A Transilvânia de Béla Bartók (1881-1945): Estudo Analítico e Interpretativo das Danças...
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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
THIAGO ARAÚJO
A TRANSILVÂNIA DE BÉLA BÁRTOK (1881-1945): ESTUDO ANALÍTICO E
INTERPRETATIVO DAS DANÇAS FOLCLÓRICAS ROMENAS PARA PIANO
SZ. 56
Monografia apresentada à Universidade
Cruzeiro do Sul, como exigência para
conclusão da Iniciação Científica da linha de
pesquisa Práticas Interpretativas no Ambiente
Universitário: contribuições interdisciplinares
sob orientação da Profa. Ms. Mirian Megumi
Utsunomiya
SÃO PAULO 2014
ii
SUMÁRIO
Resumo...................................................................................................................iii
1.Introdução.............................................................................................................4
2. Justificativa ......................................................................................................... 8
3. Objetivos .......................................................................................................... 10
4. Metodologia / Revisão da Literatura ................................................................. 11
5. Cronograma ..................................................................................................... 14
6. ANÁLISE
6.1 O Compositor ................................................................................................. 15
6.2 Contextualização da Obra .............................................................................. 19
6.3 Análise Interpretativa ...................................................................................... 22
7. Conclusões........................................................................................................50
8. Referências Bibliográficas..................................................................................53
9. ANEXOS............................................................................................................56
9.1 ENTREVISTAS................................................................................................56
9.1.1 Entrevista com Alexandre Ulbanere.............................................................56
9.1.2 Entrevista com Cristiane Bloes.....................................................................59
9.1.3 Entrevista com Willy Corrêa de Oliveira.......................................................61
9.2. Partituras.........................................................................................................64
iii
Resumo
A obra do compositor húngaro Béla Bartók é permeada pelo folclore e
tradições de seu país e pela cultura do sudeste europeu, o que torna sua música
muito particular. Sua composição pianística não é exceção à essa influência,
figurando entre suas obras de maior relevância. A análise aprofundada dessas
características na obra Danças Folclóricas Romenas Sz. 56, baseadas em
melodias de regiões da Transilvânia, tem o propósito de uma melhor
compreensão de suas particularidades rítmicas, harmônicas e melódicas visando
uma melhor interpretação da linguagem utilizada pelo compositor que está
presente não apenas neste conjunto de danças, mas no cerne de sua obra
pianística.
Palavras chave: Bartók – Performance – Análise – Piano
1
1. Introdução
A transição para o século XX se apresenta na história como uma
pluralidade de pensamentos transformadores e inovadores em várias esferas da
sociedade. Filosofia, política, tecnologia e as artes foram revistas ou sofreram
transformações que podem ser interpretadas como resultados de processos que
deságuam no alvorecer do novo século, que para o historiador Eric Hobsbawn (O
Breve Século XX, 1994) é um século curto, considerando seu início em 1914 e
final em 1991.
No caso da música do século XX, tema pertinente a esta pesquisa, este
novo século é marcado pela pluralidade inventiva no que concerne a prática
musical e está conectado a fatores que se desenvolveram no decorrer da história
da música. O sistema tonal para alguns compositores encontrava-se em seu
esgotamento máximo quanto à organização das alturas e relações harmônicas
dentro deste sistema. Mesmo com o cromatismo explorado amplamente no
período romântico, que em um primeiro momento foi visto como fonte de novas
possibilidades dentro do sistema tonal, houve a percepção de que ele marcava,
ao invés de um começo farto de possibilidades, o fim de um modo de organização
e escuta musical. Claude Debussy (1862 – 1918) em referência ao cromatismo
afirma “[...] um belo crepúsculo que fora confundido com uma aurora1“.
Este pensamento em relação às possibilidades do sistema tonal
desencadeia uma série de opções a ele, sugerindo a criação de uma nova
concepção de organização das alturas sonoras em oposição ao tonalismo
vigente.
1 Paul GRIFFITHS, A música moderna, p. 24.
2
Franz Liszt (1811 – 1886), compositor ainda no século XIX, já dizia que
“toda composição deveria conter pelo menos um acorde novo [...] evidentemente
tal processo não poderia continuar sem que fossem solapadas as bases do
edifício tonal e o crepúsculo desse lugar à nova aurora da atonalidade.”2 Esse
pensamento permite um vislumbre do que aconteceria anos à frente
Concomitantemente a isso, existiu a procura de novos materiais para
servirem de fontes de inspiração para o compositor. A contestação das correntes
estéticas musicais vigentes encontra força também através de um viés político,
pois havia no período em questão, uma hegemonia germânica representada por
Viena:
Havia para isto certa motivação política: a hegemonia austríaca na Europa ocidental
estava ameaçada por movimentos nacionalistas nos anos anteriores à Primeira
Guerra Mundial, e seguiu-se que os compositores também deviam procurar libertar
sua música do julgo vienense, voltando-se para as fontes nacionais da canção
folclórica” (GRIFFITHS, 1987, p. 53).
O olhar para a cultura local e sua utilização como resposta à influência
dominadora se expandiu por toda a Europa, tendo cada país seu expoente
principal. Esse nacionalismo não é algo estritamente ligado ao século XX, mas
teve sua representação também no século precedente. Exemplo disto é a forma
que o nacionalismo percorre o século XIX, voltado à unificação patriótica e ao
reconhecimento – no contexto geográfico europeu – de nações autônomas e
emergentes no panorama político.
2 Ibid., p. 24.
3
Giuseppe Verdi poderia ser um exemplo desse caráter unificador do
movimento nacionalista para a Itália; assim como Richard Wagner foi para a
Alemanha através do uso da literatura germânica, e Franz Liszt para Hungria,
com suas Rapsódias Húngaras, onde faz referência à cultura cigana que até
então acreditava-se ser um pilar da música húngara. Contudo não há, por parte
destes compositores, o uso de material especificamente folclórico, mas sim
citações de uma possível cultura aceita como popular em suas obras e que
pertencem totalmente ao vocabulário tonal vigente e universal; servindo apenas
como insinuações e recursos exóticos. Para Palisca (1993), o nacionalismo não
foi, no fundo, uma questão fundamental para a música desses compositores.
Esse mesmo nacionalismo recebe uma nova roupagem no século XX,
deixando de ser uma tentativa de representação do folclore nas formas
tradicionais para ser um objeto de pesquisa profunda e sistemática, com caráter
científico e representação mais rigorosa: a música deixou de ser recolhida pelo
processo rudimentar, que consistia na tentativa de transcrição em notação
convencional, para passar a sê-lo com a fidelidade que a utilização do fonógrafo e
do gravador tornou possível,3 logo, esse material foi utilizado na criação de novos
estilos e até mesmo em um possível alargamento4 do sistema tonal.
Já no início do século, Béla Bartók vê o folclore como opção à esta crise
dos princípios musicais vigentes, e se debruça sobre a substância da música
popularesca de povos distintos dos Bálcãs e demais cercanias do leste europeu,
encontrando na expressão musical popular o veículo principal de comunicação da
sua música.
3 Grout PALISCA, História da música ocidental, p. 698.
4 Palisca usa o temo alargamento como maneira de expressar a expansão do sistema tonal
ocorrida através da utilização de material de origem folclórica.
4
Neste contexto de agitação social e pluralidade de pensamentos e estilos
presente no início do século XX se inserem as Danças Folclóricas Romenas para
piano Sz. 56, obra composta por Bela Bartók em 1915.
5
2. Justificativa
O repertório do século XX na formação do pianista enquanto músico
intérprete é, sem dúvida, de suma importância. Novas formas de expressão
musical e principalmente novas abordagens do piano e seus recursos foram
apresentadas já na primeira metade do século por diferentes compositores.
Como informa o compositor Willy Corrêa de Oliveira, em entrevista cedida
para este trabalho, “é muito mais natural compreender, vivenciar e interpretar a
obra do século XX, do que qualquer obra do passado, e uma forte razão para isto
é a de que nós só podemos olhar o passado pela ótica do presente; olhar o
passado com a ótica do passado é uma ilusão, uma estupidez, sobretudo uma
cegueira porque nenhum de nós, vivos hoje, estivemos vivos no passado.”
Dentre os compositores deste século, esta pesquisa enfoca a obra do
compositor Béla Bartók e sua relevância no repertório do pianista e a relevância
que a mesma possui dentro da literatura pianística do século XX.
Questionamentos que problematizam o trabalho do intérprete são
recorrentes no decorrer de sua vida musical, como exemplo a forma que a cultura
popular utilizada na obra de Bartók deve ser abordada por um artista que não
vivenciou esta cultura. Questões estéticas e etnológicas da obra do compositor e
sua escrita para piano são assuntos, que através da pesquisa, podem levantar
subsídios estéticos e servir de embasamento teórico para as escolhas
interpretativas do pianista, aproximando desta forma, o intérprete do pensamento
do compositor.
Ainda seguindo o pensamento de Willy Corrêa, “quando você desconhece,
ou falsifica as produções etnológicas de uma determinada comunidade você
6
mente ao mostrá-las, e aí o seu mostrar é mentiroso.” Logo, a importância da
busca de informações sobre estes temas presentes na obra bartokiana
juntamente com a escassez de pesquisas e trabalhos de cunho acadêmico
produzidos no Brasil abordando a obra pianística de Béla Bartók, outorgam à
presente pesquisa grande relevância na contextualização, compreensão e
divulgação do repertório de um dos maiores e mais influentes compositores do
século XX.
7
3. Objetivos
Objetivos Gerais:
Abordar o caráter da obra pianística e características etnomusicológicas do
compositor Béla Bartók no âmbito da performance, tendo como base a obra 6
Danças Folclóricas Romenas SZ.56
Objetivos Específicos:
Levantamento de questões interpretativas nas 6 Danças Folclóricas
Romenas focando em seus aspectos musicais e particularidades rítmicas, seus
deslocamentos e acentuações, caráter individual de cada dança, timbres,
sensações harmônicas, agógica e forma.
8
4.. METODOLOGIA / REVISÃO DA LITERATURA
Esta pesquisa tem como principal embasamento teórico a literatura
relacionada à produção musical do século XX e à obra e vida de Béla Bartók.
Baseia-se na revisão bibliográfica de obras fundamentais à musicologia do
período específico, que abarcam visões contemporâneas sobre o repertório,
técnicas composicionais utilizadas, correntes e ideais estéticos, da performance e
do impacto e recepção de obras deste período. Foram analisadas BOULEZ, P.
(1985) e ROSS, A. (2009), pois partem de um plano especulativo dos processos
de criação e da criação musical como um todo, buscando elucidar as conexões
entre música e política no decorrer do século XX e os contextos sociais vigente no
período que formam o ambiente desta música.
Introdução à Música do Século XX de SALZMAN, E. (1970) aborda o
processo composicional e as principais personalidades desse período;
BUCKHART, C. (2011) aborda aspectos da tonalidade e pós-tonalidade no
decorrer do século XX.
Obras biográficas de Bartók que tratam especificamente de sua trajetória
como compositor, o momento histórico em que viveu na esfera político-social, sua
obra, influências e reflexões juntam-se à bibliografia. COELHO, L. (2010), com
sua obra Nele Vive a Alma de seu Povo; Béla Bartók por MORCEUAX, S. (1955)
e Béla Bartók: His life in pictures and Documents (1980), uma compilação de
dados sobre a vida do compositor feita por BÓNIS, Férenc.
Adjunto a isso, há também a necessidade do acesso a uma bibliografia que
contemple outros períodos históricos da música pelo fato da história ser uma linha
contínua que se conecta no decorrer do tempo, contudo sem o intuito de criar
9
uma visão horizontal e evolutiva, mas sim encarar a história como uma sucessão
de eventos que se interligam e se influenciam: “A história da criatividade na
música ocidental a partir de 1900 é inconcebível sem a história da música
ocidental nos séculos precedentes.”5
Para analisar o âmbito da performance, foram consultadas obras
direcionadas às questões interpretativas e que problematizam a maneira como o
músico, na sua função de intérprete, deve tomar suas decisões e como o mesmo
faz sua leitura dos signos musicais a fim de veicular o discurso musical criado
pelo compositor. Obras como Interpretação da Música de Dart, T. (2002); Music
and Narrative Since 1900 de KLEIN , Michael L. Klein e REYLAND, N. (2012) e
The Pianist's Craft: Mastering the Works of Great Composers de ANDERSON,
Richard P. (2012) e a obra Piano Playing: With Piano Questions Answered (1920),
do renomado pianista, professor e compositor da primeira metade do século.
Josef HOFMANN.
Devido à escassez de material que abordem como tema as danças
tradicionais da Romênia e informações sobre este assunto em território nacional,
foram somadas à consulta obras como Dances of Rumania de MIRON e
GRINDEA, C. (1952) e também artigos científicos relacionados ao tema. O
contato com uma literatura que trate de temas análogos às danças tradicionais da
Romênia com o intuito de compreendê-las na sua execução prática e também no
contexto social à qual pertencem se faz importantíssimo para uma apropriação,
ainda que superficial, do caráter folclórico e rural que a obra analisada apresenta
ao intérprete, aproximando-o do teor etnológico dessa composição.
5 Eric SALZMAN - Introdução à musica do século XX, p. 1.
10
Para maior integração com a pesquisa, a presente obra será estudada e
executada ao piano como repertório de graduação com propósitos de
especulação empírica. Somado a isto, será feita entrevista com músicos que
tiveram contato com a obra de Béla Bartók no decorrer de suas trajetórias como
instrumentistas, compositores e pesquisadores.
Estas estratégias visam abordar o tema do projeto de uma maneira mais
abrangente e humana, baseando-se num contexto tanto teórico quanto prático,
permitindo que o conhecimento adquirido neste trabalho seja amplo e
significativo.
11
5. Cronograma
ATIVIDADES Abril Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro
Elaboração do projeto x x
Leitura das Bibliografias
x x x x x x
Elaboração Do texto
x x x x x x
Pesquisa de Campo: Entrevistas
x x
Análise dos Dados
x x x x
Performance da obra
x
Revisão Bibliográfica
x x x x x x
Conclusões
x x
Revisão do Texto
x x
Conclusão e entrega
x x
12
6. ANÁLISE
6.1. O COMPOSITOR
Béla Bartók é considerado um dos maiores compositores da chamada
música de concerto, ou erudita, e figura entre os mais importantes do século XX.
Sua obra é inovadora e singular e exerceu grande influência tanto em
compositores de seu período como nos que viriam a despontar anos depois. No
caso específico do piano, a abordagem do compositor em relação a um
instrumento tão tradicional e presente no repertório da música de concerto é
inovadora, já que ele explora o instrumento com enfoque na constituição
percussiva e timbrística deste. Sua obra para piano é extensa e de suma
importância para a literatura do instrumento, englobando tanto peças solo como
música de câmara e concertos. A maneira como o compositor trabalha as
questões folclóricas de seu país e regiões próximas, também importantes à sua
formação musical, é pioneira e contribuiu grandemente para a etnomusicologia.
Béla Viktor János Bartók nasceu em Nagyszentmiklós (em português
Grande São Nicolau) em 25 de março de 1881, local hoje pertencente à Romênia
na região de Banat (região compartilhada pela Hungria, Sérvia e Romênia). É
uma pequena cidade na fronteira com a Sérvia e Hungria, mas que pertenceu ao
Império Austro-Húngaro6 no período em questão.
Embora tivesse recebido suas primeiras aulas em casa com sua mãe, foi
na Academia Real de Música de Budapeste, capital do então império juntamente
com Viena, que teve sua formação oficial e nela pôde ter contato com a obra dos
6 Império fundado pela união da nobreza austríaca e húngara em 1867 e dissolvido em 1918 após
a derrota na Primeira Guerra Mundial.
13
grandes compositores da música ocidental e também de compositores que
exerciam grande influência na estética musical da época como Richard Wagner e
Johann Strauss. Estudou piano com István Thomán um aluno de Franz Liszt,
composição e demais matérias da academia graduando-se com láurea.
Embora vivesse em um período onde reinava o pós-romantismo
wagneriano7, seu estilo composicional mostra, desde o início, uma forte
característica moderna. Sofreu influência dos compositores Claude Debussy
(1862 - 1918) e Richard Strauss (1864 - 1949) nos primórdios de sua vida como
compositor: nas primeiras obras publicadas de Bartók, sua Rapsódia Op1 (1904),
e suas Suítes para orquestra Op.3 e 4 (1905, 1907), o aproveitamento do material
húngaro ja se mostrava devedor em alguma coisa a Debussy8.
As possibilidades que o compositor francês apresentou à abordagem da
harmonia naquele período, teve forte influência em Bartók e o levou a
questionamentos como pode ser confirmado em alguns de seus relatos:
Kodály and I wanted to make a synthesis of East and West … Because of
our race, and because of the geographical position of our country, which is at once
the extreme point of the East and the defensive bastion of the West, we felt this was
a task we were well fitted to undertake. But it was your Debussy, whose music had
just begun to reach us, who showed us the path we must follow. And that, in itself,
was a curious phenomenon when one recalls that at that time so many French
musicians were still held in thrall by the prestige of Wagner. ... Debussy’s great
service to music was to reawaken among all musicians an awareness of harmony
and its possibilities. In that, he was just as important as Beethoven, who revealed to
7 Grout PALISCA, História da música ocidental, p. 653.
8 Eric SALZMAN - Introdução à musica do século XX, p. 87.
14
us the meaning of progressive form, and as Bach, who showed us the transcendent
significance of counterpoint. ... Now, what I am always asking myself is this: is it
possible to make a synthesis of these three great masters, a living synthesis that will
be valid for our own time?” (Moreux, 1953, p 92)
Sua inclinação ao moderno e até mesmo ao experimental fez com que
algumas obras suas não fossem bem recebidas pelo público. Mas foi nas canções
entoadas por pastores e camponeses e nas danças tradicionais do interior do país
que ele acreditou ter encontrado uma fonte autêntica do que seria a música
húngara e nela encontrou sua inspiração musical que o influenciaria até o fim de
sua vida. Á epoca que começou suas viagens de pesquisa, Bartok sofria forte
influencia de Richard Strauss e Claude Debussy, mas sua música nao tardaria a
mostrar o resultado do que ele aprendera nas aldeias da Hungria9.
O apreço pela música tradicional de sua pátria fez com que ele corresse o
país coletando, gravando e transcrevendo a música cotidiana dos camponeses
afim de registrá-las e dessa forma manter viva uma tradição que ele via estar
ameaçada e se extinguindo. Melodias de Banat onde ele nasceu; Poszony onde
viveu com sua mãe após a perda do pai e de locais da Transilvânia, foram
gravadas por ele com a finalidade de servirem de elemento presente em sua obra
retratando a identidade musical húngara, distinguindo-a dos países vizinhos. Tal
atitude acabou revelando que tentativas nacionalistas ou associações feitas por
compositores anteriores em referência à música húngara, eram, em sua maioria,
dúbias. Contudo sua empreitada não se resumiu aos territórios húngaros: seu
9 Paul GRIFFITHS, A música moderna, p. 55.
15
interesse abrangia toda a cultura do leste europeu, incluindo regiões da Romênia,
Moldávia, Bulgária, Ucrânia, Eslováquia e até mesmo locais no norte da África e
Ásia próxima, como o próprio compositor relata:
The principal scene of my research has been Eastern Europe. As a
Hungarian I naturally began my work with Hungarian folk music, but soon extended
it to neighbouring territories—Slovakian, Ukrainian, Rumanian. Occasionally I have
even made jumps into more remote countries (in North Africa, Asia Minor) to gain a
broader outlook.
[…] From the very beginning I have been amazed by the extraordinary
wealth of melody types existing in the territory under investigation in Eastern
Europe. As I pursued my research, this amazement increased. In view of the
comparatively small size of the countries—numbering forty to fifty million people—
the variety in folk music is really marvellous! (SUCHOFF,1992, p. 29 -31.)10
10
O principal cenário da minha pesquisa tem sido o Leste Europeu. Como húngaro, eu naturalmente comecei meu trabalho com a música folclórica da Hungria, mas logo eu a estendi aos territórios vizinhos – Eslováquia, Romênia, Ucrânia. Ocasionalmente eu até fui à países mais remotos (no norte da África e Ásia Menor) a fim de conseguir uma visão mais ampla
[...] Desde o início eu tenho me impressionado com a extraordinária riqueza dos tipos de melodias existentes no território investigado no Leste Europeu. Conforme prosseguia com minha pesquisa, mais impressionado eu ficava. Embora o tamanho destes países seja relativamente pequeno – cerca de 40 a 50 milhões de pessoas – a variedade de sua música folclórica é incrível!
16
6.2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA
As Danças Folclóricas Romenas são uma coleção de melodias coletadas
em diversas regiões da Transilvânia durante as viagens de Bartók. Embora seja
de origem folclórica e de tradição oral, é uma obra estilizada, no que concerne
sua harmonização e adaptação à linguagem musical ocidental. Assim como a
Suíte Barroca, sua natureza é derivada da dança, mas não é uma obra com o
intuito de prover música para acompanhá-la, e sim uma representação musical do
caráter e ritmo da dança relacionada, com intento de uma apreciação da mesma
como música na forma de concerto.
A obra foi composta em 1915 e é dedicada ao Prof. Ion Buşiţia com sua
primeira edição em 1918 e estreia em 19 de fevereiro de 1922 na cidade romena
de Cluj-Napoca (Kolozsvár em húngaro). Originalmente foi concebida sob o título
“Danças Romenas Folclóricas da Hungria”, contudo com a anexação da
Transilvânia, local da origem das melodias, à Romenia em 1920 com o Tratado de
Trianon, Bartók deixou como título apenas “Danças Folclóricas Romenas.” Na
catalogação feita por András Szőllősy11 a obra consta como “Sz.56”; já na
catalogação cronológica elaborada por László Somfai leva o prefixo “BB.68”
sendo a primeira a mais usual nas obras de Bartók.
As melodias são originárias dos seguintes locais que pertenceram – alguns
ainda pertencem – à Transilvânia: Voiniceni e Neagra no condado de Mureş; Igriş
na região de Banat, Bistra no condado de Alba e Beiuş no condado de Bihor.
Apesar de escritas originalmente para piano solo, há uma transcrição para
11
Compositor e musicólogo húngaro, estudou na Academia Franz Liszt de Budapeste sob orientação de Zoltan Kodály. Criou o índice Szőllősy para as obras de Bartók comumente abreviado “Sz”.
17
orquestra de câmara feita pelo próprio compositor em 1917 e nesta catalogação
consta como Sz. 68. Existe ainda uma transcrição para piano e violino feita em
1925 pelo violinista e compositor húngaro, amigo próximo de Bartók, Zoltán
Zékely12 (1903 – 2001) a quem o compositor dedicou seu segundo concerto para
violino.
Mapa da Romênia dividido em suas regiões administrativas e a os locais de origem do material utilizado nas Danças Folclóricas Romenas Sz.56
Nestas danças é possivel ver a diversidade do material que serviu como
fonte para as obras de Bartók e a forma como ele incorpora e une tais elementos
12
Zoltan Zékely gravou sua transcrição destas danças para o selo Decca em 1936, acompanhado pelo pianista Géza Frid, enquanto o violinista Joseph Szigeti gravou a mesma transcrição em 1930 pelo selo Columbia Records acompanhado pelo próprio Béla Bartók.
18
oriundos de diferentes localidades. O próprio compositor expõe acerca de seu
trabalho, ao fazer referência à Zoltán Kodály13, seu amigo e também pesquisador:
It would be going too far to give here a detailed description of the
differences between Kodály’s works and mine. I will mention only one essential
difference—a difference in procedure which may account (at least partly) for the
differences in style. Kodály studied, and uses as source, Hungarian rural music
almost exclusively, whereas I extended my interest and love also to the folk music of
the neighbouring Eastern European peoples and ventured even into Arabic and
Turkish territories to make research. In my works, therefore, appear impressions
derived from the most varied sources, melted—as I hope—into unity. These various
sources, however, have a common denominator, that is, the characteristics common
to rural folk music in its purest sense. One of these characteristics is the complete
absence of any sentimentality or exaggeration of expression. It is this which gives to
rural music a certain simplicity, austerity, sincerity of feeling, even grandeur...14
13
Zoltán KODÁLY (1882 – 1967) foi um compositor, etnomusicólogo e pedagogo húngaro. Junto com Bartók foi um dos criadores de uma nova música húngara baseada em origens folclóricas. 14
Seria demasiado longo dar uma descrição detalhada das diferenças entre os trabalhos de Kodály e os meus. Citarei apenas uma diferença essencial – uma diferença no procedimento que talvez possa contar (ao menos em parte) para as diferenças de estilo. Kodály estudou, e usa como fonte, praticamente apenas música rural húngara, enquanto eu estendi meu interesse e amor também aos países vizinhos e me aventurei até mesmo em territórios árabes e turcos para minha pesquisa. Em minha obra, por consequencia, aparecem impressões das mais variadas fontes, mescladas – assim espero – formando uma unidade. Estas várias fontes, entretanto, possuem um denominador comum, que é a característica comum à toda música folclórica em seu senso mais puro. Uma destas características é a completa abstenção de qualquer sentimentalismo ou exagero de expressão. É o que dá à musica rural uma certa simplicidade, austeridade, sinceridade de sentimentos e até mesmo grandeza. Béla BARTÓK, Béla Bartók Essays, ed. Benjamin Suchoff, p. 394-395.
19
6.3 ANÁLISE INTERPRETATIVA
“If you love music to the extent of dedicating your life to her
service, music takes it for granted that you will not contract a
marriage of convenience with her from petty motives. You ought to
devote to her all your enthusiasm and all the resources of your
love, without respite. (…) You will then have become an
interpreter, not merely a performer”.15
A análise apresentada a seguir tem a finalidade de identificar a estrutura da
obra, dentro do conceito ocidental de música de concerto tradicional, os
elementos que a permeiam e a constituem como forma; seu elemento harmônico
e articulação dentre outros para uma maior compreensão de como ela se
apresenta ao intérprete. Cabe ressaltar que essa investigação busca servir como
guia nas escolhas interpretativas, e uma forma de uma melhor apropriação do
texto musical. Em seu livro Interpretação da Música, Thurston Dart diz que “[...]
analisar os pequenos sinais negros com se fossem música, compô-los num
padrão intelectual ou visual agradável sem qualquer referência ao som implícito,
são atividades que nada tem a ver com a música, mas com seus símbolos – e, na
música, os únicos juízes são os ouvidos, e não os olhos.” 16 Descrever uma
performance como uma interpretação é elevar o ato de fazer música, para investi-
la a um nível alto, até mesmo filosófico. Muito além de uma rendição das notas na
15
Se você ama a música a ponto de dedicar sua vida a seu serviço, a música toma como certo que você não se dedicará à ela como um casamento por interesses mesquinhos. Você deve devotar à ela todo seu entusiasmo e todas suas fontes de amor, sem descanso. (…) então você terá se tornado um intérprete, e não um mero executante. Alfred Cortot’s Studies in Musical Interpretation, London: Harrap 1937, p. 16; orig. in Alfred Cortot, Cours d’interprétation, ed. Jeanne Thieffry, Paris: R. Legouix 1934. 16
Thurston DART, Interpretação da música, p. 4.
20
página, uma interpretação leva em consideração a visão de uma obra, e oferece
uma “leitura” que se presta a uma caracterização em palavras. [...] É por isso que
uma interpretação não é nunca um sinônimo neutro para uma performance, e por
isso eleva-se àquele que interpreta sobre o que apenas executa. (DREYFUS,
2007, tradução nossa).
Contudo, a postura de nomes importantes da música com relação à
performance e ao intérprete é diversa, tendo pensamentos que conflitam com a
posição do intérprete como um artista que com o seu fazer musical contribui para
a obra executada. A exemplo disto temos o pensamento do compositor russo Igor
Stravinsky (1882 – 1971), que diz “o segredo da perfeição reside acima de tudo
na consciência [que o performer] tem da lei que lhe é imposta pela obra que está
tocando”, de tal maneira que a música não deveria ser interpretada, mas sim
executada (STRAVINSKY, 1947, p.127).
Tal posição pode colocar o intéprete como um corruptor e deturpador do
discurso musical escrito na partitura, tornando-o mero reprodutor e veículo de
comunicação entre compositor e público: “a despeito de sua intolerável
arrogância, é totalmente desnecessário, exceto pelo fato de que as suas
interpretações tornam a música compreensível para uma platéia cuja infelicidade
é não conseguir ler esta música impressa” (NEWLIN, 1980, p.164).
Esse embate é frutífero e a pesquisa aprofundada dele resultaria em
material de estudo importante para intérpretes, contudo o posicionamento desta
pesquisa é menos abrangente e focará na função do intérprete como aquele que
pode expressar e trazer à tona as estruturas musicais da obra executada, tendo
como embasamento a pesquisa para melhor fundamentação da sua
interpretação, tentando equilibrar a relação intérprete-compositor.
21
Sobre as opiniões interpretativas, há a ressalva de que não há aqui
nenhuma pretensão em estabelecer qual é a interpretação correta e definitiva da
obra, mas apenas sugestões fundamentadas em conhecimento empírico e
pesquisa; houve, em parágrafos anteriores desta pesquisa, uma breve
contextualização da vida do compositor, de seus ideais musicais e do âmbito
musical do momento histórico em que ele viveu com o objetivo de munir o
intérprete de ferramentas auxiliares para uma possível compreensão do
pensamento do compositor e consequentemente da obra analisada, respeitando-
se sempre a liberdade do intérprete em fazer suas escolhas. A pianista e
professora Cristiane Blóes, em entrevista a esta pesquisa, diz que “[...] interpretar
é ter liberdade, liberdade de opinião posso assim dizer, mas tentando sempre
estabelecer esse fazer musical dentro do contexto em que a obra se insere.”
Mesmo que não se queira praticar uma pesquisa em “águas profundas”,
deve-se reconhecer que, no estudo de uma obra, o desejo de conhecimento
incide mais sobre as motivações do que sobre os fatos; mas somente os fatos
podem nos dar as chaves das motivações. O nosso estudo permanece infrutífero
se não tentarmos pesquisar o pensamento do compositor no que ele tem de mais
geral! Como se poderia de outro modo, tirar conclusões?17
Para a análise foram utilizadas duas edições de partitura da obra Danças
Folclóricas Romenas Sz. 56: a americana Alfred Publishing, editada por Maurice
Hinson (2ª edição) e a austríaca Universal Edition, cópia da primeira edição de
1918 e revisada por Peter Bartók, filho do compositor, de onde serão retiradas
imagens de trechos da obra para fins de exemplificação. Para fundamentação da
análise musical, as obras consultadas foram Fundamentos da Composição
17
Pierre BOULEZ, A música hoje 2, p. 31.
22
Musical de Arnold Schoenberg e Harmony in Context de Roig Francolí; e para
compreensão do caráter da dança em seu teor etnológico, foram contatados Liz
Mellish, PhD pela Escola de Estudos Eslavos e do Leste Europeu da University
College London e o bailarino e pesquisador Nick Green.
O conjunto destas danças é apresentado de uma maneira cíclica,
composta de 7 melodias/danças organizadas em 6 movimentos distintos com
início e fim claramente expostos, com exceção do último movimento (iniciado por
um attaca logo após o fim de sua precedente) onde há a junção de duas danças
tradicionais unidas pelo compositor como uma parte só e executadas sem
interrupção. A execução completa da obra é de aproximadamente 4 minutos e 30
segundos e as 6 danças recebem nomes distintos originalmente em romeno:
Jocul cu bâtă; Brâul, Pe Loc, Buciumeana, Poargă Românească e Mărunţel, que
serão utilizados nesta análise.
Jocul cu bâtă
É a primeira dança e seu nome pode ser traduzido literalmente como “Jogo
de Bastão”. É uma dança baseada no antigo ritual conhecido como Căluş que
existiu na região central da Transilvânia e era composto de jogos, canto e danças
para cada parte do ritual. Em 1855, intelectuais transilvânios coletaram essas
danças e as reformularam em concordância com a melodia, com movimentos
mais simples e em tempo mais lento. Essas danças se espalharam pela
23
Transilvânia através dos Cete de Juni18 (grupos de jovens) e eram apresentadas
em festivais e salões como forma de mostrar uma identidade cultural durante o
império Austro-Húngaro. De volta às vilas, essas danças perderam seu propósito
ritualístico e sofreram alterações. Joc cul bâtă é uma dança para grupos de
homens que, em círculo, usam um bastão como suporte juntamente com alguns
padrões de passos complexos. Há também adaptações para solo, com poucos
dançarinos e para competições. Geralmente é uma dança animada e empolgante.
Abrindo o conjunto de danças, Joc cu bâtă tem a nota Lá como campo
central, alternando entre os modos dórico e aeólio como é justificado nas
terminações de frases nos compassos 8 e 15 e compassos 32 e 47 que trazem
estabilidade e sensação de repouso conclusivo no decorrer desta dança.
Estruturalmente a peça é disposta na forma binária sendo a parte A
composta pelos primeiros 16 compassos e a parte B inicia no compasso 17 indo
até o último compasso. A articulação é o que precisa ser trabalhado com mais
cuidado, por ser o condutor da vivacidade e leveza necessárias para dar à Joc cu
bâtă o caráter festivo como sugerido no título Dança de Bastão. A fórmula de
compasso é binária (2/4) com a melodia exposta na mão direita alternando entre
ligaduras de frases bem curtas e trechos em staccato; em vários momentos há
um deslocamento da métrica para o tempo fraco ao fragmentar em figuras curtas
o tempo forte e utilizar figuras mais longas no tempo fraco como nos compassos
1, 2, 3 e 5, (Exemplo 1) e também nos compassos 35,39 e 43. A execução bem
clara da diferenciação de articulação favorecerá esse deslocamento de maneira
natural e fará com que transpareça o caráter alegre desta dança.
18
GREEN, Nick. e MELLISH, Liz. The Eliznik Web Pages - Romania, Bulgaria and South East Europe Ethnography. Abr. 2008. Disponível em: <http ://www.eliznik.org.uk.htm> Acesso em: Setembro 2013
24
Exemplo 1. (Compassos 1 – 5)
Em contrapartida à melodia, a parte harmônica desta música está
inteiramente concentrada na mão esquerda, com saltos e acordes na maior parte
em blocos e raros momentos suavizados por ornamentação como os compassos
4 (Exemplo 1), 10, 11 e 26. De articulação mais simples, a mão esquerda precisa
de uma atenção maior à acentuação sugerida pelo compositor; com exceção de
pouquíssimos trechos — nomeadamente os trechos onde há uma ligadura de
expressão e os compassos 27 e 44 — em todas as notas da mão esquerda há o
sinal de tenuto. Conforme o Essential Dictionary of Music Notation, o sinal de
tenuto indica que “[...] a nota ou acorde deve ser mantida por seu valor integral
(articulação de duração), ou a intenção é de que seja aplicada uma suave ênfase
(articulação de intensidade).”19
Em relação à Joc cu bata, há uma hierarquia tanto métrica, quanto de
planos (o melódico sobrepõe o harmônico), que indicam que o uso de ênfase em
todas as notas da mão esquerda não seria adequado e poderia dificultar a
compreensão do discurso melódico. Logo, a atenção por parte do tenuto que mais
se adéqua à situação seria a intenção de manter as notas em sua duração
integral e com maior atenção, sem encurtá-las seja por causa do salto ou
19
Tom GEROU e Linda LUSK, Essential Dictionary of Music Notation, p. 15.
25
descuido por atenção demasiada à mão direita, mas cabe ressaltar que deve
haver um zelo em deixar clara a acentuação métrica evidenciando o tempo forte
do compasso binário.
Especial atenção merece o baixo do segundo tempo do compasso 12,
onde o compositor fez uso de tenuto combinado com staccato (articulação de
duração com uma articulação de intensidade) e enfatiza com marcato. De acordo
com a métrica, o tempo fraco caminha para o tempo forte, logo este trecho é
claramente um curto levare acentuado culminando no tempo forte do compasso
seguinte (Exemplo 2.) que merece ser considerado pelo intérprete. Nos
compassos 8, 16, 32 e 48 ocorre cruzamento de vozes e o compositor usa dois
termos: sopra e sotto. Estes termos, traduzidos do italiano, significam
respectivamente acima e abaixo, o que dá a entender que a nota lá da mão direita
deve sobressair-se às notas dó sustenido e mi da mão esquerda, fato que pode
ser assegurado pelo sforzando (sf) que o compositor emprega na nota lá
(Exemplo 2.)
Exemplo 2. (Compassos 11 – 16)
As indicações de pedal nas duas edições são do próprio Bartók e são muito
precisas, o descuido com o pedal pode prejudicar todo o trabalho realizado pelas
mãos, sobretudo com relação à articulação que deve ser sempre clara e precisa,
por tal motivo o ideal é que haja um racionamento e controle do intérprete quanto
26
à quantidade do pedal, sendo o uso de meio pedal o mais adequado
sonoramente. Quanto às ornamentações, todas devem ser tocadas antes da
cabeça do tempo como usual nas obras para piano de Bartók, e como o próprio
sugere em sua gravação destas danças em 192020.
Nas marcações de andamento há uma divergência entre as duas edições:
a edição de Maurice Hinson indica 104 bpm21 para a figura da semínima,
enquanto a edição de Peter Bartók recomenda 80 bpm para semínima. Contudo
ambas indicam Allegro moderato, e como sempre há liberdade interpretativa,
compositor e editor estão cientes de que a indicação deverá apenas servir como
parâmetro e não como valor exato para execução. Deve-se levar em
consideração o caráter da dança e seu contexto a fim de evitar erros causados
por exageros de andamento.
No que tange à dinâmica, a abrangência é de piano à forte com vários
crescendos e diminuendos no decorrer da partitura. A construção do plano sonoro
desta dança é bem orgânica e natural como é perceptível já no início: na primeira
nota do anacruse há a indicação de um forte na nota dó com um sinal de tenuto,
seguido por um crescendo que caminha com a melodia ascendente culminando
na nota sol do terceiro compasso, que por sua vez é o ápice da primeira frase;
segue-se a isto a segunda frase que também possui um crescendo que caminha
para um sforzato. Os dois momentos em que aparecem a intensidade piano é no
compasso 25 e na reapresentação deste mesmo trecho no compasso 41 (na
segunda vez com harmonia diferenciada) e ambos antecedem um crescendo
molto até um forte. A construção bem pensada das dinâmicas deste trecho
20
Bartók at the Piano Vol.1 Released: Sep 13, 1991 HUNGAROTON RECORDS LTD. 21
Abreviação de beating per minute, o que significa o número de batidas dentro de um minuto, indicando assim o andamento mais próximo do ideal sugerido pelo compositor.
27
valorizará o contraste e expressividade e consequentemente facilitará a execução
das notas em staccatíssimo que sugerem um toque muito curto e percussivo,
porém com corpo sonoro, nos compassos 29-30 e compassos 45-46 (Exemplo3.)
Nas duas edições há a sugestão do tempo aproximado de execução de 57
segundos.
Exemplo 3. (Compassos 29-31 e 45-48)
Brâul
Brâul é um termo utilizado para alguns tipos de danças específicas para
homens em conjuto, contudo, há algumas versões mistas ou somente para
mulheres. A palavra “brâul” significa cinto e remete à ideia de que cada dançarino
segura o cinto de seu vizinho no grupo, formando assim uma corrente em
pequenas linhas ou semicírculos e devido à conexão dos cintos há uma certa
restrição de movimentos. O termo brâul é utilizado para se referir à família de
danças de vários locais que possuem uma coreografia parecida entre si como por
exemplo, a Brâul de Cárpato, Brâul do Danúbio e a Brâul de Banat.
28
Esta dança foi coletada por Bartók na região romena de Banat, onde não
se segue literalmente a estrutura original da dança, como afirma a pesquisadora
Ph.D Liz Mellish: “The belt hold rarely exists in Romania except in the name of the
dance and has been replaced by shoulder hold or simple low hand hold”22 e ao
invés de cinto, os parceiros apenas dançam de mãos dadas, mãos cruzadas ou
com os ombros próximos, com alguns passos cruzados e pequenos saltos.
Brâul é a mais curta de todas as danças, composta apenas de 16
compassos e com execução aproximada de 30 segundos. Foi coletada em Igriş23
(região de Banat) em novembro de 1912 ao som de uma Furulya24 (flauta
camponesa). Em ré dórico, é uma peça simples e tecnicamente fácil, sua
articulação é quase inteiramente indicada por staccatos na melodia, que não
ultrapassa uma oitava em sua tessitura.
Ao analisar a indicação de andamento dada pelo compositor: Allegro
(134bpm na edição de Maurice Hinson e 144bpm na edição de Peter Bartók) e a
dinâmica indicada por um piano já no primeiro compasso e as características da
dança em si (dança em grupo com mãos ou braços cruzados com o parceiro ao
lado, e pequenos saltos) constrói-se melhor a sonoridade desta dança. O
andamento é relativamente rápido para as figuras musicais usadas
(predominantemente colcheias e semicolcheias na melodia e semínimas como
acompanhamento). A dinâmica suave e o staccato indicado as tornam ainda mais
curtas, fazendo com que sua sonoridade lembre a sutileza e leveza de um
22
Segundo GREEN, Nick. e MELLISH, Liz. The Eliznik Web Pages - Romania, Bulgaria and South East Europe Ethnography. Abr. 2008. Disponível em: <http ://www.eliznik.org.uk.htm> Acesso em: Setembro 2013 23
BARTÓK ARCHIVES, Institute for Musicology of the Research Centre for the Humanities Hungarian Academy of Sciences. Disponível em:< http://www.zti.hu/bartok/ba_en_06_m.htm?0405
> Acesso em: Novembro 2013. 24
ORIZONT CULTURAL T, Mainstream of integrating adults through soul of music energy, p3. s/d.
29
pizzicatto, com exceção dos trechos com semicolcheias que devem soar legato
por possuírem uma ligadura (compassos 3, 6, 10 e 16). O devido cuidado com os
sinais de tenuto nos compassos 6, 10 e 12 e com o marcato no compasso 11 fará
com que a diferenciação da articulação ganhe destaque, enriquecendo assim sua
execução (Exemplo 4).
Exemplo 4.
Em ambas as edições utilizadas nesta pesquisa, há a mesma sugestão de
pedal, contudo, conforme os motivos citados anteriormente, deve haver um uso
muito racional e pequeno do pedal para não interferir na articulação indicada. Há
também ao fim da partitura a indicação La 2. volta: poco ritard. que indica ao
intérprete que o mesmo deve executar o ritardando apenas na segunda vez. Em
30
sua gravação de 192025, durante o ritornelo, o compositor executa a melodia em
oitavas (com exceção das figuras em semicolcheias) como forma de variação.
Nas duas edições há a sugestão do tempo aproximado de execução de 25
segundos.
Pe Loc
A terceira dança leva o título Pe Loc, que em tradução literal significa No
Lugar, e tem origem na região de Igris. Há a suspeita de uma possível origem
oriental ou simplesmente alguma influência árabe na melodia desta dança,
identificada pela presença constante do intervalo de segunda aumentada na
composição. O caráter calmo e taciturno juntamente com o título Pe Loc
evidenciam o tipo de dança que poderia vir a ser executada e dificilmente o
ouvinte a relacionará com movimentos rápidos e festivos. Algumas destas
características remetem à dança tradicional chamada Ardeleana.26
Em alguns casos, o nome da dança é dado pela região onde a dança era
realizada, atestando o fato de que cada região possuía ao menos uma dança e a
mais importante dela levaria o nome associado à região em questão27. O nome
Ardeleana, refere-se à região de Ardeal que é uma maneira como os romenos
chamam a Transilvânia.
Com algumas variantes, a dança se resume a um casal onde o homem e
sua parceira fica um de frente ao outro executando pequenos passos para o lado,
25 HUNGAROTON Bartók At The Piano 1920-1945, Gramophone Records, Piano Rolls, Live
Recordings. 26
Segundo GREEN, Nick. e MELLISH, Liz. The Eliznik Web Pages - Romania, Bulgaria and South East Europe Ethnography. Abr. 2008. Disponível em: <http ://www.eliznik.org.uk.htm> Acesso em: Setembro 2013 27
Madalina NEDELEA, Names of romanian folk dances, p. 1-5.
31
para frente ou para trás em movimentos, às vezes opostos ou na mesma direção,
utilizando o menor espaço possível.
Existem três tipos de Ardeleana: Lenta, Rápida e Sincopada28; sendo esta
última, a mais próxima da obra em questão por conter deslocamentos dos passos
dos dançarinos para as partes fracas do tempo, o que ocorre também na melodia.
Embora Pe Loc em sua partitura possua armadura de clave de si menor, há
o uso do modo eólio em si, como pode-se notar pela ausência da sensível.
Também há uma presença constante do intervalo de segunda aumentada,
trazendo reminiscências de música árabe (Exemplo 5). Com a melodia coletada
originalmente ao som de uma Furulya em novembro de 1912 no distrito de Igriş,
assim como a Brâul anterior, esta dança pode servir como um exemplo da
diversidade existente nas influências de Bartók e de como diferentes culturas
podem vir a mesclar-se com seus vizinhos e integrá-las.
Exemplo 5.
As duas edições analisadas indicam Andante como andamento para esta
dança, mas divergem quanto à precisão do tempo. Peter Bartók sugere 90bpm
para a figura da semínima, enquanto Maurice Hinsen indica 116bmp para a
28
Segundo GREEN, Nick. e MELLISH, Liz. The Eliznik Web Pages - Romania, Bulgaria and South East Europe Ethnography. Abr. 2008. Disponível em: <http ://www.eliznik.org.uk.htm> Acesso em: Setembro 2013
32
mesma figura. De acordo com o Grove Dictionary of Music andante é “uma
designação de tempo (e humor)...o termo andante parece ter sido aceito
integralmente como designação de tempo com Leopold Mozart (1756). Para
Haydn e W. A. Mozart era um andamento gentil e calmo...” Ao retomar as
características da Ardeleana sincopada, apresentadas anteriormente na análise
da dança Pe Loc, crê-se que um andamento cômodo e calmo se encaixa melhor
ao intuito da obra.
O acompanhamento estático executado pela mão esquerda, talvez faça
alusão ao que seria o título “No local” em tradução literal do nome Pe Loc. Não há
saltos bruscos nem alteração de figuras, apenas alterações na altura por
questões harmônicas e três momentos de pausa, essa determinação do
acompanhamento em não alterar-se em contrapartida à melodia sincopada pode
estar ligada ao caráter e passos da dança tradicional Ardeleana.
A articulação apresentada por ligaduras em grupos de duas notas na mão
esquerda indica que além de soarem ligadas, a segunda deve soar mais leve
colaborando assim para a métrica binária (2/4), soando sempre calmo com o
auxílio do pedal que é indicado para ser mantido durante os doze primeiros
compassos sem troca e depois reaparece com indicações também longas.
A melodia é delicada e rica em ornamentos: mordentes e apojaturas são
materiais de relevância na sua construção, e todas estas notas ornamentadas
possuem um acento indicando que às mesmas deve ser dada maior ênfase
quanto à intensidade — respeitando-se sempre o contexto da dinâmica —
especialmente aquelas nos tempos fracos, por trazer à tona a síncopa que é uma
característica desta dança (Exemplo 6).
33
Exemplo 6.
O plano sonoro abrange as indicações piano e pianissíssimo, exigindo do
intérprete um controle sonoro grande, pois deve haver diferenciações de
dinâmicas muito sutis no decorrer da peça sem sair do nível quase sussurrado
evocado pela união da melodia delicada com seus intervalos aumentados e
ornamentação e de seu acompanhamento estático.
Nas duas edições há a sugestão do tempo aproximado de execução de 45
segundos.
Buciumeana
Bucium é um tipo de trompa grande de aproximadamente 1 metro e meio e
de forma cônica. Usualmente feita de madeira, costumava ser utilizada por
pastores como forma de sinalizar e de comunicar-se pelas montanhas e regiões
de grande altitude, além de chamar o rebanho para seu abrigo ou retirá-lo para o
pasto. Em alguns vilarejos sua melodia conduz as procissões de funerais29.
29
ORIZONT CULTURAL T, Mainstream of integrating adults through soul of music energy, p8. s/d.
34
Tem a origem de seu nome no latim Bucinum que significa clarim ou
trombeta, embora haja um vilarejo chamado Bucium no distrito de Alba na
Transilvânia, Bartók informa que essa melodia foi coletada de um violinista cigano
em dezembro de 1910 em Bistra30 e por isso há uma dualidade em relação ao
nome desta dança, criando a possibilidade da obra referir-se ao instrumento
Bucium ou ao vilarejo de Bucium.
É a primeira dança em compasso ternário até então. Com uma curta
introdução de dois compassos, é estruturalmente binária com a parte A iniciando-
se no compasso 3 até o 10, onde há mudança para a parte B que finaliza no
compasso 18. Com sua melodia em modo mixolídio, Bartók descreve que nesta
obra “the used folk melody is the more important part of the work. The added
accompaniment and eventual preludes and postludes may only be considered as
the mounting of a jewel.”31
O acompanhamento nesta dança é indicado por longas ligaduras e sempre
há uma nota pedal alternando com a harmonia. A indicação de pedal é presente
nas duas edições analisadas e contribuem amplamente para um toque legato em
sua execução. Com relação à marcação de pedal, na edição de Peter Bartók há a
utilização de símbolos de pedal, contudo na edição de Maurice Hinson há a
utilização de linhas com a duração exata do pedal e momentos de troca para uma
execução mais apurada. Como o próprio compositor afirma32, o acompanhamento
deve servir de suporte para a melodia, e por esse motivo deve haver um cuidado
30
BARTÓK ARCHIVES, Institute for Musicology of the Research Centre for the Humanities Hungarian Academy of Sciences. Disponível em:< http://www.zti.hu/bartok/ba_en_06_m.htm?0405
> Acesso em: Novembro 2013. 31
David Yeomans, Bartók for Piano A survey of his solo Literature, p76. “o uso da melodia folclórica é o mais importante na obra. O acompanhamento inserido e eventuais prelúdios e póslúdios podem ser considerados apenas como o suporte para uma joia. 32
Ibid.
35
com o caráter timbrístico a fim de criar uma ambientação, especialmente nos
compassos introdutórios para a melodia que irá ser apresentada.
A melodia inicia-se com a indicação molto expressivo e merece especial
atenção quanto à articulação, sendo ela elaborada por ligaduras que alternam
entre o legato e entre a necessidade de rearticular as notas a cada duas figuras,
como no compasso 6 e similares (Exemplo 7). Especial atenção ao uso do tenuto
nas duas primeiras notas da melodia, afim de não encurtá-las e dar a elas sua
devida atenção. No plano da dinâmica, esta dança abarca a intensidade do
pianíssimo até um mezzo-forte, sendo necessária uma elaboração muito criativa e
grande controle de toque do intérprete para que haja nuances que enriqueçam e
diferenciem as duas partes desta obra, ainda mais por haver tanto na parte A
quanto na parte B, a exposição da melodia e a reexposição exata da mesma,
apenas com diferenciação harmônica do acompanhamento, evitando assim cair
na mesmice e previsibilidade. Josef Hofman em seu livro Piano Playing with piano
Questions Answered afirma que:
For in reality the piano, like any other instrument, has only one
colour; but the artistic player can subdivide the colour into an infinite
number and variety of shades.33
As marcações de andamento indicam Moderato, mas novamente há
discrepância entre as duas edições, sendo a edição de Peter Bartók a que sugere
um andamento de 100bpm, e por sua vez o editor Maurice Hinson sugere 74bpm.
Cabe relembrar o que Bartók disse em relação às características da música
33
Josef HOFFMAN, Piano playing with piano questions answered p.5.
36
folclórica: “Uma destas características é a completa abstenção de qualquer
sentimentalismo ou exagero de expressão. É o que dá à musica rural uma certa
simplicidade, austeridade, sinceridade de sentimentos e até mesmo grandeza”,34
devendo haver portanto um meticuloso equilíbrio de expressividade e agógica35
para não ocorrer qualquer exagero que descaracterize a origem folclórica da obra.
Em sua gravação da obra, Bartók faz um ritornelo e reexpõe o material
melodico em oitavas como fez com a segunda dança Braul.
Nas duas edições há a sugestão do tempo aproximado de execução de 35
segundos.
34
Benjamin SUCHOFF, Béla Bartók Essays, p 394–95. 35
Segundo o dicionário GROVE, agógica é uma característica de expressão, e particularmente acentuação e acento. Esta qualidade está relacionada mais com variações de duração do que com o plano da dinâmica.
38
Poargă Românească
Especula-se que a Polca é uma dança originária da região da Boêmia,
mais especificamente a atual República Checa, contudo também pode ser uma
dança oriunda da Polônia ou com referência a este país, o que gera controvérsias
com relação à sua origem: “What is clear is that it was not a folkdance, but a town-
based social dance going no further back than the 1830s, though its similarities to
genuine Czech folkdances such as the skočná facilitated its ready acceptance in
Bohemia.”36
É uma dança alegre em 2/4 e executada por casal. Espalhou-se pelos
salões da Europa no decorrer do século XIX sendo adaptada à maneira e gosto
de cada país que teve contato com esta dança. No caso da Romênia, a polca é
uma dança relativamente recente que foi introduzida através de países
escandinavos e adaptada à particularidade de cada vilarejo; variando
enormemente em estilo com relação à dança inicialmente apresentada37. A polca
está inclusa na família das Danças em Casal que por sua vez subdividem-se em 5
tipos distintos cada um com sua variação de acordo com a localidade. Esta
dança, que em tradução literal significa Polca Romena, foi coletada no condado
de Bihor, onde se costuma dançar em casais, dispersos ou em grupos, com um
casal líder, onde os homens fazem passos para tocar o calcanhar, dar pequenos
tapas nas pernas e às mulheres é permitido fazer pequenas piruetas durante a
36 De acordo com o New Grove Dictionary of Music and Musicians. 37
Folk Dance Federation of California, Inc. January 2006 Dance Research Committee: Karen Wilson-Bell, Joyce Lissant Uggla
39
dança38. Há também a Învârtita que é uma adaptação romena da polca, sendo
uma dança rápida e alegre onde os casais dançam lado a lado em semicírculo
com as mãos no ombro de seu par e a outra no quadril.39
Em forma binária, o teor festivo desta polca romena é inegável; possui em
sua notação a armadura de clave de ré maior, contudo, há o uso recorrente da
nota sol sustenido o que arremete ao modo lídio com ré servindo de centro
tonal.40
Possui quatro compassos de introdução antes de apresentar o tema que se
constitui do arpejo de ré maior ornamentado com apojaturas. Aqui se faz evidente
a vitalidade rítmica de Bartók e a visão que ele tinha do piano como um
instrumento percussivo, tal como muitos outros compositores do século XX,
Bartók tratou frequentemente o piano mais como um instrumento de percussão,
enquadrando-o no mesmo grupo que a celesta e o xilofone, do que como uma
fonte de melodias cantábile e acordes arpejados como o concebiam os
românticos.41
A mão esquerda pode ser imaginada como uma força motriz que move a
peça em seu decorrer enquanto sustenta o frescor jocoso da melodia; sempre em
saltos e com indicação de stacatto durante quase todo o tempo. Sua métrica
alterna-se entre dois compassos ternários (3/4) e um compasso binário (2/4)
sucessivamente, exceto na transição da parte A para a parte B. Há indicações de
tenuto que, se forem bem observadas, trarão uma acuidade rítmica e um rápido
contraste em meio às notas curtas e saltitantes. Nos compassos 15 e 24-25 há o
38
Segundo GREEN, Nick. e MELLISH, Liz. The Eliznik Web Pages - Romania, Bulgaria and South East Europe Ethnography. Abr. 2008. Disponível em: <http ://www.eliznik.org.uk.htm> Acesso em: Setembro 2013 39
MIRON and C. GRINDEA, Dances of Rumania, p.35. 40
Maurice HINSON, Romanian folk dances Sz. 56, p3. 41
Grout PALISCA, História da música ocidental, p.699.
40
uso de marcato nas notas da cabeça do tempo, o que indica que, para estas
notas, deve ser dada uma ênfase maior que um simples acento, evidenciando-as
das demais notas do compasso (Exemplo 8).
Exemplo 8.
Ainda referente à articulação, os compassos 17 e 18 merecem especial
atenção devido à indicação, na mão esquerda, de marcato junto com tenuto no
terceiro tempo do compasso, pois somando-se aos acordes anteriores no
contratempo, entende-se que há uma direção para o tempo fraco do compasso,
caracterizando uma variação rítmica do acompanhamento mostrado
anteriormente. A acentuação na melodia apresentada na mão direita alterna em
sua métrica: nos compassos 17-18 e 23-24 há sinal de marcato no primeiro tempo
de ambos compassos (Exemplo 9), já nos compassos 20-21 e 26-27 essa
acentuação passa a ocorrer no primeiro tempo e também no terceiro tempo do
compasso (Exemplo 10), demonstrando um diferencial métrico que pode ser
41
encontrado em material musical camponês e relacionado à questão folclórica da
obra.
Exemplo 9.
Exemplo 10.
No plano da dinâmica, a peça já começa com a indicação de forte em sua
introdução mantendo-se nesse plano até o fim; não havendo em ambas as
edições analisadas outra indicação de dinâmica. As marcações de pedal são bem
objetivas e pedem para o intérprete a troca do pedal conforme a harmonia se
altera. O cuidado com o pedal é importante pois seu uso demasiado pode ser
capaz de prejudicar a clareza de articulação, principalmente por se tratar de uma
obra rápida.
Esta pequena dança, pode servir como um pequeno exemplo do caráter
pianístico da obra bartokiana, que trata esse instrumento por um viés totalmente
42
diferente àquele até então utilizado por compositores em períodos anteriores.
Steven Herbert Smith, professor de piano da Penn State University, em sua
colaboração à obra The Pianist’s Craft: Matering the Works of Grate Composers
de Richard P. Anderson, diz acerca do uso percussivo do piano na obra de Bartók
que: “This pounding energy provided a musical expression of twentieth century’s
machine age. This, along with modal and polymodal combinations of his harmonic
palette, and his relatively more articulated style, gave his music its revolutionary
bite.”42
Nas duas edições há a sugestão do tempo aproximado de execução de 31
segundos.
Mărunţel
A sexta e última dança do ciclo constitui na junção de duas melodias
coletadas em Beius e Neagra; ambas de caráter rápido e alegre costumam ser
apresentadas por grupos de casais.
42
The Pianist’s Craft: Mastering the Works of Great Composers, p. 239. “Esta energia forneceu uma expressão musical à era de caráter maquinário que foi o século XX. Isto, juntamente com combinações modais e polimodais de sua paleta harmônica, e seu estilo relativamente mais articulado, deu à sua música seu teor revolucionário.”
43
A primeira melodia se assemelha à uma dança variante da ardeleana
conhecida como Pe Picior43 (À pé). É ágil e rápida com formação de casais
organizados em colunas movendo-se para trás e para os lados.
A segunda melodia é uma dança rápida do condado de Bihor onde há o
costume de recitar frases com oito sílabas com objetivo de encaixá-las à melodia
em colcheias. Em outros locais da Transilvânia o texto é recitado com o ritmo
preciso e altura definida sempre com a mesma nota44.
Mărunţel em sua tradução literal significa Dança Rápida, o que faz jus ao
seu andamento e figuração rápida, que em momentos lembram arabescos por
seu teor decorativo em vez de emocional.45 Em forma binária, a primeira dança é
organizada em dois períodos formados por duas frases, antecedente e
consequente46, formando uma estrutura regular e simétrica. Com armadura de
clave de ré maior, tem a nota lá como ponto central, havendo a sugestão de modo
lídio no início devido a presença de sol sustenido em trechos da melodia47. Na
segunda dança, há uma transição para lá dórico.
As marcações de articulação são bem precisas; o compositor faz uso da
combinação de uma articulação de intensidade (acento e marcato) e articulação
de duração (staccato), inclusive em tempos fracos, seguindo uma sequência de
três acentuações a cada dois compassos na mão direita (Exemplo 11). A mão
esquerda é responsável pela questão harmônica, mas possui também um caráter
extremamente rítmico-percussivo, com síncopas que devem ser totalmente
43
Segundo GREEN, Nick. e MELLISH, Liz. The Eliznik Web Pages - Romania, Bulgaria and South East Europe Ethnography. Abr. 2008. Disponível em: <http ://www.eliznik.org.uk.htm> Acesso em: Setembro 2013. 44
Béla BARTÓK, Bartok Essays, p. 253. 45 De acordo com o New Grove Dictionary of Music and Musicians. 46
Arnold SCHOENBERG, Fundamentos da composição musical, p. 51. 47
Maurice HINSON, Romanian folk dances for piano Sz. 56, p. 5.
44
independentes da articulação apresentada na melodia. Como em sua obra Allegro
Bárbaro, Bartók aborda o piano percussivamente nesta dança [...] reiteirações
podem soar “bárbaras”, mas elas também podem ser percussivas no melhor
sentido da palavra, ou seja, em ritmo e cor.”48 As marcações de tenuto devem ser
bem observadas, especialmente para a diferenciação entre as colcheias em
staccato e as semínimas na mão esquerda.
Exemplo 11.
Na segunda dança, indicada por um píu allegro, a mão esquerda permance
como acompanhamento e com seu caráter rítmico com algumas síncopas no
início, para depois continuar em colheias em staccato praticamente até o final.
A melodia passa a ter mais figuras ornamentais, como as tercinas em
semicolcheias (Exemplo 12), que no andamento sugerido, aumentam o caráter
arabesco da peça.
48
Richard P. ANDERSON, The Pianist's Craft: Mastering the Works of Great Composers, p.240.
45
Exemplo 12.
Algumas acentuações merecem maior cuidado e atenção por estarem nos
tempos fracos do compasso, que comumente não são acentuados, como os
marcatos e sforzatos nos tempos fracos dos compassos 18, 26 e 32 e seus
similares.
A dinâmica nestas duas danças que encerram o conjunto parte do plano de
intensidade forte, como indicado já no primeiro compasso e não há nenhum
trecho em piano em seu decorrer. Marcações de dinâmica como più forte49,
sempre forte e crescendo são encontradas na partitura, contribuindo para que o
vigor e energia desta dança seja mostrado. Contudo há de se construir
gradações de intensidade dentro das possibilidades sonoras da dinâmica
indicada, evitando tocar tudo demasiadamente forte e igual. No livro The Pianist’s
Craft: Mastering the Works of Great Composers, o professor Steven Herbert Smith
diz sobre as questões de qualidade do timbre pianístico ao executar a obra de
Bartók que:
We must use all our skill to avoid the wooden noise that a swatting technique
can produce. We want all the good color a fine piano can produce, but an incorrect
approach to tone production can still do harm to the music by adding extraneous
noises of the hand slapping down on the keys. In short, if we are now sometimes
percussionists, we should be skilled percussionists. (ANDERSON, 2012, p.240)
49
Più significa mais em italiano.
46
Nas duas edições analisadas para a pesquisa, há a utilização de Ossia50
como alternativa para execução dos compassos 49 ao 52 (Exemplo 13) e a
indicação de pedal nas duas edições não possuem divergência. O andamento da
primeira parte desta dança, segundo a edição de Maurice Hinsen é indicado pela
marcação Allegro 132bpm e a segunda parte por Più Allegro 144bpm. A edição da
Universal Edition, difere apenas na primeira dança, quando indica Allegro 152bpm
para a primeira parte da dança. Nas duas edições há a sugestão do tempo
aproximado de execução de 36 segundos.
Exemplo 13.
50
Termo italiano que significa “alternativamente”
47
7. Conclusões
O interesse pela qualidade etnomusicológica das obras de Béla Bartók foi a
força motriz desta pesquisa em um primeiro momento. As Danças Romenas para
piano Sz. 56 são um exemplo acanhado, no que tange a extensão e duração, da
linguagem que Bartók encontrou no folclore. No entanto, mesmo nesta obra com
danças que duram não mais que um minuto cada, todo teor popularesco e
simplicidade encontrada na música rural da Transilvânia e proximidades emanam
no decorrer de seus compassos, através de ritmos e modos que somente alguém
que vivenciou e compreendeu a música destes locais poderia ter escrito. Citando
Willy Corrêa de Oliveira, Bartók se difere de outros compositores chamados
nacionalistas, pois preferiu utilizar como material musical básico, o testemunho
criador do homem do povo, e não da música folclórica como entidade autônoma,
apenas cultural de um determinado país
Quanto ao aspecto formal, nota-se que todas as danças são estruturadas
em forma binária e embora haja armadura de clave em algumas, como Pe Loc;
Poarga Romanesca e Maruntel, todas estão permeadas por uma sonoridade
modal e intervalos que caracterizam tais modos.
A literatura consultada acerca dos tipos de danças mais comuns do leste
europeu e suas formações permitiram uma apropriação maior do caráter e
48
aproximação do contexto social em que elas estão introduzidas na Romênia e
Hungria, especialmente da Transilvânia. A descoberta se determinada dança é
apresentada em grupos, casais ou solo e se pertencem à determinada ocasião
social, facilita ao pianista que não vivenciou tal cultura, entendê-las em seu
ambiente originário e interpretá-las ao piano.
A análise e comparação das partituras através das duas edições
escolhidas permitiu inquirir a escrita pianística do compositor, evidenciando o
detalhamento que o mesmo tem com relação às marcações no plano da
dinâmica, acentuações e de articulações e a clareza com que ele escreve na
partitura as suas intenções musicais para quem for interpretar sua obra. Mesmo
sendo as duas edições de épocas diferentes, distantes em 73 anos, não há quase
diferença entre ambas, excetuando-se pouquíssimas divergências com relação ao
andamento e marcação de pedal. Contudo, mesmo com a riqueza de detalhes da
escrita musical, cabe ressaltar, como salienta Alexandre Ulbanere, que por mais
precisa que a partitura seja, com indicações de dinâmica, articulações, tempo,
caráter, etc.; essas decisões cabem, no ato da realização, ao intérprete; portanto,
quanto mais próximo do compositor o intérprete estiver, melhor ele vai
compreender o que o compositor quis dizer com a peça e deverá, portanto, se
esforçar em realizar suas conclusões.
A coletânea das informações adquiridas através da revisão de literatura e
das entrevistas cedidas serviu como fundamentação teórica para uma parte da
pesquisa — de caráter mais empírico — que foi a execução desta obra como
repertório de graduação.
Espera-se que este trabalho seja um contribuinte para a aproximação do
intérprete com a linguagem que Béla Bartók encontrou, estudou e internalizou
49
quando passou a ter como material celular de sua obra a música popular, não a
música popular de um país como forma de exaltação nacional, mas a música do
povo — e aqui se inserem vários povos — como maneira de uma expressão
musical universal que ultrapassa as fronteiras político-geográfica, diferenciando o
compositor de outros nacionalistas.
50
8. Referências Bibliográficas
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53
9 Anexos
9.1 Entrevistas
9.1.1 Entrevista com Alexandre Ulbanere.
Entrevista concedida via email em 21 de agosto de 2014.
Alexandre Ulbanere é graduado em música com habilitação em Regência pela Universidade de São Paulo (1999) e mestrado em Música pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Composição Musical, atuando principalmente nos seguintes temas: Willy Corrêa de Oliveira, materialismo-dialético e linguagem musical. É professor de harmonia, contraponto, análise e orquestração na Universidade Cruzeiro do Sul.
Thiago Araújo - O que você entende por interpretação na música? Qual seu conceito sobre?
Alexandre Ulbanere - Interpretar é realizar um projeto, que é a partitura. Por isso, o intérprete deve conhecer não apenas os diversos contextos em que a produção está inserida, como histórico, sociológico, psicológicos do compositor (é fundamental, em minha opinião conhecer a biografia dos compositores que se trabalha); mas também o intérprete deve conhecer os diversos processos de composição. Assim, ele pode se aproximar à IDEIA musical que deve ser o conteúdo da partitura.
Por mais precisa que a partitura seja, com indicações de dinâmica, articulações, tempo, caráter, etc.; essas decisões cabem, no ato da realização, ao intérprete; portanto, quanto mais próximo do compositor o intérprete estiver, melhor ele vai compreender o que o compositor quis dizer com a peça e deverá, portanto, se esforçar em realizar suas conclusões.
54
Muitos intérpretes, de fato, desprezam algumas indicações da partitura. No caso do piano, o uso do pedal de sustain é o mais frequente. Em alguns casos, também podemos encontrar divergências entre as dinâmicas marcadas no projeto e as realizadas pelo músico. E outras diferenças. Interpretar deveria ser, antes de tudo, estar atento para realizar, minimamente, o que é pedido na partitura e, assim, facilitar a comunicação entre compositor e ouvinte.
Thiago Araújo - Qual a importância do repertório do século XX na formação musical do intérprete? Alexandre Ulbanere - A música dos séculos XX e XXI são a expressão do mundo em que vivemos. Do mundo atual. Do declínio estertóico da sociedade capitalista e, por isso, é desprovida de um meio de comunicação universalizante – um sistema de referência. Trata-se, portanto, de uma música metalinguística por excelência, já que, para escrever uma música nesse período e fazer ARTE, o compositor deve, antes de mais nada, “inventar” uma maneira de organizar as alturas – as notas – de modo que não retome modelos anteriores, nos quais torna-se difícil construir um discurso que não seja uma cópia de um modelo do passado.
Por esse motivo, a música do período citado é rica em diversos processos e em diversas sonoridades e o intérprete consciente de seu papel deve aprende-las para realiza-las. Tocar a música de seu tempo é ainda mais importante do que tocar – repetir – interpretações do passado. E, seguramente, ao compreender as ideias musicais na música contemporânea, ajudará a compreender ideias também na música do passado e perceber que, de fato, uma música não é apenas um conjunto de sons agradáveis ao ouvido.
Ajudar a fazer conhecer a música de seu tempo deve ser uma das prioridades do intérprete, já que ele deve se colocar na condição de um formador de opinião – alguém que dá subsídios para que a população compreenda o mundo em que vive e discuta essas condições de vida.
Vivemos em um modelo de sociedade – a capitalista – decadente e desumana. Se a música dessa sociedade decadente é também decadente – feia, estranha e, por que não dizer?: “desagradável” ao ouvido – ela é um reflexo dessa sociedade, que prima pela ignorância; portanto, o possível público para essa música dificilmente a compreende, mesmo no meio acadêmico. E interpretar essas obras, expô-las, é uma maneira direta de lutar contra esse estado de coisas: essa ignorância universal e a insensibilidade generalizada.
Expor essas condições e explicar ao público, por meio de interpretações precisas e também diálogos com o público, deve ser uma das funções do intérprete. Dar a conhecer, aos cidadãos, o resultado musical do mundo em que vivem.
Thiago Araújo - Quando um compositor se utiliza de material vindo do folclore de seu país em sua obra, isso pode ser um dificultador para o intérprete que não está inserido nesse contexto cultural? Como o intérprete pode trabalhar esta questão?
55
Alexandre Ulbanere - Seguramente, um compositor que escreve a partir de dados folclóricos – o material musical, mais notadamente – deseja não apenas comunicar-se com mais pessoas de sua comunidade, como também expressar dados culturais do local que retrata. Se um intérprete não está atento a esses dados, não terá condições de realizar a partitura de maneira conveniente, ainda que seja do local retratado.
Quando esse local é uma outra realidade geográfica – outro país ou uma comunidade específica – o intérprete deve se esforçar para se aproximar dessa cultura. E há várias maneiras de se fazer isso. Ler livros que explicam os valores sociais e culturais de um povo ou comunidade; conhecer a língua; conhecer as músicas em que as peças eruditas são baseadas – a música folclórica do país, etc.
O ideal é viver entre eles, comer com eles, conhecer seus problemas, sonhos e tudo o mais que se relacione ao povo em questão. Só compreende o rubato chopiniano, por exemplo, quem já ouviu músicas folclóricas e de salão polonesas do século XIX, porque Chopin fazia questão de refletir esses dados em sua música; inclusive o material musical – escalas e modos típicos da música polonesa.
É um trabalho árduo, mas que dá frutos. Deve-se trabalhar muito para se chegar a algo mais que o simples domínio técnico do instrumento.
Thiago Araújo - Há alguma consideração sobre Bártok que você acredita que seja relevante antes de estudar uma obra dele? Alexandre Ulbanere - Muito se há escrito sobre Bártok. Há inúmeras informações relevantes sobre sua música, seus processos composicionais e sua vida. E há muito o que aprender também sobre a Hungria do século XIX e início do século XX, época que contextualiza a vida do compositor.
Se ouvimos um húngaro falar, ainda que o português, percebemos uma maneira de entoar as palavras, um ritmo quase nunca linear das frases, algo que se deve prestar atenção para interpretar uma música que expressa também esses valores culturais.
A música de Bártok se tornou universal também porque ele se universalizou e conhecer esse processo – a forma que ele encontrou para tocar tanta gente e tornar-se um compositor até certo ponto popular – pode ajudar a melhorar a relação com a partitura e as ideias musicais que contem.
E estudar música folclórica húngara e os compositores que conviveram com ele à época – ouvir suas músicas, compreender as relações que tiveram, etc. Tudo isso deve ajudar a uma melhor interpretação de sua obra.
56
9.1.2 Entrevista com Cristiane Bloes Entrevista concedida via email em 08 de setembro de 2014.
Cristane Blóes é coordenadora do curso de piano erudito do Conservatório
de Tatuí onde ministra aulas de piano, música de câmara, música brasileira para piano e música contemporânea. É mestre em Música pela Universidade Estadual Paulista - Unesp na linha de pesquisa Teoria e Práxis do Processo Criativo (2006); Pós-graduação em Psicopedagogia pela Faculdade Asseta de Tatui (2003) e Pós graduação em Gestão do Trabalho Pedagógico. Obteve o título de Bacharel em Música com Habilitação em Instrumento -piano pela Universidade Estadual Paulista -Unesp (1995); Curso Técnico - Conservatório Dramático e Musical Dr Carlos de Campos de Tatui - Piano Erudito (1991) e Piano Popular -MPB/Jazz (1992). Áreas de atuação: Instrumentação Musical (piano), Música Erudita, Música Popular, Música Brasileira, Música Contemporânea, Música de Câmera. Pesquisa sobre os temas: Interpretação da Música Brasileira, Interdisciplinaridade na música, Música Contemporânea, Pedagogia Pianística, Arte e Educação.
Thiago Araújo - O que você entende por interpretação na música? Qual seu conceito sobre? Cristiane Bloes - Falar de interpretação é uma questão complicada, até polêmica posso dizer. Existe a interpretação na visão do intérprete propriamente dita e a interpretação “esperada” pelo compositor. As obras conceituais, clássicas da literatura musical já adquiriram seu caráter próprio. Por mais que um intérprete crie, ou ouse um pouco mais ou menos, não sai ou “procura” não fugir do estilo e da estética musical em que obra está inserida.
Ao contrário se o intérprete interpreta uma obra de um compositor vivo, uma obra recente em que o compositor dá sugestões, opiniões e muitas vezes acaba até alterando trechos da obra. Este pode ver o resultado de sua escrita musical... Então, são duas situações diferentes que devem ser observadas. Conceitualmente, interpretar é ter liberdade, liberdade de opinião posso assim dizer, mas tentando sempre estabelecer esse fazer musical dentro do contexto em que a obra se insere.
Dessa forma, você não pode jamais interpretar uma obra sem conhecer o compositor, suas ideias, suas aspirações, estilos, contexto não só musical, mas da própria vida dele. A obra não se resume ao papel, à partitura...ela é apenas um código a ser decifrado.
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Thiago Araújo - Qual a importância do repertório do século XX na formação musical do intérprete? Cristiane Bloes - O Século XX trouxe cores, timbres, ritmos, harmonias diferentes. Trouxe a ousadia à musica...a liberdade que as outras artes já tinham acesso como a pintura, literatura... O Século XX uniu a música à outras questões filosóficas, trazendo à música uma forma de expressão até então não experimentada.
Com Debussy tivemos novas cores, formas...Com Stravinsky ritmo e Schoenberg a nova harmonia .A liberdade total do intérprete veio com Cage, Stockhausen , Bério, Ligetti e outros tantos compositores. Os nacionalistas Bartok, Prokofieff, Villa-Lobos... Pra mim, ao longo do século XX pudemos observar uma maior ligação entre intérprete e compositor, no sentido da criação. Mudanças nos conceitos, nova forma de interpretar...O intérprete passou a pensar mais na obra em si e não em seu virtuosismo, da performance pela performance. Thiago Araújo - Quando um compositor se utiliza de material vindo do folclore de seu país em sua obra, isso pode ser um dificultador para o intérprete que não está inserido nesse contexto cultural? Como o intérprete pode trabalhar esta questão? Cristiane Bloes - Acho que isso não inspira dificuldade, mas curiosidade, pois já de início o intérprete tem que pensar em pesquisar esse contexto. Além de conhecer o compositor, seria interessante assistir documentários, ouvir, ler sobre esse tipo de folclore, sobre os costumes, ideias, sobre país e seu povo. Com certeza terá um embasamento para uma interpretação mais fiel. Thiago Araújo - Há alguma consideração sobre Bártok que você acredita que seja relevante antes de estudar uma obra dele? Cristiane Bloes - Sem dúvida, quem for estudar uma obra de Bartok tem que saber que ele foi um grande etnomusicólogo, um pesquisador dos costumes e do folclore de seu país. Não dá pra tocar obras de Bartok somente “pela partitura”...Bartok vivenciou os costumes, canções populares, anotou tudo, como fez Villa-Lobos no Brasil.
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9.1.3 Entrevista com Willy Corrêa de Oliveira Entrevista concedida pessoalmente em 16 de setembro de 2014.
Willy Corrêa de Oliveira é um compositor brasileiro. Foi professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde lecionou composição, linguagem e estruturação musical. Nascido em Recife, frequentou laboratórios de composição eletroacústica na Europa e os Cursos de Férias em Darmstadt, na Alemanha. Contribuiu para o movimento Música Nova, fundado em 1963 buscando sintetizar o serialismo com as pesquisas mais recentes sobre microtonalidade, processos eletroacústicos e a música concreta, empregando novos recursos notacionais e reavaliando conceitos da semiótica musical. Possui uma extensa obra composicional, que abarca obras orquestrais, para piano solo e música de câmara.
Thiago Araújo - O que você entende por interpretação na música? Qual seu conceito sobre? Willy Corrêa de Oliveira - Penso na interpretação como o mostrar, tal como reza a tríade de Wittgenstein. Ele coloca que, tudo que pode ser dito deve ser dito (há uma obrigatoriedade de dizer-se concretamente); há coisas que não podem ser ditas, mas podem ser mostradas, e há também coisas que você não pode dizer nem mostrar, e essas devem ser silenciadas.
Sem dúvida ele pensa um dizer concretamente como tudo aquilo que a linguagem pode alcançar concretamente. O mostrar para ele já envolve a área dos sentimentos, paixões, que evidentemente são indizíveis por palavras. E no terceiro item ele alude à área onde estão situadas a metafísica, a fé, a moral a filosofia e as artes. Penso que a interpretação como arte do mostrar imanta-se também, sem dúvida, de tudo aquilo que só pode ser silenciado, quando o intérprete está em sintonia perfeita com esta área do discurso. Thiago Araújo - Qual a importância do repertório do século XX na formação musical do intérprete? Willy Corrêa de Oliveira - Acho que é uma tremenda pena, uma tragédia que os séculos anteriores não tenham tido Béla Bartók incluído em sua pedagogia, o que
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vale dizer que não posso imaginar um trabalho com a linguagem musical no século XX, com o piano sobretudo, sem incluir Bartók como uma das pedras angulares da educação musical, ainda mais que ele foi um extraordinário pensador pedagógico e deixou-nos uma obra inconfundível neste campo como o For Children, as várias pequenas obras fáceis para piano que escreveu e todo o caminho que se desenrola a partir do número um do Mikrokosmos até o caderno número seis e para outros instrumentos também, que eu me recorde também para violino. Mas mesmo nas horas em que ele não esta pensando em pedagogia, mesmo nessas obras ele é sempre pedagógico, o que significa que ele teve uma resposta à crise musical no século XX das mais efetivas que se pode avaliar. A exclusão de obras do século XX na educação musical só pode apontar para a estupidez do educador que age assim. Muito mais natural compreender, vivenciar e interpretar a obra do século XX, de que qualquer obra do passado, e uma forte razão para isto é a de que nós só podemos olhar o passado pela ótica do presente; olhar o passado com a ótica do passado é uma ilusão, uma estupidez, sobretudo uma cegueira porque nenhum de nos vivos hoje estivemos vivos no passado. Mas à medida que nós tivermos uma natural relação com o presente, mesmo que este presente seja uma verdadeira Torre de Babel, é só a partir deste presente que a gente pode voltar ao passado dizendo algo que não seja tão estúpido quanto às ilusões musicológicas inventam para encobertar o desconhecimento verdadeiro daquilo que passou. Thiago Araújo - Quando um compositor se utiliza de material vindo do folclore de seu país em sua obra, isso pode ser um dificultador para o intérprete que não está inserido nesse contexto cultural? Como o intérprete pode trabalhar esta questão? Willy Corrêa de Oliveira - Todo folclore é inalcançável pela escrita musical, portanto não se pode grafar em geral, o folclore de maneira precisa de tal modo que o músico possa ter uma ideia concreta. Assim achamos que o único modo de se conhecer verdadeiramente o folclore é a partir do mostrar folclórico. Há que se buscar conhecer o mais dirigentemente possível as canções e danças e seus porquês e suas classificações em gêneros. Obviamente que isto envolve também um conhecimento antropológico e historiográfico, e necessariamente informações sobre o idioma e como soam as palavras neste idioma (porque há uma muito sutil relação entre a linguagem verbal e a linguagem artística do criador).
Quando você desconhece, ou falsifica as produções etnológicas de uma determinada comunidade você mente ao mostrá-las, e aí o seu mostrar é mentiroso. Há um mostrar mentiroso do qual eu sempre me recordo, e que recuso com todo ânimo, por exemplo, as mazurkas de Chopin. Mas não esqueçamos que o intérprete do século XX como qualquer outro cidadão do mundo capitalista tem um ego tão cancerosamente aumentado que ele pode usar qualquer produção alheia com o fito único de exibi-lo.
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Thiago Araújo - Há alguma consideração sobre Bártok que você acredita que seja relevante antes de estudar uma obra dele? Willy Corrêa de Oliveira - Sim. Acreditamos que ele teve um modo verdadeiramente extraordinário de responder à crise da música erudita no capitalismo. O capitalismo não foi capaz de se dotar de uma linguagem universalizante como as que antecederam: na idade média o modalismo, no século XVII até o início do século XIX a tonalidade. Visto que não temos uma linguagem universal, e toda linguagem por natureza e definição deveria ser universal, nós todos carecidos de uma assim, conseguimos balbuciar com auxilio de restos de linguagens do passado o algo necessário para a nossa sobrevivência como músicos.
Béla Bartók ao fazer uso do folclore não o fez como os compositores nacionalistas. Nem os nacionalistas do século XIX, quando o nacionalismo tinha alguma razão de ser, mesmo que não substituísse o fundamento universal da linguagem universalizante, Bartók, por ser um homem do século XX, jamais teria pretendido ser um contemporâneo de Chopin, por exemplo. Tampouco e com toda razão, não se pode rotular Béla Bartók como membro de escolas nacionalistas do século XX, posto que os nacionalismos no século XX (sobretudo o não europeu) significavam um erro de perspectiva histórica e musical. Histórica porque o homem do século XX viveu, e ainda vive, em uma sociedade de classes, e a ideia do internacionalismo anticapitalista é uma visão verdadeira da situação presente, portanto antinacionalista por definição. Musicalmente porque o desenvolvimento da prática musical no século XX (mesmo sem uma linguagem universalizante) atingiu um estado de linguagem de certo modo incompatível com a concepção estreita dos nacionalismos musicais.
Porém, Béla Bartók, não pensou o folclore de maneira mesquinha como dita a escola nacionalista. Não havendo uma linguagem universalizante, Bartók preferiu utilizar como material musical básico, o testemunho criador do homem do povo, e não da música folclórica como entidade autônoma, apenas cultural de um determinado país. Assim é que Béla Bartók utiliza como material básico extratos folclóricos de países geograficamente até afastados; o que importava a ele era o pensamento cultural decididamente contrário ao enfoque capitalista: a opção preferencial pelos explorados.
E mais, sendo um dos compositores mais dotados de um poder criativo enorme e uma consciência musical muito ampla, ele redimensiona esses dados folclóricos ao ponto de chegar, por sua ciência e força criadora, a uma verdadeira linguagem erudita no século XX, digna, embora tragicamente parte da Torre de Babel.