A Rádio: o ouvido ético e estético

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1 A Rádio: o ouvido ético e estético Por Luís Cláudio Ribeiro e Jorge Bruno Ventura When that which is remote becomes familiar, the familiar becomes remote or disappears. When the phantom becomes real, reality becomes a phantom. (Günther Anders, The Obsolescence of Man: “The World as Phantom and as Matrix: Philosophical Considerations on Radio and Television” ) 1. O ouvido estético pode ser descrito como a capacidade que o sentido da audição tem em se adaptar à receção crítica das diferentes massas sonoras, sejam elas artificiais ou naturais, que ocorreram ao longo da evolução humana. O ouvido, por ser um órgão mecânico, e unido ao principal órgão de percussão, a pele, tem a qualidade de se adaptar a novos sons. Esta adaptação é o princípio de alterações na razão judicativa e estética. As formas musicais que se foram produzindo e a sua aceitação parcelar ou total pelos ouvintes, são um exemplo da capacidade que o ouvido interno e depois o cérebro tem em se conjugar com a metamorfose sonora. Esta capacidade, unida desde sempre às qualidades intrínsecas do sentido da audição (a interioridade e a fantasmagoria, aqui entendida, não em relação com o fetichismo em Marx ou em Walter Benjamin, mas com a qualidade auditiva de constituir representações de um real não ocular) tem como fundamento a perceção auditiva em constante alteração que influencia a imaginação adstrita aos fenómenos sonoros, enquanto faculdade humana da invenção. À questão da facilidade de aceitar novas formas, por exemplo, musicais e ser mais difícil de aceitar novas formas artísticas visuais, só podemos responder com a diferença dos objetos. Se os da visão se mantém estáveis por um período de tempo e num determinado espaço, os da audição são móveis, e eles próprios determinam um tempo e um espaço de circulação. Neste sentido, é a diversidade que impera a cada momento, e a sua suspensão para uma possível fenomenologia significa a sua morte. Parar um som, querê-lo imóvel, é romper com a sua existência, é, portanto, o seu fim. O ouvido estético começa muito antes do século XX, quando para a produção de som (música, canto ou na fabricação de instrumentos) não bastava a presença de um intérprete mas a integração das necessidades elementares a uma boa interpretação e escuta. Uma boa acústica. Se as grandes catedrais europeias fizeram isso muito bem, quando a arquitetura ainda desempenhava um papel de criação habitável e total do espaço social, com o aparecimento de novos media, mecanizados, como o fonógrafo e o

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A Rádio: o ouvido ético e estético

Por Luís Cláudio Ribeiro

e Jorge Bruno Ventura

When that which is remote becomes familiar, the familiar becomes remote or disappears. When the

phantom becomes real, reality becomes a phantom. (Günther Anders, The Obsolescence of Man: “The

World as Phantom and as Matrix: Philosophical Considerations on Radio and Television”)

1. O ouvido estético pode ser descrito como a capacidade que o sentido da audição tem

em se adaptar à receção crítica das diferentes massas sonoras, sejam elas artificiais ou

naturais, que ocorreram ao longo da evolução humana. O ouvido, por ser um órgão

mecânico, e unido ao principal órgão de percussão, a pele, tem a qualidade de se adaptar

a novos sons. Esta adaptação é o princípio de alterações na razão judicativa e estética.

As formas musicais que se foram produzindo e a sua aceitação parcelar ou total pelos

ouvintes, são um exemplo da capacidade que o ouvido interno e depois o cérebro tem

em se conjugar com a metamorfose sonora. Esta capacidade, unida desde sempre às

qualidades intrínsecas do sentido da audição (a interioridade e a fantasmagoria, aqui

entendida, não em relação com o fetichismo em Marx ou em Walter Benjamin, mas com

a qualidade auditiva de constituir representações de um real não ocular) tem como

fundamento a perceção auditiva em constante alteração que influencia a imaginação

adstrita aos fenómenos sonoros, enquanto faculdade humana da invenção.

À questão da facilidade de aceitar novas formas, por exemplo, musicais e ser mais

difícil de aceitar novas formas artísticas visuais, só podemos responder com a diferença

dos objetos. Se os da visão se mantém estáveis por um período de tempo e num

determinado espaço, os da audição são móveis, e eles próprios determinam um tempo e

um espaço de circulação. Neste sentido, é a diversidade que impera a cada momento, e a

sua suspensão para uma possível fenomenologia significa a sua morte. Parar um som,

querê-lo imóvel, é romper com a sua existência, é, portanto, o seu fim.

O ouvido estético começa muito antes do século XX, quando para a produção de som

(música, canto ou na fabricação de instrumentos) não bastava a presença de um

intérprete mas a integração das necessidades elementares a uma boa interpretação e

escuta. Uma boa acústica. Se as grandes catedrais europeias fizeram isso muito bem,

quando a arquitetura ainda desempenhava um papel de criação habitável e total do

espaço social, com o aparecimento de novos media, mecanizados, como o fonógrafo e o

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gramofone, começa a falar-se de uma arte sonora, distinta da música e das qualidades

que sempre presidiram à produção musical.

Para uma arte que utiliza um equipamento que foi desviado do seu objetivo primeiro

(gravação de vozes), é necessário suprimir, na sua produção, os defeitos da gravação e

da reprodução e integrar necessidades acústicas. As formas de supressão e integração de

necessidades estão unidas à otimização dos aparelhos para um determinado fim, isto é, o

mesmo objetivo integra-se nos meios e vai até à escuta: do microfone ao altifalante. Na

verdade, estes são os dois limites do segmento a considerar na boa escuta. Isso significa

um desvio considerável, como atrás se afirmou, ao objetivo primeiro que introduzia no

quotidiano esses aparelhos como próteses vocais (Martinville, Charles Cros e, noutra

dimensão, Edison). O que estava pensado por Martinville (Fixation graphique de la

voix, 1857) e Charles Cros (Procédé d’enregistrement et de reproduction des

phénomènes perçus par l’ouïe, 1877) na continuação das experiências sobre a luz

(fotografia) era tornar visível e para uso diário o que é invisível, no nosso caso o som,

um fonoautograma, uma assinatura, uma «estenografia natural» do som. Só no século

XX, com os desvios ocorridos nos aparelhos de gravação e reprodução, e com o

aparecimento da rádio, foi possível pensar o ouvido estético como um «meio»

empenhado em escutar narrativas sonoras ou música em excelentes condições. Esta

noção, pelo ritmo das alterações na produção musical e radiofónica, será muito

importante anos mais tarde para apreciação da música gravada que substituiu, aos

poucos, o lugar do concerto. A análise comparativa começou a ser feita no início da

segunda metade do século passado, entre duas gravações ou programas transmitidos, o

que se ficou a dever também à dimensão cada vez maior da indústria fonográfica e do

aparecimento em grande escala dos suportes de gravação e dos aparelhos domésticos de

reprodução. Os meios de gravação, reprodução e difusão tornaram possível trazer para o

interior da casa ou para o estúdio o que era inato à sala de concertos e à sala de ensaios.

Esta desterritorialização permitiu igualmente aumentar a diversidade, contribuindo para

o aprofundamento e alargamento do espectro do audível.

2. O ouvido estético nasce, então, verdadeiramente no estúdio. Conhecemos os

trabalhos realizados por Pierre Schaeffer nos estúdios da rádio francesa na década de 40,

época enriquecida em meios pelos avanços ocorridos durante a década anterior. A noção

de ouvido estético, que comporta uma alteração radical nas formas de escuta e de

produção, nasce primeiro nos estúdios e só depois nos vai ganhando com o

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aparecimento cada vez mais diversificado e portátil dos meios de comunicação. O

estúdio (e a sala de montagem) é o núcleo a partir do qual se inicia a conversão do

ouvido ao entendimento prazeroso ou não de todos os sons. Antes de tudo, o ouvido

estético é um ouvido em escuta, que permanece, por influência dos meios mecânicos e

eletrónicos, em atenção ou escuta. A alteração dos modos de produção e de escuta

foram bem descritos por Glenn Gould. No seu conjunto de ensaios “The Prospects of

Recording”1 afirma:

In an unguarded moment some months ago, I predicted that the public concert as we

know it today would no longer exist a century hence, that its functions would have been

entirely taken over by electronic media. [...]If we were to take an inventory of those

musical predilections most characteristic of our generation, we would discover that

almost every item on such a list could be attributed directly to the influence of the

recording. First of all, today's listeners have come to associate musical performance

with sounds possessed of characteristics which generations ago were neither available

to the profession nor wanted by the public – characteristics such as analytic clarity,

immediacy, and indeed almost tactile proximity.

Nesse tempo, o disco ou o rádio passam a ser os lugares onde o virtuosismo da

interpretação pode ou não ser melhorado. As «perdas» ou alterações na forma de

constituirmos o objeto artístico já tinham sido analisadas, ainda na infância da

reprodução, pelo excelente artigo (1936) de Walter Benjamin, The Work of Art in the

Age of Mechanical Reproduction. O que Glenn Gould promove é um desvio da cultura

visual para a cultura do som. A sala de concertos já não é lugar para a excelência e para

a superação mas o estúdio, o suporte e a gravação. São estes meios que tornarão

possível um novo juízo estético. E tal como hoje, a rádio esteve sempre no centro destas

alterações. Os aparelhos e os suportes de gravação potenciados pelo meio de

comunicação em larga escala que é a rádio, promoveu mais do que outro meio no século

XX um conjunto de alterações substanciais nas formas de escuta, nas formas de compor

e de gravar. Se na década de 20 era exigido aos compositores sonatas que durassem

apenas 30 minutos (por imperativo do suporte de gravação), a rádio tornou possível

1 Gould, G. "The Prospects of Recording". High Fidelity. Vol. 16, no. 4 (April 1966) Pp. 46-63. Ou na Internet: http://www.collectionscanada.gc.ca/glenngould/028010-4020.01-e.html#b, acedido em 9 de Setembro de 2014.

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encurtar esse tempo adaptando-o a um tempo moderno cada vez mais rápido e, muitas

vezes, esgotado no emprego ou em percursos. O fragmento tornou-se, também no som,

uma categoria estética que era preciso unir sobre o mesmo dispositivo indissociável da

vida urbana.

Se na análise das artes se deteta que a maioria se enforma diretamente no espaço e

outras no tempo, seguindo aqui uma apreciação kantiana das artes, não podemos

esquecer que o espaço não está arredado das artes sónicas nem de qualquer som. O

espaço é o lugar do fluxo sonoro, logo detentor das formas que alteram os percursos das

massas sonoras que chegam aos nossos ouvidos, com implicação nas suas frequências.

Com o aparecimento da tecnologia do som (e de próteses extensivas) esse espaço foi

ampliado, como se pudesse crescer, por força do altifalante ligado a um

emissor/reprodutor, alterando o ouvido em escuta. É este mesmo ouvido que submerso

nas novas técnicas de produção áudio fizeram regressar o ouvido interno ao espaço

sensorial, devolvendo-lhe já no design sonoro um novo «espaço» de construção e

disseminação. Se no caso da pintura as alterações no espaço de criação pouco evoluíram

ou alteram ao longo dos últimos séculos (fala-se das cores, técnicas e formas de

apresentação) o som e a música aproveitaram o potencial das tecnologias para, por

dentro, se constituírem distintas ao fundir-se com os dispositivos, como acontece nas

atuais sínteses sonoras. Esta metamorfose é herdeira do que Hegel escrevia, também ele

herdeiro das alterações da noção de natureza e de humano que se fizeram sentir a partir

do século XVIII, alterações que se aprofundaram nas invenções do século XIX:

In contrast to sight, which is the sense of ideality without internality, hearing is the

sense of the pure inwardness of corporality. Just as sight relates to light or physicalized

space, so hearing relates to tone [sound], or physicalized time.2

3. O corpo em deslocação pelo território foi sempre um recetor de todos os sons. O que

perdemos em sentido da audição na evolução de quadrúpedes para bípedes e no

aparecimento de técnicas sobretudo visuais (como a escrita) não eliminou

completamente a matriz sonoro que nos constitui, a partir da qual se erguem todos os

sons, a sua rememoração e identidade. O corpo tornou-se no século XIX uma estrutura

de ser apenas um sentido de sobrevivência para passar a ser também uma alternativa, e

2 Hegel. (1978). Philosophy of Subjective Spirit. Dordrecht, Boston: D.Reidel Publishing Company, pp.

171.

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por vezes uma parcela, aos modos de constituir o mundo (vemos isso agora com mais

intensidade nos novos dispositivos de comunicação). Nesse século, Nietzsche prepara

uma desconstrução da metafísica ocidental usando em muitos textos a noção de corpo e,

nele, a audição («timpanizar a filosofia»): «But even today one still hears with one’s

muscles, one even reads with one’s muscles»3. O corpo tornou-se na «mais poderosa

etiqueta da cultura Ocidental»4. Mas era necessário, tal como já tinha feito a escrita

enquanto técnica, acelerar pela tecnologia o processo de arquivo e de comunicação.

Com o fonógrafo (enquanto arquétipo) ganhamos a possibilidade de, por fim, ouvir a

nossa voz. A cartografia do corpo precisava também de escutar a construção da

interioridade e subjetividade na voz. Uma voz cada vez mais sem corpo, deixando às

faculdades o jogo livre da sua representação. E a rádio nasce deste desejo.

Ainda sob a hegemonia da visão e com todas as deficiências próprias de uma tecnologia

no início, a rádio na década de 1920 mostrou-se um meio de comunicação deficitário já

que lhe faltava as representações do real, como no cinema e na fotografia e em menor

dimensão, na gravura e na pintura. Para entendermos melhor o que a época pensava

sobre este novo meio devemos escutar as palavras de Rudolf Arnheim numa obra

publicada em 1936 (Radio5):

The eye alone gives a very complete picture of the world, but the ear alone gives an

incomplete one. So at first it is a great temptation for the listener to “supplement” from

his own imagination what is “lacking” so obviously in the broadcast.

And yet nothing is lacking! For the essence of broadcasting consists just in the fact that

it alone offers unity by aural means.

Arnheim aconselha mesmo os artistas de rádio a produzirem peças inteiramente para os

ouvidos sem que o ouvinte seja tentado a preencher a peça com os elementos visíveis, já

que este ato fragiliza o objeto sonoro em rádio. É por esta ação de «enchimento»,

promovida pela imaginação, que podemos falar também de um ouvido ético, que

funciona como um regulador voluntarioso da escuta, fundando os processos imagéticos

e éticos posteriores. Este “ouvido” é o centro de um debate intenso na década de 30 do

3 Nietzsche, F. (1968). The Will to Power. NY: Vintage Books, pp.428 (§ 809).

4 Gitelman, L. (1999). Scripts, Grooves and Writing Machines – representing technology in the Edison Era, Stanford: Stanford University Press. 5 Arnheim, R. (1936). Radio. London: Faber & Faber, pp.135.

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século XX ao colocar em oposição os que defendiam que a rádio produzia um

rebaixamento dos pontos de vista, colonizando as margens e a diferença, e os que

defendiam um acesso a uma nova imaginação e a uma pluralidade de pontos de vista em

discussão6.

What is at stake is not merely imagination as rememoration, as the reproduction of

what already exists, but rather imagination as creative act. Radio is the ideal medium to

establish such a poetics and ethics, given its infinite overture to imaginative conjecture

and visual discord.7

A peça radiofónica, como qualquer outra obra de arte, deve cumprir-se em si, e, neste

caso, deve construir-se apenas na sua dimensão acústica. Isso significa que a escolha

das narrativas vocais ou sonoras, bem como a componente objetiva (que apenas

ouvimos) são endereçadas ao nosso ouvido na intenção de cada ouvinte promover o seu

preenchimento através da fantasmagoria da imaginação. Tal como nos diz Bachelard

num artigo sobre a rádio que escreveu em 19518, a rádio realiza a psique humana. À

pergunta onde estamos quando escutamos radio? A única resposta possível é: não

estamos lá.

Bachelard vai mais longe na conceção do ouvido, fá-lo, simultaneamente, ético e

estético: se é preciso que o humano encontre no seu quotidiano a força do fantástico, é

necessário que a rádio contribua para colmatar essa necessidade, isto é, que crie um

espaço na “logosfera” que seja de partilha perante o aparelho. A ideia do sono neste

filósofo francês não é a do fantasma, aproximando-se dele na construção que fazemos

todos quando escutamos, nem que seja apenas uma voz, sem corpo, uma voz

radiofónica que não necessita de se completar com uma «ordem visual» real. O espaço

da “logosfera” como outras noções que surgiram em correntes do saber ao longo dos

6 Num diálogo entre Gehrke e Arnheim que ficou com o título «O Fim da Esfera Privada» (The End of the

Private Sphere – M.M. Gehrke and Rudolf Arnheim (1930), o que estava em causa era a tecnologização da vida, o apogeu da cultura de massas, a colectivização como nova forma comunitária pela dispersão e difusão de novas massas sonoras provindas da rádio, dos aparelhos de reprodução e das ruas

(http://faculty.washington.edu/cbehler/teaching/coursenotes/mmgehrke.html, acedido em 30 de Setembro de 2014). 7 Weiss, A.S. (2001). «Radio Icons, Short Circuits, Deep Schisma». In Weiss, A.S. (ed), Experimental Sound

and Radio. Cambridge, London: MIT Press, pp.5. 8 Radio e Rêverie, publicado na revista La Nef e integrado mais tarde na obra Droit de Rêver, Paris: PUF,

1970.

7

séculos, representa aqui, nas questões relacionadas com o «fantasma» sonoro, o espaço

mental de livre articulação entre os processos de escuta, os mapeamentos e figurações, a

imaginação e a memória. Nesta livre articulação, as faculdades da memória e

imaginação parecem organizar-se por estruturas diferenciadas mas no mesmo espaço de

desenho e exposição. Qualquer som desencadeia na escuta um processo de reação que

pode ser composto por paisagens e figuras. Com a perda da noção de natureza,

sobretudo desde o século XVIII, e a saturação imagética, donde não podemos retirar os

dispositivos de controlo e manipulação, a audição foi desenvolvendo processos de

aquisição e memorização de mapeamentos cada vez mais vastos, continuando afastada

como sempre de uma desmemorização que é inata aos atos visuais e às suas técnicas,

como a escrita. A escuta é assim capaz de constituir paisagens onde se interligam

tempos diferentes, épocas e mesmo noções que «os olhos» foram afastando do jogo

afetivo e sensível do humano com o real. A escuta e os aparelhos fundam novas formas

de encarar os géneros artísticos, tornando-os híbridos e misturados com novas

oralidades ou, no caso da música, sons provindos do quotidiano. Nunca a literatura

sofreu uma torção tão significativa do que aquela que aconteceu sobre a influência

destes novos aparelhos, sobretudo da rádio. Ulisses, de James Joyce; The Sound and the

Fury e As I Lay Dying, de Faulkner; Berlin Alexanderplatz, de Alfred Dӧblin, só para

citar alguns romances escritos e editados na época em que o rádio começa a emitir em

muitas casas e lugares públicos. O mesmo sucede noutras áreas artísticas. A rádio veio

mudar o modo como o dia estava organizado e trouxe até à casa, paisagens e novos

territórios, acrescentando espaço virtual no ato de apagamento do espaço real.

4. A última etapa, no nosso tempo, deste ouvido ético e estético é a influência na escuta

e na composição artística não apenas nas alterações estruturais promovidas pelos

primeiros aparelhos de gravação e reprodução sonoras mas também dos meios de

comunicação que surgiram e se disseminaram nas primeiras duas décadas do século

XX, sobretudo, o telefone e a rádio (e o cinema). Da ideia inicial, contida na maioria

dos desenvolvimentos técnicos, de que estes novos meios eram neutrais, passou-se

rapidamente, sobretudo a partir do pensamento da Escola de Frankfurt, para a

observação e análise da influência massiva e afetiva do auditorium e respetivas classes

sociais. A perceção não é apenas um constructo da natureza mas também da história, e

com ela, de toda a tecnologia, conforme nos fez ver Walter Benjamin no seu célebre

ensaio de 1936 «The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility» ou

8

no parágrafo de “The Obsolescence of Man”, de Günther Anders: «nenhum meio é só

meio»9. Esta observação permite destacar um novo paradigma que se instala na

sociedade ocidental entre as duas grandes guerras. É nota desta enorme transformação

um conjunto vasto de obras e artigos sobre os media e os seus efeitos na sociedade.

Uma escuta visionária estava a progredir desde o seu nascimento com o Paleofone de

Charles Cros e o Fonógrafo de Edison, a que se vem juntar outros equipamentos como o

telefone. Passamos da observação do espaço como palco do acontecimento para uma

desatenção a esse espaço e a construção individual de «fantasmas» ou «phantom

images».

Esta nova escuta que imerge nas formas de produção e dela temos notícia na forma e

conteúdo do produto final (incluindo o artístico) pode considerar-se como uma extensa

alteração nos hábitos das comunidades, nas formas de comunicar e um rompimento com

os velhos hábitos da escuta. É sobretudo a burguesia que se sente tentada a renovar o

seu modo de vida, incluindo o espaço de entretenimento e lazer. Neste espaço serão

acomodados os novos meios, donde se destacam o telefone e o rádio. Se o espaço físico

sofre com a introdução de novo mobiliário, é também sintoma que mostra um

reposicionamento dos indivíduos na comunidade e na classe social, bem como uma

afeção pelo estético. De todas as narrativas que nos chegam desse tempo, a ubiquidade

da rádio torna-se progressivamente num foco de desterritorialização do lugar sonoro

(música, vozes ou paisagens sonoras), reorganizado pelo indivíduo no seu espaço

privado. O que sempre tinha sido uma categoria unida ao som, o tempo, é agora co-

auxiliado pelo espaço, categoria sempre presente nos procedimentos e na cultura visual.

O que se ouvia era um produto fantasmático que nos colocava fora da nossa situação.

“Where are we when we listen to music” will be: when listening to music we are out of

the world and in music, or “the indication of the place remains vague; it is true that you

can never be completely in the world when one is listening to music”10

. O «fora do

mundo» a que se refere o filósofo alemão não provém apenas do ato da escuta mas das

qualidades intrínsecas ao som: a atenção a um som desmaterializa o real. A rádio, que

começou a espalhar-se pela Europa e Américas na década de 1920 do século anterior,

tornou claro que a invenção dos aparelhos de emissão e transmissão iriam fundar novas

9 Anders, G. (2002). Die Antiquiertheit des Menschen I, Munchen: Verlag C.H.Beck oHG. Utilizamos versão espanhola: La Obsolescencia del Hombre (vol.1), Valência: Pre-textos, 2011. 10 Sloterdijk, P. (2008). O Estranhamento do Mundo, Lisboa: Relógio d’Água, pg.179. All translations

from non-English sources are our own, unless otherwise noted.

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modalidades de constituir o real, atingindo todas as relações do humano. A

desumanização da arte (famoso título do filósofo espanhol Ortega e Gasset, publicado

em 1925) pode pelo ponto de vista dos aparelhos sonoros ser considerada uma

desmaterialização ou em termos mais ontológicos, uma separação do mundo.

By abolishing any notions of a real space the subjective awareness of the acoustic space

can develop unchecked. The more abstract the music is in relation to the actual

environment of the source of sound, the more surely will the listener be persuaded into a

proper state of receptivity.11

Na verdade, de um ruído de sintonização que funda a sua matriz sonora, sobretudo até

ao surgimento de automatismos do aparelho que encontra a estação radiofónica, chega-

se ao momento em que a escuta ergue uma paisagem ou uma narrativa sonora. Neste

processo de encontro com a emissão desenvolvem-se ações acústicas, por parte do

ouvinte, que o deslocam para um «frente a frente» com as suas representações. Esta

deslocação, que funciona como uma espécie de jogo no sentido em que as regras e os

procedimentos são reconhecidos, inaugura o corte do ouvinte com a dimensão material

dos acontecimentos: o mundo como facto torna-se uma massa de sons entre um

altifalante e um ouvido. Claro que não desaparecem os sons promovidos pelas fontes

sonoras naturais, mas estes funcionam, tal como o ruído de sintonização ou de

localização, como fazendo parte da matriz a partir da qual se ergue o mundo. Tem,

portanto, a qualidade de potenciar a descolagem, no sentido em que promove a

abstração e a imersão. A partir daqui tudo o que compõe a «cena» sonora é que é

importante, seja no ponto de vista estético, seja no ponto de vista ético ou moral. Mais

do que qualquer outro meio, ao produzir, por vezes, o enlaçamento do estético com o

ético, e promover a imersão, deixando de haver distância de controlo, a rádio atua como

vontade. E esta foi a qualidade que permitiu o seu uso intenso pelo agente político e de

propaganda. O som está sempre unido a um movimento e no ouvinte acrescenta-se um

gesto. E à gestualidade iremos depois acrescentar uma picturalidade não ocular. Como

nos refere Nietzsche na sua «A Visão Dionisíaca do Mundo», “com o som, ele [o

homem] como que dilui o mundo do fenómeno em sua unidade original”12

. Geralmente,

todo o gesto tem um som que lhe é paralelo.

11

Arnheim, R. (1936). Radio. London: Faber & Faber, pp.149-150. 12 Nietzsche, F. (2005), A Visão Dionisíaca do Mundo, S.Paulo: Martins Fontes, pp.36.

10

5. Entre as duas grandes guerras, convivem na escuta o ouvido ético e estético (mesmo

que pelo estético alguns teóricos pretendessem uma revolução ética, como Bertold

Brecht, Arnheim ou Marinetti). A identidade da rádio enquanto medium foi constituída

pela difusão de conteúdos emitidos em direto, baseados em diferentes temáticas

políticas e sociais. Estes conteúdos, onde assentam os pilares que constituem a

identidade da rádio, foram sendo intervalados por programações musicais ou artísticas,

desvirtuando em parte as pretensões dos primeiros amantes deste meio. Com o

aparecimento, na década de 30, dos suportes magnéticos de gravação tornou-se possível

dotar a rádio de novas formas de broadcasting, desviando os conteúdos para

programação previamente gravada. O ouvido estético ganha aqui alguma hegemonia

sobre o ético, embora se identifiquem na história da rádio momentos importantes em

que a estação radiofónica foi usada para uma difusão ideológica ou de influência,

sobretudo, ética e política.

Na tentativa de se afastar das decisões do poder (principalmente em período posterior à

Segunda Grande Guerra), o meio rádio assentou uma grande parte da sua identidade na

auscultação de um auditório, também ele em alterações sociais. O conjunto das

revoluções artísticas, políticas e de comportamento não teriam sido as mesmas nem

teriam tido o mesmo impacto sem a recolha e difusão em broadcasting.

Com os avanços dos principais estúdios europeus e norte-americanos (que constituíram

verdadeiras redes de emissores de Costa a Costa) durante a década de quarenta e

cinquenta; com o avanço das tecnologias de gravação e difusão, a Europa parcialmente

destruída viu na rádio um meio de comunicação e entretenimento que ajudava largas

camadas da população migratória. Tal como sucedeu mais tarde com as rádios de cariz

política que surgiram fora dos países em ditadura (como Portugal) ou em guerras étnicas

ou coloniais, este aparelho aportou à maioria dos lares europeus para unir e trazer novas

músicas que se vinham compondo do outro lado do Atlântico e que já tinham

influenciado muitos compositores europeus. Era necessário olhar para a rádio, depois de

uma guerra que tinha destruído a esperança de muitos, como um meio de informação,

comunicação e redentor. O aparecimento em força do disco em vinil, e da estruturação

de uma indústria discográfica, trouxe à rádio, mas sobretudo aos seus ouvintes, novas

camadas de sons, paisagens e músicas que seriam impossíveis de ouvir, a não ser que

nos deslocássemos a clubes de jazz ou rock ‘n’ roll. Desconfiados no início por uma

hibridez de géneros musicais que punham em causa a composição, o ritmo e os tempos,

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rapidamente as camadas mais jovens da população aderiram a novas estéticas musicais e

começaram a constituir grupos de apoio a músicos e bandas. A rádio foi o incentivador

destas mudanças sociais que nunca mais se perderam, mesmo nos dias de hoje quando a

rádio via internet, ou músicas aí à venda, a que se veio juntar a videoarte, se tornou o

principal espaço de circulação musical. Naquele tempo, ainda as estações de rádio não

se tinham transformado em extensões de outro meio que veio revolucionar os

comportamentos individuais e coletivos: a televisão. A rádio foi, na maioria das nações

onde o aparecimento e difusão televisiva era juvenil, o principal espaço de divulgação

das novas correntes musicais pós-guerra, arrastando multidões e consolidando o seu

público. Podemos então dizer que entre a década de 50 e 80 do século passado, este

meio não foi apenas um difusor passivo de conteúdos políticos ou artísticos, mas

adaptou-se aos tempos e entendeu rapidamente a velocidade de transformação das

sociedades ocidentais. E, ao contrário de outros meios como a televisão, é qualidade da

rádio a capacidade de uma adaptação ao «espírito do tempo», não por um rebaixamento

da qualidade ou empobrecimento dos seus valores democráticos, mas por uma

apropriação singular do tempo quotidiano coadjuvada pela capacidade imersiva do som.

Porém, o surgimento do computador pessoal, um em cada casa, como já tinha Edison

pedido para o fonógrafo, veio trazer-nos novos conteúdos e a partir da década de oitenta

novas formas de organização dos meios e dos públicos. A rede que foi a rádio antes da

web, e que nasceu sobre esse dom (Brecht), viu os públicos mudarem e terem acesso, de

uma forma continuada, a muitos conteúdos. A Internet, enquanto estrutura, veio tornar

possível um rebaixamento das condições de produção, na rádio e na tv. Só que a rádio,

enquanto meio adaptável ao quotidiano, e por influência das novas tecnologias,

constitui-se como uma ‘rede’, não apenas emissora como era antes, mas de

características globais na sua difusão e escolha pelo auditório. Com estas alterações, a

rádio sofre uma mutação que origina a redefinição das suas qualidades, identidade e

assinatura, fruto da imersão do meio na cultura e nos media digitais.

Tal como acontece com todas as atividades onde se verifica a interação dos sentidos, o

corpo e a ação, também os novos conteúdos de rádio, já não unidos ao analógica da

gravação e reprodução mas a ficheiros áudio (mp3, por exemplo), constituem-se em

novas modalidades de escuta. Por análise das rádios na Web (streaming + podcast), o

acontecimento não pressupõe uma reação “ao vivo do ouvinte”, mas sim em diferido, já

que esta escuta de rádio pensa os conteúdos radiofónicos como arquivo. Neste sentido,

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as novas rádios digitais e em rede (net), acessíveis quer na sua difusão quer na sua

criação, assumem as qualidades de outros dispositivos eletrónicos, também eles

produzidos para o mesmo ciberespaço.

As principais qualidades dos dispositivos eletrónicos e informáticos que contagiam as

sessões de radioweb são, sobretudo, a portabilidade, a nanização, efeito de tornar cada

vez mais pequenos os equipamentos de difusão e de armazenamento, e maior arquivo.

Ora, se excetuarmos o próprio equipamento, o radio, essas não eram qualidades

primárias dos produtos de broadcasting. Com esta interação entre a rádio e os

dispositivos de gravação e reprodução, bem como no acrescento digital ao arquivo, o

que antes era pensado, na receção, como um ouvido ético (assim entendia Bertold

Brecht ou Marinetti cada ouvinte), que pertence a um sujeito político e moral inserido

numa comunidade, passou a ouvido estético em que a escuta é uma escolha, num

determinado tempo, de um conteúdo que seja inclusivo do seu juízo estético ou dos seus

gostos pessoais. O ouvido estético, para além das qualidades agregadoras dos

dispositivos, incorpora mais uma qualidade, a da tangência: apenas o que interessa a

esse ouvido estético deve fazer parte da escuta e do arquivo.

Em suma, esta investigação pretendeu confrontar as qualidades, assinatura e identidade

da rádio tradicional com os novos suportes e perspetivar uma futura noção de rádio,

tendo no centro destas alterações a vida quotidiana e o auditório.

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Bibliografia:

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