A FESTA DO REI SABÁ EM SÃO JOÃO DE PIRABAS, PARÁ, BRASIL

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253 253 253 253 253 FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 24, n. 2, p. 253-266, abr./jun. 2014. A FESTA DO REI SABÁ EM SÃO JOÃO DE PIRABAS, PARÁ, BRASIL* GUTEMBERG ARMANDO DINIZ GUERRA** NATUREZA E CULTURA EM SOCIEDADES MARÍTIMAS A apropriação de rochas para a manifestação religiosa é encontrada em todas as cul- turas, seja pela lapidação delas seja pelo uso das mesmas em seu formato original nominando lugares, servindo como totens ou como base para a instalação de estátuas, templos e espaços de contemplação. Em Minas Gerais é conhecido o Caraça, conjunto de elevações que se assemelham a um rosto humano deitado, tanto quanto o Dedo de Deus é reverenciado no Rio de Janeiro. As estátuas de pedra encontradas na Ilha de Páscoa, as esfinges do Egito, os obeliscos e animais talhados em granito são algumas das representa- ções mais conhecidas na contemporaneidade. Entre os monumentos naturais brasileiros, o Parque de Sete Cidades no Piauí é um emblema que merece atenção. Resumo: este artigo se insere tanto no campo da Antropologia Cultural e História das reli- giões quanto no da Arte Sacra. Registra e analisa a apropriação de elementos da natureza em manifestações religiosas no litoral paraense, em particular no Município de São João de Pirabas, onde se realiza anualmente uma festa que atrai praticantes de confissões religiosas de cultos afro-brasileiro, espíritas e cristãos. O marco desta manifestação cultural é uma estátua de pedra natural a que se atribui a representação de um rei turco que ali teria se materializado depois de séculos de vida no plano das encantarias. Baseia-se em relato de visita a uma festa religiosa, diálogo com moradores do distrito de Cuiarana, em Salinópolis e entrevistas a autoridades da sede municipal de São João de Pirabas. Palavras-chave: Cultura. Monumentos naturais. Arte. Religiosidade. * Recebido em: 02.04.2014. Aprovado em: 29.04.2014. ** Professor associado do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Pará. E-mail: [email protected].

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A FESTA DO REI SABÁ EM SÃO JOÃO DE PIRABAS, PARÁ, BRASIL*

GUTEMBERG ARMANDO DINIZ GUERRA**

NATUREZA E CULTURA EM SOCIEDADES MARÍTIMAS

A apropriação de rochas para a manifestação religiosa é encontrada em todas as cul-turas, seja pela lapidação delas seja pelo uso das mesmas em seu formato original nominando lugares, servindo como totens ou como base para a instalação de estátuas,

templos e espaços de contemplação. Em Minas Gerais é conhecido o Caraça, conjunto de elevações que se assemelham a um rosto humano deitado, tanto quanto o Dedo de Deus é reverenciado no Rio de Janeiro. As estátuas de pedra encontradas na Ilha de Páscoa, as esfinges do Egito, os obeliscos e animais talhados em granito são algumas das representa-ções mais conhecidas na contemporaneidade. Entre os monumentos naturais brasileiros, o Parque de Sete Cidades no Piauí é um emblema que merece atenção.

Resumo: este artigo se insere tanto no campo da Antropologia Cultural e História das reli-giões quanto no da Arte Sacra. Registra e analisa a apropriação de elementos da natureza em manifestações religiosas no litoral paraense, em particular no Município de São João de Pirabas, onde se realiza anualmente uma festa que atrai praticantes de confissões religiosas de cultos afro-brasileiro, espíritas e cristãos. O marco desta manifestação cultural é uma estátua de pedra natural a que se atribui a representação de um rei turco que ali teria se materializado depois de séculos de vida no plano das encantarias. Baseia-se em relato de visita a uma festa religiosa, diálogo com moradores do distrito de Cuiarana, em Salinópolis e entrevistas a autoridades da sede municipal de São João de Pirabas.

Palavras-chave: Cultura. Monumentos naturais. Arte. Religiosidade.

* Recebido em: 02.04.2014. Aprovado em: 29.04.2014.** Professor associado do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do

Pará. E-mail: [email protected].

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No caso deste ensaio, o foco é uma série de representações que combinam inter-pretações de uma estátua natural associada a um conjunto de personagens moldados em concreto armado, na Praia de Fortaleza, no Município de São João de Pirabas, revivendo um culto sebastianista em sociedades fluvio-marítima nos moldes do que tem sido estudado por Diegues (1998).

A estátua do Rei Sabá se encontra em uma ponta muito ventilada da ilha, em área inundável pela maré, com ondas agitadas durante praticamente todo o tempo, o que acentua a aura de sobrenatural naquele espaço. Atrás e ao lado desta imagem se encontram as figuras moldadas representando personagens da narrativa sobre o turco.

A HISTÓRIA, AS LENDAS E O SINCRETISMO RELIGIOSO

De São Sebastião, a história que se encontra no martirológio é de que teria sido um soldado romano, morto a pauladas após ter sido ferido a flechas, por inveja e perseguição do imperador romano Diocleciano. Seu culto teria iniciado no século IV (ENGLEBERT, 1979, p. 32). Do Rei Dom Sebastião, português, sabe-se que foi morto aos 24 anos, na batalha naval de Alcacequibir, contra os mouros, em 4 de agosto de 1578. Por não ter sido encontrado o seu corpo, tornou-se lenda de que retornaria um dia para dar prosperidade ao reino de Portugal, o que lhe dá vida em muitas festas no litoral colonizado pelos lusos. Do Rei ou mestre Sabá, cultuado no litoral amazônico, as versões se expandem para a de um Sultão turco chamado Darsalam que teria dado fuga a suas três filhas (Erundina, Jarina e Mariana) antes do assé-dio dos cristãos e naufragara ou se tornara encantadas ao passar pelo Estreito de Gibraltar e desencantado nas águas do litoral amazônico, dando origem à encantaria1 (A descoberta da Amazônia pelos turcos encantados, 2005).

Do ex-prefeito de São João de Pirabas, João Bosco Rufino Moisés (2000-2008)2, onde se realiza o culto ao Rei Sabá, na Praia do Castelo, na Ilha Fortaleza, ouvi uma quarta versão que ele atribui a um pesquisador do qual não lembra o nome. Entre negros capturados para serem vendidos no Brasil, estaria o Rei de uma das tribos de origem dos escravos. O na-vio em que viajara, naufragou nas costas do Pará, e parte da tripulação cativa se salvou. O Rei Sabá estaria entre os desaparecidos. A pedra negra em formato de um homem sentado fez crer aos africanos sobreviventes de que se tratava do Rei Sabá, surgindo o culto. Em outra versão encontrada em texto disponível na Biblioteca Municpal de São João de Pirabas (Farias, s/d), o Rei Sabá teria nadado até a ilha da Fortaleza após o naufrágio, estabelecendo-se ali.

Ouvi falar da festa do Rei Sabá por I, pescador e mestre de obras que construiu e é responsável pelos serviços de pedreiro e pequenos concertos em Cuiarana, vilarejo do município de Salinópolis, no Pará. Convidou-me para ir ao evento que seria no domingo, dia 20 de Janeiro de 2013, mesmo dia de celebração da festa de São Sebastião. Descreveu rapidamente que havia uma pedra que se assemelhava a uma pessoa sentada e a quem se atribuia poderes mágicos. Era o Rei Sabá, tratado intimamente pelos festeiros do litoral paraense. Indagado sobre a entidade, colhi dos que me acompanhavam para o festejo, mais dúvidas do que certezas.

Segundo I, o seu sogro foi, em 2012, embarcado com eles para a praia na Ilha da Fortaleza, onde ocorre a celebração, e comentou, após ter visto o monumento, se tratar ape-nas de uma pedra. O barco em que voltavam do evento naufragou. Embora não houvesse feridos nem maiores prejuízos, atribuiu-se ao incidente ter sido castigo pela falta de fé daquele

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que expressara tratar-se apenas de uma pedra o que todos acreditam ser a representação do Rei Dom Sebastião. Entendi o recado como sendo importante não zombar da fé daqueles que acreditam ser aquela uma entidade que exigia respeito. Os comentários foram aumentando durante a semana e finalmente, no domingo aprazado, fui assistir a festa do Rei Sabá, na ilha da Fortaleza, em São João de Pirabas.

No retorno da festividade, demos carona a R, líder da Tenda Espírita Mãe Ma-riana, que se situa na rua principal de Cuiarana. R contou a história do Rei Sabá, com alguma dificuldade dado o cansaço da viagem, do dia de festa, e da maresia. Em seus comentários, criticou práticas que presenciara na festividade, e proclamava como verda-deiras apenas as manifestações feitas pelos adeptos de seu culto. Segundo ele, R, o Rei Sabá era turco, tinha três filhas (Erundina, Mariana e Jarina) que teriam fugido do seu reino para escapar à perseguição de seus inimigos. O navio no qual viajavam naufragou na boca do Rio Amazonas, e elas se encantaram, aparecendo em alguns lugares em mo-mentos específicos. De fato, em todo o litoral paraense, podem-se encontrar traços desta história dando nome a lugares como o Lago da Princesa, em Algodoal, no município de Maracanã (QUARESMA, 2000).

A versão reproduzida no jornal regional “O Atalaia” dá conta de que ,

a pedra representa Dom Sebastião rei de Portugal, que após a derrota para os mouros no norte da África foge para as américas, onde constituiria um reino e, em dado momento, regressaria para liber-tar seu povo do domínio estrangeiro e restituir a glória perdida da nação lusitana (SINCRETISMO, 2013, p. 2).

Esta versão é a mais difundida e se confunde com a anterior relatada pelo lider da Tenda espírita.

A Viagem para o Local da Festa

Logo cedo, por volta das sete horas da manhã, estive no Porto de Cuiarana e vi a chegada de pessoas caracterizadas com roupas de umbanda, tambores, caixas térmicas, som-brinhas, chapéus, churrasqueiras e todos os apetrechos comuns aos passeios de pessoas nos fins de semana. Soube que a passagem custava R$ 8,00 (oito reais) de ida e mais o mesmo valor para a volta em pequenas embarcações. Voadeiras, batelões, canoas, barcos de pesca, lanchas, rabetas, eram todos meios de transporte disponíveis para o deslocamento sobre as águas, única forma de acesso à santificada praia.

Partimos do Porto de Cuiarana (Figura 1) em um barco de alumínio, a motor, fre-tado da Pousada Cuiarana, ao preço de R$ 170,00. O valor vinha do acerto de I3 com o dono do barco, por conta de relações que faziam com que o preço fosse reduzido. Para veranistas e forasteiros o preço era R$ 400,00. Com I e sua esposa B, P e R (pescadores moradores de Cuirana), saimos às 10:00 horas da manhã e chegamos na praia do Rei Sabá em torno de 40 minutos depois. O piloteiro (termo com que se denomina o piloto do barco localmente) era um rapaz empregado da Pousada, jovem, musculoso, branco. O Porto de Cuiarana é uma rampa de concreto revestido de cimento, por onde chegam e partem barcos de pesca e de passeio dos habitantes e veranistas que frequentam o ambiente. Uma casa grande com varanda se localiza em uma das laterais do porto, e ali habita um dos principais compradores do pescado que aporta no lugar. Do outro lado, uma cuiaraneira antiga dá nome ao lugar.

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Nesta árvore, segundo P me explicou, mora uma mucura branca encantada que nem todos conseguem ver. Dias depois (23/01/2013) retomei esse assunto com ele que disse nunca ter visto este animal, mas que os mais velhos afirmam que ela mora lá. Consideram que ela é a mãe do porto de Cuiarana, pois que todos os portos têm uma mãe. _Ai daquele que jogar uma pedra neste animal, disse ele, completando que penariam se fizessem qualquer agressão à mesma. Senti, naquele momento, que adentrávamos o campo do sagrado regional, o mundo dos encantados.

Percorremos canais interiores com uma maresia branda, contemplando praias de areias alvas e ranchos de pescadores. Na beirada dos verdes manguezais, bandos de guarás matizavam de vermelho encarnado a vegetação uniforme. O tripulante e passageiros dis-cutiram qual seria o melhor roteiro, optando por um que seria mais rápido, mas que per-corria um trecho de mar aberto. Depois de enfrentar pequenas ondas que nos enxarcaram, refrescando a todos, chegamos em frente a uma ponta que protegia arrecifes incrustrados entre a areia branca e um morro coberto de vegetação típica do litoral com ajirus, mangue e gramíneas. Sobre as pedras corais marrons, na beira da praia, havia um monumento natural em rocha de cor escura (Figura 2). Algumas perspectivas desta pedra sugeriam um homem negro sentado.

O barco parou no meio das ondas agitadas e descemos todos, à excessão do piloto, para nos aproximarmos do monumento. Havia um grupo de pessoas caracterizadas, próximas ao Rei Sabá, cantando ao som de tambores e fazendo oferendas.

Figura 1: Porto de CuiaranaNota: Foto GG 20/01/2013.

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Figura 2: A pedra do Rei SabáNota: Foto GG 20/011/2013

A imagem é um aglomerado de rocha negra irregular, que pode ser associado a um Buda, sentado. Ao nos aproximarmos, pudemos ver grupos de pessoas se alternando em ma-nifestações rituais, cada um à sua maneira. Benzeções, inclinações e elevações de mãos, braços e de cabeça, toques com as mãos e abraços revelavam o respeito à alegoria do Rei Sabá. Muitas garrafas de bebida alcoólica (latas de cerveja, garrafas de cachaça, wisky, vodka, conhaque...) se amontoavam na base da estátua natural. Estas oferendas dispostas e encobrindo a base dão uma perspectiva que sugere elevação da imagem como se ela descolasse do pedestal de concreto que lhe foi acrescentada, reforçando o aspecto mágico da alegoria. Uma fita de seda, branca envolvia como uma faixa o meio da imagem e um colar de contas brancas a coroava, sugerindo realeza à negra entidade (Figura 3). É justamente em torno desse acidente geográfi-co em que ocorre a maioria das manifestações, com o maior número de pessoas que o cercam e fazem cantos, danças e orações.

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Figura 3: Rei Sabá de São João de PirabasNota: Foto GG 20/01/2013.

Além daquele monumento natural, quatro outros moldados em concreto armado, sobre sólida base do mesmo material estavam em exibição, postados a poucos metros uns dos outros, tendo como centro o Rei Sabá. Teriam sido construídos pela Prefeitura Municipal de São João de Pirabas, em formas de caboclos e entidades do culto afrobrasileiro.

A primeira destas estátuas, colocada do lado direito e atrás da do Rei Sabá represen-ta Jarina, jovem com fenótipo índio ou caboclo, a pele escura (Figura 4), descalça e algo bran-co na mão direita. A mão esquerda cerrada sugere que teria algum instrumento que lhe fora arrancado (uma lança?). Uma toalha verde lhe serve de única veste como saia, restando-lhe o busto nu. Adereços (pulseiras, colares, plumagem) lhe foram colocados como oferendas nos braços e pescoço. Aos seus pés se encontravam latas de cerveja que se confundiam como lixo ou oferendas. A parte mais desgastada desta imagem são as pernas, em particular na parte mais próxima aos pés.

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Figura 4: JarinaNota: Foto GG 20/01/2013.

A segunda alegoria representa Mariana, uma mulher jovem, branca, de olhos claros, descalça, cabelos castanhos, com biquini nos bustos e mini saia avermelhados (Figura 5). Segun-do a reportagem do Jornal “O Atalaia” Jarina, representa a famíia de Turquia (SINCRETISMO, 2013, p. 2). Aos seus pés, garrafa de bebida alcóolica e lata de cerveja. O braço direito dobrado, à frente, com a mão direita semi-cerrada sugere que haveria algum objeto sendo por ela sustenta-do. O braço esquerdo estendido, à frente do corpo, tem a mão direita com os dedos quebrados. No pulso esquerdo, uma marca de oxidação que sugere uma pulseira. A estilização é dada pelas vestes modernas e faz referência à vaidade da filha do Rei Sabá. Verifica-se, nesta, desgastes da maresia com a oxidação dos pés na altura da canela e na mão esquerda.

Figura 5: MarianaNota: Foto GG 20/01/2013.

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A terceira imagem, de Iemanjá, representa a vertente afro do culto (SINCRETIS-MO, 2013, p. 2) e se apresenta como uma jovem senhora branca, longos cabelos negros, uma estrela dourada na testa, trajada com um vestido longo, azul, as mãos abertas para a frente. Como todas as representações femininas, descritas acima, os seios fartos, proeminentes sob as vestes, conferiam uma sensualidade pagã aos monumentos. A área de maior desgaste desta estátua é no lado esquerdo, na frente, no vestido da imagem.

Em frente a esta imagem de Iemanjá, sobre as pedras, no momento em que nos aproximamos, uma senhora loura, completamente vestida de azul, com um maracá e um agogô, manifestava sua devoção. Cantava, bebia e simulava estar (ou estava?) em transe. Ao seu lado esquerdo, havia outra senhora, jovem, de bermuda curta, como a protegê-la, ou acompanhá-la. Via-se também uma senhora idosa, de saia comprida, amarela, com um vesti-do de chita colorida, chapéu branco, óculos, acompanhada de outra senhora mais jovem, que a apoiava pelo braço. Primeiramente, quando a vi, estava próxima ao monumento dedicado a Iemanjá, mas afastou-se quando da manifestação daquela senhora caracterizada em azul. Crianças ao seu redor e um rapaz, jovem, de bermudas, torso nu, fotografando, compunham o quadro (Figura 6).

Figura 6: Manifestação em frente a IemanjáNota: Foto GG 20/01/2013.

A quarta imagem moldada e fincada em concreto era masculina. As pessoas chamam genericamente de um preto velho, mas de fato a imagem repesenta um homem mulato, jovem vestido de calça branca, sem camisa, dois chapéus cobrindo-lhe a cabeça, sob forma de oferen-da. Apresentava, como todas as outras imagens, sinais de degradação pela oxidação provocada pela maré, tanto nas estátuas quanto na base retangular construída para sustentá-las (Figura 7).

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Segundo o jornal “O Atalaia”, trata-se de Zé Raimundo, representante das entidades espirituais da floresta (SINCRETISMO, 2013, p. 2). Em Cuiarana, em uma das residencias localizadas em frente ao braço de mar que envolve a península, há duas estátuas, uma de Iemanjá e outra de um marinheiro. Soube pelo proprietário da casa, em tom de segredo, que a estátua masculina se tratava de Fernando, o marinheiro de Iemanjá. Pela associação de ter sempre um representante masculino ao seu lado, faço o registro supondo de uma vertente sincrética que aproxima Ieman-já das representações das sereias.

Uma quinta estátua moldada está em ruinas. Soube tratar-se da Cobra Norato, o que de fato pode ser identificado nos vestígios da imagem helicoidal, e da qual não possúimos fotografia.

Figura 7: Zé RaimundoNota: Foto GG 20/01/2013.

Aparentemente, todas as imagens, tanto a natural quanto as moldadas em concreto, são cobertas pela maré cheia, embora as pessoas digam que a do Rei Sabá seja sempre visível, o que é pouco provável por conta de estar na mesma linha de nível da maré que as outras.

O local do culto religioso se distancia uns três quilômetros do espaço profano. Ao longo da praia, sob um clima nublado e ventilado, pessoas caminhavam com ofe-rendas, tambores, bebidas e se dirigiam para o espaço sagrado (Figura 8). Havia pessoas com sinais de evidente embriaguês ou de terem passado a noite na praia. Encontramos conhecidos que de fato tinham feito a travessia na noite anterior e passado em vigília desde o sábado até aquele momento. A maré baixa deixa uma superfície plana, extensa de uns 5 km de extensão e uns 300 metros entre a maré e o morro, permitindo a dispersão das pessoas neste espaço.

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Figura 8: Manifestantes com oferendas e tamboresNota: Foto GG 20/01/2013.

As pessoas estavam com roupas leves, bermudas, calções, biquinis, maiôs, saidas de banho, camisa, quase todos com camisas e descalços (para se andar sobre as pedras deve-se fa-zê-lo calçado ou com muito cuidado por conta das pedras serem afiadas). Não se via nenhum constrangimento para que bebessem, fumassem, dançassem, falassem, cantassem, ainda que não se identificasse (pelo menos nos momentos em que estivemos próximos da representação do Rei Sabá), alguma sonorização que não fosse de tambores e cantos e tampouco se via, neste espaço, venda de qualquer iguaria ou bebida.

No espaço profano, uma cobertura de palha acima da linha da maré abrigava po-derosas caixas de sonorização e nos arredores, comerciantes de cerveja em lata, coco, refrige-rantes e sopa completavam o ambiente. O mais ilustrativo era uma barraca com o cardápio pintado em formato de cartaz improvisado, anunciando os produtos que estavam à venda (Figura 9). Nesta, os produtos eram bebidas alcóolicas e não alcóolicas, cigarros e salgados industrializados.

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Figura 9: Cardápio na Praia do Rei SabáNota: Foto GG 20/01/2013.

Ao longo da praia, dentro d’água, embarcações de tipos variados estavam ancora-das, ao sabor das ondas (Figura 10). Próximas às embarcações, pessoas banhavam-se, aguar-davam o embarque ou desembarque ou sondavam o ambiente para saber onde arrumar seus apetrechos e reunir a família ou grupo.

Figura 10: Embarçações na Praia do Rei SabáNota: Foto GG 20/01/2013.

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Na parte da praia, acima da areia, sobre a vegetação, ranchos de pescadores, uns mais outros menos elaborados, com material construtivo dominante de madeira e palha (Fi-gura 11). Estes ranchos, segundo informações de P (morador de Cuiarana, 38 anos), são casas temporárias, alojamentos de trabalho dos pescadores que exercem a sua profissão naquela praia, seja para fazer a despesca dos currais, seja das redes que costumam lançar ao mar, seja como espaço de salga dos produtos de sua atividade diária.

A presença de bandeiras vermelhas e amarelas, na praia, nas embarcações e nas casas chama a atenção. Fazem parte das alegorias da festa, mas as vermelhas são marcação dos es-paços das famílias que frequentam o lugar para suas atividades de lazer. As amarelas indicam atividades ligadas à pesca, nos barcos e nos pontos de comercialização do peixe.

Durante o dia, o número de pessoas foi aumentando, e novas estruturas se forman-do. Traves de futebol apareceram fincadas na areia para os esportistas. Vendedores ambulantes chegavam a cada momento com iguarias para oferecer aos festeiros. Churrasqueiras impro-visadas se armavam para assar carnes e peixes para os grupos que se alinhavam ocupando o vasto espaço da areia úmida.

Figura 11: Ranchos de pescadores na Praia do Rei SabáNota: Foto GG 20/01/2013.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao ser convidado para a festividade do Rei Sabá supunha tratar-se de celebração do dia de São Sebastião, o soldado romano morto por ordem do Imperador Deocleciano no século II e venerado pelos católicos. Ao começar a ouvir as narrativas, comecei a perceber que se tratava de um sincretismo entre o culto a D. Sebastião Rei de Portugal e o soldado

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convertido ao catolicismo. Ao ver as imagens identificadas com o culto afrobrasileiro, e ao escutar a versão do babalorixá Raimundo (morador de Cuiarana e chefe da Tenda Espíritia Mãe Mariana), entendi tratar-se de entidade construída nos moldes do sincretismo reli-gioso afrobrasileiro, misturando elementos históricos e mitológicos, circunstanciados na Amazônia.

A celebração na mesma data do culto a São Sebastião no Rio de Janeiro, presente em toda a mídia nacional, favorece à confusão e ao sincretismo. No caso da praia da ilha do Rei Sabá, em São João de Pirabas, no Pará, trata-se de festejo local, com a presença de pescadores e habitantes dos municípios próximos (Salinópolis, Nova Timboteua, Peixe Boi, Santarém Novo) e de toda a microregião do Salgado.

Embora as estátuas sejam atribuídas à ação da Prefeitura Municipal de São João de Pirabas, não se identifica outra forma de expressão do apoio oficial, podendo-se considerar a festa de cunho eminentemente popular, pelo menos no que se refere a este ano de 2013. Em entrevista ao ex-prefeito de São João de Pirabas, ele informou ter mandado fazer as imagens encomendando a um santeiro do Nordeste do Brasil, mas não soube precisar seu nome, tampouco porque omitiu a não recuperação da imagem da Cobra Grande. Conversa com o Secretário de Cultura Municipal também não permitiram recuperar esta informação.

Verifica-se nas declarações que há uma dispersão na interpretação que as pessoas fazem da festa, orientados pelas confissões religiosas que se professam em torno da imagem natural e das moldadas expostas no local.

Independente da imprecisão das informações, o culto permanece e se repete a cada ano.

THE FESTIVITY OF THE KING SABBATH IN SÃO JOÃO DE PIRABAS, STATE OF PARÁ, BRAZIL

Abstract: this assay is both part of the Cultural Anthropology and History of Religions, as much as in Sacred Art. It keeps track and analyzes the appropriation of nature elements in religious manifestations in the Brazilian State of Pará coastline, particularly in the municipality of São João de Pirabas, where it annually takes place a festival that attracts believers of confession religious of African-Brazilian cults, Spiritualists and Christians. The foundation of this cultural event is a natural stone statue-like that is believed to be the representation of a Turkish king that would have materialized himself after centuries living in the enchanted world. It is based on a reported visit to a religious festival, dialogues with residents of the district Cuiarana in the municipality of Salinópolis, and interviews with city officials of São João de Pirabas.

Keywords: Culture. Natural monuments. Art. Religiousness.

Notas1 Sobre encantarias da Amazonia, recomenda-se leitura de Maués (1990).2 Entrevista realizada em 15 de março de 2013, em São João de Pirabas. Prefeito de São João de PIrabas entre

2000 e 2008, pelo PR, faleceu aos 74 anos, no dia 22 de julho de 2013.3 Para preservar os nomes dos interlocutores desta pesquisa, preferi usar apenas as iniciais dos seus prenomes

e apelidos.

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Referências

A DESCOBERTA DA AMAZONIA PELOS TURCOS ENCANTADOS. Filme de Luis Arnaldo Campos. 2005. 1 DVD. (55 min.), NTSC, son. color, Port.

DIEGUES, Antonio Carlos Sant’ana. Ilhas e Mares: simbolismo e imaginário. 1. ed. São Paulo: HUCITEC, 1998.

ENGLEBERT, Omer. La fleur des saints. 1910 pr[enoms et leur histoire. Paris, Albin Mi-chel, 1979.

FARIAS, Eliany Conceição M. de. Festa do Rei Sabá. S/l, s/e.; s/d.

MAUÉS, R. Heraldo. A Ilha Encantada: medicina e xamanismo numa comunidade de pescado-res. 1. ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1990.

PRANDI, Reginaldo (Org). Encantaria brasileira. O livro dos mestres, caboclos e encantados.Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

QUARESMA, Helena Doris de Almeida Barbosa. O desencanto da princesa. pescadores tra-dicionais e turismo de área de proteção ambiental de Algodoal/ Maiandeua, 2000. 233f. Dissertação (Mestrado Internacional em Planejamento do Desenvolvimento). Universidade Federal do Pará, 2000.

SINCRETISMO RELIGIOSO MARCA AS COMEMORAÇÕES DO SEBASTIANISMO EM SÃO João de Pirabas. O ATALAIA, no. 009, Salinópolis, janeiro de 2013, Geral p. 2.