A TEORIA DOS COMPLEXOS REGIONAIS DE SEGURANÇA - UMA EXPERIMENTAÇÃO DE CONCEITOS DA SEGURANÇA...

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A TEORIA DOS COMPLEXOS REGIONAIS DE SEGURANÇA - UMA EXPERIMENTAÇÃO DE CONCEITOS DA SEGURANÇA REGIONAL Brian Jefferson Quirino de Guzman 1 Fábio Rodrigo Ferreira Nobre 2 Resumo: A dimensão regional de segurança vem ganhando progressivo destaque nas agendas internacionais de pesquisa, em especial, após o fim da Guerra Fria (GF), e do domínio do conflito bipolar de superpotências. Uma das principais contribuições para os estudos de segurança é dado pela Escola de Copenhague (EC), centro de pesquisa ligado ao Copenhagen Peace Research Institute e liderado por Buzan e Wæver. A EC foi responsável pela implementação de diversos conceitos de fundamental aporte a tais estudos, como a Teoria dos Complexos Regionais de Segurança e o processo de securitização. O presente artigo objetiva comprovar a capacidade empírica de alguns destes conceitos através de uma sucinta aplicação dos mesmos em dois casos distintos, o conflito colombiano e o filipino. O seguinte artigo divide-se numa estrutura clara, da seguinte forma: após a introdução, é realizada uma apresentação teórica e conceitual na qual expomos o arcabouço analítico que desejamos utilizar. A próxima seção introduz uma apresentação histórica das dinâmicas em questão, a fim de demonstrar razões para que seja possível abordá-las sob a perspectiva da segurança internacional, tais como conflitos de baixa intensidade ou litígios fronteiriços. Em seguida, abordamos a aplicação dos conceitos apresentados no primeiro capítulo, nas dinâmicas escolhidas. Por fim, a última seção traz os resultados da pesquisa e as considerações finais. Palavras-chave: Complexos Regionais de Segurança, Securitização, Colômbia, Filipinas. 1 Graduando do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). [email protected] 2 Aluno de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bacharel em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Membro associado da Associação Brasileira de Estudos de Defsa (ABED). [email protected]

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A TEORIA DOS COMPLEXOS REGIONAIS DE SEGURANÇA - UMA

EXPERIMENTAÇÃO DE CONCEITOS DA SEGURANÇA REGIONAL

Brian Jefferson Quirino de Guzman1

Fábio Rodrigo Ferreira Nobre2

Resumo:

A dimensão regional de segurança vem ganhando progressivo destaque nas agendas

internacionais de pesquisa, em especial, após o fim da Guerra Fria (GF), e do domínio do

conflito bipolar de superpotências. Uma das principais contribuições para os estudos de

segurança é dado pela Escola de Copenhague (EC), centro de pesquisa ligado ao Copenhagen

Peace Research Institute e liderado por Buzan e Wæver. A EC foi responsável pela

implementação de diversos conceitos de fundamental aporte a tais estudos, como a Teoria dos

Complexos Regionais de Segurança e o processo de securitização. O presente artigo objetiva

comprovar a capacidade empírica de alguns destes conceitos através de uma sucinta aplicação

dos mesmos em dois casos distintos, o conflito colombiano e o filipino. O seguinte artigo

divide-se numa estrutura clara, da seguinte forma: após a introdução, é realizada uma

apresentação teórica e conceitual na qual expomos o arcabouço analítico que desejamos

utilizar. A próxima seção introduz uma apresentação histórica das dinâmicas em questão, a

fim de demonstrar razões para que seja possível abordá-las sob a perspectiva da segurança

internacional, tais como conflitos de baixa intensidade ou litígios fronteiriços. Em seguida,

abordamos a aplicação dos conceitos apresentados no primeiro capítulo, nas dinâmicas

escolhidas. Por fim, a última seção traz os resultados da pesquisa e as considerações finais.

Palavras-chave: Complexos Regionais de Segurança, Securitização, Colômbia, Filipinas.

1 Graduando do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

[email protected] 2 Aluno de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE). Bacharel em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

Membro associado da Associação Brasileira de Estudos de Defsa (ABED).

[email protected]

Considerações Iniciais

O fim da Guerra Fria ocasionou uma grande mudança nos estudos de segurança, e

embora não seja possível afirmar que estes estudos entraram numa crise de identidade, é

prudente analisar uma ruptura seguida por uma grande adaptação da sua agenda aos novos

temas. Uma das mudanças mais notáveis na agenda de segurança é a alteração de eixo do

nível global para o nível regional. Esta mudança é uma conseqüência direta do fim da

bipolaridade, a nova estrutura tendia a formulação de uma „teoria de dois mundos‟, dividindo

o sistema em um núcleo pacífico, e uma periferia turbulenta, passível de análise sob as

„antigas regras do jogo‟.

Novas preocupações tomavam conta da agenda, havia o temor de que conflitos

regionais e outras problemáticas, tais como o terrorismo e os rogue states, pudessem

representar um risco vindo da zona de conflito para a zona de paz. A nova agenda de

discussão, agora regional, abordou diversas questões, como a proliferação no leste e sul da

Ásia, e conflitos intra-estatais na América Latina. Desta maneira, o nível regional adquiria,

então, o destaque que o havia sido negligenciado (ou subordinado ao nível global) durante

todo o conflito bipolar.

O presente artigo propõe uma análise de alguns conceitos da Segurança Internacional,

especificamente de segurança regional. Para tanto, compreende-se a importância de uma

revisão bibliográfica e utilização do debate teórico sobre segurança regional, em especial,

utiliza-se da teoria dos Complexos Regionais de Segurança (CRS) cunhada pelos autores

advindos da Escola de Copenhague, Barry Buzan e Ole Wæver (2003), para compreender

melhor o funcionamento das dinâmicas de segurança no nível regional. Além desta teoria,

outros conceitos da mesma temática, tais como a idéia de Penetration, Overlay, e o

importantíssimo conceito de Securitização, serão utilizados e aplicados. Lançamos mão,

também, dos conceitos de risco e ameaça, contribuições de Robert O. Keohane e Wallander

(1999).

A Escola de Copenhague é um dos principais centro de formação de pensadores do

âmbito da segurança internacional e dos Estudos de Paz. A Escola é composta por pensadores

pertencentes ao Copenhagen Peace Research Institute (Copri), e é responsável pela inclusão

de diversos dos abordados novos temas à agenda da segurança e das relações internacionais.

Além dos Complexos Regionais, a EC nos apresenta também, outros conceitos que a

aproximam da corrente construtivista das Relações Internacionais, tais como o processo de

securitização, que aponta fenômenos da segurança internacional como socialmente

construídos, através de um procedimento discursivo, pautado essencialmente na dinâmica

entre o que é dito e para quem é dito, referencial e objeto. Mostram que as ameaças são

construídas; são trazidas da condição inicial em que têm uma dada natureza e transformadas

para adquirir uma nova natureza.

Conceitos como overlay e penetration também são de primordial importância para

uma correta análise de dinâmicas de segurança internacional. Para que a aplicação destes

conceitos diversos seja feita de forma clara, escolhemos duas dinâmicas de segurança

presentes em duas regiões distintas, a relação Brasil-Colômbia, na América do Sul, e a relação

China-Filipinas, na Ásia, a fim de demonstrar como o bom emprego de tais conceitos é eficaz,

mesmo em localizações diametralmente opostas. As dinâmicas analisadas se assemelham

bastante no que diz respeito a uma interdependência de segurança, fortalecida pelos

processos de securitização e dessecuritização, esta pesquisa compartilha com Buzan e Wæver

a idéia de que a segurança deve ser observada na maneira como ela é percebida e tratada pelos

Estados.

Mais ainda, não é nossa intenção esgotar o tema de Segurança Regional através de um

debate conceitual entre as diversas correntes de pensamento que permeiam esse campo, mas

ao contrário, gerar uma discussão capaz de enriquecer essa área de estudo através do maior

entendimento de seus conceitos chave, aliados à análise de casos pertinentes e ilustrativos que

facilitem essa compreensão da realidade. O seguinte artigo divide-se numa estrutura clara, da

seguinte forma: após a introdução, apresentamos um ligeiro apanhado histórico da Escola de

Copenhague e dos autores que nos propomos a abordar. Em seguida é realizada uma

apresentação teórica e conceitual na qual expomos o arcabouço analítico que desejamos

utilizar.

A próxima seção introduz uma apresentação histórica das dinâmicas em questão, a fim

de demonstrar razões para que seja possível abordá-las sob a perspectiva da segurança

internacional, tais como conflitos de baixa intensidade ou litígios fronteiriços. Em seguida,

abordamos a aplicação dos conceitos apresentados no primeiro capítulo, nas dinâmicas

escolhidas. Por fim, a última seção traz os resultados da pesquisa e as considerações finais.

A ESCOLA DE COPENHAGUE

Geograficamente localizada na Dinamarca e epistemologicamente localizada entre as

correntes mais positivistas e abordagens mais críticas, a Escola de Copenhague (EC) é uma

das principais fontes de contribuições ao estudo da Segurança Internacional, desde o início

dos anos 90. Encabeçada por Barry Buzan e Ole Wæver, a Escola é composta por pensadores

pertencentes ao Copenhagen Peace Research Institute (Copri), e é responsável pela inclusão

de diversos novos temas à agenda da segurança e das relações internacionais.

A EC é marcada por uma tentativa de trabalhar questões mais setoriais, sob

perspectivas não tão tradicionalistas, como o construtivismo, o que a colocou numa posição

distante dos estudos estratégicos e de toda a tradição vigente nos Estados Unidos à época.

Embora comumente focada na segurança européia, os estudos da Escola, especialmente de

Buzan e Wæver, são de suporte fundamental à análises de segurança regional em qualquer

parte do mundo.

Esta instituição surgira frente a uma preocupação com os investimentos militares

ocorrentes nos anos 80, enquanto EUA e União Soviética reaqueciam a Guerra Fria através

da instalação de armas nucleares e escudos antimísseis em distintas áreas do planeta. A EC

representa, desta forma, um receio com as “limitações da abordagem unicamente estratégico-

militar” (VILLA & SANTOS, 2010, p. 118) e uma reação e aprofundamento de outros

aspectos até então ignorados no estudo da segurança.

O objeto referente dos Estudos Estratégicos é o Estado, na verdade, são os grandes

defensores de uma abordagem materialista que considera a posição estatocêntrica como um

aspecto dado, e não algo passível de discussão. As ameaças, para estes, são, primariamente,

externas, significando uma ameaça vinda de outro Estado, privilegiando os conflitos inter-

estatais. Reagindo a esta maneira monolítica de abordagem, a Escola de Copenhague

também viria a apresentar uma variedade maior no tocante aos níveis de análise.

As „novas correntes‟ adentram os estudos de segurança de maneiras muito distintas

entre si, durante o debate entre wideners e deepeners, podemos destacar o construtivismo, que

nesse momento, subdivide-se em duas novas correntes, o construtivismo convencional –

racionalista, considerado muito próximo aos tradicionalistas, por coincidências como, por

exemplo, de referencial, o Estado, e foco no comportamento deste Estado. Sua principal

inovação vem na proposta de tomar a segurança estatocêntrica, militar, tradicional, e explicá-

la por meios ideacionais, como crenças, normas, valores e cultura. – e o construtivismo crítico

– que tinha como referencial outras coletividades, além do Estado, esta corrente destaca o

papel da língua e adota uma metodologia sociológica e pós-positivista, faz uma crítica a

teorias como a da Paz Democrática.

Esta primeira seção do trabalho procura expor, de maneira sucinta, algumas das

importantes contribuições da Escola de Copenhague para a segurança internacional, em

especial a Teoria dos Complexos Regionais de Segurança (CRS) e os conceitos relacionados

à securitização, com o intuito de demonstrar a importância dos mesmos para uma análise no

nível regional da segurança internacional. Adotaremos, aqui, uma postura epistemológica

associada ao construtivismo padrão ou convencional, por considerar as teorias utilizadas na

pesquisa como pertencentes a tal corrente.

A CONTRIBUIÇÃO E BUZAN E WÆVER

Para melhor compreender o debate teórico em questão, nos utilizaremos de dois

exemplos de dinâmica de segurança regional. A relação Brasil-Colômbia, na América do Sul,

e a dinâmica China-Filipinas, na Ásia. Antes de executar a então proposta aplicação dos

conceitos nestes dois exemplos práticos, em duas regiões tão distintas, apresentamos, em

seguida, a forma como estes são debatidos pela Escola em questão.

Para que se tenha uma compreensão clara do significado dos desdobramentos das

dinâmicas de segurança em voga, é primordial conhecer o debate teórico em questão. Uma

vez que as relações apontadas na presente pesquisa situam-se sob a perspectiva dos estudos de

segurança, faz-se mister a incorporação do debate sobre o tema, mais especificamente sobre a

segurança regional. Como aponta Rodrigo Tavares (2008) “qualquer conceituação de

regionalismo deve englobar sua natureza complexa e multidimensional.”3 Por conseguinte,

apresenta-se o debate teórico sobre as teorias dos Complexos Regionais de Segurança (CRS),

introduzido por Buzan e Wæver (2003), segundo os quais, a proximidade geográfica entre

Estados facilita o transbordamento de um aspecto, a interdependência de segurança está,

normalmente, organizada em blocos baseados em regiões: os complexos de segurança. Para

Buzan, no mundo pós-Guerra Fria o nível regional consegue destacar-se mais como o lócus

de conflito e cooperação para os Estados. Em termos metodológicos, esta escola lança mão do

nível de análise estrutural e/ou global, sendo o Estado a principal unidade de análise e o

referente de segurança (BUZAN e HANSEN, 2009).

Segundo esta teoria, a região seria um recorte espacial crucial para o entendimento das

ameaças, sendo o conceito de Complexos Regionais de Segurança (CRS) uma chave

interpretativa fundamental. Segundo os autores, um CRS pode ser definido como um conjunto

de unidades no qual os principais processos de securitização, dessecuritização, ou ambos, são

tão interligados que os seus problemas de segurança não podem ser razoavelmente analisados

3 “Any conceptualization of regionalism has indeed to acknowledge its complex and multidimensional nature.”

(TAVARES, 2005, p.3) Tradução do autor – Grifo nosso.

ou resolvidos de forma independente (2003, p. 491). Deve-se entender as unidades de que

falam os autores como sendo os Estados e o contexto em que a interdependência é decisiva

para explicação é a região.

Existem também os subcomplexos, definidos da mesma maneira que os CRS, mas

compreendidos dentro de um CRS maior. Os subcomplexos não são um fator necessário nos

CRS, mas também não são incomuns, especialmente quando a quantidade de Estados no CRS

é grande. Tomando como pressuposto que os Estados em questão – Colômbia e Brasil / China

e Filipinas – compartilham de uma externalidade em comum, uma problemática que viaja

mais facilmente por suas fronteiras, por estarem geograficamente mais próximos. Destarte,

podemos doravante classificar as dinâmicas de segurança dos países como sub-complexos do

CRS maior onde estão inseridos.

O conceito do qual nos utilizaremos para tratar a questão de tais dinâmicas de

segurança (o Complexo Regional de Segurança), também poderia ser compreendido como um

sistema regional. Para David Lake e Patrick Morgan (1997) um sistema regional é “um

conjunto de Estados afetados por, pelo menos, uma externalidade4, transfronteiriça, mas local,

que emana de uma área geográfica em particular”.5 (1997, p. 48) Partindo deste pressuposto,

podemos analisar que os autores consideram que mesmo os fatores locais, podem exercer

efeitos – que podem ser danosos (costs) ou benéficos (benefits) – aos outros Estados que

compartilham dos desdobramentos do problema. Os autores explicitam que um sistema

regional de segurança se dá quando tais externalidades representam uma ameaça real à

segurança física de indivíduos ou governos dos outros Estados.

Este debate, em especial, nos direciona a uma diferenciação básica entre os estudos

provenientes da Escola de Copenhaguen, de Buzan e Wæver, e aqueles apresentados por Lake

e Morgan. Devemos compreender uma distinção fundamental no tocante aos postulados

epistemológicos. Para Lake e Morgan, positivistas, ameaças regionais são produzidas, em

grande medida, como externalidades (negativas). Para Buzan e Wæver, ameaças são

socialmente construídas, não existem, necessariamente, no plano objetivo. Um complexo

regional de segurança é uma construção histórica e social, para Lake e Morgan, é objetiva,

dada a dimensão concreta da realidade geográfica. Desta forma, dentro do debate em apreço, é

possível reconhecer uma face do debate entre o realismo e o construtivismo das Relações

Internacionais.

4 Que se compreenda externalidade como “Uma ação de segurança tomada por um estado e não simplesmente

destinada a reduzir o bem-estar de um segundo" (P.49) 5 “a set of states affected by at least one transborder but local externality that emanates from a particular

geographic area” Tradução do autor.

Para Rodrigo Tavares (2008) complexos regionais são “marcados por baixos níveis de

integração regional, enredados por conflitos inter-estatais e intra-estatais. Eles correspondem

a regiões onde o principal ator internacional - o Estado - luta pela sobrevivência, segurança e

poder.” O autor ressalta que, nestas situações, a paz é tratada apenas como a ausência de

guerra, confundindo-se com o conceito básico de Galtung.6 Além disso, Tavares explicita que,

como a paz e a segurança são “bens públicos regionais” que precisam de mecanismos de

cooperação a serem produzidos, o fornecimento desses bens em um complexo regional é

escasso e deficiente.

Os conceitos supracitados se assemelham bastante no que diz respeito a uma

interdependência de segurança, fortalecida pelos processos de securitização e

dessecuritização, mais abordados adiante, esta pesquisa compartilha com Buzan e Wæver

idéia de que a segurança deve ser observada na maneira como ela é percebida e tratada pelos

Estados. Demonstrando, desta maneira, como uma externalidade, uma problemática de

segurança em comum – neste caso a crise colombiana – sofre um processo de spill over7,

transbordando suas fronteiras e atingindo países vizinhos e seu bem estar, e como a

securitização é feita, por parte do país receptor, apontando de que maneira acontece a

percepção deste país quanto aquela problemática.

Ampliando a intensidade do problema, soma-se a presença estadunidense, nas duas

dinâmicas abordadas, para compreender este fenômeno e suas implicações, lançamos mão da

idéia de penetration e overlay, termos cunhados por Buzan e Wæver para identificar o

envolvimento de uma super-potência em outro CRS que não o seu. Enquanto a penetração

ocorre quando uma potência de fora faz um „alinhamento de segurança‟ com Estados de

dentro de um CRS, podemos identificar um overlay no momento em que:

o interesse de uma grande potência transcende a mera penetração e vem dominar

uma região tão fortemente que o padrão local das relações de segurança cessa de

operar (...) normalmente resulta no estabelecimento de longa duração de forças

armadas da grande potência na região, e no alinhamento dos estados locais de

acordo com os padrões de rivalidade. (2003, p. 61)

A existência de uma considerável quantidade de contingente militar proveniente dos

Estados Unidos nas regiões é o tópico desta dinâmica de segurança, que se relaciona com as

questões de overlay e penetration tratadas nas teorias. Faz-se notável, desta maneira, a

importância da compreensão da forma como o país receptor interpreta a presença

6 Sua definição de paz negativa era „a ausência de guerra, violência física de grande-escala ou violência pessoal‟

(GALTUNG, 1969, p.34) 7 Que se compreenda spill over como um “transbordamento” da problemática em questão para além das

fronteiras do Estado.

estadunidense, pujante no aspecto militar. Se tais atividades representam algo que oferece

perigo ao seu bem estar, ou a segurança física do Estado em questão.

Uma vez demonstrada a fundamental contribuição dos autores para o problema em

apreço, lançamos mão de uma discussão complementar sobre ameaças. Wallander e Keohane

(1999) propiciaram debate sobre como as idéias influem na percepção dos atores sobre o

quais são as fontes de insegurança dos Estados. Para esse refinamento contribuem com o

conceito de risco. Para os autores, quando um Estado considera que está “enfrentando uma

probabilidade positiva de que outro Estado lançará um ataque ou buscará ameaçar sua força

militar por razões políticas, ele enfrenta uma ameaça”. 8

Entretanto, para caracterizar-se uma ameaça, uma situação deve obedecer algumas

premissas: (a) o Estado “ameaçador” em questão precisa ter as capacidades para efetuar o

ataque e (b) também precisa apresentar motivos para tanto, no ponto de vista do seu alvo em

potencial. Quando estas condições não são obedecidas, Wallander e Keohane esclarecem que

o Estado está perante a um risco.

É possível observar que as idéias e percepções exercem um papel primordial no

aparato conceitual destes autores. Ainda assim, lhes falta considerar um processo

intermediário, a partir do qual uma questão de segurança se torna um risco, ou passa a ser

interpretado como ameaça. Compreendemos que uma abordagem mais construtivista permite

captar essa transformação a partir do conceito de “securitização”. Segundo Buzan e Wæver

(2003, p. 491), a securitização funciona como um processo discursivo no qual é formado um

entendimento intersubjetivo dentro de uma comunidade de que algo é uma ameaça existencial

a um valor (território, soberania, princípios, vida) de um objeto de referência (Estados,

grupos, indivíduos). Ademais, este processo torna possíveis ações urgentes e medidas

excepcionais para lidar com a respectiva ameaça. Cabe destacar que os conceitos como risco,

ameaça e securitização seriam de fundamental importância para a análise de percepção de um

Estado em relação ao Estado “ameaçador”.

Ainda no âmbito ideacional, a tipologia utilizada pelos membros e seguidores da

Escola de Copenhague sobre amizade (amity) e inimizade (enmity) é uma ferramenta

interessante. De acordo com Buzan e Wæver (2003), a situação de segurança em um CRS

varia entre os pólos de amizade e inimizade. Do mais conflitivo para o mais pacífico, o padrão

de segurança varia de formação de conflito, regime de segurança à comunidade de

8 “…facing a positive probability that another state will either launch an attack or seek to threaten military force

for political reasons, it faces a threat.” (WALLANDER e KEOHANE 1999, P.91)

segurança. Seguindo estes padrões, poderíamos classificar o CRS sul-americano e o asiático

como “regimes de segurança”.

UMA EXPERIMENTAÇÃO DOS CONCEITOS

Uma vez dissecados os conceitos a serem aplicados – a ver, complexos regionais de

segurança, subcomplexos, securitização, spill over, overlay, penetration, risco e ameaça –

torna-se necessário compreender a sua aplicação. Para tanto, nos utilizaremos de duas

dinâmicas de segurança consideradas de vital importância para o funcionamento de dois

Complexos Regionais de Segurança distintos, a relação Brasil – Colômbia, no Complexo

Sul-Americano; e a relação China-Filipinas, no complexo Asiático.

Esta seção se concentra em apresentar, de forma sucinta, as duas dinâmicas em voga,

utilizando para isso os conceitos supracitados. Objetivamos, com tal processo, apontar a

validez empírica de tais conceitos e teorias mesmo em duas regiões distantes no espaço

geográfico e mesmo em relações de segurança.

O Caso Colombo-Brasileiro

Antes de se compreender o conflito colombiano, objeto de nossa análise nesta seção,

faz-se necessário situá-lo dentro de um Complexo Regional de Segurança, o sul-americano.

Exercício este, realizado por Barry Buzan e Ole Wæver no seu Regions and Powers (2003),

para os autores, embora o continente não seja palco de grandes embates entre os seus Estados,

não é possível afirmar que seja uma região pacífica. Historicamente, é possível analisar o

subcontinente como possuidor de uma realidade livre de grandes conflitos interestatais. Desde

a Guerra do Paraguai, na segunda metade do século XIX, a região não é palco de conflitos de

alta intensidade entre os países sul-americanos. Contudo, uma avaliação como essa não resiste

a uma análise que fuja à dicotomia simplificadora de Guerra e Paz. Mesmo não constituindo

uma arena freqüente de guerras entre Estados, a América do Sul enfrenta conflitos de baixa e

média intensidade. Além disso, a distribuição de poder material entre os Estados da região é

extremamente assimétrica (MARES, 2001; ALSINA JÚNIOR, 2010).

O Complexo Regional de Segurança sul-americano é marcado, primordialmente,

por questões fronteiriças, como as travadas por Brasil e Argentina por longos anos. No

entanto, tal CRS também é caracterizado por embates relacionados à questões culturais, como

o idioma; além do constante spill over de políticas de um Estado para outro.

O conflito ora abordado, a relação Brasil-Colômbia, não responde unicamente a

nenhum destes aspectos, mas à um pouco de todos. As dimensões cultural, política e

fronteiriça permeiam a problemática. Contudo, esta se concnetra em apenas uma localidade

do Complexo Sul-Americano, destarte, é cabível classificar este embate como pertecente a um

subcomplexo do CRS em questão, o subcomplexo andino-amazônico.

A Colômbia é um Estado historicamente frágil, o seu processo de construção é

fundamentado em guerras civis e disputas políticas de grande porte, como a La Violencia9,

que pautaram uma espécie de desequilíbrio entre o governo e outras forças que se

desenvolveu cada vez mais, ao longo dos anos, até tornar-se uma realidade insustentável.

O país tem, atualmente, graves problemas com uma desintegração nacional. O governo

não tem controle sobre todas as regiões que formam seu território, uma vez que os grandes

grupos narcoguerrilheiros do país controlam várias áreas do Estado. Isto acontece graças a

uma tentativa de acordo proposto pelo então presidente Andrés Pastrana10

, entre as duas

partes, segundo o qual os grupos e o governo negociariam certas áreas – chamadas “zonas de

despejo”, nas quais não haveria presença de exército ou polícia – o plano era de que os grupos

guerrilheiros abandonassem suas atividades ilícitas e passassem a promover a reestruturação

dos locais e da sua população, através de atividades que favorecessem o desenvolvimento

local11

. No entanto, ao firmar um acordo de militarização com os Estados Unidos, o governo

parece descumprir sua parte, os grupos se rebelam ao sofrer um forte ataque do exército

colombiano, e o domínio das áreas foge das mãos do Estado, a essa altura, a política de

Pastrana chegou a ficar conhecida como uma “política de mão dupla”. Desta maneira, o

governo terminou por “conceder uma zona desmilitarizada equivalente a 40% do território

nacional”.12

A existência de tais grupos com total controle sobre áreas que deveriam estar sob a

égide do Estado caracteriza tal desintegração, que é fortemente agravada pela relação de tais

9 La Violencia foi uma época de conflitos armados intraestatais na Colômbia, compreendido entre os anos de

1948 e 1858. Os embates se deram entre membros de dois partidos colombianos, entre si, e contra os

guerrilheiros dos, então recém formados, grupos paralelos.

10 Andrés Pastrana Arango – Presidente da Colômbia no período de 1998 até o ano de 2002.

11 O governo de Andrés Pastrana foi marcado pela tentativa de negociação com os grupos armados, em especial

as FARC, por estas representarem a maior das forças insurgente na Colômbia. Um exemplo óbvio destas

tentativas de negociações foi a criação de tais zonas desmilitarizadas, onde os líderes do governo e da guerrilha

deveriam se reunir para tentar chegar em um acordo em comum, visando o processo de paz.

12 (VILLA e OSTOS, 2005. p.7)

grupos com o narcotráfico. São movimentos cujo surgimento oscila entre reivindicar o status

de movimentos de libertação nacional ou com a simples função de proteger traficantes; para

financiar suas ações tais grupos passaram a desempenhar algumas atividades relacionadas à

produção de coca13

. Tal afinidade entre os grupos guerrilheiros e o narcotráfico tornou a

situação colombiana ainda mais precária e, numa tentativa de combater o problema, o

governo acaba por, em 1999, apelar para uma ajuda estrangeira, por parte dos Estados

Unidos, o Plano Colômbia.

É válido destacar que a produção de entorpecentes no Estado colombiano crescia de

sobremaneira, nas décadas de 1980 e 1990, simultaneamente a um processo pelo qual era

diminuída nos países vizinhos, através de políticas diretas com investimento americano, em

complemento a uma política de substituição de produtos ilícitos por outras culturas. Em

especial no Peru e na Bolívia, tais políticas foram eficazes, em particular por que tais países

uma política de apoio por ao reforço externo parte de seus governos. Ainda assim, as roças

de coca migraram fortemente para a Colômbia, enriquecendo os cartéis e alicerçando as

ações dos grupos guerrilheiros. Ainda assim, o sucesso nos investimentos estadunidenses nas

regiões vizinhas foi um grande ponto de fomento à investida no território colombiano.

Apesar do seu caráter cultural, fortemente ligado às origens do estado colombiano,

este conflito acabou por se regionalizar durante o seu desenvolvimento. Destarte, o conflito

colombiano tornou-se dinâmica de segurança principal do subcomplexo andino-amazônico

de segurança. Tal processo de regionalização fica claro se observarmos as freqüentes

transgressões de territórios de países vizinhos, cometidas pelos guerrilheiros, e pelas

incursões realizadas pelas forças armadas colombianas. Diversos são os exemplos dessas

atividades em relação ao Brasil, por duas ocasiões, “o Exército Brasileiro (EB) teve contato

com guerrilheiros: uma em 1991, no Rio Traíra, e outra em 2002, nas proximidades de Vila

Bitencourt.” (RIPPEL, 2004, p. 93). Entretanto, a “crise regional desencadeada pela incursão

colombiana em território equatoriano, em março de 2008” (BORBA; CEPIK, 2010, p. 87) é

o maior exemplo de spill over do conflito colombiano para o subcomplexo em questão.

Quanto à participação estadunidense, deve ser levado em consideração o Plano

Colômbia, um pacote de combate as narcoguerrilhas, que foi apresentado por Pastrana

oficialmente aos EUA, apesar deste país ter participado da sua elaboração em 1999 (no auge

da citada política de mão dupla do estadista colombiano), embora tenha sido apenas

13

A Colômbia é o líder mundial no ramo da cocaína com produção estimada pela UNODC em 600 toneladas, o

que seria maioria absoluta mundial. (Anexo “A”, Mapa 1). (UNODC, 2008. p.69)

ratificado por Uribe14

, quando o programa de militarização do combate ao narcotráfico foi

consolidado. Só após 2001 os narcotraficantes passaram a ser identificados como

narcoguerrilheiros. Guzzi15

resume o plano objetivando os seguintes pontos: “(i) processo de

paz; (ii) economia colombiana; (iii) desenvolvimento social e democrático; (iv) luta contra o

“narcotráfico”; (v) reforma do sistema judicial e proteção aos direitos humanos” (GUZZI,

2006, P.62).

Como é perceptível, o pacote não surgira com o objetivo único de militarizar a luta

contra o tráfico na Colômbia com força suficiente para exterminar as narcoguerrilhas, além

disso, o plano parecia compreender outros âmbitos, como o social e político, além do

discurso pró-direitos humanos, segundo o Estado colombiano, seria um “plano para a paz,

prosperidade e fortalecimento do Estado”. Entretanto, ao longo das suas transformações, o

Plano Colômbia deixou de lado, paulatinamente, os outros pontos de apoio, concentrando-se

no engajamento armado contra os grupos que desestabilizam o país. Isso fica claro, se

apontarmos que, na sua gênese, um montante de 76% dos recursos do pacote era voltado para

a área social. Entretanto, num processo que se confunde com o aumento da securitização das

políticas estadunidenses, após os ataques de 11 de setembro em Nova Iorque, o plano foi

assumindo um caráter puramente militar.

No contexto internacional da Guerra Global contra o Terrorismo (GWAT) lançada

pelo governo Bush após os atentados de 11 de setembro de 2001, Uribe tornou usual a

expressão “narcoterrorismo”, como forma de unificar as duas ameaças e intensificar a

participação estadunidense no combate aos grupos colombianos. Torna-se visível, aqui, a

importância do processo de securitização. Utilizando o discurso, o presidente Uribe tornou

a, então ameaça nacional, num problema de segurança também para os Estados Unidos,

provocando uma intensificação no combate, por parte daquele país.

Com um apoio funcional da Base de Manta, no litoral do Equador, podemos supor que

aproximadamente quinhentos soldados e agentes de inteligência norte-americanos estariam

alocados naquela base para monitorar aviões e plantações ilícitas na região sudoeste da

Colômbia, além daqueles que já existem, monitorando ações ou mesmo representando

contingente efetivo no Estado colombiano. Desta maneira, como apontam Villa e Ostos:

(...) esse posicionamento geoestratégico tem levado alguns autores a levantar a tese

– que a princípio pode parecer exagerada – de que a combinação entre militarização

14

Álvaro Uribe – Presidente da Colômbia desde o ano de 2002 até o ano de 2010..

15 (2006, p.62)

do combate ao narcotráfico e Plano Colômbia estaria operando uma redefinição dos

interesses norte-americanos na América Latina. Seria uma estratégia em que

Washington, já dominando seu mare nostrum caribenho, procuraria agora um

controle efetivo dos Andes, “essa terra nossa da América do Sul”. 16

Desta maneira, chegamos a outro conceito de fundamental importância utilizado pelos

teóricos de Copenhague. É perceptível a pujante atuação estadunidense no conflito

colombiano, uma vez que a penetração ocorre quando uma potência de fora faz um

„alinhamento de segurança‟ com Estados de dentro de um CRS, temos uma comprovação

empírica de penetration dos Estados Unidos no Complexo Regional Sul-Americano. No

entanto, não é possível classificar tal atuação como um overlay, pelo menos por enquanto.

Embora já exista um contingente militar americano na região, o padrão local das relações de

segurança não cessou de operar. Isto se dá, em grande medida pela balanceamento realizado

pelo Estado Brasileiro naquela região.

Uma clara militarização na região, entretanto, causaria, decerto, uma profunda

oposição por parte de países vizinhos, entre estes, o Brasil, uma vez que o país objetiva em

suas políticas alcançar e/ou manter o status de uma liderança e potência regional. Para

compreender a natureza do Plano Colômbia, em especial os seus impactos para os interesses

brasileiros na região, podemos, então, nos basear no posicionamento brasileiro e verificar se

as autoridades de tal Estado consideram aquele um processo ameaçador para a sua condição

no subcontinente sul-americano.

Partindo da perspectiva brasileira, podemos observar a questão colombiana não se

trata de uma ameaça, uma vez que as forças em questão, guerrilha, forças armadas

colombianas ou exército estadunidense não representam, pelo menos não simultaneamente as

duas premissas para tal, as capacidades para efetuar o ataque e/ou motivos para tanto, no

ponto de vista do seu alvo em potencial. Ainda assim, é possível compreender que os eventos

na Colômbia podem ser tratados como um risco, e, primordialmente, como uma

problemática que pode evoluir para algo maior. Além disso, torna-se explícita a ausência de

um processo de securitização claro e nítido quanto a esta questão. Tal carência faz com que o

Estado brasileiro não possua uma postura oficial frente ao Plano Colômbia e seus impactos.

O caso Sino-Filipino

16

(VILLA & OSTOS, 2005. p.10)

Para possibilitar uma abordagem eficaz do caso Sino-Filipino dentro dos parâmetros

conceituais propostos por esse artigo, faz-se necessário contextualizar o objeto de análise

segundo os limites geográficos e teóricos que o definem. Dessa forma, observaremos a China

e as Filipinas como nações que apesar de serem imensamente distintas na maioria de suas

características básicas: território, regime político e economia, vivenciam os mesmos

processos de interdependência de segurança à medida em que compartilham dos mesmos

desafios, notadamente as disputas fronteiriças que têm escalado significativamente em 2011.

Assim sendo, a aplicação dos conceitos de securitização, penetration e overlay na análise

dos litígios de fronteira Sino-Filipinas se mostrará uma ferramenta objetiva e eficaz, ao

retratar a dimensão regional e o escopo localizado do potencial conflito entre as duas nações

asiáticas. Nesse sentido, é importante observar que os conflitos e as ameaças à segurança dos

Estados viajam mais facilmente à curtas distâncias, dentro de uma lógica regional (Buzan e

Wæver, 2003).

Partindo dessa estrutura de análise e valendo-se da Teoria dos Complexos Regionais

de Segurança (RSC) para definir os limites geográficos das questões de segurança tratadas

entre os dois países, podemos observar que semelhante ao caso Colombo-Brasileiro, China e

Filipinas pertencem a um Complexo maior, que se divide sucessivamente em complexos

menores e subcomplexos. O Super Complexo Asiático abrange todo o referido continente, e

configura-se geograficamente como um dos maiores do mundo. China e Filipinas estão

inseridas no East Asian RSC, que além de englobar toda a Ásia Oriental também abrange o

continente australiano. Dentro desse complexo as Filipinas fazem parte do Subcomplexo

do Sudeste Asiático, uma região que historicamente é permeada de disputas e rivalidades

inter-estatais.17

Tratar de segurança internacional na Ásia é uma tarefa ampla e desafiadora, uma vez

que a própria forma com a qual as nações asiáticas lidam umas com as outras é, em certos

pontos, imensamente diferente dos países asiáticos. Historicamente todas as nações que hoje

compõem o subcomplexo do Sudeste Asiático, no qual se inserem as Filipinas, estiveram

envolvidas de alguma forma em conflitos intra-regionais. Isso foi resultado, em grande

medida, da extensa influência estrangeira ocidental e da cultura colonialista. Os movimentos

de independência e guerras civis antecederam, tiveram início e ultrapassaram os anos de

Guerra Fria fizeram da região uma das mais voláteis do mundo, ao mesmo tempo em que

17

A divisão da Ásia em Complexos Regionais de Segurança é abordada por Barry Buzan em: Buzan, Security

Architecture in Southeast Asia: The interplay of Regional and Global Levels, The pacific Review, Vol. 16, No.

2, Routledge, 2003.

acompanhou o surgimento do que viria a se tornar um dos mais bem sucedidos experimentos

de cooperação multilateral do mundo, a ASEAN.18

A criação da ASEAN em muito

influenciou as relações entre a República Popular da China e as nações do Sudeste Asiático,

notadamente as Filipinas. A forte influência norte-americana na região foi um dos principais

incentivos à consolidação da ASEAN como um entendimento de segurança. Em sua agenda

estava a mitigação de ideais comunistas que irradiavam, em grande parte, da China. O fato

de as Filipinas terem sido durante quarenta e oito anos, uma possessão norte-americana, e

posteriormente um protetorado antes de se tornar oficialmente independente em 1946

contribuiu ainda mais para o histórico de tensões entre os dois países, uma vez que a

presença militar norte-americana no país foi maciça durante todo o século XX e permanece

assim até hoje.19

Somente em 1975 as relações entre os dois países foram normalizadas ao

ponto do diálogo e intenções de cooperação (PEREIRA, 2003). Essa mudança aconteceu em

um período em que as nações fundadoras da ASEAN desfrutavam de um avanço

significativo em sua autonomia política no campo da segurança, alavancada sobretudo pela

sobrevivência da ASEAN em seus dez primeiros anos. Em 1976, seus membros assinaram o

TAC (Tratado de Amizade e Cooperação) que instituiu muitos dos princípios básicos que

regem as relações dentro da organização até hoje (MARCHIORI, 2006).

Ainda que de forma geral as relações Sino-Filipinas não tenham se deteriorado desde

então, a natureza competitiva comum às nações asiáticas nutriram uma série de questões

internacionais que de tempos em tempos geram tensões entre os dois países. Para efeito desse

estudo, nos concentraremos no litígio pela posse das Ilhas Spratley, um arquipélago

localizado no Mar do Sul China.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a disputa pelas Ilhas Spratley têm sido um

objeto de constante conflito entre a China, as Filipinas, Vietnã, Taiwan, Malásia e Brunei

Darussalam, todos reivindicando soberania sobre o arquipélago. A importância estratégica

das ilhas, localizadas no caminho das principais rotas marítimas do Mar da China é um algo

reconhecido e altamente cobiçado por todas essas nações, sobretudo a China que desde os

18

ASEAN (Association of Southeast Asian Nations) foi criada em 1967 por Tailândia, Indonésia, Filipinas,

Malásia e Singapura. Hoje abarca todas os países do sudeste asiático com exceção do Timor Leste.

19 Até Novembro de 1992, em concordância com o Acordo de Bases Militares de 1947,Os Estados Unidos

Mantiveram e operaram grandes complexos na Base Aérea Clark, Complexo Naval Subic Bay, e diversas

instalações subsidiárias menores nas Filipinas. Em Agosto de 1991, negociadores de ambos os países chegaram a

um acordo sobre o rascunho de um projeto para uso do Complexo Naval de Subic Bay por forças Norte-

Americanas por mais 10 anos. Disponível em: Departamento de Estado dos EUA-

http://www.state.gov/r/pa/ei/bgn/2794.htm

anos 90 experimenta uma ascensão meteórica na escala de poder econômico e militar na

Ásia. As interações relativamente amistosas entre China e Filipinas, dois dos principais

litigiosos, não impediram a escalada das tensões em volta da disputa pelas ilhas.

Dentro desse contexto, é possível enxergar um claro processo de Securitização da

temática por parte de ambas as nações. Entendendo que a transformação de uma

problemática política em uma questão de segurança está baseada primordialmente no

discurso de seus interlocutores, faz-se necessário destacar as recentes declarações do

Ministro das Relações Exteriores das Filipinas, Alberto Del Rosario, que afirmou que as

Filipinas estão prontas para resistir a um ataque.20

Mais ainda, o discurso do Ministro Del

Rosario foi proferido na capital norte-americana, em visita com a Secretária de Estado dos

EUA, Hillary Clinton. Esses fatores também elevam as evidências de Securitização da

temática por parte da China que declararam através de seu Ministro do Exterior Hong Lei

que as Filipinas deveriam cessar qualquer iniciativa unilateral que viria a ferir a soberania da

China, agravando a situação na região das Ilhas. O ministro acusou ainda as Filipinas de

lançarem comentários irresponsáveis que não condizem com os fatos.21

A presença de navios

de combate chineses na região desde Maio desse ano apenas confirmam o fato de que ambos

os países tratam a questão como um problema de segurança, evidente pelos alertas e

acusações mútuas de quebra de soberania do Estado.

Uma vez demonstrada a Securitização da problemática, é importante apontar a forte

influência norte-americana no assunto. Ainda que não exista um Overlay norte-americano

na região, é possível identificar o processo de Penetration de interesses estadunidenses na

questão, uma vez que a presença militar chinesa em uma área de vital importância

geoestratégica mina a influência sobretudo naval dos Estados Unidos naquelas águas. O fato

do discurso de Del Rosario ter sido proferido em consonância com a reafirmação das

parcerias militares entre EUA e Filipinas pode ser facilmente interpretado como uma aliança

de conveniências e interesses sobre a posse das ilhas. A capacidade única de projeção de

poder dos Estados Unidos é possivelmente o motivo pelo qual os norte-americanos são

capazes de gerar Penetration em diversos RSCs por todo o mundo, não sendo diferente no

caso do Subcomplexo do Sudeste Asiático.

20

Discurso do Ministro das Relações Exteriores das Filipinas, Alberto Del Rosario:

http://www.state.gov/r/pa/ei/bgn/2794.htm

21 http://www.reuters.com/article/2011/06/08/china-philippines-sea-idUSL3E7H81HH20110608

Os conceitos de Risco e Ameaça, por sua vez, podem ser aplicados ao litígio das

Ilhas Spratley se atentarmos para o processo de escalada do conflito. A história de

disputas e conflitos na Ásia, de forma geral, contribui para uma contínua percepção de Risco

entre as nações. Em outras palavras, a maioria dos vários litígios que persistem até hoje estão

muitas vezes a um discurso de extrapolarem o campo político e se tornarem questões graves

de segurança. Os recentes desenvolvimentos na questão das Ilhas Spratley mostram que as

Filipinas já enxergam a presença chinesa como uma Ameaça. Isso ocorre pelo claro

reconhecimento filipino de que a China tem ampla capacidade de mobilizar material bélico

para tal manobra, algo provado pela presença agressiva de navios de guerra chineses no

arquipélago, e possui sobretudo motivo para tal confrontação. O discurso da quebra de

soberania é algo comum entre os dois países, assim como os avisos de que retaliações são

legítimas como forma de defenderem a integridade territorial de suas nações. O fato de

ambos considerarem as Ilhas Spratley como parte de seu território cria um limbo

extremamente perigoso, onde defensores e agressores se confundem com a mesma facilidade

e tendem a se afastar cada vez mais do campo político e dos diálogos diplomáticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Contemporaneamente, a dimensão regional da segurança tende a ser um objeto de

destaque nos estudos estratégicos e de defesa. Na questão teórica, perspectivas não

positivistas passam a contribuir de forma expressiva para a compreensão da nova realidade

pós-era bipolar. Entre as quais, a Escola de Copenhague é uma das mais importantes.

Segundo Buzan e Hansen (2009), representantes da respectiva escola, o período pós-guerra

fria e a redução da presença e influência das superpotências (overlay) em várias regiões do

mundo permitiram a re-emergência de dinâmicas endógenas de segurança e conflito nestes

espaços geográficos. Buscando estudar as transformações na estrutura internacional de

segurança, Buzan e Wæver (2003) criam a Teoria dos Complexos Regionais de Segurança

(RSCT). Segundo esta teoria, a região seria um recorte espacial crucial para o entendimento

das ameaças, sendo o conceito de Complexos Regionais de Segurança (CRS) uma chave

interpretativa fundamental.

Visando atingir uma validação empírica de diversos conceitos do âmbito da segurança

regional, nos propomos apresentar duas dinâmicas de segurança, ambientadas em regiões

distintas, e com diferentes motivações e desenrolar. Foi objetivado comprovar a possibilidade

de efetiva aplicação dos conceitos nos então abordados conflitos. O primeiro conflito em

questão é a histórica crise colombiana, e como reverbera na região, quanto aos países

vizinhos, especialmente a fronteira com o Brasil. O segundo caso abordado se dá entre a

China e as Filipinas, e seu desenrolar na região.

Quanto à problemática sul-americana, que se arrasta por longas décadas e tem raízes

históricas importantes, buscou-se demonstrar como o conflito atingiu um estágio insustentável

pelo Estado colombiano, forçando-o a apelar ao auxílio estrangeiro. Demonstrou-se o papel

fundamental do Plano Colômbia, que se desenvolveu como uma forma de trazer ao país

alguma esperança de reestruturação, após diversas tentativas fracassadas, por parte do seu

governo, de reorganizar um país que parecia rachar. A cooperação internacional aparecera

como solução prática e funcional para os problemas da Colômbia. Da mesma forma, o pacote

representa a final inserção estadunidense no conflito, ampliando o processo de penetration na

região, e regionalizando o embate, transbordando-o segundo a definição de spill-over. Por

parte do Brasil, torna-se visível o lapso de atenção dado ao conflito por muito anos, tornando

deficitária a securitização do tema. Nos últimos anos, foi possível observar que a preocupação

quanto a problemática aumentou, e o conflito passa a ser considerado como um risco, pelo

Brasil.

O Litígio Sino-Filipino pelas Ilhas Spratley é um estudo de caso em que se observa a

aplicação eficaz e objetiva dos conceitos de segurança regional abordados nesse artigo.

Entendendo que os conflitos tendem a seguir lógicas regionais, passando por processos de

Securitização e Spillover, elementos extremamente condicionados às dinâmicas dentro das

próprias regiões, optamos por concentrar os esforços dessa pesquisa em duas regiões em que

fosse possível aplicar os mesmos conceitos e obter resultados satisfatórios no entendimento de

cada problemática. O processo de escalada no litígio pelas Ilhas Spratley é um claro exemplo

das possibilidades empíricas de aplicação da Teoria dos Complexos Regionais de Segurança,

uma vez que os conceitos chave para tal abordagem se mostraram ferramentas de imenso

valor na análise dos desdobramentos da disputa. Mais ainda, a estrutura regional, que não

necessariamente limita a relação global dessa abordagem teórica impede o esgotamento da

temática, ou o comprometimento do conteúdo que é melhor explicado e compreendido dentro

do escopo geográfico, político e teórico que foi proposto e buscou ser atingido nesse artigo.

Os conceitos aplicados atingem com satisfação suficiente o papel de ferramentas de

análise de segurança regional, ao menos nos casos abordados, respondendo de forma quase

completa as questões levantadas, como pode ser observado na Tabela 1 – Anexo “A”. Essa

variada gama de conceitos e abordagens que possibilitam ao estudioso da segurança conseguir

formular um valioso arcabouço que alicerce a sua pesquisa, fazem da Escola de Copenhague

uma fonte do que há de mais sofisticado e sólido no estudo da Segurança Internacional.

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ANEXOS

ANEXO “A”

TABELAS

Tabela 1: Aplicação dos conceitos utilizados

CONCEITO /

DINÂMICA

ABORDADA

Caso Colombiano Caso Filipino

Complexo Regional

de Segurança Complexo Regional Sul-Americano

Complexo Regional

Asiático-Oriental

Subcomplexo

Regional de

Segurança

Sub Complexo Andino-amazônico Sub Complexo do Sudeste

Asiático

Securitização

Existente por parte do governo

colombiano, mas inexistente ou

irrelevante por parte do Estado

brasileiro.

Existente por parte de ambos

os governos, Filipino e

Chinês.

Spillover Forte, conflito amplamente

regionalizado.

Limitado. O conflito de

natureza política tende a

permanecer controlado pelo

princípio de não intervenção.

Penetration Forte, enorme participação

estadunidense.

Significativo. Interesses

estadunidenses são evidentes

mas ainda não há

mobilização concreta.

Overlay Inexiste, graças ao balanceamento de

poder realizado pelo Brasil na região.

Inexiste. O poder da China e

a autonomia consolidada pela

ASEAN minaram o Overlay

americano que existiu

durante a Guerra Fria.

Risco

Considerado risco ao Estado brasileiro,

pela possível evolução e ausência do

processo de securitização.

Considerado Risco por

ambos os países, sobretudo a

China.

Ameaça

Não se trata de uma ameaça, pois não

há motivações ou capacidade material

para tanto.

Considerado recentemente

como ameaça pelo governo

Filipino, dada a capacidade

de projeção de poder da

China.

Fonte: Elaboração própria.

MAPAS

Mapa 1: Produção, em toneladas, de cocaína.

Fonte: UNODC – http://www.unodc.org/documents/wdr/WDR_2008/WDR_2008_eng_web.pdf.