirida na América – portuguêsa ou espanhola – mais de um indivíduo, batizado na Igreja, tem regressado a religiões ou cultos africanos ou a fé maometana. São, porém, dissidentes uns; e outros exceções. Do conjunto de “brasileiros” da África se pode, na verdade, dizer que se conservam sociologicamente “católicos” e sociologicamente “brasileiros”, admitidas as inevitáveis deturpações de sua catolicidade e de sua brasilidade ou baianidade. Deturpações causadas pelo tempo e pela distância. Distância das fontes de ortodoxia. O Cruzeiro 18 de agosto de 1951 nº44- Ano XXIII p.p 62,63,64,68,90

62

Continuando a reportagem, o autor Gilberto Freyre falou das influências

brasileiras que os “retornados” levaram para África, Golfo do Benin e em seguida

conclui a reportagem.

O padre Lafitte (...) nota (...) que êsses ex-escravos que, pelo “mais inocente dos orgulhos”, não queriam ser considerados “negros” porém cristãos, não tinham, às vêzes, de cristãos senão o nome ou o batismo ou a aparência: até “divindades negras” invocavam alguns dêles. A África a querer reabsorver sua própria gente. Sua própria carne. A querer vencer, quebrar, destruir o que de sagrado ou de santo os “brasileiros” tinham trazido da Bahia juntamente com os nomes de família, os chambres, as saias, a língua, os ritos de família, a liturgia religiosa, as farinhas, os deces, os cantos, os costumes imitados dos ioiôs e das iaiás brancas. A verdade, porém, é que nessa luta entre a Bahia e a África – luta cujo campo de batalha tem sido menos a carne que o espírito de ex-escravos, em parte desafricanizados pelo Brasil – a Bahia vem conseguindo conservar seu estandarte em plena terra inimiga. Seu estandarte marcado pela Cruz de Cristo. O Cruzeiro 18 de agosto de 1951 nº44- Ano XXIII p.p 62,63,64,68,90

Podemos observar que neste fragmento, a representação de África foi construída

como uma “terra inimiga”, que tenta reabsorver os “retornados”, então cristãos ou

mestiços. Tentativa frustrada, pois os cristãos “abrasileirados” continuavam fortemente

ligados ao catolicismo, sobretudo por via de uma matrilinearidade baiano-afro.

Na fotografia abaixo, de número 8, Pierre Verger destacou alguns elementos da

festa do Senhor do Bonfim e das representações dos dias de Reis, celebradas na Bahia e

também festejado em África pelos descendentes do “retornados”. Temos três imagens

compondo a fotografia 8. Na foto maior à esquerda, Verger mostrou três indivíduos

organizando os preparativos para a festa do Senhor do Bonfim, com trajes típicos

africanos como o pagne, e turbantes. Portanto, uma representação de si ao modo

africano, e não luso-brasileiro como Freyre afirmou. Do lado direito, abaixo, um semi-

perfil de uma mulher, também usando turbante. Acima uma espécie de lápide com

agradecimentos a Deus, um hábito brasileiro.

63

Fotografia – 8 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos II. O Cruzeiro 18/08/1951.

64

Fotografia – 9 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos II. O Cruzeiro 18/08/1951

Fotografia – 10 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos II. O Cruzeiro 18/08/1951

65

Fotografia – 11 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos II. O Cruzeiro 18/08/1951

Numa perspectiva de marcar estas similaridades entre África e Bahia,

constituídas pelas fotos de número 9, 10 e 11, tiradas em África, Verger destacou (fotos

9 e 10) uma sequência de semi-perfis de homens e mulheres, na parte profana da festa.

Com destaque para os trajes, enfatiza uma mistura de influências brasileiras e africanas

e nas comidas, na pratica das mulheres partilhando o alimento, sentadas no chão.

Verger também enfocou os rostos alegres, satisfeitos com a festa. A sequência

retrata o lado profano da festa, que foi considerada por Freyre, no texto, como

“tradicional da Bahia Católica”.

66

Questão interessante sobre as apropriações culturais e seus sentidos, pois na

Bahia tais festas são consideradas fortemente influenciadas por elementos africanos.

Sobre apropriação Chartier144 propõe:

[...] compreender como é que um texto pode “aplicar-se” à situação do leitor, por outras palavras, como é que uma configuração narrativa pode corresponder a uma refiguração da própria experiência. No ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos discursos, isto é, a maneira como estes afetam o leitor e o conduzem a uma nova norma de compreensão de si próprio e do mundo. [...] Todo o trabalho que se propõe identificar o modo como as configurações inscritas nos textos, que dão lugar a séries, construíram representações aceites ou impostas do mundo social, não pode deixar de subscrever o projeto e colocar a questão, essencial, das modalidades da sua recepção. [...] A apropriação, tal como entendemos, tem por objetivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem.

Na foto de número 11, que enfoca a Irmandade do Senhor do Bonfim, com o

estandarte da festa, os homens e mulheres usavam faixas com as cores da bandeira do

Brasil.

2.2 As heranças materiais e a dinastia do Xaxá

CASAS BRASILEIRAS NA ÁFRICA Arquitetura de feitio brasileiro ou baiano na África – Mestres de obras, construtores, pintores de casas – As artes do móvel, da cozinha, do doce, do traje, levadas da Bahia para a África por africanos abrasileirados. Sobrevivência da cultura brasileira na África, através da casa e das artes domésticas. Diz-se em Lagos que, ao chegar ali em 1897, um governador britânico do Protetorado que era também engenheiro ilustre – Sir Henry Me Allum – saiu a passeio pela cidade. Em certa rua, defrontou-se com a Pro-Catedral da Santa Cruz. Ficou assombrado. Admirou de olhos arregalados as tôrres bem construídas: eram admiráveis como arquitetura. Soube então que a primeira das tôrres fôra construída sob a direção de um padre europeu. A outra, porém, construíra-a sozinho um “africano” brasileiro: “ioiô” Francisco Nobre [...]. O Cruzeiro 25 de agosto de 1951 nº45- Ano XXIII p.p 102,103,104,106

144 Roger Chartier, 1999. Op cit p.p.24, 25, 26, 27

67

Freyre, no texto da fotorreportagem enfatizou as relações entre a arquitetura em

Lagos e a grande fama de bons “engenheiros” que os “retornados” alcançaram, pois

construíram grandes mesquitas e catedrais. Seus sobrados no bairro brasileiro serviram

de modelos, além de atestarem a fortuna de seus proprietários.

O inglês, como bom inglês, raciocinou logo: Se africanos de volta dos Brasis podem levantar tôrres como esta, por que não escolher o Gôverno de Lagos um grupo de rapazes africanos mais inteligentes para que sejam enviados à Inglaterra a fim de estudarem engenharia? Foi o que se fêz. Não nos esqueçamos, porém de que na base desta revolução técnica nas relações da imperial Grã-Bretanha com a África se encontra uma tôrre de igreja levantada por um africano que aprendera a arte de construir com mestres de obras do Brasil. O Cruzeiro 25 de agosto de 1951 nº45- Ano XXIII p.p 102,103,104,106

Da mesma forma que o governador inglês do século XIX admirou o trabalho

desenvolvido por africanos “abrasileirados” em construções arquitetônicas, Freyre

também o fez.

Fotografia – 12 O Cruzeiro 25/08/1951

68

Fotografia – 13 O Cruzeiro 25/08/1951

Fotografia – 14 O Cruzeiro 25/08/1951

69

Numa íntima correlação texto e imagem, as fotografia de número 12, 13 e 14

mostram a herança material luso-brasileira nas construções arquitetônicas. Os detalhes

nos portões e fachadas referenciam os casarões senhoriais; e a identidade católica é

expressada na cruz desenhada nas edificações. Embora, na fotografia 14, na parte

superior haja também o símbolo dos leões que pode se configurar uma mística entre o

catolicismo e elementos africanos.

Na fotorreportagem seguinte, os “brasileiros” são representados como grandes

comerciantes no Daomé,

Comércio entre a África e o Brasil – Os “brasileiros” como comerciantes internacionais – “Brasileiros” que se tornaram grandes senhores na África – Feudalismo agrário e burguesia comercial – Bandeira entre os “brasileiros” da África? – “Baianos” que talvez fôssem paulistas ou cearenses. (...) ali se estabeleceram como comerciantes, ou descendentes dêles que também “regressaram” à África e ali se tornaram príncipes do comércio. Porque dos comerciantes alguns se tornaram grandes senhores: em meios ainda primitivos em sua estrutura foram êles senhores ao mesmo tempo feudais e burgueses. O poder econômico unido ao político. (...)De alguns dos grandes comerciantes “brasileiros” de Dahomey deve-se destacar que foram, no meado do século XIX, ex-escravos africanos, no Brasil, que, de libertos, passaram a traficantes ou negreiros. Frederick E. Forbes, no seu trabalho, em dois volumes, Dahomey and the Dahomians, publicado em Londres em 1851, fala de um dêles como de um grande de Espanha. Até tratamento de “Don” lhe concede. (...) “o mais rico dos negociantes de escravos em Wydah, Don José Almeida, é ex-escravo, vendido no próprio pôrto de Popoe donde agora domina um monopólio”. E acrescenta: “Êste homem notávelmente inteligente e astuto foi educado nos Brazis durante o tempo em que foi escravo naquele país”. O Cruzeiro 01 de setembro de 1951 nº46- Ano XXIII p.p 52,53,54,56,36,37,40,41

Freyre ressalta um ex-escravo africano receber o tratamento de “Dom” e justifica

tal prestígio social da educação recebida no Brasil. Segundo Cunha145, os “brasileiros”

retornados aproveitaram seu domínio da língua portuguesa, e as conexões que haviam

estabelecido na Bahia para de certa maneira monopolizar as relações comerciais com o

Brasil.

O Brasil, havia se tornado grande exportador de mercadorias africanas como

fumo de rolo e aguardante de cana. Importava o azeite-de-dênde, além de outros itens

145 Manuela Cunha 1987 Op. Cit, p. 91

70

no fluxo de trocas com a África. Continuando a reportagem, Freyre ressaltou o poder

econômico e o prestígio social destes “mestiços brasileiros”.

Informou-se Forbes das condições em que vinham para África os “brasileiros”. Soube que alguns tinham quer pagar pela liberdade, na Bahia e no Rio, o equivalente a “300 dólares”. E uma vez na África, nem plantação de palmeiras. E era dono de ser novamente vendidos como escravos. Talvez êsse risco explique o fato de vários terem se tornado negreiros. Tornando-se perseguidores, garantiam-se contra o perigo de serem perseguidos. Enriquecendo, o poder econômico lhes dava meios de se livrarem das garras de leão dos reis da África e das traições de raposa dos negreiros brancos. Ao contrário: reis e negreiros brancos os cortejavam como cortejavam o milionário chamado Domingos José Martins, a quem se refere Forbes na página 83 do volume II do seu livro. Ao que parece, o mesmo “Domingo Martinez” cuja figura de negociante poderosos vem fixada por Richard Burton em A Mission to Gelele, king of Dahomey, cuja 2ª edição apareceu em Londres em 1864. O Cruzeiro 01 de setembro de 1951 nº46- Ano XXIII p.p 52,53,54,56,36,37,40,41

Entre estes “brasileiros” podem ter enriquecido com o tráfico, pois além de

estabelecerem redes de comércio, tinham apoio político junto às realezas locais.146

Ganhavam poder político, econômico e prestígio social.

Deste outro “brasileiro” que na África se tornou ao mesmo tempo uma espécie de “grande de Espanha” e uma espécie de Rotchild, diz Burton que a sua casa era a melhor de Wydah. Tinha pátio com laranjeiras, como se fôsse casa da Andalucia. Era de telha. Seus quartos eram frescos e agradáveis. Decoravam-nos retratos e pinturas a óleo. Caixas de música animavam-se com a novidade de sua música mecânica. A julgar pelo escreve Burton, as caixas de música foram, entre os “brasileiros” e outros novos-ricos da costa da África Ocidental, no meado do século XIX, verdadeira praga. Havia quem na mesma casa fizesse funcionar meia dúzia ao mesmo tempo. Era – ao que parece demonstração de prestígio. Ter caixa de música era ser civilizado, ser adiantado, ser rico. O Cruzeiro 01 de setembro de 1951 nº46- Ano XXIII p.p 52,53,54,56,36,37,40,41

Para além do poder econômico demonstrado nas construções de suas casas os

“brasileiros” mantinham uma intensa vida cultural na dança, na música,147o que explica

o gosto por caixas de música. É interessante as trocas dos dois lados do atlântico, “ter

caixa de música era ser civilizado” em Lagos, no entanto, o gosto pela dança, pela

música na Bahia era e ainda é herança africana.

146 Idem, p.109 147 Idem, p.145

71

A presença da comunidade “brasileira” de certa maneira alterou a organização

política e econômica em Lagos. Esses “novos ricos” estabeleceram redes de relações

tanto no Brasil como em África, inclusive ao lado dos dirigentes e dos grandes

comerciantes, assim, “o africano brasileiro” estava em uma relação de troca e não

“superando o africano puro como senhor de terras e populações”.

Fotografia – 15 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos II. O Cruzeiro

01/09/1951

72

Fotografia – 16 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos II. O Cruzeiro

01/09/1951

Fotografia – 17 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos II. O Cruzeiro

01/09/1951

73

Fotografia – 18 FREYRE, Gilberto; VERGER, Pierre. Acontece que são baianos II. O Cruzeiro

01/09/1951

As fotografias16, 17 e 18 foram reproduzidas por Pierre Verger dos álbuns de

família dos descendentes dos “retornados”. Dando significância ao texto, retratam a

imponência destes senhores “abrasileirados” e suas famílias. Estas fotografias

apresentaram “homens poderoso”, em trajes e posturas de “superioridade” como os

senhores que foram retratados ostentando becas de formatura. Estes sujeitos realizaram

seus estudos ou na Bahia ou na Europa.

Verger reproduziu também retratos de família, como na foto 15, demonstrando

como estes “retornados” tiveram um poder aquisitivo e um prestígio social na África.

Percebemos uma representação de si, ao modelo europeu e próximo aos senhores

brasileiros. Representação de si, pois as fotografias dos personagens da reportagem

foram reproduções de álbuns de família.

Acima, na fotografia 18 Verger retratou uma Mesquita. Apesar de Freyre

concentrar-se nos elementos católicos, houveram “retornados” mulçumanos148, por isso,

a construção de uma Mesquita. Esta, erguida por um brasileiro chamado Paraíso,

novamente enaltecendo as heranças materiais brasileiras.

148

Manuela Cunha. 2012. Op cit p.226

74

A próxima fotorreportagem, Freyre apresenta a controvertida figura de Francisco

Félix de Souza, o Chachá.

A DINASTIA DOS XAXÁ DE SOUZA Mistério em torno de um nome com dois xx – Que é Xaxá? – A vida romântica de um mulato brasileiro na África – Os Sousas: dinastia de pardos brasileiros entre prêtos africanos – Eminências pardas e Reis negros – Doutores de Londres. Quem passar, mesmo de raspão, pelo assunto fascinante que é a história das relações do Brasil com a áfrica, não tanto à sombra como à margem da escravidão – o regresso as terras africanas de pretos abrasileirados pelo contato com a sociedade brasileira e até a ida àquelas terras de mulatos maciamente baianos ou astutamente cariocas – não deixará de ser atraído pelo mistério deste nome com dois xx: Xaxá. Xaxá! Mas que é Xaxá? Mas discute-se ainda hoje o pôrque dêste nome. Os africanologistas divervem. Há quem suponha Xaxá um brasileirismo: Foa chega a dizer que Xaxá é corruptela africana de palavra do “patois” “brasileiro” que significa “moedeiro falso”. Herissé dá outro sentido à palavra: os africanos teriam dado ao brasileiro Souza o apelido de Xaxá por causa do seu modo vivo de andar: passos curtos e apressados. Ollivier ou “Olliveira” oferece ainda outra explicação colhida pelo pesquisador Pierre Verger na sua última viagem a terras africanas: os indígenas da África passaram a chamar de Xaxá o mulato vindo do Brasil porque era como Souza parecia chamá-los senhorilmente para o trabalho quando dizia em português: já-já! Aos ouvidos africanos Xaxá. Curiosa figura, a do mulato Souza, que o capitão Canot no capítulo XV do livro CAPTAIN CANOT OR TWENTY YEARS OF AN AFRICAN SLAVE TRADER, publicado em New York em 1856, chama de “Señor de Souza”, mais conhecido pelo nome de Chachá; e diz que era “mulato nascido no Rio de Janeiro”. Viera a África – segundo Canot – num navio negreiro por êle abandonado do mesmo modo que já abandonara o serviço militar do Brasil. Richard Burton, porém, no seu A MISSION TO GLELE, KING OF DAHOMEY, publicado em Londres em 1864, diz que Souza deixara o Rio em 1810 por simples espírito de aventura. Para ver o mundo. O Cruzeiro 08 de setembro de 1951 nº47- Ano XXIII p.p 62,63,64,74,82,110

Em estudo recente sobre a figura de Francisco Félix de Souza, o Chachá, Costa

e Silva149 considera independente da origem do nome Chachá, que Francisco Félix se

tornou um grande chefe entre os daomeanos com prestígio digno dos grandes reis. Que

era baiano, nascido em Salvador, informação que o próprio Souza deixou em uma carta

de alforria de uma escrava no ano de 1844 e que provavelmente era mestiço indefinido.

149 SILVA, Alberto da Costa e. Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: EdUERJ, 2004. Alberto da Costa e Silva usou a grafia Chachá, mas na fonte a usada foi Xaxá.

75

Sem ser homem instruído, sentira, entretanto, o brasileiro Souza, ao tocar o solo africano, que a vida lhe reservava alguma coisa de novo. Que no comércio de escravos poderia realizar maravilhas. Que a côr da sua pele e o fato de falar bem o português, por um lado, e a língua dos negros, por outro, faziam dêle um tipo ideal de intermediário. Aos olhos dos negros agia o mais possível como negro; entre os brancos, suas maneiras eram as dos brancos finos do Brasil. Por essas artes de mulato, é que conseguiu as melhores consignações do Brasil e de Cuba e, ao mesmo tempo, a proteção do rei Dahomey. O Cruzeiro 08 de setembro de 1951 nº47- Ano XXIII p.p 62,63,64,74,82,110

Ao chegar à África, Francisco Souza procurou estabelecer relações comerciais

no grande negócio da época, o tráfico de escravos. Sua habilidade nos negócios rendeu-

lhe o apoio do rei do Daomé e parceiros comerciais nas Américas, Brasil (Bahia), Cuba

e também na Europa. Portava-se como brasileiro, como português, como africano,

conforme as conveniências.

Diante das redes de relações estabelecidas e do seu enriquecimento Francisco

Souza tornou-se “Don” e construiu sua “casa-grande” onde posteriormente criou-se o

bairro “brasileiro”, “Quartier Brésil”150. Costa e Silva151 a comparou a “casa-grande”

rural brasileira como símbolo de poder, riqueza e de status social. Além de residência

funcionava como fortificação, entreposto comercial, era onde o Chachá recebia suas

visitas, sobretudo, os estrangeiros.

Praticando a poliginia comum em diversas sociedades africanas, o Chachá

casou-se com muitas mulheres. Contudo, para Freyre sua família portava-se como “se

fossem europeus (...) amaciados ou abrasileirados pelos trópicos”.152 A alguns dos seus

filhos mandou estudar no Brasil (Bahia) e também na Europa.

Ao morrer o 1º Xaxá em 1849, um rapaz e uma moça foram decapitados e enterrados ao seu lado e mais três homens foram sacrificados em honra de tão grande senhor. Também foram sacrificados aves, cabras e porcos. Tendo morrido em maio, diz Frederick Forbes no seu DAHOMEY AND THE DAHOMEANS, publicado em Londres em 1851, que em outubro ainda se celebrava a morte do opulento Xaxá. A África curvada não ante a Europa mas ante o Brasil. Ante a Bahia. Outros brasileirismos haviam se desenvolvido na África sob sua proteção de grande senhor, além dêste, de natureza moral. Brasileirismos de ordem

150 Sobre este bairro brasileiro, ver: BRAGA, Júlio Santana. Notas sobre o “Quartier Brésil” no Daomé. Estudos Afro-asiáticos nº6-7, 1968, p. 55-62 151 Alberto da Costa e Silva, 2004. Op. Cit, p.97 152 Idem, p.135 -137

76

material o gôsto pela cachaça, o vício elegante do charuto o costume da rede aristocrática, por exemplo.(...) Ainda outro brasileirismo parece ter sido de certo modo introduzido ou estimulado na África pelo grande Xaxá, fundador da dinastia, e pelos Xaxás seus descendentes: o gôsto pela ostentação de saber livresco e de aristocracia burocrática. (...) Note-se, porém, que êsse mesmo Xaxá que se fazia retratar com todos os atributos doutorais e aristocraticamente burocrático, sabia aparecer nas ruas no meio de pompa militar e de honras militares. Era como se fôsse, em traços exagerados e quase de caricaturas, um daqueles capitães-doutores ou majores-doutores e a Republica, no Brasil, conheceu em períodos já remotos de sua vida. (...) O Cruzeiro 08 de setembro de 1951 nº47- Ano XXIII p.p 62,63,64,74,82,110

Após a morte do Chachá seus descendentes continuaram influentes e em

posições de poder junto ao rei. Contudo, embora tivesse distribuído cargos de confiança

aos herdeiros do Chachá, confiscou seu patrimônio e recolheu a parte que lhe cabia.153

(...) depois de quase um século de domínio da dinastia parda e a seu modo burguesa ou mercantil sôbre a preta e a seu modo feudal e militar: arcaicamente feudal. Depois de quase um século de ação e de influência modernizante de “brasileiros” poderosos sôbre a vida e os costumes africanos, num dos reinos mais importantes da África: vida e costumes desde então marcados por fortes laços de cultura brasileira, principalmente baiana. Raras família terão exercido influências tão grandes, como centro de uma obra de transculturação do porte ou do alcance da operada pelo Brasil sbre a África durante o século XIX. (...) As informações reunidas agora por Pierre Verger sôbre as relações do Brasil com a África e a interpretação sociológica que aqui se pretende dar dessas relações, à base dessa e de outras informações – pois o assunto vem sendo ferido de passagem, por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, embora não tenha ainda merecido o sistemático estudo histórico ou sociológico que certamente merece – indicam que ao lado do comércio de escravos se estabeleceram outros intercâmbios da África com a Europa e a América. Nenhum, talvez, foi mais numeroso e sociológico e culturalmente significativo que aquêle desde a época colonial desenvolvido entre a África e o Brasil: principalmente a Bahia. A influência brasileira ou baiana sôbre a África, embora longe de comparar-se com a influência africana sôbre o Brasil ou a Bahia, chegou a ser considerável. O Cruzeiro 08 de setembro de 1951 nº47- Ano XXIII p.p 62,63,64,74,82,110

A influência cultural do Brasil (Bahia) na região do Golfo do Benin, mas

também das trocas estabelecidas entre os dois lados do Atlântico. Francisco Félix de

Souza, o Chachá, a família Souza, os retornados, são “fios” de uma teia histórica

baseada no comércio de pessoas, que certamente provocou muito mais que “ações

153 Ibidem, p. 166

77

modernizantes dos brasileiros” ou “civilidade nos costumes”, mas décadas de

sofrimentos por meio do tráfico transatlântico de escravizados.

A fotografia 19, abaixo, é bastante significativa do trabalho de Pierre Verger,

pois nela o fotógrafo retratou em primeiro plano, o seu olhar sobre as pessoas em seu

cotidiano. No caso, um descendente dos “retornados”, o “Xaxá” número seis da família

Souza. Duas gerações da família foram retratados na mesma fotografia, o menino,

pedindo a benção ao homem. Marcando o profundo respeito aos mais velhos, típico das

sociedades africanas e demonstrando a continuidade da dinastia.

Fotografia – 19 O Cruzeiro 08/09/1951

78

Fotografia – 20 O Cruzeiro 08/09/1951

Fotografia – 21 O Cruzeiro 08/09/1951

79

Fotografia – 22 O Cruzeiro 08/09/1951

As fotografias 20 e 21 foram reproduzidas por Verger dos álbuns de família

destes “retornados”. São retratos da dinastia do “Sousa” com os “Xaxás” em pose para

serem guardados na memória da família como grandes senhores da África. Formam

uma galeria de retratos de todos os Chachás, faz referência à memória.

Na foto 22 temos mulheres da família Souza que rezam no mausoléu do Chachá

I, relembrando seus antepassados, ajoelhadas com as mãos unidas, como em preces

católicas, mas, a ideia de venerar um ancestral é bastante africana. Verger, bom

conhecedor destas questões, deixou registado em sua fotografia, a referência e memória

e ancestralidade africana.

80

Sobre os “retornados”, em estudo mais recente, Milton Guran154 verificou que

esses “brasileiros”, também chamados de “agudás” não possuíam língua nem territórios

próprios, o que os uniu em comunidade foi a experiência compartilhada da escravidão.

Tal experiência possibilitou a inserção deste grupo, não como simples força de trabalho,

mas ao lado dos que davam as ordens. Entre os “agudás” estavam os descendentes de

negreiros, os escravizados que retornaram a África juntamente com seus descendentes e

também seus escravos, aqueles que os tinham. Foram responsáveis pela penetração da

cultura ocidental na região, além das heranças levadas do Brasil.

Guran verificou que entre elementos levados para o Golfo do Benin, exceto as

construções arquitetônicas e a própria representação de si, os “retornados” tiveram

como indicadores mais visíveis de “identidade brasileira” práticas que remontavam mais

aos escravizados do que aos senhores. Por exemplo, na culinária, a feijoada (prato

desenvolvido pelos escravizados nas senzalas); festa do Senhor do Bonfim (festejo

originalmente de escravizados e crioulos); festa da burrinha (festa popular, folclórica e

sem participação das elites). Assim, a cultura “agudá” em um primeiro momento, uma

cultura tida como “europeia”, foi se enriquecendo com aspectos da cultura brasileira, tal

como ela ia se construindo no Brasil.

Entre os aspectos culturais trazidos por esses “brasileiros” estavam a família

patriarcal mononuclear, o uso do sobrenome paterno, o catolicismo, as festas religiosas,

hábitos alimentares e técnicas de construções arquitetônicas de base luso-brasileira.

Foram intermediários entre as sociedades tradicionais e a cultura ocidental e,

posteriormente, intérpretes nas relações entre a população local e o poder colonial

francês. Gozavam de um status que os diferenciavam na sociedade, e, ainda na

atualidade, conforme Guran, têm o papel de intermediários no interior dos grupos

étnicos no Benin.

154 GURAN, Milton. Da bricolagem da memória à construção da própria imagem entre os Agudás do Benim. Afro-Ásia, 28 (2002), 45-76. p.53

81

2.3 Áfricas: entre Verger e Freyre

Ao observar as fotografias de Pierre Verger sobre África n’O Cruzeiro, é

perceptível seu interesse pelas culturas africanas. Tais imagens demonstram o que

Verger viu e fabricou com sua Rolleiflex das Áfricas que visitou. Ficou evidente o olhar

sobre as pessoas, os personagens, o cotidiano em seus detalhes, os universos africanos.

Conforme Stéphane Malysse,155 Verger “costumava fotografar apenas o que lhe

interessava, ou aquilo que ele tinha prazer em ver e queria rever usando seu aparelho de

registro de pontos de vista”. E ao registrar tantas diferenças culturais não somente em

África, mas ao redor do mundo, suas imagens ganharam o status de expressões

culturais.

As fotografias de Verger na série “Acontece que são baianos” permite notar que o

fotógrafo era sensível à cultura popular em África, no caso, Golfo do Benin, África

Ocidental. É importante localizar a região, situar a África de Verger, pois as imagens

foram centradas nesta região do continente, e o olhar sempre filtra, registra uma parte da

realidade, um olhar, ou seja, uma África.

Em estudo contemporâneo ao período das publicações da série em O Cruzeiro,

Gilberto Freyre fez algumas considerações sobre a relação do Brasil e o que denominou

de população luso africana. Caracterizou como “o mundo que o português criou” a

relação do Brasil com as demais áreas do que designou como conjunto luso-tropical de

culturas e populações. Para Freyre, os povos podem ser redescobertos, na análise de seu

passado, a partir das suas tendências de comportamento, o cotidiano, suas manifestações

de vida e de cultura156.

Neste texto, propôs que Portugal estava separado do Brasil e das demais áreas

que havia influenciado apenas pelo âmbito político, visto que em valores e estilos,

Portugal ligava o Brasil a várias populações da África, da Ásia e de ilhas atlânticas.

Considerou que ao descobrir e identificar este “mundo que o português criou”, que

também se transformou em uma unidade viva e capaz de desenvolver novos valores, os

155 MALYSSE, Stéphane Rémy. Um olho na mão: imagens e representações de Salvador nas fotografias de Pierre Verger. Afro-Ásia, nº24 (2000), 325-366. 156 FREYRE, Gilberto. Acontece que são baianos. Problemas Brasileiros de Antropologia. 2ª edição, revisada e aumentada. Livraria José Olympio editora. Rio de Janeiro, 1959.

82

cientistas sociais puderam organizar e sistematizar conhecimentos que, embora

marcados pelas distâncias, podiam ser caracterizados por afinidades na sua formação

social.

Freyre ressaltou a importância da documentação fotográfica levantada por Pierre

Verger na África, para quem fixou não só os resultados do encontro de sangue do

português com o africano, tido por Freyre como “tipos interessantíssimos de homens,

mulheres e crianças, mestiços, grupos culturalmente híbridos”157 também resultado do

encontro da cultura lusitana com as várias culturas africanas.

Mas, a África retratada por Verger foi a mesma África descrita por Freyre na

série? O próprio Freyre informou que só posteriormente visitou algumas das áreas

fotografadas por Verger158, parte da região do Golfo do Benin, na África Ocidental. A

África observada, por Freyre foi Angola e São Tomé, em que notou influências

brasileiras, sobretudo, nas experiências de cultivos nas chamadas “hortas”, inspiradas

nos estabelecimentos rurais brasileiros. Percebeu o desenvolvimento do esquema que

analisou no nordeste brasileiro da “casa-grande e da senzala”, denominadas lá de

“Zanzalas”.

Portanto, a África fotografada por Pierre Verger, não foi a mesma África

visitada por Gilberto Freyre. Verger foi idealizador das fotorreportagens, Freyre entrou

para assinar o texto, Freyre escreveu sobre algo que não conhecia. Mas, nas

fotorreportagens da série “Acontece que são baianos” a revista O Cruzeiro não se

preocupou com este detalhe. Fotos de uma região, textos e ideias de outra região. A

África seria uma só? Igual? Homogênea? Talvez para os leitores fosse esta África

apresentada pela O Cruzeiro.

Identifico nas fotografias de Pierre Verger a valorização dos sujeitos e

principalmente dos aspectos culturais herdados do Brasil. Para dar sentido às fotos,

Freyre evidenciou elementos desta herança. No entanto, o faz a partir de uma ênfase na

superioridade dos costumes luso-brasileiros em oposição aos modos de viver dos

africanos da região do Benin.

157 Idem, p.267. 158 Ibidem, p.269.

83

Importante ressaltar que, como linguagem, as fotorreportagens procuraram

manter uma correlação estreita entre texto e imagem. Neste sentido, apresentaram os

chamados “retornados” e a forte influência dos aspectos culturais brasileiros, entre eles,

assim como aspectos luso-brasileiros, em detrimento dos africanos.

Reproduzindo as mensagens dos textos associadas ao poder das imagens

fotográficas as fotorreportagens exercem uma ação significativa ao transmitirem certas

ideias e valores. A representação de superioridade dos “abrasileirados” em oposição aos

sujeitos africanos e ao seu lugar, o Golfo do Benin.

84

CAPÍTULO 3

A Bahia africana de Pierre Verger e Odorico Tavares

Encontrei uma maneira de estar sempre em outro lugar. Quando estou na Bahia, é sempre mais ou menos na África que penso estar quando vou a candomblés que lembram a Nigéria ou o Daomé, e quando estou nesses países, é na Bahia que penso estar, pois em cada canto há descendentes de antigos escravos libertados que voltaram para lá no século passado e conservaram algo de brasileiro.

Pierre Verger159

3.1 Heranças africanas na Bahia de Verger e Tavares

Entre os anos de 1950 e 1951 a revista O Cruzeiro publicou fotorreportagens de

Pierre Verger em parceria com o repórter Odorico Tavares que abordaram sobre as

variadas influências de certas regiões da África (Golfo do Benin, Nigéria, antigo

Daomé) na Bahia (Bahia aqui se refere à cidade de Salvador e a região do Recôncavo

baiano). Para tanto, foram selecionadas cinco fotorreportagens, pois estas, além de

serem publicadas na revista também foram publicadas no livro “Bahia: imagens da terra

e do povo” de Odorico Tavares a fim de compreender as representações da África a

partir da Bahia160.

159 Carta de P. Verger a G. Lauzier, Osogbo, 23 de janeiro de 1960. IN: Jérôme Souty, 2011, p.378. 160 Relação dos artigos listados por Pierre Verger na parceria com Odorico Tavares e Cláudio Tavares sobre temas afro-brasileiros: Capoeira - Cláudio Tavares (Capoeira mata um – 10/01/1948); Bonfim – Odorico Tavares (O Ciclo do Bonfim 22/03/1947); Yemanja Odorico Tavares (O reino de Yemanja – 26/04/1947); Afoché – Cláudio Tavares – (Ritmo bárbaro da Bahia – 29/05/1948); Arte Afro-brasileira – Odorico Tavares (A escultura afro-brasileira da Bahia 14/04/1951); Reis africanos Odorico Tavares (Inflação dos reis africanos 29/09/1951); Festa da Boa Morte em Cachoeira Odorico Tavares (Nossa Senhora da Boa Morte dos Negros de Cachoeira 13/01/1951); Quitutes à Bahia Odorico Tavares (A Cozinha da Bahia 02/12/1950); Bonfim Odorico Tavares (Decadência e morte da lavagem do Bonfim 23/06/1951). Ver: Angela Lühning 2004 Op. Cit, p.p.70, 71, 72,73.

85

O jornalista pernambucano Odorico Tavares nasceu em 1912. Além de repórter,

trabalhou como redator, secretário de redação e chefiou a sucursal na Bahia dos Diários

Associados de Assis Chateaubriand. Conforme Santos161:

Seu interesse pela cultura afro-brasileira já se mostrava quando era editor do Jornal O Estado da Bahia. Sob sua responsabilidade foram publicadas reportagens sobre a cultura afro-baiana em 1936, 1937 e 1938. [...] Tavares possuía especial interesse pelas artes. Colecionava em sua casa várias obras da cultura popular como a cerâmica de Mestre Vitalino e as pinturas de Cícero Dias. Na criação do Museu de Arte Sacra, emprestou várias peças do seu acervo pessoal. Contribuiu significativamente para acontecer a Primeira Exposição de Pintura Moderna na Bahia divulgando-a nos meios de comunicação dos Diários Associados [...] Criou o Suplemento Dominical do Diário de Notícias no qual ajudava a divulgar a obra de artistas, à época iniciantes, como Mário Cravo e Carlos Bastos [...] auxiliou Assis Chataubriand a criar o Museu Regional de Arte de Feira de Santana. Divulgou amplamente o processo de criação do Museu de Arte Moderna da Bahia [...] que a maioria dos temas de seus livros são temas das reportagens publicadas com Verger em O Cruzeiro, e muitas vezes, caracterizam-se por uma coletânea dessas reportagens. Publicou ainda: Discurso de um Cidadão do Salvador, em 1961. Os Caminhos de Casa, em 1967. Meus poemas, meus pintores, de 1974 onde faz versos para pintores, da sua admiração e Livro de Luciano, em 1975, em homenagem a seu neto. Morreu no dia 21 de agosto de 1980.

Tavares foi precursor da implantação de outros veículos de comunicação na

Bahia como a televisão e interessou-se pelas artes plásticas.

Na década de 60 fundou a TV Itapoan, a primeira televisão baiana [...] tinha especial interesse pela literatura publicando em 1934 a obra 26 Poemas; em 1939 A Sombra do Mundo; em 1945 Poesias. Em 1951, publicou: Bahia – imagens da Terra e do Povo, Pelourinho, Festa do Bonfim e Conceição da Praia, todos ilustrados por Carybé.

Concomitante as publicações das fotografias de Pierre Verger e dos textos de

Odorico Tavares, em O Cruzeiro, publicou o livro “Bahia: imagens da terra e do povo”,

pela Editora Civilização Brasileira, em 1951. Este livro, novamente publicado, dez anos

depois em 1961, teve sua terceira edição revisada, atualizada e acrescida de nove novos

capítulos. Parte dos artigos publicados no livro foram antes publicados na revista.

161 Eunice Ribeiro dos Santos 2009 Op. Cit. p.p 46,47,48,49

86

Na nota a terceira edição Tavares explicou que os capítulos acrescentados

faziam referência as igrejas, ao candomblé, a capoeira, ao Pelourinho e as coleções

baianas. Informou também sobre a retirada do capítulo sobre Canudos e sobre o

acréscimo de mais de vinte e sete desenhos do artista Carybé, totalizando ao fim setenta

e oito ilustrações.

Nesta edição162, o livro foi dividido em quatro partes, cada uma com seções a

que denominou de capítulos, vejamos: Festas populares e religiosas (Conceição da

Praia, Nosso Senhor dos Navegantes, Reis: o terno do Arigofe, O ciclo do Bonfim); A

Água (O reino de Iemanjá, A pesca do Xaréu, Saveiros do Recôncavo, Não é doce

morrer no mar, A lagoa do Abaeté); Outras Imagens (As igrejas, Pelourinho, A cozinha

baiana, Cosme e Damião – os santos mabaças, Visita ao candomblé, A escultura dos

candomblés, Capoeira, Itinerário das feiras, Atlas carrega o seu mundo, Breve roteiro

dos fortes, A Virgem das Candeias, Nossa Senhora da Boa Morte das Negras de

Cachoeira); As Coleções Baianas ( Colecionadores, Ceramicas, Ourivesaria, Imaginária,

Mobiliário). Advertiu ainda na nota que o livro não pretendeu ser um guia da Bahia, da

cidade de Salvador, mas sim, páginas de impressões cheias de emoção, ternura e amor

por aquela cidade. Tal edição foi dedicada a Leão Gondim, diretor da revista O

Cruzeiro, e a Pierre Verger, seu companheiro em tantas reportagens para a revista.

Vejamos então algumas das fotorreportagens produzidas por Verger e Tavares

publicadas n’O Cruzeiro e que enfatizaram heranças africanas na Bahia, sobretudo no

âmbito cultural.

A COZINHA DA BAHIA Pierre Verger e Odorico Tavares Caruru, vatapá e muqueca – Mas também o efó, os camarões e o siri mole – A cozinha baiana é a mais opulenta do Brasil – Dos Passos e Neruda na Bahia – As grandes quituteiras da cidade: Maria São Pedro, Odília e Vitorina – O poeta Godofredo Filho, grão-mestre da cozinha baiana – Quem vai à Bahia, comerá bem se souber onde, na cidade do Salvador. Salvador, novembro – É comum ouvir dizer-se que iguarias baianas muito se “parecem” unas com as outras. Que o dendê dá a todas um gosto só. “Comer

162 TAVARES, Odorico. Bahia: imagens da terra e do povo. 3ª ed rev. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1961.

87

uma é comer as demais, todas são comidas de azeite”. A culpa desse equivoco não é da cozinha baiana; é, sobretudo, da ausência de apuramento de certos paladares, acostumados com frios, com filés, com batatas fritas, com comidas de lata. Quase exigindo do poderes públicos padronização das refeições, obrigatoriedade de industrias de almoços e jantares enlatados. Nunca propugnando pela preservação de uma das mais importantes riquezas culturais que possuímos: a cozinha nacional. A cozinha baiana, Gilberto Freyre, em seu excelente livro “Açúcar”, salienta que estrangeiros são incapazes de distinguir na doçaria brasileira outro gosto que não o do açúcar. E cita Boas, que recolheu de populações africanas um volume inteiro de receitas de quitutes de peixes preparados no azeite: ao europeu tal diversidade não existi, tudo se resumia ao gosto único de peixe no azeite e mais nada. Entre nós, entre baianos mesmo, há quem ante uma mesa dos mais variados pratos, somente queira provar: ou o vatapá, ou o caruru, ou a moqueca. Nada dos três, porque todos eles não passam de “comidas de dendê” Felizmente que há paladares suficientemente nobres para identificar o fino gosto de cada iguaria baiana. Para reconhecer a grandeza da cozinha baiana “a mais opulenta das cozinhas brasileiras”. Nem mesmo a paraense, nem mesmo a pernambucana podem comparar-se com a da Bahia. Como que as raízes se aprofundaram mais na terra, as marcas nacionais se acentuaram com mais força e o patrimônio comum se fundiu e nos deu fatores culturais dos mais ricos.

ORIGEM Quanto a sua origem, não é segredo nem novidade que foi o negro que nos trouxe os elementos mais fortemente integrantes da cozinha baiana. Artur Ramos ensina que “foi o negro sudanês, principalmente, que introduziu no Brasil o azeite de coco de dendê, o camarão seco, a pimenta malagueta, o inhame, as várias folhas para o preparo de molhos, condimentos e pratos. E ainda modificou com seus processos a cozinha indígena ou portuguesa”. E se houve certa resistência do chamado branco para incorporar a sua cultura tais elementos africanos, estas barreiras cederam “até que no século XIX o caruru, o vatapá, o acarajé já se podiam considerar pratos nacionais. Já várias comidas portuguesas ou indígenas foram no Brasil modificadas pela condimentação ou pela técnica culinária do negro; alguns dos pratos mais caracteristicamente brasileiros são de origem africana: a farofa, o quibebe, o vatapá, diz o mestre Freyre. E assim, se muitos pratos vieram integrando práticas religiosas africanas, como ainda hoje constituem nos candomblés, passaram eles para todas as cozinhas: são o orgulho de muita dona-de-casa, de muita mãe-de-santo, de muita senhora rica. O Cruzeiro 02 de dezembro de 1951p.p. 65,66,67,68,72,7684

No texto acima, Tavares apresentou um elemento que considerou fundamental

da “presença africana” na Bahia – a culinária. Salientou a importância do azeite de

dendê no gosto diferencial das comidas baianas. De fato, o azeite de dendê serviu não só

como ingrediente nos mais variados pratos, como foi uma importante mercadoria nas

trocas comerciais entre Brasil e África no período do trafico transatlântico e após. Outro

aspecto interessante apontado por Tavares foi a relação da culinária baiana de influência

africana com a religião afro-brasileira, o candomblé.

88

Sobre esta questão Bastide enfatizou que a cozinha afro-brasileira, afro-baiana,

já fora objeto de diversos estudos, como os de Manuel Querino, Sodré Viana, Darwin

Brandão e Artur Ramos. No entanto, não havia um estudo sistematizado sobre a comida

baiana e seu aspecto místico. Para tanto, Bastide comparou e analisou os alimentos e

seus usos em cerimônias religiosas no Brasil, em Cuba e no Haiti. 163

De início, Bastide diferenciou o espaço da cozinha e o espaço do sacrifício. Na

cozinha pressupõe o cozimento das iguarias enquanto o sacrifício, o sangue é o alimento

dos deuses. Segundo o autor, “os deuses são grandes comilões” e tanto na Bahia quanto

em Cuba e no Haiti havia um quadro das iguarias preferidas pelas divindades africanas.

Bastide observou que alimentos da cozinha baiana como o milho, a mandioca e,

sobretudo o azeite de dendê e a pimenta da costa, introduziram uma espécie de

sincretismo na cozinha e no restante da vida religiosa. Este sincretismo com os

alimentos tomados de empréstimo à cozinha ameríndia não impediu que os de origem

africana fossem dominantes. Assim, considerou que “a cozinha dos deuses transformou-

se em cozinha baiana” tendo em vista que as cozinheiras que trabalharam nas “casas dos

senhores e nos sobrados” eram em geral “filhas dos deuses”.

Sobre os redutos e as cozinheiras das comidas baianas Tavares continuou:

OS REDUTOS Se o turista deseja realmente provar a comida baiana, sem temperos que nada tem a ver com seus verdadeiro pratos, que não procure os hotéis: que não procure os deficientes restaurantes da terra. Nada encontrará nos seus cardápios que seja verdadeiramente baiano, ortodoxalmente baiano, que é um pena. Aliás há muito que assim acontece: já desde 1930, Manuel Bandeira passava pela Bahia, para registrar depois, em esplendinda crônica que não foi nas petisqueiras e nos restaurantes que saboreou a nossa comida. Foi com a preta Eva, cuja lembrança ainda é forte nas rodas boêmias da Bahia. Um grã-mestre da cozinha, uma senhora toda poderosa, quase fazendo manjares do céu, embora de um céu negro, um céu quanto muito afro-brasileiro. O grande poeta provou “as mais estupendas misturas de dendê e de pimentas” , ao lado de outro poeta, Godofredo Filho, que a consagrou num dos seus mais belos poemas. Pois que o visitante faça como Bandeira: nada de restaurantes grã-finos nem de boites de mal gosto. Se não tem um amigo que o convide para refeição numa residência de cozinha afamada, que procure a modesta casa de pasto de Maria São Pedro, no alto do Mercado Modelo, na cidade baixa. Entra-se por uma pequena porta, em frente à Rampa e onde existe uma barbearia. Lá em

163 BASTIDE, Roger. A cozinha dos deuses (Candomblé e alimentação). In: BASTIDE Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. 4ª reimpressão, São Paulo, Companhia das Letras, 2001 (331-337).

89

cima está o restaurante de Maria São Pedro herdeira das tradições da preta Eva Preta como ela, boa e bonita como deveria ter sido Eva. O Cruzeiro 02 de dezembro de 1951p.p. 65,66,67,68,72,7684

Odorico Tavares foi portador de um “discurso” de valorização da cultura popular

baiana, buscou enaltecer as heranças africanas. Ainda assim, pode-se identificar um tom

de estranhamento, quando o mesmo mencionou que a cozinheira fazia manjares do céu,

contudo, “de um céu negro, um céu quanto muito afro-brasileiro”.

Continuando a reportagem, Tavares falou das pessoas famosas que frequentaram

o restaurante destas cozinheiras de “mão cheia” para se deleitar nas iguarias afro-

baianas.

Nesta casa de pasto, já se fartou muita gente importante. Muito nome internacional. O romancista John dos Passos participou ali de um almoço em sua honra, espantando a todos. Não havia terrina de vatapá, de caruru, de moqueca de peixe, de galinha de xinxin, que parasse. O homem dava conta de tudo. Tudo regado a bom vinho, mas sobretudo à boa cachaça de Santo Amaro. Quando se pensava que o americano fosse torcer o nariz àquelas “viandas tediosas” de que fala Vilhena, a cada prato que surgia o homem como que caía em êxtase. Aquela meio gigante, meio fechado, um tanto seco, abriu-se diante das artes e das mágicas da cozinha baiana. Como ele, o poeta chileno Pablo Neruda. Oito dias de Bahia, oito dias de muita comida baiana , muito azeite, muita pimenta malagueta. Também o professor Roger Bastide que escreveu livro de tanta compreensão sobre nosso povo. O escritor Anibal Machado. O cronista Rubem Braga. O escritor João Condé. Os poetas Vinícius de Moraes, Murilo Mendes, Augusto Frederico Schmidt. Maria da saudade Cortesão. O poeta Vinícius de Moraes chegou aqui acompanhando Waldo Frank [...]E se o leitor não é muito exigente e está entusiasmado pelo pitoresco, em muito pé de escada, nas Laranjeiras, no Pelourinho, encontrará quem faça uma moqueca bem feita. Num desses restaurantes, lembrando o “Leão do Bosque” dos tempos de mocidade de Antônio Vieira. Num deles, o repórter já comeu uma moqueca de chicharro (pequenos peixes) que nunca mais esqueceu de tão saborosa. Mas não se pense que somente em restaurante pobre, em festas populares, nos candomblés, nas esquinas das ruas, é que se encontra a comida baiana. Nada disso. Em muito solar nobre, em residência de muita família de quatrocentos anos, o dendê impera e majestosamente. É verdade que algumas vezes somente para agradar o visitante ilustre, o amigo que veio à Bahia, com suas “extravagancias” de querer provar “comida de azeite”. Qual é a família baiana que no dia de São Cosme e Damião, mesmo sem ter as obrigações, não oferece magníficos almoços e jantares? Monteiro Lobato jamais pôde esquecer os almoços que lhe foram oferecidos pelo casal Maneka Pedreira. O esmero de dona Angélica Pedreira vai a requintes inusitados: sobre suas magnificas toalhas de linho bordadas, de pratos de porcelana, de sua prataria, a beleza e o sabor de sua cozinha. O casal Clemente Mariani também oferece almoços saborosos, somente de comidas rigorosamente baianas. Quando da vista do Presidente Dutra à Bahia e dos festejos do centenário de Rui, o então Ministro da Educação abriu o seu solar a centenas de convidados. A mesa parecia um grande quadro: tanta forma belíssima, tantas cores soberbas. Raramente a Bahia apresentou suas

90

riquezas culinárias com tanta beleza. O seu vatapá, o seu caruru, sua galinha de xinxin, sua moqueca, seu arroz de haussá, seu acarajé quentinho, feito na hora por majestosa baianas. Os seus doces, sua cocada preta, tudo com dignidade de príncipe. A hospitalidade assumindo aspectos de casa-grande dos velhos tempos . A sra Clara Mariani comandando uma legião de pretas cozinheiras de mãos de fadas brancas. Fazendo endoidecer muito gaúcho de churrascos, paulistas de virados, mineiros de tutus, com dezenas de pratos para escolher. Para escolher e saborear. O Cruzeiro 02 de dezembro de 1951p.p. 65,66,67,68,72,7684

Estas iguarias eram encontradas também em outros ambientes, nas casas das

famílias abastadas. Na representação de Tavares, “o dendê impera e majestosamente” na

Bahia e não havia uma diferenciação social quanto preparação e ao acesso a estes tipos

de comida tipicamente afro-baiana.

Mas, não somente do vatapá, do caruru, do acarajé, do efó, da moqueca, vive a cozinha baiana. Estes são os pratos conhecidos, mas se pode citar muito mais: xinxin de galinha, siri mole, frigideira de camarão ou de siri, acaçá, abará, aberém, arroz de haussá, feijão de azeite, quibebe, bobó de inhame, feijão de leite, escaldado de peru, efun-oguedê, sarapatel, mocotó, etc. Sem falar nos seus molhos, nos seus doces e bolos, estes, é verdade, mais portugueses do que africanos. Quanto as receitas seria um nunca acabar em enumerá-las. Manuel Querino em volume da edição esgotada recolheu muitas delas. Também Sodré Viana, em seu “Caderno de Xangó”. Recentemente a Livraria Universitária da Bahia editou um bonito volume de receitas coligidas pelo repórter Darwin Brandão que pode ser encontrado em todas as livrarias locais. É um livro honesto. O certo é que sem o dendê, sem o camarão, sem a malagueta, não existiria a cozinha baiana. Sem a pedra de ralar, o pilão, a colher de pau, o alguidar, a panela de barro, todos da mais pura e autentica origem africana. O Cruzeiro 02 de dezembro de 1951p.p. 65,66,67,68,72,7684

Tavares finalizou o texto enumerando os mais variados ingredientes da culinária

baiana e os remetendo as suas origens africanas. A comida como um elemento

significativo da cultura afro-baiana reverenciando-a.

Na correlação entre o texto de Odorico Tavares e as fotografias de Pierre Verger

marcando a proximidade entre a Bahia (cidade de Salvador e região do Recôncavo

baiano) e África (Golfo do Benin, antigo Doemé) podemos observar algumas questões:

Na fotografia 23, abaixo, as características marcantes do trabalho de Verger: as

pessoas e o seu cotidiano. Em destaque acima, temos a figura da “preta” cozinheira,

Maria de São Pedro que a legenda adjetivou “Rainha da cozinha baiana, senhora dos

91

segredos do forno e fogão, grã-mestra de todas as ordens da cozinha baiana”. Assim, a

legenda completa a imagem enaltecendo o saber e a prática do cozinhar como uma

grandiosidade herdada da África.

Fotografia 23 - O Cruzeiro 02/12/1950.

92

Na sequência acima, Verger mostrou as variadas cozinheiras entre mulheres

brancas e negras na prática, com a “mão na massa” sem distinções sociais preparando as

iguarias afro-baianas.

Fotografia 24 -- O Cruzeiro 02/12/1950.

93

Fotografia 25 -- O Cruzeiro 02/12/1950

94

A fotografia 24 Verger apresentou os utensílios usados na cozinha baiana: a

pedra de ralar; o pilão; o alguidar e os ingredientes: o coco; o maxixe, o quiabo, a

pimenta, o dendê, o acarajé. Completou com a foto 25 em que mostrou o resultado final

do processo de preparação das iguarias baianas, as pessoas se deliciando das comidas,

no caso, do acarajé sendo vendido por uma “baiana” na rua. As fotografias de Verger

revelaram entre outros elementos de origem africana, a culinária inserida no dia a dia

dos baianos, aspectos de uma Bahia “africanizada”.

Na reportagem seguinte, o tema da culinária continuou sendo empreendido e

relacionado diretamente a questão religiosa.

OS SANTOS MABAÇAS São Cosme e Damião, patrono dos médicos e farmacêuticos, protetores da saúde – São Crispim e Crispiniano, patrono dos sapateiros – O gêmeos Ibeji, que vieram da África – Tradições da Bahia, que glorificam os mabaças – A festa do caruru dos Santos e os sete meninos. Cidade do Salvador – outubro – Se acontece que o leitor não é baiano e encontra, na capital baiana, meninos pelas ruas, com a dupla imagem de São Cosme e São Damião a pedir esmolas não estranhe. Contribua com a sua esmola porque está colaborando para manter tradições das mais vivas no seio do povo, que é a festa dos dois santos gêmeos ou santos mabaças, já que ambos os vocabulários – gêmeos e mabaças - são sinônimos. Nas preliminares do dia 27 de setembro, é comum encontrar meninos, ou mesmo adultos, a pedir esmolas para Cosme e Damião. (Afrânio Peixoto registou muito oportunamente que, na Bahia, não se diz São Cosme e São Damião e sim São Cosme e Damião ), para o “caruru dos santos”. A dupla imagem de madeira ou uma simples gravura emoldurada vem numa caixa enfeitada em papel de seda colorido [...] Grande é o numero de lares baianos que festejam o grande dia dedicado aos dois mártires da Igreja. Tão populares como São João, como Santo Antônio, os dois santos tem a sua festa comemorada sobretudo com um grande almoço o “caruru dos santos” E, assim se chama não porque seja o almoço apenas de caruru ou demais pratos da cozinha baiana da fabulosa cozinha baiana são apresentados na sua riqueza de gosto e de cor. Tudo no melhor estilo afro-brasileiro, em casa de pobres e de ricos. Em casa em que haja gêmeos: ou que os santos tenham evitado parto gêmeo. Ou que promovam a festa como tradição de família. Nenhum dia melhor para se saborear um grande almoço da cozinha baiana existe do que o dia 27 de setembro. Se o leitor estiver na Bahia, nesta data, que faça uma forcinha será inevitavelmente convidado para um desses fabulosos almoços. E muito terá que ver e que deliciar. O cruzeiro 18 de novembro de 1950 p.p.35, 36, 37, 38,40,44

Odorico Tavares convidou o leitor a conhecer a festa popular e religiosa em

homenagem aos santos Cosme e Damião no catolicismo e Ibeji no candomblé. O autor

enfatizou a festa como um espaço de mistura entre o sagrado e o profano, mas com

95

destaque para a origem e os elementos que fizeram da festa uma tradição marcada por

influências africanas. Continuando a reportagem, Tavares apresentou a história da vida

dos santos e o ritual da festa.

O BRANCO E O NEGRO Que poder extraordinário tem estes dois santos na alma popular baiana para se impor assim com tanta fé e com tanto entusiasmo. É que ambas as raças, a branca e a negra, trouxeram de cada lado, a devoção que aqui encontrou um campo fértil para a sua devoção. Diz Artur Ramos: “Em vários pontos da Europa, o culto dos gêmeos Cosme e Damião vem de longínquas eras. Nas antigas vilas da Itália, no século XVIII, o seu culto tinha evidente significação fálica. [...] Cosme e S. Damião, que tinha virtudes médicas. [...] Por sua vez, Vieira Fazenda mostra quanto é antigo o culto de Cosme e Damião no Brasil, lembrando que a mais antiga igreja nestes rincões construída, na cidade de Igaraçu, em Pernambuco, é dedicada aos dois santos gêmeos.” A fama dos seus milagres corria mundo. [...] Isso quanto às origens europeias da devoção. No que se refere ao ramo africano, sabe-se que foram os nagôs que nos trouxeram os seus gêmeos, Ibeji, transformados numa das maiores tradições vivas das populações baianas, especialmente, pois, repitamos poucos santos são aqui tão populares quanto eles. [...] como afirmava Nina Rodrigues. E acrescentava o mestre: “Sei de famílias brancas de boa sociedade baiana, que festejam Ibeji, oferecendo as duas pequenas imagens de São Cosme e São Damião sacrifícios alimentares. “O CARURU” No seu dia – no dia 27 de setembro - manda-se rezar a missa, numa igreja de sua preferencia, em louvor dos santos. Para isso, foi que se pediu esmolas, de porta em porta, para se rezar a missa e para a festa. Logo depois, é toda uma azafama na cozinha e no quarto dos santos. Com as flores mais belas se prepara o santuário; com os requintes mais sutis as comidas das grandes e inigualável cozinha baiana. Desde a véspera os quiabos, bem lavados e enxutos, os camarões secos, o puro azeite, as pimentas e tantos outros temperos entram em função para que saia dali o mais saboroso e o mais belo caruru. Porque se no almoço não surgir o vatapá, o efó, o xinxin de galinha, a frigideira de camarão, o siri mole, não se poderá chamar festa dos santos mabaças, se falta o caruru com seu acompanhamento indispensável que é o arroz de haussá ou o acaçá. Daí a festa ter o nome de “caruru de São Cosme”. Pronto o almoço, não será para os convidados adultos que sairá logo; que eles tenham paciência. Antes em pequenos potes e pequenos pratinhos de barro, se colocam, com todo respeito, as comidas dos santos, em seus santuários, e ali se deixa para que os gêmeos possam aquilatar ao grau da devoção dos donos da casa. Procedida a cerimonia, chama-se os sete meninos, especialmente convidados. Sim, não será completa se não foram convidados sete garotos para comerem o caruru, no prato comum que não é um prato O cruzeiro 18 de novembro de 1950 p.p.35, 36, 37, 38,40,44

Tavares buscou as origens históricas dos participantes e suas matrizes culturais

para comprovar a heterogeneidade da festa popular dos santos gêmeos. Mas, o que nos

chamou atenção no escrito para além do sincretismo cultural e religioso foi o destaque

96

que Tavares conferiu as influências africanas na festa: por exemplo, o ritual de

preparação com oferenda do alimento aos santos, logo em seguida, sete crianças

dividiram o alimento para depois os adultos comerem e festejarem os santos. Tais

elementos, preparação de comidas especiais para determinados deuses e ou santos, no

caso, “caruru” dos ibeji, oferendas e cânticos. Conforme Bastide164 são elementos

fundamentais religiosos do candomblé.

Dialogando diretamente com o texto de Tavares, as fotografias de Verger

marcaram a representação da mistura cultural e religiosa da festa dos santos Cosme e

Damião, os Ibeji.

Fotografia 26 – O Cruzeiro 18/11/ 1950

164 Roger Bastide 2001 Op. Cit, p. 29-71

97

Fotografia 27 – O Cruzeiro 18/11/ 1950

Fotografia 28 – O Cruzeiro 18/11/1950

98

Na fotografia 26, no alto da página, Verger destacou a imagem dos santos

católicos, certamente em procissão pelas ruas de Salvador, já que ao fundo têm-se os

fios da rede elétrica e parte do que provavelmente seria uma igreja. Logo abaixo, duas

crianças com caixas com imagens dos santos, elas pediram ajuda financeira como

salientou Tavares, uma tradição nos preparativos.

Na sequência as fotografias 27 e 28 revelaram uma parte fundamental da festa, a

oferenda dos alimentos aos santos ibeji e o compartilhamento desse alimento entre os

participantes da festa. Bastide165 elucidou que este ritual de consagração dos alimentos é

prática comum entre as religiões afro-americanas, citou o exemplo do que ocorreu no

Haiti que guardadas as devidas proporções, pode ser comparado ao candomblé da

Bahia.

Os alimentos que devem ser servidos aos deuses e aos fiéis só podem ser comidos depois de ter sido consagrados; é a cerimônia preliminar do Croiciner, que se realiza sobre uma esteira coberta com um pano branco (talvez o mesmo eni-alá do Brasil) [...] Os filhos dos orixás sentem-se no chão e a refeição encontra-se no meio do círculo formado por eles, sobre um pano branco. No maior silêncio, cada filho come, na palma da mão, um pouco do alimento de seu deus e em seguida destribui [...].

Nestas fotografias Verger revelou a miscelânea da festa: como os elementos das

cerimônias do candomblé foram apropriados e resinificados pelos católicos, embora nas

fotos tenham sido destacados os elementos herdados das tradições africanas.

Na fotorreportagem seguinte Tavares e Verger continuaram tratando do tema

religiosidade afro-brasileira, relacionando a atividades artísticas.

RAFAEL, O PINTOR Bahia, a Roma Negra – Rafael da Bahia – Pintor de divindades africanas – Marinheiro e Pai-de-Santo – Rafael, exegeta da própria obra – Valor e qualidade da sua pintura – Sua participação na próxima exposição Nacional de Primitivos Brasileiros. Em Roma, há mais de quatrocentos anos um pintor chamado Rafael, nascido em Urbino, por encomenda do Papa Julio II e depois de Leão X, enchia as paredes do Vaticano com a grandeza dos seus pinceis. [...] Hoje, passados mais de quatrocentos anos, nesta cidade de Salvador que já foi chamada de Roma Negra (Rome Noir, de Paul Morand), outro pintor também chamado Rafael põe a sua arte a serviço da religião, a religião dos pretos baianos, trazida pelos seus avós africanos, em seu templo, no seu “terreiro”. [...] Rafael decora o seu templo, o seu “terreiro”, o terreiro dos candomblés, com as figuras de sua mitologia, de flos santorum, dos negros. E por toda parte,

165 Idem, p. 334,335

99

esplende nos seus pinceis de pintor de domingo, as divindade que regem os céus dos negros. [...] Rafael da Bahia de Todos os Santos cumpre o mesmo destino: de revelar pelas artes plásticas as suas divindades. [...] Xangô, Iemanjá, Ogum, Omolu, Oxossi, Oxun. [...] Nos quadros as figuras da mitologia yoruba. Estamos realmente na presença de um artista cheio de senso poético e enquadrado rigorosamente entre os primitivos [...] Rafael tem um senso plástico, com um colorido, com uma composição, um ritmo que não se encontrou ainda em nenhum primitivo brasileiro. Lembram os seus irmãos negros do Haiti [...] Rafael nos mostra cada quadro. Neles os chamados valores plásticos, cada pincelada, cada figura, cada cor, está em função do seu sentido religioso. E vamos olhando um por um. Rafael não pinta somente as divindades do candomblé. Lá está o barracão do candomblé. Lá está um painel de proporções maiores, com o Bom-Fim e seus arredores: ou o farol da barra, onde se ver a cena do presente da Mãe- d’água. De qualquer maneira, cenas ou paisagens ligadas aos ritos africanos. E toda um série de quadros, donde se revela a força de um pintor primitivo, que se vem juntar, com excelentes possibilidades ao que de melhor temos até então. [...] E estamos certos de que na exposição nacional de pintores primitivos brasileiros que o professor Pietro Maria Bardi, pretende realizar no Museu de Arte, Rafael o pintor da corte celeste africana revela-se-a aos africanos das artes plásticas como um dos mais originais e mais profundos. O Cruzeiro 06 de janeiro de 1951 p.p.62,63,64,65,82

Tavares apresentou o artista Rafael, pintor baiano e pai de santo, com expressão

artística que teve sua arte ligada diretamente ao universo religioso afro-brasileiro.

Fotografia 29 – O Cruzeiro 06/01/ 1951

100

Fotografia 30 – O Cruzeiro 06/01/1951

Em sintonia com o texto de Tavares, nas fotografias 29 e 30 Pierre Verger

apresentou quadros do pintor Rafael e sua arte, com duas páginas inteiras da

fotorreportagem dedicadas às pinturas do artista. Todas as telas tratavam de temáticas

101

referentes ao candomblé. As legendas que as acompanham explicam a mitologia iorubá

apresentada nas imagens. Novamente representação de herança, de influência africana

na Bahia para Verger passava pelo viés religioso ao destacar nas suas fotografias o

universo dos deuses africanos nos quadros de um pintor e pai de santo da Bahia.

Na fotorreportagem seguinte, a arte africana e a religiosidade continuaram a ser

tema de Tavares e Verger.

ESCULTURA AFRO-BRASILEIRA Odorico Tavares e Pierre Verger A ESCULTURA AFRO-BRASILEIRA NA BAHIA

O rosto severo de Iemanjá, mãe dos deuses negros, evoca as esculturas egípcias – Uma arte tribal e mágica que influi na criação estética da Europa moderna – Nina Rodrigues, maranhense da Bahia, um precursor – influencia da arte negra na criação artística da Europa contemporânea – As relíquias do I.H.G da Bahia. Sòmente nos primeiros anos deste século os centros artísticos da Europa tomaram conhecimento de uma grande verdade: os negros africanos possuíam uma escultura atingindo padrões dos mais elevados. A civilização de Paris, Berlim, de Roma, “descobria” que os negros da África – sobretudo os das regiões do gôlfo de Guiné e do vale do Congo – eram senhores de uma arte com fôrça e valores suficientes para fazer uma renovação nos setores das artes plásticas européias. Com a vinda de preciosas peças trazidas pelos ingleses ou pelos mercadores que supriam os centros civilizados destas “preciosidades” foram os europeus não somente admirando as peças africanas, mas, ao mesmo tempo, revigorando sua própria arte, sob a influência daquilo que chamavam “arte primitiva”. Basta falar do alumbramento de um pintor com Picasso, com a fase negra de sua pintura, trazendo as máscaras africanas para os seus quadros, provocando uma revolução que seria seguida por muitos artistas da Escola de Paris e Berlim. A literatura, a música, a pintura e a escultura conheceram o fascínio de uma arte que não era apenas uma novidade mas sobretudo uma riqueza a incorporar ao patrimônio da humanidade. Nos espécimes de cobre, de marfim, de madeira que encheram as coleções e os museus, a civilizada Europa reconhecia um padrão elevadíssimo. E toda uma vasta bibliografia se conhece a respeito daquilo que hoje se chama arte negra. O Cruzeiro 14 de abril de 1951 p.p.58,59,60,61,62,64

Odorico Tavares ao chamar a atenção para a importância da arte africana, mais

precisamente das regiões do golfo da Guiné e do Vale do Congo, enfatizou sua força e

preciosidade, chamada pelos europeus de “arte primitiva”. Tavares não concordou com

o termo “arte primitiva” que considerava pejorativa, usada pelos europeus que

demoraram a reconhecer o valor da arte africana, o que Nina Rodrigues, ainda em 1904,

já fizera.

102

Fotografia 31 – O Cruzeiro 14/04/1951

103

É preciso que se diga, para orgulho nosso, que um cientista brasileiro, radicado na Bahia e aqui estudando os costumes dos negros, um longo ensaio publicado em agosto de 1904 – isto quando não estava em moda na Europa a arte negra – salientava a importância das belas-artes nos colonos pretos do Brasil. Era Nina Rodrigues abrindo os largos caminhos para os estudos da contribuição do negro na formação brasieleira. E chamava a atenção para um fato que não seria discutido. “Na escultura, porém, é com mais segurança e aprumo se revela a capacidade artística dos negros. O seu cultivo e apreço, entre os escravos que vieram colonizar o Brasil, tanto se comprovam as presunções indutivas como no testemunho de fatos e documentos”. [...] Reunindo, uma coleção de esculturas de negros – vindas diretamente da África ou confeccionadas aqui por negros baianos – Nina Rodrigues tentou uma interpretação artística de tais figuras, tendo o cuidado de desculpar “as imperfeiçoes, o tosco da execução, dando o devido desconto à falta de escolas organizadas, da correção de mestres hábeis e experimentados, de instrumentos adequados, em resumo, da segurança e destreza manuais, como na educação precisa na reprodução do natural”. E acrescentava que “feito o desconto, nesses toscos produtos, já é a arte que se revela e desponta na concepção da ideia a executar, como na expressão conferida à ideia dominante dos motivos”. É que Nina Rodrigues não pôde fugir aos cânones artísticos do seu meio. Reconhecendo a força das esculturas negras, como que desculpava nestes “toscos produtos” suas “deformações”, as liberdades que o artista africano ou baiano tomava com a sua arte. O Cruzeiro 14 de abril de 1951 p.p.58,59,60,61,62,64

Tomando como referência os trabalhos pioneiros de Nina Rodrigues e Artur

Ramos na contribuição do negro na formação da sociedade brasileira, Tavares

apresentou as discussões que estes estudiosos fizeram em torno do desenvolvimento das

belas-artes por africanos e seus descendentes no Brasil, na Bahia. Tanto Rodrigues

quanto Ramos concordaram sobre o destaque das esculturas africanas, “uma verdadeira

arte coletiva e tribal, é mágica e religiosa é abstrata e simbólica”. A partir das análises

das esculturas feitas pelos consagrados estudiosos, Tavares levantou os seguintes

questionamentos:

As peças examinadas e estudas por Nina Rodrigues e Ramos são africanas, vieram de África ou muitas delas foram elaboradas já por artífices negros da Bahia? Até que ponto se poderiam diferenciar as obras realizadas na África e na Bahia? Aí está um estudo definitivo que necessita ser feito, a fim de que se demonstre até onde foram introduzidos elementos novos, e se possa encontrar uma “arte negra” brasileira. Ramos explica muito bem que, em face das restrições dos brancos que não foram poucas, e pela sua natureza religiosa, a escultura negra, na Bahia, limitou-se aos recessos dos terreiros, em objetos do culto, nunca expressando os santos africanos, e sim sacerdotes deles possuídos e revelando na atitude e nos gestos as qualidades privativas das divindades que o possuem. Numerosas dessa peças encontram-se nos “terreiros” baianos, nas mãos de particulares e na coleção do Instituto Histórico e Geográfico. Elas podem desafiar a argucia dos estudiosos para que venham precisar a sua origem. Se

104

Nina Rodrigues e Artur Ramos não duvidam que floresceu uma arte escultórica entre os negros dos candomblé baianos, certamente pelo seu caráter fechado, não se pôde determinar ou especificar os artistas negros brasileiros cujas peças sobrevivem nas coleções e nos “terreiros”. Vale ressaltar que até há pouco objetos de culto ou mesmo de uso dos negros baianos eram vindos da África e hoje não é difícil encontrar objeto vendidos com a garantia de ter chegado da Costa. O Cruzeiro 14 de abril de 1951 p.p.58,59,60,61,62,64

Tavares ressaltou que numa investigação a dificuldade de identificar quais

esculturas vieram da África e quais foram produzidas na Bahia, em virtude dos

processos de trânsito entre sociedades. Tavares descreveu minuciosamente as esculturas

fotografadas por Verger como podemos observar abaixo:

As gravuras que ilustram este texto, com exceção de duas, são de esculturas existentes na coleção do Instituto Histórico [...] As informações que acompanharam a pesquisa davam-nos como sendo Erê, filho de xangô, ou espírito inferior que o segue. A semelhança, porém, com Ibeji, ou os gêmeos de origem yoruba, é flagrante, e por isso, as duas figurinhas podem ser consideradas como Ibeji, embora os gêmeos nigerianos sejam mais comumente de sexos diferentes, e estes pertecem ao mesmo sexo” [...] Figura de grande severidade e beleza da coleção do Instituto é a Iemanjá, a rainha das águas, a mãe dos deuses negros. Seu rosto severo com seu forte perfil lembra algo das esculturas egípcias. Salientam-se na orla da saia um circulo de conchas. Como também lembrando as esculturas egípcias, temos duas belíssimas máscaras, certamente de origem africana, tal a força e a vitalidade do artista. Trabalho admirável em ferro batido é a ferramenta de Ogun, o deus da guerra, escultura que honraria qualquer artista erudito moderno, não somente pelo que sugere, mas pela perfeita realização plástica. É um dos exemplares mais ricos da coleção do Instituto Histórico da Bahia. Tambem esta coleção possui um pilão de Xangô, importante objeto dos candomblés baianos. E registemos ainda um oxê de Xangô [...]. O Cruzeiro 14 de abril de 1951 p.p.58,59,60,61,62,64

105

Fotografia 32 – O Cruzeiro 14/04/1951

106

Fotografia 33 – O Cruzeiro 14/04/1951

107

Neste conjunto de imagens 31, 32 e 33 o fotógrafo Pierre Verger privilegiou as

esculturas africanas do acervo do Instituto Histórico da Bahia, constando de dezesseis

objetos. Argumentou ser incerta a origem destas esculturas, africana ou baiana. Muitas

foram encontradas em candomblés, por isso considerou ser esta uma arte intimamente

relacionada aos aspectos religioso, mágico e coletivo. Verger destacou na fotografia 31

a “máscara mística” usada nas cerimônias religiosas de Xangô, já nas fotos 32 e 33 o

destaque foi dado aos deuses: Iemanjá e os Ibeji e aos objetos usados nas cerimônias

religiosas como o pilão de Xangô e o Oxê de Xangô.

Diferente das outras fotorreportagens em que Verger retratou pessoas e o seu

cotidiano, temos nestas somente esculturas. Mesmo assim, podemos perceber que estas

esculturas, esta arte plástica apresentada por este fotógrafo, sintetizou traços culturais de

um povo, do povo “negro africano”, e seus descendentes baianos. Enfatizou a função

social e religiosa destas esculturas, mais uma vez a África de Verger apareceu ligada a

Bahia pela religiosidade afro.

Na última fotorreportagem deste conjunto produzido pela dupla Tavares e

Verger, eles trataram da relação Bahia – África no século XVIII.

INFLAÇÃO DE REIS AFRICANOS Sob o sol da África, protegidos por vistosos pára-sóis bordados e ostentando vestimentas douradas, os régulos africanos são figuras ao mesmo tempo majestosas e extravagantes - O gigante Hossou usa um filtro de prata no nariz – O “Rei da Noite” e seu chapéu de dois bicos – Quase nada reinando, em quase nada mandando. Em dificuldades ficou FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL, Governador da Bahia, quando, em outubro de 1795, lhe chegam nada menos que dois embaixadores do Rei do Dahomey para entabular negociações, a respeito do monopólio do pôrto africano de Ajudá. “Por serem pouco frequentes neste país semelhantes embaixadas” e levando em consideração, exemplo anterior, levaram os enviados para “o convento dos religiosos franciscanos onde foram hospedados e sustentados com decência à custa de Sua Majestade, mandando-lhes fazer umas roupas compridas, de seda, para se me apresentarem, por virem unicamente por panos da Costa, sem mais alguma e sem pessoa alguma incumbida de os servir”. Que desejam os embaixadores do rei africano? Apenas o comercio privativo do porto de Ajudá, contra o qual se opôs Dom FERNANDO e explicou em longa carta a LUÍS PINTO DE SOUZA. Com o monopólio, as embarcações congestionarão o porto, “se há de arruinar o tabaco, e consumir os mantimentos para tornar-viagem” e o “dito potentado aumentará excessivamente o preço dos escravos, como costuma, logo que no dito porto entra alguma embarcação, estando lá outra pedindo por cada um deles quatorze rolos de fumo em lugar de doze, que dantes pretendia”. Salientava mais o Governador que desaparecerá a liberdade de se escolher os escravos e “serão obrigados a aceitar os que lhes

108

quiser dar o mesmo potentado pelo preço por ele arbitrado”; que com a liberdade de se ir a porto que se deseje se encontrará escravos que se resgatam “por muito menor número de rolos do que no porto de Ajudá” e finalmente “não é conveniente que nesta capitania se junte um grande número de escravos de uma só nação; do que facilmente poderiam resultar perniciosas consequências” Salientado a necessidade de se rejeitar as exigências do Rei do Dahomey, o Governador contudo mostrava suas precauções em não molestar “potentado sumamente ambicioso e soberbo”. Que o Rei de Portugal, a quem ele enviava os embaixadores, tomasse as devidas providências, pois não se poderiam subestimar as boas relações com o Rei do Dahomey que tanto fornecia bons escravos, em troca do fumo baiano para que viessem suportar o peso da lavoura brasileira. Pois estes reis não somente enviavam os seus embaixadores as colônias portuguesas a fim de exigir monopólios para as sua mercadorias, nesse caso, os próprios irmãos negros; mandava também representantes às cortes europeias e o próprio LUÍS XIV recebeu o embaixador de Ardra, com todos os requintes e a pompa dos tempos do Rei Sol. Recebido pelo Rei, em audiências especial, o embaixador negro, de nome lusitaníssimo de MATEUS LOPES, não somente fez boa figura, mas também saudou-o, em bom português, mostrando o bom interesse de seu soberano em servir à França, contra a Holanda [...] meu soberano, me nomeou embaixador junto a Vossa Majestade, para lhe oferecer tudo quanto seu reino é capaz de produzir e sua proteção para todos os navios que se queira lhe enviar, assegurando que todos os domínios, portos e seu comércio lhe são inteiramente abertos a todos os seus interesses contra as iniciativa da Holanda [...] Está a história cheia destes potentados da costa africana, traficando com portugueses, com ingleses, com franceses, com holandeses. Em guerra com seus irmãos negros, aprisionando-os, vendendo-os como escravos, em sistemas perfeitamente organizados, às nações e os capitães negreiros que necessitavam, a qualquer preço, de braços para suas lavouras [...] O Cruzeiro 29 de setembro de 1951 nº 50 Ano XXIII p.p.56,57,58,59,60,64

Acima, Tavares relatou um episódio interessante entre o governador da Bahia

Fernando Portugal (1795) e dois embaixadores do Rei do Dahomey mandados para

negociar sobre as atividades comerciais desenvolvidas no porto de Ajudá. Os

daomeanos foram representados como soberanos diplomatas e autônomos em seus

governos, que enviaram seus embaixadores para negociar com diversos países.

Contudo, Tavares tratou do tráfico atlântico de pessoas referindo-se a estes

africanos como “em guerra com seus irmãos negros”. Algumas pesquisas sobre

109

escravidão166 permite afirmar que, neste período do século XVIII, não havia o conceito

de “negro” na África, o tráfico era uma atividade comercial. Categoria “inventada”

pelos europeus no século XIX como estratégia para justificar a escravidão pela “cor da

pele”. Sem anacronismos, para além desta questão sobre a escravidão, Tavares enfatizou

o poder político e de negociação destes soberanos africanos.

Fotografia 34 – O Cruzeiro 29/09/1951

166 Ver: Curto, José. Resistência à escravidão na África: o caso dos escravos fugitivos recapturados em Angola. Afro-Ásia, nº 33 (2005), pp. 67-86; Lovejoy, Paul. A escravidão na África. Uma história de suas transformações. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002; Meillassoux, Claude. Antropologia da escravidão. O ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995; Thornton, J. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Editora Elsevier, 2004. Entre outros.

110

Fotografia 35 – O Cruzeiro 29/09/1951

Estes reis africanos, estes nobres, que sobreviviam a própria desgraça da escravidão, hoje contam com seus descendentes, com seus sucessores, sentados nos seus tronos negros, em muito recanto de onde dominaram nações inteiras, mandando às cortes ou à Bahia seus embaixadores. Se hoje não transitam pelas salas reais da Europa como outrora, se não podem mais dispor de homens, de mulheres e crianças como mercadorias que se pudessem trocar por rolos de fumo, mantém a sua majestade, o seu decôro, a sua dignidade passada. Muitos deles apenas tendo o nome de rei como um título nobiliárquico. Quase nada reinando, em quase nada mandando, debaixo de seus guarda-sóis vistosos e excelentemente decorados, símbolo de nobreza; ou repousando nos seus palácios, alguns sobrados que parecem saídos, arrancados das ruas baianas, feitos por mestres pedreiros baianos, com materiais baianos, como a casa do Rei de Porto Novo, que confessou a PIERRE VERGER o seu orgulho pelo seu majestoso sobrado. Ou vivendo em velhos palácios, até ontem cobertos de palhas de coqueiros e ornados de belíssimos baixos-relevos policromados, como a residência do Rei de Abomey, construído pelo Rei Glelé, com cenas guerreiras onde se salientam as grandes vitórias do Dahomey contra os inimigos nagôs. O Cruzeiro 29 de setembro de 1951 nº 50 Ano XXIII p.p.56,57,58,59,60,64

O poder destes reis africanos foi passado para seus descendentes e sucessores,

que mesmo sem a função de governar mantiveram uma representação simbólica das

realezas africanas. Tavares citou o próprio Verger, indicando que seu texto foi escrito

111

não só dialogando com as fotografias, mas também com materiais de pesquisa167

levantados pelo fotógrafo.

A relação Bahia – África apareceu na arquitetura, nos sobrados construídos por

pedreiros baianos e que serviram de residência para os reis africanos. Tavares enfatizou

a valorização da cultura, no sentido de que mantiveram “os seus deuses, a sua terra, os

seus usos, os seus costumes” não sendo absorvidos completamente pelos costumes dos

brancos.

Fotografia 36 – O Cruzeiro 29/09/1951

167 Além do acervo fotográfico, Verger organizou outras fontes documentais: texto, entrevistas ao logo da sua vida em suas pesquisas sobre as relações entre África e o Novo Mundo.

112

Fotografia 37– O Cruzeiro 29/09/1951

113

Fotografia 38 – O Cruzeiro 29/09/1951

Neste conjunto de fotografias 34, 35, 36, 37 e 38 Pierre Verger retratou a

grandiosidade das realezas africanas. Embora, os descendentes destes reis não

governassem, mantiveram o prestígio e as tradições de seus antepassados, as cerimônias

continuaram as serem realizadas com toda pompa e requinte, como por exemplo, a

riqueza dos trajes usados pelos descendentes da realeza. Nestas fotos, Verger destacou

os sujeitos em seu cotidiano, homens que representaram o poder dos seus antecessores e

a beleza dos rituais, da cultura e das tradições africanas. Na foto 38 a imagem de um

sobrado, o palácio do rei de Porto Novo, construído por pedreiros descendentes de

baianos, a arquitetura vinda da Bahia representava poder, grandiosidade, status social.

114

3.2 África na Bahia

Da leitura do conjunto de fotorreportagens produzidas por Pierre Verger e

Odorico Tavares percebemos a íntima correlação entre a imagem e o texto. A África168

de Pierre Verger está nas pessoas, no seu cotidiano, nas cenas comuns das ruas de

Salvador na Bahia. A mesma África que está presente nos elementos da cultura, descrita

por Odorico Tavares nas heranças deixadas pelos negros escravizados, nos mais

variados aspectos da sociedade, como na culinária, na religiosidade, na dança, na

música nas artes de um modo geral.

Quanto à ideia de cultura popular a partir dos trabalhos de Pierre Verger e

Odorico Tavares, Santos169 afirmou que:

[...] as fotografias de Verger parecem se afinar com as concepções estéticas de Odorico Tavares, pois abrem espaço par a contemplação da diversidade, de estilos diferenciados, de processos criativos dominados desde a concepção mental até a produção final [...] A tendência de Odorico estava num discurso romântico-populista , pois seus textos idealizavam o povo. [...] O olhar de Verger descentraliza perspectivas hegemônicas de arte ao se debruçar sobre as culturas populares, pois os folcloristas estavam focados nos objetos e Verger nas pessoas.

Desta maneira, tomando como referência a valorização da diversidade,

característica marcante tanto em Verger quanto em Tavares, para pensar a questão

cultura popular. Pode-se afirmar que os sujeitos são os protagonistas das manifestações

culturais afro-brasileiras na Bahia e que mantiveram vivas as heranças vinda da África.

Na perspectiva de marcar a busca de Pierre Verger pela “África” na Bahia Rolim170

considerou:

Esta região teve um processo bem particular de desenvolvimento e de afirmação de uma identidade e de uma “cultura negra”. Este processo é caracterizado, mais do que em qualquer parte, por seu estreito e direto relacionamento com a África (mesmo que muitas vezes uma África mítica, inventada e reinventada no cotidiano das pessoas). Foi dentro deste contexto de busca pela África, que surge no Brasil e principalmente na Bahia a valorização do candomblé [...] A Bahia despertou em Verger um interesse

168 Golfo do Benin, região do antigo Daomé. 169 Eunice Ribeiro Santos 2009 Op. Cit, p. p. 156-159 170 ROLIM, Iara Cecília Pimentel. O olho do rei: imagens de Pierre Verger. Dissertação de mestrado - Unicamp, Campinas, São Paulo, 2002: 98-100.

115

mais específico [...] os vários aspectos da presença africana na Bahia [...] Verger voltou sua atenção, sobretudo, para a trajetória dos escravos e de seus descendentes entre a África e o Brasil (incluindo seu retorno ao país origem) e para a importância da religião africana na Bahia.

A chegada de Verger à Bahia em 1946 e a “descoberta da África”, de

determinadas regiões do continente africano e seus laços com a Bahia, a cidade de

Salvador e regiões do Recôncavo baiano direcionaram a vida do fotógrafo para o

aprofundamento de questões relacionadas a esta ligação, a essa presença africana na

Bahia. Assim, Verger ao se debruçar sobre estas questões, buscou a valorização das

origens africanas no Brasil e alimentou com suas pesquisas as trocas entre os dois lados

do atlântico. Isto pode ser percebido nas suas fotografias publicadas na revista O

Cruzeiro e, conforme Rolim171:

Em relação à Bahia, um dos principais temas de pesquisa e de fotografia de Verger, é justamente sobre a sobrevivência da África no local, principalmente através da religião. Este trabalho é realizado demonstrando em suas fotografias e textos que as práticas religiosas na Bahia dentro do candomblé, envolvendo o culto aos deuses africanos, os rituais, os gestos, os símbolos, os objetos, a língua, enfim, tudo que se relacionava à celebração era muito parecido, se não igual, ao que se praticava na região da Nigéria e do Benin (ex-Daomé). Verger já havia estado na África antes, mas segundo sua própria afirmação, ele descobriu a África na Bahia. Foi uma África específica que ele descobriu e pesquisou que era a da religião que cultuava os orixás [...] Foi através de suas pesquisas na África (a partir de 1948) que Verger começa a ter um olhar mais direcionado para uma questão específica relacionada aos afro-descendentes da Bahia. O olhar de Verger vai identificar, perseguir e coletar indícios que provem que a “Bahia e a África: tudo é um”.

A África “buscada” e “encontrada” por Pierre Verger na Bahia passou pelo viés

da religiosidade. Fez parte da busca pessoal que fez Verger “mergulhar” no universo do

candomblé baiano e da adivinhação de Ifá africana. Contudo, foi além do aspecto

religioso, como podemos observar nas fotorreportagens, a África apareceu nas pessoas,

nos elementos que Verger identificou como “africanidade”, heranças, sobretudo

culturais, do povo negro no seu dia a dia do lado de cá do Atlântico.

171 Idem, p.111

116

Conforme Aguiar172 Verger pertenceu à geração de estudiosos que buscaram o

“africanismo” no Novo Mundo. A partir de suas incansáveis pesquisas, suas viagens

suas redes de amizades e parecerias “o fotógrafo se enreda na Bahia e, ao mesmo

tempo, na África”. Se o olhar de Verger “africaniza” a Bahia, a Bahia também o

“africanizou”.

172 AGUIAR, Josélia. O corpo das ruas: a fotografia de Pierre Verger na construção da Bahia iorubá. Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em História Social – USP, São Paulo, 2008: 31-32.

117

4.Considerações Finais

A História Cultural ao objetivar identificar a maneira como em diferentes

lugares uma determinada realidade social é construída, pensada, lida, possibilita a

ampliação dos mais variados estudos, sobretudo, àqueles marcados pelas noções de

“representação” e voltados para a dimensão de “aspectos” culturais de determinadas

sociedades. Estes historiadores entre outros contribuíram para a consolidação dos

estudos culturais, pois ampliaram discussões sobre noções teóricas e metodológicas para

análise de realidades históricas diferenciadas. O interesse é compreender “as

construções de mundo” e as “leituras de mundo”.

A imprensa, como no caso da revista O Cruzeiro, produziu discursos que

considerou “verdadeiros”. Por isso, as imagens fotográficas e textuais difundidas na

mesma, acabaram moldando comportamentos e modos de ver. O uso da ferramenta da

fotorreportagem, com valorização dos fotógrafos e o destaque dado à fotografia, foi de

suma importância para o sucesso obtido pela revista. Neste cenário promissor das

grandes fotorreportagens e do prestígio social dos fotógrafos que Pierre Verger teve

algumas de suas fotografias, considerando sua vasta obra fotográfica, publicadas pela

revista. Em conjunto com as fotos estavam textos de intelectuais consagrados como

Gilberto Freyre e Odorico Tavares. Sendo assim, a partir de noções desenvolvidas por

intelectuais no âmbito da história cultural é possível analisar as representações e

apropriações sobre África e a Bahia africana elaboradas por estes sujeitos em tais

fotorreportagens.

Da leitura das fotorreportagens apontamos aqui alguns aspectos. Primeiro que se

trata de um olhar estrangeiro, pois Pierre Verger, Gilberto Freyre e Odorico Tavares

foram “sujeitos de fora”. Em seus trabalhos de cunho antropológico, sociológico e

jornalístico, reproduziram práticas, representações e apropriações do continente

africano e da relação África-Bahia.

Neste sentido, a África e a “Bahia africana” de Pierre Verger, Gilberto Freyre e

Odorico Tavares, em O Cruzeiro podem ser percebidas na maneira como o fotógrafo e

os autores das reportagens se posicionaram como viram o mundo a sua volta.

118

Verger foi um “mensageiro” entre a África, sobretudo a região do Golfo do

Benin e partes da diáspora africana, no caso específico do nordeste brasileiro, a Bahia -

cidade de Salvador. Buscou através de suas fotos e de suas pesquisas compreender os

laços e os elementos interligados entres estas sociedades nos mais variados aspectos, os

culturais, os religiosos, a organização social, os saberes, promovendo um importante

intercâmbio transatlântico. Sendo também um exímio etnólogo, Verger procurou aliar

sua prática fotográfica com a busca de conhecer as pessoas, compreender seu modo de

vida, de uma maneira profunda e respeitosa.

Nas fotorreportagens, na parte fotográfica, é perceptível o esforço de Verger em

estabelecer laços entre estas regiões. Tanto na série “Acontece que são baianos” em

parceria com Gilberto Freyre quanto no conjunto com fotografia feitas na Bahia em

busca da África em parceria com Odorico Tavares.

Verger retratou as heranças e as trocas nos âmbitos culturais, religiosos,

arquitetônicos, o modo de viver, a sociedade, as pessoas e seu cotidiano. Assim,

produziu uma apropriação sobre África e a Bahia africana centrada na procura do

“outro”, do modo de vida, do cotidiano, das festas religiosas com mistura das tradições

africanas e do catolicismo, das festas populares, e, sobretudo das influências dos cultos

africanos e afro-brasileiros. Em praticamente todas as fotorreportagens, Verger retratou

algum elemento desta religiosidade.

Esta representação de África – Bahia através do olhar de Verger, passou pela

apresentação e valorização desta religiosidade, desta forma de estar no mundo, que foi a

busca do próprio fotógrafo, já que tanto na África, a partir do Ifá quanto na Bahia, a

partir do candomblé, houve um mergulho nesta temática que acabou sendo revelado na

revista.

As fotografias de Pierre Verger analisadas deram destaque para o universo negro

na África e no Brasil. Conforme Souty,173 o mundo negro africano e afro-americano é

parte essencial da obra de Verger, desde os anos de 1930 ele se debruçou sobre este

universo. Especialmente a partir de 1946, fotografando no Brasil, nas Antilhas, Estados

Unidos e África Ocidental. Isto renovou profundamente a representação fotográfica dos

sujeitos negros. O autor considerou que Verger contribuiu significativamente para que

173

Jérôme Souty 2011 Op. Cit, p.127

119

ocorressem “mudanças do olhar eurocêntrico sobre o homem negro”. Em suas fotos, a

“humanidade do negro foi restituída”.

Foi retratada a preservação e reinvenção das culturas africanas na África e no

Brasil ressaltando as semelhanças entres estes mundos e enaltecendo estes elementos,

sobretudo, os religiosos. Lívio Sansone,174 considerou que Pierre Verger fez parte do

grupo de intelectuais, antropólogos, sociólogos entre outros que na busca por

“africanismos” no Novo Mundo elegeram a Bahia como a área em que a cultura negra

manteve os maiores traços africanos.

Portanto, identificamos nas fotografias de Pierre Verger em O Cruzeiro, uma

representação de enaltecimento da África, do afro-baiano nos âmbitos culturais, de

valorização do outro. Mas, a África de Verger foi à mesma apresentada nos textos que

constituem o conjunto de fotorreportagem em pareceria com Gilberto Freyre? Como já

foi dito, a África de Verger é diferente da África de Freyre. A África de Verger é a

região do Golfo do Benin, já a África visitada por Freyre foi Angola e São Tomé.

Neste sentido, houve uma contradição entre a parte fotográfica e a parte textual

das fotorreportagens. Esta contradição se estendeu também quanto às ênfases dadas por

ambos. Verger evidenciou o “outro”, no dia-a-dia, na cordialidade, na beleza, mostrando

as influências “brasileiras” nos chamados “retornados”. Já Freyre evidenciou nos textos

a superioridade “luso-brasileira” em oposição a cultura e hábitos africanos, no caso, da

região do Benin.

Conforme Souty,175 o sociólogo Gilberto Freyre, se consagrou por seus estudos

nos quais defendeu a tese de que as relações interraciais foram bem mais harmoniosas

no Brasil, principalmente no nordeste, devido à colonização portuguesa favorável as

práticas de “mestiçagem biológica e cultural”, a chamada “democracia racial”. Tal tese

acaba amenizando a realidade da escravidão baseada na “opressão racial e dominação

sexual”. Freyre defendeu o chamado “lusotropicalismo”, uma visão sexuada, sensual e

fraterna de pensar a realidade do Brasil. Que pode ser encarada como uma visão

conservadora e paternalista da sociedade luso-brasileira e que Freyre apresentou no

conjunto das fotorreportagens “Acontece que são baianos”. 174 SANSONE, Lívio. Da África ao Afro: uso e abuso da África entre intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX. Afro-Ásia, 27, 2002, (249-269) p.254 175

Jérôme Souty 2011 Op. Cit, p.p.258, 259

120

O outro conjunto de fotorreportagens constituídas por fotografias de Pierre

Verger e textos de Odorico Tavares versou sobre a busca da África na Bahia,

particularmente, em Salvador. Em diálogo íntimo entre fotos e textos, os autores

retrataram uma Bahia influenciada em diversos aspectos pela África, precisamente a

região do Benin, que foi alvo das pesquisas desenvolvidas por Verger ao longo de sua

vida. Odorico Tavares, jornalista e parceiro de trabalho de Verger foi colaborador e

conhecedor da cultura afro-brasileira.

Portanto, este conjunto de fotorreportagens da Bahia africana de Verger e

Tavares foi destacado as relações históricas entre o Brasil a África nos elementos como

a culinária, as artes, as festas populares de tradição católica e africanas, e a religiosidade

afro que permeou grande parte do conjunto. Houve uma junção das ideias de ambos os

autores na contemplação da diversidade de influências africanas na Bahia e na busca

desta Bahia “africanizada”, em uma representação de valorização e referência a África.

O Cruzeiro foi essencialmente uma revista de variedades. De modo que, teve

profissionais com os mais variados interesses. Portanto, produziu apropriações e

representações de África também variadas. Freyre, sociólogo consagrado defendeu nos

textos sua tese sobre a importância do “lusotropicalismo” e assim, sua África passou

bem mais por Portugal e Brasil. Já intelectuais como Pierre Verger e Odorico Tavares

fomentaram na revista suas ideias de África relacionadas à valorização e compreensão

desta e dos laços com o Brasil.

Portanto, considero que as possibilidades de pesquisa relacionando a revista O

Cruzeiro, produção intelectual, e as relações entre África e Brasil estão longe de se

esgotar. Assim, novas pesquisas podem ampliar as discussões sobre esta temática.

121

5. Fontes

Museu Casa do Sertão – Centro de Estudo Feirense

• Pierre Verger e Odorico Tavares. Cosme e Damião: os santos Mabaças. O

Cruzeiro. 18 de novembro de 1950. p.p 35, 36, 37, 38, 40, 44

• Pierre Verger e Odorico Tavares. A Cozinha da Bahia. O Cruzeiro. 02 de

dezembro de 1950. p.p 65, 66, 67, 68, 72, 76, 84

• Pierre Verger e Odorico Tavares. Rafael o pintor. O Cruzeiro. 06 de janeiro de

1951. p.p 62, 63, 64, 65, 82

• Pierre Verger e Odorico Tavares. A escultura afro-brasileira na Bahia. O

Cruzeiro. 14 de abril de 1951. p.p 58, 59, 60, 61, 62, 64

• Pierre Verger e Gilberto Freyre.Acontece que são baianos: Festas populares. O

Cruzeiro. 11 de agosto de 1951. p.p 72, 73, 74, 75, 76, 104, 45

• Pierre Verger e Gilberto Freyre.Acontece que são baianos: O Senhor do Bonfim

domina a África. O Cruzeiro. 18 de agosto de 1951. p.p 62, 63, 64, 68, 90

• Pierre Verger e Gilberto Freyre.Acontece que são baianos: Casas brasileiras na

África. O Cruzeiro. 25 de agosto de 1951. p.p 102, 103, 104, 106

• Pierre Verger e Gilberto Freyre.Acontece que são baianos: Brasileiros Grão

Senhores na África. O Cruzeiro. 01 de setembro de 1951. p.p 52, 53, 54, 56, 36,

37, 40, 41

• Pierre Verger e Gilberto Freyre.Acontece que são baianos: A Dinastia do Xaxá

de Souza. O Cruzeiro. 08 de setembro de 1951. p.p 62, 63, 64, 74, 82, 110

• Pierre Verger e Odorico Tavares.Inflação dos reis africanos. O Cruzeiro. 29 de

setembro de 1951. p.p 36, 57, 58, 59, 60, 64

122

BIOGRAFIA

• Segundo contrato entre a revista o Cruzeiro e o fotógrafo Pierre Verger.

Disponível em: Angela Lühning Pierre Verger: repórter fotográfico. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2004. p.p. 28, 29.

ACERVO DIGITAL – MEMÓRIA VIVA

• Primeira capa - Revista Cruzeiro 10 de novembro de 1928 nº 01. Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ Acesso: 10 de abril de 2013.

123

6. Referências Bibliográficas

ANDRADE, Ana Maria Ribeiro de; CARDOSO, José Leandro Rocha. Aconteceu, virou

manchete. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, nº 41, p. 243-264. 2001.

A REVISTA NO BRASIL. São Paulo: Editora Abril, 2000.

AGUIAR, Josélia. O corpo das ruas: a fotografia de Pierre Verger na construção da

Bahia iorubá. (Dissertação de Mestrado) Departamento de História. São Paulo,

Universidade de São Paulo, 2008.

BAHIA, Juarez. Jornal, História e Técnica: história da imprensa brasileira, 1990.

BARTHES, Roland. A Câmara clara. Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1984.

_______________. O Óbvio e o Obtuso. Lisboa: Ed 70, 1984.

BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das

Letras, 2001;

_______________. A cozinha dos deuses (Candomblé e alimentação). In: BASTIDE

Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. 4ª reimpressão, São Paulo, Companhia das

Letras, 2001.

Biografia. Fundação Pierre Verger. Disponível em www.pierreverger.org/fpv Acesso

em 30 de janeiro de 2012.

BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla

Bassanezi (org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. 2ª edição. Belo Horizonte:

Autêntica, 2005.

BRAGA, Júlio Santana. Notas sobre o “Quartier Brésil” no Daomé. Estudos Afro-

asiáticos nº6-7, 1968, (55-62).

BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929 – 1989) São Paulo: Unesp, 1991.

____________. (org). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo, Editora da

Universidade Estadual Paulista, 1992.

_________________. Problemas causados por Gutenberg: a explosão da informação

nos primórdios da Europa moderna. Estudos Avançados 16 (44), 2002.

124

_________________________. Testemunha Ocular: história e imagem. Tradução Vera

Maria Xavier dos Santos. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004.

___________________. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; 2005.

CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920 –

1945) São Paulo: Brasiliense, 1989.

CARDOSO, Ciro Flamarion e MAUAD, Ana Maria. História e Imagem: os exemplos

da fotografia e do cinema. In: CARDOSO, Ciro F. e VAINFAS, Ronaldo. (org).

Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

CARVALHO, Francismar Alex Lopes de. O conceito de representações coletivas

segundo Roger Chartier. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v.9, n.1, (143-165), 2006.

CARVALHO, Juvenal de. Veja: Um olhar sobre a independência de Angola.

(Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia: Universidade

Federal da Bahia, Salvador, 2002.

CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas: David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo:

Editora SENAC São Paulo, 2001.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

________________. O Mundo como Representação. Estudos Avançados v. 5, n. 11,

São Paulo Jan/abr, 1991.

________________. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo

de Moraes. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999.

CHATWIN, Bruce. O Vice-Rei de Uidá. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

CRUZ, Heloisa de Faria. PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do

historiador. Conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n. 35,

p.253-270, dez. 2007.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à

África. 2ª ed. rev. ampl. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

__________________________.Religião, comércio e etnicidade: uma interpretação

preliminar do catolicismo brasileiro em Lagos no século XIX. IN: Antropologia do

Brasil: mito, história, etnicidade. Brasiliense, São Paulo, 1987.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1994.

125

DZIDZIENYO, Anani. A África vista do Brasil: Uma pesquisa sobre o modo pelo qual

o Jornal da Bahia encarou a África de 1958 a 1969, inclusive as relações do Brasil com

os países africanos IN: África- Revista do centro de estudos africanos. USP, São Paulo,

1970, (79-97).

FILHA, Sofia Olszewski. A Fotografia e o Negro na Cidade do Salvador 1840-1914.

Salvador: EGBA – Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1989.

FREYRE, Gilberto. Acontece que são baianos. Problemas Brasileiros de Antropologia.

2ª edição, revisada e aumentada. Livraria José Olympio editora. Rio de Janeiro, 1959.

GASKELL, Ivan. História das imagens. In: BURKE, Peter (org). A escrita da História:

novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.

GINZBURG, Carlo. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo:

Companhia das Letras, 2008.

GURAN, Milton. Agudás: os brasileiros do Benin. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1999.

_______________.Linguagem fotográfica e informação. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora

Gama Filho, 1999.

______________. Da bricolagem da memória à construção da própria imagem entre

os Agudás do Benim. Afro-Ásia, 28, 2002, (45-76).

KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer história com imagens: arte e cultura visual. Revista

do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. V.8, nº 12, 2006.

KOSSOY, Boris. Fotografia e História. Editora Ática: São Paulo, 1989.

______________ Estética, memória e ideologia fotográficas: Decifrando a realidade

interior das imagens do passado. In: Revista do Arquivo Nacional, v. 6, 1993.

_______________Realidades e Ficções na Trama Fotográfica. Ateliê Editorial: 3ª Ed

2002.

KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. Negros no estúdio do fotógrafo: Brasil,

segunda metade do século XIX. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2010.

LAGE, Nilson. Estrutura da Notícia. 3ª Ed Editora Ática: São Paulo, 1993.

LINS, Alene e VALENTE, Rosangela. Fotojornalismo: informação, técnica e arte.

Editora da Universidade Federal de Moto Grosso do Sul, 1997.

126

LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,

Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

LÜHNING, Angela. Pierre Fatumbi Verger e sua obra. Afro-Ásia, 21-22, 1998-1999,

(315-364).

________________.Pierre Verger: repórter fotográfico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

2004.

MALYSSE, Stéphane Rémy. Um olho na mão: imagens e representações de Salvador

nas fotografias de Pierre Verger. Afro-Ásia, nº24, 2000, (325-366).

MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. 5ª reimp. São

Paulo: Companhia das Letras, 2001.

MARTINI, Gerlaine Torres. A fotografia como instrumento de pesquisa na obra de

Pierre Fatumbi Verger. (Dissertação de Mestrado). Departamento de Comunicação

Social, Brasília, Universidade de Brasília, 1999.

MATOS, Thiara Cerqueira. Correspondências pessoais ajudam a criar instituições:

Pierre Verger, o Museu Afro-Brasileiro e sua rede de colaboradores (1972-1976).

(Dissertação de Mestrado) Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos

Étnicos e Africanos, Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2012.

MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: Fotografia e História interfaces. Tempo, Rio

de Janeiro, Vol 1, nº 2, 1996, (73-98).

_______________. Na Mira do Olhar. Um exercício de análise da fotografia nas

revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX. Anais do Museu Paulista,

USP. São Paulo Jan – Jun. Vol. 13, nº 01, 2005, (133-174).

______________. Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem (Brasil, 1941 –

1942). Revista Brasileira de História. São Paulo, Vol. 15, nº 49, 2005, (43-75).

MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil, a vida de Assis Chateaubriand. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994.

NETTO ACCIOLY, Antonio. O Império de papel: os bastidores de O Cruzeiro. Porto

Alegre: Sulina, 1998.

OLIVA, Anderson. A África nos bancos escolares: Representações e imprecisões na

literatura didática. In: Estudos afro-asiáticos. Ano 25. n° 3. 2003, (421-461).

127

________________. Notícias sobre a África: representações do continente africano na

Revista Veja (1991-2006). Afro-Ásia, nº38 2008, (141-178).

OLIVEIRA, Karine Costa. África na revista O Cruzeiro (1950-1959). (Monografia de

Conclusão de Curso). Departamento de Ciências Humanas e Filosofia: Universidade

Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2010.

OLIVETTI, Armando (org). Gilberto Freyre: uma cultura ameaçada e outros ensaios. É

Realizações: São Paulo, 2010.

PAIVA, Eduardo França. História e Imagens. 2ª edição, Belo Horizonte: Autêntica,

2006.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991.

PEREGRINO, Nadja. O Cruzeiro: a revolução da fotorreportagem. Rio de Janeiro:

Dazibao, 1991.

PINHO, Patricia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume,

2004.

REIS, Meire Lúcia Alves dos. A Cor da Notícia: discursos sobre o negro na imprensa

baiana 1888-1937. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências Humanas e

Filosofia: Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000.

REGINALDO, Lucilene. Vagas informações, fortes impressões: a África nos livros

didáticos de história. Humanas, 2, 2002, (99- 121).

RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: outro Horizonte. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, Coleção Retratos do Brasil: v. 9, 1961.

ROLIM, Iara Cecília Pimentel. O olho do rei: imagens de Pierre Verger. (Dissertação de

Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, São Paulo,

2002.

SERPA, Leoní Teresinha Vieira. A Máscara da Modernidade: a mulher na revista O

Cruzeiro (1928-1945). Dissertação de Mestrado. Universidade de Passo Fundo, 2003.

SILVA, Alberto da Costa e. A História da África e sua importância para o Brasil. In:

Um Rio Chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil na África. Rio de Janeiro.

Nova Fronteira. Ed. UFRJ, 2003.

SILVA, Alberto da Costa e. Francisco Félix de Souza, mercador de escravos. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira: Ed UERJ, 2004.

128

SANSONE, Lívio. Da África ao Afro: uso e abuso da África entre intelectuais e na

cultura popular brasileira durante o século XX. Afro-Ásia, 27, 2002, (249-269).

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo: uma introdução à história, às técnicas e a

linguagem da fotografia na imprensa. Porto, 2002.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil, 3ª ed, São Paulo: Martins

Fontes, 1983.

SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conhecimento iniciático. São

Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.

TACCA, Fernando Cury de. Imagens do Sagrado: entre Paris Match e O Cruzeiro.

Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,

2009.

TAVARES, Odorico. Bahia: imagens da terra e do povo. 3ª ed rev. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1961.

Toque Verger: estudo da obra fotográfica de Pierre Verger. Disponível em

www.pierreverger.org/fpv Acesso em 30 de janeiro de 2012.

VASQUEZ, Pedro. A fotografia no Império. Editora, Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2002.

VERGER, Pierre. 50 anos de fotografia. Salvador: Corrupio, 1981.

______________. Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a

Bahia de todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. Tradução Tasso Gadzanis. São

Paulo: Corrupio, 1987.

VOVELLE, Michel. Imagens e Imaginário na História: fantasmas e certezas nas

mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Ática, 1997.

ZAMPARONI, Valdemir. A África e os Estudos Africanos no Brasil: Passado e Futuro.

Cienc. Cult. vol.59 nº 2 São Paulo, Apr./June 2007 p.p. 46-49.