A CENTRALIDADE DO TERRITÓRIO E A POSIÇÃO DO ESTADO NOS CONFLITOS PELA APROPRIAÇÃO DA NATUREZA:...

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Terra Livre desde 1934 Associação dos Geógrafos Brasileiros A produção do espaço brasileiro: a abstração real

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Terra Livre

desde 1934

Associação dos Geógrafos Brasileiros

A produção do espaço brasileiro: a abstração real

Associação dos Geógrafos Brasileiros

Coletivo Diretoria Executiva Nacional (Gestão 2010-2012)

Diretoria executiva nacional Presidente: Nelson Rego (Seção Porto Alegre) Vice-Presidente: Heitor Oliveira (Seção Recife)

1º Secretário: Paulo Roberto Raposo Alentejano (Seção Rio de Janeiro) 2º Secretário: Leandro Evangelista Martins (Seção São Paulo) 1º Tesoureiro: Fernando Conde Veiga (Seção Belo Horizonte)

2º Tesoureiro: Silvio Marcio Montenegro Machado (Seção Florianópolis) Coordenador de Publicações: Claudinei Lourenço (Seção Belo Horizonte)Auxiliar de Coordenador de Publicações: Paulo César Scarim (Seção Vitória)

Editor de Publicações Eletrônicas: Hindenburgo Francisco Pires (Seção Rio de Janeiro) Representantes no CONFEA: Everton de Moraes Kosanieski (Seção Porto Alegre)

e Lucimar Fátima Siqueira (Seção Porto Alegre)

COLETIVOS

Publicações Claudio Ubiratan Gonçalves (Seção Recife) Charlles da França Antunes (Seção Niterói)

Comunicação Pedro Henrique Oliveira Gomes (Seção Rio de Janeiro)

Daniel Baliu Fiamenghi (Seção São Paulo) Aracídio de Freitas Barbosa Neto (Seção Florianópolis)

Cristiano Silva da Rocha Diogenes (Seção Campinas Leandro Monteiro Dal Bó (Seção Florianópolis)

Articulação dos GTs

Renato Emerson Nascimento dos Santos (Seção Rio de Janeiro) Eduardo Maia (Seção Viçosa)

Secretaria Renata Ferreira da Silveira (Seção Porto Alegre)

Evelin Cunha Biondo (Seção Porto Alegre)

Secretaria Administrativa Caio Tedeschi de Amorim(Seção São Paulo)

Tesouraria Rafael Muniz Pacchiega (Seção São Paulo)

Eduardo Luiz Damiani Goyos Carlini (Seção São Paulo) Lara Schmitt Caccia (Seção Porto Alegre) Paulo Cabral Lage (Seção Belo Horizonte)

Terra Livre

Publicação semestral da Associação dos Geógrafos Brasileiros

ANO 27 - Vol. 1NÚMERO 36

Terra Livre São Paulo Ano 27, Vol. 1, n.36 p.1- 291 Jan-Jun/2011

ISSN 0102-8030

A produção do espaço brasileiro: a abstração real

Terra LivreConselho Editorial: Alzenir Severina - Seção Local Recife | Anderson Bem - Seção Local Mal Candido Rondom |

Azucena Arango Miranda - Universidade Humboldt de Berlin, Alemanha e Universidad Autonoma do México, UNAM |

Claudinei Lourenço - DEN/Coordenação de Publicações | Claudio Ubiratan Gonçalves - DEN/Coordenação de Publicações

| Cristiane Cardoso - Seção Local Rio de Janeiro | Charlles Antunes da França - DEN/Coordenação de Publicações |

Edima Aranha - Seção Local Três Lagoas | Fábio Napoleão - Seção Local Florianópolis | Felipe Moura Fernandes - Seção

Local Niterói | Fernando Conde Veiga - Seção Local Belo Horizonte | Flávio Palhano Fernandes - Seção Local Vitória |

Gustavo Francisco Teixeira Prieto - Seção Local São Paulo | Jan Bitoun - Seção Local Recife | Jeani Delgado Paschoal

Moura - Seção Local Londrina | João Damasceno - Seção Local Campina Grande | João Edmilson Fabrini - Seção Local

Mal Candido Rondom | Joelma Cristina dos Santos - Seção Local Ituiutaba | José Messias Bastos - Seção Local Florianópolis

| Julio César Gabrich Ambrozio - Seção Local Juiz de Fora | Lucas Manassi Panitz - Seção Local Porto Alegre | Marcelo

Rodrigues Mendonça - GT Agrária| Marcelo Garrido - Universidad Academia de Humanismo Cristiano, Chile | Márcio

da Costa Berbat - Seção Local Rio de Janeiro | Marcos Antonio Campos Couto - Seção Local Niterói | Margarida Cássia

Campos - Seção Local Londrina | Margarida Pereira - Universidade Nova de Lisboa, Portugal | Maria Adailza Martins de

Albuquerque - Seção Local João Pessoa | Maria de Fátima Ferreira Rodrigues - Seção Local João Pessoa | Maria Lúcia

Pires Menezes - Seção Local Juiz de Fora | Marilda Teles Maracci - Seção Local Vitória | Natália Freire Bellentani - Seção

Local São Paulo | Paulo Sérgio Cunha Farias - Seção Local Campina Grande | Paulo César Scarim - DEN/Coordenação de

Publicações | Rosemeire Aparecida de Almeida - Seção Três Lagoas | Silvana Lúcia da Silva Lima - GT Agrária | Sinthia

Christina Baptista - Seção Local Porto Alegre | Verônica Ibarra - Universidad Autonoma do México, UNAM | Vitor Koiti

Miyasaki - Seção Local Ituiutaba | William Rosa Alves - Seção Local Belo Horizonte

Editor Responsável: Claudinei Lourenço - AGB Belo Horizonte

Projeto Gráfico, Editoração Eletrônica e Impressão: Impressões de Minas Gráfica e Editora

(www.impressoesdeminas.com.br)

Capa: Isabela Freire

Endereço para correspondência: Associação dos Geógrafos Brasileiros (DEN) - Av. Prof. Lineu

Prestes, 332 - Edifício Geogreafia e História - Cidade Universitária - CEP. 05508-900 - São Paulo - SP

Brasil - Tel.: (11) 3091-3758 | Caixa Postal 64.525 - 05402-970 - São Paulo - SP

e-mail: [email protected]

Parceristas ad hoc da Terra Livre 36: Ana Rocha dos Santos - Seção Local Aracaju | Maria de Jesus Morais -

Seção Local Rio Branco | Mônica Cox de Britto Pereira - Seção Local Niterói | Regina Célia Bega dos Santos - Seção Local

Campinas

1986 - ano 1, v. 11987 - n. 21988 - n. 3, n.4, n.51989 - n.61990 - n.71991 - n.8, n.91992 - n.101992/93 - n.11/12 (editada em 1996)1994, 95,96 - interrompida1997 - n.131998 - interrompida1999 - n. 14

2000 - n.152001 - n.16, n.172002 - ano 18, v.1, n.18; v.2, n.192003 - ano 19, v.1, n. 20; v.2, n.212004 - ano 20, v.1, n.22; v.2, n.232005 - ano 21, v.1, n. 24; v.2, n.252006 - ano 22, v.1, n.26; v.2, n.272007 - ano 23, v.1, n.28; v.2, n.292008 - ano 24, n.30; v.2, n.312009 - ano 25, n.32; v.2, n.332010 - ano 26, n.34; v.2, n.352011 - ano 27, n.36; v.1

Terra Livre, ano 1, n.1, São Paulo, 1986 - v. ils. Histórico:

Ficha Catalográfica

SumárioEDITORIAL | 11

GruPoS dE TrabaLHo| 17

OS GRANDES PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO E SEUS IMPACTOS SOBRE O ESPAÇO AGRÁRIO FLUMINENSE Grupo de Trabalho de Assuntos Agrários - Seções Rio de Janeiro e Niterói

ARTIGOS

DO ESPAÇO DA MAIS VALIA ABSOLUTA AO ESPAÇO DA MAIS VALIA RELATIVA: OS ORDENAMENTOS DA GEOGRAFIA OPERÁRIA NO BRASIL | 45Ruy Moreira

QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL ATUAL: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA GEOGRAFIA | 69Paulo Alentejano

A PROPRIEDADE PRIVADA DA TERRA NO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO. CRISE E REPRODUÇÃO CRÍTICA | 96Ana Cristina Mota Silva

GLOBALIZAÇÃO DA AGRICULTURA: MULTINACIONAIS NO CAMPO BRASILEIRO |126Gleydson Pinheiro AlbanoAlcindo José de Sá

CONTRATEMPOS DA MODERNIZAÇÃO: A CIDADE DE BELO HORIZONTE E A PRAÇA DA LIBERDADE EM MEIO À METRÓPOLE | 152Pedro Henrique de Mendonça Resende

ÍNDIOS E FRONTEIRAS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA NO CONTEXTO DO PROJETO CALHA NORTE | 180Beatriz Maria Soares Pontes

REDES POLÍTICAS TERRITORIAIS EM QUESTÃO: PERSPECTIVAS NOS ATORES E NAS REDES EM TENSÃO NO ESPAÇO AGRÁRIO DO BAIXO JAGUARIBE CEARENSE | 208Saulo Barros da Costa

A CENTRALIDADE DO TERRITÓRIO E A POSIÇÃO DO ESTADO NOS CONFLITOS PELA APROPRIAÇÃO DA NATUREZA: O CASO DO PARQUE ESTADUAL DE ITAÚNAS |229Vanessa HaconCarlos Frederico B. Loureiro

NOTAS | 253

A PASTORAL RURAL DA DIOCESE DE ALAGOINHAS E A CRIAÇÃO DO STR DE ALAGOINHAS E ARAMARI NO CONTEXTO DA DITADURA MILITAR (1977-1985) Gutemberg Armando Diniz Guerra

rESENHa | 275 A IDÉIA DE CULTURAWaldirene Alves Lopes da Silva

NorMaS | 281NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Summary FOREWORD | 13

WORKGROUPS | 17

THE MAJOR DEVELOPMENT PROJECTS AND ITS IMPACT ON AGRICULTURAL SPACE FLUMINENSEGrupo de Trabalho de Assuntos Agrários - Seções Rio de Janeiro e Niterói

ARTICLES

WORKING CLASS GEOGRAPHY AND CAPITALISM SPACIAL REORDINATION IN BRAZIL | 45Ruy Moreira

AGRARIAN QUESTION IN BRAZIL ON THE XXI CENTURY: AN APPROACH FROM GEOGRAPHY | 69Paulo Alentejano

REAL STATE IN URBANIZATION PROCESS. CRISES AND CRITICAL REPRODUCTION | 96 Ana Cristina Mota Silva

GLOBALIZATION OF AGRICULTURE: THE MULTINATIONALS IN BRAZILIAN FIELD | 126Gleydson Pinheiro AlbanoAlcindo José de Sá

SETBACKS OF MODERNIZATION: THE CITY OF BELO HORIZONTE AND THE LIBERTY SQUARE IN THE MIDST OF THE METROPOLIS |152Pedro Henrique de Mendonça Resende

BORDERS AND INDIANS AT BRAZILIAN AMAZON IN THE CONTEXT OF THE CALHA NORTE PROJECT | 180Beatriz Maria Soares Pontes

NETWORKS TERRITORIAL POLICIES IN QUESTION: PERSPECTIVES ON THE ACTORS AND NETWORKS IN TENSION IN AN AGRARIAN LANDSCAPE OF THE BAIXO JAGUARIBE CEARENSE | 208Saulo Barros da Costa

THE CENTRALITY OF THE TERRITORY AND THE STATE’S POSITION IN CONFLICTS OVER THE APPROPRIATION OF NATURE: THE CASE OF ITAÚNAS STATE PARK | 229Vanessa HaconCarlos Frederico B. Loureiro

NOTES | 253

THE RURAL PASTORAL DIOCESE OF ALAGOINHAS AND THE ESTABLISHMENT OF THE RURAL WORKERS’ SYNDICATE OF ALAGOINHAS AND ARAMARI IN THE MILITARY DICTATORSHIP’S CONTEXT (1977-1985).Gutemberg Armando Diniz Guerra

REVIEWS | 275 THE IDEA OF CULTURE LA IDEA DE CULTURAWaldirene Alves Lopes da Silva

STANDARDS | 281Standards for publication

Sumario

EDITORIAL | 15

GRUPOS DE TRABAJO | 17

LOS PRINCIPALES PROYECTOS DE DESARROLLO Y SU IMPACTO EN ESPACIO AGRARIO FLUMINENSEGrupo de Trabalho de Assuntos Agrários - Seções Rio de Janeiro e Niterói

ARTÍCULOS

EL ESPACIO DE LA PLUSVALOR ABSOLUTO EL ESPACIO DE PLUSVALOR RELATIVO: LAS ORDENACIONES ESPACIALES DE LA GEOGRAFIA OBRERA EN EL BRASIL | 45Ruy Moreira

CUESTIÓN AGRARIA EN BRASIL DEL SIGLO XXI: UNA MIRADA A PARTIR DE LA GEOGRAFÍA | 69Paulo Alentejano

LA PROPIEDAD PRIVADA DE LA TIERRA EN EL PROCESO DE URBANIZACIÓN. CRISIS Y REPRODUCCIÓN CRÍTICA | 96Ana Cristina Mota Silva

GLOBALIZACIÓN DE LA AGRICULTURA: MULTINACIONALES EN EL CAMPO DE BRASIL | 126Gleydson Pinheiro AlbanoAlcindo José de Sá

CONTRATIEMPOS DE LA MODERNIZACIÓN: LA CIUDAD DE BELO HORIZONTE Y LA PLAZA DE LA LIBERTAD EN MEDIO DE LA METRÓPOLIS | 152Pedro Henrique de Mendonça Resende

INDIOS Y FRONTERAS EN LA AMAZONIA BRASILEÑA EN EL CONTEXTO DEL PROYECTO CALHA NORTE | 180Beatriz Maria Soares Pontes

REDES POLÍTICAS TERRITORIALES EN CUESTIÓN: LAS PERSPECTIVAS DE LOS ACTORES Y LÃS REDES DE LA TENSIÓN EN UN PAISAJE AGRARIO DEL BAIXO JAGUARIBE CEARENSE | 208Saulo Barros da Costa

LA CENTRALIDAD DEL TERRITORIO Y LA POSICIÓN DEL ESTADO EN LOS CONFLICTOS POR LA APROPIACIÓN DE LA NATURALEZA: EL CASO DEL PARQUE ESTADUAL DE ITAÚNAS | 229Vanessa HaconCarlos Frederico B. Loureiro

NOTAS | 253

LA PASTORAL RURAL DE LA DIÓCESIS DE ALAGOINHAS Y LA CREACIÓN DEL SINDICATO DE LOS TRABAJADORES RURALES DE ALAGOINHAS Y ARAMARI EN EL CONTEXTO DE LA DICTADURA MILITAR (1977-1985)Gutemberg Armando Diniz Guerra

RESEÑAS | 275

LA IDEA DE CULTURAWaldirene Alves Lopes da Silva

NORMAS | 281Normas para publicación

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EDITORIAL

Este número 36 da Revista Terra Livre, com o tema de chamada – “A produção do espaço brasileiro: a abstração real”-, buscou trazer ao debate con-tribuições que reflitam criticamente o processo de produção do espaço brasilei-ro recente. Em tempos da hegemonia da ideologia desenvolvimentista, o país torna-se alvo de inúmeras intervenções na sua estrutura e na dinâmica social. Obras de grande impacto e mega eventos projetados são alardeados como a definitiva afirmação do Brasil rumo ao desenvolvimento. Neste percurso são produzidas as contradições e atropeladas conquistas históricas de parcelas sig-nificativas do povo brasileiro sujeitas às remoções violentas de seus territórios e da impossibilidade da reprodução das suas formas de vida. A ação simbiótica entre Estado e Capital coloca questões aos geógrafos acerca dos compromissos que o conhecimento estabelece com a sociedade.

Já na capa figuram, literalmente, expressões deste processo contraditório territorializado em todo o país. As análises que se seguem contribuem de di-versas formas e conteúdos para o entendimento do fenômeno. A contribuição do Grupo de Trabalho de Agrária das Seções Locais Rio de Janeiro e Niterói apresenta em extensão e profundidade o processo no interior fluminense. Os artigos explicitam, em múltiplas escalas e conteúdos, elementos do mesmo pro-cesso. Desde a redefinição da dinâmica de classes pela chamada reestruturação produtiva do capital até as inserções do mesmo nos termos da expressão cul-tural. Tal amplitude demonstra que além da reiteração nos termos clássicos da expansão territorial sob a forma da intensificação das relações de produção ca-pitalistas no campo e na cidade, torna-se estratégica a reprodução das mesmas relações em todos os níveis da existência.

Longe de lermos ou vivenciarmos o processo como vítimas, devemos poder, nos desdobramentos da análise e da crítica, buscar os termos da supera-ção das contradições no imediato do vivido.

Coletivo de Publicações

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A WORD FROM THE PUBLISHER

The 36th issue of Revista Terra Livre, covering the theme “The produc-tion of Brazilian space: real abstraction”, sought to add contributions to the debate that critically reflect the recent production process of Brazilian space. At this time when the development ideology prevails, the country has beco-me a target for innumerous interventions in its structure and social dynamics. Planned construction works of expressive impact and mega events are seen as definitive affirmation of Brazil being on the path to development. Contradic-tions have been produced throughout this course, along with the rupture of historical achievements of significant parts of the Brazilian people subject to their violent removal from their lands and the impossibility of carrying on their ways of life. The symbiotic action between the State and Capital poses ques-tions to geographers regarding the commitments that knowledge establishes with society.

The cover literally carries the expressions of this contradictory process settled throughout the country. The analyses that follow provide a number of ways and contents for us to understand this phenomenon. The contribution from Grupo de Trabalho de Agrária from the Rio de Janeiro and Niterói Chap-ters offers an extensive and in-depth presentation of this process in the state’s interior. The articles explain elements of the same process on multiple scales and through a vast range of content. From redefining the class dynamics throu-gh the so-called productive restructuring of capital to its insertion in terms of cultural expression. Such range shows that, besides reiterating the territorial expansion in its classic terms in the form of intensified capitalist production relationships in the field and city, it is strategic to reproduce these relationships at all levels of existence.

Far from reading about or experiencing the same process as victims, we must, through the development of analyses and criticism, be able to seek out the conditions to overcome these contradictions in our current experience.

Publication Collective

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EDITORIAL

Este número 36 de la Revista Terra Livre, con el tema de portada –“La producción del espacio brasileño: la abstracción real”-, trae al debate los apor-tes que reflejan críticamente el reciente proceso de producción del espacio brasileño. En tiempos de hegemonía de la ideología de desarrollo, el país se ha convertido en el objetivo de innúmeras intervenciones en su estructura y en la dinámica social. Los proyectos de las obras de gran impacto y de los grandes eventos son alardeados como la definitiva afirmación de Brasil hacia el desarrollo. En este trayecto se producen las contradicciones y las aturdidas conquistas históricas de porciones significativas del pueblo brasileño someti-dos a los desplazamientos violentos de sus territorios y de la imposibilidad de la reproducción de sus formas de vida. La acción simbiótica entre Estado y Capital plantea cuestiones a los geógrafos respecto a los compromisos que el conocimiento establece con la sociedad.

En la portada ya se pueden ver, literalmente, las expresiones de este pro-ceso contradictorio territorializado en todo el país. Los análisis que siguen con-tribuyen de diferentes formas y contenidos para el entendimiento del fenóme-no. La contribución del Grupo de Trabajo de Agraria de las Secciones Locales Río de Janeiro y Niterói presenta en extensión y profundidad el proceso en el interior fluminense. Los artículos explicitan, en diversas escalas y contenidos, los elementos del mismo proceso. Desde la redefinición de la dinámica de cla-ses por la denominada reestructuración productiva del capital hasta las insercio-nes del capital en los términos de la expresión cultural. Tal amplitud demuestra que, además de la reiteración en los términos clásicos de la expansión territorial bajo la forma de la intensificación de las relaciones de producción capitalistas en el campo y en la ciudad, la reproducción de las mismas relaciones en todos los niveles de la existencia se hace estratégica.

Lejos de que interpretemos o experimentemos el proceso como víctimas, debemos poder, en los avances del análisis y de la crítica, buscar los términos de la superación de las contradicciones inmediatamente a lo vivido.

Colectivo de Publicaciones

Grupos de Trabalho

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OS GRANDES PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO E SEUS IMPACTOS SOBRE O ESPAÇO AGRÁRIO

FLUMINENSE

Grupo de Trabalho de assuntos agráriosSeções Rio de Janeiro e Niterói

INTRODUÇÃO

O presente texto é resultado de uma construção coletiva do Grupo de Trabalho de Assuntos Agrários da Associação de Geógrafos Brasileiros (GTA-grária-AGB), seções Niterói e Rio de Janeiro1, e surgiu de uma demanda do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para analisar o Zo-neamento Ecológico Econômico (ZEE) do estado do Rio de Janeiro, e seus desdobramentos.

Temos como objetivo analisar a atual situação do espaço agrário flumi-nense destacando os impactos causados, e que ainda podem vir a ser causados, pelos grandes projetos em andamento no estado. Para tanto, faremos um balan-ço da agricultura e da política agrária no estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas, e uma análise no Plano Estratégico do estado. O Plano Estratégico foi o principal balizador para a elaboração do ZEE.

Considerando dados dos Censos Agropecuários e da Pesquisa Agrícola Municipal (ambos do IBGE) analisaremos a evolução da produção das duas principais culturas comerciais do estado (cana de açúcar e tomate) e três dos principais alimentos da cesta básica brasileira (arroz, feijão e mandioca). A aná-lise do Plano Estratégico do estado, acreditamos, poderá nos dar subsídios para reflexões acerca da importância que vem sendo dada ao campo, em especial ao campesinato fluminense, pelo modelo de desenvolvimento adotado pelo atual governo do estado em parceria com grandes empresas nacionais e estrangeiras. A partir da leitura do Plano destacamos grandes projetos em andamento (Arco

1 Estiveram envolvidos no desenvolvimento da pesquisa e na elaboração do texto Débora Mendonça, Eduardo Barcelos, Isabela Pasini, Lara Douetts, Luís Marola, Luiza Chuva, Maycon Berriel, Monica Cox de Britto Pereira, Paulo Alentejano e Saulo Costa.

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.19-42 Jan-Jun 2011

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Grupo de Trabalho de assuntos agrários Os grandes projetos...

Metropolitano, COMPERJ, Porto do Açu, Porto de Sepetiba, hidrelétricas de Simplício e Anta e o Complexo Logístico e Industrial Farol-Barra do Furado) que têm causado grandes alterações na organização produtiva e na infraestru-tura das regiões em que se inserem.

Buscamos assim, contribuir para a discussão de estratégias de ação de resistência ao “rolo compressor” do capitalismo nacional-globalizado, acredi-tando que não existe modelo de desenvolvimento justo e democrático sem uma reforma agrária que garanta o acesso e a permanência do trabalhador na terra.

PLANO ESTRATÉGICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - 2007 – 2010

Ao analisar o Plano Estratégico do Estado do Rio de Janeiro (2007-2010) ficam evidentes as visões e posturas adotadas pelo atual governo em relação à produção agrícola e ao espaço agrário fluminense. Logo no início do docu-mento, onde é apresentada uma análise situacional e prospectiva, o próprio governador do Estado, Sérgio Cabral, visando aproveitar o momento favorável de visibilidade dos investimentos públicos e privados, e a retomada do Estado enquanto indutor e financiador do desenvolvimento econômico, vaticina que “Isso deve se dar de maneira distribuída em todo o território, principalmente no sentido das vocações regionais, como, por exemplo, as áreas de celulose e etanol no Norte e Noroeste fluminense”. É com essa perspectiva, na ênfase de aquecer futuros e velhos “potenciais” da economia fluminense, tais como re-servas de petróleo e belezas e riquezas naturais, que o poder executivo estadual balizará, segundo o Plano, as ações consideradas estratégicas para o desenvolvi-mento agrícola e das áreas rurais do Estado. Baseado em “vocações regionais” o Estado do Rio de Janeiro já possui uma simplória divisão territorial do tra-balho, mas também uma divisão simultânea de recursos, interesses, projetos e intencionalidades.

Ao longo do documento algumas tendências são avaliadas, nas quais se destacam:

º a reconfiguração econômica espacial; º a interiorização do desenvolvimento; º a ampliação do agronegócio; º a desconcentração industrial e a constituição de novos pólos de dina-

mismo econômico. Percebe-se que o foco desta proposta de desenvolvimento é a articulação

do poder público com grandes investidores nacionais e internacionais, com o

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Terra Livre - n.36 (1): 19-42, 2011

apoio de bancos públicos federais, forjando um “projeto estratégico” apresen-tado no Plano, pautado em interesses muitas das vezes externos à realidade fluminense. Este entendimento sobre o Estado e seus investimentos reflete políticas que estão diretamente ligadas aos interesses do grande capital e não reflete as reais necessidades do bem estar público, como o que ocorre no Esta-do do Rio de Janeiro, segundo descrito neste Plano Estratégico.

Favelização progressiva e ocupação desordenada montam os grandes gargalos existentes, reflexos também da grande concentração populacional de 96% em áreas urbanas, o que não exclui os problemas rurais, com pouca viabi-lidade a partir das políticas públicas de produção e diversificação da agricultura familiar. A oferta de recursos hídricos, demandada em grande parte pelos pro-dutores industriais dos grandes pólos petroquímicos consolida por outro lado o quadro de complexos problemas e demandas econômicas e sociais que o Rio de Janeiro atravessa.

Saídas são apontadas no Plano Estratégico, que se baseiam numa recon-figuração econômica espacial a partir da intensificação da interiorização do desenvolvimento, desconcentração industrial e construção de novos pólos de dinamismo econômico. A questão que se coloca é como interiorizar o “de-senvolvimento” fluminense para regiões que, mesmo sem projetos de grande envergadura já atravessam quadros críticos de descontrole e falta de gestão pú-blica e social? Com a chegada de novos investimentos, novos problemas serão gerados nessas regiões e os problemas anteriores serão ainda mais evidentes.

Com relação à estratégia do governo, são apontados alguns legados e pro-gramas prioritários à sociedade, baseadas em realizações do governo estadual para a reconstrução da gestão pública e a retomada do Estado na promoção do desenvolvimento. Os principais focos dessa realização são a reconquista da segurança pública e da cidadania, e a articulação e promoção de investimentos. De forma a complementar tais realizações o plano elenca oito grandes entregas à sociedade fluminense, das quais destacamos três que julgamos afetar direta-mente os produtores agrícolas do Estado:

1. expansão e melhoria da infra-estrutura e logística de transportes, com destaque para a implantação do Arco Metropolitano;

2. crescimento econômico diversificado e geograficamente equilibrado; e

3. recuperação dos grandes passivos ambientais do Estado. A urgência da melhoria da infra-estrutura de transporte ocorre tanto na

região metropolitana como em regiões mais afastadas do centro econômico para viabilizar, principalmente, o escoamento de alimentos oriundos da peque-

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Grupo de Trabalho de assuntos agrários Os grandes projetos...

na agricultura e da agricultura familiar. A preocupação com a diversificação e o equilíbrio geográfico das atividades econômicas nos parece ser apenas retórica, já que a visão que norteia a planificação do desenvolvimento estadual é pautada no estímulo às “vocações regionais”. O equilíbrio geográfico proposto pelo plano é segundo equiparação de regiões, desvalorizando as demandas locais e regionais. E ainda, a promoção das políticas ambientais de proteção e re-cuperação de biomas e ecossistemas não se aproxima de uma prática agrícola integrada e sustentável, ficando limitada ao incentivo para a produção de “bio-combustíveis” (agrocombustíveis) e “reflorestamento” (monocultura industrial de árvores), com foco na indústria.

Destacamos que a idéia de “vocação regional” aparece para regionali-zar os investimentos nas áreas que historicamente foram “esquecidas” no pro-cesso de desenvolvimento, mas que, diante de suas “aptidões” e “potenciais”, normalmente naturais, precisam ser reintroduzidas na linha de tendência dos investimentos e interesses dos grandes projetos. Afinal, interiorizar uma con-cepção de futuro baseada na proposta da integração econômica é o primeiro passo para atrair novos atores econômicos e, portanto, novos interesses. Os investimentos nas áreas vocacionadas assim parece criar um novo ordenamen-to territorial para o Estado e uma proposta de zoneamento dos investimentos, onde o interior aparece acoplado aos ritmos da expansão dos projetos e da visão estratégica do Estado.

O legado do governo e as entregas prioritárias para a sociedade são os resultados que se espera alcançar ao final dos quatro anos de mandato. O plano lista nove Áreas de Resultado da Estratégia do governo (entre segurança, saúde, desenvolvimento social e econômico, cultura, esporte, etc), e em apenas uma delas o espaço agrário fluminense é citado. Sendo tratadas de forma específica apenas no que tange à questão da sustentabilidade ambiental, as áreas rurais fluminense poderão sofrer intervenções para recuperar passivos ambientais vi-sando tanto o turismo como a produção de agrocombustíveis, mas também a produção de madeira plantada em escala nunca antes vista. Para isso, é esperado também como resultado do plano um aumento da agilidade e efetividade dos licenciamentos ambientais. Em nenhum momento o plano se refere à pequena produção agrícola ou trabalho familiar, sendo atividades desconsideradas para as políticas de sustentabilidade ambiental – que não são assistidas em suas ne-cessidades e pela política pública - em favor da grande agricultura para a pro-dução de combustíveis. Já defendemos, e insistimos, que uma reforma agrária pautada em princípios agroecológicos pode ser um dos principais indutores de uma política ambiental e socialmente sustentável, que gere alternativa de renda,

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Terra Livre - n.36 (1): 19-42, 2011

distribua riqueza e alimentos saudáveis, preservando e recuperando os princi-pais biomas brasileiros.

Além destes direcionamentos, a estratégia específica levou em conta in-dicações de uma pesquisa qualitativa realizada por meio de entrevistas com 104 participantes. Nessa pesquisa, os principais aspectos de estratégia apontados pelos entrevistados foram a criação e aperfeiçoamento de infra-estrutura e ser-viços públicos e apoio à cadeia de negócios. Outro insumo relevante para o estabelecimento de premissas foi uma oficina com especialistas que destacou duas questões: a redução na ênfase em incentivos fiscais e a redução dos custos de transação aos investimentos.

Com relação aos incentivos fiscais, o Plano defende que este não é o instrumento mais adequado de atração de investimentos e está perdendo rele-vância para outros fatores e sustenta que devem ser transparentes e criados por estratégias de governo, não por demandas de empresas.

A nova estratégia de promoção de investimentos do Estado do Rio de Ja-neiro está baseada no mapeamento e apoio a setores considerados estratégicos de acordo com a perspectiva das “vocações regionais”. Tal priorização de “fa-tores estruturais” pode ser interpretada como uma medida de limitação do foco de investimentos e auxílio às atividades econômicas diversificadas, restringindo a pluralidade econômica das regiões fluminenses em função das “vocações re-gionais”, discurso muito utilizado em tempos de maior inserção do país na eco-nomia global. Cristaliza-se assim uma divisão territorial do trabalho limitada.

No sentido empregado pelas “vocações”, o que está em jogo é o proces-so combinado de especialização da matriz produtiva e econômica das regiões do Estado e o fortalecimento das cadeias produtivas que já estão integradas em circuitos econômicos mais dilatados, quais sejam os mercados nacionais e in-ternacionais. As recomendações de estudos como o Zoneamento Econômico--Ecológico do Estado do Rio de Janeiro elaborado pela COPPE/UFRJ são fundamentais neste processo.

Para a realização do plano foram elencados mais de quarenta projetos estratégicos, sendo treze considerados estruturantes, entre eles, o Arco Metro-politano e o saneamento das bacias da Baía de Guanabara. Mais uma vez fica evidente a visão limitada do poder público no que se refere ao espaço agrário fluminense, apenas um projeto é direcionado diretamente à agricultura familiar e limitado a somente uma região específica do Estado: o projeto “Rio Rural” ou Projeto Microbacias financiado pelo GEF-Bird (Fundo Global de Meio Am-biente do Banco Mundial).

A população beneficiada por este projeto estratégico serão os agriculto-

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Grupo de Trabalho de assuntos agrários Os grandes projetos...

res familiares do Norte e Noroeste Fluminense. O objetivo do projeto é pro-mover a autogestão sustentável de bacias hidrográficas por comunidades rurais, provendo incentivos à adoção de práticas de manejo sustentável de recursos naturais e contribuindo para a redução das ameaças à biodiversidade, a rever-são do processo de degradação de terras e o aumento dos estoques de carbono na Mata Atlântica. Este projeto, da maneira como foi concebido se alinha aos objetivos de promover o reflorestamento de áreas degradadas com o plantio de eucalipto, tanto para obtenção de créditos no mercado de carbono como para a produção de celulose. A área reservada para tal projeto já vem sofrendo com a entrada de empresas dessa natureza, que vêm expandindo suas plantações de eucalipto para além das divisas dos estados vizinhos do Espírito Santo e Minas Gerais.

Deste modo, o que fica realmente nítido é que estamos diante de um novo padrão de investimentos que busca na interiorização do desenvolvimento as “condições ótimas” para a integração econômica jamais vista no estado. As cadeias produtivas que (des)aquecem as economias regionais, certamente serão integradas e reordenadas aos objetivos do novo “projeto estratégico”.

Destaca-se que o porte e a natureza dos empreendimentos planejados pelo Estado (Ver Quadro 1 em Anexo) só terão condições e viabilidade eco-nômica, se o fluxo de mercadorias, produtos e serviços forem emplacados na concepção de “economias de escala”, onde a matriz tecnológica e produtiva se alinham na direção das especializações econômicas e na uniformidade dos processos de produção, ou seja atingem setores da economia de amplo porte instalado e de investimentos.

O sentido da reestruturação produtiva em curso no Rio de Janeiro é transformar o nosso estado em uma das principais plataformas de bene-ficiamento (processo industrial que agrega o mínimo de valor a matérias primas, necessário a sua comercialização) e exportação de Commodities do país (produtos primários negociados no mercado internacional. No caso do Rio de Janeiro, petróleo, minério de Ferro, celulose e etanol). E pretende, ao mesmo tempo, reorganizar a cidade do Rio de Janeiro para que ela possa ser vendida ao mundo como um centro especializado em serviço de alto valor agregado (no caso: Turismo, Gestão de Negócios e Inovação). (MESENTIER, 2010: 2)

Mesentier destaca como principais vetores desta reorganização a cons-trução do Arco Metropolitano que irá ligar o Porto de Sepetiba ao pólo petro-

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químico de Itaboraí, a reforma do Galeão (para sua posterior privatização), a duplicação da Rio-Santos, a reativação de ferrovias que ligam o conjunto de Portos com a malha ferroviária em funcionamento e a construção do trem bala que irá ligar o Rio de Janeiro a São Paulo, mudando todo o funcionamento do Centro do Rio.

Trata-se, portanto de um novo ordenamento territorial e econômico que justifica o “estratégico” na concepção do Plano, qual seja integrar as regiões e suas “vocações” num projeto único de futuro, potencializando o desenvol-vimento em escalas jamais vistas. E neste processo, a agricultura familiar e a própria produção diversificada de alimentos se vêm diante de uma enorme bifurcação, sobretudo pelas intenções de estimular a produção de agrocom-bustíveis e celulose de eucalipto que, diga-se de passagem, são projetos que excluem a categoria alimento de seus objetivos, uma vez que são direcionadas aos mega-empreendimentos.

A população fluminense vem sendo afetada por essa política que favore-ce os Grandes Projetos, a qual beneficia uma parca minoria e o grande capital nacional e transnacional e como veremos a seguir impacta fortemente o espaço agrário Fluminense, sobretudo no que diz respeito à segurança alimentar e a política de reforma agrária.

UM BREVE BALANÇO DA AGRICULTURA E DA POLÍTICA AGRÁRIA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NAS ÚLTIMAS DÉCADAS

O estado do Rio de Janeiro sofreu nos últimos anos a continuidade do processo de esvaziamento do meio rural, a ampliação da concentração fundi-ária e a redução da importância da agricultura, seja em relação à produção, à área e, principalmente ao emprego, o que Ribeiro et all. (2002) denominaram desagriculturalização. As tabelas abaixo evidenciam tal processo.

A Tabela 1 revela a redução do número de estabelecimentos e da área dos mesmos entre os Censos de 1985 e 2006, embora com ligeiro aumento entre 1995 e 2006, o que pode ser explicado pela alteração da metodologia da coleta de dados no Censo de 1995/19962. O mesmo pode ser verificado em relação às lavouras e pastagens, embora em maior proporção no caso das lavouras, o

2 Os Censos de 1970, 1975, 1980, 1985 e 2006 tomaram por base o ano civil, enquanto o Censo de 1995/1996 baseou-se no ano agrícola o que acarreta a necessidade de certos cuidados na comparação entre os dados dos mesmos, pois muitos estabelecimentos de caráter temporário (sobretudo de parceiros e arrendatários) podem não ter sido recenseados em 1995/6. Assim, para efeitos de verificação de uma série histórica a comparação mais adequada se dá entre os Censos de 1970, 1975, 1980, 1985 e 2006.

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que deve-se à recente recuperação da produção de cana no estado. Também no caso das matas e florestas ocorre a redução entre 1985 e 2006, com oscilação em 1995/1996, indicando o avanço do desmatamento.

Já no que se refere ao pessoal ocupado o que se verifica é uma queda paulatina após 1985, depois de um crescimento linear entre 1970 e 1985. Vale registrar que entre 1985 e 2006 a queda é superior a 50%, muito superior à redução observada no país no período. Grande parte desta redução pode ser atribuída à crise da produção canavieira, principal cultura estadual na segunda metade do século XX, mas, reflete também a eliminação de estabelecimentos agropecuários e a pecuarização dos restantes.

Finalmente, a Tabela revela que o processo de pecuarização não tem se traduzido em aumento expressivo do efetivo animal e da produção de carne e leite, explicitando o caráter especulativo desta atividade, voltada fundamen-talmente para mascarar a improdutividade da terra, evidenciado pela reduzida média de 1,25 bovinos por hectares. A redução no plantel de suínos, caprinos e aves e na produção de ovos reforça a interpretação de enfraquecimento da agropecuária fluminense.

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Já os dados da Tabela 2 são eloqüentes na caracterização da crise da agri-cultura fluminense, pois, em termos de produção houve redução em todas as lavouras entre 1985 e 2006, com exceção do tomate e da mandioca.

Analisemos mais detidamente este quadro da desagriculturalização do es-tado do Rio de Janeiro, a partir da comparação de cinco produtos: cana, tomate (principais culturas comerciais do estado) e arroz, feijão e mandioca (principais culturas alimentares).

A DESAGRICULTURALIZAÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

A principal cultura agrícola realizada no estado do Rio de Janeiro, a cana--de-açúcar, não escapou ao processo de regressão da agricultura no estado ve-rificado ao longo das três últimas décadas, em que pese relativa recuperação verificada nos últimos anos.

A área plantada de cana no Brasil cresceu 12% entre 1990 e 2000 e 73% entre 2000 e 2009, num total de 103,2% entre 1990 e 2009. Já no Rio de Janeiro houve uma redução de 34,7% entre 1990 e 2009. A região Norte Fluminense que tradicionalmente concentra a produção de cana no estado (90,1% em 1990 e 88,1% em 2009), apresentou queda de 36,2% na área plantada entre 1990 e 2009.

Em Campos dos Goytacazes, município com maior área plantada do es-tado do Rio e segundo do Brasil, a queda foi ainda maior, da ordem de 37%, de forma que a participação de Campos no total da produção estadual se reduziu de 56,7% em 1990 para 54% em 2009.

No que se refere à área colhida o quadro é praticamente o mesmo da área

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plantada, embora seja digno de registro que em 1990 a área plantada no estado e no Norte Fluminense era ligeiramente superior à colhida, o que já não ocorria nesta época em Campos e vai se repetir em 2009 também no estado e na região, isto é, a igualdade entre área plantada e área colhida.

A produção de cana no Brasil cresceu 24% entre 1990 e 2000 e 103% entre 2000 e 2009, num total de 155% entre 1990 e 2009. Já no Rio de Janeiro houve crescimento de 27% entre 1990 e 2000 e redução de 7% entre 2000 e 2009, resultando num crescimento de apenas 16,3% entre 1990 e 2009. A região Norte Fluminense que tradicionalmente concentra a produção de cana no estado (83,6% em 1990 e 88,5% em 2009), apresentou crescimento de 40% entre 1990 e 2000 e queda de 10% na produção entre 2000 e 2009, resultando entre 1990 e 2009 num aumento de apenas 23%.

Em Campos dos Goytacazes, maior município produtor do estado do Rio, houve crescimento de 41% entre 1990 e 2000 e redução de 11% entre 2000 e 2009, resultando em crescimento de apenas 26% no período 1990-2009. As-sim, a partcipação de Campos na produção estadual de cana elevou-se de 52% em 1990 para 58% em 2000, mas recuou para 56% em 2009.

A retomada da produção de cana-de-açúcar foi objeto nos últimos anos de seguidas notícias, sobretudo na imprensa da região Norte, onde essa cultura é historicamente dominante, apontando investimentos novos de grupos locais e valorização das terras em função do interesse de investidores nacionais e es-trangeiros.

Reportagem do Jornal Monitor Campista de 07/08/06 informa acerca da instalação de uma nova usina de cana-de-açúcar, do Grupo Benco, em Bom Jesus do Itabapoana, investimento inicial de R$ 120 milhões, 5 mil empregos diretos e indiretos e produção anual de 1 milhão de toneladas de cana. Outra reportagem, esta do Jornal Valor Econômico de 01/06/07, denominada “Cana faz preço da terra superar nível dos “anos da soja” no país” aponta um au-mento do preço da terra no estado do Rio de Janeiro (atribuído diretamente à cana) da ordem de 26% entre julho de 2006 e julho de 2007, mais que o dobro da média nacional que foi de 11,64%. Uma terceira reportagem, de 17/06/07,

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aponta um crescimento do preço da terra em Campos da ordem de 46%, atin-gindo R$ 80 mil o alqueire, além do interesse de grandes investidores/especu-ladores como Naji Nahas, Armínio Fraga, Jorge Paulo Lehman, Daniel Dantas e Gustavo Franco, sendo muitos deles representantes de fundos estrangeiros. A mesma reportagem informa que a prefeitura de Campos, através dos royal-ties do petróleo, criou o Fundecana para fomentar a produção no município e já foram liberados R$ 5 milhões para 12 produtores rurais, dos 210 inscritos. Finalmente, reportagem do Jornal do Brasil de 13/11/07 prevê o aumento do número de Usinas no estado do Rio de Janeiro das atuais 8 para 23, com a produção passando de 9 milhões de toneladas para 15 milhões em seis anos.

Por outro lado, episódios recentes apontam na direção contrária, isto é, indicam uma nova onda de crise no setor sucroalcooleiro, uma vez que em 2010 duas usinas do grupo Othon (Barcelos e Cupim) faliram, a Usina Sapucaia fe-chou e a usina Santa Cruz, pertencente à Companhia Brasileira de Açúcar e Ál-cool, do Grupo J. Pessoa, de propriedade do maior usineiro do país, o notório José Pessoa de Queiroz Bisneto, que fora arrendada há 5 anos, foi desativada.

Assim, o que se evidencia é um quadro geral de crise na principal lavoura estadual, com efetiva redução da área plantada quando consideramos o período 1990-2009, o que reforça a tese da desagriculturalização.

O segundo produto agrícola mais importante do estado do Rio atual-mente é o tomate e a análise referente à produção deste também aponta para uma redução na área plantada, mas indica um aumento na quantidade produzi-da, o que significa dizer que houve um aumento de produtividade nesta cultura.

Em 1990 havia 3.023 ha plantados no estado, resultando numa produção de 142.214 toneladas, ao passo que em 2009 a área plantada caiu para 2.798 ha, mas a produção atingiu 216.297 toneladas. Assim, a produtividade subiu de 47t/ha para 77t/ha, um aumento bastante expressivo.

A participação da produção fluminense de tomate em relação à brasilei-ra decresceu, pois o Rio tinha 4,9 da área em 1990 e caiu para 4,1% em 2009 e a produção que era de 6,3% caiu para 5% em 2009. Porém, em relação ao Sudeste houve crescimento na área de 11,8 em 1990 para 12,3% em 2009 e na produção de 13% em 1990 para 13,9 % em 2009.

Do ponto de vista da distribuição regional da produção, tanto em rela-ção à área plantada quanto à produção, a região Metropolitana do RJ (RMRJ) liderava em 1990, posto que passa a ser ocupado pelo Noroeste Fluminense em 2009, concentrando 46,8% das área e 50,9% da produção. Vale dizer que a RMRJ ocupa hoje apenas o terceiro lugar em termos de área plantada e produ-ção, tendo sido ultrapassada também pelo Norte Fluminense.

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O principal município produtor em 1990 era Paty do Alferes, seguido por Cambuci, tanto em termos de área quanto de produção, mas em 2009, as maiores áreas plantadas encontravam-se em Cambuci e São José do Ubá, am-bos com 400 ha. Já em termos de produção, Cambuci superava Ubá, com 36 mil contra 32 mil toneladas.

Se o quadro em relação à cana e ao tomate pode ser considerado contro-verso, haja vista que a produção aumentou, apesar da redução da área ocupada por estas culturas, quando analisamos as culturas alimentares como arroz, fei-jão e mandioca não resta qualquer dúvida quanto à desagriculturalização.

No caso do arroz, o estado do Rio de Janeiro é responsável por apenas 2,8% da área plantada e 4% da produção da região Sudeste e por apenas 0,08% da área plantada e 0,06% da produção nacional. A área plantada de arroz caiu de 23.390 ha para 2.207 ha entre 1990 e 2009 e a produção reduziu-se de 43.084 t para 7950 t no mesmo período, isto é a área plantada caiu 10 vezes e a produ-ção diminui 6 vezes.

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Dentre as Mesorregiões do Estado do Rio de Janeiro, o Noroeste Flumi-nense concentra a produção de arroz, com 82,5% da produção e 82% da área plantada. Chama atenção o caso das Baixadas Litorâneas que tinha 12% da área plantada e 26% da produção em 1990 e hoje não tem mais qualquer plantio de arroz.

Quanto ao feijão a área plantada em relação ao Sudeste era de 1,5% em 1990 e caiu para 0,86% em 2009 e em relação ao conjunto do país era de 0,3% em 1990 e caiu para 0,12%. No que diz respeito à produção, a queda foi ainda maior, pois a participação na produção da região Sudeste caiu de 1,6% em 1990 para 0,53% em 2009 e em relação ao conjunto do país caiu de 0,46% em 1990 para 0,14% em 2009.

Em números absolutos, a área plantada com feijão no estado cai de 15.601 ha em 1990 para 5.181 há em 2009, enquanto que a produção recua de 10273 t em 1990 para 4.853 t em 2009, isto é, a área plantada sofre redução de 66,8% e a produção de 42,8%.

Na produção de feijão, a Mesorregião que se destaca em 2009 é o Noro-este Fluminense, com 40,5% da área plantada e 38,2% da quantidade produ-zida, seguido pelo Centro Fluminense, com 21,7% da área e 22,9% produção. Isto representa uma mudança em relação a 1990, quando o Centro e o Norte Fluminense eram as duas principais regiões produtoras de feijão no estado do Rio.

A análise acerca da produção de mandioca no estado do Rio de Janeiro aponta um total de 195.216 toneladas produzidas em 12.313 ha no ano de 1990, contra 130.564 toneladas em 9.539 ha no ano de 2009, o que significa uma redução de 33,2% na produção e 22,6% na área plantada. A maior parte da produção estadual em 1990 se concentrava na Região Norte Fluminense

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(36,3% do total) e secundariamente na Região Metropolitana (34,8% do total). Já no que se refere à área plantada a Região Metropolitana destacava-se com 39,5% do total, seguido do Norte Fluminense com 30,1% do total. Em 2009, por sua vez, a Região Metropolitana concentrava 42,8% do total da produção e a participação da Região Norte caiu para 35% do total, ao passo que em relação à área plantada a RMRJ concentrava 42,4% e o Norte Fluminense 35,7%.

Os dois principais municípios produtores de mandioca no estado do Rio são a capital Rio de Janeiro e São Francisco de Itabapoana, respectivamente com 13,7% e 18,7% da área plantada e 16,1% e 17,9% da quantidade produzida em 20093.

O que estes dados sobre a produção agrícola no Rio revelam é a insegu-rança alimentar crescente da população fluminense, cada vez mais dependente da importação dos alimentos básicos de outros estados ou países, o que é re-sultado de um modelo agrário concentrado no latifúndio improdutivo e de um modelo de urbanização concentrador de gente e miséria nas periferias urbanas, não só da RMRJ, mas hoje também das médias cidades do interior fluminense.

OS CONFLITOS PELA TERRA E A POLÍTICA DE REFORMA AGRÁRIA NO RIO DE JANEIRO

A análise dos conflitos pela terra no Rio de Janeiro a partir de meados do século XX indica a existência de duas fases distintas: a) nas décadas de 1950 a 1970 predominam processos de expulsão de trabalhadores da terra, em função

3 Na série histórica da PAM é São João da Barra que aparece na liderança em 1990, mas isto se explica porque a emancipação de São Francisco só aconteceu em meados dos anos 1990. Na realidade a produção de mandioca do antigo município de São João da Barra concentrava-se na área correspondente hoje ao município de São Francisco.

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da expansão urbana da metrópole carioca que se reflete na ocupação das áreas das Baixadas da Guanabara e de Sepetiba anteriormente destinadas à agricul-tura; e aos processos de valorização das terras das regiões das Baixadas Lito-râneas e da Baía da Ilha Grande, em função das atividades ligadas ao turismo, amplamente facilitadas pela construção de grandes obras viárias como a Ponte Rio-Niterói e a BR-101, seja no sentido Sul (Rio-Santos), seja no sentido Norte (Rio-Campos) e também da criação de unidades de conservação4; trata-se, por-tanto, de conflitos em que os trabalhadores tentam resistir ao avanço do capital imobiliário sobre suas terras; b) nas décadas de 1980 a 2000 predominam os conflitos decorrentes de ocupações de terra, seja nos anos 1980 nas Baixadas da Guanabara e Sepetiba, resultante da ação de grupos de trabalhadores de-sempregados, subempregados e mal aposentados residentes no Grande Rio que buscam na ocupação das terras semi-abandonadas da franja metropolitana a solução para o problema de moradia e alimentação; seja nas décadas de 1990 e 2000, resultante das ações capitaneadas pelos Movimentos Sociais Rurais, em especial o MST, que se aproveitam, sobretudo, das falências no setor sucroalco-oleiro do estado, para empreender ocupações nas terras das usinas, através da mobilização dos antigos trabalhadores, muitos dos quais haviam ficado desem-pregados e sem receber seus direitos trabalhistas; é em função disso que nos últimos anos, o Norte Fluminense foi o principal palco das lutas pela terra no estado do Rio de Janeiro, em especial o município de Campos dos Goytacazes, conforme o mapa abaixo.

4 A relação entre criação de unidades de conservação e a expulsão de trabalhadores do campo será objeto de análise em textos posteriores.

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Já a análise da política de reforma agrária levada a cabo pelo Incra-RJ nos últimos anos revela a conivência do órgão com a perpetuação da concentração fundiária e da improdutividade das terras no estado. A análise das Metas pre-vistas no Plano Regional de Reforma Agrária (PRRA-RJ), comparadas com o que foi realizado no período, indica que o total de famílias assentadas ao longo de todo o período 2003-2006, 1344 famílias, não chega a atingir a meta prevista para o ano de 2003 e significa menos de 5% do total previsto. Entretanto, o quadro é ainda pior, pois este dado bruto (1344 famílias) inclui 410 famílias assentadas em antigos assentamentos e 251 famílias assentadas em áreas do governo estadual que foram reconhecidas pelo Incra para fins de liberação de créditos. Assim, apenas 683 famílias (pouco mais da metade do total) foram assentadas em novas áreas obtidas pelo Incra no período.

Há uma gigantesca defasagem entre as metas e o realizado o que indica a fragilidade da política de reforma agrária levada a cabo pelo governo Lula, especialmente, mas não exclusivamente, no Rio de Janeiro. As explicações para tal fato nos remetem a pelo menos três conjuntos de fatores: (1) No plano geral

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da política agrária do governo Lula impera uma lógica de concentrar os assen-tamentos na fronteira amazônica, onde as terras são mais baratas, ou públi-cas, permitindo assentar um número maior de famílias a custos reduzidos5; (2) Na superintendência do Incra do Rio de Janeiro houve forte descontinuidade político-administrativa, com a nomeação de três diferentes superintendentes ao longo dos quatro anos de gestão do primeiro governo Lula, cada um apoiado por uma força política diferente; (3) A desestruturação administrativa e opera-cional do Incra-RJ jamais foi revertida ao longo de todo este período, com re-duzido número de funcionários, um quadro funcional envelhecido e viciado em práticas que mais entravam que fazem avançar as ações previstas no PRRA-RJ.

Durante o período de vigência do II PRRA, foram criados 13 assenta-mentos. De acordo com o Incra, em 2005 foram criados 7 projetos de assen-tamento, mas na avaliação dos movimentos sociais, apenas duas destas áreas (Dandara e Celso Daniel) podem ser consideradas efetivamente assentamentos, uma vez que as famílias (213) já estão distribuídas pelos lotes e receberam os primeiros créditos. Nos demais casos já se estende por vários anos a fase de pré-assentamento, ou seja, a terra já está de posse do Incra, mas ainda não houve a distribuição das famílias pela área e a liberação dos primeiros créditos6.

O quadro em relação ao ano de 2006 é ainda mais discrepante, pois ao passo que o Incra afirma ter criado 6 projetos de assentamento com capacidade de assentamento de 256 famílias, os movimentos sociais avaliam que nenhuma dessas famílias pode ser considerada efetivamente assentada, uma vez que não receberam créditos nem houve a distribuição oficial pelos lotes.

Assim, enquanto o Incra afirma que criou 13 assentamentos com capa-cidade para assentar 699 famílias e assentou efetivamente 683, na avaliação dos movimentos sociais rurais somente dois assentamentos podem ser efetivamen-te considerados como tal e, portanto, apenas 213 famílias teriam sido assenta-das ao longo do período.

A comparação da meta de assentamentos previstos no II PRRA com o realizado pelo Incra revela uma expressiva distância entre o projetado e o atingido. Enquanto o II PRRA previa o assentamento de 15 mil famílias no

5 Vale dizer que a denominação conceitual mais precisa para designar o assentamento de famílias em terras públicas é colonização, bem como o assentamento em lotes já existentes e que se encontravam va-zios é reassentamento e o reconhecimento de famílias que já viviam em áreas de assentamentos estaduais ou de posse é regularização fundiária. Infelizmente, como instrumento de propaganda o governo tem confundido estes números e divulgado-os todos juntos.

6 Em alguns casos as famílias se espalharam pela área por conta própria, sem a realização pelo Incra dos processos de divisão e demarcação dos lotes, sendo, portanto, uma situação provisória e não oficial. Há casos em que a demora está fazendo as famílias desistirem, dadas as dificuldades de sobrevivência.

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período, foram assentadas apenas 683, segundo os dados do próprio Incra, o que é inferior ao previsto para o primeiro ano do Plano e corresponde a meros 4,5% da meta. Se tomarmos como base a avaliação dos movimentos sociais rurais o percentual seria ainda mais reduzido: 1,4%. Vale lembrar que nos dois primeiros anos do II PRRA nenhuma família foi assentada no Rio de Janeiro.

O que a análise indica é que persiste a lógica apontada por Fernandes (2000), segundo o qual as intervenções do Incra se dão à reboque da ação dos movimentos sociais rurais. No caso do estado do Rio de Janeiro isto é absolu-tamente verdadeiro, pois todas os assentamentos criados o foram em áreas ocu-padas pelo MST (7 áreas) ou pela FETAG (6 áreas), ao passo que ainda havia, em 31/12/2006, 38 acampamentos com 2012 famílias no estado do Rio de Ja-neiro, o que representa quase o triplo dos assentamentos criados e das famílias assentadas no período 2003-2006. Vale dizer que 5 destes acampamentos pos-suem mais de 5 anos, ou seja, são anteriores à própria elaboração do II PRRA.

A comparação entre os dados de assentamentos e acampamentos forne-cidos pelo próprio Incra revela uma estranha curiosidade: há 7 áreas incluídas nas duas listas.

O que poderia representar uma incongruência entre os dados indica na realidade uma situação concreta: entre a decretação da criação do Projeto de Assentamento (PA) pelo Incra e sua concretização com a liberação dos pri-meiros créditos, a elaboração do Plano de Desenvolvimento do Assentamento (PDA) e o parcelamento da área, decorre um longo período, em que, na prática, as famílias permanecem acampadas, embora oficialmente consideradas assenta-das. Se estas áreas e famílias fossem abatidas do total de acampamentos passa-ríamos a ter 31 acampamentos e 1606 famílias acampadas o que representaria, respectivamente, mais que o dobro dos assentamentos criados e das famílias assentadas. Por outro lado, se excluirmos dos dados de assentamento as áreas ainda consideradas como acampamentos pelo próprio Incra teríamos apenas 6 assentamentos criados entre 2003 e 2006 e somente 340 famílias assentadas, o que representaria cerca de 1/6 dos acampamentos e famílias acampadas.

Do ponto de vista da distribuição espacial observamos 12 assentamentos foram criados na região Norte, 3 no Médio Vale do Paraíba, 2 no Noroeste e 1 nas Baixadas Litorâneas.

Ora, o que o conjunto destes dados revela é que o II PRRA não foi efetivado e a reforma agrária não deslanchou no Rio de Janeiro. Os dados re-lativos às vistorias realizadas durante o período ajudam a compreender alguns dos principais entraves ao avanço da reforma agrária no Brasil e, em especial, no Rio de Janeiro. Do total de 75 vistorias realizadas entre 2003 e 2006 apenas

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39% indicaram improdutividade e, portanto, os processos de desapropriação tiveram seguimento, índice inferior ao de vistorias cujo resultado foi produtiva, com o consequente arquivamento do processo. Vale dizer que cerca de 1/3 das vistorias realizadas em 2006 ainda não teve seu resultado concluído.

Apenas 18,7% das vistorias resultaram em decretação da desapropriação, enquanto 40% dos processos foi arquivado, a maioria em função do resultado da vistoria ter dado laudo indicando serem as áreas produtivas. Outros 12% correspondem a áreas que foram descartadas por problemas ambientais ou produtivos ao passo que 18,7% o foram por problemas administrativos, o que indica um elevado número de equívocos na condução do processo pelo Incra. Destaca-se ainda um significativo (5,3%) percentual de áreas cujo processo de desapropriação está entravado por problemas jurídicos.

Porém, o quadro torna-se ainda mais desanimador quando verificamos que apenas 3 assentamentos foram criados a partir das vistorias realizadas, ou seja, meros 4% do total, o que indica a morosidade do Incra em dar continui-dade aos processos de desapropriação.

Se a avaliação da reforma agrária no Rio de Janeiro no primeiro mandato do governo Lula aponta para um quadro de paralisia quase absoluta, o cenário do segundo mandato, por incrível que pareça, é ainda pior. Segundo dados do próprio Incra-RJ, em 2007 foram criados apenas 3 assentamentos, com capaci-dade para 110 famílias e foram assentadas mais 103 famílias em assentamentos antigos, perfazendo um total de 213 famílias. Já em 2008 foram apenas 2 as-sentamentos com capacidade para 60 famílias e outras 45 assentadoas em lotes recuperados em antigos assentamentos. E pior, em 2009 e 2010 não foi criado sequer um assentamento!

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Ou seja, o ritmo de criação de assentamentos caiu ainda mais em relação aos dois últimos anos do primeiro mandato do governo Lula e o assentamento de famílias em assentamentos antigos voltou a ganhar importância nas ações do Incra, retomando uma tendência do início do primeiro mandato. No cômputo geral são mais famílias assentadas em antigos PAs do que famílias assentadas em PAs criados durante o governo Lula.

Trata-se de inépcia e falta de vontade política em fazer avançar a reforma agrária no estado do Rio de Janeiro.

Assim, ao final dos dois mandatos do governo Lula, a promessa feita pelo presidente no seu primeiro ano de governo de que as famílias acampa-das seriam assentadas não foi cumprida. No Rio de Janeiro, havia em 2010 34 acampamentos com 1.484 famílias, quase o mesmo número de famílias ssenta-das entre 2033 e 3010 e quase o dobro da capacidade dos novos assentamentos criados ao longo do período.

Este quadro revela alguns dos principais entraves ao processo de reforma agrária no Brasil:

1. Os índices de produtividade que remontam aos anos 70 fazem com que muitas áreas vistoriadas sejam dadas como produtivas e, por outro lado, boa parte das que são enquadradas como improdutivas apresentam restrições ambientais e produtivas que levam os técnicos a não recomendar a desapropriação das áreas, o que resulta em um índice de vistorias frustradas superior ao de exitosas. Vale dizer que este quadro vem se agravando, chegando-se a um índice de 87% de vistorias com laudo produtivo em 2005, o que aponta para a o esgo-tamento das desapropriações no Rio de Janeiro se mantido o quadro atual.

2. Os mecanismos legais que protegem os proprietários de terra contra as desapropriações (como a notificação prévia das vistorias, o direito de contestar judicialmente a desapropriação, etc)7, somados à inter-pretação conservadora dada pelo poder judiciário à legislação, resul-tam num bloqueio judicial que entrava o avanço da reforma agrária no país. No caso do Rio de Janeiro, num caso extremo, um proprie-tário impediu a equipe técnica do Incra de realizar a desapropriação e

7 Interessante notar que estes procedimentos diferem dos que norteiam os processos de desapropriação de terras urbanas, pois neste caso, quando ao poder público interessa a desapropriação de uma área não há necessidade de notificação prévia, nem direito de contestação judicial. Quando uma prefeitura ou go-verno estadual ou federal decide realizar uma obra e para isso precisa derrubar uma casa ou desapropriar um terreno, ao proprietário só é dado o direito de contestar o valor da indenização, mas não de contestar a desapropriação em si.

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a justiça, normalmente ágil para decretar reintegração de posse após ocupações, está há cerca de um ano para ordenar judicialmente a realização da vistoria.

3. A morosidade e a ineficiência do Incra representam obstáculos adi-cionais, pois a média anual de vistorias no período 2003-2006 foi de apenas 18,75 por ano, ou seja, menos de 2 vistorias por mês. Essa inépcia atingiu seu auge em 2005 quando apenas 8 vistorias foram realizadas durante todo o ano. Este quadro é o resultado do suca-teamento material e funcional do órgão, carente de equipamentos, viaturas e pessoal. Revela também os problemas de descontinuida-de administrativa, pois durante os quatro anos do primeiro governo Lula, o Incra-RJ teve cinco Superintendentes, sendo dois provisórios, acumulando quase um ano de provisoriedade.

Assim, apesar das inovações conceituais e da alteração do discurso sobre a reforma agrária no governo Lula, o que se observa é a continuidade da lógica herdada dos governos FHC, com respostas pontuais às ações dos movimentos sociais rurais. Na realidade, a limitação da política de assentamentos em estados do Centro-Sul , como o Rio de Janeiro, reflete a decisão política do Governo Lula de não se confrontar com o agronegócio, ao contrário, apoiar seu desen-volvimento.

CONCLUSÃO

O conjunto dos dados e reflexões apresentados ao longo do presente texto nos permite concluir que o estado do Rio de Janeiro está diante de um novo cenário, marcado pela crescente presença de grandes empresas nacionais e transnacionais, com forte apoio institucional e financeiro estatal, articulado nas diferentes esferas de governo e com as principais organizações empresa-riais atuantes no estado, com destaque para a Firjan. Este cenário permite a re-alização de grandes blocos de investimento mediante a criação de novos pólos de desenvolvimento articulados entre si, envolvendo empreendimentos indus-triais, agroindustriais e obras de infraestrutura e logística.

O que está em andamento é o aprofundamento de um modelo de desen-volvimento intensivo em capital e energia que gera poucos empregos e promo-ve forte degradação ambiental.

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“...enquanto a taxa de crescimento médio do PIB do Estado do Rio de Janeiro nos últimos anos foi de 5,3% ao ano, a taxa de crescimento médio dos empregos no estado do Rio de Janeiro foi menor que 1% ao ano. Percebe-se, claramente, que o nível de emprego não acompanha a taxa de crescimento do PIB. Isso se deve pelo fato desses novos investimentos serem super intensivos em capital e empregarem muito pouco. E, muitas vezes, devido ao nível de qualificação desses empregos, essas vagas não são absorvidas localmente. Outro aspecto importante é que embora a in-dústria da transformação no Rio de Janeiro responda por 40,8% do PIB, só absorve 10% da força de trabalho.” (MESENTIER, 2010: 4)

Os principais atores sociais e conflitos potenciais, que estes grandes em-preendimentos podem causar, foram mapeados pelas empresas, junto a ins-tituições públicas e privadas de pesquisa, numa clara postura de antecipação para evitar problemas. Como estratégia de desmobilização social as empresas procuram resolver individualmente cada questão potencialmente conflituosa, fazendo diagnósticos socioeconômicos e ambientais, para melhor definir sua política de aquisição (compra) de terras e de projetos sociais nas áreas impacta-das. Tal postura tem se mostrado eficiente, e se refletiu na nossa dificuldade de identificar e investigar tais conflitos.

A própria política de investimentos do estado brasileiro tem apostado neste cenário, ao reduzir significativamente o orçamento da união para os pro-jetos da reforma agrária. O corte nos recursos do MDA (Ministério do Desen-volvimento Agrário) para o ano de 2011 chegou próximo dos R$ 930 milhões, que representam quase 30% do total previsto para o ministério (R$ 3,3 bilhões). Enquanto que para estabilizar os títulos da dívida pública (pagamento de juros) o governo prevê um gasto de R$ 117,9 bilhões, recurso que certamente resol-veria a questão da concentração fundiária e da democratização da terra.

“(...) O corte de recursos para a reforma agrária pode sinalizar aos ru-ralistas e grileiros de terras que o governo está rifando a questão agrária como seu objeto de preocupação e dá sinais de que desconhece o po-tencial das políticas publicas de acesso a terra. Neste sentido, há uma in-congruência entre a disposição do governo em erradicar a pobreza e não garantir a segurança alimentar do país. Para que isso ocorra o governo tem que aumentar os recursos e a infraestrutura que sirva à agricultura familiar e aos assentamentos de reforma agrária. (...) Há uma demanda reprimida de 250 mil famílias acampadas esperando serem assentadas. De

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acordo com os cálculos (desapropriação, créditos iniciais, entre outros procedimentos) para assentar uma família custa cerca de R$ 30 mil. Dessa forma, o Estado teria que disponibilizar um montante de recursos de R$ 7,5 bilhões para resolver essa demanda imediata” (VIGNA e BICALHO, 2011).

No campo fluminense o que se observa como decorrência disto é a in-

tensificação dos processos de expropriação do campesinato e a paralisia da política de reforma agrária, o que implica o aprofundamento da dependência do estado da importação de alimentos, uma vez que as terras são cada vez mais destinadas à expansão urbano-industrial ou à produção de monoculturas indus-triais, como o eucalipto para a celulose e a cana-de-açúcar para etanol.

Assim, o desafio para os movimentos que atuam no campo fluminense aparece como redobrado, pois não se trata mais de enfrentar antigos coronéis ou usineiros falidos, mas grandes grupos econômicos com fortes articulações políticas.

BIBLIOGRAFIA

MESENTIER, Allan. A Estratégia do Capital no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: mimeo, 2010.RIBEIRO, Ana Maria Motta, PRATA Fº, Dario de Andrade de, PEREIRA, Mônica Cox de Britto &MADEIRA Fº, Wilson. Laudo multidisciplinar e termo de cooperação técnica para convivência harmoniosa de assentamentos rurais no entorno da Reserva Biológica de Poço das Antas. Niterói, Silva Jardim e Casemiro de Abreu: UFF/MMA/MDA, 2002.RIO DE JANEIRO, Governo do Estado. Plano Estratégico do Governo do Estado do Rio deJaneiro 2007-2010. Rio de Janeiro: 2007. Também disponível em: http://www.planejamento.rj.gov.brVIGNA, Edélcio & BICALHO, Lucídio. Reforma Agrária é atingida pelo corte orçamentário. Brasília: mimeo, 2011.

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Artigos

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DO ESPAÇO DA MAIS VALIA ABSOLUTA AO ESPAÇO DA MAIS VALIA RELATIVA: OS ORDENAMENTOS DA

GEOGRAFIA OPERÁRIA NO BRASIL1

WorKING CLaSS GEoGraPHY aNd CaPITaLISM SPACIAL REORDINATION IN BRAZIL

EL ESPACIO DE LA PLUSVALOR ABSOLUTO EL ESPACIO DE PLUSVALOR RELATIVO: LAS

ORDENACIONES ESPACIALES DE LA GEOGRAFIA OBRERA EN EL BRASIL

1 Este texto corresponde a um capítulo intermediário entre o penúltimo e o último capítulos do livro Sociedade e espaço geográfico no Brasil, publicado pela Editora Contexto no ano de 2011, deixado então como uma lacuna, que o leitor pode assim acrescentar.

Resumo: O Brasil é um país industrializado recente. Sua base histórica é a relação terra-

território-Estado, que até hoje persiste, definindo a natureza de sua estrutura global. E este

todo é a base de referência da geografia operária brasileira, sua estrutura e evolução.

Palavras chave: Organização espacial; relações estruturais; movimento operário

Abstract: Brazil is a new industrialized country. Its historical global structure is based on land-

territorry-State relashionship. And this past general relation is brazilian cultural, economy,

political and social base of the base today. And this space organization is de basis of your

working class, its structural relations and evolution.

Keywords: spacial organization; structural relations; working geography

Resumen: Brasil es un país industrializado recientemente. Su base histórica es la relación,

tierra, el territorio y el Estado, que persiste hasta nuestros días, la definición de la naturaleza de

su estructura general. Y todo esto es la base de la geografía brasileña de trabajo, su estructura

y evolución.

Palabras clave: Organización espacial; estructural; movimiento obrero

RUY MOREIRAAGB - Seção Local Niterói e Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.45-68 Jan-Jun 2011

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Do espaço da mais valia...MOREIRA, R.

Dois momentos distinguem a formação do espaço capitalista no Brasil, materializados em duas formas distintas de arranjo espacial, o da mais valia absoluta e o da mais valia relativa, que alhures designei o espaço molecular e o espaço monopolista, respectivamente (Moreira, 1985).

O espaço da mais valia absoluta se identifica pelas interações espaciais ainda frouxas, marcadas por ensaios parciais de integração dentro de um todo estruturado pela ordenação mais de ocupação extensiva, seja na cidade e seja no campo, face uma relação de integração indústria-agricultura, e então cidade--campo, ainda inicial e pouco verticalizada. Já o espaço da mais valia relativa se identifica pelo estado oposto, de uma relação indústria-agricultura de integra-ção horizontal-vertical realizada e em crescente aprofundamento à base de uma ocupação intensiva seja do tempo do trabalho e seja do espaço tanto na cidade quanto no campo, com reflexos globais sobre o todo.

Esses dois momentos da formação espacial enquadram dois momentos de geografia operária, igualmente dispersa no primeiro e concentrada no segun-do. A geografia operária acompanhando a geografia da indústria, sua repartição espacial, arranjo, ideologia e representação de mundo, modelada, todavia, no quadro social e simbólico do todo urbano da cidade.

O sentido evolutivo do espaço brasileiro caminha, assim, da dispersão para a integração nacional crescente, que marca a passagem da fase molecular da mais valia absoluta para a integrado-concentrada da mais valia relativa. E que hoje se rearruma num retorno do arranjo disperso de antes, agora porém a serviço de autopreservação de um todo já integrado, num movimento vertical--horizontal de centralização-desconcentração chamado reestruturação espacial que tem lugar nos anos 1970-1980.

A RELAÇÃO DO ESPAÇO E A FORMA-VALOR

Trata-se da tradução espacial dos momentos que Mandel designou fases do capitalismo atrasado e capitalismo avançado seguidas por todos os países enquanto expressões dos respectivos desenvolvimentos da base de mercado e das forças produtivas (Mandel, 1972) em seu processo acumulativo. Do modo como o capital se serve em sua relação de expropriação do excedente operário em vista de organizar seu movimento de mando e realizar sua reprodução em escala ampliada.

O problema dessa relação é como o capital estruturar a seu favor a divi-são da jornada do trabalho em dois segmentos de tempo distintos, o tempo do trabalho necessário, dedicado à geração dos meios que garantam a reprodução

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da força do trabalho, expresso na forma do salário (cv), e o tempo do trabalho excedente, expresso na forma do lucro (l), de modo a daí extrair mais valia (mv) e esticá-la à maior taxa possível (tmv). E o seu segredo é como levar essa taxa da mais valia obtida pela simples divisão entre um tempo de trabalho e outro (tmv = mv/cv) a transformar-se na taxa de lucro (tl) mais alta possível no âmbito da realização do valor no mercado. Isto sabendo-se que a taxa de lucro vem da divisão da mais valia pela soma total do capital invertido em salário (cv) e demais despesas (cc), na sua forma mais simples (tl = mv/cv+cc), mas que pode ser dilatada ou retraída frente à taxa de mais valia expropriada na fábrica, a depender da performance da empresa no âmbito da competição do mercado.

Duas são as formas de gerar a taxa de mais valia apropriada à alta sempre desejada de lucro pelo capital. Estabilizando a fração do tempo do trabalho necessário e dilatando a fração do tempo do trabalho excedente através a dila-tação da duração da jornada. É a mais valia absoluta. Ou reduzindo a fração do tempo do trabalho necessário e fazendo crescer sobre ela a fração do tempo do trabalho excedente. É a mais valia relativa. A primeira forma tem seu limite na capacidade física do trabalhador. A segunda na capacidade salarial da repro-dução dessa força física. A resistência física é o problema da primeira. O efeito sobre o salário o da segunda. A mais valia absoluta é o nome que se dá à forma com que se equaciona a primeira forma. A mais valia relativa à segunda.

Em termos econométricos, todavia, o segredo é o modo como os capi-tais combinam as taxas de mais valia e taxa de lucros à luz de suas respectivas categorias econômicas de custo, rendimento e produtividade frente à capacida-de dele converter preço de custo em preço de venda. O custo é a quantidade de horas-trabalho que se gasta por unidade de trabalhador e produto no processo de produção da mercadoria. O rendimento a quantidade bruta da produção ob-tida na soma total do tempo gasto. E a produtividade a quantidade de produto obtida na unidade do tempo, considerado o custo unitário. Assim, o preço de custo é a quantidade de salário pago por unidade-tempo encarnado no produto. Um feito que é função da produtividade e do rendimento imbricados. Sendo o salário calculado por hora-trabalho, quanto mais se faça esta quantidade cair ao tempo que se eleve a taxa de produtividade e o montante do rendimento, menor será o tempo-salário gasto para gerar uma unidade de produto. E, assim, maior a possibilidade de ganho no momento da venda do produto, mantida constante a massa do salário. Já o preço de venda é o valor do produto expresso em quan-tidade de dinheiro. Custo e preço diferindo, assim, pelo custo exprimir-se em quantidade de horas-trabalho e o preço em quantidade de moeda. Quanto mais baixo o custo hora-trabalho, maior a taxa de produtividade. E se se gasta menos

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Do espaço da mais valia...MOREIRA, R.

salário por unidade-hora de produto, ao tempo que o volume do rendimento mais se eleva pela maior elevação da produtividade, maior é a possibilidade de elevar-se a taxa do lucro, uma vez que maior será a diferença entre o custo da produção e o preço da venda. De modo que a combinação dessas variáveis é a “lei” econômica de fato perseguida pelas empresas. Uma vez que é com ela que o capital terá a seu favor a capacidade de responder às pressões seja da classe trabalhadora por mais salário, afetando a relação salário-lucro, e seja das empre-sas por concorrência no mercado.

A passagem da fase da mais valia absoluta para a fase da mais valia rela-tiva tem a busca de atingir-se essa “lei” por trás. E seu pressuposto é a subida crescente do nível das forças produtivas. De vez que a subida crescente do nível das forças produtivas é a chave para a resposta da redução contínua da hora--trabalho no cálculo do custo.

É o nível do desenvolvimento das forças produtivas que, assim, deter-mina os termos do custo. Porque define a possibilidade de passagem da fase da mais valia absoluta para a fase da mais valia relativa. E distingue o quadro de uma e de outra. Um nível baixo de desenvolvimento restringe fortemente a possibilidade da baixa dos custos. Um nível elevado abre-a para um horizonte em princípio ilimitado. Eis porque o capitalismo atrasado é o do domínio da mais valia absoluta. E o capitalismo avançado o do domínio da mais valia. A primeira e a segunda revolução industrial traçando os horizontes respectivos.

E é assim o nível do desenvolvimento das forças produtivas que também cria a possibilidade de melhor combinar-se as taxas de mais valia e taxa de lucro para cada empresa em sua performance no mercado. Quanto mais tecnificada a empresa, mais o capital move o custo produtivo para baixo, diminuindo a hora--trabalho necessária à geração do produto, mais empurrando a produtividade para cima e mais rendimento obtém. E melhor então se coloca na dianteira em sua disputa do mercado com as concorrentes de taxa de tecnicidade mais baixa. Logrando inclusive transferir para si obtenção frações de mais valia operária extraída em seu âmbito fabril por estes concorrentes, elevando sua taxa de lucro para além da que obteria a partir do seu domínio de extração específico.

Duas decorrências surgem em conseqüência dessa tecnificação permi-tida pelo desenvolvimento das forças produtivas: a busca da igualização dos níveis de tecnicidade entre os capitais e a tendência ao declínio da taxa de lu-cro, estas duas leis agindo de modo combinado. Exemplificadas na primeira empresa, todas as demais percebem a necessidade da introdução de tecnologia mais avançada em seus sistemas produtivos, tendo em vista reduzir o tempo do trabalho-custo, cedo todas por isso se igualizando em seus patamares técnicos

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respectivos e assim se eliminando as diferenças de vantagem frente à disputa do mercado entre elas. Considerando que logo a seguir alguma delas de novo se põe à frente, toda a diferença de antes se restabelece, até que nova igualiza-ção se realize, num movimento de moto contínuo. A tecnificação traz consi-go também a tendência a um declínio da taxa de lucro, uma vez que estamos diante da substituição do trabalho vivo pela máquina, e é o trabalho vivo que gera mais valia, a máquina apenas potencializando o poder geratriz daquele, enquanto trabalho morto. É assim que se de um lado a máquina baixa o grau do tempo de trabalho necessário à geração unitária do produto, baixando o custo, de outro tende a baixar com isso o tamanho correspondente de mais valia. Tendência que o capital responde com medidas de contra-tendência, en-tre as quais a aceleração das vendas e a apropriação de frações de mais valia da concorrência. Chama-se a isto, taxa de composição orgânica do capital (co=cc/cv), uma componente geradora de constante estado tendencial de instabilidade sistêmica, embora contraditoriamente vital ao desenvolvimento do sistema do capitalismo.

É o espaço a forma mais conspícua de contra-tendência. Diferenciando--se justamente aqui os mecanismos da mais valia absoluta e da mais valia rela-tiva. Extremamente restritos em sua abrangência e arranjo no quadro da mais valia absoluta, o espaço entra como peça chave no plano funcional da mais valia relativa.

No espaço organizado à base das relações da mais valia absoluta a limi-tação das forças produtivas forja uma relação de trabalho e de organização do espaço de caráter basicamente local e extensiva. A taxa da mais valia é obtida pela via de uma jornada dilatada de trabalho que se reproduz dentro e fora da indústria numa forma de uso e arrumação do espaço de traços restritos e fracos de interação. A jornada se estende a mais de dez horas de trabalho. A localiza-ção deve ser a mesma da fábrica. E o tempo de vencimento nos deslocamen-tos do espaço pelas trocas de produtos é igualmente longo e lento. A taxa de lucro assim se obtém a uma taxa de mais valia que avança seja sobre a fração do tempo do trabalho necessário, num aviltamento constante dos salários, e seja sobre a fração do tempo do trabalho excedente, num aviltamento da força física da massa trabalhadora. E cujo reforço vem no formato do arranjo do operariado agregado à própria área de localização da indústria, visando eliminar entre os trabalhadores os gastos com moradia e transportes de deslocamentos e reunir ao seu redor o mais numeroso exército de desempregados à disposição da empresa, numa redução das distâncias espaciais que diminua drasticamente as despesas com a força de trabalho. Num efeito neutralizante também dos

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Do espaço da mais valia...MOREIRA, R.

demais gastos, estes relacionados aos centros de abastecimento das matérias primas alimentos e de consumo dos produtos da indústria, cujo custo do mes-mo modo elevado e produtividade baixa de produção e de deslocamento de transporte devem igualmente ser transferidos e assimilados pelo preço espacial baixo da força de trabalho.

A pressão contínua da massa trabalhadora seja pela redução da jornada do trabalho e seja pelo aumento dos níveis reais de salários de um lado e da concorrência das outras empresas pelo domínio do mercado de outro leva o sistema industrial como um todo, todavia, a pressionar permanentemente o de-senvolvimento das forças produtivas. E este vem na forma da tecnologia da se-gunda revolução industrial, seja no âmbito do processo produtivo da indústria e seja da estrutura dos deslocamentos espaciais. Isto é, na forma da passagem à fase da mais valia relativa. O que significa os termos da organização espacial que altere por inteiro o modo da relação capital-trabalho e capital-capital como se davam no âmbito geográfico do espaço da mais valia absoluta, mantendo o centro de referência na relação custo-produtividade, mas incorporando o espaço como variável principal da elevação da taxa da mais valia e sua relação imediata com a taxa do lucro. O mecanismo essencial é a relação de intera-ção horizontal-vertical que então se estabelece entre a agricultura e a indústria, portanto o campo e a cidade, transformada no eixo do ordenamento geral da relação sociedade-espaço capitalista em sua totalidade. O ponto de integração é a transferência recíproca de custos entre a indústria e a agricultura via o re-baixamento correlato do tempo do trabalho necessário de um setor e de outro. O centro de gravidade é o custo e o nível do desenvolvimento da indústria. Custo e nível que devem ser custeados pela agricultura. Numa relação em que a indústria envia seu nível de força produtiva para a agricultura, no intuito de transformado em baixo custo de produção do alimento agrícola, este retorne à indústria na forma da baixa relativa do valor-salário. Transferido nesse patamar rebaixado para a indústria, o custo do alimento traduz-se num rebaixamento correspondente do custo-tempo do trabalho necessário da indústria, reduzin-do-o e abrindo para o avanço sobre ele do tempo do trabalho excedente, numa desvalorização do valor cujo efeito é a forte e imediata elevação da taxa da mais valia (Magaline, 1977).

A interação espacial que assim se dá deve assim se alargar ininterrupta-mente numa integralização do espaço nacional-mundial em aceleração crescen-te, de modo a que a relação tempo-custo respectivo da agricultura e da indústria baixe seguidamente. Sobretudo face o efeito da lei do declínio tendencial da taxa de lucros, que vem na esteira desse implemento e se alastra indistintamen-

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te para ambos os lado, numa ação espacial sobre campo e cidade, agricultura e indústria, generalizadamente. Uma vez que devendo a substituição da força de trabalho (capital variável) pela máquina (capital constante) ser mais radical no campo-agricultura que na cidade-indústria, a taxa da composição orgânica do capital mais intensamente atinge a agricultura e rapidamente chega à indústria.

O resultado é, assim, a dissolução de todas as formas soltas e fracamente interligadas de interação espacial do arranjo do espaço da mais valia absoluta. E a franca e geral unitarização técnica e dos movimentos orgânicos da totalidade do espaço. Toda uma relocalização permanente da arrumação espacial assim se estabelece, em benefício dum remanejo global constante da distribuição e configurações do arranjo. E que no campo de imediato implica a troca da renda diferencial I, de localização e fertilidade, pela renda diferencial II, de localização e repartição espacial, comandadas pelo poder dinâmico da intervenção técnica. De modo que, assim, em simultâneo praticamente desaparece a ação da lei dos rendimentos decrescentes, que até então manejava e atuava por trás da ação da renda diferencial I dentro do espaço ordenado da mais valia absoluta (Moreira, 2009).

O ESPAÇO BRASILEIRO DA MAIS VALIA MOLECULAR À MAIS VALIA INTEGRALIZADA

A molecularidade é a forma como se implanta e evolui o quadro espacial de ordenação da mais valia absoluta na sociedade brasileira. Trata-se de uma ordem espacial emanada do rearranjo das macro-formas do período colonial--plantacionista, ordenando então dessa forma a repartição e embutimento da indústria e do operariado industrial em seu momento nascente. A indústria surge aí com um caráter ancilar da economia agroexportadora, localizando-se segundo a distribuição da produção plantacionista para cujo mercado volta sua produção e da qual extrai matéria-prima, força de trabalho e capitais. Com o tempo a indústria vai, entretanto, se soltando dessas amarras iniciais, para ir se localizar nas cidades e estimular o surgimento de uma agricultura voltada para o consumo interno ao longo e ao largo das vias de transportes que saem e voltam às cidades nas quais ela está se instalando.

São áreas agrícolas produtoras de matérias primas e alimentos voltados para o sustento da reprodução da força de trabalho industrial, que se espraiam pelas mais distantes pontos, surgindo até onde chegam as vias de circulação alinhadas por sobre as velhas trilhas de bandeirantes, gado e tropeiros – incor-poradoras por sua vez das longas trilhas abertas no passado pré-colonial pelas

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comunidades indígenas –, multiplicadas pelo estímulo da multiplicação das in-dústrias pelas cidades.

Junto à localização da indústria vai nascendo também a classe operária. Assim reproduzindo em sua trajetória espacial a trajetória espacial da indústria. Assim como a indústria nasce disseminada pelas áreas da produção plantacio-nista, a classe operária fabril também nasce geneticamente colada à massa tra-balhadora rural, variando como esta segundo as áreas da acumulação primitiva. Tem, pois, os traços dessa massa rural, deslocada das atividades plantacionistas para as atividades industriais nas áreas plantacionistas antigas do Nordeste, do regime do colonato ou diretamente da imigração italiana nas áreas cafeeiras do planalto paulista, da imigração portuguesa e espanhola para as áreas urbanas do Rio de Janeiro e do colono italiano e alemão nas áreas coloniais do planalto meridional.

Em todas essas áreas nasce como classe no âmbito da vila operária. A vila operária é uma estratégia espacial da indústria de garantir reserva e controle da força de trabalho, considerada vital nessas condições iniciais de seu imple-mento. No fundo é um complexo fábrica-vila operária, um todo integrado na forma como o capital define o arranjo espacial seja da indústria e seja do ope-rariado industrial no período que se estende de 1870 a 1920, fábrica e habitação operária ocupando o mesmo espaço, a fábrica rodeando-se da vila operária e ambas se servindo da mesma infraestrutura, num tripé em que ao lado da fá-brica e da vila se inclui uma pequena usina hidrelétrica. Ilhando-a no âmbito da vila, o capital industrial encontra a forma apropriada de afeiçoar a população trabalhadora à representação de mundo e à disciplina do trabalho fabril, a vila operária atuando como o ponto da universalização da ideologia do mundo da indústria (Lopes, 1979). Formada de um casario de propriedade da fábrica, a vila operária abriga seus empregados e familiares, impondo-lhe no cotidiano da vila as mesmas regras de vivência do trabalho no interior da fábrica. Sobretudo, o regramento disciplinar do trabalho fabril, aos poucos implantado como hábi-to cultural como regra de vida.

Em geral o complexo vila-fábrica forma uma vida à parte das cidades ou com elas coabita na franja do espaço, num quadro de relação que distingue em mundos diferentes o ambiente de vida e demandas urbanas do operariado das vilas e a massa urbana da cidade. É assim que o operariado das vilas se defronta com as regras no geral paternalistas e reguladoras do patronato fabril e o grosso da população trabalhadora da cidade com problemas de habitação e carestia urbana, numa distinção de pautas que raramente converge a ação do operariado e da multidão urbana.

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A década de 1920 marca entretanto a intensificação que vincula crescen-temente a indústria com o mercado urbano, descolando-a de sua ligação umbe-lical com as amarras plantacionistas e deslocando-a progressivamente para os centros urbanos maiores. De modo que fábrica e vila operária vão assim aos poucos se dissolvendo no cotidiano do tecido da cidade em industrialização, o desenvolvimento do capitalismo indo formar um quadro de rearranjo que ace-lera o desenvolvimento industrial, a urbanização do país e a classe trabalhadora fabril. Cada vez mais imersa no mundo mais amplo da cidade, a classe trabalha-dora industrial vê mudar assim também seu perfil político-ideológico de classe restrita ao mundo da fábrica do complexo fábrica-vila para abraçar o de classe mais universal industrial-urbana, juntando a sua agenda a pauta das lutas pelo direito à cidade da classe trabalhadora urbana, num espaço urbano agora torna-do comum, ao tempo que empresta ao restante da classe trabalhadora urbana e às lutas urbanas o perfil proletário mais abarcante agora assumido. É quando se multiplicam as ações grevistas por menor tempo de jornada de trabalho, direi-tos trabalhistas, combate à carestia urbana e condições de moradia adequadas, que vão daí para diante se somar a todas as demais demandas de vida política e social de um país que se urbano-industrializa rapidamente.

É esta conjuntura que impele o capitalismo a saltar na década de 1950 da fase da mais valia absoluta para a fase da mais valia relativa. Duas bases de apoio vão ser aqui essenciais: a difusão da infraestrutura reflexa do nível do desenvolvimento das forças produtivas em nível nacional particularmente dos meios de transferência e a transformação da renda diferencial I na renda dife-rencial II no campo. E assim à implantação da divisão territorial cidade-campo do trabalho cujo efeito é a crescente integração produtiva que põe a agricultura como retaguarda da indústria. E a concentração industrial, urbana e operária na região Sudeste, sobretudo na cidade e cercania urbana de São Paulo, cujo auge é a década de 1970.

Trata-se do efeito acumulado da progressiva entrada das forças produti-vas da segunda revolução industrial, difundidas mundialmente junto à mundia-lização das relações capitalistas consequentes aos anos 1870, a década da passa-gem à fase do capitalismo avançado e à forma superior do imperialismo, trazida pela industrialização substitutiva de importações. Voltada até a década de 1930 para o consumo de bens industriais importados, deixando os bens de qualidade inferior da indústria nacional para a massa trabalhadora plantacionista e urbana, a elite plantacionista vê-se por força da interrupção das importações provocada sucessivamente pela primeira guerra mundial, pela depressão de 1929 e pela segunda guerra mundial obrigada a valer-se da produção interna, voltando seu

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Do espaço da mais valia...MOREIRA, R.

consumo para a indústria nacional por um período seguido de mais de uma década, estimulando-a e levando-a a uma alavancagem que logo a tornará auto-suficiente na produção de bens de consumo de não-duráveis por volta de 1939.

É assim que as décadas de 1940-1950 vão conhecer a seqüência de im-plementacão de medidas de infraestrutura que unem a indústria e a agricultura num estágio mais avançado de integração, ligando num só ritmo e simultanei-dade campo e cidade num desenvolvimento de economia para dentro. Nesse passo, multiplica-se o número de fábricas pelas capitais, as cidades industria-lizadas e a massa trabalhadora industrial. Ao mesmo tempo, tem seqüência o deslocamento das indústrias e do proletariado industrial rumo a maior concen-tração territorial, movindo agora rumo aos centros de maior consumo urbano do Sudeste, em particular São Paulo e Rio de Janeiro.

O rearranjo do espaço que assim tem lugar aos poucos leva a que o es-paço nacional se rearrume como um todo, dissolvendo-se na década de 1950 a autonomia das formações regionais vindas da integração das macroformas do período colonial na fase de acumulação primitiva frente à regionalização desi-gual que junto à concentração urbano-industrial e operária subordina as regiões à polaridade do Sudeste. O plano de arrumação que dá o rumo aos eixos de circulação e das interações espaciais do espaço da mais valia relativa. Polarizado crescentemente no Sudeste, de inicio no eixo Rio-São Paulo e a seguir forte e dominantemente em São Paulo, esse arranjo desigual-combinado do espaço nacional torna-se mais móvel, numa ativação da mobilidade territorial da força trabalhadora e dos produtos alimentícios respectivamente do Nordeste e do Sul em busca do polo industrial de São Paulo. Ondas de migração contínua de desempregados de Minas Gerais e vários cantos do Nordeste e de excedentes de produção alimentícia das áreas coloniais dos estados sulinos, sobretudo o Rio Grande do Sul, fluem continuamente para o planalto paulista em expan-são industrial. Já nos anos 1940 surgira o grande eixo da rodovia Rio-Bahia, canalizando o afluxo de mão de obra transferida do Nordeste para o Sudeste. E logo a seguir da rodovia Regis Bittencourt, canalizando o afluxo de produtos alimentícios dos estados da região Sul. Além de ligações que transbordam o limite oeste de São Paulo rumo à incorporação das áreas virgens do Trângulo Mineiro, Goiás e Mato Grosso às demandas de produtos alimentícios, gado em particular, e de terras para expansão da agricultura moderna de São Paulo. E que se intensificam no correr dos anos 1950 e 1960 em longos braços rumo às áreas longínquas da Amazônia.

Novas e velhas manchas de lavoura e gado brotadas ao longo dos eixos herdados das rotas coloniais na fase de implantação da mais valia absoluta vão

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se multiplicando e entrando em interseção ao longo desses eixos novos e an-tigos nessa fase da mais valia relativa, esgotando as terras da faixa florestada da franja costeira e deslocando a ocupação agropastoril para as terras da faixa campestre do interior, combinadas agora às grandes usinas hidrelétricas que vão se multiplicando pelo planalto central e fronteira da Amazônia. Tudo num movimento que marca a passagem da renda diferencial I para a renda diferen-cial II e integra em definitivo a agricultura e a indústria como base essencial da forma relativa de mais valia, uma forma de mais valia apoiada na desvalorização do valor.

OS CONFLITOS DE ORDENAMENTO E A ESTRATÉGIA DA DESCONCENTRAÇÃO

Não se deu sem conflitos, todavia, essa reordenação tão ampla. Até pela escala de espaço nacional a que é lançada, em que se envolvem em simultâneo a cidade e o campo. De um lado, é o efeito da concentração operária no Sudeste que dela faz uma classe de forte poder de impacto sobre a estrutura global da sociedade urbano-industrial. De outro, do arrasto de áreas tomadas às diversas frações rurais e comunitárias vinculadas à terra para a finalidade de incorporar trechos crescentes do espaço à lógica integrada da relação agricultura-indús-tria que é uma exigência sem a qual da mais valia relativa num equivalente do operariado urbano pelo lado do campo. É assim que mal chegado à fase da integração nacional, o arranjo do espaço deve ser de novo molecularizado, agora numa desconcentração-centralizada como uma estratégia de preservação e aprofundamento permanente do modo de espaço uniformitarizado que é o modo estrutural próprio do capitalismo avançado.

Assim, a partir dos anos 1980 empreende-se, sob a égide da intervenção do Estado, a política cuidadosa e bem arquitetada de estratégia de rearranjo chamada academicamente de reestruturação espacial. Sob esse nome, o Estado executa uma política de atomização da indústria, das cidades e da população urbana, destinada a um só tempo a desfazer a força territorial da classe traba-lhadora fabril e rural e juntar numa mesma estrutura a agricultura e a indústria numa forma nova de agroindústria. Juntando num só contexto o presente e o passado num só tempo.

Nas antigas áreas de monocultura, na fase da acumulação primitiva, apre-sentavam-se em formas de espaço correlativas da forma-valor os recortes do tempo de trabalho necessário e do tempo de trabalho excedente, postos lado a lado na paisagem. A emergência da mais valia absoluta rearruma esse modo his-

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tórico de arranjo, inicialmente nos termos binomiais da acumulação primitiva. Remanescência da policultura dominial ainda atuante no Nordeste e Centro--Sudeste, mas agora integrativa de um espectro de força de trabalho agregrada de novo tipo, mesmo que com as marcas ainda vivas do trabalho escravo, é isto a forma de trabalho plantacionista de que vai fazer parte a indústria. O exemplo oposto corre por conta do campesinato familiar dos núcleos coloniais do Sul, com suas combinações de policultura de subsistência e de mercado, forte impregnação da atividade artesanal já em muitos núcleos migrados para transformar-se nas cidades em formas de indústria moderna. Logrando-se, de todo modo, assim, introduzir-se como arranjo um diverso naipe de situações de estrutura rural que expressa o desenvolvimento das relações agrárias capi-talistas, ainda que informadas no quadro de uma relação de mais valia absoluta ainda inconsistente. A moderna indústria aos poucos encima esse quadro hete-rogêneo de paisagem egressa do movimento da acumulação primitiva, já no seu todo estruturalmente orientada dentro de uma divisão territorial de trabalho de que é o centro de comando. Se é a molecularidade o espectro geral do arranjo, os ensaios de integração superativa da mais valia relativa têm já seus passos visíveis no começo duma concentração territorial. É a molecularidade emanada do hibridismo genético da economia agroexportadora, obrigando a indústria a distribuir-se como ela de um modo também disperso. E a assim definir-se pelo perfil dominante de uma indústria de bens de consumo não-durável, aqui e ali quebrado pela presença dos ensaios de uma indústria de base e de bens intermediários. É a indústria do perfil geral e comum a todas as regiões, inclu-sive do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, diferente das demais apenas pela maior densidade das fábricas. A década de 1950 vai conhecer a grande virada que tudo vai remeter ao espaço integrado-monopolista próprio do mando da mais valia relativa. E seu vetor é justamente a mudança distributiva que concentra quali-tativa e quantitativamente a indústria e sua população do trabalho num mesmo ponto de território do país. Num convite aos grandes embates que, em conse-quência, vão dominar o cenário da política do Brasil ao longo das décadas dos anos 1950 aos anos 1970. Quando, então, o risco de confrontos mais fundos leva o Estado a desconcentrar indústria e operários territorialmente pelo país, numa redistribuição radical dos estabelecimentos, e a centralizar ao mesmo tempo o capital organizacioinal e estruturalmente, numa aglomeração da sede das empresas em São Paulo.

Nisso o Brasil está mundialmente acompanhado. A desconcentração ter-ritorial fabril-operária e a centralização orgânica empresarial-capitalista sendo uma política estratégica de todos os países altamente urbano-industrializados.

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Chamou-se brecha, nos idos de 1968, às fendas por onde emergem as tensões por longo tempo subsumidas na estrutura sócio-econômica centrali-zada no poder do Estado, acompanhando a onda de questionamentos que se propaga pelas grandes cidades da Europa e do mundo, e que vão dar na emer-gência do conjunto das idéias que comporão o discurso dos movimentos so-ciais, aparentemente criado para substituir o de luta de classes. Longe se estava ainda da clara percepção do que tudo isto representava e que nos anos 1970 irá designar-se por globalização, neoliberalismo, crise dos paradigmas e reestrutu-ração. E é esta que tem seus efeitos efetivamente duradouros.

A reestruturação é um terceiro termo tomado ao lado de reforma e re-volução, querendo dizer algo intermediário entre um conceito e outro. Termo novo, substitutivo de um e de outro. Se a revolução é concebida como uma completa mudança da natureza das estruturas, que leva ao fim da essência de um dado modo produção na história e a sua ultrapassagem por um modo de produção de essência estrutural nova, como foi a revolução de 1789 na França e a de 1917 da Rússia dos czares. A reforma é concebida como uma mudança na superestrutura, que leva a uma forte mudança na ordem institucional, mas sem que o modo de produção em si mesmo se altere. Enquanto que a reestru-turação é uma mudança de paradigmas da infra e da superestrutura, que leva o modo de produção existente a refazer suas bases materiais de modo a com-patibilizar a tensão acumulada entre o nível das forças produtivas e as relações de produção que contêm sua contínua expansão para frente, diluindo o quadro de conflitos e de tensões, sem mudá-lo exceto formalmente. É um processo de caráter essencialmente espacial. Como capta Soja, referindo-se à reestruturação da cidade de Los Ângeles:

A reestruturação, em seu sentido mais amplo, transmite a noção de uma “freada”, senão de uma ruptura nas tendências seculares, e de uma mu-dança em direção a uma ordem e uma configuração significativamente diferentes da vida social, econômica e política. Evoca, pois, uma com-binação seqüencial de desmoronamento e reconstrução, de desconstru-ção e tentativa de reconstituição, proveniente de algumas deficiências ou perturbações nos sistemas de pensamento e ação aceitos. A antiga ordem está suficientemente esgarçada para impedir os remendos adaptativos convencionais e exigir, em vez deles, uma expressiva mudança estrutural. Estendendo a terminologia de Giddens, pode-se descrever essa freada--e-mudança como uma reestruturação temporal-espacial das práticas so-

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A reestruturação significaria, assim, uma mudança nos modos de regula-ção e nos paradigmas tecnocientíficos, alterando o modo de fazer e de ver. Daí o seu sentido ontológico, de pós-historicismo, no dizer de Soja, talvez podendo ser um modo de dizer uma grande mudança na moderna sociedade capitalista e que altera o seu modo estrutural na forma com ela nascera no âmbito do Renascimento, seja no plano da filosofia e da ciência e seja no plano da orga-nização do trabalho engendrada dentro e a partir da manufatura, renovando-a como sociedade do trabalho. O primeiro tema foi analisado por Leff (2006), o segundo por Thompson (1998) e o todo resumido por Santos (1989) no con-ceito de segunda ruptura.

Por isso a reestruturação difere de uma simples reordenação no modo de arrumação dos espaços, como no conceito de reconversão industrial analisada por Guglielmo para a Europa do pós-guerra:

A rapidez e a amplitude da mutação implicam numa reconversão dos homens e dos equipamentos, numa nova orientação dos investimentos, que levantam importantes problemas técnicos, financeiros e sociais. Es-ses problemas apresentam-se necessariamente em termos geográficos. Primeiramente, com efeito, as indústrias antigas, hoje periclitantes, não se encontram situadas em qualquer parte; elas se acumularam sobretudo em certas regiões (bacias carboníferas, complexos portuários notadamente). E a reconversão provocada por suas dificuldades é, pois, antes de mais nada, uma reconversão regional.

A concentração maciça da indústria desde mais de um século em algu-mas das maiores aglomerações, degradou as condições do habitat e da vida (bairros industriais leprosos, poluição da atmosfera urbana, deslo-camentos longos e fatigantes dos trabalhadores etc.) e contribuiu a essa congestão urbana, que impede daqui por diante as fábricas de ampliar-se e eleva os custos da produção. Ela levanta a um tempo o problema da organização da atividade industrial nos grandes centros urbanos (criação de “zonas industriais”) e aquele da descentralização. Descentralizadas ou inteiramente novas, é preciso saber onde colocar as fábricas. A questão é importante, pois sua localização é um dos dados maiores do custo de suas fabricações, como da evolução do âmbito humano onde se estabelecem.

ciais, do mundano para o mondiale (mundial). (Soja, 1993.)

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Pode ser um sucesso ou um desastre para a empresa, tanto quanto para esse ambiente humano. O desenvolvimento atual da indústria, vigoroso mas diferenciado, apresenta problemas mais ou menos graves de recon-versão, de descentralização, de localização das novas criações. É toda uma repartição das forças produtivas, longamente elaborada desde mais de um século, que se encontra novamente em questão. É toda uma nova geografia industrial que precisa ser enxertada sobre aquela de ontem. Da escolha das soluções adotadas depende a agravação ou reabsorção dos desequilíbrios inter-regionais, que o desenvolvimento econômico do país seja freado ou estimulado. (Guglielmo, 1973).

No Brasil o processo da reestruturação se inicia junto ao fim do ciclo dos governos militares, em 1990, concebido como o estabelecimento de uma forma nova de regulação espacial vinda por conta da privatização das empresas estatais e da conseqüente reforma do Estado. Podendo-se chamar de reestru-turação ao conjunto das mudanças de arranjo que ultrapassa em perfil e nível o conceito de Soja e que antecipa o que nos anos 1980 a literatura especializada irá designar por este termo, mas escondida no sentido estrito da flexibilização produtiva e do mundo do trabalho. De modo que três fases podem aqui ser vista de reestruturação: a reconfiguração espacial da indústria, a flexibilização estrutural da organização industrial-produtiva e a emergência das empresas e classes territoriais, tudo vazado numa nova forma de divisão e ordenação re-gional do trabalho. O que significa que a reestruturação brasileira se encaixa no conceito amplo de Soja, concordando com ele por ir além da noção taylor--fordista de um processo essencialmente relacionado ao esquema da regulação interna das empresas, a reestruturação fordista correspondendo mais exata-mente ao segundo momento da reestruturação brasileira.

Seja como for, passa-se no Brasil, no longo período balizado pela década de 1970 e a primeira década do terceiro milênio, uma seqüência de três fases de reordenamento do seu modo espacial de organização, as quais pode-se respec-tivamente designar configurativa, regulacional e reestratificante, mais ou menos correspondentes às três fases – ontológica, pós-fordista e pós-modernista – que Soja focaliza para a região de Los Ângeles.

Embora sem as mesmas características, para além do fato de três fases, um paralelo é sugerido nas respectivas nomenclaturas: a segunda e a terceira fases podem ser tomadas como de certo modo coincidentes, a primeira não tendo correspondência propriamente.

O reordenamento do espaço – cujo melhor exemplo é o que se chama

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desindustralização de São Paulo – tem origem na estratégia dos PNDs dos anos 1970: o PND I, que abrange o período de 1970 a 1974 e orienta a moderniza-ção agrícola; o PND II, que abrange o período de 1975 a 1979 e orienta a re-distribuição territorial da indústria; e PND III, que abrange o período de 1980 a 1984 e visa equilibrar as contas nacionais afetadas pelo crescimento acelerado da inflação e da dívida pública (Moreira, 2004).

O PND II é o de escala e efeito espacial mais amplos. Foi um plano de redistribuição das indústrias pelo territorial nacional, apresentando como tendo por fim reduzir os problemas decorrentes da excessiva concentração em São Paulo. A redistribuição deu-se em dois níveis: a relocalização das indústrias concentradas em São Paulo dentro e entre os estados da região Sudeste e a localização das novas indústrias a serem implantadas do ramo de bens interme-diários fora de São Paulo e do Sudeste prioritariamente.

Com o primeiro nível dá-se uma maior disseminação dos estabelecimen-tos industriais pelo interior de São Paulo (dita interiorização da indústria) e pe-los estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, com efeitos na periferia imediata do Paraná, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais (dita desindustrialização de São Paulo). E com o segundo passa-se a ter um rosário de indústrias disposto mais ou menosem arco ao longo da linha da fronteira nacional do Brasil.

Três são suas fases:1a. fase - A primeira das três fases da reestruturação espacial no Brasil

data do PND II. Dois lances combinados definem a forma dessa reestrutura-ção: a transferência das indústrias localizadas na Grande São Paulo para o in-terior do estado e para outros estados e o direcionamento das novas indústrias diretamente para fora, não mais prioritariamente para São Paulo. De modo que progressivamente São Paulo vai perdendo seus estabelecimentos industriais, seja pela transferência dos velhos e seja pela não entrada dos novos.

A razão dessa redistribuição para fora é a excessiva quantidade de esta-belecimentos que acaba por se concentrar na região da Grande São Paulo, com efeitos desastrosos sobre o custo do espaço e a qualidade de vida ambiental da Metrópole (Pintaudi e Carlos, 1995). Mas sobretudo a força da ação sindical operária.

Entre os anos 1920 e 1970, no espaço de tempo de cinco décadas, São Paulo havia se tornado o celeiro da indústria no Brasil. A fonte inicial é o bara-teamento da força de trabalho aí fortemente concentrada e o relativo do preço do terreno face os enormes espaços disponíveis. E que se mantém mesmo com o aumento do congestionamento, dado a economia de escala/aglomera-ção correspondente. Com o tempo vão-se invertendo os sinais. O congestiona-

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mento do trânsito, o encarecimento do preço dos terrenos, o despejo industrial e o crescente poder de pressão dos sindicatos invertem este quadro nos anos 1970, eliminando as vantagens da concentração, tornando proibitiva a presença na região da para muitas empresas (deseconomia de escala/aglomeração), que, então, estimuladas pela política redistributiva do Estado, fecham e transferem seus estabelecimentos para outras áreas. Acontece com São Paulo algo próximo à reconversão industrial que Guglielmo vira acontecer nas áreas industriais da Europa nos anos 1940 e 1950. Lá por envelhecimento. Em São Paulo em tese por deseconomia de escala/aglomeração.

O segundo nível da estratégia do PND II tem a escala de abrangência do território nacional. Consiste em não mais localizar-se indústrias novas e do ramo de bens intermediários em São Paulo, ou mesmo nos demais estados do Sudeste, mas em áreas fora e no arco da circundância distante.

Estas novas áreas vão formar grandes pólos industriais, significando este termo a necessidade de instalar junto à indústria de toda a infreaestrutura que viabilize desenvolvê-la em lugares até então carentes desses meios. Na maioria dos casos são áreas escolhidas pela ocorrência de recursos em matérias-primas minerais, capazes de criar a oferta de uma diversidade de commodities indus-triais para a economia nacional e o mercado externo de modo a baratear os cus-tos industriais internamente e formar divisas de exportações, agregando valor interna e externamente e ajudando a abater os juros e parte da dívida pública que vem num crescendo junto à política industrial em desenvolvimento.

De modo que são em geral polos mínero-industriais que então se for-mam, numa mudança da política seguida pelas velhas áreas de mineração do Sudeste industrial, caracterizadas como puros pólos de mineração. Mas são também polos de produção de outros tipos de bens intermediários, como os de petroquímica, com as mesmas características e destinação. São o polo petro-químico de Triunfo (Petroquímica União), no Rio Grande do Sul; da mineração de nióbio (Mineração Catalã), em Catalão, Sudeste de Goiás; de lingote de ferro (Vale do Rio Doce) e de alumínio (ALCAN e ALCOA), no sudeste do Pará; de barrilha e soda cáustica e no litoral do Rio Grande do Norte; de papel e celulose (Aracruz), no norte do Espírito Santo. E de que faz parte, em caráter tardio, o pólo petroquímico de Itaboraí (PETROBRÀS), no Rio de Janeiro.

Vale observar que todos eles são polos implantados com capitais mistos, privado nacional ou estrangeiro e estatal federal, dando um cunho estatal à ges-tão dos seus respectivos espaços.

A localização dispersa e em arco desses polos suscita a implementação em grande escala de uma rede de transportes, comunicações e transmissão de

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energia que terá como resultado uma rearrumação mais forte e ampla do espa-ço brasileiro, refletindo-se na organização espacial da agropecuária, na distri-buição territorial da população e na interiorização das cidades e acarretando a integração nacional dos mercados e a nacionalização dos problemas, a começar pelos de meio ambiente. De que decorre a redistribuição ampla do operariado fabril, junto à redistribuição da indústria e da população urbana das cidades metropolitanas para as cidades médias do interior dos estados.

Assim, em duas décadas o nível da concentração industrial-operária se altera fortemente: o quadro da participação do estado de São Paulo no valor da produção industrial do país cai de 58% em 1970 para 48% em 1999. E o da participação nacional da região metropolitana cai de 44% para 26%. Ao tempo que internamente ao estado cai de 76% para 54%. Já o peso da participação nacional do estado no emprego industrial cai de 34% para 24% e o da região metropolitana de 70% para 55%, no mesmo período.

2a. fase - A disseminação territorial da indústria pelo amplo espaço bra-sileiro leva, assim, a disseminar-se consigo os meios de transferência (transpor-tes, comunicações e transmissão de energia), lançando as bases da 2a. fase de reestruturação. Trata-se de uma redistribuição da indústria de consumo (durá-veis e não-duráveis) não só de São Paulo, estimulada pela implementação desses meios em escala nacional.

De modo que diante dessa infraestrutura disseminada uma série de re-localizações industriais vai se dando entre 1970 e 2006. São indústrias alimen-tícias, têxteis e de calçados que fecham suas portas no estado de São Paulo e estados do Sul para reabrirem nos estados do Centro-Oeste e do Nordeste, trocando fisicamente de local. Bem como indústrias novas do ramo de bens du-ráveis e do ramo de bens intermediários que vão localizar-se diretamente nestes e noutros estados, fora e dentro da região Sudeste, a exemplo de indústrias automobilísticas que vão se localizar no Paraná, Rio de Janeiro (Volkswagen e Pegeot), Goiás (Mitisubishi) e Bahia (Ford). Numa nova divisão territorial in-dustrial do trabalho. Desde 1999 mais da metade do parque industrial (cerca de 60%) está já distribuído pelo território nacional, fora do Estado de São Paulo, privilegiando os estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Ceará, Bahia e Pernambuco, estados que haviam sido afetados negativamente pela concentração industrial dos anos 1950 a 1970 em São Pau-lo, invertendo agora o quadro.

De modo que se reverte assim a divisão territorial de trabalho que desde os anos 1950 fora estabelecida, consistente numa configuração de interações inter-regionais com centro no Sudeste, de que a concentração industrial em

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São Paulo é a grande beneficiária. Relação em que cabe ao Nordeste a função de fornecer mão-de-obra abundante e barata para a indústria de São Paulo, de modo que a partir dos anos 1940 levas e levas de nordestinos migram das áreas rurais do Sertão e da Mata através a rodovia Rio-Bahia para ir formar o numeroso exército de reserva industrial que irá transformar São Paulo e cidades vizinhas na maior região metropolitana do país. Ao Sul cabe a função de suprir esta gigantesca região urbano-industrial de produtos alimentícios, subsidiando com a desvalorização do valor a política de achatamento salarial instituída com o trabalho do imigrante nordestino. E cabe ao Centro-Oeste e ao Norte a fun-ção de reserva de espaço para a expansão da fronteira agrícola que acompanha a economia paulista deste o ciclo do café. É esta divisão inter-regional do tra-balho que a redistribuição industrial-operária do PND II reordena e substitui.

Com a nova divisão do trabalho vem uma nova regionalização, repartida em quatro grandes âmbitos: a região do polígono industrial, a região do com-plexo agro-industrial, a região de reserva biotecnológica e a região da indústria de não-duráveis e agro-indústria. O espaço que se estende de Belo Horizonte ao Rio Grande do Sul compõe a primeira região. Trata-se da faixa do território nacional imediatamente vinculada à indústria paulista e que reúne o grosso do mercado consumidor de classe média e alta do país. Em função da trajetória econômica recente e dessa concentração de mercado de consumo de maior ní-vel de renda nela vão se mantendo concentradas as indústrias do ramo de bens--duráveis e de bens de capital e os serviços mais sofisticados, ao tempo que dela vão se descolando as indústrias do ramo de não-duráveis em sua transferência para outras partes do país. O espaço formado pelos estados do Centro-Oeste e áreas circundantes do Sul, Sudeste, Norte e Nordeste, até onde chegam o relevo das chapadas e o ecossistema do cerrado, compõe a segunda. A seqüên-cia de cadeias que se arrumam ao redor de produtos de agroindústria, como a soja e o algodão, a exemplo da cadeia carne-grão-ração vinculada à produção da soja, e que aglutinam desde o setor primário ao quaternário em sua função, compõe o cerne da sua economia. O espaço da imensa floresta amazônica compõe a terceira. A abundância de recursos genéticos e de água em ambiente tropical dá o tom regional, através o elemento que oferecem ao florescimento de uma economia centrada na bioengenharia e na biomassa. O espaço, por fim, constituído pelo Nordeste compõe a quarta e última região. A transferência de muitas das indústrias de não-duráveis para esta região vai formando nela uma concentração desse ramo em nível nacional, uma região industrialmente iden-tificada pela maior presença das indústrias de bens de consumo não-durável no país. Ao lado das quais mantêm-se ainda a velha agroindústria açucareira

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e se desenvolve a agroindústria de fruticultura irrigada, numa nova identidade regional dentro do país.

É dentro dessa reestruturação espacial que ocorre a reestruturação que flexibiliza a produção e o trabalho no interior das indústrias, e se que igual-mente acelera no correr dos anos 1980. Seu centro de referência são as mon-tadoras e indústrias baseadas na linha de montagem como a siderurgia e as metalurgias. Mas todo o parque industrial se rearrumando no entrelaçamento indústria-balcão típico da reestruturação toytista, na forma do just-in-time em escala nacional ampla. Trazendo consigo a reestruturação do sistema de ensino industrial, numa tendência de rearrumação espacial da indústria e da pesquisa de ponta, sendo esta uma das presenças do serviço de maior sofisticação uma dentre as funções assumidas pelo polígono industrial no quadro da nova divi-são territorial nacional do trabalho.

3a. fase - A última etapa da reestruturação vem com a privatização das empresas estatais, que atinge justamente o setor industrial de bens intermedi-ários. De modo que grande parte dos polos industriais criados no correr dos anos 1970 e 1980 pela estratégia do II PND passa em sua integralidade para o controle privado. Numa reestruturação de forte cunho político. A envergadura das plantas e a importância estratégica das indústrias desses polos significa a transferência da gestão do espaço, levando sua territorialidade para a controla-dora privada. De modo que junto com a gestão da empresa vem a gestão por ela de todo o espaço do polo. Talvez o caso que melhor exemplifique seja o da CVRD (Companhia Vale do Rio Doce), cuja transferência para o controle pri-vado transferiu para a empresa o controle privado de todo o espaço do Grande Carajás.

Pouco analisada por este prisma, esta reestruturação espacial traz consi-go, assim, o significado de completa mudança no esquema da regulação espa-cial da sociedade brasileira. A gestão privada do espaço dos pólos criado pelo PND II retira do Estado uma função que lhe era histórica e provoca uma frag-mentação da regulação espacial em vários recortes de território, multiplicando pelas controladoras desses territórios a função de regular espacialmente o todo da sociedade brasileira, suas tensões e conflitos de espaço, que é atribuição do Estado desde os tempos da colônia.

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A NOVA GEOGRAFIA OPERÁRIA E DOS CONFLITOS

Num paradoxo quanto a seu propósito estratégico, esta ordem de rear-rumação do espaço nacional aguça os conflitos que previa evitar. Se a redistri-buição territorial radical que se dá com a indústria desfaz consigo a geografia operária então existente, atomizando a classe trabalhadora fabril nos diferentes nichos da nova divisão regional do trabalho, o contrário acontece com a geo-grafia das classes do trabalho rurais, levando-a a nacionalmente generalizar-se no nascimento do movimento dos sem-terra por reforma agrária redistributiva de terras e das comunidades indígenas por demarcação de território em nível global.

Analisando o que permitia ao capitalismo a saída por cima, encontrando sempre o caminho para novo ciclo expansivo seguinte a cada ciclo de crise, Rosa Luxemburgo chamava a atenção para a relação existente entre o modo de produção capitalista e as formas não-capitalistas ao redor dos problemas de acumulação, mostrando a necessidade do processo da acumulação capitalista face às formas não-capítalistas na história (Luxemburgo, 1970 e s/d). Tese que estudiosos da evolução brasileira como Martins e Oliveira a tempos vêm cor-roborando, ao falar da reprodução do moderno via reprodução do atrasado e da reprodução por recriação de periferias, respectivamente, vendo a correspon-dência para o Brasil da teoria firmada para o contexto europeu por Luxembur-go (Martins, 1981; e Oliveira, 1977).

Creio podermos entender nestes termos o dilema da reestruturação espa-cial capitalista no Brasil, ao efeito de sentido inesperado da estratégia de disso-lução da geografia operária dos PNDs, desmontando a geografia operária, mas contrariamente organizando a geografia do que, à falta de um termo próprio, e numa terminologia provisória, designaremos classes territoriais.

Dos quatro elementos que definem esse quadro, no seu plano mais glo-bal – o estabelecimento de uma nova divisão territorial/regional do trabalho, a instituição da regulação privada de gestão do território, a emergência das classes territoriais e a nova configuração espacial da classe trabalhadora fabril – é a instituição da regulação privada o de maior efeito qualitativo. O elemento que faz aflorar ao plano espacial a plêiade de formas societárias originadas no longo do tempo que remonta aos primeiros conflitos comunitários da colônia. E que se supunha historicamente não mais existirem no tecido da moderna sociedade urbano-industrial brasileira (Moreira, 2005). Como que saindo da penumbra, elas multiplicam-se a olhos vistos na nova ordenação do espaço criada pelo projeto dos PNDs.

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Emersas da obnubilação a que foram jogadas na história espacial da sociedade brasileira pelo tensionamento de territorialidades que as empresas tornadas gestoras privadas trazem para a cena visível do espaço, estas comuni-dades erguem-se como sujeitos do cenário político assim formado, antepondo à ação expansiva das empresas suas demandas de demarcação de terras, as co-munidades indígenas, recuperação de terras usurpadas, as comunidades campo-nesas, a legalização de domínios históricos, as comunidades quilombolas, que a expansão territorial capitalista busca incorporar. Demandas que reaparecem num momento em que a redistribuição territorial dos PNDs retraça os termos espaciais da geografia do operariado, espalhado agora em aglomerações dis-persas pelo território nacional, como num caminhar de sentido contrario em relação à trajetória dessas comunidades.

Uma dissolução de contrastes parece ser assim a essência do novo qua-dro de arranjo formado pela reestruturação espacial. Numa aproximação de estruturas geográficas da geografia operária e da geografia comunitária. En-quanto a geografia do operariado era a da grande e quase exclusiva concen-tração territorial no Sudeste, em particular na Grande São Paulo, a geografia das comunidades era a da miríade de pontos territoriais espalhados pelos di-versos cantos, uma e outra contrastando seja pelo arranjo distributivo e seja pelo tamanho demográfico. Daí também a diferença da significação política. Enquanto a concentração e o volume da demografia formavam a força da ação operária, a dispersão e o pequeno tamanho de população de cada comunidade determinavam a sua fragilidade. A rearrumação espacial dos PNDs elimina a concentração operária concentrada e interliga em rede a dispersão da geografia comunitária. A grande concentração operária é quebrada e redistribuída numa multiplicidade de núcleos menores espalhados pelas demais regiões brasilei-ras, derivando numa geografia de pequenas e médias concentrações operárias, disseminadas pelos sertões do Centro-Oeste e do Nordeste, particularmente. Enquanto a dispersão comunitária como que institucionalmente se agrega por cima da disseminação territorial, derivando numa geografia de organização uni-ficada em nível nacional.

Assim, numa similitude difícil de avaliar os efeitos, a molecularidade se torna a forma de arranjo comum seja da geografia operária e seja da geografia comunitária. Tudo dentro de um todo integrado na lógica única do espaço da mais valia relativa. Justamente a lógica que agindo por trás acaba interligando em rede as comunidades antes desconectadas seja nas comunicações e seja nas ações de seus movimentos de agenda distintas. E que cedo ou tarde acabará por trazer o mesmo efeito às agora manchas dispersas de concentração da nova

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geografia operária. Se da concentração vinha a força da organização sindical, cada pedaço de espaço facilitando a logística da comunicação e a conurbação da totalidade a integração da consciência de classe e à base dela da ação das lutas, da proximidade das manchas operárias e comunitárias poderá vir a nova força de ação contrarrestadora do capital hegemônico, as desconcentrações recípro-cas forjando uma interação de relações que, de certo modo, paradoxalmente, interligará o sujeito social de uma e o sujeito social de outra das geografias de antes, convergindo numa geografia nacional de conflitos de corte diferenciado--integrada semelhante a uma espécie de combinação desigual de sinais trocados.

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QUESTÃO AGRÁRIA NO BRASIL DO SÉCULO XXI: UMA ABORDAGEM A PARTIR DA GEOGRAFIA

aGrarIaN QuESTIoN IN braZIL oN THE XXI CENTurY: aN aPProaCH FroM GEoGraPHY

CUESTIÓN AGRARIA EN BRASIL DEL SIGLO XXI: UNA MIRADA A PARTIR DE LA GEOGRAFÍA

PAULO ALENTEJANOAGB - Seção Rio de Janeiro, Professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da UERJ e Professor Visitante da

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da FIOCRUZ

Resumo: Neste início de século XXI a questão agrária recoloca-se no Brasil sob velhos e

novos contornos que desafiam pesquisadores e militantes a reinterpretá-la, sem cair na tentação

de sucumbir aos novos modismos, nem tampouco fechar os olhos às necessidades teórico-

políticas de atualização permanente de nosso olhar acerca da realidade. Neste artigo propomos

um olhar geográfico sobre esta problemática, destacando quatro questões que nos parecem

intimamente correlacionadas e que conformam o cerne da questão agrária brasileira neste

início de século: a persistência da concentração fundiária e as desigualdades que isto gera; a

crescente internacionalização da agricultura brasileira expressa pelo controle da tecnologia,

do processamento agroindustrial e da comercialização da produção agropecuária, bem como

pela aquisição de terras; as transformações recentes na dinâmica produtiva da agropecuária

brasileira que têm fomentado uma crescente insegurança alimentar; a persistência da violência,

da exploração do trabalho e da devastação ambiental no campo brasileiro como características

centrais de nosso modelo agrário.

Palavras-chave: Geografia agrária; agricultura brasileira; conflitos no campo; reforma agrária;

soberania alimentar.

Abstract: The Brazilian agrarian situation resurfaces in this beginning of the XXI century

within re-occurring and new outlines that challenge researchers and activists to re-interpret it

without either blindly embracing new trends, or denying the constant theoretical and political

need to update our vision of the world. This article discusses the agrarian problem within a

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.69-95 Jan-Jun 2011

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ALENTEJANO, P. Questão agrária no Brasil...

geographical framework. Four intrinsically interconnected issues – considered the core of the

Brazilian agrarian problem of this beginning of the century – are studied: (1) the persistent

skewed land distribution and deriving inequalities; (2) the growing internationalization of the

Brazilian agriculture clearly marked by the control of technology, of the agroindustrial complex

and markets, and of land ownership; (3) recent changes in the agroindustry model that are

furthering an increasing food insecurity (4) continuing existence of violence, exploitation and

great environmental impact as main characteristics of the Brazilian agrarian model.

Keywords: agrarian geography; Brazilian agriculture; land conflicts; agrarian reform; food

sovereignty.

Resumen: En este principio del siglo XXI la cuestión agraria se repone en Brasil con viejos

e nuevos contornos que desafían investigadores y militantes a reinterpreta-la, sin quedar en la

tentación de sucumbir a los nuevos modismos, ni tampoco cerrar los ojos a las necesidades

teórico-políticas de actualización permanente de nuestra mirada acerca de la realidad. En este

articulo nos proponemos a desarrollar una mirada geográfica cerca de esta problemática,

destacando cuatro cuestiones que nos parecen íntimamente correlacionadas y que conforman el

centro de la cuestión agraria brasileña en este principio de siglo: la persistencia de la concentración

de las tierras e las desigualdades que esto genera; el incremento de la internacionalización de la

agricultura brasileña expresa por el control de la tecnología, del procesamiento agroindustrial

e da comercialización de la producción agropecuaria, bien como por la compra de tierras; las

transformaciones en la dinámica productiva de la agropecuaria brasileña que han fomentado

una creciente inseguridad alimentar; la persistencia de la violencia, de la explotación del trabajo

e de la devastación del medio ambiente en el campo brasileño como características centrales de

nuestro modelo agrario.

Palabras clave: Geografía agraria; agricultura brasileña; conflictos en el campo; reforma

agraria; soberanía alimentar.

INTRODUÇÃO

Neste início de século XXI a questão agrária recoloca-se no Brasil sob velhos e novos contornos que desafiam pesquisadores e militantes a reinterpre-tá-la, sem cair na tentação de sucumbir aos novos modismos, nem tampouco fechar os olhos às necessidades teórico-políticas de atualização permanente de nosso olhar acerca da realidade.

Como nos lembra Delgado, a questão agrária é na atualidade derivada da prevalência do agronegócio no modelo agrário brasileiro:

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A antinomia “reforma agrária” versus “modernização técnica”, que é proposta pelos conservadores em 1964, é reposta na atualidade sob novo arranjo político. Esse novo arranjo se articula nos últimos anos do se-gundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e também no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando se constitui uma estratégia de relançamento dos grandes empreendimentos agroindustriais apoiados na grande propriedade fundiária, voltados à geração de saldos comerciais externos expressivos. Essa estratégia, que estivera abandonada pela política macroeconômica do primeiro governo Cardoso, é adota-da por pressão do constrangimento externo do balanço de pagamentos. Ela relança uma política agrícola de máxima prioridade ao agronegócio, sem mudança na estrutura agrária. Isso reforça as estratégias privadas de maximização da renda fundiária e especulação no mercado de terras. Esse arranjo da economia política é altamente adverso ao movimento da reforma agrária e às políticas alternativas de desenvolvimento pela via camponesa. (Delgado, 2010: 81/82)

A esta abordagem de Delgado centrada na perspectiva econômica bus-caremos adendar um olhar geográfico, abordando, neste texto, quatro questões que nos parecem intimamente correlacionadas e que conformam o cerne da questão agrária brasileira neste início de século: a persistência da concentração fundiária e as desigualdades que isto gera; a crescente internacionalização da agricultura brasileira expressa pelo controle da tecnologia, do processamento agroindustrial e da comercialização da produção agropecuária, bem como pela aquisição de terras; as transformações recentes na dinâmica produtiva da agro-pecuária brasileira que têm fomentado uma crescente insegurança alimentar; a persistência da violência, da exploração do trabalho e da devastação ambiental no campo brasileiro como características centrais de nosso modelo agrário.

1. A PERSISTêNCIA DA CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E A REPRODUÇÃO DA INJUSTIÇA E DA DESIGUALDADE NO BRASIL

Iniciada com o instrumento colonial das sesmarias e intensificada pela Lei de Terras de 1850, a concentração fundiária segue sendo uma marca do campo brasileiro. O último Censo Agropecuário comprovou que o índice de Gini permaneceu praticamente estagnado nas últimas duas décadas, saindo de 0,857 em 1985 para 0,856 em 1995/1996 e 0,854 em 2006. Em alguns estados

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da federação, entretanto, verificou-se significativos aumentos, como em Tocan-tins (9,1%), Mato Grosso do Sul (4,1%) e São Paulo (6,1%). O movimento de concentração foi puxado pelas grandes culturas de exportação, pela expansão do agronegócio e pelo avanço da fronteira agropecuária em direção à Amazô-nia - impulsionada pela criação de bovinos e pela soja. No caso de São Paulo, o crescimento deveu-se à cultura de cana-de-açúcar (estimulada pelo maior uso de álcool com o carro flex e pelos bons preços do açúcar).

Os gráficos 1 e 2 expressam a persistência da desigualdade na estrutura fundiária no Brasil, pois os pequenos estabelecimentos – com menos de 10 ha – são 47% do total, mas a área ocupada pelos mesmos é de apenas 2,7% do total, ao passo que no pólo oposto, os estabelecimentos com mais de 1000 ha são apenas 0,9% do total, mas ocupam 43% da área. O contraste se torna ainda mais nítido quando observamos que os estabelecimentos com menos de 100 ha são cerca de 90% do total, ocupando uma área de cerca de 20%, ao passo que os com mais de 100 ha são menos de 10% do total e ocupam cerca de 80% da área. E este quadro permanece praticamente inalterado nos últimos 50 anos.

Se considerarmos os dados do Incra, ao invés dos dados do IBGE, isto é considerarmos os imóveis rurais, ao invés dos estabelecimentos agropecuá-rios1, verificamos que o panorama não é muito diferente.

Os imóveis com menos de 10 ha são 31,6% do total, mas ocupam apenas 1,8% da área e os com mais de 5000 ha representam apenas 0,2% do total de imóveis, mas controlam 13,4% da área. Somados os imóveis com menos de 100 ha correspondem a 85,2% do total e possuem menos de 20% da área, ao passo que os que possuem mais de 100 ha são menos de 15% dos imóveis e

1 O IBGE utiliza a categoria estabelecimentos agropecuários que considera a unidade produtiva, en-quanto o Incra utiliza a categoria imóvel rural, isto é, tem como base a propriedade da terra. Assim, por exemplo, se uma fazenda é arrendada para quatro diferentes agricultores, o Incra contabiliza um imóvel rural e o IBGE quatro estabelecimentos agropecuários. Por outro lado, se três diferentes fazendas são administradas como uma unidade produtiva contínua, o Incra contabiliza três imóveis rurais e o IBGE apenas um estabelecimento agropecuário. Assim, os dados do IBGE e do Incra devem ser considerados como complementares para a análise da concentração fundiária.

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concentram mais de 80% da área.

Um dos resultados desta profunda iniqüidade na distribuição de terras no Brasil é, segundo Carter (2010), a discrepância da representação política entre camponeses e agricultores familiares – 1 deputado para 612 mil famílias entre 1995 e 2006 – e grandes proprietários – 1 deputado para 236 famílias – uma diferença de 2.587 vezes. Como conseqüência direta dessa desigualdade, os grandes proprietários conseguiram obter 1.587 vezes mais recursos públicos que os camponeses e agricultores familiares para o financiamento da produção agropecuária.

Outro efeito da persistência desta concentração fundiária é a expulsão de trabalhadores do campo. A impossibilidade de reprodução ampliada das fa-mílias camponesas resultante da concentração fundiária produz a expulsão dos trabalhadores do campo, o que é acentuado pela modernização da agricultura que reduz a necessidade de mão-de-obra no campo.

A análise detalhada dos Gráficos 5 e 6, revela a redução absoluta do número de trabalhadores no campo a partir de 1985, ao passo que a média de trabalhadores por estabelecimento vem decaindo desde 1950, com uma leve oscilação para cima entre 1970 e 1975. Acrescente-se que os pequenos estabe-lecimentos (menos de 100 ha) responderam por 84,36% das pessoas ocupadas

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em estabelecimentos agropecuários, embora a soma de suas áreas represente apenas 30,31% do total. Em média, os pequenos estabelecimentos utilizam 12,6 vezes mais trabalhadores por hectare que os médios (100 a 1000 ha) e 45,6 vezes mais que os grandes estabelecimentos (com mais de 1000 ha).

Em decorrência disto, nas últimas décadas a população rural sofreu redu-ção absoluta e não apenas relativa como vinha acontecendo até 1970.

Este processo é, em larga medida, fruto da modernização conservadora da agricultura brasileira conduzida pela ditadura após 1964, resultando na adap-tação da agropecuária brasileira à lógica da revolução verde2.

...o atual modelo de desenvolvimento rural do país, fundado na promo-ção do agronegócio e na proteção das grandes propriedades de terras, foi desenvolvido e financiado pelo regime militar. Desde então, a inércia conservadora do Estado se manteve sem grandes alterações, apesar da democratização do regime político, das leis favoráveis à reforma agrária e da expressiva demanda popular por terra.” (CARTER, 2010: 514)

Outro efeito da concentração fundiária é facilitar a transferência do pa-

2 A revolução verde consiste no processo de modernização técnica da agricultura – baseada em meca-nização, quimificação e melhoramento genético – gestada nos EUA e difundida pelo Terceiro Mundo a partir dos anos 1950 sob o pretexto de combater a fome e a miséria, mas que visava na realidade combater o perigo da revolução vermelha/comunista que chegara à China no fim da década de 1940 e ameaçava se espalhar pelo resto do Terceiro Mundo.

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trimônio natural brasileiro para o controle estrangeiro, afinal, quando se trata o agro como mero negócio (agronegócio) a terra é de fato mera mercadoria que pode ser transacionada sem maiores preocupações, diferentemente de quando o agro é lugar de vida (agricultura) e a terra, portanto, não é uma mera merca-doria.

2. A NOVA ONDA DE INTERNACIONALIZAÇÃO DA AGRICULTURA BRASILEIRA E A AMEAÇA A NOSSA SOBERANIA TERRITORIAL

Assim como a concentração fundiária não é uma novidade na história brasileira, mas se resignifica a cada momento, o mesmo pode ser dito da inter-nacionalização da agricultura. Se a colonização foi o marco inicial da invasão es-trangeira – do ponto de vista dos povos “indígenas” (tupis, guaranis, xavantes, inanomamis e tantos outros) – hoje vivemos uma nova onda de internacionali-zação da nossa agricultura, expressa no domínio da nossa agricultura por gran-des empresas transnacionais e na compra de terras por empresas, fazendeiros e fundos financeiros estrangeiros.

No dizer de David Harvey, estamos diante de um processo de renovação do imperialismo, baseada na acumulação por espoliação3:

Todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona per-manecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias. A expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas três últimas décadas; muitos recursos antes partilhados como a água, têm sido privatizados (com freqüência por insistência do Banco Mundial) e inse-ridos na lógica capitalista da acumulação; formas alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos, mercadorias de fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substitui a agricultura familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no comércio sexual). (Harvey, 2004: 121)

O mapa abaixo indica que o Brasil é o país do mundo que combina em mais alto grau disponibilidade de terras e água.

3 Fontes (2010) polemiza com Harvey em torno da adequação da sua noção de acumulação por espo-liação, por considerar que a produção de expropriação é sistemática no capitalismo, dado seu caráter desigual e combinado. Embora não discordemos da autora, consideramos que a noção de acumulação por espoliação ajuda a lançar luz sobre o atual processo de avanço do capital sobre os recursos naturais e os direitos sociais.

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Trata-se dos dois requisitos fundamentais para a expansão da agricultura, especialmente em seu padrão moderno, derivado da revolução verde, intensivo em terra, água e energia. Acrescente-se a isso que a tropicalidade dominante em nossas terras representa um requisito adicional de grande utilidade para a agricultura, dada a intensidade dos processos de fotossíntese que propicia, bem como as condições favoráveis para a criação de animais de grande porte.

Estas vantagens comparativas4 para o desenvolvimento da agricultura no Brasil ficam ainda mais evidentes quando observamos o quadro abaixo que compara as terras atualmente destinadas a plantações e as que ainda podem vir a ser utilizadas para este fim. Por este quadro, observa-se que a soma das terras não utilizadas ou utilizadas para pastagens no Brasil representa mais do que o dobro das que possuem os dois países que mais se destacam neste quesito de-pois do Brasil que são os EUA e a Rússia. Acrescente-se a isso que estes países possuem extensas áreas temporárias recobertas por neve.

4 O uso desta expressão faz referência à noção proposta por David Ricardo no século XIX, sem en-tretanto dar a esta o mesmo tratamento que faz o referido autor, pois consideramos que não se trata de vocação natural, mas de atributos historicamente valorizados.

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Todos estes aspectos combinados explicam a recente onda de interna-cionalização da agricultura brasileira verificada nos últimos anos que se traduz no crescente controle das transnacionais do agronegócio sobre a agricultura brasileira – seja pela determinação do padrão tecnológico (sementes, máquinas e agroquímicos), seja pela compra/transformação da produção agropecuária (grandes traders, agroindústrias) – e também na crescente onda de compra de terras por fazendeiros, empresas e grupos estrangeiros.

No que se refere ao controle das transnacionais sobre a agricultura bra-sileira, os processos mais notórios atualmente dizem respeito à difusão das se-mentes transgênicas pelas grandes empresas do setor, como Monsanto5, Bayer, Syngenta, que também são as grandes produtoras de agroquímicos, mas tam-bém é digno de nota a ampliação da presença das transnacionais na comerciali-zação e processamento industrial da produção agropecuária, sobretudo ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus, que inicialmente concentravam sua atuação no ramo de cereais, mas têm se expandido para outros ramos, sobretudo o sucroalcoo-leiro.

No primeiro semestre deste ano, oito multinacionais despontaram entre as 20 principais empresas exportadoras do país. No ano passado, elas eram somente três, e, em 2008, quatro. Na lista das maiores exportadoras

5 Notícia publicada Folha de São Paulo no dia 11 de agosto de 2010 indica que o Brasil já é o segundo maior mercado da Monsanto, superado apenas pelo dos EUA.

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de 2010, 4 das 8 múltis vendem produtos agrícolas e já existe até uma brincadeira devido a isso. Elas são conhecidas como o “ABCD: ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus” -todas são companhias multinacionais que pro-duzem commodities. Neste ano, a Bunge passou a ocupar a terceira posi-ção, perdendo somente para a Petrobras e a Vale. Em 2009, ela terminou em 19ª lugar, com um faturamento bruto anual de R$ 27,2 bilhões. Essas empresas multinacionais fazem frente às duas maiores gigantes brasilei-ras e ultrapassaram as companhias nacionais de alimentos, resultado de fusões incentivadas por recursos do governo. A BRF-Brasil Foods, fruto de fusão entre Sadia e Perdigão, está no décimo lugar da lista de 2010. A JBS-Friboi, cuja fusão também recebeu ajuda financeira do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), está na 26º posição. (Folha de São Paulo, 16.08.2010)

No setor sucroalcooleiro, em especial, este controle das grandes empre-sas transnacionais tem se expandido velozmente. Segundo Mendonça (2010), a participação de empresas estrangeiras na indústria da cana no Brasil cresceu de 1% em 2000 para 20% em 2010. Este processo acontece junto com um forte processo de concentração no setor. Estimativas de mercado mostram que, na safra 2009/10, os sete maiores grupos de comercialização do mercado já repre-sentaram 61,4% das vendas. No ciclo atual (2010/11), a fatia nas mãos dos sete grandes será de 67%.

Já no que se refere à compra de terras por fazendeiros, empresas e gru-pos de investidores estrangeiros, há indícios de forte crescimento a partir dos anos 2000, como mostra a reportagem publicada por um dos principais órgãos da grande imprensa brasileira:

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O fazendeiro australiano Robert Newell investiu cerca de 4,5 milhões de dólares na compra de 11 350 hectares no município de Rosário, no oeste da Bahia. O consórcio francês Louis Dreyfus, adquiriu 20 000 hectares também na Bahia. O multibilionário fundo de pensão dos funcionários públicos da Califórnia, o Calpers é dono de 23 000 hectares nos estados do Paraná e de Santa Catarina. George Soros é outro que tem investimen-tos em terras brasileiras. (Folha de São Paulo, 21/04/2007)

A fragilidade dos mecanismos de controle do Estado sobre o território brasileiro é reconhecida pelo próprio presidente do Incra, órgão responsável pela administração fundiária no Brasil, que admite que o governo não tem da-dos sobre investidores e pessoas físicas que já detêm terras no país e chama atenção para as brechas legais que facilitam o acesso de estrangeiros à pro-priedade da terra no Brasil: “Basta abrir um escritório ou estar associado a um brasileiro, que pode comprar o que quiser de terras.”

Existem 3,1 milhões de hectares de terras na Amazônia Legal nas mãos de estrangeiros. Essa área corresponde a 39 mil imóveis rurais, mas pode ser ainda maior. Isso porque no cadastro do Instituto Nacional de Co-lonização e Reforma Agrária (Incra) só existem registros de imóveis que tiveram os documentos apresentados por seus proprietários. (Ecopress / Envolverde, 29/4/2008)

O grupo chinês, formado por investidores privados, mas com o governo da China como sócio, quer comprar de 200 mil a 250 mil hectares de terras, tanto no oeste da Bahia quanto na região conhecida como Mapito, o cerrado do Maranhão, Piauí e Tocantins. (...) Estimativas do mercado dão conta que exista no mundo aproximadamente US$ 20 bilhões dis-poníveis para compra de terras agrícolas em todos os países, sendo que pelo menos US$ 5 bilhões teriam como destino certo o Brasil. (...) Esses investidores estão de olho em 20 milhões de hectares disponíveis para a agricultura, que estão fora do bioma amazônico e não são áreas de pas-tagem. Desse total, a estimativa é que pelo menos 4 milhões de hectares sejam divididos por 15 grandes grupos, entre investidores estrangeiros e empresas nacionais profissionalizadas, interessados tanto na aquisição de terras para investimento quanto na produção de grãos e fibras. (...) Levan-tamento feito pelo Valor mostra que essas empresas já possuem pelo me-

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nos 2 milhões de hectares, a maior parte deles no Mapito e no oeste baia-no, mas também em terras em Mato Grosso. (...) De modo geral, existem dois grupos de investidores. O primeiro, geralmente formado por fundos interessados em aplicações de longo prazo na aquisição de terras baratas para torna-las produtivas e ganhar na valorização e um segundo interes-sado em terras para produção. (Valor Econômico - 27/05/2010)

Como se vê nos exemplos acima há controvérsias sobre o volume de

terras já pertencentes a grupos, empresas e fazendeiros estrangeiros, bem como são diferentes os interesses que movem esta nova onda de internacionalização das terras brasileiras, mas a existência e a gravidade de tais fatos são inegáveis, assim como, é inegável a contribuição deste processo para a fragilização de nossa territorial, bem como alimentar, como veremos a seguir.

3. AS TRANSFORMAÇõES RECENTES NA DINâMICA PRODUTIVA DA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA E A CRESCENTE INSEGURANÇA ALIMENTAR

Segundo dados do IBGE, entre 1996 e 2006 houve ligeira redução da área total dos estabelecimentos agropecuários, decorrente, sobretudo, da re-dução da área das pastagens naturais. Por outro lado, verificou-se aumento das áreas destinadas a lavouras, pastagens plantadas e matas.

Quando analisamos mais detidamente estes dados, verificamos que não se trata de um crescimento generalizado. A análise comparativa da evolução da área plantada de alguns dos principais produtos agrícolas, bem como da produ-ção de bovinos e de madeira, indica que a área plantada com alimentos básicos decresceu, ao passo que a área destinada cultivos destinados majoritariamente

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à exportação e a fins industriais (produção de ração, energia e papel e celulose). A área destinada à produção de três alimentos básicos na dieta da popu-

lação brasileira (arroz, feijão e mandioca) reduziu-se em mais de 2,5 milhões de ha entre 1990 e 2006.

No caso do arroz (Gráfico 8), a redução foi de quase 1/3, sendo que na região Sudeste essa cultura praticamente desapareceu e apenas na região Sul verificou-se aumento ao longo das duas últimas décadas, tendo inclusive esta região ultrapassado o Nordeste na condição de região com maior área plantada.

No que diz respeito ao feijão (Gráfico 9) a redução foi de aproximada-mente ¼ e, neste caso, generalizado por todas as regiões do país. Vale dizer que, apesar da redução apresentada, o Nordeste permanece sendo a região com maior área plantada.

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Quanto à mandioca (Gráfico 10), verificou-se no período uma ligeira expansão da área plantada, sobretudo, em função da expansão desta cultura na região Norte – provavelmente associado à multiplicação de assentamentos ru-rais na região. Vale dizer ainda que, mais uma vez, a região Nordeste destaca-se como a de maior área plantada.

Em contrapartida, a área destinada ao cultivo de produtos voltados prio-ritariamente para exportação ou transformação industrial, aumentou. Conside-rando-se apenas três destes produtos – cana-de-açúcar, soja e milho – a área plantada foi ampliada de 27.930.804 ha para 44.021.847 ha, um crescimento de 57,6%. Vale destacar que entre 1990 e 2008, a soja ultrapassou o milho em termos de área plantada, assumindo a condição de maior lavoura do país.

Em termos proporcionais, o maior crescimento verificou-se na cana-de--açúcar, cujas destinações fundamentais são a produção de açúcar para exporta-ção e de álcool combustível para o mercado interno. A área plantada aumentou 90% entre 1990 e 2008, sendo que no Sudeste – que planta hoje 2/3 da área de cana do país – e no Centro-Oeste a área plantada mais que dobrou e só no Nordeste houve redução da mesma.

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Vale dizer que esta expansão é estimulada por recursos públicos. Entre 2008 e 2009, estima-se que o setor sucroalcooleiro tenha recebido mais de R$ 12 bilhões do BNDES, verba esta extraída, em grande medida, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

No caso da soja, cuja destinação fundamental é a exportação, seja in natura, seja na forma de farelo para fabricação de ração, o crescimento da área plantada foi de 82%, sendo que este ocorreu em todas as regiões do país, embo-ra com destaque para o Centro-Oeste que ultrapassou o Sul como região com maior área plantada.

Embora mais modesto o crescimento da área plantada de milho – cuja destinação principal é a produção de ração, seja para o mercado interno, seja para exportação – também se verificou, exceção feita ao Sudeste, onde houve redução da área plantada de milho.

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ALENTEJANO, P. Questão agrária no Brasil...

Outro dado revelador dos caminhos da produção agropecuária brasileira é o relativo à expansão da criação de bovinos no Brasil, atividade que se carac-teriza pelo caráter extensivo, e cujo número de cabeças já é maior que o número de brasileiros. Neste caso observamos que a criação de bovinos expandiu-se em todas as regiões do país, mas com destaque para o Centro-Oeste que possui o maior rebanho bovino do país e o Norte que teve maior crescimento no perí-odo (triplicou o rebanho) e assumiu a condição de segundo maior rebanho do país, ultrapassando o Sudeste.

Por fim, vale registrar também o grande crescimento da produção de madeira no país a partir da silvicultura, isto é a produção em escala industrial de árvores para fabricação de papel e celulose ou carvão vegetal, ou ainda madeira para a indústria moveleira, da construção civil, entre outros usos.

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De acordo com o gráfico 15, a produção de madeira mais que dobrou, expandindo-se em todas as regiões, mas, sobretudo, no Nordeste.

Já quando consideramos somente a produção de madeira voltada para a produção de papel e celulose – que representa 57,5% da produção total de madeira – verificamos que o aumento foi da ordem de 76%, mais uma vez com destaque para o Nordeste, onde a produção era irrisória nos anos 1990 e expandiu-se quase 100 vezes ao longo do período.

O quadro 2, abaixo, formulado por um instituto ligado ao agronegócio é revelador das estratégias produtivas dominantes hoje no Brasil.

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ALENTEJANO, P. Questão agrária no Brasil...

Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, as três principais culturas mencionadas acima – soja, cana e milho – respondem por 52% do PIB Agrícola do país.

Se compararmos o crescimento da população brasileira com o crescimen-to da produção agrícola, verificaremos que o quadro de insegurança alimentar se evidencia. Entre 1991 e 2010, a população brasileira passou de 146.917.459 habitantes para 190.715.799 habitantes, um crescimento de 29,8%. No mesmo período, a produção de arroz aumentou 33% e a de feijão 27%, ou seja, a de arroz superou levemente o crescimento populacional e a de feijão ficou abaixo deste, o que significa dizer que caiu a disponibilidade de feijão por habitante, o que explica que este produto seja importado hoje até da China. Por outro lado, a produção de milho cresceu 237%, a de cana-de-açúcar 255% e a de soja 288%, o que confirma a prioridade da agricultura brasileira atual pelos produ-tos voltados para exportação ou a produção de matérias primas para a indústria em detrimento da produção de alimentos para a população.

Por fim, vale dizer que estas transformações têm sido impulsionadas com base em recursos públicos: dos estabelecimentos que receberam financiamen-to, 85% tiveram como uma das fontes algum programa governamental – com 57,6% dos recursos. Além disso, este financiamento é profundamente desigual: em 2006, os estabelecimentos com 1.000 ou mais hectares (0,9% do total) cap-taram 43,6% dos recursos e os com até 100 hectares (88,5% dos que obtiveram

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financiamento) captaram 30,42% dos recursos. Segundo Sauer (2010) o agronegócio recebeu R$ 65 bilhões para custeio

e investimentos para a safra 2008/2009, o que é 500% superior aos R$ 13 bi-lhões concedidos à agricultura familiar.

Ainda segundo o autor, entre 2007 e 2009 o Tesouro Nacional gastou R$ 2,3 bilhões de reais com a securitização da dívida agrícola e a Receita Federal estima em R$ 8,85 bilhões a renúncia fiscal relacionada a isenção de impostos concedidas ao setor agropecuário.

Isto significa dizer que o dinheiro extraído pelo governo do povo brasi-leiro através do impostos está financiando nossa insegurança alimentar.

4. a PErSISTêNCIa da vIoLêNCIa, da EXPLoração do TrabaLHo E da dEvaSTação aMbIENTaL No CaMPo BRASILEIRO COMO CARACTERÍSTICAS CENTRAIS DE NOSSO MODELO AGRÁRIO.

O modelo agrário dominante no Brasil sempre foi marcado pela violên-cia, a intensa exploração do trabalho e a devastação ambiental e nos últimos anos estas características só têm sido reforçadas pelas transformações aponta-das acima.

Os dados sobre a violência no campo levantados pela CPT ao longo dos últimos 25 anos apontam que 2.709 famílias, em média, foram anualmente ex-pulsas de suas terras; 63 pessoas, em média, foram anualmente assassinadas no campo brasileiro por lutar por um pedaço de terra; 13.815 famílias, em média, anualmente foram despejadas através de ações exaradas pelo Poder Judiciário de alguma unidade da federação e cumpridas pelo poder Executivo por meio de suas polícias; 422 pessoas, em média, foram anualmente presas no Brasil por lutar pela terra; 765 conflitos, em média, ocorreram anualmente diretamen-te relacionado à luta pela terra; 92.290 famílias, em média, foram anualmente envolvidas diretamente em conflitos por terra! (PORTO-GONÇALVES & ALENTEJANO, 2010).

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ALENTEJANO, P. Questão agrária no Brasil...

Na fronteira entre a violência e a exploração do trabalho temos a questão do trabalho escravo, posto que se trata ao mesmo tempo de uma violação dos direitos humanos e uma gigantesca fonte de lucro para os empresários. Mais uma vez, os dados da CPT são eloqüentes ao apontar para o crescimento desta prática nos últimos anos.

Vale ressaltar que é no setor sucroalcooleiro que estes têm se concentra-do.

Em 2007, dos 5.974 trabalhadores resgatados da escravidão no campo brasileiro, 3.060, ou 51%, foram encontrados no monocultivo da cana de açúcar. Em 2008, dos 5.266 resgatados, 2.553, ou 48% dos trabalhadores mantidos escravos no país estavam em plantações de cana. (Mendonça, 2010)

A autora chama atenção ainda para o fato de que muitas das usinas que têm sido flagradas utilizando trabalho escravo têm participação acionária do BNDES ou obtiveram financiamento público.

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Em 2009, o Ministério do Trabalho inclui grandes usinas na chamada “lista suja” do trabalho escravo. Uma delas foi a Brenco, que tem parti-cipação acionária de 20% do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvi-mento Econômico e Social). Entre 2008 e 2009, o BNDES liberou R$ 1 bilhão para usinas da Brenco em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. Ao mesmo tempo, o Grupo Móvel expediu 107 autos de infração contra a empresa, que é presidida pelo ex-presidente da Petrobras Henri Philippe Reichstul. Apesar da prática de trabalho escravo, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, anunciou a continuidade do financiamento para a Brenco. Em 31 de dezembro de 2009, foi a vez do grupo Cosan -- a maior empresa do setor sucroalcooleiro do país, com produção anual de 60 milhões de toneladas de cana. Apesar da prática de trabalho escravo, a Cosan recebeu R$ 635,7 milhões do BNDES em junho de 2009, para a construção de uma usina de etanol em Goiás. O BNDES manteve o fi-nanciamento para a Cosan, mesmo após a evidência de trabalho escravo. A Cosan possui 23 usinas, controla os postos da Exxon (Esso do Brasil) e teve um faturamento de R$ 14 bilhões de reais em 2008. (Mendonça, 2010)

No que diz respeito à devastação ambiental, dois aspectos podem ser considerados centrais: o desmatamento promovido pela expansão da fronteira agrícola e o uso cada vez mais intenso de agrotóxicos na agricultura brasileira.

Em relação ao desmatamento resultante da expansão da fronteira agríco-la, dados do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig), da Universidade Federal de Goiás, indicam que o ritmo atual de des-matamento do Cerrado poderá elevar de 39% para 47% o percentual devastado do bioma até 2050. A pesquisa demonstra ainda que a destruição do Cerrado coloca em risco a disponibilidade de recursos hídricos para o Pantanal e a Ama-zônia, pois estes biomas estão interligados. (Mendonça, 2010)

Os mapas a seguir indicam a correlação entra a expansão da fronteira agropecuária brasileira e o desmatamento crescente do cerrado e da Amazônia.

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ALENTEJANO, P. Questão agrária no Brasil...

Quanto aos agrotóxicos é digno de nota que o Brasil se transformou nos últimos dois anos no maior consumidor mundial de agrotóxicos, ultrapassando os EUA, conforme revela a tabela abaixo.

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Isto se deve, em larga medida, ao crescimento das lavouras de exportação que são as que mais consomem agrotóxicos, conforme tabela abaixo, embora seja importante registrar que os produtos alimentares também estão sendo in-tensamente contaminados.

CONCLUSÃO

A análise empreendida ao longo do presente texto coaduna-se com a desenvolvida em recente texto por Almeida (2009), para quem os atores políti-cos ligados ao agronegócio têm desenvolvido forte pressão política no sentido de ampliar o volume de terras à disposição da expansão do setor. Segundo o autor, as agroestratégias são um conjunto articulados de discursos, ações e me-canismos construídos por agências multilaterais e conglomerados financeiros e agroindustriais para incorporar novas terras para a expansão da produção de commodities agropecuárias.

No caso brasileiro, faz parte das agroestratégias a disseminação de uma visão triunfalista dos agronegócios articulada com uma imagem hiperbolizada do Brasil e de seu potencial agrícola. De acordo com esta formulação, no Brasil a terra seria um bem ilimitado e permanentemente disponível.” (ALMEIDA, 2009: 68)

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ALENTEJANO, P. Questão agrária no Brasil...

O foco principal dessas agroestratégias são as áreas de preservação am-biental, as terras indígenas, quilombolas, de assentamentos rurais e de uso co-mum, vistos como obstáculos a serem removidos, visando ampliar a oferta de terras no mercado de terras que vive momento de intenso aquecimento, derivado inclusive do crescente interesse de grupos estrangeiros na aquisição de terras no Brasil

Segundo o autor, as principais agroestratégias em curso são: (1) redefi-nição da Amazônia Legal, com a exclusão de Mato Grosso, Tocantins e Mara-nhão, possibilitando a incorporação imediata de 145 milhões de ha, em função da redução da área destinada à preservação ambiental; (2) redução de 80% para 50% na área de reserva legal da Amazônia; (3) liberação de crédito para quem praticou crime ambiental, evitando que os agronegociantes fiquem sem acesso a estes recursos; (4) privatização de terras públicas com até 1500 ha sem lici-tação na Amazônia – MP 422/2008; (5) redução da faixa de fronteira onde é proibida a compra de terras por estrangeiros de 150 para 50km; (6) revogação do dispositivo constitucional que prevê a titulação das terras de remanescentes de quilombos.

Embora Almeida não se refira à criminalização dos movimentos sociais, levada a cabo pela mídia e pelo Estado brasileiro, vide CPI do MST, creio que podemos incluí-la entre essas agroestratégias, visto que faz parte dos processos de afirmação do agronegócio, contra os que defendem a democratização da terra no Brasil. Da mesma forma, pode se entender assim a resistência oposta pelo agronegócio à atualização dos índices de produtividade que balizam a pos-sibilidade de desapropriação de terras para fins da reforma agrária, pois como nos lembra Medeiros:

Terras improdutivas ou produzindo pouco fazem parte das necessidades criadas pela expansão das atividades empresariais. Transformá-las em áre-as passíveis de desapropriação, com a possibilidade de se transformarem em assentamentos, significa subtraí-las do mercado e excluí-las do cerne desse circuito de reprodução” (MEDEIROS, 2010: 4)

Por outro lado, os segmentos que defendem a reforma agrária e a justiça

no campo têm afirmado a importância da reafirmação desta luta, assim como associado-a a outras bandeiras, como a causa ambiental, a soberania alimentar e a luta pela democracia.

Carter (2010) destaca cinco contribuições que o MST tem dado para o fortalecimento da democracia no Brasil: combate a desigualdade; fortalece a

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sociedade civil; promove a cidadania; estimula a participação social e política; produz utopia.

Infelizmente, esta luta não tem se traduzido no avanço da reforma agrá-ria no Brasil, pois como afirma o mesmo Carter:

As medidas de reforma agrária adotadas até o momento procuravam sa-tisfazer exigências imediatas, neutralizar conflitos locais e, acima de tudo, evitar um confronto maior com os grandes proprietários de terra. Dessa forma, elas não representaram ações contundentes com o objetivo de transformar o sistema fundiário e suas assimetrias nas relações de poder. O efeito distributivo das políticas agrárias do Brasil, apesar de significati-vo em alguns municípios, tem tido um impacto mínimo sobre a estrutura agrária do país. Mesmo com as iniciativas promovidas no primeiro go-verno Lula, a reforma agrária brasileira é, em termos proporcionais, uma das menores de toda a América Latina. (...) No total, esse processo de reforma beneficiou 5% de toda a força de trabalho agrícola e distribuiu 11,6% do total de terras cultiváveis.” (Carter, 2010: 60/61)

E isto não se dá por falta de terras disponíveis para a reforma agrária, pois segundo Delgado (2010) persistem hoje no Brasil 120 milhões de ha im-produtivos autodeclarados e 172 milhões de ha de terras devolutas.

Ao invés de fazer a reforma agrária nas áreas onde as lutas pela terra se concentram, o que os sucessivos governos brasileiros vêm fazendo é empurrar as famílias assentadas para a fronteira agrícola, no que denominamos de des-colamento geográfico entre as lutas pela terra e a política de reforma agrária (Alentejano, 2004) e outros autores também têm destacado.

...os assentamentos de reforma agrária estão concentrados nas regiões de fronteira e nas partes mais empobrecidas do país (...) Mais de 70% das terras repartidas entre 1985 e 2006 estão na Amazônia, a dizer, na região Norte e os estados vizinhos de Mato Grosso e Maranhão. No entanto, a pressão mais intensa pela reforma agrária aconteceu nas regiões Sul e Sudeste do país. Entre 1988 e 2006, essas duas regiões do país – de fato as mais desenvolvidas e onde o valor das terras é mais alto – registraram a metade das ocupações de terra, mas só tiveram o assentamento de 9% das famílias, numa área total que apenas alcançou os 5% do território distribuído pelo Estado. (CARTER & CARVALHO, 2010: 294)

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ALENTEJANO, P. Questão agrária no Brasil...

Com base nisso, os movimentos sociais e demais entidades reunidas no Fórum Nacional pela Reforma Agrária e a Justiça no Campo vêm defendendo o estabelecimento do limite de 35 módulos fiscais para o tamanho da pro-priedade da terra no Brasil. Com base nessa medida, poderiam ser destinados mais de 200 milhões de hectares para a reforma agrária, conforme a tabela e o Gráfico abaixo.

E assim, chegamos ao século XXI, sem que a reforma agrária seja priori-dade dos sucessivos governos, ditatoriais ou democráticos, mas sem que deixe de ser um espectro permanentemente presente na pauta política nacional, pos-to que:

O debate em vigor no Brasil sobre a reforma agrária toca assuntos que ultrapassam a questão fundiária e o desenvolvimento rural. Os assuntos em pauta levantam problemas mais profundos da sociedade brasileira. Na alvorada do século XXI, a reforma agrária continua sendo parte de uma conversação complexa e contenciosa sobre o futuro do Brasil – suas promessas e necessidades, seus temores e sonhos. (Carter, 2010: 71).

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BIBLIOGRAFIA

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A PROPRIEDADE PRIVADA DA TERRA NO PROCESSO DE URBANIZAÇÃO. CRISE E REPRODUÇÃO CRÍTICA1

REAL STATE IN URBANIZATION PROCESS. CRISES AND CRITICAL REPRODUCTION

LA PROPIEDAD PRIVADA DE LA TIERRA EN EL ProCESo dE urbaNIZaCIÓN. CrISIS Y

REPRODUCCIÓN CRÍTICA

ANA CRISTINA MOTA SILVAAGB - Seção São Paulo

[email protected]

Resumo: A modernização no Brasil se evidencia de diferentes formas. Fenômeno sócio-espacial

que se coloca como reprodução crítica no momento em que a mobilização espacialmente

circunscrita potencializa projetos de produção espacial e revela lógica-historicamente a

contradição do capital urbano-industrial. Esta pode ser analisada sob dois momentos: através

da produção do urbano sem a produção de cidades e como um fenômeno que produz o

consumidor a evidenciar a incapacidade duma produção do trabalhador. Em síntese esse

processo se coloca como crise de valorização do valor a mobilizar/expropriar não somente

a população do campo, mas redefinir os elementos da relação campo-cidade, como crise da

reprodução ampliada e reprodução crítica. Objetiva-se analisar a mobilização da propriedade

privada da terra como processo social que legitima a substância da urbanização brasileira,

territorialmente violenta e expropriadora. Discute-se a urbanização sob as necessidades do

modo de vida urbano em que a construção de barragens, hidrelétricas e represas atualiza

criticamente esta modernização definida pelas necessidades urbanas.

Palavras chave: Urbanização; reprodução crítica; modernização; produção espacial;

propriedade privada do solo.

1 Texto resultante do Pós-doutorado intitulado: Circulação simples, reprodução ampliada. Produção espacial e contradição agrário-urbana do município de Itapipoca, Ceará. Departamento de Geografia, FFLCH-USP, São Paulo, 2008. Pesquisa financiada pelo CNPq - bolsa Pós-doc Júnior. Supervisora: Ana Fani Alessandri Carlos.

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.96-125 Jan-Jun 2011

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Terra Livre - n.36 (1): 96-125, 2011

Abstract: The modernization in Brazil has different forms of evidence. It’s a socio-spatial

phenomenon that puts itself as critical reproduction at the same time that the mobilization

spatially circumscribed make potent projects related to the spatial production. This reveals

logic and historically the contradiction of the urban industrial capital. This contradiction can

be analyzed under two moments: through the production of the urban with no production

of the cities and as a phenomenon that produces de consumer evidencing the incapacity to

produce the worker. This processes, synthetically, puts itself as crises of the valorization of the

value and mobilizes/expropriates not only the rural population, but redefines the elements of

rural-city relation as crises of the enlarge reproduction and as critical reproduction. Is aimed to

analyze the mobilization of the real estate as a social process that legitimates the substance of

the Brazilian urbanization, territorially violent and expropriator. It is discussed the urbanization

under the necessities of urban way of life where the constructions of embankment actualizes

critically this modernization defined by urban necessities.

Keywords: Urbanization; critical reproduction; modernization; spatial production; real estate

Resumen: La modernización en Brasil se evidencia de diferentes formas. Fenómeno socio-

espacial que se pone como reproducción crítica en un momento en que la movilización

espacialmente circunscrita potencializa proyectos de producción espacial y pone de manifesto

lógico-históricamente la contradicción de lo capital urbano-industrial. Esta puede ser analizada

bajo dos momentos: a través de la producción del urbano sin la producción de las ciudades

y como un fenómeno que produce el consumidor a mostrar la incapacidad de la producción

del trabajador. En resumen este proceso se presenta como crisis de valorización del valor,

a movilizar/expropiar no sólo la población del campo, sino a redefinir los elementos de la

relación campo-ciudad, como crisis de la reproducción ampliada y reproducción crítica. El

objetivo es analizar la movilización de la propiedad privada de la tierra como un proceso social

que legitima la substancia de la urbanización brasileña, territorialmente violenta e expropiadora.

Se analiza la urbanización bajo las necesidades del modo de vida urbano en que la construcción

de presas, represas hidroeléctricas, actualiza críticamente esta modernización definida por las

necesidades urbanas.

Palabras clave: Urbanización; reproducción crítica; modernización; producción espacial;

propiedad privada de la tierra

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SILVA, A.C.M. A propriedade privada da terra...

enquanto a terra era solta, ele num dizia nada por que era solto, né? De-pois que fez o cercado ele num queria que o cabra butasse dentro2.

INTRODUÇÃO

No Brasil as pesquisas entorno das terras comuns definiram e exigem um recuo de longa duração para muitos autores, pois pensar a propriedade territorial sem a especificidade que a ocupação destas terras comuns permitiu seria, de an-temão, um percurso anacrônico, visto que não se faria, mesmo com brevidade, sem retomar autores clássicos. Estes fizeram tal discussão com base nos vários momentos em que os grandes eventos definiram temporal e espacialmente uma forma de apreensão deste modo de ocupação, apropriação e do uso comum.

Isto significa dizer que partir da análise da propriedade territorial sem fa-zer referências às Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603) seria deixar de considerar recortes têmporo-espaciais importantes para compreensão da realidade brasileira. Seja para esclarecer os termos da adminis-tração no Brasil – suporte jurídico (SALGADO, 1985; BANDECCHI, 1972; FAORO, 1958) – ou mesmo a origem do latifúndio brasileiro (BANDECCHI, 1967), todavia, centralizando ainda nas sesmarias, nos atributos da posse e pro-priedade.

Recortes têmporo-espaciais que foram apreciados também nos recuos à análise do Regimento de Tomé de Souza sobre a concessão de terra, primeiro governador geral e na carta atribuída a Martim Afonso de Sousa sobre os po-deres de partilhamento das terras brasileiras e povoamento.

Como ainda, contemplados na análise dos estatutos da criação da lei de terras, a lei n. 601, esta como instrumento jurídico a dificultar o acesso à terra que não fosse pelas condições legais instituídas pela compra e venda da terra, na tentativa de eliminar as brechas e sobras deixadas pelas condições anteriores (regimentos e jurisdições), as quais permitiam também a constituição de cam-poneses comuns, moradores-posseiro nas terras comuns e dos atuais campos abertos3.

Estas referências e análises das pesquisas com recuos de longa duração potencializaram uma interpretação profícua sobre a formação brasileira.

Este percurso de pesquisa se mostrou sempre como o caminho mais se-guro e fértil e é de certa forma uma compreensão legítima do ponto de vista da

2 Depoimento: morador-posseiro. Comunidade de Brandão, janeiro de 2006.

3 Noções apreendidas a partir da pesquisa de campo serão expressas em itálico ao longo do texto, salvo ao se tratar de autores, então, serão indicadas.

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apreensão de um mesmo fenômeno sócio-espacial: a formação da propriedade privada no Brasil. Seja também esta compreensão necessária para encontrar as raízes do latifúndio no Brasil em que a posse aparece como elemento estraté-gico dos homens livres e pequenos proprietários, contra o monopólio da ter-ra, entretanto, quando com condições econômico-sociais favoráveis a formar grandes proprietários de terra (GUIMARÃES, 1968).

Tal análise ainda contribui para encontrar os indícios das leis de reparti-ções de terra no Brasil, desde a primeira lei de sesmarias, a lei de D. Fernando. A demarcação e domínio das terras ocupadas, concedidas e doadas (PORTO, s.d.), a abertura de nova legislação agrária (DIEGUES, 1959). Contribui ainda em compreender como se efetivou o surgimento da propriedade territorial a partir dos alvarás, das leis e artigos em jurisdição no reino e sua adaptação para o caso brasileiro (LIMA, 1991).

Observa-se, também, a necessidade de se analisar a violência do proces-so de expropriação da terra juntamente com o nascimento da terra como mer-cadoria em que numa formação econômico social específica, as relações não capitalistas aparecem como condição necessária para a realização de relações capitalistas e reprodução ampliada do capital. A terra nesse contexto – preço da terra – põe-se sob a forma de equivalência como renda territorial capitalizada (MARTINS, 1990).

A propriedade territorial ainda é percurso de pesquisa quando esta per-mitiu a formação do arraial, das freguesias e cidades a partir da criação de patrimônios: religiosos, públicos, leigos (MONBEIG, 1957; MORAES, 1935) e concessões, como momentos importantes de destituição-instituição da pro-priedade territorial no Brasil e revelador da maneira pela qual se instituíram os proprietários de terra, a estrutura fundiária e a terra urbana (MARX, 1991).

Momentos estes de constituição do mercado de terras, o qual aparece como elemento de compreensão da produção do espaço urbano brasileiro.

O espaço urbano compreendido a partir da mobilização e imobilização financeira a constituir a formação da riqueza patrimonial a partir do entesoura-mento (SILVA, 2005) como momento simultâneo de potencialização do imobi-liário urbano e agrário a produzir cidades e vilas no Brasil.

Isto porque possibilita um movimento do espaço cartesiano - das léguas e braças, como materialidade de um território, o qual se institui, ao nascimento dos lotes, quadras e quarteirões, isto é, a espacialidade circunscrita daquilo que se formou, porquanto, destituição - de dimensões espaciais que se realizam des-de um corpo estendido no espaço ao espaço abstrato4, como momentos desta

4 Ambos os espaços são abstratos – cartesiano-abstrato – contudo, parte-se da idéia e níveis de abstração

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SILVA, A.C.M. A propriedade privada da terra...

produção e territorialização agrário-espacial, dentre outros exemplos. Estes são percursos profícuos de pesquisa e de análise no Brasil.

De modo que o processo de formação da propriedade territorial no Bra-sil é permeado de continuidades e descontinuidades (LEFEBVRE, 1974) em que é possível acompanhar a territorialização de um mesmo fenômeno sócio-espacial em seus vários momentos – níveis. Isto reafirma a idéia de lidar aqui com esses momentos ínfimos, fragmentações e com as desigualdades que este processo social manifesta quando da sua territorialização. Consideram-se, portanto, os termos do que se coloca como formado (formação) a partir daquilo que vai se materializando como prática agrário-espacial nas comunidades em análise (pes-quisa) – sendo a terra a base material que vai territorializar esta prática.

Isto significa pensar que a compreensão do que se coloca como conteú-do social – do que se considera aqui como terras comuns – está a exigir o conhe-cimento do que foram estas terras no passado próximo – recuo. À medida que o movimento da propriedade privada do solo evidencie superposições simultâ-neas e contraditórias de processos desiguais.

Os momentos, níveis e dimensões fazer-se-ão como momentos analíti-cos e necessários.

TERRAS COMUNS. A PROPRIEDADE TERRITORIAL E SUAS SOBRAS. OS CAMPOS ABERTOS.

Esta pesquisa analisa as comunidades agrárias localizadas no Estado do Ceará, particularmente, no norte do Estado (interior) e tem como recorte têm-poro-espacial a década de noventa, contudo, a análise que segue se efetiva a partir da síntese de regressos e progressos (recuos) na busca de se compreender a totalidade de fenômenos se espacializando. Espacialização que se dá através da (i) mobilização5 da propriedade privada da terra.

Torna-se importante a explicação de que estas mesmas terras comuns e campos abertos aparecerão na pesquisa a partir desses momentos e níveis, às ve-zes, no conflito pela terra, noutras como reveladores da prática do uso comum

o que vai diferenciá-los enquanto conceitos importantes para a compreensão desta produção espacial na análise de vilas, cidades e metrópoles no Brasil. Para o segundo – espaço abstrato – carrega as dimensões espaciais que definem e se confundem com a denominação que o sintetiza através da sua condição de mercadoria, o qual se realiza como abstração concreta ( LEFEBVRE, 1974).

5 Esta noção (i) mobilização possibilita pensar tanto a espacialização de fenômenos sócio-espaciais cons-tituindo os negócios com a terra, como também a ausência dos mesmos. Ambas as formas produzem espacialmente uma reprodução que se efetiva como crítica. A saber: a venda e compra das terras nestas comunidades espacializam uma reprodução, como, a sua ausência, produz, noutros termos, a expansão dos arrendamentos, dentre outros momentos e fenômenos. Discussão que acompanha a pesquisa.

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– territorialização – e ainda como contradição a evidenciar de uma única vez o conflito e a apropriação.

Em síntese, sempre como condição necessária de exposição de um pro-cesso social se realizando, todavia, como realidade em movimento.

Aqui, na pesquisa, – na manifestação da história oral, costumes imemo-riais6 – as terras comuns já aparecem como atribuídas a um domínio específico. No entanto, a forma pela qual foram apropriadas estas terras mantém os atri-butos de antigas sesmarias, mas simultaneamente, terras atualmente de her-deiros, negócio, posseiros, trabalho, vilas, fazendas e sintetizam numa única dimensão a afirmação premente e usual dos termos da terra como mercadoria, terra mercadoria.

O movimento de (i)mobilização destas terras se pôde observar na pesqui-sa de campo e acompanhá-lo. Estes momentos podem ser sintetizados numa única terra: a terra de herdeiros. Esta síntese envolve têmporo-espacialmente as relações de parentescos, gerações antecedentes, subseqüentes e décadas do século XX, precisamente no início dos anos vinte e dias atuais.

O movimento que se acompanhará aqui envolve especificamente parte das terras que sintetizaram até o começo da década de oitenta a territorialização das terras comuns, todavia, a incorporar o século XX com as divisões, compras, transferências das demais terras apontadas acima.

Partirá esse movimento inicialmente da totalidade destas terras formadas (ção), como mobilização das terras comuns territorializadas por posseiros, fazen-das e moradores-posseiro expulsos.

Por último, a análise destas mesmas terras vai aparecer como terras (i)mobilizadas por parte da população desapropriada e expropriada através do projeto de desenvolvimento: para construção do Açude Gameleira (barragem).

A última venda, no que diz respeito a estas terras, a qual se refere o morador-posseiro no depoimento, a seguir, corresponde ao começo da década de noventa, exercida pelo último e novo proprietário de parte destas terras.

Há de considerar também que já não mais nos referimos aqui às ter-

6 Nas entrevistas se pôde observar uma longa tradição nas comunidades com relação à memória oral, a qual se consolida como testemunho e transferência de conhecimento. Síntese das antigas práticas re-ligiosas e lavras – trabalho na terra e da atividade de criar. Uma melhor compreensão desta memória transcrita se pode vislumbrar através dos depoimentos (uma das fontes da pesquisa). Convém observar o uso invertido das letras, por exemplo, na troca do V pelo R, às vezes, o R é pronunciado de forma aguda, com som de RR. Assim, a palavra vende é pronunciada rende, teve se pronuncia terre. Há também a troca do R pelo uso do S e a ausência do S e do LH, em que as consoantes são substituídas pelas vogais. Na transcrição se valorizou as orações construídas por estes moradores, nos casos mais difíceis a palavra utilizada na linguagem formal aparece entre colchetes, estes aparecem ainda quando da incompreensão durante a transcrição. Portanto, os depoimentos não foram reescritos, apenas transcritos e ligeiramente tornados compreensivos.

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ras comuns apropriadas através da prática do uso comum. Estas envolviam os quase dezesseis km de extensão, mas ao movimento destas terras parceladas, divididas e em processo de divisão.

No depoimento abaixo do morador-posseiro, reúnem-se parte destes vários momentos, ou seja, as mudanças sociais pelas quais passaram e estão passando na (i)mobilização destas terras:

Aí nós riemo [viemos] pra cá, e de lá pra cá nunca mais saímo, praqui já faz, sendo, foi do Joa. de Pa. foi o primeiro, ele morreu, aí ficou prum [para um] filho dele, o Jo. de Pa. chamarram Jan., passou uns poucos de ano, ele tombém [também] Deus chamou, aí do seu Jan. ficou pro Man. Pa. que foi aquele que morreu agora há pouco e do Man. Pa. passou pra dona Ma. Doc. uma muier [mulher] que o seu Jan. terre [teve] junto com ela, e, terre uns filho, aí disse que tinham parte aí de herança, pra esses menino que ele mora em Fortaleza. É o Mo., É a Noe. e outro, que num me lembra nem do nome, são bem três, aí ficaram com essa parte aqui da Timbaúba, passou uns anos, a dona Ma., sendo dona disso aqui, aí ela foi ficando mais usada e, trabaiou muito, mais num sabia trabaiar, aí nunca foi pra frente. Sempre era cansada, ela fazia muito movimento, mais num tinha bem prática pra serriço [serviço] não. Fazia coisa que tinha prejuízo, aí se desvaniceu. Rendeu [vendeu] ali pro seu Man. Mat., seu Man. Mat. foi dono disso aqui uns dias, mais seu Man. o sujeito dichi [disse] que era ruim, mais eu nunca achei ele ruim, nunca achei ninguém ruim!Aqui onde o senhor tá é do seu Man.? Foi dele, hoje é do Moi. Aí rendeu [ven-deu] já pro seu Moi. Aquele que mora lá em Cratéus e o Ed. rérri [vive] aí na Itapoca [Itapipoca], domina essa terra aqui7.

No contexto dos costumes imemoriais o depoente se refere a terra como um todo em que as divisões e os proprietários antigos e novos, aos poucos, aparecem. Razão pela qual o surgimento do proprietário seguinte está implícito naquilo que reúne a religião e a morte. Ao fazer este movimento pelos pro-prietários e relação, nos coloca diante sempre do novo proprietário, isto é, do proprietário seguinte e nos esclarece parte do processo de (i)mobilização.

Mas se refere também o mesmo à ausência de trabalho (i)mobilizado nes-ta terra. E à medida que os proprietários aparecem como novos proprietários, porém, temporariamente, as (i)mobilizações no que diz respeito ao trabalho

7 Depoimento: morador-posseiro. Timbaúba. Comunidade de Nova-Assis, julho de 2007. Todas as ano-tações entre colchetes e em itálico nos depoimentos são da autora.

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objetivado na terra também se põem como circunstanciais. E pode-se afirmar que as (i)mobilizações encontradas até a década de noventa do XX, advinham dos trabalhos desses moradores-posseiro e se apresenta no presente como ter-ritorialização posta e causa de conflitos pela terra.

Este movimento - mudança de proprietários - atravessa as herdades e se constitui na essência da (i)mobilização espacial e territorial nas comunidades à medida que, ao mesmo tempo, se realiza momentos de (i)mobilização formal através da herança, venda e compra, transferência, posse, como imanência da propriedade territorial como relação social.

O negócio com a terra se coloca como mediação da (i)mobilização.Ao fazer referência ao domínio distante destas terras o depoente contex-

tualiza as condições históricas das terras comuns e as dimensões que comportam, enquanto terras que, segundo o autor abaixo:

As terras de uso comum tiveram, portanto, um papel significativo para diversas comunidades rurais brasileiras. Já existiam desde o período colo-nial, entre populações dos ainda pequenos e reduzidos centros urbanos, cujos logradouros públicos e os conhecidos rossios foram também usu-fruídos coletivamente pelo povo. (...) Em termos gerais, a terra de uso co-mum tem características associadas a uma terra do povo - uma terra que é de todos. No entanto, não se constitui numa terra pertencente ao povo, no sentido de haver a propriedade coletiva de um grupo, uma comuni-dade, ou várias comunidades em conjunto. Trata-se do uso comum de determinados espaços por inúmeros proprietários individuais indepen-dentes, servindo-lhes como um ‘suplemento’, sendo, ao mesmo modo, utilizado por pessoas ou grupos de não-proprietários. Neste último caso, contudo, a noção de suplemento desaparece, pois aquela terra passa a ser a única que encontram com condições de usufruir. O fato de ser consi-derada uma terra do povo não implica forçosamente que seja uma ‘terra livre’, uma terra de usos aberto a todos. Muitos dos espaços usufruídos comunalmente são áreas privadas ou de propriedade pública em suas vá-rias instâncias. Mesmo assim, tornou-se constante o uso comum da terra e outros bens naturais nessas áreas, constituindo-se em diferentes tipos de compáscuo (como é tratado no Código Civil Brasileiro), o qual é fre-qüentemente integrado e/ou confundido com formas de condomínio ou de servidão. (CAMPOS, 2000, p.3;7-8).

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Destarte, o autor define estas terras como as terras que têm no uso co-mum o sentido dos atributos pelos quais se realiza a prática social da apro-priação. Desse modo, contribui ainda mais com elementos e contexto para se pensar também num domínio próximo e distante8, isto é, em terras, as quais abrigam os termos jurídicos de um proprietário e ainda a formar propriedade de alguém.

Observa-se para estas terras comuns uma constante projeção de (i)mobili-zação posta no proprietário com domínio distante, ou seja, a possibilidade de uma aproximação, a saber, de o mesmo buscar o domínio próximo.

Este distanciamento com relação às terras comuns como uma das formas pelas quais se materializou a negação da territorialização pelos posseiros, per-mitiu que, ao longo da história da propriedade territorial brasileira, tenham sido estas, a partir da revisão da lei de terras, incorporadas como terras devolutas e nas condições de terras pertencentes ao Estado.

É nesse sentido que a apropriação destas terras, por um lado, permite que se compreenda a prática sócio-espacial materializada nas mesmas, seja atra-vés dos atributos da posse, como ainda das pastagens em comum através de diferentes proprietários e rebanhos de gado. Por outro, nos permite também pensar esta mesma apropriação como frágil e conflituosa à medida que estas sobras e brechas são consolidadas nos domínios próximos e distantes.

Isto vem a objetivar nestas terras processos de grilagens e privatizações, estas quando apropriadas pelo Estado, materialização de suportes jurídicos, por exemplo, como terras devolutas. E, ainda, na apropriação das mesmas aos pro-jetos de desenvolvimento brasileiro.

Isto tornava possível que os conteúdos sociais estabelecidos nas mes-mas, aqui identificados a partir da territorialização da posse, sejam negados e esquecidos muito antes que se evidencie o conflito social, a saber, as expropria-ções, privatizações e contradições sociais que deste processo social de apropria-ção pelo uso comum advém.

Esse movimento posto na (i)mobilização da propriedade territorial ajuda--nos a pensar também – através destes pequenos recuos, todavia, na apreciação da realidade destas posses no campo – nas condições postas para apropriação do uso comum das terras comuns, isto é, nos conteúdos sociais, os quais se reve-

8 Fazer-se-á diferença aqui entre as terras com domínios distantes e próximos. As com domínios distan-tes compreendem as terras territorializadas pelos posseiros, terras comuns. Posseiros que substancio aqui de moradores-posseiro. Já as terras de domínios próximos estão incorporadas às fazendas a realizarem os trabalhos na terra e da atividade de criar, necessariamente gado. Esta diferença se constitui num dos mo-mentos para compreensão da instituição e destituição da propriedade territorial e acompanhará o artigo como um todo, todavia, a exposição.

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lam à medida que nos remetem às temporalidades de costumes imemoriais, ou seja, quando nos depoimentos em análise aparecem como apropriação para a reprodução social da família na criação de filhos e netos e como de fato, que ainda hoje tamo [estamos]9.

É a partir destas condições objetivas que a apropriação destas terras co-muns se coloca como formas que precedem e antecedem os termos imanentes da propriedade privada do solo no Brasil.

É imanente à pesquisa compreender como se realiza a (i)mobilização de parte destas terras que compunham as terras comuns das comunidades, isto é, como os quase oitocentos hectares de terras, divididos, transferidos e vendidos se espacializam. Sendo que, metade destas terras forma as terras da Comuni-dade de Lagoa das Pedras dos Paulos e é através desta comunidade que se pre-tende inicialmente contextualizar estes elementos presentes, em concomitância com a instituição e destituição da propriedade territorial brasileira.

Portanto, parte destas terras comuns não passou pelo processo de (i)mobi-lização, como terras de viúva10, processo apreendido na pesquisa como prática sócio-espacial. É comum, quando da morte de chefe da família – o proprietá-rio-fazendeiro – estas terras passarem a ser identificadas como terras de viúva. Este fato parece não ter nenhuma importância e relação com a discussão que vem sendo feita entorno destas terras comuns. Porém, quando estas propriedades maiores com domínios próximos, ainda quando fazendas constituíram uma ca-pela, moradores, tornaram possível a formação de moradores-posseiro, enfim, a formação e espacialização duma comunidade.

Logo que se dá a morte do chefe da família, estas terras são transmitidas diretamente para a viúva – ato que se realiza apenas informalmente, sem os atributos jurídicos da terra, mediante a legalidade do casamento – de modo que estas terras demoradamente11 vão sendo (i)mobilizadas.

Isto significa dizer que o parcelamento e a divisão de parte destas terras – terras de viúva – levam décadas para se efetivar, fato que não pode ser gene-ralizado para outros lugares. A referência aqui são as comunidades em análise e, em particular, a de Lagoa das Pedras dos Paulos.

9 Depoimento: moradora-posseira. Comunidade de Nova-Assis, janeiro de 2006. Esta compreensão apa-rece na fala das famílias entrevistadas, famílias posseiras das terras comuns. Famílias que se reproduzem atualmente através da aposentadoria nas sobras e brechas deixadas após a regularização jurídica (em processo) de parte destas terras internas às comunidades.

10 Isto ao ocorrer, a viúva tem como transmissão primeira o respeito e o poderio do antigo proprietário--fazendeiro que se manifestam na contratação do trabalho do alugado e na reprodução dos rendeiros.

11 Ou seja, as terras de viúva ficam mais tempo (i)mobilizadas como fazendas constituídas, às vezes, se reproduzindo criticamente, mas sem fragmentação da terra (SILVA, 2008).

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Ao se realizar a igualdade na divisão da propriedade territorial no ato de transmissão, ou seja, quando o processo de transmissão da propriedade se rea-liza entre as partes, por exemplo, envolvendo a viúva e filhos herdeiros, numa divisão comum, resulta que esta propriedade será novamente (i)mobilizada en-tre herdeiros.

(I)mobilização que irá incorporar a herança da viúva. Esta incorporação sugere e impõe futuras divisões e, assim, novas (i)mobilizações. Este caso ainda sem desconsiderar a (i)mobilização, a qual vai ocorrer naturalmente entre os filhos herdeiros.

Porquanto, quando a divisão se faz entre partes iguais, a parte que cor-responde à viúva, num curto espaço de tempo, será novamente dividida entre os herdeiros, (i)mobilizada e vendida em lotes, o que vem a definir o tamanho da maioria das propriedades na comunidade descrita e nas demais atualmente.

A transmissão da herança, já discutida aqui, não necessariamente se cons-titui num ato formal de realização dos trâmites jurídicos de transmissão da propriedade, – chefe-esposa – pelo contrário, a transmissão se dá sem necessa-riamente ocorrer esta formalidade. Aliás, as terras de viúva se formam quando não se realiza nenhuma divisão e subdivisão jurídica logo após a ausência de chefe de família, ou seja, quando permanecem sem transmissão direta da pro-priedade da terra entre iguais, esposa e filhos herdeiros.

Assim, estas terras passam a ser identificadas como terras de viúva. Isto se dá, inclusive, quando a viúva mantém uma relação de presença-ausência com a terra.

As terras de viúva guardam atributos identificados nas terras de santo (MEYER, 1979); terra de trabalho (MARTINS, 1991; GARCIA JR., 1983); terra da parentalha (SILVA, 1998); terra de preto (ALMEIDA, 2004); terra de índio (ANDRADE, 1990).

Embora tais terras de viúva apontadas acima, em específico, estejam sendo identificadas exatamente por não comportarem mais os conteúdos so-ciais que esta atribuição requer, isto é, um processo de (i)mobilização histórico da propriedade territorial, o qual estas comunidades permitem e contêm. A ênfase em tais terras é por se constituir num fenômeno novo de (i)mobilização dessas terras de viúva interno a Comunidade de Lagoa das Pedras dos Paulos.

Para outras terras e na mesma comunidade a terra de viúva ainda per-dura sob as condições de reprodução crítica posta nas rendas pagas em espécie – farinha e gêneros a partir da reprodução social dos rendeiros – e em dinheiro, através do arrendamento do carnaubal. Como, ainda, através das safras que os bens de raiz permitem, dos cajueiros, por exemplo, nas castanhas colhidas

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e divididas entre as partes, a legitimar as condições da relação de meação e a composição da renda familiar dos moradores-posseiro, aposentados e tomadores de renda.

A diferença com relação à identificação de parte destas terras apontadas acima através dos autores, é que não se observou na comunidade uma separa-ção entre cada tipo de terra, ou seja, não aparecem como terras que se realizam em momentos separados, contudo, numa mesma propriedade e fazenda a (i)mobilização se dá envolvendo todos os momentos, simultaneamente, das terras de trabalho, parentes, negócio, morador-posseiro, viúva, etc. como momento revelador da (i)mobilização da propriedade territorial atual à medida que esta se realiza como relação social.

Se se identifica estas (i)mobilizações nestas terras e comunidade a partir da (i)mobilização da herança dividida entre iguais – filhos e viúva – se contex-tualiza também a compra das mesmas através da venda feita pelos herdeiros a moradores antigos e aos moradores doutras comunidades; a transferência das casas de moradores antigos – antes na fazenda e do chefe da família – para as terras doutros filhos e, com isso, para outras heranças; a saída de antigos mora-dores e, em síntese, as mudanças econômico-sociais, quando antigos morado-res da fazenda12 compram de dois a três hectares e passam a ser proprietários com novas posses, todavia, sem o título jurídico da mesma – domínio.

E se observa ainda como estas novas (i)mobilizações permitem, como um processo simultâneo, a redefinição da renda da terra, quando antigas ren-das anuais, de verão a verão, por exemplo, de cercados para criadores de gado doutras comunidades dão lugar aos novos fenômenos sócio-espaciais. Estes cercados são vendidos e/ou arrendados a partir da (i)mobilização realizada pe-los novos herdeiros.

É a partir desse movimento posto pelos herdeiros na imposição tam-bém de novas rendas nestas terras posta para os antigos e novos moradores da fazenda que se compreenderá esse processo de (i)mobilização espacial e territorial.

Processo de (i)mobilizações que movimenta estas novas rendas13 a deslo-car para os antigos moradores-posseiro conflitos sociais na terra entre o morar e o se reproduzir, que vão da luta pela terra e permanência para a reprodução

12 É sobre esta fazenda que compreendia os quase oitocentos hectares cuja denominação coincide com o nome da comunidade em análise: Lagoa das Pedras dos Paulos que se analisa as terras de viúva (SILVA, 2008).

13 A discussão sobre a criação das novas rendas da terra para moradores e posseiro antigos pode ser vislumbrada ao longo da pesquisa (SILVA, 2008).

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social. Na pesquisa, isto se relaciona aos quase oitocentos hectares já discu-

tidos, os quais formavam as terras como um todo que hoje compõem parte da Comunidade de Lagoa das Pedras dos Paulos e ademais terras de outros proprietários. Materializam as terras já divididas, subdivididas e em processo de divisão (atuais). Comportam ainda parte da territorialização das terras comuns até o momento presente.

Desse modo, ao se analisar a (i)mobilização territorial destas terras, estas revelam aos poucos os vários momentos e níveis em que as mesmas estão in-seridas, como fenômeno sócio-espacial, à medida que, no conflito, revelam, si-multaneamente, as contradições sociais advindas das condições de apropriação e reprodução social originárias das condições históricas das terras comuns. Estas como a manifestação de um dos momentos desse fenômeno sócio-espacial, o qual poder-se-á compreender sob uma historicidade que se territorializa como momentos diferentes de um mesmo processo, mas como processo desigual.

Todavia, se revelam através das contradições sócio-espaciais das novas condições tributárias de permanência na terra, no surgimento de novos tributos sociais e na redefinição dos antigos, a saber, o da renda da terra e, enfim, nas novas formas de consumo, postas como práticas agrário-espaciais nas comuni-dades como um todo.

Portanto, na exposição, os fenômenos sócio-espaciais como movimento lógico e histórico das condições materiais que estão postas e pressupostas de-saparecem e se revelam como afirmação negativa e como condições próprias deste processo social que tem na propriedade privada do solo um dos elemen-tos desta (i)mobilização territorial.

Nas terras, as quais sintetizam a apropriação através do uso comum, que aparece como um dos momentos das terras comuns, facilmente se pôde identifi-car seis divisões (nos quase oitocentos hectares), unicamente internas aos fami-liares e descendentes. Um movimento de (i)mobilização da terra, de transmis-são de herança. Isto sem levar em consideração aqui as últimas (i)mobilizações entre os últimos herdeiros e moradores-posseiro.

Processo de (i)mobilização que já aparece como momento de reprodu-ção social da descendência – esta já demarca territorialmente uma desvincula-ção da mesma à medida que (i)mobiliza a terra como mercadoria, na venda em pequenos lotes, hectares, etc. a materializar os novos tributos sociais a partir das rendas –, e já se expande para as demais terras das comunidades, postas pelos novos donos e herdeiros das antigas terras sesmarial.

Neste caso específico, as terras comuns referidas, em extensão, envolviam

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três comunidades por contigüidade, um envolver que margeava a espacialização da igreja e das outras comunidades. Pois que, são terras limitadas através da apropriação de antigas veredas e caminhos transformados em estradas carro-çáveis e rua14.

As estradas efetivam as demarcações entre os domínios das terras locais, perfazendo uma área de quase oitocentos hectares, o que em léguas correspon-de a um pouco mais de duas léguas em quadra, isto quando ainda eram manti-das como terras indivisas.

Esse momento pode ser vislumbrado, a seguir através do depoimento da moradora-posseira, quando estas terras estavam sob a jurisdição do domínio próximo e distante, na territorialização do gado, dos roçados, na presença do proprietário e das soltas15:

E como que era aqui quando a senhora chegou? O lugar? Os terrenos? As pessoas? Como é que era? Era igual hoje? Era diferente? É lá nada. De premeiro as coisas tudo era diferente! Era diferente, o finado Q. lutarra [lutava] com roçado. O finado Q. P. era dono de terra, propi, como é que chama? Pro-pietário, mais ele, tinha, fazia era os roçados dele. Tinha gado tombém. O finado L. também era propietário de terra, também tinha gado, tinha terra, tinha roçado, tinha tudo! O finado J. era do mermo jeito. Tinha terra, tinha tudo e tinha gado! Tudo era uma coisa só. Tudo era esse mo-vimentozim. Olha, eu nasci no dia 24 de mai do 21, me criei, ninguém sabia se tinha se tinha rádi [rádio] no mundo, nem telerrisão [televisão], tudo, tinha nada aqui nessa Itapipoca era o lugar aonde eu num perdia festa de santo nenhum16.

Com relação à pesquisa, os recuos foram definidos no trabalho de cam-po, quando das várias menções dos moradores-posseiro há duas formas de apropriação das terras nas comunidades locais. As terras de uso comum: terras comuns territorializadas pelos antigos moradores-posseiro locais17 e as terras dos campos abertos.

Esta diferença é tênue e só faz sentido de ser pensada se se contextu-

14 rua escrita em itálico e minúsculo significa os núcleos das comunidades e as estradas carroçáveis. Rua em maiúsculo significa ir à cidade (município de Itapipoca).

15 Busca pelos pastos livres nas estações definidas.

16 Depoimento: moradora-posseira. Comunidade de Lagoa das Pedras dos Paulos, janeiro de 2007.

17 Todas as moradias se utilizavam das pastagens comuns, todavia, apenas os posseiros mantinham mo-radias nas terras comuns, como também somente o proprietário de terra criava gado.

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alizar ambas as formas de apropriação destas terras a partir dos moradores e moradores-posseiro locais.

Portanto, é importante ressaltar que os pequenos recuos na pesquisa, fazer-se-ão com brevidade, quando os relatos mencionados exigirem este per-curso e análise.

As terras comuns envolviam as terras de trabalho, eram as terras em que camponeses e moradores-posseiro, mantinham roçados, capoeiras em conco-mitância com a atividade de criar. Nestas terras somente se cercava aonde se plantava e fizesse roçado. Eram terras comuns porque também eram apropriadas através do uso comum, apropriadas por plantações e posseiros destas comuni-dades. Apropriação que não se dava apenas com o feitio dos roçados, todavia, aonde não era roçado, se constituía em áreas de pastagens e matas.

Ainda com referência ao depoimento da moradora-posseira:

Cerca? Tinha muita cerca? Não, cerca tinha, toda rida [vida] fizeram cerca! Agora que a cerca de premeiro num era dessas deitada não, era tudo, era cerca em pé. - Mais tinha mais terreno solto, né? Que hoje, que hoje tudo é cercado, né? Os terrenos? Tudo são cercados, né? O quê? [mãe]. Hoje em dia os terrenos tudo são cercado, né? [filha]. É, nechi [nesse] tempo, tinha lá terreno cercado lá, era tudo aberto aí, a lei da natureza, aí quando faziam aqueles roçados é cercarram aquele pedaço de chão, faziam aquele roçado. É muito diferente, o povo diz o mundo rai [vai] se acabar como começou! Eu acho difícil! Era panela de barro, o fogo de lenha, depois com muitos anos que deixaram de usar panela de barro, foi que pegou aparecer essas panelas de ferro, num era pra todo mundo! Seu L. butarra [botava] trabaiador, a panela dele era de barro, mais era uma dechi [desse] Tamam assim! Fogo no chão, três trempes no chão, butarra [botava] de comer pra aqueles trabaiador [trabalhador] naquele panelona de barro18.

Por conseguinte, eram terras comuns apropriadas não somente pelos cam-poneses através das plantações cercadas ao fazê-las, todavia, também pela ativi-dade de criar. Eram terras comuns também com pastagens em comum apropria-das pelos moradores locais:

E como é que fazia com a alimentação do gado? No campo! Nesse tempo, o campo era bom! Não tratava não, no campo. Não tratava no cocho também? Não, esse tempo não. Hoje é uma coisa muito imprensada. Tudo era far-

18 Depoimento: moradora-posseira. Comunidade de Lagoa das Pedras dos Paulos, janeiro de 2007.

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tura! Isso aqui tudo era aberto, tinha campo pro gado comer. Isso aqui quando eles chegaram aqui, você sabe aonde é a Lagoa das Pedras? Não sabe. Tudo era aberto, uma rêis [rês], uma vaca podia sair daqui que ia ficar lá na Lagoa das Pedras, comendo, ia pra lá, ia pra cá, ia pro Outro Lado19.

Estas terras possibilitavam uma apropriação para realização das ativida-des domésticas. Era através das terras comuns que se territorializaram as relações familiares, na construção das moradias próximas aos roçados, nas imediações em que trabalhavam estes moradores-posseiro e na prática da atividade de criar nestas terras divididas entre posseiros e fazendeiros.

O gado possibilitava a prática do campear20 nestas terras, razão pela qual os fazendeiros exerciam plenamente a atividade de criar, ao dividirem as pasta-gens em comum nas terras comuns. Noutra dimensão social, dividiam as terras das fazendas com estes moradores-posseiro na realização do trabalho efetivado na terra e na manutenção desses como rendeiros nas terras com domínios pró-ximos. Nestas os fazendeiros mantinham os moradores-posseiro no trabalho da terra e possibilitavam as rendas o que, ao mesmo tempo, reproduzia também trabalhos e trabalhadores. Assim, no trabalho da terra, reproduziam a fazenda enquanto reprodução social.

E era através das criações e do gado nestas terras comuns que os criado-res de gado constituíram relações sociais com estes moradores-posseiro destas terras comuns, na reprodução destas relações entre proprietários com domínios próximos e posseiros.

Dividia-se, então, nas áreas de pastagens, o uso destas terras comuns en-tre posseiros e proprietários. Esses não através da plantação de roçados, mas através das pastagens em comum apropriadas pelos rebanhos de gado criados também à solta.

Relações sociais, nas quais, se consolidavam o trabalho dos moradores--posseiro nos roçados destes proprietários, de dois a três dias por semana e, posteriormente, nas relações de compadrio.

No depoimento abaixo se pode compreender o significado e a prática da atividade de criar gado também à solta:

19 Depoimento: proprietária. Marotos. Comunidade de Rio do Inácio, janeiro de 2007.

20 Campear para os moradores locais significa a busca do gado para casa e a observação no pasto.

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E o gado (...) Ficava solto? Pra cá, pra cá, ficava solto, não tinha, não tinha nada. Quando chegava uma certa época, aí a gente via que o gado come-çava a ficar fraco, a gente ia começar a juntar, pra botar nas capoeiras, era assim, então. Já o [...] era diferente, que tinha cercado bom e muita gente trabalhava na terra, ele não soltava o gado dele! Soltava muito pouco o gado dele! Soltava muito pouco. Mais soltava também! Aí depois quando era no tempo, a gente ia, juntava o gado, era uma festa pra botar esse gado!21

Nestas comunidades nem sempre os moradores-posseiro trabalhavam para aqueles que mantinham o domínio distante das terras comuns. No entanto, as relações de trabalho eram consolidadas noutras propriedades – nas fazendas discutidas acima –, nas quais estes fazendeiros realizavam, simultaneamente, o trabalho na terra e da atividade de criar, em especial, a criação de gado. Estas propriedades mantinham os donos com domínios próximos.

A relação da fazenda com os trabalhadores que moravam nas terras co-muns, além das relações de trabalho originárias dos trabalhos, agregados e das rendas – trabalhadores rendeiros nas terras da fazenda – consolidadas nos ro-çados, permitiam também, através da permanência das capoeiras e roçados, a reprodução do gado na fazenda nos períodos das soltas22. Isto se dava através das pastagens deixadas por estas plantações, resultantes dos trabalhos objetiva-dos nas sobras da colheita e dos roçados como um todo.

A presença deste trabalho na terra das fazendas com domínio próximo pode ser compreendida através da explicação também do depoente acima, ao se reportar a uma fazenda e criador específicos: muita gente trabalhava na terra, ele não soltava o gado dele! Soltava muito pouco o gado dele! Soltava muito pouco! Mas soltava também! 23

Explicação que demarca também a presença das pastagens restantes dos trabalhos (i)mobilizados na terra através dos roçados via rendeiros e dos pro-prietários que os mantinham sob a exploração do trabalho sintetizada na mate-rialização da renda nas terras.

A apropriação dos restos de pastagens pelo fazendeiro sempre foi e ainda se constitui como conflito à medida que muito antes da safra ser inteiramente

21 Depoimento: assentado. Comunidade de Rio do Inácio, janeiro de 2007.

22 Isto é, nos períodos em que o gado poderia pastar nas terras comuns, solto, permanecia na fazenda alimentando-se nas capoeiras das sobras deixadas pelos rendeiros que trabalhavam na terra.

23 Depoimento: assentado. Comunidade de Rio do Inácio, janeiro de 2007.

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colhida, já comunicam aos rendeiros que vão liberar o roçado para pasto, ou seja, para o gado.

Esta prática aparece como um dos principais conflitos entre rendeiros e proprietários cedentes. Fenômeno sócio-espacial que se coloca nestas co-munidades como secular e se reproduz até o presente. O que pode observado abaixo:

Diz ela que lá o [...] dá, mas o caboco réi [caboclo velho], quando é no tempo ela planta. Mas aí no tempo, ante do tempo ele quer butar bicho dentro, né? Ele não, o menino [...], né? E, às vez [às vezes], nem colhe a safra toda. Cuma tarra [como estava] dizendo butou os bichos dentro e ainda tinha um bocado de baje [vargem] de feijão pra apanhar, num era dele, né? Num dichi [disse] nada!24

Isto aparecia antes e aparece na contemporaneidade como condição de manutenção do gado sem necessariamente exigir à solta nos campos abertos das comunidades.

Desse modo, o fazendeiro se reproduzia também, não no limite da repro-dução social como criador25 de gado que dependia, exclusivamente, das soltas divididas entre proprietários diferentes nas terras comuns, nas pastagens em co-mum. Todavia, através dos roçados e sobras26 deixadas nas terras da fazenda por estes rendeiros, que exerciam duplamente o trabalho cedido para o fazen-deiro nos roçados, em parte para a reprodução familiar (dividiam as safras a substanciarem as rendas), como trabalhadores na/da fazenda.

E estas terras comuns tinham dono? Perguntou-se a um dos antigos mo-radores-posseiro destas terras comuns, na pesquisa de campo. “Sim”, respondeu, então, o proprietário distante mantinha o domínio. Este deixava plantar e exer-cer a atividade de criar, sob as condições de uma renda em espécie, o pagamen-to do alugué da terra. Depoimento que se observa abaixo:

24 Neste caso, o proprietário não está cobrando a renda da terra. Cede para plantar o roçado sem a obri-gatoriedade do pagamento da renda da terra, através de parte do milho plantado. Contudo, muito antes da safra ser inteiramente colhida põe o gado dentro do roçado para aproveitamento das pastagens restantes. A presença do gado acaba gerando aborrecimento e prejuízo posto na colheita incompleta, para os donos dos roçados plantados. Neste caso, a renda da terra se realiza como pagamento indireto. Depoimento: morador-posseiro. Comunidade de Nova-Assis, julho de 2007.

25 Muitos moradores não exercem mais a atividade de criar por dependerem exclusivamente dos campos abertos.

26 As sobras eram as colheitas como síntese do trabalho (i)mobilizado na terra de modo que a ausência da cobrança direta da renda aparece na apropriação da colheita, isto é, da safra não inteiramente colhida pelo rendeiro.

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Não, nós nunca pissuimo [possuímos] terra não, lá é terra comum, e riemo [viemos] pra cá inda em terra comum, cheguemo aqui foi que, comum assim, por que só um homem só que dominarra [dominava] um horror de terra, num tinha terra dividida, não. Aí foi o tempo que foi chegando o conhecimento das coisas, né? aí chegou o conhecimento lá pro ri, pro Ri do Inácio, seu Z. Bar. dichi [disse] que ia dividir a terra do Ri do Inácio, aí não queriam o pessoal que tivesse lá, os antigos, aí butou uma parte pra fora, aí meu pai, enquanto antes pagou ali seu Joa. de Pa. na Lagoa das Pedras ali, seu Ra. de Pa. dominarra [dominava] essa parte pra banda de cá, mais num tinha trevessão, num tinha nada, era terra comum aí, aí, ele dichi [disse]. E como que era o uso dessa terra comum? Como era que vocês usavam? Aí o cara brocarra [brocava] e, aquele roçadim réi [velho], e aí eles cobrarram [cobravam] uma rendazinha, aí darra [dava] pra eles. Mas quem cobrava renda? Lá o dono que, que dominarra [dominava] aquele pedaço de terra, darra [dava] acolá, num sei nem quanto é que darram [davam], coisinha réa [velha] pouca. (Grifo Nosso). E o senhor, então, é morador? Sou, desde trinta e cinco, [1935]27.

Esta renda como tributo pago pelo uso comum destas terras comuns foi identificada pelos moradores-posseiro descendentes de antigas famílias destas comunidades, nas quais as gerações anteriores também foram moradores-pos-seiro das terras comuns. Contudo, a relação era definida não pela renda, mas pela disponibilidade do morador trabalhar na fazenda.

Os moradores-posseiro descendentes têm entre 70 e 80 anos, os quais testemunharam a expropriação das terras comuns, anteriormente apropriadas pe-los familiares – as terras comuns da Comunidade de Rio do Inácio. E, ao mesmo tempo, presenciaram nas famílias o pedido de permissão para realização do trabalho na terra e moradia nestas terras atualmente apropriadas. Presenciaram, então, o começo da territorialização das famílias, tanto formalmente, através da permissão do proprietário da terra, o qual mantinha o domínio distante, como expõe o depoente, como também a partir da territorialização, a qual, os legitima e os individualiza como posseiros das terras comuns e moradores-posseiro.

Estes moradores-posseiro, simultaneamente, sintetizam momentos de apropriação, exploração e expropriação, razão pela qual são caracterizados como os antigos pelos proprietários que praticam o processo de expropriação.

Estes proprietários ao negarem, enquanto, os antigos, ou seja, enquanto moradores-posseiro, aos poucos, revelam a historicidade conflituosa da pro-

27 Depoimento: morador-posseiro. Timbaúba. Comunidade de Nova-Assis, julho de 2007.

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priedade territorial, pois, simultaneamente, os potencializam como os primei-ros posseiros.

Desta forma, estes proprietários ao (i)mobilizarem a terra a produzem como dupla determinação: a negação da apropriação através da prática do uso comum, das terras comuns posta nos antigos e a expropriação pelo mesmo motivo, isto é, por se constituírem nos primeiros e antigos, os primeiros posseiros. O que em síntese materializa apenas um momento, a territorialização pela posse nestas terras comuns. Negar é expropriar.

No entanto, se instauram as duas ações acima a evidenciarem uma prá-tica comum: a territorialização da posse pelas condições postas nos domínios distantes discutidos anteriormente. Esta com os atributos deslocados para os dias atuais, quando a apropriação da terra através do uso comum vai aparecer nas brechas e sobras deixadas por estes domínios distantes e que, cada vez mais, circunscrevem limites próximos, isto é, domínios próximos e fragmentados na espacialização que os revelam, a evidenciarem os campos abertos. O processo é, enfim, o de tornar cada vez mais próximo o domínio distante, cuja resultante é a expropriação.

A imposição que advinha da relação entre estes domínios próximos e dis-tantes reproduzia um termo comum: o proprietário de terras, como único com direitos costumeiros da prática para a reprodução do gado28 nas terras comuns.

É nesse sentido que se exercia nestas terras comuns, a proibição da ativi-dade de criar gado, como elemento essencial de manutenção da moradia e da reprodução familiar nestas terras comuns, enquanto, moradores-posseiro. Para estes a atividade de criar se realizava através apenas da criação de terreiro e de chiqueiro. Estes as conservavam em volta da casa durante a noite, através da construção de pequenos chiqueiros de madeira como materialidade dos ele-mentos da territorialização da posse. (Foto 1, abaixo).

28 A criação do gado: atividade de criar se exercida pelos moradores colocava-se como um elemento a mais de apropriação do trabalho (i)mobilizado na terra pelo morador-posseiro e redefinia esta mesma ati-vidade na fazenda, a saber: a apropriação das pastagens sobrantes dos roçados nas terras comuns através da divisão dos pastos comuns. Esta apropriação pelo morador-posseiro destas pastagens entra em conflito com a prática da fazenda.

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Foto 1: Morador-posseiro que mantém a atividade de criar. Criações de chiqueiro e de terreiro. Além de

manter, no quintal, o comer verde. Observa-se, ainda, a plantação de cajueiro, ao fundo. Timbaúba, Co-

munidade de Nova-Assis. Itapipoca, Ceará. Foto: Anselmo Alfredo, julho/2007.

Esta proibição já constituída como direito costumeiro, contudo, a partir das condições econômico-sociais formalizadas no domínio territorial informal como norma imanente. Isto se coloca como um processo de reprodução des-ses moradores-posseiro, das condições impostas para a realização do trabalho, da criação, do morar, em síntese da prática do uso comum, que aparece como natural.

Para a compreensão destas relações sociais, as quais dividiam na apro-priação comum a atividade de criar, se insistiu numa das comunidades para saber o porquê desta proibição:

E lá vocês podiam criar, gado? Ovelha? Cabra? Não. Não. Criação ele num aceitava não. Num aceitava nós criar não. Só criação miúda. Só galinha, porco, bode, é. Mais [mas] gado, mais [mas] gado não. E nós não tinha condições de comprar mesmo gado, né?29

Noutra dimensão, estes moradores locais contextualizam momentos de conflitos entre proprietários de terra, moradores e moradores-posseiro que, aos poucos, iniciam uma pequena atividade de criar gado, embora sendo de imediato para a reprodução da família e, conquanto, satisfação das necessidades básicas - comer leite - através de um número pequeno de rês (cabeças). Um desses momentos é descrito abaixo no depoimento:

29 Depoimento: moradora-posseira. Comunidade de Lagoa das Pedras dos Rodrigues, julho de 2007.

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A senhora era moradora do M. P. também? Era, nós fumo [fomos] pra lá mo-rar na terra do finado J. de P. que era o avô dele. Aí o finado J. morreu, ficou pro pai dele, chamado J. de P., chamavam J., então, quando o J. morreu o M. P. comprou as partes dos irmãos e ficou pro M. P., aí nós era morador do M. P. por isso, né? Por que ficou tudo pra ele. Aí meu marido trabalhou lá trinta anos, aí seu M. P. o cumpade, ele tinha umas, um comecim de gado, uma vaquinha pra gente comer leite. O seu M. P., que deus o tenha, que já se foi também, seu J. o senhor num pode criar gado, não, que sê num tem terreno, sê num tem cercado pra criar gado30.

Entretanto, os proprietários, que não mantinham moradia nestas terras comuns, exerciam plenamente a atividade de criar gado. Eram campos de pas-tagens comuns, nas terras territorializadas pelos moradores-posseiro. O gado, entretanto, se põe como forma costumeira de domínio da terra e subordinação do morador ao trabalho da fazenda. Não ter gado significa não ter terras.

Na apropriação das terras comuns, o que estas, em exposição, vêm a se diferenciar dos campos abertos identificados ainda atualmente em todas as comu-nidades pesquisadas? (Mapa 1, na página seguinte.).

30 Depoimento: Bairro Área Nobre. Itapipoca, Ceará, julho de 2007. Antiga moradora da Comunidade de Lagoa das Pedras dos Paulos.

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Os campos abertos sintetizam os vários momentos pelos quais têm passado algumas destas propriedades que compõem as comunidades como um todo. E estes momentos podem ser identificados a partir da presença da herança, como terras ainda indivisas; noutro plano, das terras já divididas em que têm os herdeiros residindo fora destas terras e comunidades; nas terras de pequenos proprietários sem condições para pagamento dos custos dos cercamentos; nas terras com impedimentos jurídicos, a saber, dívidas bancárias – empréstimos para realização de melhorias na propriedade e compra de criações de chiqueiro, todavia, inadimplentes –; nas de heranças, etc.

Estes, então, se estabelecem como os principais momentos e critérios para que estas propriedades se mantenham em aberto.

Em seguida, se compreenderá como alguns desses momentos se espa-cializam a produzirem estes campos abertos.

Os campos abertos permitem ainda hoje a pastagem de animais, criações e gado. Contudo, são terras em que somente esta atividade pode ser desenvolvi-da, pois mediante uma maior (i)mobilização da propriedade privada do solo da década de sessenta para os dias atuais, estas terras têm dimensões de no míni-mo 30 hectares e, no máximo, de 200 hectares, o que vai diferenciá-las das terras comuns que quase ultrapassavam os oitocentos hectares.

Todavia, os campos abertos são terras de extensões menores, com campos de pastagens circunscritos.

Estes campos abertos ainda podem ser encontrados em cada comunidade. Nestas encontram-se de três a quatro campos abertos, porém, como pequenas propriedades, por exemplo, em que uma parte da terra é propriedade de her-deiros e, às vezes, de posseiros.

São terras em que não estão totalmente em aberto e a parte da terra em que se dá a apropriação comum é unicamente através das pastagens em co-mum. Prática que se realiza na parte da terra em aberto, não cercada. Portanto, estão constituídas como terras com domínio próximo.

Isto revela os momentos da propriedade como relação social na medida em que, como dupla determinação na (i)mobilização da mesma, envolvem e redefinem todos os níveis e relações sociais, nas terras destas comunidades para a reprodução desta população.

É nesse sentido que a reprodução desses moradores-posseiro – os quais tinham nestas terras comuns a manutenção das condições materiais desta repro-dução, enquanto parte constituinte do trabalho do roçado e da atividade de criar, como elemento formador e reprodutor da unidade familiar – é evidencia-da como reprodução crítica a partir desses momentos de apropriações privadas,

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cercamentos, expropriação da terra. Na contemporaneidade se efetiva através da reprodução pelo consumo de mercadorias na Rua.

As sobras e brechas destas antigas sesmarias, (i)mobilizadas através das heranças, das vendas, do trabalho na terra, da instituição jurídica, (i)mobilizadas na territorialização dos roçados31, das pastagens em comum e nos negócios que as pressupõem como elementos fundantes, no presente formam os campos aber-tos. Estes permitem, ainda hoje, uma possível realização da atividade de criar pe-los moradores e moradores-posseiro locais, ainda que de modo crítico - apenas como pastagens em comum – e não mais integrada aos sentidos que as terras comuns mantinham na reprodução dos moradores. Apropriação que se efetiva apenas das pastagens em comum, como prática de uso comum.

Isto significa dizer que não se está diante de práticas sociais diferentes que se espacializam em períodos longos (décadas) e, conquanto, separadas. Todavia, como momentos em que uma (i)mobilização se liga espacialmente a outra, não como a implicação de fenômenos que se dão numa contigüidade espacial a realizar um agregado de partes. Por conseguinte, através da realização da propriedade privada do solo em contradição com a reprodução social dos moradores-posseiro.

De modo que as superposições, as quais tornaram possíveis as brechas e sobras na análise da propriedade territorial brasileira, como prática agrário-es-pacial permitem também constituir, quando na (i)mobilização da terra a formar os negócios da terra, negócios diferentes numa mesma propriedade, contudo, negócios e (i)mobilizações sobrepostas.

Assim, apenas as diferenças espaço-temporais permitem que se dife-rencie a prática social destas (i)mobilizações e isto se se considerar esta como momento analítico. Este é um dos motivos pelo qual ao se estabelecer, na ex-posição, a análise dos negócios com a terra, estes aparecem sobre muitas deter-minações, isto é, no arrendamento, na compra, venda, nas heranças, no negócio da madeira, etc. e que, como espacialidades, na maioria das vezes estas diferen-ças estão colocadas somente na mudança de estação, por exemplo, arrenda-mentos para os criadores e plantação de roçados pelos moradores-posseiro nas mesmas terras32.

As condições postas para a constituição do roçado se efetivam critica-mente em terras que estão sendo (i)mobilizadas através da venda da madeira.

31 Uma maior territorialização para a produção de pequenos roçados foi vivenciada no começo da dé-cada de 90, nas terras de pequenos camponeses que formavam parte dos campos abertos.

32 O término duma atividade coincide com o começo da outra. Isto é, a colheita do roçado e o começo do arrendamento. Simultaneidade que não acontece sem conflitos nestas comunidades.

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(Foto 2, abaixo).

Foto 2: Madeira cortada à espera do caminhão na beira do caminho, a mobilizar o negócio da venda da

mesma para as padarias, Rua, cercamentos, etc. Esta é a madeira identificada por sabiá, uma das mais

procuradas e hoje a mais valorizada nestas comunidades. Comunidade de Lagoa do Inácio. Tururu, Ceará.

Foto: Ana Cristina Mota Silva, janeiro/2004.

O CONSUMIDOR. DETERMINAÇÃO DO MORADOR E MORADOR-POSSEIRO.

Na contemporaneidade a mobilização das terras comunitárias se dá a partir da construção do Açude da Gameleira (barragem). (I)mobilização que re-define não somente no seio das comunidades as relações sociais, mas as terras, como um todo, a efetivar uma das formas no Brasil de realização dos projetos de desenvolvimento com base nas diretrizes do Governo Federal.

Essa desapropriação legitima a continuidade de projetos de moderniza-ção que se iniciou através do Projeto São José do Governo do Estado do Ceará para instalação da energia elétrica e do encanamento d’água nestas comunida-des na década de noventa.

A (i)mobilização territorial desta população produz noutro momento vi-las nas terras destas comunidades, particularmente, na Comunidade de Lagoa das Pedras dos Paulos e redefine as relações sociais de trabalho na terra ao se constituir no campo novas necessidades, sobretudo, urbanas. Tais expedientes advindos da divisão sócio-espacial do trabalho coloca entre parênteses o traba-lho familiar como síntese da crise que advém da relação contraditória campo--cidade como momento importante no Brasil de crise da reprodução ampliada.

A população em processo de (i) mobilização ao efetivar o investimento resultante da indenização efetuada pelo processo de desapropriação que vem

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se realizando nestas comunidades para a construção da barragem incorpora no lote adquirido nas terras que constituíam antiga fazenda e atuais heranças, novas formas de reprodução social. Sendo que dentre os novos expedientes tem-se desde os serviços de pizzaria, oficinas para motos, venda de peças a novos bares.

Para os antigos aposentados os quais realizavam nas terras próximas às margens do Rio Mundaú o trabalho da atividade de criar e na terra já critica-mente, agora satisfazem no consumo de mercadorias as necessidades advindas do urbano que se efetiva como crítico.

A espacialização desta forma de sociabilidade se, por um lado, coloca na rua a possibilidade de realização da reprodução nas terras comunitárias, já que a vila está se constituindo nas margens da estrada carroçável a formar o loteamento e afirmativamente negar a condição agrária. Por outro, a materiali-dade das construções nessa linha de contigüidade aparece através do distancia-mento daquilo que até o momento sintetizava nas terras destas comunidades a constituição da atividade de criar, o trabalho na terra, a moradia, etc., isto é, as condições históricas de reprodução social, seja do morador-posseiro; morador, fazendeiro, dentre outras, as quais também se efetivavam através do mobiliário agrário nas terras comunitárias. Este mobiliário cede lugar aos imóveis com características urbanas, por exemplo, casas com garagens, varandas e ausência do mobiliário das criações de terreiro e chiqueiro, além da incorporação de um novo mobiliário na casa potencializando as vendas e o consumo nas lojas de móveis e eletrodomésticos na Rua33.

Assim, objetivamente a procura por lotes pequenos e estreitos se dá tam-bém pelo acesso à rua e proximidade destas terras da Rua cidade de Itapipoca.

É desse modo, que os novos loteamentos produzidos espacialmente nas antigas terras de sesmarias, dos antigos campos abertos, de fazenda, e, todavia, de herdeiros evidenciam novas e antigas formas de materialização do processo de urbanização.

A objetividade desse momento e processo revela um modo de vida ur-bano sem a produção de cidades através da constituição de lotes e serviços urbanos como um movimento de realização que se dá numa relação inversa do capital urbano-industrial em que a cidade ao definir as relações espaço-tempo-rais no campo impõe como novas necessidades a de um urbano que se realiza criticamente e como crise de valorização de valor.

É no campo que está colocado a realização duma produção agrária sen-do que esta se efetiva a partir do fetiche de produtividade na medida em que

33 Cf. Cap. 3. Rua e cidade, dimensões de um mesmo conceito (SILVA, 2008).

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o desenvolvimento do sistema de crédito no Brasil materializa no consumo a reprodução social desta população consumidora. Sistema de crédito que se expande a partir do crédito concebido via aposentadoria na institucionalização do salário-aposento na forma de pequenos empréstimos.

Empréstimos concebidos durante o pagamento do salário-aposento, muitas vezes (i)mobilizados pela descendência dos aposentados. Fato que se reproduz nestas comunidades e no interior do Brasil e que muitas vezes revela total desconhecimento dos próprios aposentados como pagadores de dívidas da descendência procuradora.

Desse modo, tanto as formas de realização do trabalho familiar como da atividade de criar se mantêm residualmente como fenômenos que evidenciam a forma pela qual a modernização no Brasil se apresenta, a efetivar a reprodução crítica como contradição agrário-urbana.

Destarte, acentuar no campo a realização da condição do camponês é deixar de compreender o desenvolvimento das formas de reprodução social que aparecem como expansão da produtividade e valorização crítica do valor na medida em que esta condição revela formas particulares de reprodução e desloca estas relações complexas – conteúdos sociais – às formas genuínas de reprodução do capital financeiro, conquanto, como ilusão necessária de repro-dução ampliada do capital.

O movimento do moderno que se substancia como abstração real de formas particulares da modernização mobiliza não somente a propriedade ter-ritorial, todavia, simultaneamente ao deslocar territorialmente esta população (i)mobiliza negativamente formas antigas de reprodução social.

Se no negócio da terra ao expandir a compra e venda de lotes nas terras de heranças – antigos campos abertos e fazenda – está colocado a efetivação da mesma abstraindo a condição agrária de reprodução, se revela nesta (i)mobi-lização formas subjetivas, as quais, objetivamente violentas e expropriadoras positivam um processo social de desapropriação territorial.

Os limites estão impostos nas novas formas de reprodução social, a sa-ber: no lote, nas agrovilas34, na abstração do mobiliário agrário, etc. a potencia-lizarem uma crise de valorização do valor que já se desenvolvia e estava posta nestas comunidades. Afinal, esta parcela social repõe a metamorfose da mer-

34 Os moradores-posseiro e proprietários desapropriados da Comunidade do Rio do Inácio para cons-trução do Açude Gameleira no Rio Mundaú foram alocados na agrovila construída na Comunidade do Porão. Durante o inverno (período do plantio) retornaram à procura do trabalho do alugado, especialmen-te, os moradores-posseiro. A positivação do lote construído para estes revela a negação da reprodução na terra, pois a agrovila recém ocupada consolida noutro momento antigas relações de trabalho distantes: na busca de trabalho nas terras da Comunidade da Lagoa das Pedras dos Paulos: atualmente vila nova.

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cadoria financiada pelo Estado e, assim, como consumidora, mas não como produtora de valor.

Ao se estabelecer a nova condição agrária como reprodução crítica, esta evidencia um movimento histórico e lógico de (i)mobilização da propriedade territorial, seja a mesma pensada a partir de fenômenos particulares expostos na pesquisa, como também através de fenômenos universais ao se consolida-rem no Brasil como desdobramento do capital urbano-industrial, na sua inver-são e imanentes aos projetos de desenvolvimento, os quais se substancializam como novas necessidades do urbano que se efetiva criticamente.

CONSIDERAÇõES FINAIS

Na análise dos momentos de (i)mobilização da propriedade territorial nestas comunidades, fenômeno que particulariza formas de reprodução social, se revela, através de fragmentos do moderno e da modernização, a crise de va-lorização do valor como materialização da inversão do capital urbano-industrial a se reproduzir criticamente através desta população agrária, mediada pelo con-sumo via Estado (salário-aposento, bolsa família). Esta reprodução potencia-liza formas de sociabilidades como crise da reprodução ampliada a produzir o morador-posseiro enquanto consumidor.

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Escrituras Cartoriais; Livro de Registro de Terras do Arquivo Público do Estado do Ceará e Censo Agropecuário do município de Itapipoca 1985-1996.Pesquisa de Campo: Comunidade de Brandão. Itapipoca, Ceará, janeiro de 2002 e 2006; Comunidade de Nova-Assis. Itapipoca, Ceará, janeiro de 2006 e julho de 2007; Comunidade de Rio do Inácio. Itapipoca, Ceará, janeiro de 2006, 2007 e julho de 2007; Marotos. Comunidade de Rio do Inácio. Itapipoca, Ceará, janeiro de 2007; Timbaúba. Comunidade de Nova-Assis. Itapipoca, Ceará, julho de 2007; Comunidade de Lagoa das Pedras dos Rodrigues, Itapipoca, Ceará, julho de 2007; Bairro Área Nobre. Itapipoca, Ceará, julho de 2007; Carapicuíba. São Paulo, abril de 2008 e Comunidade da Lagoa das Pedras dos Paulos Itapipoca, Ceará, julho de 2007.

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GLOBALIZAÇÃO DA AGRICULTURA: MULTINACIONAIS NO CAMPO BRASILEIRO

GLobaLIZaTIoN oF aGrICuLTurE: THE MULTINATIONALS IN BRAZILIAN FIELD

GLOBALIZACIÓN DE LA AGRICULTURA: MULTINACIONALES EN EL CAMPO DE BRASIL

GLEYDSON PINHEIRO ALBANOProfessor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, campus de Caicó-RN. Doutor em Geografia, [email protected]

ALCINDO JOSÉ DE SÁProfessor do Departamento de Geografia da Universidade Federal de

Pernambuco. Doutor em Geografia, USP. [email protected]

Resumo: Este trabalho teve como objetivo fazer uma análise do mo-mento atual da globalização da agricultura no Brasil dando ênfase ao papel das multinacionais. Para isso, se divide o trabalho em questão em dois momentos: no primeiro será tratado a Revolução Verde, onde começa a haver, sob a égide dos organismos supranacionais e sob o controle do Estado Autoritário, uma intensificação da atuação das multinacionais fornecedoras de insumos, imple-mentos agrícolas, etc; no segundo momento, a Liberalização do Comércio, que é o panorama que se apresenta nos dias atuais, onde o Estado, sob pressão de órgãos supranacionais, desregulamenta e liberaliza o setor agrícola e propor-ciona o aumento da vinda de grandes grupos multinacionais do agronegócio mundial para o Brasil. É nesse momento atual que se tem o principal foco, onde se analisaram três setores para mostrar a inserção dos grupos multinacionais no Brasil. São eles: a soja, que hoje é o setor que mais tem influência no agronegó-cio nacional e nas exportações; o açúcar e o etanol, em que o Brasil é o maior

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.126-151 Jan-Jun 2011

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exportador mundial e já tem uma tradição centenária no setor; e por último o setor de banana, que nos últimos anos através da atuação de multinacionais o país começa a se destacar nas exportações.

Palavras chave: Multinacionais; Globalização da agricultura; Campo; Soja; Banana

Abstract: This study aimed to make a review of the current moment of globalization of agriculture in Brazil with emphasis on the role of mul-tinationals. For this, we divide the work in question in two stages: the first time will be treated to the Green Revolution, which begins to be under the auspices of supranational bodies and under the control of authoritarian rule, an intensification of the actions of multinational suppliers of inputs, agricul-tural implements, etc; in the second stage, the Liberalization of Trade, which is the moment that presents itself today, where the state, under pressure from supranational bodies, deregulate and liberalize the agricultural sector and pro-vides the increased arrival of large groups multinational agribusiness world to Brazil. It is at this moment has been the main focus, where three sections were analyzed to show the inclusion of multinational corporations in Brazil. They are: soybeans, which today is the sector that has most influence in agribusiness and exports; sugar and ethanol, in which Brazil is the largest exporter in the world and already has a century-old tradition in the industry, and finally the banana sector that in recent years through the activities of the multinational country begins to shine in exports.

Keyword: Multinationals; Globalization of Agriculture; Rural; Soybeans; Banana

Resumen: Este estudio tuvo como objetivo analizar la situación actual de la globalización de la agricultura en Brasil, con énfasis en el papel de las multinacionales. Para ello, divide la obra en cuestión en dos etapas: la primera se tratará de la Revolución Verde, que comienza a ser, bajo los auspicios de organismos supranacionales y bajo control del Estado autoritario, una intensi-ficación de las actividades de los proveedores multinacionales de los insumos, implementos agrícolas, etc; en el segundo tiempo, la liberalización del comer-cio, que es el panorama que se presenta hoy, donde el Estado, bajo la presión de los organismos supranacionales, desregular y liberalizar el sector agrícola, y proporciona un aumento de la llegada de grandes grupos mundo de los agro-negociosmultinacionales en Brasil. Es en este momento en el que ha sido el enfoque principal, donde se analizaron tres secciones para mostrar la inclusión

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de los grupos multinacionales en Brasil. Ellos son: soja, que hoy es el sector que más influye en laagroindustria y las exportaciones; el azúcar e el etanol, en la que Brasil es el mayor exportador del mundo y tiene una vieja tradición en la industria y; finalmente, el sector del plátano, que en los últimos años a través de la agencia de las multinacionales, el país comienza a brillar en las exportaciones.

Palabras clave: Multinacionales; Globalización de la agricultura; Cam-po; Soya; Plátano

INTRODUÇÃO

A atuação das empresas multinacionais no campo nos remete ao período colonial, onde por intermédio das metrópoles, as mesmas tinham a concessão de atuar em várias áreas coloniais pelo mundo afora. Temos um exemplo claro, que é a atuação da Companhia das Índias Ocidentais (empresa multinacional de capital misto), que já no século XVII atuava no Brasil na época da invasão holandesa no Nordeste brasileiro.

Essas empresas inicialmente compravam matérias-primas e alimentos das colônias que eram necessárias ao crescimento contínuo do capitalismo e da industrialização nas metrópoles.

Para atingir esse objetivo,

[...] as autoridades coloniais tinham que conceder uma mudança na pro-dução de safras de alimentos básicos de subsistência para a produção de safras comerciais para o mercado internacional, e substituir o que é geral-mente chamado de economia “natural” de sociedades não industriais pela economia “monetária” das sociedades industriais (SKLAIR, 1995, p.127).

Isto sem dúvida leva hoje a um enriquecimento de grupos rurais e ur-banos específicos no mundo subdesenvolvido, aqueles que se adaptavam com sucesso as demandas mutáveis do mercado global; mas isto também resultou na perda da auto-suficiência original de muitos países subdesenvolvidos e em sua dependência de alimentos importados dos países desenvolvidos.

Nesse trabalho, se tem como objetivo observar e analisar como atuam as multinacionais na construção do processo de globalização da agricultura no Brasil. Para isso, o trabalho em questão está dividido em dois momentos: no primeiro momento será tratado a Revolução Verde, onde começa a haver, sob a égide dos organismos supranacionais e sob o controle do Estado Autoritá-rio, uma intensificação da atuação das multinacionais fornecedoras de insumos,

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implementos agrícolas, etc; no segundo momento, a Liberalização do Co-mércio, que é o momento que se apresenta nos dias atuais, onde o Estado, sob pressão de órgãos supranacionais, desregulamenta e liberaliza o setor agrícola e proporciona o aumento da vinda de grandes grupos multinacionais do agrone-gócio mundial para o Brasil. É nesse momento atual o principal foco, onde se analisaram três setores para mostrar a inserção dos grupos multinacionais no Brasil. São eles: a soja, que hoje é o setor que mais tem influência no agronegó-cio nacional e nas exportações; o açúcar e o etanol, em que o Brasil é o maior exportador mundial e já tem uma tradição centenária no setor; e por último o setor de banana, que nos últimos anos através da atuação de multinacionais, o país, começa a se destacar nas exportações.

GLOBALIZAÇÃO DA AGRICULTURA NO BRASIL

Nos anos 1960 há uma intensificação da atuação das multinacionais em todo o mundo agrícola, seja ele desenvolvido ou subdesenvolvido. Essa inten-sificação vai acontecer a partir do surgimento da Revolução Verde.

A Revolução Verde, que se iniciou nos países desenvolvidos e depois atingiu o mundo subdesenvolvido, se baseava em uma mudança radical nas téc-nicas utilizadas na agricultura. Essa mudança se orquestrará principalmente na agricultura dos países subdesenvolvidos. Shiva (2003) retrata bem a mudança ocasionada pela Revolução Verde no mundo subdesenvolvido.

Na agricultura nativa, por exemplo, os sistemas de cultivo incluem uma relação simbiótica entre solo, água, plantas e animais domésticos. A agri-cultura da Revolução Verde substitui essa integração no nível da proprie-dade rural pela integração de insumos como as sementes e os produtos químicos (SHIVA, 2003, p.56).

A Revolução Verde com a adição de produtos químicos, insumos e va-riedades de sementes estrangeiras (que vão ser utilizadas em monoculturas em larga escala) não só vai gerar vulnerabilidade ecológica com a redução da diver-sidade genética e a desestabilização dos sistemas do solo e da água, como tam-bém vai impulsionar a dependência das empresas multinacionais produtoras de veículos, máquinas e implementos agrícolas, defensivos agrícolas e de sementes dentre outras.

Essas empresas multinacionais vão receber ajuda do Banco Mundial, que em 1970 cria o Grupo de Consultoria Internacional de Pesquisa Agrícola

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(GCIPA), que vai desenvolver sementes para os países subdesenvolvidos. Es-sas sementes desenvolvidas pelo GCIPA, para se desenvolver vão depender de fertilizantes, pesticidas e máquinas produzidas por conglomerados de grandes empresas multinacionais, criando assim uma relação de dependência entre os países subdesenvolvidos e as empresas multinacionais (SHIVA, 2003, p.102).

No Brasil, observa-se que inicialmente, que essa modernização ocasiona-da pela Revolução Verde se concentra nos estados do Centro-Sul do país e prin-cipalmente nas grandes propriedades contando com o profundo envolvimento do Estado Brasileiro com o fornecimento de crédito não só para a compra de tratores e outros bens de capital produzidos pelas empresas multinacionais, mas também para as produções voltadas para a exportação, como a soja, óleos vegetais, sucos e frutas, carnes de aves e bovinos (MAZZALI, 2000, p.22).

Vai ocorrer também no Brasil por parte do Estado Autoritário, uma política de incentivos fiscais aos capitais que incrementavam a exportação de produtos agro-industriais. Além da ajuda de órgãos de pesquisa do governo, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), para trazer inovações biológicas principalmente voltadas para os produtos que estavam na pauta de exportações.

No último quarto do século XX, tem destaque a Liberalização do Co-mércio, com o rápido crescimento do comércio internacional, isso aconte-ceu devido as sucessivas rodadas de liberalização comercial empreendidas pelo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt), (posteriormente a Organização Mundial do Comércio) e também pelas pressões do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI).

A liberalização do comércio é um elemento central dos Programas de Ajuste Estrutural (PAEs) em cuja a implementação o Banco Mundial e o FMI insistem como condição para os países subdesenvolvidos receberem ajuda fi-nanceira, perdão da dívida e investimento.

O Banco e o FMI propuseram os PAEs em 1980, quando muitos países em desenvolvimento atravessavam uma profunda recessão ocasionada, em par-te, por fatores fora do seu controle, e estavam com grande endividamento com os órgãos internacionais. Foi o caso do Brasil e de vários países subdesenvol-vidos, que em 1980 estavam com uma elevada dívida externa e precisavam de ajuda do FMI e do Banco Mundial para quitar os débitos (MADELEY, 2003).

Para receber a ajuda financeira os países subdesenvolvidos tinham que por em prática, por pressão do FMI e do Banco Mundial, os PAEs. Um PAE típico implicava na liberalização do comércio, redução do gasto com programas sociais (saúde, educação), eliminação de subsídios à alimentação e aumento dos

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preços pagos a produtores de culturas para o mercado externo. Com o oferecimento de maiores preços por produtos para exportação,

torna-se mais interessante a compra de terras por parte das empresas multina-cionais e fazendeiros de maior porte e mais abastados. Ou seja, com a imple-mentação dos PAEs, se tem uma maior entrada de multinacionais nos países subdesenvolvidos para produzir produtos de exportação e também se tem uma desvalorização dos produtos de subsistência levando muitos pequenos agri-cultores a vender suas terras para as multinacionais e migrar para a cidade a procura de melhorias.

Em 1986 começa a Rodada Uruguai do Gatt. Essa Rodada terminou em 1993 com vários acordos, dos quais sobressai o Acordo sobre Agricultura. A Rodada Uruguai também resultou na criação da Organização Mundial do Comércio.

O Acordo sobre Agricultura cobre três áreas principais – acesso aos mer-cados, subsídios à exportação e apoio doméstico à agricultura.

Esse acordo contribui de forma efetiva para a liberalização do comércio e consequentemente para a entrada de grandes grupos multinacionais em países subdesenvolvidos.

O Acordo sobre Agricultura estipula uma diminuição de tarifas sobre alimentos importados, estipula também uma diminuição de subsídios à expor-tação outorgados aos produtores agrícolas. Nesse sentido, Madeley (2003, p.69) ressalta que

[...] o acordo estabelece que os países não poderão aumentar a sua prote-ção ao setor agrícola acima do nível que já existia antes de 1993. Os países industrializados que já arcavam com altos níveis de proteção podem man-tê-los, mas os países em desenvolvimento não podem elevar seus níveis.

Como decorrência desse Acordo, se constata que a liberalização do co-mércio nos países subdesenvolvidos trouxe um enorme surto de importação (mas não um aumento das exportações), devido à diminuição de tarifas so-bre alimentos importados, expulsando milhões de trabalhadores rurais e con-centrando a propriedade da terra nas mãos de poucos grupos, muitos deles multinacionais. A concentração da propriedade da terra leva essas empresas a controlarem cada vez mais extensões maiores de terra.

Segundo o referido autor, com o Acordo da Rodada Uruguai sobre Me-didas de Investimento Relacionadas ao Comércio (TRINS), se tem uma

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mudança radical na ajuda que os governos poderiam dar as empresas nacionais, uma vez que este [...] acordo impede os governos de concede-rem tratamento especial a empresas nacionais; investidores estrangeiros devem receber o mesmo tratamento. Os governos também não podem exigir que investidores estrangeiros usem mão-de-obra local [...] Segundo o acordo TRINS [...] um governo não pode, por exemplo, determinar que um hotel pertencente a estrangeiros compre gêneros alimentícios de produção nacional. O hotel tem liberdade para comprar todo o produto alimentício de fora do país (MADELEY, 2003, p.71).

Esses acordos internacionais no âmbito da OMC e as pressões do Banco Mundial e do FMI intensificam políticas comerciais que privilegiam as expor-tações. Um exemplo disso é que nos últimos vinte anos houve um maciço crescimento de frutas, hortaliças e até flores da América Latina para os Esta-dos Unidos, devido à agricultura não tradicional ser mais lucrativa. Porém, a situação é controlada por grandes proprietários de terras, ricos investidores e companhias estrangeiras. Empresas de maior porte acumularam terras onde plantam produtos exportáveis, enquanto agricultores mais pobres foram expe-lidos do mercado e deslocados para terras marginais. No Brasil, temos como exemplo disso a Soja na região Centro-Oeste e a fruticultura irrigada nos vales férteis do Nordeste.

Como resultado desses acordos e também de uma dívida pública elevada, o Estado Brasileiro desregulamentou rapidamente o mercado agrícola, dimi-nuiu drasticamente os recursos para o financiamento agrícola e para o apoio tecnológico. Isso aconteceu a partir do Governo Collor em 1990 com uma des-regulamentação do setor agrícola com a extinção de vários institutos setoriais, como o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA).

Em 1995, Fernando Henrique Cardoso é eleito presidente, dando se-quência às reformas liberais iniciadas por Collor em 1990. Vale ressaltar, que dentre as reformas, algumas medidas para desregulamentar os fluxos de ca-pital internacional foram realizadas, proporcionando-lhe maior liberdade. São exemplos disso a extinção de restrições quanto ao prazo mínimo de carência e diversificação de aplicações e eliminação ou redução à participação de capital estrangeiro em vários setores outrora regulamentados; como mineração, petró-leo, telecomunicações, transportes, açúcar e álcool.

Com esse novo ambiente, mutável e incerto da atuação do Estado Brasi-leiro, as empresas agrícolas traçaram novas estratégias. Além da atuação frouxa do Estado Brasileiro, as empresas agrícolas se deparavam também com o inten-

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so ritmo das mudanças tecnológicas (biotecnologia, microeletrônica e Pesquisa e Desenvolvimento) decorrentes da intensificação da globalização no campo, que gera incerteza em relação à tecnologia e suas inovações. Também se tinha incerteza em relação à demanda, devido à complexidade de conhecimento de um mercado globalizado (MAZZALI, 2000).

Uma das estratégias mais utilizadas pelas grandes empresas agrícolas bra-sileiras frente a esse ambiente turbulento foi a intensificação das fusões e aqui-sições com as multinacionais, além das associações estratégicas com as mesmas. Assunto esse, que se abordará no item seguinte.

MuLTINaCIoNaIS aGrÍCoLaS No braSIL HoJE

O processo recente de fusões e aquisições envolvendo as multinacionais no campo brasileiro não é obra do acaso. A série de reformas neoliberais dos anos 90, a estabilidade de preços ocasionada pelo Plano Real, às altas taxas de crescimento do consumo logo após sua implantação, além do programa de privatização erigido no mesmo período atraíram o capital externo ao país. A intensificação dos investimentos externos diretos deveu-se também às estra-tégias de integração em redes globais de comércio das multinacionais, a partir do aproveitamento de dinâmicas distintas de crescimento e rentabilidade, visto que, ao contrário dos países desenvolvidos, onde as taxas de crescimento são estáveis, os países emergentes apresentam “boom” de consumo.

Nessa parte do trabalho se analisará o crescimento da atuação de empre-sas multinacionais em setores chaves da economia agrícola. Foram escolhidos três setores para desenvolver nossa análise: a soja, em que atualmente o Brasil é o maior exportador mundial desse produto; o açúcar, que atualmente o Brasil é também o maior produtor e exportador mundial; e a banana, em que hoje se tem um recente crescimento puxado pela entrada de novas multinacionais no setor.

a) Soja

A soja é originária da China, onde foi inicialmente domesticada e usada como remédio e adubo verde. Sua introdução no Brasil é feita por Gustavo Dutra, na Bahia, em 1882, e por Daffert, em 1892, no Instituto Agronômico de Campinas, em São Paulo. O primeiro registro de cultivo da soja no Brasil data de 1914, no município de Santa Rosa, no Rio Grande do Sul. Mas, foi somente a partir da década de 1960, impulsionada pela política de subsídios governa-

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mentais ao trigo visando auto-suficiência, que a soja se estabeleceu como cul-tura economicamente importante, com o binômio soja (verão) e trigo (inverno) e revolucionou a agricultura do Rio Grande do Sul (REIFSCHNEIDER, ET AL, 2010).

Com a intensificação do cultivo da soja na década de 1970, emergem grandes cooperativas no Rio Grande do Sul, como a Citrijuí (hoje Coopera-tiva Agropecuária & Industrial Ltda), que hoje também atua na fabricação de rações, industrialização de cereais, moinho e frigorífico (REIFSCHNEIDER, et al, 2010).

Com o desbravamento dos cerrados brasileiros pela soja de forma mais intensa na década de 1980, principalmente no estado do Mato Grosso, o Brasil passa a se destacar no cenário mundial.

O volume da produção do Brasil e sua condição de maior player mundial no comércio da soja atraíram para o país as grandes tradings (multinacionais) durante a década de 1990, que hoje dominam grande parte desse comércio no território nacional.

A produção mundial de grãos de soja tem crescido à taxa de 3,7% a.a. nos últimos anos, partindo de 103 milhões de toneladas na safra de 1987/88 e chegando aos 154,7 milhões de toneladas na safra de 1997/98 (PAULA; FA-VERET FILHO, 2004).

A produção, tanto de grãos como de derivados, tem apresentado cresci-mentos sucessivos, sendo que os grãos experimentaram oscilações maiores em algumas safras, especialmente as de 1995 e 1997, enquanto a produção de farelo e óleo mostrou um crescimento estável.

Estados Unidos, Brasil, Argentina e China lideram a produção mundial de soja, respondendo, na média, por 88% do total produzido. Até a safra de 1988/89 a China era a terceira maior produtora mundial, posição que passou a alternar com a Argentina a partir da safra seguinte.

No Brasil, nos últimos anos se teve um crescimento contínuo da expor-tação do complexo soja fazendo do país o maior exportador mundial dessa co-modittie. O complexo soja é composto por três produtos: soja em grão, farelo de soja e óleo de soja. Segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, nos últimos dez anos ocorreu um crescimento gigantesco das exportações do complexo soja, passando de 3 bilhões e 768 milhões de dólares em 1999 para mais de 17 bilhões de dólares em 2009 (ver Gráfico 1) (ABIOVE, 2011).

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No Brasil, em termos regionais, é significativo o crescimento da pro-dução e da produtividade no Estado do Mato Grosso, que assumiu, na safra de 1995/96, a posição de segundo maior produtor brasileiro de soja e, em 1996/97, foi detentor da maior produtividade nacional, com 2.730 kg/ha, em média, frente a uma média nacional de 2.406 kg/ha. Tecnologia, terras planas e regularidade climática explicam a liderança na produtividade e o crescimen-to da produção. Nesse Estado, as grandes multinacionais como a Bunge e Cargill chegaram em 1996 e 1997, respectivamente, e compraram unidades de armazenagem, entre outras coisas, dominando grande parte da cadeia produ-tiva do complexo soja. Hoje, a Bunge só no estado do Mato Grosso, o maior produtor e exportador de soja do país, exporta mais de 50 milhões de dólares só nas unidades de Rondonópolis, Lucas do Rio Verde, Sorriso, Campos de Julio, Campo Novo do Parecis, Sapezal, Nova Mutum, Primavera do Leste e Querência, de acordo com dados da Secretária de Comércio Exterior em 2009 (SECEX, 2011).

A Bunge é uma empresa multinacional que iniciou suas atividades em 1818, em Amsterdã, Holanda, como comercializadora de grãos e de produtos importados das colônias holandesas. A Bunge chega ao Brasil, em 1905, quan-do compra o Moinho Santista Indústrias Gerais, em Santos-SP. Foi o início de uma rápida expansão no País adquirindo diversas empresas nos mais variados ramos, como o alimentício, agribussiness, químico, têxtil entre outros. No final dos anos 1990, com a compra da Ceval, e outras empresas da cadeia da soja,

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a empresa se verticaliza por completo na área agrícola, fabricando desde os insumos para a agricultura, como fertilizantes até os produtos industrializados derivados de suas fazendas, como margarinas e também atuando no transporte marítimo dos produtos para exportação, além de outros ramos conforme de-monstra o quadro 1 (BUNGE, 2011).

A empresa tem a propriedade das seguintes marcas no Brasil:

Além disso, a empresa está presente em todas as áreas de produção de soja do país, desde o Mato Grosso, maior área atualmente; passando pelo Rio Grande do Sul, o berço da cultura de soja; pelo Paraná, segundo maior produ-tor; pela Bahia, estado que se desenvolveu o pólo agroindustrial de Barreiras, onde se localiza praticamente toda a produção de soja do estado; Mato Grosso do Sul e no cerrado de Goiás; Balsas no Maranhão e mais recentemente no sudoeste do Piauí. No quadro a seguir podemos ter uma ideia mais clara não só das atividades da Bunge ligadas à cadeia de soja, como também de atividades

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ligadas ao transporte e também a outras comoditties.

Além das duas gigantes multinacionais – também tradings companies - pre-sentes na cadeia produtiva da soja, notamos também a presença e o aumento de poder de outras tradings companies, multinacionais especializadas na compra e distribuição não só de soja, mas também de outras commodities agrícolas. Essas empresas adquiriram esmagadoras de soja, que são utilizadas para o benefi-ciamento da soja, reforçando o seu poder no beneficiamento da commodity. É o

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caso do grupo Dreyfus e ADM (PAULA; FAVERET FILHO ,2004). Com a compra de esmagadoras de soja e o fechamento de outras por

causa da concorrência das multinacionais, a participação das quatro maiores in-dústrias sobe para 46,5% na área de esmagadoras de soja, sendo que, das quatro tradings (Bunge, ADM, Cargill e Dreyfus), só a Bunge, a partir da transferência da área de soja da Santista, passou a ser responsável por 28,3% (PAULA; FA-VERET FILHO,2004).

O domínio das grandes tradings internacionais sobre o parque industrial da soja e, consequentemente, sobre o comércio exterior do complexo parece determinado pela competição internacional e pela logística da distribuição.

A concentração na área do refino de óleos não é muito diferente do que ocorre no setor de esmagamento, embora o número de empresas que traba-lham com refino seja menor: 47 refinadoras contra 67 esmagadoras. As quatro maiores refinadoras detêm 46% da capacidade instalada, parcela estável entre 1995 e 1997. As tradings concentram 34,2%, participação menor que no setor de esmagamento, e a Bunge sozinha detém 28,3%.(PAULA; FAVERET FILHO, 2004).

Com base nesses dados acima, nota-se que um pequeno grupo de multi-nacionais, chefiados pela Bunge, passam a ter controle sobre aproximadamente metade do beneficiamento da soja, além de ter um controle muito maior na exportação da mesma para o exterior, já que essas empresas possuem uma infra-estrutura gigantesca de logística e comercialização a nível mundial. Essa concentração nas mãos dessas multinacionais se intensificou justamente no pe-ríodo da liberalização comercial brasileira, que aconteceu na década de 1990.

b) Açúcar/Etanol

A cana-de-açúcar que chegou ao Brasil durante o período colonial é ori-ginária da Índia e foi introduzida no Brasil por Martin Afonso de Souza em 1532 em seu primeiro engenho de açúcar na capitania de São Vicente. Souza em livro de 1587 (1851, p.96) relata que a Vila de São Vicente foi a “...primeira que se fez assucar na costa do Brazil (sic)”. Em 1587 os engenhos de açúcar já estavam espalhados pelo Brasil, com destaque para os engenhos de Olinda, que já são relatados ao número de 50 por Souza (1851). Essa região no início do sé-culo XVII já é considerada por muitos historiadores a maior área de produção de cana-de-açúcar do mundo.

O Brasil hoje é o maior produtor de cana-de-açúcar do mundo, com 602 milhões de toneladas na safra 2009/2010, seguido de longe pelo segundo colo-

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cado, a Índia, com 171 milhões de toneladas. O país tem mais de 300 usinas e 150 grupos e se configura hoje também como um dos maiores produtores de etanol do mundo. A produção nacional de cana-de-açúcar se concentra na maior parte em São Paulo, parte da região Centro-Oeste e zona da mata da região Nordeste (COSAN, 2011) (ver Figura 1).

Dados estatísticos da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (UNICA, 2011), confirmam o crescimento continuo, não só da produção de cana, mas também das exportações que passaram de aproximadamente 1 bilhão e 200 mi-lhões de dólares em 2000 para quase 5 bilhões e meio em 2008 em plena crise mundial, chegando em 2006 a mais de 6 bilhões de dólares em exportações (ver Gráfico 2).

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Com relação à produção de etanol, as exportações brasileiras tiveram um aumento explosivo, com as novas políticas públicas para a adição de biocom-bustíveis e etanol na gasolina em muitos países, abriu-se um mercado gigantes-co para o etanol brasileiro, que passou de 34 milhões em exportações no ano de 2000 para quase 2 bilhões e 400 em 2008 (ver Gráfico 3).

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Esse aumento de exportações de açúcar e principalmente de etanol no contexto atual vão se juntar com as políticas de flexibilização e desregulamenta-ção do setor sucroalcooleiro brasileiro implementadas nos governos de Collor e Fernando Henrique Cardoso na década de 1990. Nesse contexto, o Brasil se torna extremamente atraente para as grandes multinacionais, que passam a entrar no setor por meio de compras, fusões e joint ventures com empresas nacionais.

Segundo Camussi e Guedes (2004), para poder analisar os fatores que levaram os capitais multinacionais a escolher o Brasil como foco recente de IED cabe, antes, comparar o atual contexto do setor sucroalcooleiro dos qua-tro principais produtores:

a. Austrália. País amplamente regulamentado pelo Estado, possui mer-cado interno pequeno, tornando-se, desta forma, dependente do mercado internacional de açúcar; além disso não utiliza nem desen-volve a tecnologia do álcool;

b. EUA. Possuem forte intervenção estatal e o setor é dominado por grandes corporações locais;

c. Índia. É altamente regulamentada e protegida, além disso, as produ-ções agrícolas e industriais são caracterizadas por baixa incorporação do progresso técnico;

d. Brasil. Possui mercado desregulamentado, disponibilidade de terras para a expansão do cultivo de matérias-primas, menor custo mun-dial de produção, mão-de-obra barata, custo zero de energia de co--geração, menores obrigações ambientais e sociais e, principalmente, mercado interno que absorve 75% da produção de cana.

Segundo Camussi e Guedes (2004), observa-se também no Brasil a pos-sibilidade de atuar no maior mercado exportador mundial de açúcar e ainda poder atender os tradicionais clientes europeus (gigantes do setor alimentício como Nestlé, Danone e Parmalat, por exemplo). Desta forma o país configu-rou-se como a melhor opção mundial para a ampliação do campo de atuação de várias multinacionais, como Bunge, Dreyfus, dentre outras.

Outra questão apurada diz respeito à opção pela região Centro-Sul e em especial ao Estado de São Paulo (ver Figura 1). Dentre os principais elementos analisados como condicionantes da opção pelo Estado de São Paulo pode-se citar o fato do mesmo ser o mais representativo para o setor sucroalcooleiro, com moagem e produção superior a 50% dos índices nacionais. Explica-se assim a opção pelo Brasil e, dentro dele, o estado de São Paulo (CAMUSSI E GUEDES, 2004).

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No momento atual se tem a atuação de dois tipos de multinacionais inte-ressadas no setor sucroalcoleiro:

- O primeiro grupo se configura em grandes petrolíferas em busca do mercado de etanol. Segundo reportagem publicada em janeiro de 2011 na revista Globo Rural (2011), somente no ano de 2010, 4 grandes petroleiras entraram no mercado brasileiro por meio de fusões e aquisições, são elas a Shell, Total, BP e Petrobras. A mesma reportagem cita estudo da UNICA que mostra que nos próximos 5 anos 40% da produção brasileira de etanol estará nas mãos de grupos estrangeiros.

- O segundo grupo se configura em grandes multinacionais agrícolas, principalmente a Bunge e a Louis Dreyfus, que nos últimos 10 anos tem comprado de forma agressiva usinas de cana e etanol no Brasil.

A Bunge entra de forma agressiva no mercado de açúcar e bioenergia em 2006, comercializando açúcar, em 2007 compra a usina Santa Juliana em Minas Gerais, em 2008 compra o controle majoritário da usina Monteverde (MS) e inicia a construção de uma usina no Tocantins. Em 2009/2010 compra Moema Group e suas 5 usinas se estabelecendo na safra 2010/2011 como o 4º maior grupo no mercado de açúcar brasileiro (BUNGE, 2011) (ver Figura 2 e Figura 4).

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A Franco Inglesa Louis Dreyfus Comoditties é uma grande multinacio-nal que atua desde 1851 no mercado internacional de commodities agrícolas. Hoje, essa multinacional atua com grãos, oleaginosas, é uma das três maiores produtoras de suco de laranja do mundo. Atua também com algodão e açúcar, sendo uma das três principais tradings de açúcar no mundo; Também negocia e tem fazendas de Café e Coco. Além disso, também atua no refino de Petróleo, eletricidade, tem várias empresas de transporte marítimo, além de ter associa-ções na construção de hotéis e resorts, como o Four Seasons Hotels and Resorts. O grupo também tem investimentos na telefonia, fibras ópticas (LDCOMODI-TIES, 2011).

No Brasil, a Louis Dreyfus Commodities se expandiu rapidamente nos últimos 10 anos no mercado de açúcar e bioenergia, adquirindo unidades pro-cessadoras de cana em três regiões do país, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste (ver Figura 3).

A atuação da Dreyfus Commodities no mercado de açúcar e bioenergia no Brasil começa em 2000 via aquisições, com a compra da usina Cresciumal

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em SP; em 2001 compra a usina Luciânia em Lagoa de Prata (MG); em 2004 compra a usina São Carlos em Jaboticabal (SP); em 2006 começa a construção da usina Rio Brilhante no MS; em 2007 compra as usinas de açúcar e etanol do grupo Tavares de Melo, consolidando sua participação no mercado nacional e internacional com usinas no Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul e Paraíba; por fim em 2009 faz uma associação com a Santelisa Vale passando a ter 13 usinas e capacidade de processamento de 40 milhões de toneladas de cana-de-açúcar (LDCOMODITIES, 2011) (ver figura 3).

Com isso, a multinacional Louis Dreyfus se consolida como a 2ª empre-sa em participação do mercado de açúcar no Brasil, com 6,1%, ficando atrás somente da maior empresa de cana do mundo, que é brasileira, o grupo Cosan, com 9,1% do mercado (COSAN, 2011) (ver figura 4).

c) Banana

A banana, segundo Dan Koeppel, é cultivada há mais de 7.000 anos. A mesma começa a sofrer transformações pelas mãos humanas, passando de um cultivar selvagem para um alimento básico e sendo plantado em perímetros fechados desde 3.000 anos atrás, como atesta a descoberta de vestígios de plan-tações de bananas na vila Kuk Swamp em Papua Nova Guiné. Após isso, por todo o sudeste asiático – como Malásia, China e até a Índia, a banana deixa de ser selvagem para ser um alimento de primeira necessidade (KOEPPEL, 2008).

Segundo dados da UNCTAD (2009), a banana tem sua origem nas flo-restas do Sudeste Asiático, nas florestas da Malásia, Indonésia e Filipinas e sua

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difusão por toda a Ásia se deu através da ação humana migratória. Através de Alexandre, o Grande, e sua campanha que atingiu a Índia

em 325 a.C, os primeiros europeus ficaram sabendo da existência dessa fruta. A banana chegou à África através da ação dos árabes e seu comércio com o norte daquele continente. Mas, só com o início da globalização, com as grandes nave-gações, é que a banana vai chegar ao continente americano e ao Brasil, graças à ação dos conquistadores portugueses e espanhóis. Em 1516 através do Padre Friar Tomás de Bragança as bananas foram transportadas pela primeira vez das Ilhas Canárias para a Ilha de Santo Domingo (atual República Dominicana) (UNCTAD, 2009; KOEPPEL, 2008).

A banana hoje é a fruta mais consumida no mundo, faz parte da dieta alimentar de bilhões de pessoas, indo desde as tribos africanas até as famílias abastadas da Europa, Japão e Estados Unidos.

Além disso, em se tratando da exportação mundial de alimentos, a ba-nana se insere entre os alimentos mais comercializados do mundo, ao lado do trigo, da soja, do milho, do arroz e do açúcar (FAOSTAT, 2009) (ver Quadro 3).

O crescimento da produção de banana mundial é contínuo já há déca-das, segundo demonstram dados atualizados do departamento de estatísticas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - FAOSTAT (2009) (ver Gráfico 4). Essa produção é dominada nos dias atuais principal-mente pela Índia com mais de 21 milhões de toneladas, sendo seguida pela Chi-na e Brasil. Somente esses três países concentram quase metade da produção de bananas do mundo. Os mesmos têm sua produção, em quase sua totalidade, voltada para o mercado interno.

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Apesar de o Brasil figurar como um dos maiores produtores de banana do mundo, a banana brasileira só se insere no processo de globalização plena-mente a partir de 1993, com a chegada no país da multinacional Del Monte Fresh Produce, uma das maiores multinacionais de exportação de banana e frutas do mundo.

A Del Monte Fresh Produce tem seu principal centro administrativo nas Ilhas Cayman, na sua capital George Town, tendo como nome de registro ofi-cial “Fresh Delmonte Produce Inc” e como nome de registro comercial “Del Monte Fresh Produce Company”. Seu principal escritório nos EUA se localiza em Coral Glabes no estado da Flórida. (NASDAQ, 2005).

Essa Empresa apresenta como multinacional que é algumas poucas ca-racterísticas que estão em conformidade com a tendência atual da produção flexível de efetivar terceirizações, parcerias, joint-ventures, como coloca Castells (2002), não fazendo com que ocorra a “desintegração vertical da produção em uma rede de empresas, processo que substitui a integração vertical de depar-tamentos dentro da mesma estrutura empresarial” (CASTELLS, 2002, p. 215). Atualmente, ela investe principalmente, em um processo de compra, incorpo-rações e verticalização intensiva altamente centralizada, que reforça muito mais a integração vertical em todos os setores da Empresa, contrariando assim parte da teoria sobre a flexibilização e o pós-fordismo (CASTELLS, 2002).

A Del Monte Fresh Produce tem todas as características citadas por Corrêa (1991) de uma empresa multinacional, tais como: a ampla escala de operações,

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com a manipulação de grandes quantidades de matérias-primas e manufatura-das; a natureza multifuncional, com um intensivo processo de horizontalização e verticalização, com o controle desde fazendas de frutas, seu transporte por caminhões e navios refrigerados, terminais aduaneiros e seu beneficiamento até a comercialização nos mercados desenvolvidos; múltiplas localizações com subsidiárias espalhadas por todo o mundo em vários continentes; e enorme poder de pressão econômica e política na OMC e no Governo Americano, devido ter sua sede na Flórida (Estados Unidos), sendo a maior empresa desse estado americano, inclusive, mantendo relações próximas com a família Bush, de modo a um irmão de George Bush Filho (ex-presidente dos Estados Uni-dos) fazer parte da sua diretoria na Flórida (TRIGAUX, 2003).

Essa Multinacional também tem todas as características próprias de grandes multinacionais do Setor Frutícola, citadas por Gómez (1999): possui terra e adquire produções de vários países do mundo; especializa-se em produ-tos de elevado valor, como frutas e vegetais frescos, fruta tropical; abastece os mercados com uma ampla oferta de produtos; etiqueta todos os produtos, uti-lizando somente uma marca; encontra-se verticalmente integrada, oferecendo ampla gama de serviços, desde o cultivo direto ou contrato com os agricultores, financiamento, colheita, embalagem, frete e comercialização; além de possuir capacidade de coordenar sua estratégia de mercado para a linha completa de seus produtos em escala mundial.

Pode-se observar claramente essas características no Quadro 4, que mos-tra o fluxograma do processo produtivo de frutas da Multinacional. Nesse qua-dro, observa-se que a Del Monte Fresh Produce tem um elevado nível de vertica-

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lização, desde a produção, na sua maioria processada pelas fazendas próprias, passando pelo transporte nos seus próprios caminhões refrigerados e navios refrigerados que levam as frutas dos lugares mais distantes do mundo para o mercado americano e europeu, principalmente. Uma vez nesses mercados, a Multinacional dispõe de uma rede gigantesca de distribuição própria, além de fábricas próprias para a industrialização de parte das frutas frescas no conti-nente europeu.

Essa multinacional se insere no Brasil, em um vale fértil do semi-árido nordestino, o Vale do Açu, no estado do Rio Grande do Norte (ver Figura 5), em 1993, quando ocorre no Brasil um processo de liberalização do comércio, que vai se intensificar nesse mesmo ano, com a emergência da OMC, com o término das negociações da Rodada Uruguai e com a pressão do FMI, como já foi observado anteriormente.

Vale relembrar que o Brasil foi um dos países signatários da OMC e um dos participantes do Acordo sobre a Agricultura da Rodada Uruguai, que liberalizou a produção e o comércio agrícola em todo o Mundo, com mais in-tensidade nos Países Subdesenvolvidos.

A partir desse momento, as bananas do semi-árido nordestino entram no circuito global da produção da Del Monte Fresh Produce (ver Quadro 5). O Vale

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do Açu passou a se inserir na estrutura da Multinacional como mais um grande centro produtor de frutas, no caso, de bananas, especificamente fornecidas para o mercado do Reino Unido em um acordo de exclusividade com a maior mul-tinacional do mundo: a rede de varejo americana Wal Mart (BANANALINK, 2009).

A partir desse contexto, o estado do Rio Grande do Norte vai ser alçado, por causa das fazendas da Del Monte Fresh Produce, a ser o maior exportador de bananas do país, a frente de estados tradicionais como São Paulo e Santa Catarina.

CONSIDERAÇõES FINAIS

Na década de 1990 e na primeira década do século XXI, nota-se clara-mente nos três setores estudados (soja, açúcar/etanol e banana) que há uma intensificação do capital multinacional nessas áreas.

Essa intensificação acontece principalmente pela completa desregula-mentação do agrobussiness brasileiro por parte dos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. Ambos seguem o que estava determinado na Rodada Uru-guai da OMC, a flexibilização e desregulamentação da área agrícola, tratamento igual ao dado as empresas nacionais para as corporações multinacionais, redu-ção dos impostos de importação, dentre outros.

Constata-se que as corporações multinacionais que estão atuando no Brasil, nesses três setores, têm características em comum. Todas são empre-sas altamente verticalizadas, com negócios desde a fabricação de insumos, como fertilizantes, passando por fazendas próprias, industrialização do pro-duto e transporte do produto para os mercados consumidores internacionais. Algumas empresas além de vender suas comoditties no mercado externo ainda

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vendem seus produtos industrializados no mercado interno e atuam de forma horizontal nesse mercado, sendo proprietários de várias marcas. É o caso da Bunge que possui a propriedade de várias marcas de margarina, óleos...

Todas as empresas pesquisadas nesses ramos, também tinham uma di-versificação de atividades impressionantes. Algumas, como a Bunge atuavam não só com comoditties agrícolas, mas também na área de energia e mineração com a propriedade de várias minas. O que se observa também com relação a essas grandes multinacionais é uma diversificação que atinge sempre a área de energia. Não só a Bunge, mas também a, Del Monte, Dreyfus atuavam também na área energética, mais especificamente com derivados de petróleo.

Por fim, observa-se que essas grandes corporações multinacionais estão rapidamente crescendo no Brasil, inclusive em áreas de fronteira agrícola. Um exemplo claro disso é a Bunge, que já alcançou com seus tentáculos a última fronteira agrícola da soja, o sudoeste do Piauí.

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CONTRATEMPOS DA MODERNIZAÇÃO:a CIdadE dE bELo HorIZoNTE E a Praça da

LIBERDADE EM MEIO À METRÓPOLE

SETBACKS OF MODERNIZATION:THE CITY oF bELo HorIZoNTE aNd THE LIbErTY SQuarE IN THE MIdST oF THE

METROPOLIS

CONTRATIEMPOS DE LA MODERNIZACIÓN:La CIudad dE bELo HorIZoNTE Y La PLaZa dE

LA LIBERTAD EN MEDIO DE LA METRÓPOLIS

PEDRO HENRIQUE DE MENDONÇA RESENDEMestrando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFMG

[email protected]

Resumo: Refletimos neste texto sobre determinadas consequências do processo de

modernização para a cidade de Belo Horizonte. Produtos e condições da modernização social,

urbanização e metropolização estabelecem-se sob a extensão da sociabilidade do capital.

Observando os vínculos entre reprodução de relações sociais de produção e urbanização,

vida cotidiana no mundo moderno e representações ideológicas de uma cidade que se tornou

metrópole, analisamos as mudanças e permanências implicadas à Praça da Liberdade ao longo

de mais de um século. Construída como centro burocrático pelo republicanismo positivista

nessa cidade pretensamente moderna, desde o plano e construção da “nova capital” de Minas

Gerais a partir de 1885, a Praça da Liberdade tem reforçado seu caráter monumental, quando

intervenções capitaneadas por empresas e viabilizadas pelo Estado re-funcionalizam os prédios

do seu entorno, transformando-os em “equipamentos culturais”. Questionamos, portanto, os

sentidos e as contradições envolvidas na monumentalização fetichista de uma cidade herdada

historicamente.

Palavras chave: Modernização; reprodução de relações sociais de produção; representação

ideológica da cidade; metrópole; vida cotidiana.

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.152-179 Jan-Jun 2011

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Terra Livre - n.36 (1): 152-179, 2011

Abstract: We have reflected on certain consequences of the modernization process for the

city of Belo Horizonte. Products and conditions of social modernization, urbanization and

metropolitanization are established under the sociability of capital. Noting the links between

reproduction of social relations of production and urbanization, everyday life in the modern

world, and ideological representations of a city that has become a metropolis, we analyze the

changes and continuities involving the Liberty Square for over a century. Built as a bureaucratic

center by positivist republicanism in this supposedly modern city since the plan and construction

of “the new capital” of Minas Gerais, from 1885, Liberty Square’s monumental character has

been reinforced because of the interventions financed by corporations and made possible by

the State. These interventions are re-functionalizing the buildings from its surroundings by

transforming them into “cultural equipment”. Therefore, we are questioning on the senses and

the contradictions involved in the fetishistic monumentalization of a city which was historically

inherited.

Keywords: Modernization; reproduction of social relations of production; ideological

representation of the city; metropolis; everyday life.

Resumen: Reflexionamos en este texto sobre algunas consecuencias del proceso de

modernización para la ciudad de Belo Horizonte. Productos y condiciones de la modernización,

la urbanización y la metropolización son establecidos bajo la sociabilidad del capital. Señalando

los vínculos entre la reproducción de las relaciones sociales de producción y la urbanización,

la vida cotidiana en el mundo moderno y las representaciones ideológicas de una ciudad que

pasó a ser metrópoli, analizamos los cambios y las continuidades involucradas a la Plaza de la

Libertad, para más de un siglo. Construida como centralidad burocrática por lo republicanismo

positivista en esta ciudad supuestamente moderna, desde el diseño y la construcción de la

“nueva capital” de Minas Gerais a partir del año 1885, la Plaza de la Libertad se ha fortalecido su

carácter monumental, cuando intervenciones financiadas por empresas y hechas posibles por el

Estado refuncionalizan los edificios de su entorno, transformándolos en “centros culturales”.

Discutimos, por lo tanto, los sentidos y las contradicciones del fetiche de la monumentalización

de una ciudad históricamente heredada.

Palabras clave: Modernización; reproducción de relaciones sociales de producción;

representación ideológica de la ciudad; metrópoli; vida cotidiana.

INTRODUÇÃO

Atentando para o modo como nos relacionamos com aquilo que sobrou da cidade no contexto atual da metrópole de Belo Horizonte, nós nos detemos nos elementos fundamentais do processo de modernização1. Para tanto, nesta

1 É necessário agradecer, desde já, aos dois pareceristas anônimos da Revista Terra Livre que fizeram

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RESENDE, P.H. de M. Contratempos da modernização...

introdução nós expomos alguns elementos da crítica da economia política a fim de elucidar os processos de modernização e urbanização. Posteriormente, ao pensarmos a relação entre tais processos na segunda seção do texto, problema-tizamos a apreensão ideológica da modernização em contraposição à crítica ca-tegorial dos seus fundamentos. Discutimos, em seguida, a constituição de Belo Horizonte como pretensa “cidade moderna”, para, então, descrevermos as mu-danças e permanências implicadas à Praça da Liberdade com a urbanização (e metropolização) dessa cidade. Questionamos, na quinta seção do texto, os usos atuais dos prédios de tal Praça e a representação da cidade herdada. Por fim, debatemos as (im)possibilidades que envolvem a cidade em meio à metrópole. Como objeto de intervenções e estratégias inseridas no âmbito da reprodução capitalista do espaço, sendo seus fragmentos herdados “re-utilizados” em meio à metrópole contemporânea, “a cidade se perder na metamorfose planetária”, conforme Henri Lefebvre destacou argutamente:

O fenômeno urbano acha-se profundamente modificado. O centro his-tórico desapareceu como tal. Resta apenas, de uma parte, como centro de decisão e de poder, e, de outra, como espaços fictícios e artificiais. É verdade que a cidade persiste, mas sob um aspecto museificada e espeta-cular (LEFEBVRE, 1989).

Antes, porém, de discutirmos a museificação contemporânea da(s) cidade(s), abordamos alguns dos fundamentos da modernização. Poderia pa-recer inócuo, sobretudo para quem se depara com o presente como dado e acabado, reafirmar que a relação entre o mundo moderno e a cidade em pro-cesso intensivo e extensivo de urbanização seja constitutiva. Pois, embora a modernidade não se refira a um fenômeno unicamente urbano, foi na cidade, com o “crescimento” de grandes núcleos urbanos a partir do século XIX, que o “espírito” da modernidade se expressou real e perceptivelmente centrado no modo de vida moderno. Como experiência de tempo-espaço, entretanto, a mo-dernidade implicaria, além da expressão real e perceptiva - sensível e material - da cidade acrescida, a vivência de que “tudo [o] que é sólido desmancha no ar” (MARX & ENGELS, 1848, apud BERMAN, 1986). Envolvida na renovação constante da cidade e da vida cotidiana, numa superposição sucessiva de ino-vações mais ou menos superficiais sobre as condições do passado, a sociedade moderna não escapa nem deixa de gerar aprofundadamente contradições do círculo definidor de sua sociabilidade: a reprodução do capital.

valiosas sugestões e críticas a este texto.

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Terra Livre - n.36 (1): 152-179, 2011

A separação historicamente originária deste modo de produção - de um lado, os detentores do capital, do outro, os vendedores de trabalho2 - fez da for-ça de trabalho uma mercadoria especial, única, que pode transferir valor e ainda criar mais-valor, que valoriza o valor para a acumulação do capital através da extração de trabalho excedente (ou trabalho não-pago) na produção de todas as outras mercadorias. Sendo, porém, o objetivo da atividade produtiva na moder-na sociedade produtora de mercadorias não a utilidade ou o prazer concreto, mas o aumento da quantidade de dinheiro, tal objetivo torna-se puramente quantitativo. Baseado no tempo de trabalho socialmente médio e necessário, esse impulso ao crescimento da quantidade de dinheiro adiantado apresenta--se como inerente à forma-mercadoria. Dessa maneira, conforme demonstrou Karl Marx ([1867] 1985) com a análise do caráter duplo do trabalho (concreto e abstrato) como especificidade desse modo de produção, existe necessidade aparentemente ilimitada de acumular capital. Portanto, o ser-aí imediato do ca-pital encontra-se na reprodução social para a acumulação.

Como forma de sociabilidade que se universaliza, impelida pelas deter-minações de uma abstração-real - fundada no equivalente da quantidade de trabalho socialmente necessário para a produção da mercadoria (produzida em diferentes condições de trabalho), o trabalho abstrato, como a medida do valor (sendo este uma forma social total e não apenas econômica) -, o capital subor-dina todos os meios para que o seu fim se torne o resultado de si mesmo: a necessidade de acumular por acumular, de produzir mais dinheiro a partir de dinheiro. No estabelecimento dessa sociabilidade universal geram-se rupturas com os modos e meios de vida precedentes, uma vez que o nexo social se dá não mais prioritariamente pelos trabalhos concretos e valores-de-uso, mas, so-bretudo, pelo trabalho abstrato e pelas trocas3, em que o desenvolvimento das forças produtivas se torna importantíssimo e a forma-mercadoria se expande em todos os sentidos da vida cotidiana. O capital, desse modo, se reproduz e se amplia com rupturas, divisões, reiterando contradições. As rupturas são, dora-vante, o seu modo de ser. Consequentemente, as rupturas são as condições do moderno enquanto modo de vida reificado e reificante no mundo da mercado-ria e da modernização como processo – constituído, grosso modo, pela mobiliza-ção do trabalho abstrato e divisão social do trabalho, pelo desenvolvimento das

2 Separação dos produtores dos meios de produção, definida na oposição dialética entre os detentores de força de trabalho e os proprietários de meios de produção.

3 As trocas de mercadorias apresentam-se como determinação social para a sobrevivência e reprodução no mundo moderno, em que a compra e a venda formam uma unidade dos contrários, isto é, interdepen-dentes, porém diversas.

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RESENDE, P.H. de M. Contratempos da modernização...

forças produtivas e pela institucionalização da propriedade privada -, em que um está incorporado ao outro. Como totalidade simples que, metamorfoseada, desencadeia todo o modo de produção, pois contém em germe todo o capital, a mercadoria passa a determinar aprofundadamente nossas relações sociais.

Nessa universalização dominadora, a Revolução Industrial firmou a ci-dade como locus privilegiado da reprodução de relações sociais de produção, de concentração e desenvolvimento das forças produtivas do capital. Primeira-mente na cidade, mas logo envolvendo o campo, a vida cotidiana transforma-se em cotidiano com a homogeneização e fragmentação dos usos do tempo e do espaço pelos imperativos da troca (LEFEBVRE, [1968] 1991a). Caracterizada por sua tendência em estabelecer relações impessoais, pela individualização e equivalência, pela racionalização e pelo calculável, redutível ao quantitativo, en-fim pela homogeneização, fragmentação e hierarquização da realidade social, a abstração-real do capital alçou-se como elemento próprio da sociabilidade moderna.

Dessa maneira, o modo de produção do capital se revela como modo de produção de mais-valor e o capital como valor em movimento. O capital pode ser compreendido, por meio dessa síntese bastante sucinta, como relação social em que ele relativamente se autonomiza e domina o social, que o produziu, tornando-se o “sujeito” da história (Marx)4. Esse impulso autonomizado da valorização do valor vai encontrar o espaço como empecilho, em um primeiro momento, pois a propriedade da terra é um custo para o capital. O espaço tornado mercadoria, parcelado, vendido e comprado é, entretanto, condição formal para sua reprodução. Certos ramos de reprodução do capital, inclusive, estão diretamente voltados para os “negócios” da re-produção espacial, tais como as empreiteiras e as incorporadoras. Mas o que também envolve o espa-ço na economia política moderna, e que diz respeito à relação entre trabalho social, proprietários de terra, capital em geral e em particular, é a renda da terra, notadamente a urbana, que se configura como uma forma específica para a acumulação: o rentismo.

A acumulação do capital - como fim em si da reprodução social moderna - implica constante e contraditoriamente, portanto, uma tendência à mercan-tilização de tudo e de todos. Coisificando as relações sociais, naturalizando-as como relações entre coisas, a sociabilidade e a forma de pensamento no mo-derno sistema produtor de mercadorias tornam-se, assim, fetichistas, ainda que

4 O capital se volta contra o homem concreto, o trabalhador particular que, vendendo sua força de tra-balho para em troca receber salário e conseguir comprar as mercadorias que não pode produzir sozinho, se submete ao “Deus mercado”. Vive-se, assim, para trabalhar, e não o contrário.

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não de maneira determinista, mas como condição própria do mundo onde são as coisas mortas, mercadorias e dinheiro, que estão socializadas em contrapo-sição às pessoas5. Não quer dizer que o fetichismo da mercadoria seja efeito de um pensamento errado ou falso, julgado por uma verdade pressuposta pelo cientista, por exemplo. Trata-se, ao contrário, de um feitiço que se realiza em função das relações de equivalência (trabalho abstrato, valor e dinheiro) postas e repostas pelas trocas por meio do dinheiro6. Diante do processo de moderni-zação a sociedade acaba por abertamente rejeitar o entendimento e a subversão do movimento das relações sociais, apreendidas e vividas de maneira fetichista como relações entre coisas, ao passo que, correlatamente, as coisas estão huma-nizadas (MARX, [1867] 1996).

A finalidade em si da acumulação do capital impede, pois, que o real se descubra como possível, que se esboroe de uma vez por todas a penumbra fantasmática da dança das mercadorias que “encantam” e dominam os ho-mens. Abrindo-se à possibilidade concreta de não sermos mais “escravos da luz sem misericórdia” (KURZ, 1997) da produção generalizada de mercadorias, do trabalho abstrato e do valor, criar-se-ia uma vindoura história dos homens radicalmente livres, que não se coaduna com a liberdade formal e privada, juri-dicamente instituída, nem com a dupla liberdade negativa do trabalho no modo de produção do capital (livre dos meios de produção e livre para a venda da força de trabalho). Visar-se-ia, radicalmente, libertar os homens do trabalho, do reino da mercadoria e do Estado, ou seja, do capital.

A MODERNIZAÇÃO: ENTRE IDEOLOGIA E CRÍTICA CATEGORIAL

O desvelamento desses fundamentos e contradições do processo de mo-dernização torna-se imprescindível para se compreender a urbanização. A par-tir da expressão “produção do espaço”, formulada por Henri Lefebvre ([1984] 2000), pode-se admitir que a produção e a reprodução das relações sociais de produção do capital não implicam a produção apenas de coisas, de objetos, mas também de relações sociais, de cidades novas, do cotidiano, das representações ideológicas. Dessa maneira, o pensamento fundado na crítica da economia po-

5 O valor, por exemplo, aparece fetichizadamente como se fosse atributo da natureza física e do valor-de--uso das mercadorias, ao invés de ser compreendido como determinação social implicada às mercadorias devido à abstração-real própria das relações sociais capitalistas.

6 Conforme a expressão de Marx ([1894] 1985: p.280), “essa personificação das coisas e essa reificação das relações de produção, essa religião da vida cotidiana”, torna o fetichismo da mercadoria crescente e contraditoriamente reproduzido, ao ponto de se tentar criar dinheiro a partir de dinheiro (financeirização).

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lítica do espaço e na crítica da vida cotidiana penetra, contra-estrategicamente, as entranhas dos processos de modernização e urbanização. Esta última se faz como condição e produto da lógica reprodutiva do capital (o econômico), que intervém, junto com a racionalidade estatal (o político), na vida cotidiana (o social). Recuperando a relação das partes com o todo, dos fragmentos e das rupturas, das transições e dos desdobramentos, a lógica dialética ilumina as ligações internas e as mediações necessárias, detendo-se no pensamento pelo negativo. Exige-se, por suposto, uma teoria do espaço produto-produtor que, engendrado pelo modo de produção, intervém no nível das forças produtivas, das relações de propriedade, das instituições e das ideologias.

As ideologias não se reduzem, assim como não se reduz o fetichismo da mercadoria, ao discurso falsificador. Apesar de conceitualmente diferentes do fetichismo como forma objetiva e subjetiva da sociabilidade no mundo das mercadorias, as ideologias operam efetivamente na subordinação real dos ho-mens às coisas, como ratificação do modo fetichista de conceber e relacionar-se no mundo moderno.7 As ideologias, enfim, funcionam como justificação do injustificável, da vida cotidiana degradada, subjugada às coisas, mas, ao mesmo tempo, naturalizada, tomada como condição inalterável. Para Marilena Chauí (1989), ao contrário do pensamento crítico, que se detém no que é aparente-mente indeterminável na experiência e o compreende de maneira conceitual na busca da sua totalidade concreta, a ideologia recusa o não-saber que habita necessariamente a experiência e o próprio saber (como negação do ser que compõe a totalidade do próprio ser), numa afirmação peremptória de verdades absolutas.

Subordinadas à reprodução do capital, as ideologias tornam-se normas prévias que fixam uma ordem instituída, simultaneamente, de maneira buro-crática (pela via estatal) e de maneira não-burocrática (pelo cientificismo). Em uma operação lógica de redução do ser ao ter e do ter ao parecer (DEBORD, [1967] 1997), deduz-se a realidade social da modernização das ideias prontas que se tem dela, enquanto que, contraditoriamente, “(...) as ideias deveriam es-tar nos sujeitos sociais e em suas relações, mas, na ideologia, os sujeitos sociais e suas relações é que parecem estar nas ideias” (CHAUÍ, 1989: p.4). Como mecanismo de dominação, a ideologia faz-se do exercício do poder na anula-ção do pensar e na promoção da morte do conhecimento, tornando-o objeto dominável, positivo e instrumentalizado. Com a pretensão de uma racionali-dade imanente ao social, a ideologia é tomada como um discurso competente,

7 O ideológico apresenta-se, desse modo, como o objetivo factual de uma realidade que aparentemente se explicaria em si mesma. A História reduz-se ao mais do mesmo, à soma do que já estava previsto.

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anônimo e impessoal, vinculado àqueles poucos que podem falar e fundado na pura (ir)racionalidade de “fatos racionais”. Através da interiorização violenta de regras e normas, tem-se uma concepção mistificadora e generalista de verdade pelo saber autorizado a falar. Em elaboração continuada no espaço e no tempo, segundo os mecanismos da dominação social dos homens por outros homens através das coisas, “(...) a ideologia incorpora e consome as novas ideias, desde que perderam as amarras com o tempo originário de sua instituição e, assim, fiquem fora do tempo” (idem, p.6). “Afirmar que a ideologia não tem história é, portanto, afirmar que, além de ‘fora do lugar’, nela as ideias também estão ‘fora do tempo’” (idem, 1989: p.6). Portanto, a discrepância entre o que se concebe ideologicamente e a compreensão crítica dos fundamentos da reprodução so-cial demonstra que “(...) na ideologia as ideias estão fora do tempo, embora a serviço da dominação presente” (idem, p.5). O paradoxo consiste, pois, em que, para estar a serviço da dominação presente, a ideologia exige que as ideias não estejam voltadas à compreensão do próprio tempo.

No seio da modernização o pensamento apresenta-se prioritariamente mistificado, com implicações reais na vida cotidiana, uma vez que a ideologia tenta justificar a irracionalidade do capital para consigo mesmo e para com os homens coisificados. Não se deveria, por conseguinte, teorizar sobre a mo-dernização de maneira independente da ideologia, pois ambas assentam-se na reprodução social capitalista. As ideologias não são, portanto, meras “manipu-lações” do pensamento em função de interesses “privados” ou filhas dos “Apa-relhos Ideológicos de Estado” (Althusser). Para além da crítica da ideologia strictu sensu, teoricamente insuficiente e até mesmo problemática se mantida em si mesma, tornam-se necessárias a crítica das formas de representação social e a conceituação dialética das dualidades, das partes divergentes e inseparáveis de um todo, como unidades dos contrários: certo e errado, bom e ruim, pre-sença e ausência (LEFEBVRE, 1980). Não basta o pensamento acusativo, que geralmente associa uma classe, alguns indivíduos ou “aparelhos” à ideologia, como se esta fosse uma espécie de dominação da reprodução do pensamento que paira sobre o mundo e impede as pessoas de saber a “verdade científica” dos fatos. Desse ponto de vista, da superação da crítica ideológica da ideologia, a crítica das ideologias é necessária, mas insuficiente; é apenas um instante no desvelamento das contradições e naturalizações do processo de modernização. Não é suficiente criticar o ideário do progresso, por exemplo, para afastá-lo, para impedi-lo de continuar a conquistar estômagos e espíritos (Marx), para que deixe de nos corromper crescentemente com a ampliação visível do mundo da mercadoria.

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A crítica das ideologias só faz sentido se vinculada a uma crítica das for-mas categoriais da sociabilidade capitalista. Como modo de produção, o capital não está isento dos obscurecimentos, das reduções da capacidade humana de compreensão, crítica e subversão. A ideologia é necessária e tem uma “verdade” de existir, ao mesmo tempo que é mistificadora e inviabilizadora da História, porque oculta o que pode, entretanto, revelar-se (através das violências, contra-dições e crises do capital, sobretudo): a irracionalidade do modo de produção baseado na extração de trabalho excedente, na produção aumentada de merca-dorias e na acumulação insaciável do capital. É preciso, antes de tudo, criticar o feitiço imanente da abstração-real do capital como valor em movimento que se generaliza e move todos os meios. O fetichismo opera como mecanismos de inversão real de sentidos. Marx desde pelo menos 1844 percebia essa inversão como servidão dos homens às coisas8. Assim, voltemo-nos ao pensamento crí-tico da modernização.

Observa-se, pelo exposto, que a gênese lógico-categorial da moderniza-ção social não se constituiu em determinada etapa específica ou a partir de um momento inicial datável. A gênese lógico-categorial da modernização refere--se, mormente, à busca incessante de valorização do valor para a acumulação. É isso que permite compreender o que se faz como moderno em lugares e tempos distintos. O ponto de chegada do desenvolvimento das formas lógi-co-categoriais da sociabilidade moderna, o presente, faz-se, destarte, como o ponto de partida da análise da modernização. É a forma atual da sociabilidade do capital que permite, com o recuo à História, compreender as espacialidades atuais como expressões da acumulação dos tempos (concretizações de tem-po de trabalho) e contradições engendradas na modernização. Como expôs Henri Lefebvre ([1970] 1978) no método progressivo-regressivo, “o momento recorrente, analítico-regressivo, precede a um momento histórico-genético, no decorrer do qual o pensamento volta até o atual a partir do passado desentra-nhado, apreendido em si mesmo” (p. 17). Partindo do presente, buscar-se-ia levantar uma genealogia do tempo passado (sem historicismo, mas recuperan-do os nós, a constituição e a historicidade de uma formação social específica), voltando-se ao presente e elucidando-o. “Sem os procedimentos progressivos e regressivos (no tempo e no espaço) da análise é impossível conceber a ciência do fenômeno urbano” (idem, p. 229, grifos do autor). Após essa breve análise da modernização e da sua relação com a urbanização, fazemos concisamente, na seção seguinte, uma discussão quanto à “cidade moderna” de Belo Horizonte.

8 “Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt)” (MARX, [1844] 2004: p.80, grifos do autor).

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A NOVA CAPITAL: ORDEM E PROGRESSO NUMA “CIDADE MODERNA”

Desenvolvemos, em seguida, uma problematização sobre as raízes da “modernidade anômala” de uma urbanização como a de Belo Horizonte, na periferia mundial da reprodução do capital. Num país caracterizado antes por “parecer moderno, mais do que ser moderno” (MARTINS, 2000: p.33), onde as ideias estiveram fora do centro em relação ao seu uso europeu, a fundação de uma cidade pretensamente “moderna” no final do século XIX, como foi o caso de Belo Horizonte, expressar-nos-ia o quanto a modernidade se vincula aqui a uma forma particular de urbanização. Nos termos das representações ideológi-cas de uma cidade planejada, cuja missão seria o progresso de um povo simul-taneamente tradicional e republicano, encontram-se certos elementos constitu-tivos do ideal de modernidade. Com o pensamento crítico detido no âmbito do vivido, no cotidiano e nas práticas espaciais, percebem-se as representações ide-ológicas da cidade como uma forma própria do pensamento moderno, o qual está prenhe de contradições acirradas no tempo e no espaço da modernização, recheado de alienações que podem ser superadas (LEFEBVRE, [1968] 1991a).

Desde pelo menos a década de 1880 falou-se na abertura de um novo tempo para o Brasil, o qual deixaria de ser Império e se tornaria uma Repú-blica, o que seria acompanhado de reestruturação social, política e econômica. A proclamação da República em 1889 acompanhava o momento crucial de enunciação da conversão da economia baseada no escravismo para o regime de colonato (que aqui antecedeu ao “trabalhado livre”). Mas a mudança não sig-nificou, ao menos de início, o anunciado reordenamento da estrutura de poder brasileira, oligárquica, assentada no clientelismo e na troca de favores. Entre-tanto, a entrada na Primeira República não foi apenas uma proclamação, do alto do poder, de um golpe de Estado que afirmava a necessidade de modernizar a “nação”, ao ruir de um reinado que perdera suas forças. Inaugurou-se, de fato, novo tempo para o discurso político-ideológico, mas também para a relação de forças da economia política estruturalmente mantida “à brasileira”: patrimo-nialista e personalista, a Primeira República estabelecia-se pela dominação de poderes para os quais o que era aparentemente “atraso” seria uma vantagem, a condição para que se tivesse uma discursiva e arquitetada vanguarda como modernidade postiça das elites9.

9 Contemporânea da história européia, sem ser coetânea nas suas relações sociais e no desenvolvimento das forças produtivas, essa República almejou uma modernidade que não poderia efetivar-se tão cedo, pois não se tinha aqui um modo de vida tipicamente moderno, embora produto e fundamento do moderno.

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O republicanismo tornou-se, por suposto, uma expressão que se fez so-bre a presunçosa interpretação de que vigem, a partir da proclamação, as es-truturas tipicamente republicanas. A ordem republicana inaugurou-se, dessa maneira, primeiramente no discurso de uma elite que tentava estabelecer o ideal de modernidade. Sem conseguir ser tipicamente moderna devido à sua pró-pria condição de reprodução - em geral “interdependente” do aparente atraso das relações sociais -, a Primeira República, dos altos generais e compadrios, espalhou-se aos ares, contudo, como caminho único para o país que teria um encontro marcado com o futuro limpidamente “moderno”. Impregnada de signos do moderno, portanto de imagens da modernidade, uma elite nacio-nal precisou afirmar-se através de um republicanismo cientificista, positivista e ordenador do Estado como ente que formaria uma “nação soberana”. Na medida em que a periferia se faz pela interdependência da centralidade e, des-se modo, moderniza-se atrelada ao contexto concorrencial global do capital e não de maneira “dependente” ou sempre posteriormente à modernização dos centros, a Primeira República brasileira fez-se, afinal, como expressão do ideal de afirmação do moderno.

Em tal contexto, as cidades brasileiras do final do século XIX começa-ram a tomar contornos mais importantes para a reprodução do capital, após quatro séculos de predomínio do caráter mercantil e agroexportador da eco-nomia. Passam a congregar-se nas maiores cidades do País (São Paulo e Rio de Janeiro, sobretudo) pequenas produções familiares e industriais, desde as últi-mas décadas do século XIX e início do século XX. Minas Gerais, em particu-lar, cuja ocupação territorial teve marca atipicamente urbana no século XVIII graças à economia minerária, intensificou sua ruralização com a decadência da mineração no século XIX. Ouro Preto, até então capital da Província de Minas, marcou-se como importante cidade minerária e pela “arquitetura colonial”.

Nas últimas décadas do século XIX, todavia, com a emergência do repu-blicanismo em Minas Gerais (marcado pelo enaltecimento dos Inconfidentes do século XVIII, tidos como os pais tanto da intenção de fundar uma Repúbli-ca brasileira quanto de mudar de cidade a capital da Província), alguns homens de formação solidificada nos ideais liberais e progressistas (tais como Augusto de Lima, Bias Fortes [o primeiro], João Pinheiro e Afonso Pena) colocavam-se na ofensiva para a fundação de uma nova capital para Minas. Como os esta-dos da Federação, com o advento da República, adquiriram importância des-conhecida pelas antigas províncias, o que reativou as discussões a respeito da mudança da capital de Minas, cogitada desde o final do século XVIII, os velhos republicanos se contrapunham, em disputas ferrenhas, às “ultrapassadas” elites

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provinciais ancoradas no domínio político-econômico que mantinham sob o decadentismo mineiro durante o Brasil Imperial, assim como se contrapunham à Ouro Preto “antiga” e descompassada do “espírito moderno” da República. Além disso, a mudança da capital de Ouro Preto deveria conferir nova geogra-fia do poder ao estado conturbado pelo separatismo.

É nessa conjuntura - de quase dissolução da ordem interna, dos interes-ses pela partilha do território original e do risco de fracasso do novo regime para os destinos do estado - que a construção de uma cidade em que se liga-riam as origens e tradições mineiras ao progresso e à República se tornou um projeto oportuno para “realizar a síntese sonhada pelo novo tipo de governo” (MELLO, 1996: p.25). Capital desde 1720, quando houve a separação da Capi-tania de Minas Gerais da de São Paulo, a cidade de Ouro Preto caracterizava-se, para os republicanos, por ser atrasada e deficiente para o progresso estadual. Reuniu-se na velha cidade, em 30 de março de 1891, uma Constituinte repu-blicana do estado na qual a mudança da capital foi discutida. Ainda em 1891 o Presidente do estado, Augusto de Lima, formulou decreto determinando a transferência da capital. Adicionada à Constituição estadual, a lei provocou muitos protestos da população mineira, que se dividia entre os “não mudancis-tas” e os “mudancistas”. Cada grupo fundou um jornal e promoveu reuniões e debates. Para os “mudancistas” era necessário romper com os laços de uma sociedade ligada aos modelos absolutamente tradicionais. Depois de acirrados debates, a decisão pela mudança impôs ao Governo a questão da escolha da localidade para a nova capital. Cinco regiões foram estudadas por comissões específicas: Paraúna, Barbacena, Juiz de Fora, Várzea do Marçal e Curral del Rei. A Lei nº 3, de 1893, tornara oficial a escolha por Curral del Rei, local já conhecido pela população mineira como “Belo Horizonte”. Depois da difícil discussão sobre a definição do sítio, a construção da nova capital deveria ser efetivada em quatro anos, de 1894 a 1897. Era criada, então, a Comissão Cons-trutora da Nova Capital, para a qual o engenheiro-chefe e politécnico, Aarão Reis (chefe da comissão até a inauguração da cidade, em dezembro de 1897), selecionou equipe afeita ao positivismo republicano. Concebido a partir das representações do urbanismo moderno, o plano da “Cidade de Minas” (atual Belo Horizonte10) foi desenhado antes de se conhecer o sítio11.

10 A “nova capital”, criada pelo decreto-lei de 17 de dezembro de 1893, recebeu inicialmente o nome de Cidade de Minas. Seu município desmembrou-se de Sabará em 1894 e sua construção foi inaugurada (ainda inconclusa) em 1897. A cidade recebeu definitivamente o nome atual em 1901.

11 Sobretudo as intervenções de Haussmann em Paris serviram de influência no caso de Belo Horizonte como elo de vinculação às novidades urbanísticas internacionais, as quais, ao dizerem resolver os proble-mas das cidades industrializadas, eliminavam as características de convergência de pessoas e de atividades

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A construção de uma nova capital era a “síntese de uma capacidade po-lítica, econômica e histórica de resposta de nossa elite estadual republicana” (MELLO, 1996: p.28). Para entrar no novo tempo pressupunha-se uma nova capital. Cidade planejada para ser capital do estado, a futura Belo Horizonte era o arquétipo de uma vida na modernidade e lugar onde habitaria uma sociedade que “acerta as contas com o passado”. Para se distinguir da antiga ordem e da antiga capital, o advento da República serviria como fundamento da concepção ideológica de uma nova temporalidade, pretensamente moderna, que encon-trava na cidade a representação ideal (MAGALHÃES & ANDRADE, 1989). Tentava-se romper, de um lado, com o passado colonial e o passado imperial, tomados como causas do atraso do País e, de outro, buscava-se concretizar a perspectiva modernizante, aliando “ordem e progresso”. Segundo Aarão Reis era necessário para o plano da nova capital “traçar com a régua e o compasso uma ordem social harmônica, unitária, onde não haveria lugar para a chama-da desordem urbana”. Assim, “a uniformidade da malha urbana proclamava a transparência e orientação plena do espaço, assegurando uma legibilidade imediata da cidade” (JULIÃO, 1996: p.57). Uma nova capital propiciaria à Re-pública ser vivida realmente como democratização e modernização social. No contexto da construção da nova capital, entretanto, a República não significou democratização, a não ser caricaturalmente. Ao invés disso, o que se deu no planejamento e na construção da nova capital foi baseado na violência e na expropriação, o que depõe contra o propósito democrático. A cidade firma-se, desde então, como locus do poder estatal e da reprodução do capital, do traça-do reto e da lógica formal de uma ciência que não consegue ordenar de todo o que constantemente reitera contradições12.

A República e Belo Horizonte seriam também as “boas novas” que reformulariam o arcaico (o tradicional, Ouro Preto), não apenas na ruptura, como também na continuidade, o que é demonstrado, por exemplo, na ideolo-gia da mineiridade, que alia tradição e progresso, ou ao se tomar Ouro Preto e os Inconfidentes como marcos da História mineira. Enquanto em Ouro Preto estava preservado o passado, a pré-história do republicanismo mineiro que viria a ser monumentalizada ao longo do século XX, Belo Horizonte representava o futuro. De todo modo, Belo Horizonte foi edificada como símbolo e expressão da intenção de modernidade, do sonho tecnocrático e positivista de progresso.

para que cada coisa ocupe seu lugar pré-estabelecido através do controle e do planejamento.

12 Inaugurada às pressas, a Cidade de Minas ainda estava inacabada. Os operários aglomerados em meio às obras não foram retirados e, sem lugar para ficar, assim como muitos dos antigos moradores do arraial, formaram as primeiras favelas na periferia da cidade planejada.

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Nesse sentido, já nasce como uma anti-cidade que nega o encontro dos dife-rentes e a criação de obras: como forma a priori, impõe-se desde a prancheta até o terreno, passando pelas concepções e relações cotidianas sob o signo da modernidade, através das representações ideológicas da cidade, o que pratica-mente impossibilitaria sua apropriação fora do escopo da racionalidade abstrata fundada na lógica cientificista e na reprodução do capital.

Integrando ideologia e política elitistas, a nova capital estava envolvida na imagem e constituição de um regime que atingiria o que se concebia como modernidade, mas sem romper com o passado, enfim uma cidade cientifica-mente justificável e construída, que, limitada pelas parcas (senão irreais) trans-formações sociais proporcionadas imediatamente pela República, servia aos imperativos da modernização. Na nova capital um local assumiria importância monumental: a Praça da Liberdade. Tratamos, na próxima seção, dessa Praça no curso da urbanização belo-horizontina.

Foto 1. Festa de inauguração de Belo Horizonte na Praça da Liberdade, em 12 de dezembro

de 1897. Fonte: Acervo Fotográfico do Arquivo Público Mineiro.

A PRAÇA DA LIBERDADE NA URBANIZAÇÃO DE BELO HorIZoNTE

A Praça da Liberdade constituiu marco decisivo na nova capital de Minas Gerais como símbolo principal da cidade republicana. Mesmo que não seja refeito de modo detalhado o percurso histórico de constituição da Praça ao

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longo de mais de 110 anos de urbanização da capital que se tornou metrópole, elucidam-se algumas mudanças e permanências vinculadas ao logradouro, que incidiram no âmbito da vida cotidiana e nas representações ideológicas da ci-dade historicamente herdada. Afinal, a urbanização e a metropolização de Belo Horizonte levaram a inúmeras transformações da cidade planejada, embora algumas referências se tenham mantido com destaque. Dentre as referencias que perduram, provavelmente a principal é a Praça da Liberdade13. Projetada e construída relativamente próxima ao centro urbano do plano original, desde o inicio das obras da nova capital, a Praça firmou-se desde cedo como marco cívico e burocrático da cidade, em torno da qual se edificaram prédios que sediaram por décadas as Secretarias e o Governo do Estado de Minas Gerais. Traçando as transformações passadas pela Praça, alcançamos a sua atualidade, quando se verifica a conversão nos usos dos prédios que a circundam, de sedes do Governo e das Secretarias do Estado de Minas Gerais em “equipamentos culturais” do Circuito Cultural Praça da Liberdade (CCPL).

A Praça da Liberdade foi projetada por Aarão Reis designadamente para abrigar em seu entorno o conjunto de Secretarias e a sede do Poder Executivo do Estado de Minas Gerais. Ele posicionou a Praça, em forma de retângulo e na convergência de quatro largas avenidas, sobre uma porção mais elevada do terreno em que se construiu Belo Horizonte (na parte de dentro da Avenida do Contorno)14. O estudo de ALBANO et al. (1985) atesta o quanto a Praça da Liberdade foi, desde seus primórdios, referida como símbolo da cidade de Belo Horizonte (e do estado de Minas Gerais, em certa medida):

Em 16 de abril de 1903, o jornal Minas Gerais publica um artigo do ad-vogado Gustavo Pena em que sugere o tratamento a ser dado à Praça da Liberdade.

“Nesta formosa cidade de que nos devemos orgulhar por tantos motivos, para que a grandiosa Praça da Liberdade venha a ser considerada um dia, como deve e merece, a Praça do Estado de Minas, é necessário, no meu entender, que a exemplo de tantas outras, façamos, embora lentamente,

13 A denominação de “Praça da Liberdade” expressa nitidamente o ideal liberal do republicanismo que engendrara a nova capital. Mas a “liberdade” da Praça não foi realmente vivida, senão política e economi-camente concebida pelas elites de plantão.

14 Estrategicamente situada, essa Praça laica encontra-se em posição elevada em relação ao centro co-mercial mais antigo de Belo Horizonte, à Igreja São José e à Catedral da Boa Viagem. O bairro do entorno da Praça abrigou, desde o final do século XIX, os servidores públicos de Minas Gerais, recebendo o nome de Bairro Funcionários. Esse bairro tornou-se uma das regiões mais “nobres” de Belo Horizonte.

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alguma cousa que signifique um sentimento artístico e um dever patrió-tico”.

A preocupação que o texto expressa, em relação à Praça da Liberdade, reflete esta necessidade de se buscar um espaço que possa concentrar, na sua imagem, a imagem pretendida da cidade. [...]

Em síntese, o que esta sugestão pretende é uma “monumentalização” da Praça, atribuindo-lhe uma função didática de manutenção dos valores e expressão da história de Minas (ALBANO et al., 1985: p.12-13).

Após a euforia da inauguração da nova capital, e da consequente destrui-ção completa do antigo arraial do Curral del Rei (BARRETO, 1995 [1936]), a cidade ficou marcada até ao menos os anos 1920 por um ritmo da vida cotidia-na que parecia não atingir a tão almejada modernidade, a qual estaria presente apenas no traçado das ruas e nas “modas” elitistas: “Era o ritmo morno da vida social, ainda prevalecente, que impacientava quem se consagrou a representar o tradicional como atraso, contrapondo-o ao moderno ao invés de compreendê--lo como seu produto e fundamento” (MARTINS, 2003: p. 398). Espécie de cidade sem graça nesse primeiro anos, a nova capital parecia às vezes grande demais para sua população e sem diversões condizentes com seu plano.

A Praça da Liberdade, onde se inaugurou com festa a nova capital, em 12 dezembro de 1897, manteve características bucólicas, com árvores e alguns lagos, até 1901, quando sofreu a primeira grande intervenção que a afrancesou, ao se construir um coreto, plantar dois renques de palmeiras e colocar ilumi-nação pública. Local novo, de parada do bonde, aos poucos a Praça começou a estabelecer-se como espaço de sociabilidade na nova capital. Entediante, to-davia, o ritmo da vida cotidiana estava descompassado da imagem reproduzida pelo republicanismo positivista da cidade moderna. O Presidente do estado em 1902 mandou construir, não por acaso, uma réplica de concreto do pico Itaco-lomi (maciço rochoso de Ouro Preto) no centro da Praça, sugerindo consolo aos ouro-pretanos melancólicos da antiga capital.

A população começou a frequentar mais intensamente os espaços de lazer da nova capital a partir dos anos 1910, quando os cinemas, cafés e praças passaram a congregar glamour, diversão e “ares modernos”. Mas é somente na década 1920 que esses espaços entram de maneira consistente na vida cotidiana das pessoas e a cidade planejada assume ritmo mais condizente, mais confor-tado com seu ideal, reproduzindo, contudo, contradições, além de manter-se

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diversa de uma modernidade “clássica” por razões já salientadas. Nas décadas de 10, 20 e 30 do século XX, a Praça da Liberdade torna-se um dos principais pontos de encontro das pessoas em Belo Horizonte, onde se fazia o footing e paquerava-se. Geralmente no final de tarde, no tempo do lazer subordinado ao tempo do trabalho, o footing firmou-se como primeiro uso mais intenso da Praça, além das passagens de transeuntes e funcionários públicos, das ma-nifestações cívicas, greves e atos. Os anos vinte e trinta em Belo Horizonte foram marcados por cronistas e escritores da “primeira geração modernista”, tais como Carlos Drummond e Pedro Nava, pelo tempo do romantismo na história da capital, sua mocidade. A exuberância da arborização, a amplidão das avenidas, os passeios de bonde, as sessões de cinema, os cafés e o footing com-punham a atmosfera da cidade que pareceria tornar-se enfim moderna, embora de uma modernidade esvaziada, por exemplo, pela falta de certos elementos para muitas das pessoas que compunham sua urbanização (como exemplifica-vam as escolas e habitações precárias das periferias).

Em 1920 a Praça da Liberdade foi reformada com a incorporação de jardins e de chafarizes, assim como outras alterações que lhe deram um as-pecto próximo do atual. Foi quando Belo Horizonte recebeu a visita dos reis da Bélgica. É dessa década a maior parte dos discursos que enalteceram Belo Horizonte como cidade amena, mas que ainda se faria plenamente na moderni-dade. Durante os anos trinta e quarenta a cidade passa por importantes trans-formações, sobretudo em regiões externas à área central, como as advindas da construção da Pampulha e do eixo industrial na década de 40. Aos poucos a cidade recebe algumas indústrias e seu perfil deixa de ser definido apenas pelo caráter administrativo-burocrático. Semelhante impulso modernizador foi acompanhado do crescimento dos serviços e do comércio, notadamente na área central, além da elevação dos patamares do preço da terra, assim como do aumento da construção de edifícios. Na administração do Prefeito Juscelino Kubitschek, que, com o objetivo de “renovar” a capital, inaugurou o Complexo Arquitetônico da Pampulha em 1943, a modernização da cidade fez-se de ma-neira ideológica e estrategicamente monumental. A década de 1950, quando a cidade inicia consistentemente sua metropolização15, é marcada pelo despontar da industrialização. Durante os anos 1950 e 1960 a Praça da Liberdade apre-sentou declínio como local de predomínio do encontro citadino na medida em que as pessoas passavam a habitar regiões mais longínquas e a utilizar outros

15 Metropolização expressa visivelmente, por exemplo, através da expansão significativa do mercado imobiliário, da verticalização da área central, da ampliação do seu raio de influência regional e da intensi-ficação do ritmo da vida cotidiana intraurbano.

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espaços para o lazer. As décadas de 1960, 1970 e 1980 acentuaram ainda mais a metropoliza-

ção da cidade, a qual mantinha a monumentalidade da área central, ainda que se verificasse certa “deterioração” em determinados logradouros. Isto é, du-rante esse período ocorreu certo arrefecimento temporário dos investimentos higiênico-sanitaristas e esteticistas da política urbana para a área central de Belo Horizonte, o que, contudo, tem sido completamente revertido pela tendência patrimonialista das últimas duas décadas. De 1969 a 1989 a Praça da Liberda-de, especificamente, abrigou um conjunto de feiras (de antiguidades, comidas típicas, artesanato e objetos de arte) nos dias úteis e nos finais de semana. Fre-quentada por diversas pessoas de diferentes classes sociais, ela foi vivenciada nesse período com grande intensidade, novamente, como espaço de lazer e, enquanto nova condição, como local de comércio. A “deterioração” da Praça com o uso comercial levou, no inicio da década de 1990, a uma polêmica sobre a mudança das feiras daquele local. Após intensos debates entre feirantes, go-vernantes, técnicos e entusiastas, o Governo do estado tornou-se “parceiro” da empresa Minerações Brasileiras Reunidas (MBR) para a restauração, em 1991, e a manutenção da Praça desde então (CALDEIRA, 1998).

Portanto, uma genealogia do processo de modernização de Belo Hori-zonte, desde pelo menos a inauguração da cidade até a atual fase da metropoli-zação, marcada notadamente pela transferência da sede do Poder Administra-tivo do estado de Minas da Praça da Liberdade para o “Centro Administrativo Tancredo Neves”, poderia mostrar, nesse percurso, como a cidade é re-volvida e re-significada, representada e re-inserida na vida cotidiana. A cidade está, ao mesmo tempo que presente e monumentalizada na Praça, ausente, pois nos escapa e é impossibilitada de se realizar como obra criada pela e para a apro-priação social. Abordaremos, na próxima seção, as representações da cidade monumentalizada em relação aos usos atuais dos prédios da Praça.

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Foto 2. Praça da Liberdade vista de cima, com região sul de Belo Horizonte ao fundo.

Disponível em: <http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=205800>.

Acesso em: 10 out. 2011.

OS MONUMENTOS E A REPRESENTAÇÃO DA CIDADE HErdada EM MEIo À METrÓPoLE

Como exposto anteriormente, a urbanização extensiva e intensiva de Belo Horizonte e a sua metropolização não implicaram o desaparecimento completo da cidade herdada. Ela ainda está representada na metrópole. Paradoxalmente, tem-se uma tentativa de manutenção ou de restituição do que restou da cidade, destacadamente através de seus antigos prédios museificados. Para Henri Lefe-bvre ([1970] 1999),

Uma imagem ou representação da cidade pode se prolongar, sobreviver às suas condições, inspirar uma ideologia e projetos urbanísticos. Dito de outro modo, o ‘objeto’ sociológico ‘real’, nesse caso, é a imagem e, sobretudo, a ideologia! (p.59).

Para o mesmo autor, os monumentos da cidade recebem, condensam e transmitem mensagens, sobretudo pela memória incorporada, pela memoriza-ção do tempo em uma permanência objetual (LEFEBVRE, [1970] 1978). Ape-sar de não ser ele que produz o espaço e o tempo, o monumento se contenta em conservá-los. O edifício monumental é também o apoio de uma ideologia, ao buscar reunir, persuadir e convencer pelo poder. Na esteira das elaborações

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de Henri Lefebvre sobre a cidade, o urbano e a teoria das representações, Odet-te Seabra (2005) entende que “a metamorfose da forma urbana traduz a passa-gem das práticas no espaço para as representações ideológicas das práticas” (p. 177). Dessa maneira, do processo de metropolização “resulta as representações sociais que vagam nas lembranças e na memória histórica, muitas das quais ex-pressas nos monumentos da cidade” (p. 153), monumentos que “permanecem espaços residuais que guardam uma síntese de diversos tempos sociais e re-têm a História inteira com seus impasses e contradições” (p.179). Como Henri Lefebvre ([1970] 1999) salientara, os monumentos são, assim, ao sintetizarem contraditoriamente os diversos tempos sociais, oferecidos à contemplação pas-siva quando perdem seus sentidos anteriores de símbolos determinados:

Contra o monumento. O monumento é essencialmente repressivo. Ele é a sede de uma instituição (a Igreja, o Estado, a Universidade). Se ele orga-niza em torno de si um espaço, é para colonizá-lo e oprimi-lo. Os grandes monumentos foram erguidos à gloria dos conquistadores, dos poderosos. [...]. Construíram-se palácios e túmulos. A infelicidade da arquitetura é que ela quis erguer monumentos, ao passo que o “habitar” foi ora con-cebido à imagem dos monumentos, ora negligenciado. A extensão do es-paço monumental é formal. E se o monumento sempre esteve repleto de símbolos, ele os oferece à consciência social e à contemplação (passiva) no momento em que esses símbolos, já em desuso, perdem seu sentido (p.29).

De modo preciso, aponta Odette Seabra:

Em perspectiva [...] a síntese é fazer do que resta, da cidade histórica, um campo de investimentos rentáveis, re-valorizando produtos e obras. Mas a sociedade de mercado generalizado não cessa de introduzir novas necessidades; é por isso que, no âmbito da indústria cultural e do turismo, fragmentos do processo de urbanização são estrategicamente produzidos para realizarem-se como memória, no processo já identificado como de museificação daquilo que restou da cidade histórica. [...] É nesse sentido que o processo de metropolização tem um elo com a institucionalização da memória. E que a história da cidade, e dos seus bairros, é valorizada na atualidade (SEABRA, 2001: p.76-80).

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No início de 2010, portanto, começou a efetivar-se a transferência das sedes das Secretarias e da Chefia do Executivo dos prédios da Praça da Liberda-de e de alguns outros edifícios na área central de Belo Horizonte para o “Cen-tro Administrativo Tancredo Neves”, faraonicamente construído no extremo Norte do Município. Nem por isso a metropolização de Belo Horizonte e a transferência de sede administrativa do Governo estadual significaram exata-mente a descentralização do poder estatal (da Praça da Liberdade) no espaço da metrópole, mas sua reposição justamente ao fragmentar-se: o Estado viabiliza para a reprodução do capital a “cidade re-planejada”, com seus pressupostos e estratégias, sem deixar a reboque sua antiga sede.16 Nesse sentido, apesar (ou justamente por isso) das alterações em seus usos, os prédios do entorno e a própria Praça da Liberdade se mantêm como espaços para o exercício do po-der, “(...) onde a História não é apenas um discurso sobre o passado, mas se torna presente pela força da significação que construiu (...)” (ALBANO et al., 1985: p.5). Propala-se, dessa maneira, uma “cidade de cultura” em meio à me-trópole de Belo Horizonte, a qual nos está afirmada peremptoriamente com o CCPL. David Harvey ([1989] 1994) explicita alguns dos objetivos visados pelo movimento urbanístico que seria observável no CCPL:

Ao que parecem, as cidades e lugares hoje tomam muito mais cuidado para criar uma imagem positiva e de alta qualidade de si mesmos, e têm procurado uma arquitetura e formas de projeto urbano que atendam a essa necessidade. [...]. Dar determinada imagem à cidade através da or-ganização de espaços urbanos espetaculares se tornou um meio de atrair capital e pessoas (do tipo certo) num período (que começou em 1973) de competição interurbana e de empreendimentismo urbano intensificados (....). A projeção de uma imagem definida de lugar abençoada por certas qualidades, a organização do espetáculo e a teatralidade foram consegui-das com uma mistura eclética de estilos, com a citação histórica, com a ornamentação e com a diversificação de superfícies (...) (p. 91-92).

O CCPL prestar-se-ia resolutamente, ainda que nos faltem maiores in-vestigações, à “competição entre cidades” por investimentos, ao gerenciamen-to de marcas e aos privilégios dos que buscam impor uma cultura das coisas (sobre a reificação da cultura cf. A indústria cultural: o esclarecimento como

16 “A administração pública, agora, programando as parcerias público-privado corre atrás do prejuízo através dessa fórmula em si bizarra. Nestes termos é que são programadas as intervenções no espaço urbano. Mas disto resultará, na melhor das hipóteses, um espaço concebido, ou seja, um urbano artefato” (SEABRA, 2005: p.153).

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mistificação das massas. In: ADORNO & HORKHEIMER, [1947] 1985; DE-BORD, [1967] 1997; JAMESON, 2001). Afinal,

(...) vão as grandes corporações multinacionais tratando de nos persuadir que os verdadeiros protagonistas da cena mundial são – quem diria... – as cidades, ou melhor, cidades cuja configuração seja propícia à valoriza-ção patrimonial que mais interessa a tais firmas no presente estágio de transnacionalização produtiva. Rentabilidade e patrimônio arquitetônico--cultural se dão as mãos, nesse processo de revalorização urbana – sempre, evidentemente, em nome de um alegado civismo (como contestar?...). E para entrar nesse universo dos negócios, a senha mais prestigiosa é a cul-tura. Essa a nova grife do mundo fashion, da sociedade afluente de altos serviços a que todos aspiram (ARANTES, 2002: p.69; grifos do autor).

Constituído de museus, teatros e outros “equipamentos culturais” ca-pitaneados por grandes empresas que estampam suas marcas e o caráter afir-mativo de uma cultura das coisas acabadas - estranha ao que se cultiva coti-dianamente, pois o tempo da vida está abstraído pelo trabalho; cultura inerte de antiguidades e de tecnologias, que só pode ser relacionada com o mundo da mercadoria, com a troca e o fetichismo -, o CCPL insere-se, desse modo, no âmago da reprodução das relações de produção do capital, no cotidiano de consumo dirigido, no “tempo livre” de recuperação subordinado ao trabalho, e na representação ideológica da cidade:

Essa re-produção das relações de produção não coincide mais com a reprodução dos meios de produção; ela se efetua através da cotidianida-de, através dos lazeres e da cultura, através da escola e da universidade, através das extensões e proliferações da cidade antiga, ou seja, através do espaço inteiro (LEFEBVRE, [1972] 2008: p. 47-8).

Com o empreendedorismo das cidades (eufemisticamente chamado “re-vitalização urbana”), estas são colocadas à venda17. A intervenção do Estado no espaço torna-se necessária ao capital para o fim de produzir e viabilizar novos espaços para se tentar sua reprodução18, propalando-se um consumo

17 Assim, os “espaços públicos” viabilizados para e em parte pela iniciativa privada com o ordenamento estatista - na re-funcionalização de antigas áreas da metrópole através de projetos de patrimonialização e consumo turístico e cultural - envolve-se no sonho tecnocrático da cidade-empresa.

18 Como representação do público, o Estado é fundamental para a reprodução do capital, uma vez que

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cotidiano da “cultura” e ratificando-se uma representação ideológica da cidade “ressuscitada”. A justificativa dada à ação do Estado em “parceria” com a ini-ciativa privada envolve, entre outras coisas, o discurso de que se iria aproximar a população dos prédios reabilitados, tornando-os de fato públicos e acessíveis. Dessa maneira, acompanhando a política urbanística do cultural turn emergente nas últimas décadas, cujos mecanismos estão destinados a “inventar” um pa-trimônio, o monumento histórico passa por um processo de valorização que o transforma em produto econômico. E, assim, “(...) a cultura não é o outro ou mesmo a contrapartida, o instrumento neutro de práticas mercadológicas, mas é parte decisiva do mundo dos negócios e o é como grande negócio” (ARAN-TES, 2002: p. 48).

Enquanto dinâmica do poder, a representação da cidade e o sistema simbólico de sua nominação se exercem, por extensão, dissimulando o curso da modernização, afinando-se aos exercícios da abstração-real da reprodução do capital. O patrimonialismo toma o espaço como objeto morto, que já conteve trabalho e deve ser preservado. A museificação exponencial dos prédios do en-torno da Praça da Liberdade (enquanto prédios e como museus, na reutilização das suas dependências) não deixa de ser efeito estandartizado dessas tendências intervencionistas em que a cultura se torna mercadoria símbolo, sem a qual não se poderiam reproduzir todas as outras (DEBORD, [1967] 1997), e diante da qual o que podemos fazer é apenas consumir.

Para David Harvey ([1989] 1994), com a intensificação da incidência dos domínios da economia política no cotidiano, desde a ascensão do denomina-do capitalismo tardio (a partir da década de 1970), observa-se a tendência de crescimento do setor de entretenimento, em que se reproduzem desejos e ne-cessidades fortuitas, de distração, para se tentar manter mercados de consumo e a demanda capazes de lucratividade para os capitais. O esteticismo e a finan-ceirização do capital aliam-se, doravante, aos circuitos comerciais de visitação e compra, à citação superficial da história e da cidade, e a um cientificismo tomado abstratamente na apologética tecnológica. Dessa maneira, ao mesmo tempo que busca garantir a reprodução do capital na sociedade urbana, reu-nindo os fragmentos homogeneizados e hierarquizados através da dominação política do espaço e do cotidiano, o Estado impossibilita a realização do urbano como obra a ser apropriada (LEFEBVRE, [1968] 1991b). Para servirem funda-mentalmente aos desígnios da reprodução do capital, a Praça da Liberdade e a cidade historicamente herdada estão, portanto, reduzidas nas possibilidades de

corrobora e viabiliza o consumo dirigido na vida cotidiana por meio da burocratização e colonização que o mundo das mercadorias acarreta às mais recônditas instâncias do vivido.

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apropriação radical pelas pessoas, de se produzirem para o novo e de se criarem nelas ou a partir delas experiências radicalmente transformadoras.

Foto 3. Vista frontal da antiga Secretaria de Defesa Social em reforma para transformar-se no

Centro Cultural Banco do Brasil, com as seguintes frases estampadas: “O melhor da cultura de

presente para você”; “Faz diferença ter um banco todo seu.” Pedro Resende. Agosto de 2010.

CONSIDERAÇõES FINAIS

Os “equipamentos culturais”, que aparecem contemporaneamente como simples soluções de aproveitamento do que sobrou de edifícios potencialmente ociosos na cidade que se tonou metrópole, apresentam-se altamente aprovei-táveis como instrumentos não apenas ideológicos, mas também estratégicos, que incidem na materialidade das relações sociais. Com o CCPL a Praça da Liberdade tem assumido uma especialização na metrópole de Belo Horizonte: ao ser reelaborado, ideológica e materialmente, o logradouro ratifica-se como símbolo do poder numa cidade monumental em meio à metrópole, marcada agora pela cultura das mercadorias, que tenta conciliar um passado coisificado com um “moderno” ainda aspirado, na depravação concreta e abstracionista de possíveis experiências urbanas. Em tempos de produção enxuta e acumulação flexível do capital, o setor de serviços, os complexos de lazer e entretenimento, o turismo, a cultura midiatizada, estandartizada, em suma a reprodução das relações sociais de produção tende a constituir-se com prerrogativas do res-guardo das dissimulações das contradições e conflitos observados histórica e espacialmente.

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Os lugares de lazeres, assim como as cidades novas, são dissociados da produção, a ponto dos espaços de lazeres parecerem independentes do trabalho e “livres”. Mas eles encontram-se ligados aos setores do trabalho no consumo organizado, no consumo dominado. Esses espaços separa-dos da produção, como se fosse possível aí ignorar o trabalho produtivo, são os lugares de recuperação. Tais lugares, aos quais se procura dar um ar de liberdade e de festa, que se povoa de signos que não têm a produ-ção e o trabalho por significados, encontram-se precisamente ligados ao trabalho produtivo. É um típico exemplo de espaço ao mesmo tempo deslocado e unificado. São precisamente lugares nos quais se reproduzem as relações de produção, o que não exclui, mas inclui, a reprodução pura e simples da força de trabalho. [...] [Nisto consiste o] espaço, de um lado desarticulado e separado, e de outro, organizado e re-unido pelo poder (LEFEBVRE, [1972] 2008: p. 49-50).

Enquanto lugares de lazeres, os novos museus, paradoxalmente novos e museus, que tentam restituir “identidades”, forjar “diversidades”, tornam--se fetiches da “criação humana” com seus objetos estranhados pelas pessoas, mesmo se “adorados”, na medida em que elas não se reconhecem na produção deles e a eles apenas têm acesso na contemplação passiva e espetacularizada do consumo. A busca do passado se faz, assim, de maneira efêmera, coisificada, ou mesmo morta, encontrando-o apenas na ordem do tempo passageiro, fugaz, de uma sociedade que perde raízes e se aliena de sua produção: a modernização fetichiza a História, o Estado, o conhecimento, a arte, a cultura e a cidade, ao passo que os museus os resguardariam para serem vistos à distância, apesar de concebidos (abstratamente) como se estivessem sendo democratizados. De acordo com Nietzsche ([1874] 2003), a sobrevivência tornada impotente, mes-quinha, impede-nos de descobrir a História a tal ponto que permitimos “os mortos enterrarem os vivos” (p.24).

Percebemos, sem muito esforço, que o tolhimento a outros usos - di-ferentes daqueles já pré-definidos - da Praça da Liberdade torna-se flagrante. Embora não seja o caso de eludirmos os diversos protestos e enfretamentos pontuais, passados e presentes (de categorias profissionais em greve; de ocu-pantes de terrenos urbanos contra o Governo estadual; etc.), que tiveram ou têm justificadamente a Praça da Liberdade como “palco”, os quais, entretanto, demandariam outro texto para serem analisados, não deveríamos desalentar--nos com a constatação de uma apatia comprometida diante do processo de

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museificação mercantil e espetacular da Praça. Tal apatia se flagra em torno de certo consenso quanto às re-funcionalizações dos prédios, geralmente toma-das como inevitáveis e louváveis. Pelo contrário, é também por essa condição quase não criticada prática e teoricamente que se exige uma crítica imanente e negativa do real, em vistas dos possíveis (por ora impossibilitados) de uma vida radicalmente diferente.

Podemos dizer ainda que, constituídas como fundamentos da reprodu-ção social moderna, as próprias mediações da reprodução do capital estabele-cem as contradições distendidas entre forças produtivas e relações sociais de produção, contradições que precisariam ser levadas às últimas consequências a fim de se estabelecer outro modo de produção. Fundado na criação de obras concretas, presentificáveis, em que se dê outra finalidade à vida social que não seja a abstração-real das formas do capital (assim como as estratégias estatistas e os cientificismos acabrunhantes, sendo inseparáveis os três elementos), outro modo de produção que superasse o capital levar-nos-ia, possivelmente, à apro-priação da cidade, no encontro e qualificação das diferenças, transformando a vida urbana em obra criadora. Não existe nenhuma emancipação, portan-to, sem subverter nossa vida cotidiana danificada (ADORNO, [1945] 2008). Democratizar a cultura no sentido propalado no CCPL não quer dizer que a produção da cultura se torna democrática, mas sim que o acesso a ela se torna um negócio (uma negação do ócio, da vida ativa), que o lazer na metrópole tornou-se um mercado.

Em uma sociedade marcada pela generalização do dinheiro e da troca de mercadorias, a cultura, quando forçada a entrar no âmbito do cotidiano, passa a reunir – ao lado da publicidade como linguagem especifica do mundo da mercadoria – os requisitos para atrair uma clientela entusiasmada em ver o que se tornou banal: arte, cultura e conhecimento na cidade monumentalizada em meio à metrópole. Desprovidos de experiências radicalmente transformadoras, voltemo-nos criticamente para a modernização, entendendo-a como proces-so de reprodução social em si mesmo crítico. Deve-se atentar, por fim, em que circular enquanto consumidor no âmbito cultural da cidade do espetáculo contrapõe-se ao movimento que faz com que a arte e a cultura circulem em cada um, que sejam cultivadas e não coisificadas enquanto especificidades para a reprodução do capital na modernização contemporânea. Ou ainda, como en-sejaram os Situacionistas, trata-se de fazer uma crítica negativa que vislumbre a utopia concretizável da “abolição da arte” enquanto esfera relativamente sepa-rada da vida e como alíbi estético na contemplação passiva, através de uma vida cotidiana revolucionada em arte de viver (VANEIGEM, [1967] 2002).

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ÍNDIOS E FRONTEIRAS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA No CoNTEXTo do ProJETo CaLHa NorTE

BORDERS AND INDIANS AT BRAZILIAN AMAZON IN THE CoNTEXT oF THE CaLHa NorTE ProJECT

INdIoS Y FroNTEraS EN La aMaZoNIa braSILEÑa EN EL CoNTEXTo dEL ProYECTo

CaLHa NorTE

BEATRIZ MARIA SOARES PONTESDepartamento de Geografia da

Universidade Federal do Rio Grande do [email protected]

Resumo: O Projeto Calha Norte foi gestado, com o objetivo de defender uma fronteira

de 6.500 quilômetros de extensão por 150 quilômetros de largura, envolvendo as áreas

setentrionais do país limítrofes à Colômbia, à Venezuela e às Guianas. De acordo com

este Projeto, compreendiam os militares que para assegurar a segurança nacional, naquelas

paragens, seria imprescindível a intensificação das atividades econômicas, bem como a

presença da população naquelas áreas. Todavia, as regiões limítrofes, àquela altura, eram

habitadas, de maneira significativa, por diferentes povos indígenas. Estava, por conseguinte,

estabelecido um dilema, sob a ótica militar: como promover a dinâmica socioeconômica dos

confins setentrionais do Brasil ocupados relevantemente por povos indígenas? A tendência

das Forças Armadas, através do Conselho de Segurança Nacional, foi a de reduzir os

territórios históricos dos aludidos povos indígenas, liberando terras a eles pertencentes para

novas atividades econômicas dentro de uma perspectiva econômica capitalista. Estabeleceu-

se, então, o conflito entre índios, militares e religiosos (sobretudo a Igreja católica) em

relação à dinâmica socioeconômica da fronteira setentrional brasileira. A Igreja católica, de

um lado, defendendo os direitos dos povos indígenas, quanto ao seu território histórico e,

de outro lado, as Forças Armadas, lutando pela redução daquelas terras e seu consequente

aproveitamento econômico no contexto capitalista contemporâneo.

Palavras chave: Geopolítica militar; Terras indígenas; Projeto Calha Norte.

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.180-207 Jan-Jun 2011

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Abstract: In this reference picture, it was, therefore, created the Projeto Calha Norte,

with the objective of defending a border of 6.500 kilometers long by 150 kilometers wide,

involving the northern areas of the country, bordering Colombia, Venezuela, Guyana and

the French Guiana. According to this Project, the military understood that to assure the

national security, in those parts, it would be indispensable the intensification of the economic

activities, as well as the presence of the population in those areas. However, the bordering

regions, at that time, were inhabited, in a significant way, by different indigenous people. It

was, consequently, established a dilemma, under the military viewpoint: how to promote

the socioeconomic dynamics of the northern boundaries of Brazil, occupied relevantly by

indigenous people? The tendency of the Armed Forces, through National Security Council,

was to reduce the historic territories of the mentioned indigenous people, liberating lands

that belonged to them for new economic activities under a capitalist economic perspective. It

was, then, established the conflict among Indians, military and religious persons (above all the

Catholic Church) concerning the socioeconomic dynamics of the Brazilian northern border.

The Catholic Church, on a side, defending the rights of the indigenous people, regarding

their historic territory and, on the other side, the Armed Forces, struggling for the reduction

of those lands and their consequent economic use in the contemporary capitalist context.

Keywords: Military Geopolitics; Indigenous Lands; Calha Norte Project.

Resumen: El Proyecto Calha Norte ha sido gestado, con el objetivo de defender una

frontera de 6.500 kilómetros de extensión y 150 kilómetros de anchura, envolviendo las áreas

septentrionales del país limítrofes con Colombia, con Venezuela y con Guyana. De acuerdo

con este Proyecto, los militares comprendían que para garantizar la seguridad nacional, en

aquellos parajes, sería imprescindible la intensificación de las actividades económicas, además

de la presencia de población en estas áreas. Sin embargo, las regiones limítrofes, en aquél

momento, estaban ya habitadas, de manera significativa, por diferentes pueblos indígenas.

Por consiguiente, se ha establecido un dilema, bajo la perspectiva militar: ¿cómo promover la

dinámica socioeconómica de los confines septentrionales de Brasil relevantemente ocupados

por pueblos indígenas? La propensión de las Fuerzas Armadas, a través del Consejo de

Seguridad Nacional, ha sido reducir los territorios históricos de los aludidos pueblos

indígenas, liberando tierras pertenecientes a ellos para nuevas actividades económicas en una

perspectiva económica capitalista. Se estableció, entonces, el conflicto entre indios, militares

y religiosos (sobre todo la Iglesia Católica) en relación a la dinámica socioeconómica de

la frontera norte brasileña. La Iglesia Católica, a un lado, defendiendo los derechos de los

pueblos indígenas, en lo que se refiere a su territorio histórico y, al otro lado, las Fuerzas

Armadas, luchando por la reducción de aquellas tierras y su consecuente aprovechamiento

económico en el contexto capitalista contemporáneo.

Palabras clave: Geopolítica militar; Tierras indígenas; Proyecto Calha Norte.

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TERRITÓRIO E SUSTENTABILIDADE

O surgimento e a evolução do pensamento ambiental estão, diretamen-te, ligados ao desenvolvimento das ciências, ocorrido ao longo da história da civilização, assim como as degradações e alterações ambientais processadas no planeta Terra, surgindo em países diferentes e em épocas diferentes. Foram se formando e sendo construídos, à medida que as várias correntes do pensamen-to científico iam surgindo e amadurecendo, juntamente, com o aparecimento de problemas ambientais que envolviam a opinião pública.

Assim, a relação sociedade-natureza se constitui de uma relação de trocas simbólicas e materiais. Se até o presente tem consistido numa relação utilitarista e de apropriação da natureza, há muitos grupos sociais, incluindo aqueles com poder econômico, que além da dominação da natureza, preconizam sua apro-priação como estoque de recursos, de energia ou de informações (genéticas, por exemplo), a serviço do crescimento econômico.

Em Giddens (1997), a relação entre o mundo social moderno e a natu-reza tem imbricações fortes no capitalismo e no desenvolvimento da ciência e da tecnologia, âncoras do capitalismo e do industrialismo. As mudanças, desde o nível mais íntimo, ao mais público, retratam quebras e rupturas com modos e estilos de vida que pareciam imutáveis.

Beck (1997) instituiu o termo sociedade de risco para definir a atual socie-dade marcada pelo conhecimento científico e tecnológico. Ressalta, ainda, que as questões ecológicas marcam outros problemas com que defronta-se a atua-lidade. Este autor fala da segunda modernidade, ou seja, de uma modernidade que deve responder aos desafios construídos pela primeira modernidade, quais sejam: globalização, individualização, revolução de gêneros, subempregos e ris-cos globais, a que ele denomina de “modernidade reflexiva”.

Satisfazer as necessidades e aspirações humanas é o principal objetivo do desenvolvimento. Nos países em desenvolvimento, as necessidades básicas de grande número de pessoas – alimento, roupas, habitação e emprego – não estão sendo atendidas. Além dessas necessidades básicas, as pessoas, também, aspiram, legitimamente, a uma melhor qualidade de vida. Num mundo onde a pobreza e a injustiça são endêmicas, sempre poderão ocorrer crises ecológicas e de outros tipos. Para que haja um desenvolvimento que atente à interface natureza-sociedade, é preciso que todos tenham atendidas suas necessidades básicas e lhes sejam proporcionadas oportunidades de concretizar suas aspira-ções a uma vida melhor.

Padrões de vida que estejam além do mínimo básico, só são sustentáveis

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se os padrões gerais de consumo, tiverem por objetivo, alcançar o desenvolvi-mento que contemple a interface natureza-sociedade, a longo prazo. Mesmo assim, vive-se acima dos meios ecológicos do mundo, como demonstra, por exemplo, o uso da energia. As necessidades são determinadas social e cultural-mente e a interface natureza-sociedade requer promoção de valores que man-tenham os padrões de consumo dentro do limite das possibilidades ecológicas.

A satisfação das necessidades essenciais depende, em parte, de que se consiga o crescente potencial econômico em regiões, onde tais necessidades não estejam sendo atendidas. Assim, onde já são atendidas, elas são compatíveis com o crescimento econômico, desde que esse crescimento reflita os princípios amplos da sustentabilidade e da não-exploração dos outros. Mas, o simples crescimento não basta. Uma grande atividade produtiva pode coexistir com a pobreza disseminada e isto constitui um risco para o meio ambiente. Por isso, um desenvolvimento que contemple a interface natureza-sociedade exige que as sociedades atendam às necessidades humanas, tanto aumentando o potencial de produção, quanto assegurando a todos as mesmas oportunidades. O mito do crescimento econômico ilimitado tem evidenciado a dramática deterioração humana e ambiental.

Portanto, se a população aumentar, pode haver maior pressão sobre os recursos e o padrão de vida se elevará mais devagar nas áreas onde existe priva-ção. A questão não é, apenas, o tamanho da população, mas também a distribui-ção dos recursos. Assim sendo, um desenvolvimento que contemple a interface natureza-sociedade só pode ser buscado se a evolução demográfica se harmo-nizar com o potencial produtivo do ecossistema, aliás, em constante mudança.

A monocultura, o desvio de cursos d’água, a extração mineral, a emissão de calor e de gases nocivos na atmosfera, as florestas comerciais e a manipu-lação genética, todos estes são exemplos da intervenção humana nos sistemas naturais, durante o processo de crescimento. Até há pouco tempo, tais inter-venções eram em pequena escala e tinham impacto limitado. Hoje, seu impacto é mais drástico, sua escala maior e, por isso, elas ameaçam mais os sistemas naturais que sustentam a vida, tanto em nível local, como global. No mínimo, um desenvolvimento que contemple a interface natureza-sociedade não deve por em risco os sistemas naturais que sustentam a vida na Terra: a atmosfera, a água, os solos e os seres vivos.

O crescimento não estabelece um limite preciso a partir do qual o tama-nho da população ou o uso dos recursos possam levar a uma catástrofe ecoló-gica. Os limites diferem para o uso de energia, de matérias-primas, de água e de terra. Muitos deles se imporão por si mesmos, mediante a elevação de custos

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e diminuição de retornos e não mediante uma perda súbita de alguma base de recursos. O conhecimento acumulado e o desenvolvimento tecnológico podem aumentar a capacidade de produção da base de recursos, todavia, há limites e extremos e para sustentabilidade é preciso que bem antes desses limites serem atingidos, o mundo garanta acesso equitativo ao recurso ameaçado e reoriente os esforços tecnológicos, no sentido de aliviar a pressão.

Obviamente, o crescimento e o desenvolvimento econômicos, produ-zem mudanças no ecossistema. Nenhum ecossistema, seja onde for, pode ficar intacto. Uma floresta pode ser desmatada e isto pode ser mau, mas se a explo-ração tiver sido planejada e se for levado em conta os níveis de erosão do solo, os regimes hídricos e as perdas genéticas, a situação poderá ser atenuada. Em geral, não é preciso esgotar os recursos renováveis, como florestas e peixes, desde que sejam usados dentro dos limites de regeneração e crescimento natu-ral, masa maioria dos recursos renováveis é parte de um ecossistema complexo e interligado e, uma vez levado em conta os efeitos da exploração sobre todo o sistema, é preciso definir a produtividade máxima sustentável.

No tocante a recursos não renováveis, como minerais e combustíveis fósseis, o uso reduz a quantidade de que disporão as futuras gerações. Isso não quer dizer que esses recursos não devam ser usados, mas os níveis de usos devem levar em conta a disponibilidade dos recursos, de tecnologias que mini-mizem seu esgotamento e a probabilidade de se obterem substitutos para eles.

Portanto, a Terra não deve ser deteriorada além de um limite razoável de recuperação. No caso dos minerais e dos combustíveis fósseis é preciso dosar o índice de esgotamento e a ênfase na reciclagem e no uso econômico, para garantir que o recurso não se esgote antes de haver bons substitutos para eles. Um desenvolvimento que contemple a interface natureza-sociedade exige que o índice de destruição dos recursos não renováveis mantenha o máximo de opções futuras possíveis.

Os chamados bens livres, como o ar e a água são, também, recursos. As matérias-primas e a energia usadas nos processos de produção só em par-te se convertem em produtos úteis, pois, o resto se transforma em rejeitos. Para haver um desenvolvimento que contemple a interface natureza-sociedade é preciso minimizar os impactos adversos sobre a qualidade do ar, da água e de outros elementos naturais, a fim de manter a integridade global do ecossistema (PONTES, 2010).

O maior desafio de nossa civilização urbano-industrial é o de como transformar uma estratégia de crescimento econômico direcionada contra a maioria da população, em um modelo de sustentabilidade baseado no bem-

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-estar humano (RATNER, 2009).Em essência, um desenvolvimento que contemple a interface natureza-

-sociedade é um processo de transformação, no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizem e reforcem o potencial presente e futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas.

Portanto, a questão da sustentabilidade, no contexto natureza-sociedade, será de grande importância para o entendimento dos problemas das terras e dos povos indígenas do nosso país, pois, não se trata, apenas, dos impactos ambientais identificados na Amazônia brasileira, sob as novas formas de ocu-pação econômica da área em tela, mas da emergência das demarcações das ter-ras indígenas e dos impactos territoriais daí decorrentes, no curso dos últimos decênios.

O IMPACTO DO AVANÇO DA FRONTEIRA ECONÔMICA

Expressiva parcela da população indígena, cerca de 65%, localiza-se na bacia amazônica. É nessa região, também, onde se encontram os últimos gru-pos isolados e grupos com contato reduzido com a economia nacional.

Por essa razão, vale apontar as linhas gerais que orientaram o desenvol-vimento da Amazônia a partir da Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de um desenvolvimento de início pouco significativo, mas que progressivamente teve forte influência sobre o mundo indígena.

Em 1943 foi criada a Fundação Brasil Central, que trabalhava associada à Força Aérea Brasileira (FAB) e ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Em pou-cos anos foi construída uma rede de campos de pouso e de estradas, facilitando a penetração na bacia amazônica.

No final da década de 1950 terminou a construção de Brasília, tendo início as obras da rodovia Belém-Brasília, estimulando o processo migratório para o Brasil Central. Com o golpe militar de 1964, ocorreu uma nova etapa econômica: cresceram as atividades de prospecção de minérios na bacia amazô-nica, criaram-se incentivos creditícios e fiscais para estimular projetos pecuários e agroindustriais na região.

Em 1966, o governo anunciou a Operação Amazonas, um programa des-tinado a desenvolver os setores de transporte, energia, comunicação e recursos naturais. O objetivo de ocupar e explorar a área completou-se com o lança-mento, em 1970, do Plano de Integração Nacional (PIN) e nos anos seguintes foram feitos investimentos maciços para a construção de estradas, colonização,

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TERRITÓRIOS INDÍGENAS

Em outubro de 1990, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) apresen-tou ao Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) (DECRETO nº 99.405/1990)

exploração mineral e construção de hidrelétricas, deixando como saldo a cres-cente intensificação do desflorestamento.

Naturalmente, os grupos indígenas da região foram afetados, sem que fosse posto em prática um plano de defesa de suas terras ou de assistência básica econômica e médica. A política indigenista, sob a administração de Ban-deira de Melo, objetivou, no mesmo período, acelerar a integração dos índios à economia de mercado e impedir que eles se tornassem obstáculo à ocupação da Amazônia.

Essa pressão sobre os índios aumentou, consideravelmente, a partir da implantação de grandes projetos, sem a contrapartida de medidas preventivas compatíveis (CNUMAD, 1991).

o ProJETo CaLHa NorTE E aS TErraS INdÍGENaS

A estratégia mais recente de liberação de terras indígenas no norte e oes-te amazônico para exploração econômica foi o modelo proposto pelo Projeto Calha Norte, lançado em 1985 e o Programa para o Desenvolvimento da Faixa de Fronteira da Amazônia Ocidental. No pressuposto de que a questão indí-gena interferiria na integração e soberania nacionais, passou-se a atuar direta e sigilosamente na definição e redução das terras indígenas da faixa de fronteira.

O território Yanomami, por exemplo, foi recortado em 19 “ilhas” (POR-TARIA INTERMINISTERIAL nº 250, de 13/11/1988) e reduzido a 25% da área efetivamente ocupada econômica e historicamente pelos Yanomami, in-viabilizando a sobrevivência desse povo. Em função desta política, o território tradicional dos índios Tucanos de Pari Cachoeira (Alto Rio Negro) foi recorta-do em três “colônias indígenas”, o que representou uma perda de seus direitos históricos sobre 58% de suas terras.

Reduções similares atingiram, ainda, outras áreas indígenas do Alto Rio Negro, Amapá, sul do Amazonas e Acre.

Em 1987, o território Yanomami começou a ser invadido e dois anos de-pois estimava-se a presença de 45 mil garimpeiros na área. Por força da violên-cia, desnutrição, malária, tuberculose e outras doenças infecciosas, pelo menos 1.500 Yanomamis morreram desde então.

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a seguinte situação das terras indígenas: 279 áreas demarcadas (35.982.553ha) e 265 áreas a demarcar (46.517.447ha).

Um ponto vital para assegurar proteção ao patrimônio indígena e permi-tir o desenvolvimento sustentável das comunidades seria a defesa da integrida-de territorial. As providências não se resumiram, entretanto, à simples designa-ção de um trato de terra aos índios, pois, o conceito de território é bem mais amplo, dado que a terra, além de prover a sustentação física da comunidade é, também, base de sua existência espiritual. Englobava, assim, além dos espaços destinados ao uso econômico (áreas de caça, pesca, coleta, reserva de matérias--primas, plantios, etc.), espaços que possibilitassem o funcionamento dos cir-cuitos sociais básicos (troca intra e intergrupal, circuitos de troca matrimonial) na forma de caminhos que interligavam as diversas unidades sociais, garantindo a dinâmica da sociabilidade e, finalmente, os espaços onde se projetavam os di-ferentes tipos de representação simbólica (cemitérios e aldeias antigas), inclusi-ve os locais de sacralidade muito densa e, por isso mesmo, mantidos à distância das aldeias (sítios sagrados, como grutas, cavernas, águas, etc.). Esse conjunto se constituiu em referência fundamental à integração e à identidade do grupo, compondo um todo articulado, que seria o território indígena.

Território, cujos limites só poderiam ser corretamente estabelecidos com a participação da própria comunidade. Uma vez feita a identificação e a delimi-tação da área, seguia-se uma importante providência que era a sua demarcação e posterior homologação por ato do Presidente da República (ART. 19, § 1º, LEI nº 6.001, 19/12/1973), incluindo os respectivos registros imobiliários. Na-turalmente, a proteção das terras indígenas, assim regularizadas, retirados os invasores, exigia fiscalização e vigilância constante para impedir novas invasões por madeireiras, agropecuárias, garimpos, mineradoras e outros, completando--se a integridade territorial através do equilíbrio ecológico da região, com o in-tuito de diminuir os impactos ambientais, como aqueles causados pelas grandes obras que acompanhavam a expansão da fronteira econômica. Não se tratava, apenas, de vigilância de limites, mas da atuação direta dos índios na elaboração de projetos de desenvolvimento, uma vez que não bastaria incorporá-los aos grupos de trabalho, cujo desempenho costumava chocar-se com os interes-ses tribais básicos. Seria preciso que a equipe responsável pelo planejamento e alocação de recursos para a execução de tais programas contasse com o acom-panhamento da representação indígena, antropólogos, especialistas em direito indígena e outros profissionais. Devia-se, ainda, garantir o acesso das entidades não governamentais de apoio ao índio à toda informação sobre projetos que ti-vessem impacto sobre as comunidades. A reversão do processo de degradação

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ambiental somente poderia ser alcançada se os povos indígenas fossem convi-dados a participar, como iguais, de um diálogo sobre como fomentar modelos de desenvolvimento sustentáveis (CNUMAD, 1991).

a QuESTão ParI CaCHoEIra No CoNTEXTo do ProJETo CaLHa NorTE

Desde 1986 o Conselho de Segurança Nacional (CSN) escolheu a região de Pari Cachoeira, no Alto Rio Negro, habitat imemorial dos índios das famí-lias linguísticas Tukano e Maku, como campo de experimentação da política indigenista de assimilação econômica e de redução territorial do projeto de ocupação econômica e militar da fronteira norte-amazônica, chamado Projeto Calha Norte (PCN). Vários fatores poderiam justificar a eleição desta região como laboratório do PCN: a mobilização ativa desde 1971, dos líderes Tukano, para obter o reconhecimento legal de seu território; sua vontade, frequente-mente, reafirmada, de estabelecer um diálogo direto com o governo e participar de todas as decisões que pudessem afetar seu destino e, enfim, seu desejo de independência econômica.

UMA ANTIGA REIVINDICAÇÃO INDÍGENA: A DEMARCAÇÃO DE SEU TERRITÓRIO TRADICIONAL

A luta das famílias linguísticas Tukano e Arawak do Noroeste Amazôni-co para o reconhecimento legal de seu território tradicional era antiga e, a este respeito, os grupos Tukano de Pari Cachoeira poderiam ser considerados como pioneiros.

Desde 1971 eles vinham endereçando ao Presidente da FUNAI car-tas e mapas reivindicando a demarcação de seu território na forma de uma reserva indígena única, mas foi somente em 1979 que um grupo de trabalho da FUNAI emitiu uma primeira proposta de delimitação. Todavia, no lugar da criação de uma reserva indígena contínua para a região do Alto Rio Negro toda, a FUNAI, retomando a divisão paroquial instaurada pelos missionários salesianos, declarou de “ocupação indígena” três terras indígenas contíguas: Pari Cachoeira (1.020.000 ha), Iauareté (990.000 ha) e Içana-Aiari (896.000 ha) (PORTARIAS FUNAI 546/N, 547/N e 548/N).

Outras propostas de delimitação das terras indígenas da região, baseadas em estudos antropológicos e históricos, foram emitidas pela FUNAI durante os anos seguintes, sem continuidade.

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Aproveitando-se dessa indefinição jurídica do estatuto das terras indí-genas do Alto Rio Negro, numerosos garimpeiros, sabendo da existência de jazidas de ouro na região de Pari Cachoeira (Serra do Traíra), começaram a in-vadir a região, com golpes cada vez mais violentos, a partir de 1984. Em junho de 1985 um novo “grupo de trabalho” da FUNAI (PORTARIA nº 1892/E de 19/06), destinado a resolver o problema da exploração ilícita de ouro das terras indígenas, propôs a inclusão das jazidas da Serra do Traíra – região reconhecida pela FUNAI como território dos índios Maku, com quem os Tukano tradicio-nalmente mantinham relações econômicas estreitas – na reserva indígena de Pari Cachoeira, cuja superfície seria então de 1.418.000 ha.

Em agosto de 1985, a penetração da região pela Paranapanema e a Gold Amazon, duas empresas mineradoras detentoras de alvarás de pesquisa mine-ral na Serra do Traíra, concedidos pelo Departamento Nacional de Pesquisas Minerais (DNPM), provocou uma intensificação dos conflitos que resultou na morte, no final de 1985, de vários índios e garimpeiros. Uma comissão de es-tudos interministeriais foi, então, ao local para avaliar a gravidade dos conflitos e revisar os limites Sul e Oeste do projeto de área indígena Pari Cachoeira. Uma nova proposta de delimitação desta terra indígena, com uma superfície de 2.069.000 ha, foi elaborada e a Serra do Traíra, reconhecida de novo como território tradicional dos Maku, incluída dentro do seu perímetro (PORTARIA da FUNAI Nº 2.003 de 17 de janeiro de 1986 e nº 2.018 de 04 de março de 1986). A Paranapanema, cuja presença ilegal no território indígena foi denun-ciada pelo Superintendente da FUNAI de Manaus (A CRÍTICA, 06/01/1986), prosseguiu, todavia, seus trabalhos de pesquisa mineral, fortalecida na sua posi-ção pelos militares do PCN para os quais a sua potência econômica, aliada a sua milícia privada, lhe conferia uma posição estratégica nesta região de fronteira, podendo dissuadir as invasões de garimpeiros ou de guerrilheiros do M-19 co-lombiano, cujas incursões esporádicas, nesta região, eram uma das justificativas para a implantação do PCN.

O projeto de delimitação das terras de 1986 tornou-se letra morta, como os precedentes, apesar das promessas do Superintendente regional da FUNAI. No dia 4 de abril de 1986, o Presidente da FUNAI, Apoena Meirelles, anunciou à Associação da União da Comunidade Indígena do Rio Tiquié (UCIRT) que a decisão final sobre a proposta de delimitação da região estava fora do seu controle. No dia 11 de abril, numa outra reunião com os líderes indígenas, ele imputava a demora no processo de regularização fundiária de Pari Cachoeira às disposições particulares do CSN em relação à demarcação dos territórios indí-genas localizados em áreas de fronteira. Esta era a primeira vez que os índios

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Tukano escutavam falar do CSN e sua ingerência na questão da regularização fundiária dos territórios indígenas foi interpretada como um artifício a mais para estorvar o reconhecimento dos seus direitos territoriais históricos. Os líde-res da UCIRT conseguiram marcar uma reunião em Brasília, no dia 4 de junho de 1986, com o Gal. Bayma Denys, secretário geral do CSN, o Ministro do Interior, Ronaldo Costa Couto, seu assessor para os assuntos indígenas, Gerson Alves da Silva e o novo Presidente da FUNAI, Romero Jucá Filho, quando, então, reapresentaram sua mais antiga reivindicação: a demarcação da região do Alto Rio Negro como reserva indígena contínua.

O general rechaçou logo a proposta indígena por tratar-se de uma região localizada na faixa dos 150 km ao longo da fronteira, considerada como “área de segurança nacional”, argumentando que a reserva indígena não permitia a entrada de brancos e que o “estado de aculturação” dos índios da região, tam-bém, não justificava uma tal medida. Ele, então, propôs aos índios a criação de colônias agrícolas indígenas, nas quais cada família adquiriria um lote com seu título de propriedade. O relatório da UCIRT, redigido pouco depois da reunião, testemunhou as pressões exercidas sobre os índios nessa ocasião, assim como a submissão ideológica da FUNAI à lógica do CSN:

[...] Os representantes indígenas posicionaram-se em favor da terra coletiva, isto é, a demarcação de terra indígena contínua. Foi nesse momento que o general ficou muito furioso e disse que o Presidente Sarney não assinaria os decretos das reservas indígenas [...]; que o governo não pode demarcar terra na faixa de fronteira só para uma etnia indígena [...]; que a faixa de fronteira pertencia a todos os brasileiros, isto é, para todas as raças defende-rem a nação. No momento tenso o Dr. Gerson Alves da Silva encontrou no Estatuto do Índio uma razão para falar sobre a Colônia Agrícola Indígena. E, diante desse argumento, o General viu a saída para solucionar o nosso problema, isto é, que teríamos que aceitar a Colônia Agrícola Indígena ou senão nós perderíamos todos os direitos sobre a terra; prosseguiu que os índios Tukano já eram aculturados demais, que nós andávamos bem traja-dos [...] e, por isso, não poderíamos viver num jardim zoológico ou numa reserva indígena. Para o nosso desgosto o Presidente da FUNAI disse que não tínhamos nenhum amparo legal para defender a reserva indígena por-que todos os trabalhos feitos (até aquele momento) não valiam nada em relação a faixa de fronteira e/ou área de segurança nacional, e sim, que teríamos que aceitar a colonização indígena (RELATÓRIO DA ASSEM-BLEIA, PARI CACHOEIRA, 9 de junho de 1986).

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A proposta do CSN foi avaliada em Pari Cachoeira, nos dias 8 e 9 de junho de 1986, numa reunião extraordinária convocada pela UCIRT. A Assem-bleia indígena, contrária à divisão do território tradicional com os brancos (as colônias agrícolas indígenas eram destinadas à exploração agropecuária por ín-dios “aculturados” e brancos) e temendo que a divisão das terras indígenas em lotes individuais provocasse conflitos internos, recusou de maneira formal, o modelo de regularização fundiária proposto pelo CSN. Essa decisão foi comu-nicada numa carta, datada de 20 de junho do mesmo ano, dos líderes da UCIRT ao Superintendente regional da FUNAI, para o qual, mais uma vez, solicitaram a delimitação de suas terras na forma de uma reserva indígena. Propunham, também, nesta carta, novos limites para o sudoeste de seu território, abdicando, de fato, em favor da Paranapanema, da maior parte da região das jazidas de ouro da Serra do Traíra, área reconhecida pela FUNAI em 1985 e 1986 como de “ocupação indígena”.

Esse novo projeto de delimitação, cobrindo uma área de 1.152.000 ha (inferior de quase um milhão de ha em relação ao último projeto da FUNAI) resultou de um “acordo de honra” firmado entre a UCIRT e a Paranapanema, na presença das autoridades federais (notadamente do CSN) e estaduais, no dia 16 de agosto de 1986. Entretanto, esse último projeto de delimitação, apresen-tado pela UCIRT, serviria de base à divisão dessa região em colônias indígenas e Florestas Nacionais, finalmente, imposta no âmbito do PCN.

O CSN, utilizando-se do desejo de autodeterminação, testemunhado em várias ocasiões pelos líderes indígenas, endossou seu projeto de delimitação territorial na medida em que ele correspondia a suas diretrizes em matéria de redução das terras indígenas localizadas em áreas de fronteira, sem consultar os índios Maku que acabaram pagando com suas terras o acordo firmado entre a UCIRT e a Paranapanema e, também, sem que o procedimento legal de regu-larização das terras indígenas fosse respeitado (DECRETOS nº 88.118/1983 e 94.945/1987 emitidos sob a iniciativa do CSN). Essa decisão infringiu, tam-bém, as disposições da Constituição Brasileira (Artigos 4, parágrafo 4 e 198) e do Estatuto do Índio (Art. 22), segundo os quais as terras indígenas são “bens inalienáveis da União”, não podendo, dessa forma, ser o objeto de transações entre índios e terceiros estranhos ao grupo indígena.

As negociações entre os líderes da UCIRT e o General Bayma Denys sobre as colônias agrícolas indígenas e suas implicações econômicas, transcor-reram durante os anos de 1986 e 1987. Os índios, irredutíveis na questão da divisão das suas terras com os brancos, sempre se mostraram, todavia, dispos-tos a dialogar com o governo para negociar com ele as formas possíveis de

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desenvolvimento para a região.

oS ÍNdIoS do aLTo rIo NEGro E o ProJETo CaLHa NORTE

A rejeição Tukano das colônias agrícolas indígenas foi comprovada pela II Assembleia das Organizações Indígenas do Rio Negro, que se reuniu em São Gabriel da Cachoeira de 28 a 30 de abril de 1987. Essa reunião, que juntou representantes indígenas de treze etnias da região, tinha sido convocada pelos líderes da UCIRT para, em primeiro lugar, discutir de “igual para igual” os pro-blemas da região (PCN; papel das Forças Armadas; estatuto jurídico das terras indígenas; prospecção mineral) com os representantes das autoridades fede-rais (notadamente, o CSN) e das empresas mineradoras e, em segundo lugar, tentar chegar a uma posição comum entre as etnias da região. A Assembleia, qualificada pelos próprios índios de “histórica”, demonstrou, todavia, as sérias divergências de opinião sobre a questão do PCN entre os diferentes líderes indígenas.

A maioria dos líderes mostrava-se contrária à sua implantação, conside-rando que os supostos benefícios em termos de educação, saúde, transporte e desenvolvimento econômico – que a FUNAI e o CSN sempre alegavam para obter seu acordo – ficariam, como de costume, letra morta. Temiam, ainda, a não demarcação das terras, assim como a militarização massiva da região. A instalação do PCN no Alto Rio Negro (a partir dos meados de 1986), que consistiu, essencialmente, num reforço da infraestrutura das Forças Armadas (construções destinadas aos Pelotões especiais de fronteira), tinha sido perce-bida como uma invasão, além de ter já produzido efeitos inquietantes como, por exemplo, o deslocamento forçado de dez famílias Tukano de Iauareté para viabilizar a extensão de uma pista de pouso e a instalação dos acampa-mentos militares (A CRÍTICA, 15/01/1987; JORNAL DO COMMERCIO, 16/01/1987). Frente a esses primeiros indícios que prenunciavam o pior e que sugeriam dúvidas quanto aos objetivos sociais do PCN, os índios do Alto Rio Negro testemunharam, em várias ocasiões, os seus anseios quanto ao futuro do seu território: “a terra onde nascemos é ainda nossa terra ou a do Exército?” (A CRÍTICA, 01/05/1987).

Ao mesmo tempo em que salientavam a posição contraditória dos índios opostos ao PCN e procuravam aliviar suas apreensões, os líderes da UCIRT, principais organizadores da Assembleia, tentavam fazer o plenário aceitar a implantação do PCN na região. Cientes da irreversibilidade da presença militar

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no Alto Rio Negro, desde os meados de 1986, da ausência de alternativas para os problemas da região naquela conjuntura política e, enfim, do caráter suicida de toda solução de força contra o Exército, os organizadores da Assembleia conduziram as discussões com o governo e com os militares, objetivando o reconhecimento de seus direitos territoriais e, paralelamente, as formas de apli-cação do PCN na região, de modo a assegurar alguns benefícios. Para os líderes da UCIRT, o PCN representava, antes de tudo, o primeiro sinal de interesse do governo federal para o extremo Noroeste Amazônico, colocando um fim ao isolamento e à falta de assistência aos índios da região, desfavorecidos pelo seu afastamento em relação a outros povos indígenas que ocupavam regiões mais próximas à Brasília e da administração central da FUNAI.

Todavia, apesar dessas divergências sobre a avaliação dos benefícios so-ciais potenciais do PCN, os cerca de 300 líderes indígenas presentes na Assem-bleia concordaram, mais uma vez, em reivindicar a demarcação urgente das suas terras como área indígena, único modelo fundiário capaz, na visão deles, não somente de garantir a integridade de seu território e o usufruto exclusivo dos seus recursos naturais, mas também de reafirmar sua vontade de autodeter-minação política e seu desejo de conservar a sua identidade indígena.

Frente ao impasse criado pela recusa indígena de dividir colônias agrí-colas indígenas com brancos, o CSN – que fazia da aceitação indígena desse modelo fundiário o pré-requisito à demarcação de seu território – acabou por recuar e propor uma solução intermediária: a demarcação na forma de colô-nias indígenas, figura inventada pela circunstância e “legalizada” em setembro de 1987. Essas colônias indígenas – derivadas das colônias agrícolas indígenas previstas pelo Estatuto do Índio – seriam assim “a melhor solução” para que o governo federal pudesse, através da ação coordenada de vários órgãos públicos, trazer aos índios uma assistência técnica e econômica apropriada à sua situação de “índios aculturados” e, ao mesmo tempo, garantindo-lhes a demarcação de um território próprio. Foi-lhes explicado, também, que programas de desenvol-vimento comunitário seriam efetivados nessas colônias indígenas, as quais não seriam destinadas à introdução de colonos brancos, pois, os índios seriam os próprios colonos. Enfim, essas colônias indígenas deveriam ser envolvidas por Florestas Nacionais, nas quais as comunidades indígenas poderiam explorar os recursos naturais, mas que poderiam, também, ser explorados por terceiros com sua autorização.

Os líderes da UCIRT acabaram por aceitar essa proposição que, apesar do fracionamento do seu território, lhes garantia, depois de 18 anos, uma pers-pectiva de regularização fundiária, ao mesmo tempo, que prometia-lhes trazer

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condições de um desenvolvimento econômico autônomo. Com efeito, fora do benefício dos projetos de assistência e desenvolvimento comunitário, que deve-riam ser realizados nas colônias indígenas que pertenciam a eles próprios, eles pensavam, também, obter o controle da exploração econômica, por terceiros, das Florestas Nacionais.

o “PLaNo dE ação” ParI CaCHoEIra do PCN: TErraS INDÍGENAS E SERVIÇOS SOCIAIS

Pouco depois da aceitação do princípio das colônias indígenas pelos líde-res da UCIRT, um grupo de estudos criado sob a iniciativa do CSN realizou, de 20 de julho a 21 de agosto de 1987, um levantamento de dados socioeconômi-cos nas comunidades indígenas de Pari Cachoeira. Foram localizadas 74 aldeias na bacia do Rio Tiquié, tendo sido, ali, recenseadas 3.059 pessoas (incluindo índios de várias etnias de língua Tukano e Maku). Porém, os membros do gru-po de estudos assinalaram no seu relatório que não puderam realizar o levan-tamento junto a várias comunidades Maku, ausentes dos seus acampamentos (são índios nômades), ou daqueles que, ainda, estavam isolados de todo contato com a sociedade nacional. Um levantamento foi, também, realizado na região das jazidas de ouro da Serra do Traíra, onde várias famílias das comunidades Tukano e Maku do Tiquié se instalaram.

O relatório conclusivo do levantamento estabeleceu uma classificação dos graus de contato das comunidades indígenas da região de Pari Cachoeira baseada no continuum isolado: em contato intermitente e em contato perma-nente e integrado, baseada na obra do antropólogo Darcy Ribeiro. Os diferen-tes grupos Tukano foram classificados em contato permanente com a socieda-de nacional, sob o pretexto de serem capazes de expressarem-se em português. Essa comunidade nacional, a que se referia o relatório, se resumia, de fato, a dois missionários e cinco irmãs da missão salesiana sediada na aldeia de Pari Cachoeira e a alguns regatões que subiam o curso do Tiquié para comercializar com os índios. Os Maku, que ocupavam vários sítios na bacia do Tiquié, foram considerados em contato intermitente, além de alguns grupos autônomos clas-sificados como isolados.

Esse relatório foi entregue aos representantes dos diversos Ministérios, implicando na implantação do PCN durante uma reunião em Brasília. Em se-tembro de 1987, o Ministro do Interior solicitou à Presidência da República (EM Nº 058 de 28/09) a criação de um “Grupo de Trabalho Interministerial” (GTI), com o fim de elaborar, com vistas ao levantamento realizado em Pari

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Cachoeira, um plano de ação, visando coordenar as medidas governamentais a serem tomadas nesta região. Os membros desse GTI realizaram um levanta-mento entre as comunidades indígenas de Pari Cachoeira de 9 a 12 de novem-bro de 1987. Informações dos índios deram conta, na realidade, que os mem-bros do GTI estiveram nas aldeias somente um dia, os três outros foram gastos, provavelmente, na viagem até a região de Pari Cachoeira. O relatório redigido depois dessa “missão relâmpago” (PCN – sub-projeto de Pari Cachoeira – Pla-no de Ação Preliminar – PAP) tinha dois objetivos principais: 1) apresentar uma nova sistemática de demarcação dos territórios indígenas localizados na faixa da fronteira e 2) propor as ações assistenciais que deveriam ser tomadas pelo governo federal e o governo do Amazonas, através de suas administrações respectivas, nas terras indígenas caracterizadas como colônias indígenas.

A nova sistemática de demarcação em tela consistia numa proposta de criação de três colônias indígenas (Pari Cachoeira I, II e III), incluindo a quase totalidade das comunidades indígenas da região e de duas Florestas Nacionais que as envolviam parcial ou totalmente (caso Pari Cachoeira III).

As duas primeiras colônias indígenas, que englobavam as comunidades ribeirinhas da bacia do Rio Tiquié, eram voltadas para a realização de projetos agropecuários. A terceira era destinada às atividades de garimpagem, posto que ela recobria as jazidas de ouro da Serra do Traíra (resultado do acordo firmado entre a UCIRT e a Paranapanema). As duas Florestas Nacionais (de 18.000 e 654.000 ha), caracterizadas como áreas de preservação da identidade cul-tural das populações indígenas das colônias, seriam eventualmente destinadas à exploração econômica (mineral e de madeira), mediante a autorização das comunidades indígenas e o estabelecimento de contratos de exploração entre as empresas interessadas, a FUNAI, a UCIRT e o CSN, quando se tratasse de uma área de segurança nacional. O Plano de Ação Preliminar (PAP) propunha, igualmente, a criação de um Fundo Pari Cachoeira, alimentado pelos royalties oriundos desses contratos de exploração. Por fim, ele assegurava à população indígena de Pari Cachoeira a exclusividade da atividade de garimpagem de seu território.

A parte assistencial do PAP – saúde, educação e desenvolvimento co-munitário – supunha a ação articulada de vários ministérios e se dirigia às três colônias indígenas.

As ações preconizadas no plano sanitário e educativo consistiam, essen-cialmente, na otimização e extensão da estrutura sanitária e educacional mon-tada na região de Pari Cachoeira pelos missionários salesianos a partir de sua instalação (1945). O PAP recomendava, assim, às administrações governamen-

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tais afins, que fizessem o máximo para que a missão pudesse ampliar, reformar e equipar (em material e em recursos humanos) seu hospital, seu internato e suas escolas de ensino fundamental. Desde a saída da região, do antigo SPI, em 1952, até a reabertura, em 1972, de alguns postos da FUNAI, foi a Congrega-ção Salesiana encarregada pelo Papa Pio X, da catequese no Alto Rio Negro, que manteve a única infraestrutura permanente na região. Isto lhe permitiu ampliar suas atividades além da esfera religiosa e de passar a controlar, pouco a pouco, todo o sistema educativo, médico-sanitário e econômico da região.

A estratégia implícita do PAP era, de fato, de absorver na infraestrutura do PCN, as instalações e instituições educativas e sanitárias que permitissem aos salesianos estender e consolidar seu controle sobre a região. Os primeiros indícios dessa tentativa de absorção se manifestaram indiretamente no afasta-mento da missão salesiana, tanto do levantamento socioeconômico, como do planejamento das medidas de assistência e de desenvolvimento comunitário no quadro da implantação do PCN, no Alto Rio Negro. Tratava-se de um descui-do sintomático quando se relembrava o quanto a Igreja católica fez campanha contra o PCN (O LIBERAL, 19/02/1987; ACRÍTICA, 24/03/1987). Esse descuido ganhou todo seu sentido como parte da estratégia forjada pelo CSN para neutralizar os salesianos, que consistia em se utilizar da infraestrutura da missão, financiando a expansão desta base material e, através disso, não so-mente associá-la diante dos índios dos fins do PCN, como também minar sua influência solapando as bases de seu controle ideológico sobre a região, aliás, um controle precisamente adquirido e consolidado através da assistência sani-tária e da educação acumulativa oferecida aos índios. Essa atitude dos militares em relação aos salesianos era nova, pois, historicamente sempre lhes deram seu apoio, atribuindo mesmo um papel-chave ao “binômio Exército – missões religiosas”, na integração do Alto Rio Negro.

Essa mudança completa da atitude dos militares podia, possivelmente, ser atribuída à participação crescente no quadro institucional das missões sa-lesianas, de missionários que seguiam a linha de ação do Conselho Indigenis-ta Missionário (CIMI), órgão oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), há anos envolvido na defesa dos direitos indígenas, chegando mesmo a constituir a ponta de lança da oposição da Igreja ao PCN.

O PAP recomendava, também, para a FUNAI cuidar da formação do pessoal médico e paramédico da região, manter um “navio-hospital” para assis-tir às comunidades ribeirinhas, implantar um programa de vacinação e de con-trole médico-odontológico, estabelecer um posto de saúde em Pari Cachoeira III, etc. No campo da educação, o PAP preconizava que o ensino ministrado

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nas escolas salesianas, até aquele momento, totalmente voltado para a assimi-lação dos valores ocidentais, fosse melhor adaptado à realidade sociocultural da região, de forma a preservar e fortalecer a identidade cultural dos índios, assim como possibilitar-lhes uma interação simétrica com a comunidade nacio-nal. Esta reforma implicava na introdução de um novo material didático, assim como novos calendários e currículos. Essas recomendações, que pareciam, à primeira vista, ir no sentido louvável de proteção da identidade indígena, eram totalmente incompatíveis com os objetivos integracionistas do PCN e figura-vam no PAP somente a fim de servir de meio para solapar a influência ideológi-ca da missão sobre os índios, assim como seu controle sobre a região. A missão deveria, também, segundo o PAP, ser incitada pelos órgãos da administração federal a fortalecer a estrutura escolar de Pari Cachoeira através da implantação de um colégio, do desenvolvimento e diferenciação do ensino técnico, tradi-cionalmente ministrado aos índios, da implantação de uma escola de ensino fundamental em Pari Cachoeira III, etc.

No setor comercial, o abastecimento em gêneros alimentícios e produtos manufaturados era, até então, assegurado por uma pequena loja da missão, a qual atendia precariamente às necessidades dos índios, obrigando-os a recorrer aos regatões. Para remediar essa situação, o PAP recomendava aos órgãos fede-rais, incluindo a FUNAI, que estes ajudassem a UCIRT a estabelecer um centro de abastecimento das comunidades das três colônias indígenas e promovessem projetos de desenvolvimento econômico (agricultura, piscicultura, pecuária, avicultura, etc.). No que dizia respeito ao desenvolvimento econômico, o PAP estipulava que as iniciativas a serem tomadas na região deveriam ser encami-nhadas no sentido de autodesenvolvimento da população economicamente ati-va das três colônias, de forma a evitar o estabelecimento de uma relação que condicionasse os índios à dependência do poder público, presente naquelas colônias. Considerando que a garimpagem era a atividade dominante da popu-lação indígena da região, o PAP recomendava à FUNAI, à Caixa Econômica Federal (CEF) e à Polícia Federal (PF), que fossem criadas as condições ideais para que a UCIRT pudesse comercializar as riquezas extraídas de seu território.

No dia 30 de novembro de 1987, o Presidente da FUNAI solicitou aos membros do GTI, encarregado de apreciar as propostas de delimitação de ter-ras indígenas emitidas pela FUNAI, de examinar com urgência a proposta da Terra Indígena Pari Cachoeira (elaborada segundo os termos do PAP), tendo em vista o forte impulso ocupacional a ser desencadeado pelo PCN nas zonas fronteiriças da Amazônia. Um parecer positivo foi então emitido pelos mem-bros do GTI (PARECER Nº 177/1987) e no dia 26 de janeiro de 1988 uma

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Portaria Interministerial Nº 012 declarava de posse permanente dos índios das famílias linguísticas Tukano e Maku, a Terra Indígena Pari Cachoeira, subdivi-dida em três colônias indígenas e duas Florestas Nacionais.

ParI CaCHoEIra: dEMarCação ou EXProPrIação “LEGALIZADA”?

Antes de se examinar as consequências da criação das colônias indíge-nas e das Florestas Nacionais, assim como dos desenvolvimentos ulteriores do PCN na região, parece ser importante sublinhar, aqui, as irregularidades come-tidas durante o processo de regularização fundiária de Pari Cachoeira. Essas irregularidades foram denunciadas em várias ocasiões pelos antropólogos da FUNAI, alguns dos quais foram demitidos ou transferidos por essa razão.

Em primeiro lugar, todo o processo de delimitação das terras de Pari Cachoeira foi iniciado antes da promulgação do Decreto Presidencial nº 94.946 que criou as colônias indígenas, assim como dos critérios de avaliação do grau de aculturação dos grupos indígenas, permitindo a caracterização de seu ter-ritório como Colônia Indígena (PORTARIA FUNAI Nº 1.098). Esses dois dispositivos jurídicos ad hoc, indispensáveis e elaborados, especialmente, para a realização da política de redução territorial e de aculturação econômica, pre-conizada pelo CSN, somente foram emitidos, respectivamente, em setembro de 1987 e setembro de 1988, ou seja, para o último, cerca de oito meses depois da assinatura da portaria de delimitação de Pari Cachoeira. O CSN queria, com efeito, apressar o processo de demarcação dessa região segundo o modelo que ele acabava de definir antes da promulgação da nova Constituição Brasileira, cujas posições antiassimilacionistas e favoráveis a um reconhecimento amplo dos direitos territoriais indígenas invalidariam seu projeto. O CSN outorgou a si mesmo, em total ilegalidade, o direito de catalogar os índios da família lin-guística Tukano como “índios aculturados”, a fim de conduzir seu projeto de redução das terras desses índios, transformando-as em colônias indígenas.

Além disso, para dar uma justificativa “antropológica” às suas decisões, o CSN não hesitou em adulterar os dados do levantamento socioeconômico re-alizado na região a seu pedido, de modo a fazê-los corresponder às finalidades de sua política de assimilação, como o denunciou o antropólogo da FUNAI, Moreira Corrêa, numa informação endereçada ao Superintendente regional da FUNAI, em 11 de dezembro de 1987:

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Quando o Major Silveira Brandão, membro do Grupo de execução retor-nou a Manaus [...] ele me entregou outra cópia do relatório já contendo os anexos dizendo-me que haviam sido feitas alterações no item Grau de Aculturação (item 3. a 2.), ressaltando que não era nada de importante. Verificando tais alterações, constatei a retirada da última frase de cada sub-item do mesmo, correspondendo à parte do texto reproduzido da obra de Darcy Ribeiro [...]. Em seu lugar foi inserida outra frase corre-lacionando o grau de aculturação com as comunidades levantadas, de forma generalizada.

Fiquei apreensivo, pois já tendo discutido a questão havíamos resolvido não fazer tal correção, já que a “Ficha de Dados” continha, em separado, as considerações necessárias sobre o assunto. Estranhei o fato na cópia a mim entregue que as páginas que sofreram alteração mantinham, como no original, as assinaturas dos membros do grupo de execução (INF. Nº 005/DPI/5ª SUER/87, de 9 de dezembro de 1987, p. 5-6).

Esse antropólogo questionava, também, no mesmo documento, o fracio-namento interno das terras de Pari Cachoeira na base que esta região constituía o habitat de treze grupos étnicos (das famílias linguísticas Tukano e Maku) com níveis de contato variáveis: de certos grupos Maku, isolados a grupos Tukano, convertidos pelos missionários salesianos, expressando-se perfeitamente em português. Nos termos dos instrumentos jurídicos impostos pelo CSN, fica-va impossível implantar colônias indígenas nesta região porque estas somente poderiam ser criadas para “índios aculturados ou em adiantado processo de aculturação” (DECRETO 94.946/87, Art. 1, Parágrafo 2), enquanto que Pari Cachoeira reagrupava índios de vários graus de contato.

Assim, através de uma série de irregularidades e apesar da oposição de antropólogos da própria FUNAI, a demarcação das colônias indígenas de Pari Cachoeira foi consumada em janeiro de 1988.

A Portaria Interministerial, de janeiro de 1988, reconhecia de posse per-manente dos índios das famílias linguísticas Tukano e Maku, a Terra Indígena Pari Cachoeira, de uma superfície de 1.152.000 ha (ou seja, 56% da última pro-posta da FUNAI), subdividida em três colônias indígenas e duas Florestas Na-cionais. As Florestas Nacionais eram, segundo o Artigo 5º, do Código Florestal (LEI 6.771 de 15/09/1965), áreas destinadas à exploração mineral, de acordo com um projeto de regulamentação das Florestas Nacionais do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Esta proposta de regulamen-

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tação acontecia num momento em que os autores do PCN não hesitaram mais em reconhecer a estreita ligação existente entre esse projeto e as riquezas mi-nerais dos territórios indígenas localizados na faixa de fronteira. Estudos sobre os interesses minerais na Amazônia brasileira revelaram que a quase totalidade das terras de Pari Cachoeira era coberta por 14 alvarás e 126 requerimentos de prospecção mineral, da parte de várias empresas. Ficou claro, neste contexto, que a escolha pelo CSN das Florestas Nacionais, como forma de regulariza-ção fundiária da maior parte do território indígena de Pari Cachoeira, não era inocente em si e que, longe de atender à necessidade de proteção dos direitos territoriais dos índios, concorria para a liberação “legal” de suas terras e de seus recursos para projetos de exploração de empresas mineradoras e madeireiras. O tratamento dispensado pelo CSN às outras reservas indígenas do Alto Rio Negro confirmou a análise até aqui realizada. Nos dias 6 e 7 de março de 1989, cinco Portarias Interministeriais (Nº 25 a 29) prosseguiram e terminaram o processo de desmembramento dos territórios indígenas da região, a partir da política fundiária do PCN para os índios do Norte Amazônico. Essas novas portarias delimitaram, assim, na região do Alto Rio Negro, duas Áreas Indíge-nas (destinadas aos índios “não aculturados”), nove colônias indígenas e nove Florestas Nacionais (Tabelas 1 e 2).

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A redução do território dos índios das famílias linguísticas Tukano, Ara-wak e Maku, na região do Alto Rio Negro, empreendida no âmbito do PCN, se efetivou em duas etapas: em primeiro lugar, na maioria dos casos, reduzindo a superfície das áreas anteriormente identificadas pela FUNAI e, em segundo lugar, para todas as áreas, subtraindo ao usufruto exclusivo dos índios, imensas regiões decretadas Florestas Nacionais.

A superfície total dos territórios indígenas do Alto Rio Negro foi, assim, globalmente diminuída pelo PCN de 14% em relação às últimas propostas da FUNAI. Veja-se, agora, a segunda fase de expropriação dessas terras, conduzi-das a partir das superfícies tomadas como base pelo PCN.

Nenhuma referência mais foi feita nestas novas Portarias, como constava naquela de Pari Cachoeira, quanto ao reconhecimento da ocupação indígena sobre as totalidades territoriais que englobavam, em cada caso, áreas indígenas, colônias indígenas e Florestas Nacionais. Os índios tinham, em termos de uso exclusivo, um direito que se restringia somente sobre a superfície das áreas ou colônias indígenas, ou seja, somente sobre 2.143.300 ha (37% dos projetos de reservas indígenas propostos antes do PCN). Como os Yanomami, eles dis-punham agora somente de um direito de uso preferencial sobre os recursos naturais das Florestas Nacionais abertas à exploração econômica branca que, segundo o texto das Portarias, foram criadas pelo governo com o propósito de se estabelecer um espaço físico adicional, capaz de amortecer o choque oriundo das diferenças culturais existentes na região entre os indígenas e a so-ciedade regional envolvente. Esta pseudofinalidade de espaço-tampão das Flo-restas Nacionais nem mesmo é mencionada no Plano do Sistema de Unidades de Conservação do Brasil (IIª etapa – IBDF, 1982), que valorizava mais sua vocação econômica e a necessidade de sua gestão equilibrada, a fim de assegu-rar a perenidade de sua exploração. A suposta preocupação governamental de

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A COMPENSAÇÃO SOCIOECONÔMICA DO PROJETO CaLHa NorTE: aSSISTêNCIa EM TroCa dE PErdaS TERRITORIAIS INDÍGENAS?

Ficou faltando analisar o valor da “compensação” socioeconômica pro-metida aos índios da região de Pari Cachoeira pela expropriação de mais da metade de seu território tradicional. Essa “compensação” constituiu o segundo ato de negociação entre os líderes da UCIRT e o CSN, através do Plano de Ação Preliminar (PAP) para Pari Cachoeira. Apesar da dificuldade de se avaliar, de modo detalhado, as realizações indigenistas do PCN na região – fechada há três anos aos pesquisadores – várias informações, oriundas de um relatório da UCIRT e de artigos da imprensa, permitiram, todavia, retraçar suas grandes linhas.

Sabe-se, por exemplo, que a UCIRT (documento de 24/11/1988) solici-tou uma ajuda financeira junto ao governo federal para a realização de vários projetos econômicos: construção e equipamento de uma serraria, abertura de uma roça comunitária, equipamento dos centros de produção artesanal, pecu-ária, etc. Além disso, o presidente dessa organização indígena convidou, em

amortecer o choque do contato dos índios com a sociedade nacional não foi nada mais que um pretexto utilizado pelo CSN para mascarar as verdadeiras finalidades da transformação da maior parte dos territórios indígenas da região, em Florestas Nacionais.

A proposta do CSN de criar tais Unidades de Conservação contraditou, de diferentes maneiras, o procedimento legal estabelecido pela regulamentação do IBDF das Florestas Nacionais, cujo Artigo 5º estipulava que a criação, pelo Poder Público, dessas unidades, deveria ser precedida por estudos ecológicos, pelo estabelecimento de um plano de zoneamento e de um programa de gestão. Nesse sentido, as Florestas Nacionais, criadas por instigação do CSN, não pa-reciam destinadas a um uso ecologicamente racional dos seus recursos naturais. Os índios dificilmente teriam um controle da exploração econômica, realizada por terceiros, de seus territórios transformados em Florestas Nacionais. Por ou-tro lado e, contrariamente, ao que tinha sido disposto no PAP, sua autorização à exploração econômica por parte de empresas nem era mencionada Temia-se que as empresas mineradoras e madeireiras se aproveitassem do estatuto destas Unidades de Conservação não somente para penetrar nos territórios indígenas, como também para lhes negar qualquer participação nos benefícios obtidos através da exploração econômica dos recursos naturais de seus territórios.

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março de 1989, o Secretário geral do CSN, a visitar Pari Cachoeira para apre-ciar os trabalhos executados no quadro do PCN. Isso permitiu supor que os recursos necessários à realização dos projetos de desenvolvimento, previstos na perspectiva do PAP, fossem efetivamente liberados pelo governo. No campo da educação e da saúde créditos, também, foram desbloqueados, durante os dois primeiros anos de atuação do PCN, para a aquisição de três barcos dotados de um equipamento médico-odontológico, destinado a assistir às populações indí-genas ribeirinhas, a construção de postos de saúde, hospitais, escolas de ensino fundamental, colégios técnicos e internatos em vários pontos da região do Alto Rio Negro e, em particular, em Pari Cachoeira.

Vários indícios, todavia, mostraram que essas medidas, oriundas da su-posta “vocação social” do PCN, serviram somente, na maioria dos casos, para mascarar suas verdadeiras finalidades. Assim, menos de um ano depois de sua inauguração, os três “navios-hospitais”, adquiridos no âmbito do PCN, já esta-vam abandonados no porto de São Gabriel da Cachoeira, dois deles gravemen-te deteriorados. Os postos de saúde, que foram efetivamente construídos, não funcionavam por falta de equipamentos, remédios ou de pessoal qualificado. Por outro lado, informações publicadas na imprensa (JB, 11/12/1988; MAN-CHETE, 28/01/1989) demonstraram que, na estratégia do CSN em relação aos salesianos, o projeto inicial de absorção progressiva da infraestrutura sa-nitária e educativa da missão, via seu financiamento pelo PCN, cedeu lugar a uma tática de sufocamento pura e simples. Assim, a missão, que não mais recebia subvenções do Governo Federal, sobrevivia, apenas, com doações de entidades religiosas e humanitárias internacionais, vendo-se na contingência de fechar, pouco a pouco, os hospitais, escolas e internatos. Paralelamente, o PCN construiu, de maneira ostensiva, estabelecimentos concorrentes em fren-te aos dos salesianos. Portanto, os pertencentes aos salesianos caíram em desu-so. Constatava-se, então, que tanto em Pari Cachoeira, como em Iauareté, um hospital do PCN estava sendo construído em frente ao dos missionários. Em Barcelos, a concorrência ocasionada pelo novo hospital do governo levou ao fechamento do hospital da missão. Em São Gabriel da Cachoeira, um internato de 720 lugares, destinado aos alunos do ensino médio, foi instalado, enquanto que o da missão periclitava por falta de recursos financeiros. O PCN, também, construiu 58 escolas do ensino fundamental, que vieram a duplicar as já insta-ladas pela Igreja nos povoados da região. Todas essas iniciativas foram lançadas pelo CSN sob o pretexto de que as instalações missionárias estavam velhas e, sobretudo, da recusa da missão em colaborar com a programação do PCN. Um representante do CSN justificava o total descaso da parte do PCN para o

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trabalho de assistência e das instalações missionárias na região nos seguintes termos: “temos uma carta assinada pelos representantes da Igreja, na qual eles dizem que não estão interessados em colaborar com o Projeto Calha Norte” (JB, 11/12/1988). Ficou evidente que as iniciativas médico-sanitárias e educati-vas do PCN na região do Alto Rio Negro deviam ser encaradas mais como um meio de acabar com o controle total da Igreja sobre a região, do que como um efetivo programa de assistência às populações indígenas.

Os fatos, aqui, evocados demonstraram que a ideia por trás do PCN no Alto Rio Negro não consistia na prestação de serviços sociais, os quais cons-tituíram um dos principais eixos de negociação entre os líderes indígenas e o PCN. Atestou-se que, pelo contrário, sua intenção era a integração forçada dos índios através de uma expropriação da maior parte de seus territórios, mascara-da na criação de pseudo-unidades de preservação ecológica, seu confinamento em terras reduzidas ao mínimo e sua aculturação econômica. Viu-se, também, que para conseguir realizar tal objetivo, ela se acoplou a uma estratégia de re-tomada militar do Alto Rio Negro, visando à eliminação do poder da Igreja católica na região. Essa retomada se efetivou segundo dois movimentos: em primeiro lugar, através da construção ostensiva de estruturas sanitárias e esco-lares que duplicaram e esvaziaram as dos missionários, asfixiadas pela falta de recursos financeiros e, em segundo lugar, através do reforço da infraestrutura militar regional pela instalação em três pontos da região (Iauareté, São Joaquim e Querari) de quartéis destinados aos “pelotões especiais de fronteira”.

Este estudo se esforçou, finalmente, em demonstrar como o CSN soube, habilmente, manipular as reivindicações dos líderes indígenas da UCIRT (de-marcação de suas terras e autonomia econômica) em benefício das finalidades do PCN. Desse “progresso” tão falado que o PCN devia supostamente levar para o Noroeste da Amazônia, ficou claro que os índios se beneficiaram somen-te de migalhas, na forma de alguns projetos de desenvolvimento econômico, ecologicamente, predadores (pecuária, venda de madeira, etc.) e de estruturas de assistência material, tecnicamente inoperantes, destinadas a sedentarizá-los em parcelas mínimas de seus antigos territórios, transformados em colônias indígenas e a subtraí-los da influência política da Igreja. Tudo isso ao preço de uma expropriação territorial sem precedentes.

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CONSIDERAÇõES FINAIS

No dia 20 de novembro de 1989 uma nova Portaria Interministerial (Nº 08/1988) modificou a delimitação da Terra Indígena Pari Cachoeira de janeiro de 1988. Esta Portaria somente reconheceu de posse permanente três áreas indígenas: AI Pari Cachoeira I, II e III, incluídas em duas Florestas Nacionais (Pari Cachoeira I e II). O conceito global de terra indígena desapareceu e as colônias indígenas foram transformadas em áreas indígenas (usualmente desti-nadas aos índios relativamente isolados). No dia 23 de novembro de 1989 três Decretos Presidenciais (nº 98.437, 98.438 e 98.439) homologaram a demarca-ção administrativa das AI Pari Cachoeira I, II e III (respectivamente de 353.027 ha, 155.335 ha e 11.158 ha). Esses três Decretos eram acompanhados de uma Exposição de Motivos (nº 084), que justificava a criação das áreas indígenas (no lugar de colônias indígenas) pelo grau de contato dos índios da região com a sociedade regional e o inverso dos argumentos de 1988. No mesmo dia, o Decreto Presidencial nº 98.440 (acompanhado da Exposição de Motivos nº 085) criava as Florestas Nacionais Pari Cachoeira I e II (respectivamente de 18.000 ha e 654.000 ha), sobre as quais os índios não tinham mais uso exclusivo. No dia 9 de março de 1990, onze Decretos Presidenciais (nº 99.094 a 99.104, publicados no Diário Oficial, em 12/03/1990, homologaram a demarcação administrativa de onze áreas indígenas na região do Alto Rio Negro: como no caso de Pari Cachoeira, as colônias indígenas foram transformadas em áreas indígenas. Por fim, no mesmo dia, nove Decretos Presidenciais (Nº 99.105 a 99.113) criavam as Florestas Nacionais Cubate, Urucu, Xié, Içana-Aiari, Cuiari, Içana, Piraiauara, Taracuá I e Taracuá II. Pode-se interrogar sobre as motiva-ções desta transformação das colônias indígenas em áreas indígenas, uma vez que as colônias tinham se constituído num dos pontos de negociação essenciais entre os líderes Tukano e o General Bayma Denys, quem sempre lhes negou o direito a áreas indígenas, por achá-los “demasiado aculturados”. Seria esse um meio do Estado para se livrar das responsabilidades em matéria de desenvolvi-mento comunitário que estão ligadas à figura da colônia indígena?

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REDES POLÍTICAS TERRITORIAIS EM QUESTÃO: PERSPECTIVAS NOS ATORES E NAS REDES

EM TENSÃO NO ESPAÇO AGRÁRIO DO BAIXO JAGUARIBE CEARENSE

NETWORKS TERRITORIAL POLICIES IN QUESTION: PErSPECTIvES oN THE aCTorS aNd NETWorKS

IN TENSIoN IN aN aGrarIaN LaNdSCaPE oF THE BAIXO JAGUARIBE CEARENSE

REDES POLÍTICAS TERRITORIALES EN CUESTIÓN: LaS PErSPECTIvaS dE LoS aCTorES Y LãS rEdES

DE LA TENSIÓN EN UN PAISAJE AGRARIO DEL BAIXO JAGUARIBE CEARENSE

SAULO BARROS DA COSTASeção Local Recife e Universidade Federal Fluminense

[email protected]

Resumo: Este artigo tem como objetivo contribuir no processo de des-velar as redes políticas territoriais do Baixo Jaguaribe cearense, seus movimen-tos de hegemonia e “contra-hegemonia” pertencentes especificamente ao terri-tório do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi. As redes em questão são geradas por ações dos atores envolvidos, em função dos agenciamentos, culminando em novos (re)ordenamentos da estrutura da política territorial. Neste percurso, temos um arranjo espacial da região em conflitos, resistências e tensões, diante das estruturas territoriais hegemônicas do agronegócio fruticultor. Sendo as-sim, um amplo questionamento se estabelece sobre que tipo de ordenamento territorial é proposto para a região, diante da expansão do agronegócio e confi-namento territorial dos agricultores resistentes.

Palavras-chave: Redes políticas territoriais; hegemonia; resistência; or-denamento territorial; agronegócio

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.208-228 Jan-Jun 2011

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Abstract: This article aims to contribute to the process of uncovering the territorial political networks of the Baixo Jaguaribe cearense, movements of hegemony and “counter-hegemony” that belong specifically to the territory of the Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi. The networks in question are ge-nerated by actions of the actors involved, in terms of funding, culminating in new (re) orders the structure of territorial politics. In this way, we have a spatial arrangement of the region in conflict, and stress resistance in the face of hege-monic territorial structures of agribusiness grower. Thus, a broad questioning settles on what type of land use is proposed for the region due to the expansion of agribusiness and resistant containment of local farmers.

Keywords: Networks territorial policies; hegemony; resistance; spatial planning; agribusiness

Resumen: Este artículo tiene como objetivo contribuir al proceso de descubrimiento de las redes políticas territoriales de Baixo Jaguaribe cearense, los movimientos de la hegemonía y la “contra-hegemonía” que pertenecen es-pecíficamente al territorio el Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi. Las redes en cuestión son generados por las acciones de los actores involucrados, en finan-ciación de los agenciamentos, que culminó en la nuevos (re) ordenamentos de la estructura de la política territorial. De esta manera, tenemos una disposición espacial de la región en conflicto, y la resistencia a la tensión en la cara las es-tructuras territoriales con el conflicto del agroindustria de frutas. Por lo tanto, un cuestionamiento amplio se asienta sobre el tipo de uso del suelo se propone para la región debido a la expansión de la agroindustria y la contención de los agricultores de resistencia local.

Palabras-clave: Redes políticas territoriales; la hegemonía, la resistência; orden territorial; agroindustria

NOTAS INTRODUTÓRIAS

Rede política territorial descreve um conceito metodológico que várias ciências – como a Geografia – têm lançado mão para estudos complexos, dian-te da múltipla variação dos eventos no espaço geográfico. O debate passa por algumas vertentes - como a agrária, a ambiental -, mas em sua abordagem, dedicamos aqui atenção para o político, como elemento problematizador de relações, envolvimentos, interesses e motivações das dinâmicas espaciais.

Autores como Lacoste (1988), Moreira (2008), Morin (1999), Lima (2005, 2010), Silva (2010), Sousa Santos (1987, 2004) e Haesbaert (2004, 2010) contri-

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buem para aprofundar a relevância da produção do conhecimento, dentro da complexidade que a Geografia possui em sua formulação científica. Os “cheios e vazios” que autores como Brunhes de forma clássica nos apresenta, revela alguns patamares da sociedade e de sua espacialidade, com uma “roupagem” - assim podemos dizer - de acontecimentos que são ora dialógicos ora dialéticos. Falamos dos ordenamentos/desordenamentos que possibilitam a dinamicidade da ciência.

Neste caminho de produção de conhecimento, o pensamento complexo se torna referência e ponto de encontro de questionamentos e percepções na Geografia, ou seja, como nas palavras de Lima (2010:202), é a

“(...) busca por conexões, vínculos, diálogos entre idéias, conceitos, sa-beres, conhecimentos. É, à medida em que as redes explicitam-se como a linguagem dos vínculos, das conexões e das ligações, entrevê-se como bastante oportunidade o estreitamento entre as redes e paradigma da complexidade.”

O ponto que queremos ressaltar nessa busca é a valorização de outros elementos desta diversidade, além dos abordados por Lima (2005), Nascimento (2010) e Silva (2010), como o papel que os atores sociais desenvolvem den-tro dessa abordagem teórico metodológica. As conexões e vínculos existen-tes nessas redes políticas são os agenciamentos, a influência dos objetos1 e a contra-hegemonia, estabelecida diante das diversas representações geográficas (LACOSTE, 1988).

Freitas (2010) e Brunhes (1962) adentram na temática complexa ao des-creverem arranjos espaciais que possuem redes internas de sustentação do ter-ritório. O fator que possibilita este formato é a fluidez, tanto de informações, quanto dos elementos essenciais, como interesses políticos, econômicos e so-ciais. Essa fluidez traz o caráter constitutivo do território, tanto para os agen-ciamentos quanto para os novos ordenamentos.

A vivência das redes no semiárido, objeto do nosso estudo, é marcada por uma constante política titulada de melhorias, como forma de fluidez para este território. Mas, segundo Taylor (1994:317), na “política de partido asociada com grupos de interés que apoyam y financian el partido y las políticas aplica-das em favor de dichos grupos” é notória a finalidade da política ali empregada em redes, direcionadas para uma minoria hegemônica, que historicamente se

1 Para este momento teórico conceitual, ver Latour (2007) Reassembling the social: an introduction to Actor--Network-Theory.

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estabeleceu na região e conduz a aplicação de recursos públicos. Neste cenário, a rede possui um caminho, um fluxo determinado e uma concretude espacial na realidade nordestina.

O território, que descreve o espaço das práticas sociais e políticas, se ex-pressa como base de agenciamentos, interesses, conflitos, estratégias e resistên-cias (SILVA e SANTOS, 2011), revelando as ações socioespaciais. Assim, essa trama de qualidades frutifica do entendimento de rede e território, que segundo Haesbaert (2003:20), decorre da

“(...) fluidez crescente nos/dos espaços e à dominância do elemento rede na constituição de territórios, conectando suas parcelas descontínuas, temos o fortalecimento não mais de um mosaico padrão de unidades territoriais em área, vistas muitas vezes de maneira exclusiva entre si e às quais se denominam territórios-zona, mas uma miríade de ‘territórios-rede’, marcada pela descontinuidade e pela fragmentação (articulada) que possibilita a passagem constante de um território a outro, num jogo que se denomi-nará aqui, muito mais do que de desterritorialização ou de declínio dos territórios, da sua ‘explosão’ ou, em termos mais consistentes, de uma ‘multiterritorialidade’” (grifos nosso).

É justamente pela multiplicidade de conexões encontradas no espaço ge-ográfico que o território assume a condição de território-rede (HAESBAERT, op. cit.), definido [tanto a rede, o território, quanto o território-rede] segundo as relações de poder ali existentes. Desta maneira, a configuração e delimitação do território-rede nos permite a explicitação da trama dos atores.

O objetivo deste ensaio é desvelar as redes políticas territoriais do Baixo Jaguaribe, e ainda seus movimentos de hegemonia e contra-hegemonia per-tencentes especificamente ao território do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi - segundo a ação dos atores, seus modos de vida e agenciamentos em questão (SCHMITT, 2001) -, que objetivam novos (re)ordenamentos na estrutura das políticas territoriais. Para isso analisaremos duas redes2 bem marcantes neste espaço: a rede de grandes Empresas do agronegócio fruticultor e a rede da comunidade do Tomé, localizada na Chapada do Apodi, em meio a áreas agri-cultáveis do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi.

2 Cabe comentarmos que a limitação na explicitação destas duas redes se dá pela atualidade do debate e dos efeitos espaciais destas redes.

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Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi (CE) em redes políticas

O Baixo Jaguaribe cearense é campo de grandes investimentos locais, regionais e nacionais com uma grande dinâmica econômica e agrícola. Razões fisiográficas chamam a atenção de diversos segmentos sociais e econômicos para um melhor “aproveitamento” das reservas naturais, ligadas a qualidade do solo e abundância hídrica.

Dentro da realidade e concepção do sertão cearense, as relações entorno da agricultura tiveram grande relevância, segundo dilemas pautados na técnica e re-significação na estrutura social, sinalizando para redes de desenvolvimento, uma vez que

“Associa-se muito mais às relações de produção e de organização do es-paço, em especial às condições sociais e técnicas da estrutura agrária, que se caracterizam, principalmente, por uma estrutura fundiária concentra-da, uma base técnica rudimentar e uma oligarquia agrária resistente às mudanças, determinantes para as relações de trabalho e os regimes de exploração do solo predominantes.” (LIMA, 2001).

A fruticultura, agora baseada em modelos tecnológicos de irrigação, se configura como grande agregador de recursos. Após a implantação do Períme-tro Irrigado por parte do DNOCS na segunda metade do século XX e recente expansão no século XXI, novos territórios repletos da produção frutícola fo-ram criados, atendendo a uma demanda econômica local e global, destoando do tradicionalismo imaginário sobre o sertão nordestino (CATRO, 2001). Den-tre tantos efeitos sobre o território do Baixo Jaguaribe, resultantes de inúmeras fontes e intenções, o Perímetro é inventado e re-inventado a partir de uma maior presença de inovações tecnológicas, produzindo exclusão e desapropria-ção por uma parte e hegemonia, verticalidade, consolidação de alguns atores por outra. A trama política existe entre grandes produtores, pequenos produto-res e poder público configura esta organização do território do Baixo Jaguaribe cearense, a partir da inovação tecnológica.

A modernização da agricultura que alcança o Nordeste brasileiro reflete por um lado um esforço em direção ao “combate à seca e aos seus efeitos” (SILVA, 2006) e em outra abordagem o discurso da convivência com o semi-árido (ANDRADE, 2007). Pós década de 1960, este discurso de modernidade para o Nordeste se transformou em política pública em várias escalas, com ações do Governo Federal – através da SUDENE e DNOCS –, grupo de em-

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presários cearenses e articulações locais (FREITAS, 2010). Como fonte de grande investimento no bojo da modernização, a inova-

ção tecnológica é descrita como a saída para se chegar neste novo patamar, tra-zendo outra racionalidade para o sertanejo e mudanças no padrão tecnológico dos agricultores. Diante de todas as mudanças no semiárido após 1970, tanto de processos sociais quanto ecológicos, chegamos aos efeitos desencadeados por conta do avanço das redes dominantes de áreas mecanizadas e a maior estrutura para a produção de fruticultura.

Diante da nossa passagem histórica descrita, o Baixo Jaguaribe é territó-rio de redes, que modificam suas estratégias a medida que o objetivo maior ne-cessite: uso dos recursos naturais em meio as resistências e reivindicação vinda de comunidades de agricultores e atores engajados na luta pela terra.

Para nosso enveredamento teórico-metodológico, adotamos a definição de Silva e Santos (2011, no prelo) sobre redes políticas territoriais, que diz:

“Rede Política Territorial é uma arena de atores-redes que promovem vínculos e alianças entre si, cujos efeitos de suas ações se verificam no território, requalificando-o a partir de estratégias, interesses, conflitos e resistências que se desvelam no âmbito dos fluxos de comando e decisões entre os atores; nas tramas que envolvem os recursos de poder de que eles dispõem; ou nas resistências sociais que emergem e promovem redes políticas. Na rede todos trocam recursos de poder e projetam impactos socioespaciais e são afetados pelas territorialidades preexistentes”.

Como veremos a seguir, as dinâmicas no espaço agrário cearense des-crevem esta realidade diante de um evento territorial marcante: a construção e difusão de redes políticas territoriais contra hegemônicas frente a expansão do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi no sertão cearense, que produz o que delimitamos também como contensão territorial (HAESBAERT, 2009, 2010).

aTorES HEGEMÔNICoS E TECNoLoGIa: ProCESSo dE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA NO BAIXO JAGUARIBE

A formulação da rede hegemônica em questão é desvelada na presença e nas alianças básicas de três atores3, possuindo a seguinte estrutura: Empresas

3 A realidade e complexidade do Baixo Jaguaribe descrevem a presença de mais atores, mas estrategi-camente escolhemos estes três por descrevem bem outros movimentos que se dão em outras escalas na região.

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como Del Monte Fresh Produce e Fruta Cor, no controle do mercado de frutas da região e os Centros Tecnológicos4, que alimentam os outros dois atores com trunfos de poder a partir do uso de tecnologias produzidas e direcionadas para sua produção; e ao mesmo tempo os Centros Tecnológicos reafirmam a sua função de comprometimento com o desenvolvimento local, regional e nacio-nal.

Um dos primeiros elementos presentes no processo de efetivação do Perímetro Irrigado Jaguaribe-Apodi foram os Centros Tecnológicos. O papel da educação técnica e pesquisa científica foram propiciar um grande avanço para o modelo de irrigação em questão e que, ao mesmo tempo, atendesse a demanda econômica e de mercado, gerando uma população técnica e cientifi-camente qualificada na região. Este movimento se deu com a atenção para a chegada no fim da década de 1980 de grandes Empresas multinacionais, como a Del Monte Fresh Produce e ganho de mercado por Empresas regionais, exemplo da Fruta Cor.

Data do início do século XX a criação dos centros de pesquisa no Estado. Já aqueles que diretamente lidam com as inovações na agricultura, só institu-cionalmente se estabeleceram em 1954, com a criação da Universidade Federal do Ceará – UFC, consideradas tardiamente, quando comparadas com outros centros de referência nacional (COSTA, 2008, 2009a, 2009b). Especificamente voltado para fruticultura irrigada, em 1987 foi criada a Embrapa Agroindústria Tropical, que uniu as ações políticas e interesses de: empresários locais e regio-nais, cientistas e profissionais do ramo e governo local, com o objetivo comum da consolidação da modernização agrícola no Estado e mudança do paradigma de áreas compreendidas dentro da delimitação do sertão nacional5.

Com a presença de centros de ensino e formação profissional, as Em-presas em constante ocupação no mercado da fruticultura irrigada puderem ter ao seu dispor locais de adaptação dos seus pacotes tecnológicos, descrevendo a aliança entre o interesse público e privado. As alianças em sua maioria dizem respeito a experimentos genéticos e análise de mercado e produtividade, como descreve Freitas (2010:121) onde

4 A definição de Centro Tecnológico da região não se restringe aos Centros Tecnológicos strictu senso, como os IFTEs (Institutos Federais Tecnológicos), mas neste caso engloba as Universidades e seus cen-tros de pesquisa, laboratórios e Grupos de Pesquisa.

5 Segundo a nova área de delimitação semiárida, (Ministério de Integração Nacional, 2005:34), o sertão cearense corresponde a 12,9% da região semiárida nacional e 86,8% da área total do Estado do Ceará.

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“O processo produtivo da Fruta Cor é bastante explicativo, pois possui toda tecnificação necessária para manter a alta produtividade da empresa. Mantém parcerias de pesquisa com a EMBRAPA, Universidade Federal do Ceará (UFC) e institutos, que fazem a clonagem da planta (bananeira) em laboratório, para a empresa. As mudas são retiradas dos filhos das ba-naneiras (matrizes) mais produtivas, saudáveis, bem apresentáveis, e são encaminhadas para o laboratório (principalmente da EMBRAPA) que faz a clonagem da muda (...).”

As modificações no espaço agrário do Nordeste nacional, especifica-mente as que dizem respeito ao bioma caatinga, possibilitaram diversos ar-ranjos (BRUNHES, 1962; LACOSTE, 1988) políticos, inclusive aqueles que descrevem a significância da natureza como auto-explicativa para os dilemas socioespaciais (CASTRO, 2001:103). Neste caminho que muitos recursos fo-ram efetivados a região, com objetivo de modificar este legado histórico de não desenvolvimento. Oportunamente, várias Empresas migraram para o Baixo Jaguaribe, objetivando alcançar êxito nessa mudança de paradigma político e socioeconômico, trazendo um ar de messianismo, uma vez que, conforme nos descreve Castro, valores simbólicos foram associados a tal movimento.

Podemos pautar dois momentos pós a chegada das Empresas na região: um diretamente ligado as alianças que poder público local e nacional (DNOCS e SUDENE, especificamente) puderam propiciar em nível de demarcação de terras e áreas agricultáveis e outro, que data da década de 1990, ligado direta-mente a construção de verdadeiros centros de tecnologia dentro de suas pro-priedades, vinculados a Centros de Tecnologia e produção de conhecimento.

Ao mesmo tempo, em estudo realizado em 2009 (COSTA, 2009b), ob-servou-se a tese que a aliança em relação ao espaço de produção territorial do conhecimento é unilateral, ou seja, as Empresas disponibilizam seus espaços para produção e experimentação nos Centros Tecnológicos da região, com ob-jetivo próprio de desenvolvimento tecnológico que possa diretamente ser utili-zada no processo produtivo. Estes mesmo Centros, ao desenvolverem pesquisa autônoma, não empregam tais resultados na região, em que os maiores recepto-res são Empresas de outras locais do país (como o envolvimento desenvolvido pela Embrapa Agroindústria Tropical6, e Empresas do Rio Grande do Norte [Associação dos Produtores e Exportadores de Frutas Tropicais do Nordeste,

6 A Embrapa Agroindústria Tropical foi criada em 1987, com objetivo de desenvolver tecnologias que sustentasse pesquisas para problemas ligadas ao cultivo do caju. Em 1993, adotou demandas ligadas dire-tamente ao agronegócio de frutas e sua cadeia produtiva e criação e implementação de P&D.

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Finobrasa Agroindutstrial S.A. e Fazenda São João]).Segundo o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq (Conselho Nacio-

nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), existem 31 Empresas que desenvolvem algum tipo de atividade junto a grupos de pesquisa do Estado, conforme a tabela que segue. Um baixo relacionamento entre Grupos de Pes-quisa e Empresas foi constatado, uma vez que utilização da produção científica local não possui expressiva relevância. A grande parcela das Empresas ainda importa tecnologia de outras regiões do globo com alto índice de desenvol-vimento tecnológico (como Emirados Árabes e Costa Rica), e os Centros de Pesquisa se responsabilizam no estágio final de adaptação7. Afunilando mais a nossa análise, dentre as áreas do conhecimento das Ciências Agrárias, a Agro-nomia possui a maior participação junto a estas Empresas. Vale revelar que 58% destas Empresas são ligadas a ações diretas ao Agronegócio da região, como Embrapa Agroindústria Tropical e Esplar.

Fica claro, expressado em uma sub-rede política [hegemônica] do Baixo Jaguaribe, o processo de modernização do espaço agrário. A composição é ba-seada em incremento tecnológico como trunfo de poder destes atores, uma vez que conseguem alianças constantes para desenvolver e perpetuar sua atuação e, além do mais, um constante processo de dependência tecnológica dentro da

7 Dentro do processo de produção de inovação tecnológica, a diferença é que alguns centros de P&D’s “adaptarem” a realidade local a demanda da Empresa, enquanto outras de fato inovam, caracterizando a produção de inovação tecnológica “radical” (COSTA, 2009b).

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própria rede, possuindo um alto poder de conhecimento sobre os dilemas e questões tão refletido pelos produtores rurais. Assim, ter hegemonia no Baixo Jaguaribe é unir tanto um arranjo educacional quanto técnico em suas ações políticas territoriais.

Certamente um dos grandes reflexos das alianças e parcerias desta rede política territorial são as mudança na paisagem e nas relações de trabalho dos agricultores, uma vez que o agronegócio da fruticultura potencializa a homoge-neidade da paisagem, diminui as formas agricultáveis e progressivamente ma-ximiza as formas e usos do solo, como visto no presente embate na cidade de Limoeiro do Norte, os fóruns contra os agrotóxicos.

REDES POLÍTICAS TERRITORIAIS CONTRA HEGEMÔNICa

Ao abordarmos redes políticas territorial em “contra-hegemonia”, passa-mos por vários conceitos para embasamento de nossa estrutura de pensamen-to. Segundo Börzel (2008 apud LIMA, 2010:210), uma “variedade de conceitos e aplicações ‘babélicas’ a respeito de redes políticas pode ser encontrada na literatura”, podendo assumir feições na sua aplicação epistêmica, segundo a sua rede de conceitos interligados (HAESBAERT, 2003, 2010). Assim, segundo Lima (2005:123), rede política territorial é

“a estratégia de coordenação dos fluxos de comandos e decisões, capaz de for-mar uma arena política e de lhe conferir visibilidade, requalificando um dado território. Este tipo de rede se forma a partir da dinâmica territorial, retroagindo com esta última” (grifos nosso).

A estrutura territorial em questão neste texto descreve modelagens, for-matos e “ordenamentos” segundo o arranjo espacial e social empreendido. Historicamente o Baixo Jaguaribe cearense é determinado e modificado rapi-damente com as novas relações estabelecidas entre os atores (tanto de esfera local quanto aqueles de esfera regional e nacional). Destarte, novos “(des)orde-namentos” são estabelecidos.

Embates territoriais pelo uso da terra, da água e dos recursos públicos são alguns exemplos que recheiam o debate no perímetro irrigado localizado na Chapada do Apodi cearense, contendo área de 2.421,8 km² (FREITAS, 2010). Nesta vasta área, a comunidade do Tomé, localizada entre os municípios de Quixeré e Limoeiro do Norte, a 205 km de Fortaleza, recebe nossa atenção por

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conta dos atores envolvidos na formação de redes políticas territoriais contra hegemônicas.

Antonio Gramsci (2002), através do conceito de “Revolução Passiva”, nos ajuda a entender o processo de mobilização e atuação dos atores diante dos contextos sociais, “(...) sem necessariamente tenha que existir rupturas glamo-rosas, com rearranjos entre as classes dominantes, promovendo uma concilia-ção entre as frações, em ‘revolução sem revolução’” (RAMOS FILHO, 2010). Deste pensamento, juntamente com Ramos Filho (op. cit.), acrescendo em Oli-veira (2010), Silva (2010), Nascimento (2010) e Lima (2010), compreendemos a contra-hegemonia como reflexo do movimento de mobilização dos atores, diante das relações de poder estabelecida, a fim de ocupar novos espaços e/ou espaços já alicerçados, que resultem assim da postura discordante diante dos eventos colocados. A efetivação da contra-hegemonia é um dos caminhos de atuação dos atores frente às redes territoriais estabelecidas, e, em especial, que usufruem de territórios outrora consolidados e dinâmicos – queremos dizer com outra racionalidades territorial, cultural, econômica e ideológica -, que fo-ram por razões não palpáveis transformados e (re)(des)ordenados.

A rede política territoriais contra hegemônica no perímetro irrigado Jaguaribe--Apodi objetivam retomar alguns espaços/redes ocupados pelas atividades eco-nômicas dominantes, a partir dos agenciamentos dos atores em busca de novos meios de comercialização, produção e empoderamento produtivo e ecológico.

Concomitante às redes políticas territoriais contra hegemônicas, o agro-negócio no espaço agrário cearense é do tipo “exportação”, com grande ex-pressão junto aos pólos de Petrolina-PE e Açu-RN. Junto com os grandes per-centuais de exportação, estão também os de uso de agrotóxicos. Segundo dados do Censo Agropecuário (2006), o Estado do Ceará ocupa a primeira posição no Nordeste e a quarta a nível nacional em número de estabelecimentos (112.154) que fez tal uso. Ao mesmo tempo, a autora Rigotto (et all, 2010) aprofunda o debate do que tem representado o agronegócio através dos agrotóxicos para o campo brasileiro, tornando o espaço agrário como receptor de movimentos de êxodo rural, fazendo que as cidades periféricas aos grandes pólos de produção se tornem “ingovernáveis”.

Esta rede com qual dialogamos é formada de forma mais plural, diferen-temente da rede política das Empresas que imperam na região. É a união de ideais e forças, congregadas em ações que descrevem a luta e história diante do Baixo Jaguaribe. Temos em síntese uma diferença central entre as duas redes: apesar de lutarem por poder e visibilidade no mesmo espaço geográfico, se utilizam de diferentes arranjos para almeja o direito a terra e a vida; nisso está a

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lógica capitalista empresarial das Empresas, e deste fundamento a razão de ser e das alianças desta rede de resistência.

Basicamente, a rede política territorial contra hegemônica que se con-solida na região é formada pelos atores: Faculdade de Filosofia Dom Aurelia-no de Matos (FAFIDAM/Universidade Estadual do Ceará), Núcleo TRMAS (Universidade Federal do Ceará), Cáritas Diocesana (Conferência Nacional de Bispos do Brasil), comunidade do Tomé e MST.

Ao participar desta rede, a Universidade também aparece representada como na rede vista junto as Empresas. A diferença que frisamos é que a qua-lidade desse ator é fundamentalmente diferente, exerce um atributo de poder que possibilita o choque de entendimentos, como a luta pela terra e pelo uso equitativo dos recursos públicos, diga-se de passagem, o interesse comum entre os atores desta rede.

Na FAFIDAM, constantes estudos são desenvolvidos com o intuito de compreender melhor as modificações e re-arranjos espaciais da região, através dos laboratórios e pesquisas diretas de professores e estudantes.

Movidos pelas questões da terra, a comunidade do Tomé teve um repre-sentante emblemático, que mobilizou estes e outros atores na rede: José Maria Filho. Líder comunitário engajado na denuncia dos efeitos espaciais do avanço do agronegócio na Chapada do Apodi, foi assassinado em abril de 2010, trans-formado e motivando outros atores que, além dos interesses por conta das questões da terra, foram levados a busca de respostas para sua morte.

Uma das causas que mais propiciou alianças dentre esta rede foi a uti-lização de agrotóxicos na produção do agronegócio de frutas. Vários casos foram levados a mídia, que além da contaminação dos canais de irrigação do Perímetro Irrigado, atuavam maciçamente na saúde dos agricultores da chapa-da através da pulverização aérea. Alianças foram feitas como Núcleo Tramas8, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, na realização de estudo ligados a saúde pública. Segundo Rigotto (2010), o uso dos agrotóxi-cos na região é motivado basicamente por três fatores: modernização agrícola conservadora, reestruturação produtiva do campo e a divisão internacional da produção e do trabalho.

8 Outros estudos foram desenvolvidos pelo núcleo que detectou diferentes tipos e níveis de câncer pro-venientes do uso de agrotóxicos, além dos estudos realizados por esta rede junto a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos e Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos.

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COSTA, S.B. da Redes políticas territoriais em questão...

DO ESPACIAL AO MATERIAL: JOGO ENTRE REDES EM CONTENSÃO TERRITORIAL

Tais dados empíricos, ajudam na concretude de reflexos do agronegócio da fruticultura irrigada no Perímetro Irrigado Jaguaribe Apodi. Terra de exten-são metabólica, os agricultores são “barrados” por políticas públicas e dispari-dades ”técnica-capitais” no manejo de áreas do Perímetro. É um processo de contensão territorial, que para o autor Haesbaert, reflete uma dinâmica repleta de

“(...) estratégias que, num mundo tomado de aglomerados humanos ex-tremamente precarizados, envolvem não mais a possibilidade (e a utili-dade) da reclusão em espaços relativamente fechados, mas a retenção/contenção (provisória, instável e sempre parcial) em “campos” (AGAM-BEN, 2002; HAESBAERT, 2007 e 2008), territorialidades-limbo onde mal distinguimos o dentro e o fora, o limite/ fronteira (entre o) legítimo e o ilegítimo” (2009:96).

O nosso objetivo neste cruzamento com Haesbaert é perceber a natu-reza que alguns atores envolvidos nas redes políticas do Baixo Jaguaribe que se encontram retidos – não físico-materialmente, mas socioespaciais diante do avanço do agronegócio – em suas limitações oriundas de várias escalas, ou seja, “glocalização” (THRIFT, 1996 apud HAESBAERT, 2010).

Para a compreensão da proposição acima, algumas das múltiplas razões explodem os movimentos no território – como os de contensão ou confina-mento territorial – são as relação de poder no/e pelo espaço, tanto das rela-ções de poder entre objeto/sociedade/espaço (LATOUR, 1989; FOUCAULT, 1979), quanto das territorialidades (HAESBAERT, 2004). Gonçalves em seus textos de reflexão epistêmica em Geografia, com contribuição a partir de Fou-cault, revela a mola propulsora:

“(...) a relação íntima entre espaço e poder (...). E aqui toda a questão do poder se revela na medida que as delimitações, os recortes de objetos, as classifi-cações, as organizações de domínios sendo procedimentos de poder afirmam o poder ainda mais quando ‘a descrição espacializante dos fatos discursivos [que nos proporcionaria] análise dos efeitos de poder que lhe estão liga-dos’ (...)” (PORTO GONÇALVES, 2002:228) (grifos nosso).

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Neste caso de estudo aqui intercalado, alcançamos este nível de análise ao observarmos, conforme a foto que seguem, a delimitação espacial das relações de poder no Perímetro Irrigado, gerando contensão e “desempoderamento territorial”9 dos agricultores ali existentes.

A delimitação espacial do Perímetro Irrigado (Figura 1) demonstra a con-tenção de algumas comunidades de agricultores familiares, como Tomé, Agico Grosso, Maracava e Ipú. Historicamente, estas comunidades desenvolvem ati-vidades dentro do território marcado com os traços do perímetro, detendo um “nincho” de mercado e rede de cooperação que subsidiasse tal atividade. Como vimos, a chegada do Perímetro marcou outro momento na realidade destes agricultores: um desempoderamento territorial que se desenvolve de forma progressiva.

Aqui temos a arena política de redes em tensão, em que a rede do agrone-gócio e das Empresas tenta de formas simbólicas e materiais confinar a rede de resistência da comunidade do Tomé, demonstrando outro aspecto e qualidade das redes: onde há poder, há resistência (SILVA e SANTOS, op. cit.), e por se expressar territorialmente, “gargalos” como este expresso na foto demonstra essa espacialidade conflitante.

9 Esta denominação é decorrente dos debates de Norman Long na obra Sociología del desarrollo: uma pers-pectiva centrada en el actor (2007), se referindo às mudanças enfrentadas pelos agricultores, bem como no processo de perda da capacidade de gestão dos recursos para produção diante do agronegócio.

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COSTA, S.B. da Redes políticas territoriais em questão...

(RE)ARRANJO ESPACIAL DO PERÍMETRO IRRIGADO JaGuarIbE aPodI: CaMINHoS E LuTaS Para o (rE)ORDENAMENTO TERRITORIAL

Os arranjos espaciais das duas redes em tensão demonstram como fixa-mente as Empresas tem se estabelecido na área do Perímetro e como as comu-nidades tem se confinado a espaços cada vez mais reduzidos, mas ao mesmo tempo se significando em outras esferas.

Com toda a base tecnológica, as Empresas têm apreendido uma maior capacidade de utilização do espaço em conflito, objetivando uma rentabilidade de sua produção. Para isso, tem dominado as portas dos mercados internacio-nais e propicia aos agricultores - ainda resistentes - financiamento de sua pro-dução de frutas, desde que em troca e aliança, tenha exclusividade na compra dos produtos e fornecimento de sementes. Este ato é cada vez mais comum nos modelos dos Complexos Agroindustriais (CAIS), em que detêm toda uma hegemonia financeira e de mercado, “fixando” o espaço a uma racionalidade rentável.

Este novo arranjo também tem desencadeado outros movimentos. Em entrevista (COSTA, 2010), um dos dirigentes da Empresa Frutacor nos infor-mou que é realizado um tipo de “responsabilidade social empresarial”, empre-gando apenas em suas fazendas trabalhadores da região, afastando trabalhado-res migrantes de outras áreas e regiões do país. Apesar de tal fato, a Empresa não garante aos trabalhadores condições dignas de trabalho, como vimos an-teriormente, revelando que na política empresarial o objetivo do baixo custo na produção e alta produtividade é marca fundamental. Por conseguinte, este modelo só revela mais um conflito que o processo de utilização da mão de obra sofre diante das constates modificações tecnológicas, trazendo profundas mar-cas sócio-culturais, com reflexos na geografia do trabalho (OLIVEIRA, 2007) do Baixo Jaguaribe.

Em meados de 2008, a multinacional Del Monte Fresh Produce foi campo de uma greve de trabalhadores, lutando por melhores condições de trabalho e sa-lários. Neste episódio, a Empresa também foi exposta por uso indiscriminado de agrotóxicos. Este evento foi mais uma das estratégias da rede de resistência na região, agregando outros atores, como o Ministério Público, junto às ques-tões ambientais e sociais.

Recentemente tivemos a ação do “Movimento 21”, que são atos, audiên-cias públicas e mobilizações todo dia de cada mês, lembrando a data da morte do José Maria Filho (21 de abril de 2010). As ações são desde panfletagem em

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bairros periféricos das cidades cortadas pelo Perímetro (como Quixeré, Nova Russas e Limoeiro do Norte) com objetivo de conscientização e avançar na luta por terra, justiça ambiental e social.

Assim, percebe-se então outra espacialidade dos movimentos da rede contra-hegemônica, que não possui fixidez, mas de forma difusa, consegue expor uma espacialidade em questão (MOREIRA, 2008), re-significada com as lutas e os avanços do agronegócio na região.

As redes políticas territoriais do Baixo Jaguaribe cearense demonstram sinais dos constantes problemas socioambientais da região e domínio econô-mico do agronegócio, que também em redes, os diversos atores configuram forças, movimentos e alianças contra domínio hegemônico do espaço agrário. A mobilização configura um “deslocamento” político e ideológico do modelo agro-exportador (CRUZ, 2011) vigente. Daí o caminho de reflexão e ques-tionamento sobre qual ordenamento territorial e desenvolvimento queremos: aquele que referenda as tensões ou que propões política pública para o Baixo Jaguaribe? As redes políticas tem se estabelecido – mesmo com participação da esfera pública, como as universidades e estâncias legais políticas, mas pouco se alcança em nível propositivo para o semiárido nacional.

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A CENTRALIDADE DO TERRITÓRIO E A POSIÇÃO DO ESTADO NOS CONFLITOS PELA APROPRIAÇÃO DA NATUREZA: O CASO DO PARQUE ESTADUAL DE

ITAÚNAS

THE CENTraLITY oF THE TErrITorY aNd THE STaTE’S PoSITIoN IN CoNFLICTS ovEr

THE aPProPrIaTIoN oF NaTurE: THE CaSE oF ITAÚNAS STATE PARK

La CENTraLIdad dEL TErrITorIo Y La PoSICIÓN DEL ESTADO EN LOS CONFLICTOS POR LA

APROPIACIÓN DE LA NATURALEZA: EL CASO DEL PARQUE ESTADUAL DE ITAÚNAS

VANESSA HACONPrograma EICOS - Instituto de Psicologia

Universidade Federal do Rio de [email protected]

CARLOS FREDERICO B. LOUREIROUniversidade Federal do Rio de Janeiro

[email protected]

Resumo: Amparado pelo conceito de território na sua concepção integradora, este artigo

aborda os conflitos ambientais associados à instituição de áreas protegidas, tomando por base

o ponto de vista dos atingidos por este processo. Para tal, valemo-nos do estudo de caso

realizado junto às populações tradicionais residentes no Parque Estadual de Itaúnas (PEI) e

no seu entorno, com destaque para a Vila de Itaúnas, Espírito Santo, Brasil. Ao longo da

explanação, buscamos destacar as múltiplas relações materiais e simbólicas destas populações

com o seu território assim como apontar as mudanças acarretadas no seu modo de vida a

partir da criação do PEI. Neste processo, torna-se necessário evidenciar o papel do Estado nos

distintos processos de expropriação do território imputados a estas populações, com destaque

para a criação e implementação do PEI.

Terra Livre São Paulo/SP Ano 27, V.1, n.36 p.229-251 Jan-Jun 2011

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HACON, V., LOUREIRO, C.F.B A centralidade do território...

Palavras-chave: Conflitos ambientais; território; áreas protegidas; justiça ambiental; Estado.

Abstract: Based on the understanding of the territory in its integrated form, this article

discusses environmental conflicts related to the establishment of protected areas, presented

from the point of view of those affected by this process. Therefore, we focus on the conflicts

arising from the creation of the Itaúnas State Park involving the traditional local population,

with particular emphasis on Vila de Itaúnas, Espírito Santo, Brazil. In this paper, we seek to

highlight the multiple material and symbolic relationships of this population with their territory

as well as point out the changes brought by the creation of the Itaúnas State Park on the local

way of life. We also find necessary to highlight the role of the State in the multiple processes

of expropriation of the territory occupied by this population, especially the creation and

implementation of the Itaúnas State Park.

Keywords: environmental conflicts; territory; protected areas; environmental justice; state

Resumen: Basado en el concepto de territorio en su concepción integradora, este trabajo

describe los conflictos ambientales relacionados con el establecimiento de áreas protegidas,

desde el punto de vista de los afectados por este proceso. Con este fin, se parte del estudio de

caso realizado junto a las poblaciones tradicionales residentes en el Parque Estadual de Itaúnas

(PEI) y sus alrededores, ubicadas en Itaúnas, Espirito Santo, Brasil. A lo largo de la explicación,

se busca resaltar las múltiplas relaciones materiales y simbólicas de esta población con su

territorio, así como señalar los cambios producidos en su modo de vida desde la creación

del PEI. En ese proceso, es necesario destacar el papel del Estado en los diferentes procesos

de expropiación de los territorios asignados a esa población, especialmente la creación e

implementación del PEI.

Palabras clave: los conflictos ambientales; territorio; áreas protegidas;

la justicia ambiental; Estado.

INTRODUÇÃO

A chamada questão ambiental adquiriu nas últimas décadas relevância mundial e destaque nas principais agendas governamentais. Visando endere-çar os impactos ambientais nefastos do desenvolvimento industrial capitalista global, os governos vêm construindo políticas públicas com o objetivo de di-minuir, remediar e mitigar tais impactos sob o moderno discurso do desenvol-vimento sustentável.

Tendo em vista a importância da construção social de um problema para a sua definição assim como para a delimitação de suas possíveis solu-ções, destaca-se o viés homogeneizador, supraclassista e tecnocrata que vem

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Terra Livre - n.36 (1): 229-251, 2011

caracterizando o debate ambiental. O próprio conceito de desenvolvimento sustentável contribui para refutar este viés, uma vez que compreende um vasto e diversificado leque de propostas, inclusive contraditórias entre si, de como este processo deve se dar (HAJER, 1995), evidenciando a heterogeneidade de posições políticas. Sob o manto da universalidade da crise ambiental – que de fato não reconhece fronteiras formais –, condensam-se as diferenças econômi-cas, sociais, políticas etc. entre os variados grupos e classes sociais, apesar de suas distintas posições na estrutura social. Desse modo, anunciam-se impactos ambientais coletivos (como, por exemplo, a degradação da natureza) que, na prática, vêm atingir as diversas classes e grupos sociais de forma diferenciada, revelando um quadro de injustiça ambiental. O resultado é a ampla socialização dos problemas ambientais e custos deste processo em contraposição à restrição dos seus benefícios (dos econômicos aos ambientais) a segmentos elitizados da sociedade.

Do ponto de vista das relações de poder, a tentativa de difusão ideológica de uma suposta homogeneidade da sociedade contribui para a despolitização do debate na medida em que busca anular as contradições presentes na estrutu-ra social e, por conseguinte, conter os conflitos latentes. Neste sentido, defen-de-se que a questão ambiental vai além do ato de manejar processos naturais ou controlar as externalidades do processo produtivo industrial, senão que diz respeito a uma questão mais ampla de cunho ideológico e político (DIEGUES, 2000; O`CONNOR, 2002). Ao contrário do advogado pelo conceito de mo-dernização ecológica, centrado na capacidade técnica moderna de gestão dos problemas ambientais, inclusive como possibilidade de expansão dos lucros (HAJER, 1995), afirma-se que o debate referente à problemática ambiental localiza-se em um campo de disputas políticas e ideológicas no qual a própria definição de crise ambiental encontra-se em concorrência, assim como as solu-ções propostas para a mesma.

No contexto do acesso aos recursos naturais, a despolitização da discus-são contribui para retirar o caráter conflitivo do cerne dos embates envolvendo a apropriação do território e exploração dos recursos naturais nele contidos, na medida em que endereça os conflitos ambientais pelo viés tecnicista da incapa-cidade gerencial de se atingir o consenso ao invés da abordagem das diferenças estruturais entre os variados atores em disputa. Ao contrário, tais conflitos, que conjugam as variáveis social e ambiental numa única matriz, dizem respeito a disputas por meios de reprodução social, tanto do ponto de vista material – acesso aos recursos naturais fundamentais à sobrevivência de determinados grupos – como do ponto de vista simbólico, numa luta para manter um deter-

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HACON, V., LOUREIRO, C.F.B A centralidade do território...

minado modo de vida inserido em um universo de práticas culturais e formas de apropriação dos recursos distintas. Os conflitos eclodem na medida em que as práticas e os significados dados ao espaço ambiental de uns interferem na possibilidade de reprodução das práticas e sentidos conferidos por outros a este mesmo espaço (ACSELRAD, 2004a; ZHOURI ET AL, 2005). Portanto, evidenciam-se neste processo os conteúdos socioculturais diferenciados dos variados grupos em disputa, assim como as distintas responsabilidades de cada um destes frente aos processos desencadeadores da chamada crise ambiental.

A partir das premissas teóricas expostas previamente, este artigo aborda os conflitos ambientais associados à instituição de áreas protegidas, tomando por base o ponto de vista dos atingidos por este processo, com destaque para as populações tradicionais cujo direito ao espaço ambiental tradicionalmente ocupado encontra-se em conflito com parte da legislação nacional referente às áreas protegidas, pautada na oposição entre natureza e sociedade. Como ponto de partida para a explicitação desta temática, valemo-nos do estudo de caso realizado junto às populações tradicionais residentes no Parque Estadual de Itaúnas (PEI) e no seu entorno, com destaque para a Vila de Itaúnas, ambos localizados no município de Conceição da Barra, extremo norte do estado do Espírito Santo (ES), Brasil. Tal estudo de caso baseou-se em pesquisas biblio-gráficas e documentais, juntamente à observação participante e realização de múltiplas entrevistas com atores sociais representativos dos conflitos identifi-cados ao longo do período de 2008 a 2010.

Este artigo argumenta que o PEI, em seu processo de implementação, promoveu o rompimento de múltiplas relações materiais e simbólicas da popu-lação local com o seu território, acarretando prejuízos relacionados ao conjunto de práticas culturais tradicionais locais, repercutindo ainda de forma negativa na dita “preservação da natureza.” Dessa forma, defende-se que os conflitos ambientais observados em Itaúnas, ao invés de meros problemas gerenciais, ex-pressam diferenças reais entre os diversos atores e seus projetos de sociedade.

o HISTÓrICo doS CoNFLIToS EM ITaÚNaS

O PEI foi criado em 1991 em um contexto de pressão por parte da opinião pública local preocupada com a preservação de um dos poucos re-manescentes de Mata Atlântica no ES frente à especulação imobiliária dirigida àquela região. A atenção direcionada a esta localidade justificava-se, do ponto de vista ecológico, pela grande diversidade biológica e de ecossistemas ali pre-sentes versus o seu entorno ocupado por vastas monoculturas, destacadamente

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a de eucalipto. Mencionava-se a relevância arqueológica local, composta por 23 sítios responsáveis por contar a história das sucessivas ocupações humanas nesta área, assim como a importância do uso dos ambientes naturais e seus recursos pelas populações tradicionais locais na reprodução do seu modo de vida. Por fim, a criação do PEI visava proteger as famosas dunas de Itaúnas, outrora sinônimo de perda para a população local, resultante do soterramento da antiga Vila de Itaúnas.

Esta região, durante séculos inexplorada economicamente pelos colo-nizadores, manteve-se relativamente isolada e preservada, do ponto de vista dos recursos naturais, até a década de 1930, quando iniciou-se a exploração da madeira-de-lei em larga escala. O ápice desta atividade se deu na década de 1960, decaindo a partir de 1970, em função do ritmo desenfreado em que a exploração da madeira vinha se dando, sendo substituída por outra atividade econômica que seria determinante na história e na paisagem deste lugar: o cul-tivo, a partir de extensas monoculturas, do eucalipto. Assim como a exploração madeireira, a implementação desta atividade agroindustrial na região se deu por grandes grupos econômicos, reiterando a lógica da produção capitalista do espaço (HARVEY, 2006).

A implantação da monocultura do eucalipto em larga escala contou com diversos incentivos fiscais por parte do Estado, além da ampla disponibilida-de de terras, por meio da transformação das terras comunais de uso das po-pulações locais em terras devolutas e posterior venda das mesmas. Nota-se que estas eram terras cobertas por extensas florestas depositárias de recursos naturais em abundância, fundamentais à reprodução material e simbólica das populações que ali viviam e se desenvolviam baseadas em uma lógica comunal do uso do ambiente natural. Desta forma, a população tradicional de Itaúnas deparou-se com a privatização de grande parte do seu território sob o aval e incentivo do Estado. Em contraposição à sua organização econômica e cultu-ral baseada na produção agrícola familiar em pequenas propriedades e no uso extensivo dos ambientes naturais de forma coletiva, o território passou a ser gerido por agentes privados a partir da lógica econômica da otimização do uso da terra para a geração de lucro, com implicações no ambiente1 e na organiza-

1 A dissertação de Ferreira (2002) traz inúmeros relatos de antigos moradores de Itaúnas atestando o desmatamento de extensas áreas de florestas não só para a extração da madeira-de-lei, a partir de 1920, como também e notadamente para a implementação de monoculturas de eucaliptos, a partir de 1960. Além do desmatamento (e consequente perda de biodiversidade) observado, os moradores relatam ainda casos relacionados à intoxicação, mortandade de peixes e contaminação dos cursos d’água em função do vasto uso de agrotóxicos nas monoculturas de eucalipto e despejo do efluente vinhoto, resultante da

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ção socioeconômica e cultural local. O antigo cenário de fartura das terras e recursos naturais dava lugar agora ao cenário de escassez e futuras restrições ao usufruto da natureza (FERREIRA, 2002).

No contexto de criação do PEI, o reconhecimento da importância do território comunal e dos recursos naturais nele contidos para a população local contrapôs-se, na prática, às medidas legais implementadas com a instituição desta área protegida. Por parte da população local de Itaúnas, herdeira de um modo de vida tradicional, gerou-se um estado de apreensão uma vez que a proteção legal do resquício de vegetação nativa ali presente veio acompanhada de restrições ao usufruto dos recursos naturais. Estas restrições tiveram um impacto direto nestas populações, na medida em que intervieram no ambiente natural comunal, fundamental à sua reprodução material e simbólica, invia-bilizando o uso comum de um dos poucos espaços naturais remanescentes. Neste sentido, a primeira impressão de “vitória” advinda da criação do PEI – o estopim para a sua criação foi a ameaça de construção de um resort na faixa litorânea, o que levaria à privatização deste espaço – logo foi substituída pela evidência de mais uma perda para a população local, agora impedida de usu-fruir de um espaço ambiental de fato conservado, em grande parte, em virtude das práticas tradicionais locais. O suposto caráter público do parque parecia não se aplicar (ou ao menos não se adequar) ao contexto local, uma vez que as regras de uso do território vinham privilegiar o uso deste espaço ambiental de forma particularizada por grupos externos à realidade local em detrimento da população tradicional de Itaúnas, diretamente atingida pela criação desta área protegida.

Considerando o histórico de devastação ambiental desta região – exem-plificada na perda de aproximadamente 85% de sua cobertura vegetal nativa entre as décadas de 1960 e 70 –, ocasionada por formas específicas de apro-priação do espaço mediadas por relações de produção capitalistas ao longo do século XX; e, concomitantemente, os distintos projetos observados para o re-manescente de vegetação nativa – de um lado, as populações tradicionais e a sua dependência direta da natureza e, de outro, o PEI, cujas regras impedem todo e qualquer usufruto e manejo da natureza –, as novas regras de uso do território instituídas a partir da criação do PEI geraram uma série de tensões e conflitos2.

destilação do licor de fermentação do álcool de cana-de-açúcar, nos rios da região. A monocultura de cana-de-açúcar é a segunda maior do município de Conceição da Barra e direciona-se, principalmente, à produção alcooleira.

2 Os múltiplos conflitos identificados em Itaúnas podem ser encontrados de forma mais detalhada na dissertação que deu origem a este artigo intitulada “Para além das dunas: conflitos ambientais relaciona-dos ao Parque Estadual de Itaúnas” (HACON, 2011). Embora os mesmos encontrem-se inseridos em

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O TERRITÓRIO COMO ELEMENTO CENTRAL DOS CONFLITOS AMBIENTAIS

Apesar das diversas categorias de conflitos (relacionados ao PEI) iden-tificados em Itaúnas, observa-se um elemento central comum a todos estes: a disputa em torno da apropriação e usufruto do território em sua concepção integradora. Nesta perspectiva, o território é formado pelo conjunto das di-mensões política, econômica e simbólica, a partir de uma visão híbrida “entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e ‘idealidade’, numa complexa interação tempo-espaço” (HAESBAERT, 2004, p.79). Neste sentido, Haesbaert concebe o território a partir da “imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais material das relações econômico--políticas ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente cul-tural” (ibid), cuja centralidade torna-se capaz de dar unidade à ação dos sujeitos sociais (SOUZA & PEDON, 2007).

Do ponto de vista da sua dimensão simbólica, o território se define por um princípio cultural de identificação (ou sentimento de pertencimento) na medida em que o espaço, investido de valores e significados, é socializado e culturalizado (HAESBAERT, 2004). Portanto, o espaço, locus da reprodução das relações sociais de produção, adquire o significado de espaço vivido (COR-RÊA, 2008). Desse modo, a sobrevivência de determinada identidade, baseada em práticas materiais e simbólicas, está diretamente relacionada à defesa do território, uma vez que estas práticas projetam-se no espaço e vêm expressar a manutenção de um modo de vida (SOUZA, 2008).

Na medida em que o espaço torna-se alvo de valorização pelo trabalho, este passa a ser territorializado, isto é, apropriado e significado por um grupo social (ibid). No entanto, ao contrário de uma perspectiva determinista, a ocu-pação e o controle sobre o espaço não são dados a priori, e sim disputados no âmbito da sociedade pelos variados grupos sociais. Em outras palavras, não pode haver espaço sem sociedade, uma vez que este constitui-se enquanto es-paço-resultado, construído e em construção, por meio de práticas sociais preci-sas (MORAES & COSTA, 1987). Sendo assim, o processo de territorialização se insere nas múltiplas relações de produção, troca e consumo entre os variados

uma totalidade histórico-social e, portanto, não possam ser dissociados uns dos outros, foram definidas cinco categorias temáticas gerais a fim de facilitar a sua compreensão. São estas: Conflitos pelo uso dos recursos naturais; Atividades econômicas alicerçadas pelo grande capital geradoras de conflitos no en-torno da Unidade de Conservação; Conflitos oriundos da possível remoção de populações tradicionais do interior do PEI; Conflitos relativos à produção local de carvão e de artesanato, e à atividade turística; Participação local incipiente na gestão da Unidade de Conservação.

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atores deste espaço (RAFFESTIN, 1993). Levando em conta as bases desiguais de poder sobre as quais este processo se desenvolve, restam as perguntas: quais são as relações de poder estabelecidas e a correlação de forças resultante deste processo?

A problemática da territorialidade, numa perspectiva político-ideológica, contribui para verificar o caráter simétrico ou dissimétrico das relações de po-der uma vez que o controle dos territórios e o que dele resulta evidenciam um processo de apropriação específico do espaço, expressando determinada ordem pertinente ao contexto histórico em que foi produzida (RAFFESTIN, 1993; MORAES, 2005). Os variados sentidos dados ao território e as formas de apropriação social da natureza ajudam a explicar a distribuição de poder sobre os recursos ambientais e, na medida em que entram em choque, entrever a correlação de forças na sociedade. É importante notar que esta ordem ex-pressa na esfera da sociedade civil se legitima na figura do Estado, em função da indissociabilidade deste e das relações sociais de produção. Especificamente no processo de apropriação do espaço, a figura do Estado torna-se central uma vez que cabe ao mesmo gerir a política territorial por meio da definição do uso da terra e dos recursos e da concessão do seu uso para fins específicos de indivíduos ou grupos sociais determinados. Deste modo, o Estado não pode ser compreendido como figura neutra frente a estes processos uma vez que é o agente fulcral no processo de ordenação do território.

Adentramos, assim, a concepção marxista acerca do Estado, na qual este é compreendido como um produto da sociedade, ao invés de algo externo e imposto à mesma (ENGELS, 2009). Neste sentido, no lugar de agente impar-cial representante dos interesses coletivos, o Estado, subordinado à divisão de classes observada na estrutura social capitalista, viria a ocupar a posição de gestor dos interesses da classe dominante, refletindo as condições desiguais presentes na sociedade (MARX E ENGELS, 2002; LENIN, 1983). Envolto por um falso manto de objetividade capaz de justificar e legalizar a dominação, o Estado, apresentando-se como representante do “bem comum,” consistiria, na prática, em um instrumento de criação e imposição de uma hegemonia de classe. Tendo em vista que ele ocupa a posição de objetivar, codificar, delegar e garantir valores difusos na estrutura subjetiva da sociedade, o controle pelo aparelho estatal torna-se objeto de disputa pelos variados grupos. Para Bour-dieu (1994), o processo de disputa por poder culmina justamente na figura do Estado dado que este concentra distintas espécies de capital (de força física, econômico, cultural, simbólico) e, portanto, possui influência nos inúmeros

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campos correspondentes a estes capitais3. Partindo da premissa de que a configuração do Estado capitalista expres-

sa a correlação de forças na sociedade, o conflito surge como uma explicitação das contradições latentes na mesma. Dotado de uma construção histórica, o conflito não pode ser compreendido apenas pontualmente. Estruturalmente, encontram-se em disputa distintos usos e significados direcionados ao territó-rio (ACSELRAD, 2004a), constituindo-se, neste caso, em uma questão, acima de tudo, política. Os conflitos ambientais, que compreendem no seu bojo lutas sociais, inserem-se nesse contexto de disputa pelo território, explicitando os variados projetos para o mesmo espaço ambiental. Tais disputas se evidenciam pela necessidade de utilização comum desses espaços nos quais se encontram recursos fundamentais para o desenvolvimento e sobrevivência humana. Nesse contexto, é preciso localizar os grupos em conflito numa matriz desigual de poder, com práticas culturais e formas de apropriação dos recursos distintas. Deste modo, os conflitos se configuram tanto por projetos de desenvolvimento diferenciados, como por capacidades de expressão desiguais, no contexto de correlação de forças da sociedade.

Grupos que não se incluem na lógica econômica hegemônica, como os povos designados tradicionais, que possuem formas distintas de significação e uso dos recursos naturais e do território, buscam manter ou resgatar suas for-mas tradicionais de relacionar-se com a natureza face à tentativa de apropriação particularizada destes espaços, tanto pelo Estado como pelo capital privado (não necessariamente de forma dissociada). É necessário atentar para o fato de que estes grupos dependem destes recursos naturais para a sua própria sobre-vivência. Logo, o conflito se dá, antes de tudo, pela necessidade de reprodução social de condições de existência (LOUREIRO ET AL, 2009).

No caso das populações tradicionais, os efeitos indesejados no ambiente ou a perda da independência frente ao seu uso afetam ainda o espaço do ponto de vista simbólico, haja vista a significação dada ao território a partir de práticas culturais específicas, ou seja, de um determinado modo de vida. A compreen-são dos ambientes naturais, na ótica destes grupos, perpassa a noção de natu-reza ligada às práticas cotidianas, à herança dos antepassados, adquirindo um significado que vai além de provedora de “recursos naturais”, para incluir senti-dos materiais, religiosos, medicinais, simbólicos etc. (DIEGUES, 2000). Neste sentido, o território simboliza um indispensável fator de autonomia (SOUZA,

3 Bourdieu amplia o conceito de capital, cunhado inicialmente por Marx, buscando explicar outras di-mensões das relações sociais. Por analogia ao sentido econômico do termo, utiliza o termo capital para compreender as trocas simbólicas ocorridas nos distintos campos do espaço social.

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2008), uma vez que a permanência no local está diretamente relacionada à ga-rantia da sobrevivência material, assim como da preservação do conhecimento e perpetuação da cultura.

É importante notar que as disputas envolvendo o usufruto e apropriação do território e os recursos nele contidos extrapolam a dimensão da organização econômica e direção política da sociedade, para adentrar o campo ideológico da construção de sentidos (ACSELRAD, 2004a). Deste modo, Hajer (1995) irá classificar a natureza dos novos conflitos ambientais como discursiva, dada a “luta complexa e contínua a respeito da definição e do significado do pro-blema ambiental em si mesmo” (HAJER, 1995, p.14). Bourdieu (1989; 1994) corrobora este ponto de vista na medida em que defende que a disputa ocorre, além de no campo econômico, político ou jurídico, no âmbito da classificação e da cognição, ou seja, no campo simbólico. Dá-se, portanto, uma luta pela imposição dos princípios simbólicos de visão e divisão do mundo social – dado que estes irão nortear a compreensão do chamado “real” –, através da qual objetiva-se, em última instância, obtenção de poder e legitimidade. Neste sen-tido, compreende-se a luta por recursos naturais também como uma luta por sentidos culturais (ACSELRAD, 2004a; ZHOURI ET AL, 2005), uma vez que o universo cultural precisa ser compreendido como mais uma forma de domí-nio e subordinação de uma classe por outra (WILLIAMS, 1979). Assim como defendido por Gramsci (GRUPPI, 1978), a dominação se dá não só a partir da estrutura econômica e política, mas também a partir das orientações ideológicas e do modo de conhecer. Desta forma, o sentido de hegemonia abarca a direção política assim como a direção moral, cultural, ideológica (GRUPPI, 1978). É importante notar que a hegemonia de uma classe dominante é constantemen-te repensada e reforçada por meio de um entrelaçamento de relações sociais, discursos e instituições, indo além de uma organização de coerção física para atingir as esferas moral e intelectual de domínio. Portanto, não se trata apenas do controle do Estado, em um sentido estrito, e seus aparelhos de coerção, mas de forjar a dominação também por meio de formas mais sutis de construção de consensos, inclusive na esfera econômica, difundindo ideologicamente uma suposta homogeneidade da sociedade e anulando as contradições e os conflitos latentes.

A partir da deslegitimação dos conflitos, tidos como um problema a ser evitado ou eliminado, configura-se todo um discurso que tentará caracterizar o conflito como a falta de capacidade para o consenso ao invés da “expressão de diferenças reais entre atores e projetos sociais, a serem trabalhadas no espaço público” (ACSELRAD, 2004a, p.29). É preciso atentar para a atual compreen-

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são dos conflitos do ponto de vista meramente administrativo, na qual estes são apresentados como simples externalidades que podem ser contornadas atra-vés de processos técnicos, podendo ainda ser gerenciadas objetivando-se um consenso (ZHOURI ET AL, 2005). Esta dita falta de capacidade para gerir os conflitos encontra-se na gênese das propostas de resolução técnica e gerencial, ou seja, na concepção hegemônica de desenvolvimento sustentável (ibid) que restringe a natureza a uma realidade externa à sociedade que deve ser manejada de forma utilitarista em função do homem e do dito desenvolvimento, na lógica do capital.

OS CONFLITOS RESULTANTES DA INSTITUIÇÃO DE ÁREAS PROTEGIDAS

No âmbito dos conflitos ambientais, a problemática da conservação da natureza vem se configurando como mais um campo de disputas e embates entre distintas práticas e discursos acerca do significado e da implementação desta ação. À medida que as condições de degradação do ambiente se agrava-ram e uma crise ecológica começou a ser identificada, a biodiversidade adquiriu maior importância no cenário internacional e tornou-se alvo de disputas. Sen-do assim, os países chamados (eufemisticamente) de emergentes, dentre eles o Brasil, depositários de grande parte desta biodiversidade, adquiriram maior relevância no quadro internacional, algo que resultou em uma pressão exter-na por ações efetivas de proteção à natureza sobre os governos destes países (IRVING, GIULIANI & LOUREIRO, 2008). Destacam-se, nos mesmos, gra-ves cenários de distribuição desigual de riqueza e poder, aprofundados pela imposição de políticas liberais e neoliberais implementadas nestes países, ao longo do século XX, com reflexos na estrutura social, cultural e nas condições ambientais.

As políticas de preservação aplicadas em países como o Brasil seguiram o modelo formulado pelos países desenvolvidos. No entanto, no centro destas práticas surgiram debates frente à impossibilidade de preservação da biodiversi-dade desarticulada das realidades locais, marcadas pela pobreza e desigualdades sociais profundas (SANTILLI, 2005). Neste sentido, um projeto de proteção da natureza deveria incluir a promoção de valores como justiça social e redução da pobreza (ibid). Mais do que isso, deveria abarcar a sociodiversidade local, a partir da compreensão do papel desta na promoção e manutenção da bio-diversidade (CASTRO, 2000). A tentativa de transposição de um modelo de conservação advindo dos países desenvolvidos do norte para os países do sul,

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marcados por realidades sociais, econômicas, históricas, culturais e ecológicas profundamente distintas, explicitou a inadequação do mesmo para a efetiva proteção da natureza nos trópicos, além do seu caráter injusto frente aos gru-pos locais habitantes e vizinhos das áreas protegidas.

O modelo mais difundido para a dita “preservação da natureza” foi o de proteção integral dos recursos naturais, principalmente na forma de parques, amparado por uma visão biologicizada da natureza e calcado na crença de que a biodiversidade só poderia ser promovida pelo mundo natural se deixada livre da ação humana (DIEGUES, 2000). Sendo assim, a presença humana dentro dos parques foi restrita ao seu uso recreativo e para fins educacionais e cientí-ficos, o que levou à exclusão de populações humanas residentes nestes espaços e à imposição de uma série de restrições de uso do território e dos recursos naturais ali presentes.

No contexto brasileiro, existe uma ampla legislação destinada à regulação do meio ambiente, incluindo um conjunto de leis voltado para a preservação dos recursos ambientais, com destaque para o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC (BRASIL, 2000), responsável por estabelecer critérios e normas para a criação, implantação e gestão das Unidades de Conservação (UCs). Estas dividem-se em dois subgrupos – proteção integral e uso sustentá-vel – dentre os quais se encontram distintas categorias destinadas a fins diver-sificados. A diferença básica entre as UCs de uso sustentável e as de proteção integral é que a primeira permite o manejo dos recursos naturais (uso direto), desde que realizado por meio de práticas sustentáveis, enquanto a segunda o proíbe. Dentre as UCs de proteção integral (ou de uso indireto), destacamos a categoria dos parques nacionais, na qual as intervenções humanas permitidas são apenas a pesquisa científica, a educação ambiental e o turismo. Por outro lado, encontra-se proibido qualquer tipo de manejo dos ambientes naturais, assim como a fixação de residência em seu interior.

Considerando-se a relação de estreita dependência com relação à nature-za estabelecida pelas populações tradicionais, naturalmente que a implementa-ção de um projeto hegemônico de preservação restrito às sociedades modernas capitalistas por meio do aparato jurídico-formal estatal foi responsável pelo surgimento de uma série de conflitos pelo uso dos recursos naturais e apro-priação do território, envolvendo principalmente as populações do entorno e residentes no interior destas áreas protegidas. Neste processo, coube a estas populações o papel de principal ameaça à preservação dos ambientes naturais dada a desconsideração de suas respectivas racionalidades e formas sociocul-turais específicas, assim como suas construções de sentido. Por outro lado, do

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ponto de vista das populações atingidas, estes novos espaços de proteção à bio-diversidade passaram a ser concebidos como mais uma tentativa de usurpação dos seus territórios e direitos, uma vez que grande parte dos benefícios deste modelo de preservação visa privilegiar grupos externos às realidades locais. Desta forma, passaram a sentir-se “encurralados” tanto pelo modelo de ocu-pação predatório em expansão, quanto pelo modelo de conservação ambiental vigente (ARRUDA, 2000). O processo de encurralamento experienciado pe-las populações inseridas no interior e entorno das áreas protegidas se dá por meio de ações físicas (proibições, processos, prisões) e simbólicas (marginali-zação de certas práticas culturais, como, por exemplo, a caça e o uso do fogo, desvalorização do seu papel no manejo da natureza, profusão do discurso da universalidade da causa ambiental, da escassez de recursos naturais e do teor predatório das práticas humanas no ambiente) que, por sua vez, apresentam, de forma recorrente, novas explicações para os fatos e forjam uma outra compre-ensão do real. Portanto, ao invés de mera incapacidade para o consenso, estes conflitos logo explicitaram o embate entre distintos modos de vida e projetos de sociedade, assim como a base desigual de poder sobre a qual se assentam os distintos grupos.

O CASO DE ITAÚNAS: CONFLITOS AMBIENTAIS PELA APROPRIAÇÃO DO TERRITÓRIO

A partir dos relatos das populações pesquisadas (HACON, 2011), a criação do PEI, ao invés de uma aparente vitória sobre a tentativa de apropria-ção privada do espaço de uso comunal da população, na prática, traduziu-se no desprezo ao universo cultural local e ao papel central ocupado pela natureza na reprodução física e simbólica da população. Neste sentido, a criação do PEI, juntamente com as leis que o acompanharam, veio reiterar a invisibilidade das populações tradicionais locais – que há gerações vinham desenvolvendo-se nestes espaços, usufruindo destes para a sua sobrevivência e reprodução cultu-ral – na medida em que privou-as do uso dos recursos naturais e dos territórios comunais. Considerando-se o histórico de perdas vivido pelos moradores de Itaúnas, marcado pelo soterramento da antiga Vila de Itaúnas no período de 1930 a 1970, e pela perda sistemática das suas terras, florestas, rios, alimentos, práticas culturais e autonomia no uso do território em função, principalmente, da implantação da agroindústria da celulose na região em fins de 1960, a insti-tuição do PEI simbolizou a sobreposição de mais um território, desta vez na figura do Estado, em nome da proteção de um bem difuso – o meio ambiente

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–, sob o discurso homogeneizador da sociedade. Considerando-se que a socie-dade não se constitui de um todo uniforme e sim de partes com interesses dis-tintos e conteúdos socioculturais diferenciados, a instituição do PEI significou a imposição de uma determinada racionalidade forjada no âmbito da sociedade urbano-industrial ocidental, particular a determinado modo de vida contrário ao engendrado pelas populações locais. Os conflitos resultantes deste processo elevaram a população local ao posto de principal ameaça aos recursos do PEI, uma vez que o uso que faziam da natureza contrapunha-se diretamente às no-vas regras de ordenamento deste território.

Cientes da inadequação do modelo de proteção da natureza implemen-tado em Itaúnas, os moradores locais insistem em ressaltar não apenas a centra-lidade dos ambientes naturais no seu modo de vida como também o contexto histórico de transformação da região, que levou parte dos seus hábitos culturais a serem resignificados como práticas prejudiciais à conservação da natureza e inclusive proibidas por lei. O caso da criminalização da caça, uma das práticas mais marcantes na cultura local, é bastante emblemático deste contexto uma vez que a sua mudança de status de prática historicamente responsável pela subsistência (juntamente com a pesca e/ou a pequena agricultura) para ato criminoso altamente impactante para o meio ambiente natural deveu-se à redu-ção drástica da cobertura vegetal nativa e recursos faunísticos desta região, em virtude da introdução de novas formas de exploração do território, baseadas na lógica capitalista de produção.

Deste modo, é de extrema importância a identificação dos impactos cau-sados pela implantação da agroindústria da celulose e, em menor escala, da ca-na-de-açúcar nesta região; de seus efeitos devastadores sobre o meio ambiente e dos desdobramentos sobre o modo de vida local, assim como a contextuali-zação histórico-social desta atividade uma vez que a compreensão deste quadro auxilia o entendimento dos conflitos aparentemente restritos apenas à esfera do PEI. Os relatos a respeito do tema salientam os impactos qualitativos e quanti-tativos sobre os recursos hídricos, explícitos no desaparecimento de córregos, rios e lagoas em função da ocupação ilegal das matas ciliares por plantações de eucalipto, assim como na redução dos recursos pesqueiros e mudanças nas características físico-químicas das águas, fruto do vasto uso de agrotóxicos nas monoculturas de eucalipto assim como do despejo de vinhoto, resultante da produção alcooleira, nos rios, além do abandono de resíduos tóxicos em suas margens. Destacam-se neste processo as pressões sobre os ecossistemas do PEI, cujas transformações afetam diretamente as populações locais – inclusive do ponto de vista da sua saúde – dado o uso que fazem dos ambientes naturais.

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Aponta-se ainda para a perda de biodiversidade acarretada pela substituição da floresta nativa por monoculturas de eucalipto, evidente na redução da quanti-dade de animais outrora observados. Relatos referentes à fartura das matas e à abundância das “caças” existentes no passado contrapõem-se ao cenário de escassez de terras e recursos naturais hoje descrito e evidente. Neste sentido, os moradores locais insistem em reiterar que tal escassez resultou de uma determi-nada forma de utilização do espaço radicalmente oposta às práticas tradicionais locais, responsável por afetar o seu modo de vida de forma direta (por meio da perda de territórios comunais e degradação dos recursos naturais) e indireta (através da emergência da instituição de uma área protegida no local, acompa-nhada de medidas radicais de preservação dos recursos naturais, em virtude das condições ambientais regionais já bastante prejudicadas). Procuram, portanto, relativizar o papel dos distintos atores nesse processo por meio da diferencia-ção de suas práticas e respectivos efeitos no ambiente.

Frente a esta conjuntura, a figura do Estado evidencia-se, uma vez que é o agente oficial responsável pelo controle, ordenamento e gestão do espaço, visa ao “benefício público.” Portanto, dada a hegemonia do Estado-nação e suas formas de territorialidade na delimitação das fronteiras, cabe ao Estado definir as regras de uso dos recursos naturais e apropriação do território por meio das políticas de desenvolvimento assim como as de preservação ambiental, ou seja, políticas de controle sobre o território. Considerando, primeiramente, o papel do Estado na viabilização da implantação das monoculturas de eucalipto a partir de fins da década de 1960, no norte do Espírito Santo, as populações locais correlacionam a devastação ocasionada pelas empresas de celulose à ação permissiva do Estado, por meio da oferta de terras devolutas e, inclusive, incen-tivos fiscais e financeiros ainda hoje direcionados para este setor. Neste sentido, questionam a postura de um Estado que licencia, incentiva e legitima empreen-dimentos de grande impacto ambiental e, concomitantemente, apropria-se de um discurso preservacionista apoiado na criação de UCs de proteção integral – como no caso do PEI –, infligindo duplamente restrições à organização e reprodução social, econômica e cultural local. Em oposição ao uso comunal da terra praticado pelas populações locais, o Estado, por meio da implementação de determinadas políticas públicas, privilegia ora o capital privado e a apropria-ção privada da terra, ora uma suposta apropriação pública da terra, na forma de parque estadual, que, no entanto, traduz-se no uso particularizado deste es-paço, voltado para a atividade recreativa, mediado principalmente pelo turismo. Essa nova configuração do espaço baseada na lógica privatizante capitalista modifica, ainda, o teor da relação estabelecida entre homem e natureza: de pro-

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dutores do espaço passam à categoria de consumidores (PEREIRA, 2005). Ao contrário da lógica privatizante do espaço, reproduzida, inclusive, pelo modelo de conservação, os povos tradicionais ensejam uma territorialidade para além da propriedade privada da terra, baseada no seu uso comunal, além de estabe-lecerem práticas essencialmente conservacionistas no seu trato do ambiente (ainda que não utilizem estes termos propriamente). Trata-se, neste caso, de um episódio de injustiça ambiental, dado que uma parcela desproporcional das consequências negativas resultantes da execução de políticas públicas voltadas para o ordenamento territorial é imposta a segmentos mais vulneráveis da so-ciedade, assim como de uma medida classista e particularista, uma vez que visa atender interesses particulares de determinados grupos sociais que, no entanto, logram afirmá-los como universais. As críticas neste sentido abarcam desde a inviabilização de um modo de vida, constituintes de uma diversidade cultural com o seu valor intrínseco, até a transferência da função e responsabilidade em “salvar o planeta” para as comunidades inseridas dentro das áreas protegidas ou vizinhas a elas. Tal transferência seria considerada injusta na medida em que grande parte dos processos geradores dos desequilíbrios hoje constatados no ambiente como um todo foram resultado de um modelo de desenvolvimento oriundo das sociedades industriais capitalistas e do seu uso e significação da natureza. Portanto, a imposição de uma área protegida – acompanhada de suas restrições – a grupos sociais cuja identidade está centrada na relação estreita com os ambientes naturais, sob o argumento preservacionista, desconsidera os diversos significados atribuídos à natureza, assim como as distintas práticas materiais e culturais que, no seu cerne, expressam uma pluralidade de propostas de sustentabilidade.

Outro importante fator de conflito identificado nas entrevistas realiza-das relaciona-se à remoção de populações tradicionais do interior do PEI. Esta estratégia constitui-se como uma das principais e mais controversas diretrizes na instituição de UCs de proteção integral, na medida em que reafirma a cisão sociedade-natureza. Em Itaúnas, o projeto de remoção e reassentamento é vis-to com apreensão e repudiado pelos moradores passíveis de realocação. Estes argumentam que habitam esta região há gerações e, portanto, possuem o direi-to de permanecer no seu território de origem. Além disso, não identificam nas suas práticas tradicionais de subsistência fatores de pressão significativos sobre os recursos da UC, ao contrário das atividades econômicas de grande porte de-senvolvidas nas imediações do PEI. A ausência de informações precisas aliada às inúmeras tentativas de retirada das populações tradicionais do interior do PEI e ao projeto contido no Plano de Manejo da UC – que prevê a construção

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de um estacionamento nesta área após o deslocamento da população – contri-buem para gerar instabilidade e desconfiança em relação à gestão do PEI.

Talvez uma das principais e mais graves consequências da efetivação deste processo em Itaúnas seja a desterritorialização de grupos que constituem e reafirmam a sua identidade a partir da relação material e simbólica com o território, segundo um conjunto de práticas sociais, econômicas, culturais, re-ligiosas etc. Para estes, a perda do território traduz-se na impossibilidade de reprodução social da vida segundo determinado conjunto de hábitos que, por sua vez, acarreta no rompimento de determinadas construções identitárias e, consequentemente, na possível redução de um inventário cultural fundamental à sua existência, conforme sinalizam os depoimentos relativos à produção de artesanato por parte de alguns moradores residentes no interior do PEI. Os mesmos atentam para a possível interrupção de tais práticas em virtude do des-locamento de um espaço imbuído de significados e representações, responsável ainda por conferir-lhes certa autonomia no uso dos ambientes naturais.

Ressalta-se que o projeto de remoção de populações tradicionais do in-terior de UCs vai contra o proposto pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT (BRASIL, 2007), que tem dentre os seus princípios o reconhecimento, a proteção, o fortaleci-mento e a garantia dos direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais dos povos e comunidades tradicionais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições. O uso privile-giado de determinados instrumentos legais em detrimento de outros capazes de assegurar o reconhecimento e a consolidação dos direitos dos povos e co-munidades tradicionais – como parece ser o caso da postura administrativa do PEI, cujas ações norteiam-se majoritariamente pelo Sistema Nacional de Uni-dades de Conservação - SNUC (BRASIL, 2000; BRASIL, 2002) sem menções à PNPCT (BRASIL, 2007) – denunciam não apenas o já referido legalismo por parte da gestão, mas ainda uma abordagem dicotomizada da relação sociedade--natureza pautada na dissociabilidade entre natureza e cultura.

As perdas culturais oriundas da desterritorialização de determinados grupos possuem reflexos ainda na qualidade dos ambientes naturais, em virtude da forma como as populações tradicionais apropriam-se e manejam os recur-sos, promovendo, inclusive, o aumento da biodiversidade (GÓMEZ-POMPA & KAUS, 2000; DIEGUES, 2000). A interrupção de determinadas práticas baseadas em conhecimentos tradicionais, seja pela remoção forçada de seus territórios originais, seja pela proibição ao uso ou deterioração dos recursos naturais, culmina na perda deste arcabouço cultural que reúne saberes respecti-

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vos à proteção, manutenção e restauração do mundo natural. Os relatos, prin-cipalmente dos moradores mais antigos, permitem conhecer parte deste saber local em Itaúnas arraigado em uma experiência produtiva secular junto aos ambientes naturais, reiterada na prática cotidiana. Atenta-se ainda para o risco do rompimento de laços territoriais e identitários das populações tradicionais, uma vez que o desajuste da organização social e produtiva às estruturas ecoló-gicas de seu ambiente resulta na desestruturação dos ecossistemas produtivos e na superexploração dos recursos naturais, ocasionando o uso excessivo da terra e a degradação do ambiente (LEFF, 2000). Desta forma, os objetivos de preservação se frustram, acarretando prejuízos tanto à biodiversidade quanto àqueles que nela fundam e, a partir dela, recriam a sua sociodiversidade. Nesse sentido, a proteção à biodiversidade não pode ser pensada apartada das condi-ções sociais e culturais locais, sendo fundamental para o sucesso deste processo a criação de condições mais justas, inclusivas e democráticas de acesso aos re-cursos naturais e distribuição do ônus da degradação (ZHOURI ET AL, 2005; ARRUDA, 2000).

Acredita-se que Itaúnas esteja em um momento de transição, no qual convivem formas arcaicas e mais modernas de reprodução e desenvolvimento, acentuadas de forma sazonal em função da alta ou baixa temporada do turis-mo. Não se sabe ao certo se o equilíbrio apresentado com a natureza, norteado pelos traços culturais tradicionais locais, permanecerão nestas circunstâncias de transformação e desestruturação cultural. Neste sentido, reafirma-se a neces-sidade de valorização da diversidade sociocultural nas estratégias de proteção da natureza, conforme apontado por convenções internacionais e ratificado por políticas nacionais brasileiras (UNESCO, 2005; BRASIL, 2007, 2006, 1998, 1988).

CONSIDERAÇõES FINAIS A emergência dos conflitos ambientais em Itaúnas contribui para colocar

a chamada questão ambiental em perspectiva, desmitificando a sua universa-lidade anunciada. Ao contrário, afirma-se que esta questão localiza-se em um espaço social heterogêneo e desigual – do ponto de vista do poder econômico, político e ideológico dos agentes –, marcado por conteúdos socioculturais di-ferenciados, para o qual encontram-se em disputa “projetos, sentidos e fins” distintos (ACSELRAD, 2004a). Sendo assim, os conflitos apontam para lutas que ultrapassam a esfera material e adentram a dimensão da construção dis-

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cursiva do problema. Ressalta-se que esta construção é mediada por agentes sociais com meios e fins diversos, assentados sobre uma matriz desigual de poder e possibilidades de legitimação de discursos, que se enfrentarão neste campo de forças em busca de hegemonia. O Estado insere-se neste contexto como o agente oficial responsável por concentrar, processar e redistribuir in-formações, assim como controlar, estruturar e gerir o território nacional. Deste modo, torna-se capaz de impor formas de ordenamento do mundo, tangen-ciando tanto a esfera material quanto a simbólica da vida, configurando-se, portanto, como o lugar por excelência da concentração e do exercício do poder simbólico (BOURDIEU, 1994). Ao instituir legalmente espaços de proteção ambiental que aprofundam determinadas desigualdades e relegam à população local o ônus da preservação assim como a responsabilidade histórica por de-gradar e, posteriormente, preservar os ambientes naturais, o Estado expressa o projeto de uma classe em tornar hegemônicos os seus valores e interesses na medida em que distribui os benefícios da preservação do meio ambiente de forma desigual (FUKS, 2001).

A complicada matriz observada em Itaúnas – composta, em nível local, por um cenário histórico de exploração e esgotamento dos recursos naturais em virtude da lógica de produção capitalista do espaço imposta por agentes externos; e pela criação de uma UC de proteção integral, em 1991, acompa-nhada de suas respectivas regras de ordenamento do território – conjugada, no contexto global, com uma política ambiental que, nas suas ações, insiste muitas vezes em desconsiderar o olhar e o saber local através da imposição de um mo-delo de conservação que, como atestado pelo caso do PEI, mostra-se ineficaz para a realidade brasileira, tanto do ponto de vista social quanto ambiental, configura atualmente os pilares dos conflitos relacionados ao Parque Estadual de Itaúnas. Tal cenário não parece contribuir nem para a dita “proteção da na-tureza” – uma vez que, apesar do reconhecimento da importância da UC pela comunidade, não tem sua gestão apoiada por ela –, nem para o bem-estar da comunidade, que cada vez mais parece se sentir acuada no seu próprio lugar, alheia a todo o processo de conservação de um território e uma mata que um dia foram seus.

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Notas de pesquisa

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a PaSToraL ruraL da dIoCESE dE aLaGoINHaS E a CrIação do STr dE aLaGoINHaS E araMarI No

CoNTEXTo da dITadura MILITar (1977-1985)

GUTEMBERG ARMANDO DINIZ GUERRAUniversidade Federal do Pará

[email protected]

INTRODUÇÃO

A memória é a matéria prima deste artigo, ativada pelas anotações feitas em cadernos, agendas, fotografias de época, voltas aos lugares onde os fatos se desenrolaram e retomadas de contatos com protagonistas da prática des-crita e analisada ao longo deste texto. Ao mobilizar pessoas que conviveram nos mesmos espaços e acontecimentos comuns, a partir da manifestação de indivíduos, a dimensão coletiva da memória se projeta (HALBWACHS, 2006; HALBWACHS apud CAVALLI, 2004). Foi principalmente a volta aos espaços onde esta história aconteceu que permitiu o primeiro esboço escrito, como se cada elemento presente ou rememorado falasse por si mesmo. A ordem das idéias nem sempre era precisa, e nem sempre a memória individual foi suficien-te para dar certeza do que fora resgatado no primeiro esboço. “Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade” (HALBWACHS, 2006, p. 72). Recorreu-se à ata da fundação do STR (1979), encontrada como fotocópia na mão do seu primeiro presidente para dar precisão histórica ao relato, mas há lacunas que não cabem no registro oficial. A busca se estendeu aos colegas de pastoral dispersos no espaço, no tempo e na condição social modificada. Benoni Leys, licenciado da ordem sa-cerdotal, contribuiu precisando a importancia da pastoral rural. André de Wit-te, sagrado bispo, por telefone e mensagem eletrônica, reavivou fatos vividos conjuntamente com os sindicalistas e agentes da pastoral e relatou incidentes protagonizados por ele mesmo em sua ação missionária. O interesse comum de apoio à organização camponesa que unira advogado, técnico e religiosos no passado continua como amálgama do espaço e tempo em que estiveram juntos. A referência a este período e a este espaço são as âncoras que os permitem reinterpretar o passado, com um distanciamento crítico ao mesmo tempo que

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com um engajamento emocional que exige vigilancia e o apelo à consciencia das possíveis armadilhas do comprometimento pessoal com aquelas vivências (ELIAS, 1993).

Identifica-se claramente, após o relato, um território mutante e comple-xificado pela entrada de novos objetos e atores representantes de setores do capital imobiliário, hoteleiro e agropecuário. Carregados do fetichismo de ser mercadoria (MARX, 1985, p. 79) a modernização da agricultura ganha vida e determina ritmos aos que a ela estejam subordinados. A Bahia é um dos esta-dos em que a emigração se acentua neste período identificado como técnico--científico justamente por esta carga de insumos que se agregam à atividade agríçola (SANTOS, SILVEIRA, 48 e 49). Estas são as contribuições possíveis deste exercício de reinterpretação histórica, à posteriori, com a força do vivido, protagonizado pelos mesmos que a relata. Está inserido na história social do campesinato brasileiro, construída a partir de dentro e não de um enquadra-mento meramente conceitual e a priori.

Esta é, pois, uma história de fatos narrados por aqueles que a viven-ciaram, partilhada com dúvidas e certezas, confianças e desconfianças, todas produto do potencial e dos limites da memória individual, coletiva e histórica a que se refere Halbwachs (2006).

o CLEro da dIoCESE dE aLaGoINHaS ENTrE a TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E O CONSERVADORISMO

O Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR) de Alagoinhas e Aramari, Bahia, foi fundado em 16 de Dezembro de 1979, na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas, situada à Praça Rui Barbosa. Este STR constitui--se em marco da reorganização dos trabalhadores rurais do município e região, fortemente reprimidos durante todo o período militar. Embora Alagoinhas e Aramari não fossem enquadrados como municípios de área de segurança na-cional, pelo fato de existir, um Batalhão de Remuniciamento do Exército Bra-sileiro (em Alagoinhas), reconhecidos militantes comunistas se encontrarem ativos tanto em Alagoinhas quanto em Aramari, e ser área estratégica de acesso ao sertão baiano, sempre houve um controle efetivo das forças conservadoras sobre a política daqueles municípios. A sede da diocese era expressão da pola-ridade exercida pelo município de Alagoinhas, tanto do ponto de vista religioso quanto político, social e econômico.

Os marcos de uma militancia religiosa calcada na Teologia da Libertação já estava em curso na Diocese de Alagoinhas, ainda que nem todos os religiosos

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atuantes neste espaço se filiassem a esta linha de ação. Podia-se reconhecer na prática religiosa os que trabalhavam na perspectiva da transformação do mun-do em reino de Deus, com a vida digna (BOFF, 1980) e os que seguiam uma linha ritual, cuja mística se projetava em um mundo de felicidade possível de ser vivido apenas póst mortem. Perani (1979) reflete sobre as Comunidades Ecle-siais de Base demonstrando a sua diversidade e a renovação da prática pastoral naquele período.

Durante o processo de mobilização para fundação do STR de Alagoi-nhas e Aramari, veio à tona a história de vários militantes sindicais e comu-nistas presos, vivendo na clandestinidade ou no exílio durante a repressão no período militar. A repressão a uma organização de lavradores e trabalhadores agrícolas no Distrito de Boa União foi relatada por fontes locais. Uma fazenda abandonada teria sido apropriada coletivamente na década de 60 do século XX, por um grupo de moradores do entorno e que nela fizeram roças. O proprie-tário, ausente até então, enviara milícia particular para expulsar os posseiros, destruindo as plantações, humilhando os camponeses que foram encontrados na área, aprisionando-os, raspando-lhes as cabeças e untando-lhas com visgo de jaca. Da resistência dos posseiros surgiu uma organização, com estrutura formal, estatuto e prática regular de reuniões, da qual cheguei a ver o estatuto impresso, em mãos de um dos seus membros. Esta organização teria sido des-truída após o golpe de 1964 e sua liderança dispersa pela ameaça de prisão. Na assembléia de fundação do STR, um senhor até então desconhecido pediu a palavra, fez um discurso politizado, sem que houvesse registro com precisão da sua participação na construção daquele evento.

Havia, à época, apenas o STR de Mata de São João, sem representação sindical nos outros municípios. A história do STR de Alagoinhas e Aramari começa, efetivamente, com o apoio do Bispo Dom José Floriberto Cornelis aos camponeses que estavam sofrendo franco processo de expulsão de suas terras pelos projetos instalados na jurisdição de sua diocese. Belga de nasci-mento, Dom José exercera o sacerdócio no Congo, até a ascensão de Mobuto Sese Seko ao poder em 1960. Compondo a lista dos que seriam executados, por representarem oposição ou crítica ao líder em ascensão naquele país, alertado por um fiel, o religioso evadira-se em uma canoa, coberto de bananas (Comu-nicação oral a Gutemberg Guerra, em 1979). Ex-arcebispo de Lubumbashi (Elisabethville no Katanga congolês), foi acolhido como auxiliar na Arquidio-cese de Salvador na Bahia e se transformaou no primeiro bispo da Diocese de Alagoinhas entre 1974 e 1986 (BEOZZO, 2011).

Faziam parte da Pastoral Rural desta Diocese os padres Geraldo Bran-

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dstetter, Benoni Leys e André de Witte, a irmã Sara, a enfermeiras Hilda e Catarine, o advogado Nelson Silvério de Santana e o engenheiro agrônomo Gutemberg Armando Diniz Guerra, contando oito pessoas diretamente envol-vidas neste trabalho.

METODODOLOGIAS TECNOLÓGICAS CONCORRENTES: dIoCESE, EMPrESaS dE rEFLorESTaMENTo, EMbraPa, EMaTEr E GrILEIroS.

Financiamentos subsidiados por programas de modernização da agricul-tura brasileira, implantação de grandes áreas de Reflorestamento e a abertura da Estrada BA-099, chamada Linha Verde, ligando Salvador à Aracaju pelo litoral, foram fatos que implicaram na valorização, apropriação de terras por fazendeiros, empresas nacionais e internacionais com a expulsão de campone-ses, posseiros presentes nos diversos municípios da diocese de Alagoinhas. A identificação e descrição destes atores em interação remetem à idéia de espaço explictada por Milton Santos. Além da paisagem constituída pelas “formas que exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza” o espaço incorpora “a vida que as anima” (SANTOS, 2006; p. 103).

Parte das terras desta faixa de agreste, identificada como terra de transi-ção entre o litoral e o sertão, conhecidas como terras de tabuleiro, eram consi-deradas fracas e impróprias para a agricultura até o início dos anos 60 do século XX. Nestas terras se produzia gado bovino e caprino, em regime extensivo, em que as cercas eram ocasionais. Os empréstimos oficiais feitos a juros baixos e negativos possibilitaram o cercamento e aplicação de tecnologias que viabiliza-ram a modernização dos empreendimentos. A terra se transformou em mer-cadoria com a exigência de regularização fundiária e instrumento de hipoteca para garantir empréstimos bancários. A valorização das terras promoveu a in-tensificação da grilagem e inaugura um novo período, “portador de um sentido, partilhado pelo espaço e pela sociedade, representativo da forma como a histó-ria realiza as promessas da técnica” (SANTOS, 2006, p. 141), como se fossem elas inexoráveis. Pode-se fazer uma analogia desta periodização proposta por Milton Santos com a materialização da Revolução Verde no Brasil, a partir da década de 1970, quando se intensifica a modernização da agricultura brasileira.

A mediação (NEVES, 2008) da Igreja Católica consistiu em estabelecer um canal de interlocução e negociação para que a expropriação dos camponeses e a instalação dos novos atores não ocorresse de forma violenta (Comunicação

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oral de Dom José Cornellis a Gutemberg Guerra e Nelson Silvério, em 1979). Havia, da parte da diocese, consciência de que era inevitável que muitos seriam excluídos, mas lutava para que os pequenos – conscientes, organizados – de-fendessem os seus direitos e se possível, ficassem em suas terras. Cabia à Igreja, segundo Dom José, mediar as negociações e evitar a violência. Segundo André de Witte, à época pároco de Inhambupe, em Comunicação via email para Gu-temberg Guerra, em 26/01/2011), a disposição era não apenas para negocia-ções, mas de resistência e luta para que os pequenos agricultores continuassem na terra com os seus direitos respeitados. A fórmula proposta pelo bispo Dom Cornelis era a criação de sindicatos de trabalhadores rurais, o que seria apoiado pela Pastoral Rural de forma concreta nos 23 municípios que compunham a área de sua jurisdição: Acajutiba, Alagoinhas, Aporá, Aramarí, Cardeal da Silva, Catu, Cipó, Conde, Entre Rios, Esplanada, Heliópolis, Inhambupe, Itanagra, Itapicurú, Jandaira, Mata de São João, Nova Soure, Olindina, Pojuca, Ribeira do Amparo, Rio Real, Sátiro Dias e Teodoro Sampaio (Figura 1).

O advogado Nelson Silvério de Santana e o agrônomo Gutemberg Ar-mando Diniz Guerra foram contratados para assessorar os camponeses nas disputas pela posse da terra, na qual a construção e organização sindical eram instrumentos fundamentais. O advogado era militante do Movimento Revo-lucionário 8 de Outubro, o MR8. O agrônomo não tinha filiação partidária,

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embora mantivesse diálogo e apoiasse ações militantes do MR8 e do Partido Comunista do Brasil, o PC do B, ambos na clandestinidade durante o regime militar. Convidado para integrar a equipe da pastoral diocesana, demitiu-se da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia, a EMATERBA, em 20 de junho e iniciou o contrato com a diocese no dia 1º de julho de 1979. Parte do que vai neste texto foi recuperado de lembranças apoiadas em anotações nas agendas pessoais e de trabalho. Reconhece-se a possibilidade de imprecisões e a parcialidade nestas anotações, feitas sem a intenção original de registro etno-gráfico, mas preciosas no que se refere ao apoio para a memória individual que se insere na reconstituição do processo histórico e coletivo vivido, tomando estes instrumentos emprestados do seu ambiente (HALBWACHS, 2006, p. 72),

Padres, religiosos e agentes pastorais se envolviam, em maior ou menor intensidade, no processo de mobilização dos trabalhadores rurais, conforme o enfoque de suas atividades: apoio à organização da produção e permanência na terra, saúde e juventude.

Embora contratado apenas por um ano, entre 1° de julho de 1979 e 31 de junho de 1980, o agrônomo vinha realizando trabalhos nas comunidades rurais juntamente com o Padre Geraldo Brandstetter, em parceria entre a Igreja e a EMATERBA. O Padre Geraldo tinha a prática de apoiar a formação de caixas agrícolas que consistiam na cotização entre os membros de uma ou mais comu-nidades1 para a realização de trabalhos coletivos como a produção e venda de derivados da mandioca (farinha e goma), perfuração de poços para o abasteci-mento de água nas residências, compra de material agrícola (adubos, sementes, máquinas e equipamentos). Em um dos casos, na Comunidade de Catuzinho, adquiriu-se um trator de pneus para serviços de transporte, aração e gradagem. Nos casos em que o fundo das cotizações era deficitário, solicitavam-se recur-sos a entidades filantrópicas nacionais (Legião Brasileira de Assistência - LBA) e estrangeiras (Misereor, Adveniat) para complementar e estimular as ações. O Padre Geraldo cumpria uma intensa agenda de visitas aos comunitários e tinha o hábito do registro das informações sobre cada uma das famílias que visitava ou das histórias que surgiam durante as reuniões promovidas para discutir pro-blemas do cotidiano rural. Dominava informações sobre as trajetórias familia-res, anotando sistemáticamente dados sobre migração, doença, conflitos intra e inter grupos familiares e de interesse. Tinha uma compreensão detalhada dos problemas no campo da diocese pela etnografia que fazia disciplinadamente. A

1 O que se denominava comunidades eram grupos de vizinhança e parentesco, agregadas em áreas con-tíguas ou próximas, que se reuniam para atividades religiosas e discutir problemas significativos do coti-diano.

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intercessão com o trabalho da EMATERBA surgiu com a expansão dos finan-ciamentos para pequenos agricultores no distrito de Quizambú, onde o agrô-nomo atuava como extensionista. Padre Geraldo e o advogado Nelson Silvério questionavam se o estímulo à especialização dos estabelecimentos no cultivo de laranja não tumultuaria a complexa organização da produção camponesa, implicando em uma dependência nociva, tornando os agricultores vulneráveis aos caprichos do mercado. O questionamento conduziu à moderação da intro-dução e fortalecimento do cultivo de citrus, de forma a que não desestruturasse o plantio de culturas brancas como o milho (Zea mays, L), o feijão (Phaseolus vulgaris, L), a mandioca (Manihot esculenta, Crantz), a melancia (Cucurbita citrullus), a abóbora (Cucurbita pepo, L.), o quiabo (Abelmoschus esculentus, L.) e outras volta-das para o consumo da família e para o mercado dos povoados e cidades mais próximas.

O ESTOPIM DAS CONTRADIÇõES

Vivia-se, no Brasil, o auge do processo de modernização da agricultura, com crédito agrícola e assistência técnica estruturados para apoiar a introdução de insumos modernos na agricultura e pecuária, deslocando a agricultura de subsistencia e mantendo o domínio do latifúndio (SILVA, 1980a e 1980b). Era crescente a influência do capital internacional na agricultura (ARROYO, 1979; AGUIAR, 1986). Em Alagoinhas, a Empresa de Assistencia Técnica e Exten-são Rural da Bahia - EMATERBA tinha um escritório local que abrangia os municípios de Alagoinhas, Aramari e Catu, voltado para bovinocultura, avicul-tura, suinocultura, citricultura e horticultura, sendo mais significativos os traba-lhos com gado bovino e citrus. A atividade dos técnicos da EMATER consistia na elaboração de planos de financiamento executados pelos bancos do Brasil, do Estado da Bahia, do Nordeste e Bradesco. Nestes planos se demonstrava a capacidade de reembolso do pleiteante, caso se aplicassem os procedimentos metodológicos recomendados pelos sistemas de produção elaborados e difun-didos pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA.

Em que pese os solos reconhecidamente fracos da Diocese de Alagoi-nhas, o cultivo de citrus se desenvolvia a contento, dando-lhe a reputação de maior produtora no estado. O Escritório Regional de Alagoinhas2, no período de 1978 a 1979 chegou a introduzir 410 mil laranjeiras, correspondendo à in-

2 Diferentemente do Escritório Local, o Escritório Regional cobria a área de dez municípios. Entre os citados e vinculados ao escritório local de Alagoinhas, havia os escritórios de Inhambupe, Entre Rios, Rio Real e Esplanada. Cada escritório abrigava um corpo técnico e administrativo composto de engenheiros agrônomos, médicos veterinários, técnicos agrícola e auxiliares de escritório.

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corporação de mais de 1400 hectares ao sistema produtivo regional. Neste mesmo período, a pressão de empresas reflorestadoras sobre o le-

gislativo estadual era no sentido de incluir aquela microrregião no zoneamento para a implantação da atividade florestal, o que de fato ocorreu e se constituiu em mais um elemento de disputa pela posse da terra. Plantios de pinus e euca-liptus passaram a fazer parte da paisagem regional desde esta época. Empre-gando quantidade significativa de operários agrícolas no período de implanta-ção dos plantios das empresas de reflorestamento, grande parte da mão de obra era dispensada no período de manutenção da silvicultura, fase menos exigente em trabalho humano, ocasionando levas de migrantes em busca de emprego ou inchando as periferias dos aglomerados urbanos. Agravando a situação, houve o caso de empresa reflorestadora instalada em Inhambupe que, ao final do pe-ríodo de implantação, deixou de pagar os operários e demitiu parte do quadro administrativo, deixando um problema social importante por causa das dívidas trabalhistas não pagas. Chamada para mediar o conflito, a paróquia de Inham-bupe, então representada pelos Padres Benoni Leys e André de Witte, através da Pastoral Rural da Diocese de Alagoinhas, acionaram o advogado Nelson Silvério de Santana para representar os trabalhadores frente à empresa e justiça, negociando o ressarcimento das dívidas. O problema, porém, não se esgotava no pagamento dos salários. Tendo vendido suas terras às próprias reflorestado-ras, os camponeses, após o período de assalariamento, não tinham mais onde instalar suas lavouras para consumo da família, sendo obrigados a migrar ou disputar as terras com os novos ocupantes.

De maior expressão, por conta de domínio histórico sobre a área, ainda que não nos moldes que se desenhavam, foi o processo de grilagem feita por fazendeiros de famílias tradicionais da região e categorias sociais emergentes. Com acesso aos financiamentos bancários e cartórios, iniciaram-se procedi-mentos de legalização de terras para dar-lhes o estatuto de hipotecáveis. O procedimento consistia em demandar o registro de área pleiteada ao Instituto de Terras da Bahia - ITERBA, para a qual se fazia divulgação em lugares como as sedes das prefeituras, no próprio cartório, ou na imprensa, em geral espaços pouco frequentados ou inacessíveis aos camponeses. Não havendo contesta-ção no prazo de um ano, procedia-se à demarcação e imissão de documento de propriedade. Nos casos em que havia contestação e se estabelecia processo litigioso, a intimidação era uma das estratégias mais comuns para levar a cabo o processo de exclusão dos camponeses. Seja por ameaças verbais e judiciais, seja pela agressão física, destruindo-se benfeitorias, espancando-se ou assas-sinando-se os posseiros, o constrangimento intencional visava desalojá-los e

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desmoralizar qualquer ação que lhes permitisse a permanência sobre a terra, ainda que esta já estivesse consolidada por direito histórico, juridicamente ca-racterizado (GUERRA, 1991). Este processo violento de ameaças e expulsões foi o mais forte elemento de mobilização dos camponeses para a fundação do STR de Alagoinhas e Aramari.

Posseiros da Fazenda Rio Branco sofreram agressão e reagiram procu-rando o apoio da diocese. Um deputado do Partido Democrático Social e um ex-delegado de polícia civil3, ameaçavam famílias residentes na área, intimando--as a se retirarem. Ergueram uma cerca envolvendo a área dos posseiros, o que foi de imediato rechaçado com a retirada das estacas e arame. Ameaça de morte com agressão física a um dos agricultores provocou indignação e uma carta foi enviada pelo bispo Don Cornelis à Assembléia Legislativa, denunciando os fatos. Lida pelo deputado Domingos Leonelli, do MDB4, a carta provocou a reação do deputado do PDS, com a denúncia da existência de uma quadrilha que furtava estacas de cerca e arame. Os camponeses, mobilizados pela Pastoral Rural da Diocese de Alagoinhas, com o apoio do Deputado Adelmo Oliveira, do MDB, presentes nas galerias da assembléia, reagiram aos berros de “men-tiroso!” para o deputado do PDS. Tomavam contato pela primeira vez com a batalha no legislativo e o aprendizado da política que se praticava no parlamen-to. Uma das lideranças deste grupo, Sr. Nezinho, foi assassinado a pauladas, quando se deslocava, de madrugada, de seu estabelecimento rural para a feira de Alagoinhas, em condições jamais esclarecidas.

O processo de intimidação não se restringia aos agricultores. O advo-gado passou a ser seguido por um Volkswagen azul, sempre que estava em Alagoinhas. O agrônomo teve dois parafusos retirados da roda do lado direito do seu carro, os outros dois folgados, e a tampa do tanque de gasolina retirado durante a noite, véspera da manhã em que viajaria para Salvador para participar da denúncia na Assembléia Legislativa relatada acima. Dias depois da denúncia, o ex-delegado esteve na diocese com um coronel reformado da Polícia Militar. Apresentado, o coronel pedia informações sobre como proceder para resolver um problema de demarcação de limite de seu estabelecimento rural com um vizinho, na mesma comunidade Rio Branco. Antes que fosse dada qualquer

3 A reputação do ex-delegado da Polícia Civil intimidava por si mesma. Expulso da corporação por in-disciplina, tinha sido citado por envolvimento no Crime da Lagoa do Abaeté, em Salvador, na década de 70, em que uma jovem fora assassinada e tivera um dos seios extirpado.

4 A proposta era de que o Deputado Marco Antunes, do MDB, eleito por votos de Alagoinhas, fosse o mensageiro do bispo lendo a carta. Para evitar confronto direto com Jairo Azzi, parlamentar adversário que tinha sua base eleitoral em Alagoinhas e era do Partido Democrático e Social - PDS), o Deputado Domingos Leonelli, do MDB, se dispôs a ler a carta, poupando o correligionário do enfrentamento.

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resposta, o ex-delegado ameaçou dar um tiro em quem estivesse alimentando a imprensa com informações falsas sobre ele e o deputado do PDS. Teve como resposta de que se atirasse, fosse para matar porque haveria revés, em caso de sobrevivência. O coronel, sentindo o clima de animosidade, se desculpou e se despediu. A secretária da diocese, presente na sala vizinha, sem que os con-tendores soubessem, ouviu a conversa e deu conhecimento do acontecido ao bispo.

Outros fatos estavam ligados ao projeto da BA-099, a Linha Verde que abriria uma das áreas mais valorizadas do litoral nordeste baiano ao capital imobiliário. Grupos empresariais investem na apropriação de terras com ex-pressões e registros de truculência. (SOUZA, 2009).

A Barreto de Araújo Imobiliária expulsa famílias de posseiros tanto do litoral destinado ao mercado hoteleiro e turístico quanto dos tabuleiros pleite-ados pelas empresas reflorestadoras, das quais este mesmo grupo econômico era acionista (SOUZA, 2009), merecendo trabalho intensivo de negociações e mediação pelos agentes da pastoral diocesana tanto quanto a mobilização de parlamentares e organizações de apoio da sociedade civil, como a Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATRBA) para tentar mi-nimizar e resistir ao elevado grau de agressividade e violência desta empresa. O processo de intimidação e resistência estava claramente manifestado.

a CrIação do SINdICaTo doS TrabaLHadorES RURAIS

A contratação do advogado, inicialmente para tratar de questões traba-lhistas isoladas, foi ganhando expressão quando os casos de grilagem começa-ram a se multiplicar. A proposição de criar um sindicato como instrumento de representação dos camponeses foi aceita e encampada pela diocese. Organizou--se uma agenda de reuniões nas comunidades5, com a presença do advogado, do agrônomo e dos agentes pastorais responsáveis ou em atuação em cada uma das áreas. Nestas reuniões, levantavam-se os problemas existentes que deman-davam a união das pessoas e encaminhava-se de imediato o que era necessário ser feito. Explicava-se qual era a função de um sindicato, como vinha ocorren-do nos outros municípios, reforçavam-se os aspectos legais da organização e demonstrava-se didaticamente o papel desta organização na representação dos seus associados.

A música era um instrumento importante no processo de mobilização.

5 Nas agendas de 1979, identifico registro de reuniões nas comunidades de Subauma Mirim...

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Em muitos casos entoavam-se hinos religiosos invocando-se inspiração6, mas buscavam-se letras propícias à reflexão e introduziam-se músicas de conteúdo social e didático. Era prática comum na diocese recorrer-se a impressos con-tendo letras de músicas que serviam para animar as reuniões e caminhadas (DIOCESE DE ALAGOINHAS, 1979).

Canto do Sindicato

Nelson Silvério de Santana7

Em 16 de Dezembro8 (Vamos nós trabalhadores)Caminhando em uniãoPara avançar em nossa lutaO sindicato organizarTrabalhadores, o sindicatoÉ nossa força É nossa vozO sindicato é união! O sindicato somos nós!

Hino do STr de alagoinhas

Abimael Rufino de Reis

Nós já temos sindicatoA maior organizaçãoSomos sócios de certezaLutaremos na defesaDessa grande populaçãoÉ o povo com o sindicatoÉ o sindicato com o povoNós queremos trabalhar

6 Em ambientes religiosos é comum a invocação ao Espírito Santo para iluminar a reflexão (“A nós descei, Divina Luz” é um exemplo).

7 Advogado contratado pela Diocese, Nelson Silvério de Santana apresentou esta música sem assumir a autoria, deixando sempre a dúvida se a composição era dele ou do pai, Nelson Babalaô, músico. Conside-ro a autoria de Nelson Silvério de Santana, por ter ele formação musical e ter apresentado a música que foi muito utilizada no processo de mobilização para a Fundação do STR.

8 Na letra original, antes da fundação do Sindicato, o verso era Em 16 de Dezembro, depois substituiu-se este verso por Vamos nós trabalhadores, para manter a atualidade da letra.

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E criar um mundo novoQue o pequeno tenha terraPra fazer a plantaçãoOnde não lhe falte nadaE ajude esta nação.

Uma coletânea de cânticos chegou a ser publicada pela Paróquia de Inhambupe (PASTORAL RURAL, s.d.). Foram identificadas pessoas com ha-bilidade para realizar o trabalho, compondo-se uma equipe de mobilização em que eram freqüentes, além do advogado, do agrônomo e dos agentes de pasto-ral, os agricultores Abimael Rufino de Reis, habitante do Estevão, João Batista de Santana, de Subaúma-mirim, e Vital Alves Dantas, de Boa União. Cada uma destas comunidades se encontrava em pontos distintos do território municipal, representando uma cobertura espacial ampla. Estes agricultores viriam a com-por a primeira diretoria do STR, Abimael como presidente, João Batista como secretário e Vital como tesoureiro. A comunidade do Estevão revelou-se parti-cularmente empolgada com a atividade musical, havendo, sempre, pessoas com instrumentos de corda e percussão para animar as reuniões. O princípio era o de reunir em todas as aglomerações caracterizadas como distritos, povoados, localidades, comunidades e arraiais que pudessem ser potencialmente bases da organização. Uma intensa agenda de reunião foi planejada e seguida para que no dia 16 de Dezembro de 1979 se concretizasse a fundação do STR.

A jornada do dia 23 de Setembro de 1979 foi um dos marcos do processo mobilizador para a fundação do STR. Depois de missa celebrada pelo bispo, na Catedral, uma caminhada foi programada para sair da Praça Rui Barbosa em direção à sede da diocese. Nem todos os padres estavam de acordo com a caminhada pelo caráter político que o ato vinha assumindo, fazendo resistência para que não acontecesse. Deve-se aqui, fazer referência às disputas conceituais que implicavam em longas discussões para envolvimento dos religiosos no pro-cesso. O termo caminhada, proposto pelos próprios religiosos, embora afirmas-se o caráter reivindicatório, guardava a idéia de manifestação pacífica a que se associavam as manifestações em voga no bojo da Teologia da Libertação. Era portanto um ato de característica contestatória, mas pacífica, de trabalhadores rurais, na cidade, em que eles diriam o que eram e o que pleiteavam dos poderes públicos. Não se tratava de uma procissão, cortejo comum das manifestações re-ligiosas, em que se percorre um determinado trajeto, rezando-se e cantando-se em louvor a um santo, ou rememorando um evento religioso. O termo passeata estava marcado pelas manifestações de resistência estudantil e operária à dita-

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dura militar nos anos 1960, e tinha forte conotação política. Embora o MR8 estivesse na clandestinidade, sabia-se que o advogado da diocese militava nesta organização, pelo fato de ser responsável pela distribuição do jornal Hora do Povo, vendido em uma das bancas do centro da cidade, e por assumir a repre-sentação de sua tendência política nas reuniões públicas e partidárias em que a esquerda se congregava para articular atividades de resistência política ao regi-me ditatorial vigente. As propostas vindas do advogado eram, portanto, iden-tificadas como propostas do MR8, pertinentes dentro do quadro de abertura política da época. A caminhada tinha sido proposta originalmente para o dia 25 de Julho, dia do Trabalhador Rural, mas por conta de ser período chuvoso e de estar muito longe da data proposta de fundação do STR, acordou-se que a manifestação seria no mês de setembro, ficando o dia 23 de setembro como indicativo daquele evento. Havia o argumento de que o dia 25 de julho tinha sido proposto pelo regime militar enquanto o 23 de setembro era próximo das manifestações feitas para lembrar o assassinato, em 22 de setembro de 1977, do advogado de posseiros, Eugenio Lyra, em Santa Maria da Vitória.

O veículo do agrônomo, com alto-falante e um microfone, estava à dis-posição dos manifestantes. Os padres imprimiram e fizeram distribuir os cânti-cos: A Terra é de todos, A vida que a gente vive, Eles queriam um grande rei, Barbaridade, Eu quero ouvir a voz do povo, Eu não sou tapete, Eu sou roceiro e o Canto do Sindicato. A praça encheu-se de pessoas vindas de diversos pontos do município e da dio-cese. O caráter dos hinos era, como se pode verificar, de afirmação identitária e com forte teor de protesto contra a situação em que viviam de disputa pela terra e pelo reconhecimento dos camponeses enquanto cidadãos.

Um dos caminhões, vindo do Riacho da Guia, com uma faixa pleiteando escola, foi interceptado pela polícia, dentro da cidade, e levado para a delegacia. Segundo o Padre André, não havia permissão da polícia para o uso de faixas alusivas ao que quer que fosse. O jovem motorista rebelou-se e foi preso. A poucos metros da praça onde ocorria a concentração, o advogado e o padre André foram avisados e se deslocaram para negociar a liberação do veículo e do motorista. O padre André narra o incidente:

“Na primeira parada, na praça, vieram avisar que um caminhão que ainda estava com faixa e teve o motorista preso. Fui com Nelson (o advogado) para a delegacia. O delegado que desceu da escada, de bermuda veio logo aos gritos: “ Que é isto aqui?”Aí falaram que alguém ficou preso. E o homem ainda estava lá. O delegado mandou botar atrás das grades. Nelson falou: Eu sou o advogado da diocese.

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O delegado: Você, advogado. Não dá para ver (racismo!). Se legitime!Penso que se não tivesse com que9, iria preso, sim. Nelson subiu com o delegado. Eu ia atrás. Na porta um policial perguntou: E este? O delegado: Só chamei um!.Aí saí e fui telefonar a Dom José”.

Depois de troca de argumentos, padre, advogado, motorista e veículos foram liberados, sem a faixa com reivindicação por escola. Este fato acirrou os ânimos e as tensões.

Na Praça, Abimael Rufino liderava a manifestação, microfone à mão, cantando. Os policiais entraram no meio dos manifestantes e começaram a recolher os papéis impressos com as letras das músicas. A voz do sindicalista se embargou e ele começou a lacrimejar, em silêncio, assistindo a ação repressiva. Um dos manifestantes puxou um dos cantos que a maioria sabia de memória e tinham entoado em reuniões anteriores, contando com a adesão da multidão. Cantando, deslocaram-se lentamente pelas ruas da cidade, fustigados pelas pro-vocações da polícia e de agregados de fazendas montados em cavalos, ora infil-trando-se na multidão, ora ficando na dianteira, ora na traseira da caminhada.

O fato era que a manifestação dos camponeses na cidade era algo visto como uma afirmação indevida, conforme depoimento colhido pelo Padre An-dré:

“Outro fato marcante: um policial disse a Irmã Raquel (Franciscana Ima-culatina que trabalhava em Lustosa e que depois de hesitar escolheu par-ticipar de hábito e meio assustada achou: “comprometi toda a Congrega-ção!”). (O policial disse:) “Irmã este povo do mato não tem o direito de fazer festa aqui, não!”

Instados a não reagir, os camponeses terminaram a caminhada na sede da diocese, com um almoço e cânticos. Foi a primeira grande manifestação de trabalhadores rurais em Alagoinhas, depois de 1964.

NÓS JÁ TEMOS SINDICATO!

O dia da fundação do sindicato foi planejado com cuidado e nos de-talhes que se haveria de cobrir, ocorrendo porém tensões que tiveram que se resolver praticamente na hora da cerimônia. Os candidatos aos cargos de di-

9 O advogado apresentou a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil como identificação profissional.

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retoria eram, evidentemente, os que mais se destacaram no processo de mobi-lização, com uma proposta de composição em que se respeitavam as posições dos padres, do advogado e agrônomo, e dos próprios trabalhadores rurais. Os representantes da Igreja tinham uma predileção por Vital Alves Dantas para presidente, uma vez que se constituía em quadro formado pelos religiosos, as-sumindo o cargo de agente de pastoral em Boa União. Contido, tímido, Vital ti-nha um perfil conciliador. Abimael Rufino de Reis, sob influencia do advogado, estava em vias de ser recrutado pelo MR8, e mantinha uma postura autônoma e crítica em relação à Igreja. Tinha um perfil aguerrido, atirado e extrovertido. Demonstrara um crescimento político que fazia jus à confiança do advogado e do agrônomo, e alguma reticência por parte dos religiosos. João Batista de San-tana, oriundo de comunidade negra da área limítrofe entre Inhambupe, Arama-ri e Alagoinhas, era animado, extrovertido, e com uma confiança muito grande por parte dos agricultores. Desempenhara funções de agente de saúde no con-trole da malária, estava envolvido em uma das caixas agrícolas lideradas pelo Padre Geraldo Brandstetter, constituindo-se em um tertius capaz de resolver o dilema e disputa entre Abimael e Vidal. Resultou que seria ele o presidente do STR se não houvesse o que relata-se a seguir.

O advogado Nelson Silvério de Santana Filho foi aclamado diretor dos trabalhos na presença de quatrocentos e cinquenta pessoas, conforme reza a ata de fundação. A advogada Norma Santana foi convidada para secretariar a assembléia. A mesa diretora se completou com o senhor Aurelino Bastos da Guarda, Secretário da Previdência Social e Manoel Cotinguiba da Silva, te-soureiro, ambos da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado da Bahia (FETAG BA). Foi aberta a palavra para manifestações sobre a matéria para a qual tinha sido convocada a assembléia, deliberando-se por unanimidade pela fundação da entidade. Seguindo o ritual para composição de chapas, foi dado um intervalo de trinta minutos para que se acomodassem as candidaturas para eleição da diretoria provisória. As comunidades se mobilizaram para vir para a fundação do STR em camionetas, caminhões, ônibus regulares ou freta-dos e bicicletas. Ensaiaram suas participações com músicas, cânticos, discursos e representações teatrais. Aos poucos foram chegando e adentrando o espaço da Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas. João Batista de San-tana chegou comandando a comunidade de Subaúma-mirim e adjacências, com um caminhão repleto de camponeses, ele na carroceria, rouco e completamente embriagado de toda uma véspera de comemoração festiva antecipada. Tinha havido articulações no sentido de que ele presidisse a primeira diretoria do STR. Avaliando suas condições físicas para dirigir a organização naquele pri-

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meiro e decisivo momento, reuniram-se as lideranças camponesas, religiosos, advogado, agrônomo e decidiu-se que Abimael Rufino de Reis seria apresenta-do para Presidente do STR, ao invés de João Batista de Santana, da comunidade de Subaúma Mirim, que passou à posição de Secretário, ficando Vital Dantas como tesoureiro.

Em seguida foi realizada a leitura e aprovação do estatuto social e eleição da primeira diretoria provisória e determinação da contribuição sindical. Segui-ram-se discursos, destacando-se o de antiga liderança da União dos Lavradores de Boa União, pelo que se soube depois, vivia na clandestinidade desde que desmantelada a entidade, na década de 1960. Dona Francisca, da comunidade do Estevão entoou um jogral em que apresentava a sua localidade e depois repassou o cântigo para outra pessoa para que apresentasse a sua comunidade. Esta, em seguida, puxava a seguinte até que todas estivessem representadas e com todas as pessoas de mãos dadas no auditório da Faculdade.

Um senhor negro, vestido de branco, portando um cacho de bananas às costas e uma muda de coqueiro em uma das mãos subiu no palco e cantou: o que Deus me deu, ninguém vai me tirar! refrão que foi repetido muitas vezes em variações tonais, seguido pela platéia que engrossava o coro.

Estava fundado o STR de Alagoinhas e Aramari com todas as formali-dades e ritual cumpridos. Restava agora o reconhecimento da Confederação e o trabalho cotidiano de formação dos quadros e dos associados para o duro enfrentamento da disputa pela posse da terra que se transformava, rapidamen-te, naquele período em toda a microrregião de Alagoinhas e mesorregião do Nordeste Baiano. Não bastava ocupar, era preciso produzir e resistir às trans-formações que se impunham ao espaço pelo capital.

CONSIDERAÇõES FINAIS

A história do STR de Alagoinhas e Aramari é apenas um dos capítulos da atuação da Pastoral Rural diocesana que teve como resultado a fundação dos Sindicatos de Alagoinhas e Aramari, mas também os de Catú, Inhambupe, Sátiro Dias, Aporá, Entre Rios, Esplanada, Jandaira e Conde. A Pastoral Ru-ral articulou a fundação do Sindicato dos Trabalhadores no Reflorestamento - SINDIFLORA, que existe com sede em Esplanada e Entre Rios, refletindo um dos aspectos da disputa pela terra com as empresas e das relações capital--trabalho na região.

Além dos STRs, a criação de EFA (Escola Família Agrícola), que criou a Cooperativa Agropecuária da Região de Alagoinhas - COOPERA, que por sua

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vez criou a cooperativa de crédito em Inhambupe, Alagoinhas, Irará e Rio Real - SICOOB CREDITE, com 3.737 sócios e um capital social de 1.754.504,00, a Pastoral da Juventude Rural - PJR e o Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais - MMTR, jornadas de estudo, formação de grupos de jovens, foram algumas das atividades com as quais a Pastoral Rural da Diocese de Alagoinhas se envolveu intensamente. Deve-se levar em conta que o processo de fundação dos sindicatos é um processo de formação e consolidação de lideranças que vêm das comunidades, se projetam no sindicalismo e na política local, regional, estadual e federal. Não foi pretensão de esgotar estes pontos neste artigo, mas reconhece-se a densidade histórica da Pastoral Rural que tomou contornos de uma religiosidade que se espraia no plano material, bem ao estilo do que se pregava e vivia na Teologia da Libertação (o reino de Deus começa na Terra).

As atividades para a fundação do Sindicato de Alagoinhas e Aramari revelam as mudanças que se davam na jurisdição da diocese, principalmente no que concerne à entrada de novos atores na cena agrária baiana, em particular os investidores imobiliários que vão implantar os complexo turístico e hoteleiro no cobiçado litoral baiano.

Chama a atenção o caráter tecnológico que se manifesta nas abordagens de todos os segmentos atuantes neste período, fosse a Igreja, preocupada com a permanencia dos camponeses em seus ancestrais domínios, fosse a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, representando os esforços do estado por uma modernização da agricultura nos moldes da Revolução Verde, inserindo a agricultura brasileira na economia globalizada, fossem as empresas de reflorestamento se apossando de terras originalmente de camponeses e implantando as bases de produção de matéria prima para produção de papel e celulose, fossem especuladores, pre-tendendo as terras para um mercado imobiliário que se previa aquecer quando da abertura da estrada litorânea entre Aracaju e Salvador, tornando acessível e cobiçada uma área vasta de belezas naturais e potencial turístico. A disputa pela terra passou pela proposição de torná-la produtiva pelo uso dos incentivos fiscais abundantes na época, o que mascarava a natureza especulativa e concen-tradora que excluiu e continua excluindo populações camponesas.

AGRADECIMENTOS

Este artigo não teria a mesma qualidade sem as contribuições de Dom André de Witte e Benone Leys que leram a primeira versão, completaram com informações e depoimentos e acrescentaram dados ao relato; do professor Jean

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Hebette, que deu contribuições na revisão e estruturação do texto no formato em que se encontra e do Laboratório de Análises Informatizadas da Geografia – LAIC, pela elaboração das ilustrações. A eles, os agradecimentos do autor que reconhece como unicamente seus os limites que o texto apresenta.

BIBLIOGRAFIA

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Terra Livre - n.36 (1): 255-273, 2011

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Resenha

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A IDÉIA DE CULTURA

A idéia de cultura. EAGLETON, Terry. Tradução: Sandra Castelo Branco. São Paulo: Editora da UNESP, 2005, 204p.

Waldirene Alves Lopes da SilvaProfessora da Universidade Estadual do Piauí-UESPI

[email protected]

Terry Eagleton, é um filósofo inglês e socialista que traça um debate re-flexivo quanto à idéia ou, melhor dizendo, às idéias de cultura com as quais nos deparamos. Seu resgate evidencia as raízes naturais e os desdobramentos que a vida em sociedade trouxeram quanto à este termo.

No primeiro capítulo, analisa o termo à luz dos significados atribuídos pela etimologia da palavra resgatando as dimensões: social, política, ideológica e natural da mesma no intuito de nos alertar quanto à crise que se engendra no interior da mesma no segundo capítulo intitulado “cultura em crise”. Remete--se à existência concreta das guerras culturais no terceiro capítulo, à inerente relação cultura e natureza no quarto capítulo e por fim, ao encaminhamento rumo à uma cultura comum no capítulo cinco.

É interessante frisar a complexidade do termo principalmente quando lembra que, etimologicamente, este conceito deriva do de natureza e, não o contrário já que “um dos seus significados originais é “lavoura” ou “cultivo agrícola”. (Eagleton, 2005, p. 9). Assim, o que inicialmente, denotava um cará-ter material tornou-se uma questão do espírito diante das transformações da própria humanidade. Habitantes urbanos seriam legitimamente cultos pois, a agricultura consumiria o tempo e a energia necessários ao lazer e à cultura por certo.

As marcas da transição histórica imprimem-se nas questões que abriga como: liberdade e determinismo, fazer e sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado. Sugere ainda a dialética constante entre o artificial e o natural já que os meios culturais utilizados para transformar a natureza são derivados dela própria. “As cidades são construídas tomando-se por base areia, madeira, ferro, pedra, água e assim por diante, e são assim tão naturais quanto os idílios rurais são culturais.” (Eagleton, 2005, p. 13).

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SILVA, W.A.L. da A idéia de cultura

Pode voltar-se para duas direções opostas enquanto uma divisão no próprio indivíduo indicando uma parte que cultiva e refina e, outra parte que é cultivada e refinada pela primeira identificando-se aí enquanto autocultura refere-se à natureza interna e externa. Assemelhamos à natureza pois, precisa-mos ser moldados ao mesmo tempo em que diferimos dela pela capacidade de podermos nós próprios o fazermos.

A cultura é ainda, pedagogia ética que traz a aptidão para a cidadania polí-tica já que libera o eu coletivo representado no Estado o qual, encarna a cultura que corporifica a humanidade comum.

No século XIX, o termo cultura perde a condição de sinônimo de ci-vilização estabelecida no século XVIII e, este último assume uma conotação imperialista de onde cultura e civilização passam a representar o conflito entre tradição e modernidade.

A pluralização do termo cultura se daria com Herder ao considerar as culturas de diferentes nações e períodos, diferentes culturas econômicas e so-ciais em uma mesma nação. Há sempre, a fusão entre descritivo e normativo em sua constituição. Com isso lembra a conexão entre pluralismo e auto-identi-dade num efeito de multiplicação de identidades. E, ao dialogar com Raymond Williams, a estabelece como sintomática de uma divisão que, a própria se ofe-rece para superar.

Eagleton identifica que a grande questão em relação à cultura é que as noções quanto à mesma, ou são demasiado amplas, ou se mostram efetivamen-te rígidas frente à necessidade de se ir além das duas. A cultura significa domí-nio da subjetividade social é um domínio mais amplo que a ideologia, e mais estreito que a sociedade, menos palpável que a economia e mais tangível que a teoria. Cultura configura tanto uma identidade exclusivista quanto o protesto coletivo contra uma determinada identidade enquanto cultura é a própria iden-tidade. Logo, a crise em relação à idéia de cultura se manifesta desde sempre e constantemente basta que observemos o embate entre Cultura e cultura.

Ao resgatar os contextos colonial e pós-moderno, aponta e evidencia o cenário de “guerras culturais” que se estabelece mediante o choque entre cultu-ra e Cultura expandido para fora do campo teórico no que, o autor, exemplifica com questões como: limpeza étnica e o uso da expressão cultura da OTAN fazendo referência inerente à cultura ocidental. Assim o significado ganha mais importância que o conteúdo e propõe a defesa da civilidade contra barbarismos (ou culturas particulares).

A Cultura como identidade opõe-se à universalidade e à individualidade valorizando a particularidade coletiva. A Cultura é o próprio espírito da hu-

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Terra Livre - n.36 (1): 277-279, 2011

manidade. E o universal apodera-se daquilo que é historicamente particular projetando-o como verdade pois, “ comunidades não são assuntos apenas lo-cais.” (Eagleton, 2005, p. 92) Com isso, indica guerras culturais entre: cultura como civilidade, cultura como identidade e cultura como algo comercial (pós -moderno) além da cultura de oposição que pode ser manifestada pelas ou nas três frentes citadas.

Tais guerras nos remetem, ainda, a um outro conflito que se manifesta entre a cultura e a natureza. Neste, os seres humanos estariam imprensados en-tre as duas pelo fato de a cultura ser de nossa natureza já que não nasceríamos nem como seres culturais e nem como seres naturais. A cultura representa a sobrevivência diante de nossa natureza física indefesa remodelando necessi-dades materiais e disso atinge-se a origem da cultura em trabalhar a natureza conforme Marx. O trabalho é visto como o elo de contato com a natureza produzindo cultura e, a forma como isso se dá fragmenta a cultura em violência e contradição.

Com isso, traz o debate entre T. S. Eliot e R. Williams para discutir a construção de uma cultura comum analisando seus processos sob a oscilação da consciência sobre os mesmos. O fato é que a cultura apresenta-se, além da-quilo de que vivemos, como aquilo para o que se vive apontando para a cultura uma nova importância política.

Este é o olhar que Terry Eagleton nos traz. Um olhar questionador, pre-ciso e atual evidenciando o caráter dinâmico e, também transformador daquilo que acaba por identificar a natureza de cada sociedade, a cultura. Esta, subs-tanciada e construída de tensões e dialética que se apresentam na relação socie-dade/natureza, nos choques culturais, na identidade , no tempo e no espaço.

Normas

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9. As citações textuais longas (mais de 3 linhas) devem constituir um parágrafo independente.

As menções a idéias e/ou informações no decorrer do texto devem su-bordinar-se ao esquema (Sobrenome do autor, data) ou (Sobrenome do autor,

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Normas para Publicação

data, página). Ex.: (Oliveira, 1991) ou (Oliveira, 1991, p.25). Caso o nome do autor esteja citado no texto, indica-se apenas a data entre parênteses. Ex.: “A esse respeito, Milton Santos demonstrou os limites... (1989)”. Diferentes títulos do mesmo autor publicados no mesmo ano devem ser identificados por uma letra minúscula após a data. Ex.: (Santos, 1985a), (Santos, 1985b).

9.1. As citações, bem como vocábulos, conceitos que não estejam em português, deverão ser oferecidas ao leitor em nota de rodapé.

10. A bibliografia deve ser apresentada no final do trabalho, em ordem alfabética de sobrenome do(s) autor(es), como nos seguintes exemplos.

a) no caso de livro:SOBRENOME, Nome. Título da obra. Local de publicação: Editora,

data. Ex.:VALVERDE, Orlando. Estudos de Geografia Agrária Brasileira. Petró-

polis: editora Vozes, 1985.b) No caso de capítulo de livro:SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome

(org.). Título do livro. Local de publicação: Editora, data, página inicial-página final. Ex.: FRANK, Mônica Weber. Análise geográfica para implantação do Parque Municipal de Niterói, Canoas – RS. In: SUERTEGARAY, Dirce. BAS-SO, Luís. VERDUM, Roberto (orgs.). Ambiente e lugar no urbano: a Grande Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000, p.67-93.

c) No caso de artigo:SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico, local de

publicação, volumedo periódico, número do fascículo, página inicial- página final, mês(es). Ano. Ex.: SEABRA, Manoel F. G. Geografia(s)? Orientação, São Paulo, n.5, p.9-17, out. 1984.

d) No caso de dissertações e teses:SOBRENOME, Nome. Título da dissertação (tese). Local: Instituição

em que foi defendida, data. Número de páginas. (Categoria, grau e área de con-centração). Ex.: SILVA, José Borzacchiello da. Movimentos sociais populares em fortaleza: uma abordagem geográfica. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1986. 268p. (Tese, doutorado em Ciências: Geografia Humana).

11. O descumprimento das exigências anteriores acarretará a não aceita-ção do referido texto; tampouco seguirá a tramitação usual para os pareceristas da Revista Terra Livre.

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Normas para Publicação

de divergência nos pareceres, o texto será submetido a um terceiro parecerista. 13. Os originais serão apreciados pela Coordenação de Publicações, que

poderá aceitar, recusar ou reapresentar o original ao(s) autor(es) com sugestões de alterações editoriais.

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Terra Livre is an Association of Brazilian Geographers’ biannual pu-blication that aims to disseminate materials pertaining to the themes present in the training and practice of geographers and your participation in the ci-tizenship construction. Its texts are received in the form of articles, notes, reviews, communications, among others, of all who are interested and partici-pate in the knowledge afforded by Geography, and which are related with the discussions that involves the theories, methodologies and practices developed and used in this process, as well as the conditions and situations under which they are manifesting and prospects.

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page). Example: (Oliveira, 1991) or (Oliveira, 1991, p.25). If the author’s name is mentioned in the text, indicate only the date in parentheses. E.g.: In this re-gard, Milton Santos revealed the limits ... (1989). Different works by the same author published in the same year should be identified by a letter after the date. E.g.: (Santos, 1985a), (Santos, 1985b).

8.1. The quotes and words, concepts that are not in Portuguese, must be offered to the reader in a footnote.

9. References must be submitted at the end of the work, in alphabetical order by surname of the author (s) (s), as the following examples.

a) For a book: LAST NAME, Name. Title. Place of publication: Publisher, date. Example: Valverde, Orlando. Agrarian Studies Geography Brazilian. Petrópolis:

Vozes, 1985.b) In the case of book chapter: LAST NAME, Name. Title of chapter. In: SURNAME, Name (ed.). Ti-

tle of book. Place of publication: Publisher, date, page-last page. E.g.: Frank, Monica Weber. Geographical analysis for implementation of the

Municipal Park of Niterói, Canoas - RS. In: SUERTEGARAY, Dirce. BASSO, Luis Verdun, Roberto (eds.). Environment and place in the city: the Porto Ale-gre. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000, p.67-93.

c) In the case of article: LAST NAME, Name. Title of article. Journal title, place of publication,

journal volume, issue number, page-last page, month (s) Year. E.g.: SEABRA, Manoel F. G. Location (s)? Guidance, São Paulo, n.5, p.9-17,

out. 1984.d) In the case of dissertations and theses: LAST NAME, Name. Title of dissertation (thesis). Location: Institution

where it was held, date. Number of pages. (Category, grade and area of con-centration).

E.g.: SILVA, José borzacchiello da. Popular social movements in strength: a

geographical approach. São Paulo: Faculty of Philosophy and Humanities at the University of São Paulo, 1986. 268p. (Thesis, Doctor of Science: Human Geography).

10. Failure to comply with the above requirements will result in the rejec-

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tion of the text; neither follows the usual procedure for ad hoc of the journal Terra Livre.

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Terra Livre

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Terra Livre es una publicación semestral de la Asociación de los Geógrafos Brasileños (AGB) que tiene como objetivo divulgar materias concernientes a los temas presentes en la formación y la práctica dos geógrafos y su participación en la construcción de la ciudadanía. En ella se recogen textos bajo la forma de artículos, notas, reseñas, comunicaciones, entre otras, de todos los que se inte-resan y participan del conocimiento propiciado por la Geografía, y que estén relacionados con las discusiones que incluyen las teorías, metodologías y prác-ticas desarrolladas y utilizadas en este proceso, así como con las condiciones y situaciones bajo las cuales se vienen manifestando y sus perspectivas.

1. Todos los textos enviados a esta revista deben ser inéditos y redactados en portugués, inglés, español o francés.

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7. Las notas al pie de página no deberán ser usadas para referencias biblio-gráficas. Este recurso puede ser utilizado cuando sea extremadamente necesario y cada nota debe tener alrededor de 3 líneas.

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8. Las citaciones textuales largas (más de 3 líneas) deben constituir un párrafo independiente. Las menciones a ideas y/o informaciones en el trans-curso del texto deben subordinarse al esquema (Apellido del autor, fecha) o (Apellido del autor, fecha, página). Ej.: (Oliveira, 1991) u (Oliveira, 1991, p.25). En el caso de que el nombre del autor esté citado en el texto, se indica sólo a la fecha entre paréntesis. Ej.: “A este respecto, Milton Santos demostró los lími-tes... (1989)”. Diferentes títulos del mismo autor publicados en el mismo año se deben identificar por una letra minúscula después de la fecha. Ej.: (Santos, 1985a), (Santos, 1985b).

8.1. Las citas, así como vocablos, conceptos que no estén en portugués, deberán ser ofrecidas al lector en nota al pie de página.

9. La bibliografía debe ser presentada al final del trabajo, en orden alfabético de apellido del(los) autor(es), como en los siguientes ejemplos.

a) En el caso de libro: APELLIDO, Nombre. Título de la obra. Lugar de publicación: Editorial, fecha.

Ej.: VALVERDE, Orlando. Estudos de Geografia Agrária Brasileira. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.

b) En el caso de capítulo de libro:APELLIDO, Nombre. Título del capítulo. In: APELLIDO, Nombre (org). Título del libro. Lugar de publicación: Editora, fecha, página inicial - página final.

Ej.:FRANK, Mônica Weber. Análise geográfica para implantação do Parque Mu-nicipal de Niterói, Canoas – RS. In: SUERTEGARAY, Dirce. BASSO, Luís. VERDUM, Roberto (orgs.). Ambiente e lugar no urbano: a Grande Porto Alegre. Porto Alegre: Editora de la Universidad, 2000, p.67-93.

c) En el caso de artículo: APELLIDO, Nombre. Título del artículo. Título del periódico, lugar de pu-blicación, volumen del periódico, número del fascículo, página inicial - página final, mes(es). Año.

Ej.: SEABRA, Manoel F. G. Geografía(s)? Orientação, São Paulo, n.5, p.9-17, oct. 1984.

d) En el caso de disertaciones y tesis: APELLIDO, Nombre. Título de la disertación (tesis). Lugar: Institución en que fue defendida, fecha. Número de páginas. (Categoría, grado y área de concen-tración).

Ej.:

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SILVA, José Borzacchiello da. Movimentos sociais populares em fortaleza: uma abordagem geográfica. São Paulo: Facultad de Filosofía, Letras y Ciencias Hu-manas de la Universidad de São Paulo, 1986. 268p. (Tesis, doctorado en Ciencias: Geografía Humana).

10. El no cumplimiento de las exigencias anteriores, acarreará la no acepta-ción del referido texto; tampoco seguirá la tramitación usual para los funcionarios de pareceres ad hoc de la Revista Terra Livre.

11. Los artículos se enviarán a los funcionarios de pareceres, cuyos nombres permanecerán en sigilo, omitiéndose también el(los) nombre(s) del(los) autor(es).

12. Los originales serán apreciados por la Coordinación de Publicaciones, que podrá aceptar, rechazar o representar el original al(los) autor(es) con suge-rencias de alteraciones editoriales.

Las versiones que contendrán las observaciones de los funcionarios de pareceres, así como partes de las evaluaciones de los funcionarios de pareceres que la Comisión Editorial juzgue importante dirigir a los autores, serán compa-radas con las versiones que deberán retornar de los autores a la Comisión; caso en el caso que no haya el cumplimiento de las solicitudes señalizaciones por los funcionarios de pareceres y que implican en la desfiguración y demérito de la Revista, los textos serán rechazados por la Comisión Editorial.

13. La Asociación de los Geógrafos Brasileños (AGB) se reserva el de-recho de facultar los artículos publicados para reproducción en su sitio o por medio de copia xerográfica, con la debida citación de la fuente. Cada trabajo publicado da derecho a dos ejemplares a su(s) autor(es), en el caso de artículo, y un ejemplar en los demás casos (notas, reseñas, comunicaciones, ...).

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Garamond, miolo papel reciclado 75g, capa papel reciclado 240g,

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Preparação de originais e revisão de textos: Claudinei Lourenço e Cláudio Ubiratan

Tiragem: 1000 exemplares.