De aprendiz a cidadão - Repositório da Universidade de Lisboa
A alma do cidadão: as abordagens de Max Weber e Michel Foucault sobre racionalidade e governo
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1
A alma do cidadão: as abordagens de Max Weber e Michel Foucault sobre
racionalidade e governo1
Colin Gordon2
Tradução de Fabiana A. A. Jardim e Revisão técnica de Osvaldo López-Ruiz3
São muitos os aspectos a partir dos quais se pode comparar os trabalhos de Michel
Foucault e os de Max Weber: seus estudos sobre as formas de dominação e técnicas de
disciplina, sua preocupação com o que Weber denominou “o poder da racionalidade
sobre o homem”, seus escritos sobre metodologia e ética intelectual, o interesse de
ambos por Nietzsche – e os efeitos deste interesse na recepção crítica de seu
pensamento.
Na atual literatura sobre Foucault, frequentemente as referências a Weber ligam-
se aos temas da racionalidade e da racionalização. Dessa maneira, Dreyfus e Rabinow
escrevem que Foucault teria herdado de Weber “uma preocupação com a racionalização
e objetificação como a tendência essencial de nossa cultura e o problema mais
importante de nossos tempos” (1995, p.183). Por vezes, a comparação se liga a uma
reprovação: Carlo Ginzburg vê no trabalho de Foucault uma visão “weberiana” da
história, que reduziria tudo a “um mesmo processo de racionalização meta-histórico e
meta-antropológico”. Repudiando tal caracterização, Foucault responde:
Eu não acredito que podemos falar de “racionalização” em termos de algo
dado, sem – de um lado – postular um valor inerente e absoluto à razão e –
de outro – assumir o risco de aplicar o termo empiricamente de modo
completamente arbitrário. Eu creio que devemos restringir o uso dessa
palavra a um sentido instrumental e relativo (FOUCAULT, 1991: p.79).
1 Originalmente publicado em Sam Whimster and Scott Lasch (eds.) Max Weber, rationality and
modernity. United Kingdom: Alen & Unwin, 1987, p.293-316. Com a permissão do autor. Há poucas
diferenças em relação ao texto original, que se devem ao fato do autor nos ter enviado uma errata. Sempre
que possível, fizemos as citações tendo como fonte a edição brasileira dos textos referidos. 2 Mestre em Filosofia pela Universidade de Oxford, responsável pela tradução e edição, em inglês, de
pesquisas de Michel Foucault relacionadas ao poder e à cultura política no Ocidente. Notadamente, editou
Power/Knowledge (1980), baseada na coletânea de textos que haviam aparecido na edição italiana da
Microfísica do Poder, e coeditou, com Graham Burchell e Peter Miller, o volume The Foucault Effect:
studies in governmentality (1991). 3 Fabiana Jardim é doutora em Sociologia (FFLCH-USP) e professora do Departamento de Filosofia da
Educação e Ciências da Educação na Faculdade de Educação – USP. Osvaldo López-Ruiz é doutor em
Sociologia (IFCH-Unicamp) e pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Cientificas y
Técnicas (Conicet) – Argentina. Ambos dividem a coordenação do Grupo de Pesquisadores sobre
Governo, Ética e Subjetividade (GES).
2
Barry Smart (1983: p.138-9), a exemplo de Dreyfus e Rabinow, toma tal resposta
como deixa para realizar uma distinção aguda entre Weber e Foucault: Weber veria a
racionalização como um processo geral, global e inexorável no mundo moderno,
enquanto Foucault insistiria numa abordagem muito mais diferenciada, pluralista e
cética.
O fato, entretanto, é que Weber é tão inocente quanto Foucault do
“weberianismo” que adota uma concepção uniforme e monolítica do fenômeno histórico
da racionalização. Mas pode-se fazer justiça à Foucault sem necessidade de difamar
Weber; além disso, uma compreensão mais justa de Weber pode oferecer uma maneira
muito mais enriquecedora de considerar os problemas colocados por Foucault de forma
nova. O próprio Foucault se absteve de qualquer crítica direta a Weber; de fato, suas
observações citadas acima não poderiam estar mais próximas em espírito das repetidas,
proeminentes e enfáticas afirmações de Weber em relação ao mesmo assunto: “Temos
de lembrar-nos [...] que ‘racionalismo’ pode significar coisas bem diferentes” (1971b: p.
337);
[...] a história do racionalismo de modo algum acusa um
desenvolvimento com avanço paralelo nas várias esferas da vida. [...]
Pode-se mesmo [– e esta simples sentença, tantas vezes esquecida,
caberia figurar na epígrafe de todo estudo que trate do
“racionalismo”–] “racionalizar” a vida de pontos de vista últimos
extremamente diversos e nas mais diversas direções. O “racionalismo”
é um conceito histórico que encerra um mundo de contradições [...]”
(2004:p.68-9).
Muitos sociólogos e comentadores de Weber parecem imaginar que todas essas
distinções, no que toca a Weber, aplainaram-se com o avanço moderno da burocracia.
Ainda assim, é fácil verificar que Weber realmente atribui importância vital ao
reconhecimento das diferenças, duradouras e intrínsecas, entre o estilo de racionalidade
próprio do funcionário burocrático e aquele de empresários ou políticos.
Isso ainda deixa aberta a questão de como, e quanto, o problema da
racionalização determina globalmente os temas e intenções da obra incompleta de
Weber. Uma resposta laboriosamente argumentada foi oferecida por Wolfgang
Schluchter, que interpreta as várias comparações entre diferentes formas e instâncias de
racionalização empreendidas por Weber como episódios em direção a uma integrada
sociologia do desenvolvimento da história mundial. Talvez o maior entrave a tal
proposição seja sugerido pelas observações de Weber citadas acima, se as tomamos
como incitações não apenas a uma abordagem comparativa entre diferentes fenômenos
3
de racionalização, mas também como uma dúvida em relação a se os diferentes campos-
problemas históricos nos quais as questões sobre racionalização se colocam podem ser
fundidos, de modo produtivo, sob os auspícios de uma única teoria abrangente.
Nessa segunda possibilidade parece se encontrar a perspectiva de Foucault. Nela
também se encontra a visada tomada por Wilhelm Hennis em vigorosa crítica da versão
de Schluchter sobre o tema de Weber como um “processo histórico-universal de
racionalização”:
Conquanto o problema da racionalização pudesse ser central para
Weber, ele deve ser localizado em um contexto muito mais geral se
for tratado como chave para sua obra – um contexto em que o motivo
para que essa questão seja tão importante para Weber se tornará
evidente [...] Enxergar o processo de racionalização como tema
fundamental de Weber não é incorreto. Porém, como é óbvio no
estado da arte da pesquisa em Weber, é enganoso ler tudo nesses
termos e enxergá-lo em todos os lugares (HENNIS, 1983: p.138).
A leitura de Hennis sobre Weber é, a seu modo, não menos sistemática,
comprometida e focada que a de Schluchter. Ainda que sua perspectiva pareça estranha
a muitos sociólogos, seus artigos recentes sobre Weber devem certamente ser contados
entre as contribuições mais estimulantes para discussões sobre Weber em muitos anos.
A Lebensführung, a conduta de vida, e suas formas de racionalização representam para
Hennis o objeto mesmo da sociologia de Weber.
Tal alegação envolve três proposições sobre a obra de Weber, interligadas.
Primeiro, boa parte do trabalho de Weber – segundo Hennis, o quinhão mais importante
– toma a condução da vida como seu tema imediato e principal. Entre tais escritos,
Hennis está plenamente justificado em incluir o ensaio mais famoso de Weber, A ética
protestante e o “espírito” do capitalismo, no qual se trata da “condução metódica da
vida” instilada pelo Calvinismo4. De modo mais abrangente, Hennis cita o particular
interesse na “racionalização da Lebensführung”, que Weber declara na “Introdução” à
“Ética econômica das religiões mundiais”5. Em segundo lugar, Hennis vê a
Lebensführung como um princípio que inspira e ilumina a metodologia dos principais
trabalhos de Weber, particularmente Economia e Sociedade, onde a “arena” sociológica
“de poderes normativos e de facto” é vista e avaliada em termos das influências dessas
forças coletivas nas condutas de vida individuais. Em terceiro lugar, a Lebensführung é
o critério de valor ético fundamental nas reflexões de Weber sobre o futuro da
4 Weber (2004), (N.T.).
5 Weber (2006), (N.R.T.).
4
humanidade (Menschentum). Considerando o destino das sociedades modernas, a
preocupação principal de Weber reside na sobrevivência do “caráter” ou da
“personalidade” em cuja condução da vida reúnem-se racionalismo pragmático e
seriedade ética. Hennis argumenta apaixonadamente e com impressionante riqueza de
evidências documentais que o coração da sociologia de Weber consiste numa
antropologia moral que está profundamente em desacordo com as tendências
positivistas das ciências humanas no século atual.
Do final dos 1970 até sua morte, em 1984, o trabalho de Foucault se
movimentou em direções marcadamente consoantes com aquelas presentes nos
comentários de Hennis. Os últimos volumes da História da Sexualidade estão bastante
interessados na descrição da “Lebensführung metódica” praticada na Antiguidade tardia.
Paralelo às técnicas de saber e poder, Foucault agora propõe o estudo das “tecnologias
do eu”, das práticas culturais dedicadas à formação e transformação do eu pelo eu. Em
seus primeiros livros, a questão de “como os seres humanos se transformam em
sujeitos” havia sido explorada em termos dos efeitos heterônomos do poder. Naquele
momento, a subjetivação foi investigada como sujeição; agora, é investigada em
culturas em que a autonomia pessoal é pregada como condição de liberdade (embora a
liberdade de poucos – homens, privilegiados e dominantes). Provavelmente, não é
coincidência que, ao final de sua vida, Foucault tenha feito indicações no sentido da
crescente importância contemporânea de Weber, e que se diz que ele se interessou
particularmente pela sociologia da religião weberiana; o que o teria interessado aí é um
tema que poderia render um estudo mais detalhado.
Esse é apenas um dos aspectos dos últimos trabalhos de Foucault. Um outro é de
ainda maior relevância para nosso tema. Em seus cursos de 1978 e 1979, Foucault
começou a esboçar um deslocamento da prévia orientação “microfísica” – nos termos de
estudos de racionalidades e estruturas de poder individualizantes, particulares e
regionais – na direção de uma “macrofísica”, o estudo do exercício do poder na escala
de toda a sociedade e das populações6. A rubrica sob a qual Foucault propôs organizar
6 Foucault não chegou a transformar os documentos utilizados nesses cursos em uma versão estendida
para publicação. Alguns fragmentos apareceram (1979a; 1981; 1982; 1984) [Em 2004, ambos os cursos
completos foram publicados em francês, tendo aparecido em português em 2008: Segurança, Território,
População: São Paulo, Martins Fontes, 2008 e Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes,
2008. N.T.]. Sobre o Cameralismo, ver também Pasquino (1978; 1982) e Tribe (1984). Esses últimos
contêm balanços da literatura; importante material complementar pode ser encontrado em Brunner (1968)
e Oestreich (1983). De modo mais amplo, Burchell et al. (1986) oferecem uma amostra e seleção de
trabalhos relacionados, de autoria de Foucault e de outros. Até bem perto de sua morte, Foucault esteve
5
essas novas análises foi a da “racionalidade governamental”. Ainda que essa pesquisa
lidasse principalmente com a Europa moderna desde o século XVI, ela guardava
importantes relações com as preocupações que orientavam seus estudos sobre a
sexualidade naqueles mesmos anos. Foucault nota que o crescimento da reflexão
explícita sobre a “arte de governar” nos primeiros tempos do período moderno foi
acompanhado por uma noção, conscientemente elaborada, da conexão interna entre, de
um lado, o governo de si, a condução da existência individual e, de outro lado, o
governo dos outros, a regulação das vidas de muitos. O interesse neo-estoico, no século
XVI, em uma nova cultura de si – do auto-conhecimento, do auto-domínio, da auto-
formação – torna-se, como já foi demonstrado por Gerhard Oestreich (1983), parte
importante constitutiva das pedagogias e técnicas políticas dos primórdios do Estado
moderno. A noção de governo ocupa um espaço nodal nos últimos trabalhos de
Foucault, por duas razões: porque ela designa uma continuidade entre os níveis micro e
macro da análise política, e porque ela abarca a interface entre o exercício de poder e o
exercício de liberdade.
Foucault define “governo” como la conduite de la conduite, (“a condução das
condutas”) – uma sentença que não poderia soar mais weberiana; ela provavelmente
seria melhor formulada em alemão como die Fürhrung der Lebensfürhrung. E ainda
assim, em nenhum lugar entre as incontáveis discussões de Weber sobre racionalismo e
racionalização (nem, tanto quanto pude averiguar, em nenhum autor anterior a Foucault)
pode-se encontrar o termo “racionalidade governamental”. Mesmo quando descontadas
as ilusões do olhar retrospectivo, [essa ausência] parece um fato surpreendente ou ao
menos intrigante. Talvez algo possa ser aprendido a partir de uma tentativa de explicá-
la.
Foucault: Racionalidade Governamental
A abordagem de Foucault em relação à racionalidade governamental ou, em seu
próprio neologismo, “governamentalidade” (um termo que poderíamos também
desdobrar, no vocabulário de Lucien Febvre, em “mentalidade de governo”) combina
um conjunto de inovações em vários níveis distintos. Ela compreende uma tese histórica
substantiva; uma perspectiva distinta para a pesquisa; uma exposição de trechos
relativamente não comuns de documentos históricos; um quadro novo e mais
engajado em planos para uma obra coletiva sobre racionalidades governamentais (Gandall e Kotkin,
1985).
6
abrangente para seus próprios estudos anteriores; e, por último, mas não menos
importante, um desafio a alguns hábitos contemporâneos de reflexão política e crítica.
Tentarei esboçar aqui as linhas gerais de cada uma dessas proposições.
(1) A tese histórica principal de Foucault é que seria um traço distintivo das
sociedades modernas e do Estado moderno a tentativa de integração de dois estilos
contrastantes de relação de poder coletivo: o modo da polis, estruturado de acordo com
os princípios da universalidade, lei, cidadania e vida pública, e o modo a que Foucault
nomeia “poder pastoral”, que – ao contrário [do anterior] – concede prioridade absoluta
à orientação exaustiva e individualizada das existências singulares. O Estado moderno
é, para Foucault, um mecanismo a um só tempo de individualização e de totalização.
Sua exploração do aspecto individualizante das racionalidades de governo dedica-se a
temas que são frequentemente evocados por Weber – embora geralmente de passagem;
ela aponta na direção de conexões sistemáticas entre racionalidade e a Lebensführung de
um modo que, em geral, permanece apenas implícito nos escritos de Weber.
(2) Como vimos, a maneira de Foucault abordar essas questões visa estender e
complementar a “microfísica do poder”, que foi posta em prática em Vigiar e Punir, por
meio da adição de uma análise “macrofísica” das práticas que têm como foco não a
administração de indivíduos, mas de populações. Práticas, mais que instituições,
continuam sendo o principal objeto de investigação. Para compreender o que é o Estado
moderno, é preciso olhar primeiro para as práticas de governo, assim como o
nascimento das prisões deve ser explicado por meio de uma história das práticas de
punição e disciplina. Outro traço comum é a atenção conferida à reconstrução de
estratégias e programas explícitos, refletidos, articulados. Em seus últimos livros,
Foucault reitera tal ponto descrevendo seu próprio trabalho como o estudo de
problematizações, isto é, dos modos a partir dos quais os seres humanos concebem e
dirigem-se a si mesmos e aos diferentes aspectos de sua existência individual e coletiva
como problemas. Neste caso, as reconstruções arqueológicas de Foucault pretendem
focar a atenção nos registros históricos da problematização do governo, das questões de
como e o que governar, de como o governo é possível, dos princípios essenciais da “arte
de governar”. Foucault não está dizendo nem aqui nem em lugar algum que não há
realidade senão aquela do discurso. Mas ele está, aqui como em outros lugares,
insistindo acerca da necessidade de um certo tipo de nominalismo histórico; economia e
sociedade, os objetos modernos do governo, são entidades cuja própria inteligibilidade
depende de modos de codificar e articular o real que precisaram ser inventados. Ele está
7
afirmando que esses objetos de governo têm pré-condições materiais e conceituais
particulares, que dependem de conhecimentos, técnicas e competências específicos para
existir e funcionar.
(3) O campo de dados históricos ao qual Foucault aplica esses princípios de
método para obter um efeito especialmente significativo raramente recebeu a apreciação
adequada e estratégica que lhe é devida, ainda que certamente não tenha sido
desconhecido a outros estudiosos. Este campo consiste na doutrina, pedagogia e práticas
administrativas conhecidas, pela parte germanófona da Europa nos inícios dos tempos
modernos7, como Cameralismo ou a “ciência da polícia” (Polizeiwissenschaft). Foucault
e seu colega de pesquisa, Pasquale Pasquino argumentam que as ideias Cameralistas
representam a primeira forma existente de um modo moderno de problematização
política cuja história frequentemente tem sido subestimada (pelas teorias de legitimação
política e métodos para a retenção do poder soberano). [O Cameralismo representa],
especialmente, [um modo de problematização política] de princípios coerentes de uma
prática de governo. O Cameralismo é, em outras palavras, a primeira racionalidade de
governo explícita e sistemática. Refletir sobre a razão de Estado foi, Foucault
argumenta, a primeira forma moderna de pensamento político a postular a racionalidade
de governo como algo específico, intrínseco e autonomamente próprio ao Estado; a
razão de Estado é par excellence uma razão diversa e distinta da ordenação geral e
divina do cosmos.
A ciência da polícia representa, por sua vez, a primeira tentativa de dotar de
conteúdo substancial e coerente essa forma de conhecimento postulada. Ela identifica o
Estado a “todo o corpo social” e liga seu objetivo, a “felicidade” do Estado, à
“felicidade” e bem-estar de seus sujeitos individuais – a felicidade de “todos e cada um”
(Foucault, 1981; Pasquino, 1982). A força do Estado repousa nas vidas de seus sujeitos
e em sua ordem, obediência e indústria. O Cameralismo tem sido comumente confinado
à pré-história da ciência econômica, suas ideias supostamente relegadas ao arcaísmo a
partir do triunfo do liberalismo, da economia política e do mercado. Porém o advento do
liberalismo não liquida o problema do governo. O liberalismo, em realidade transforma
as técnicas de segurança herdadas, em grande parte da Europa, do Estado policial. Mas
essa história, que abarca a genealogia do Estado de Bem-Estar, está atravessada por
continuidades e descontinuidades.
7 No original: “early modern German-speaking world” (N.T.).
8
(4) Essa concepção de uma história das racionalidades de governo tem
correlações e precedentes complexos nas histórias regionais das práticas de
normalização perseguidas por Foucault em seus primeiros livros. O hôpitaux généraux
examinado na História da Loucura, as instituições de internamento do ancien régime,
são instrumentos da arte de governo policial. O Panóptico de Bentham examinado em
Vigiar e Punir, é um teorema liberal de segurança política. Aqui a consagrada afirmação
marxista de que os estudos de Foucault evitam investigar o Estado cai por terra; o que,
ao contrário, torna-se mais evidente é o modo pelo qual um gênero monótono e
empobrecido do que é chamado de “teoria do Estado” obstruiu qualquer consideração
adequada do que o Estado faz, da verdadeira natureza e lógica da atividade
governamental. Um ponto de conexão particularmente importante conduz dessa
perspectiva de análises ao tema abordado e formulado como “biopolítica”, na História
da Sexualidade I. Biopolítica deveria ser entendido como o fenômeno por meio do qual
a vida coletiva e individual das populações humanas, ou até mesmo da espécie humana,
torna-se objeto explícito das práticas de governo. Leituras pejorativas e restritivas desse
último tema podem agora ser mais facilmente rejeitadas. O que está em questão aqui
não é somente o tema de um totalitarismo eugênico latente ou de um racismo de Estado.
Igualmente implicada está a direção das mutações das instituições de bem-estar
social que desenvolvem a ambição de um tipo de economia política que aspira a levar
em conta todos os aspectos da vida individual, e não apenas aquelas relacionadas à
atividade econômica em sentido estrito. A formação e o aumento do capital humano, o
custo e o valor das vidas para os indivíduos e o Estado tornam-se medidas de cálculo
político. Nessa perspectiva, é extremamente fácil compreender por que o ressurgimento
da discussão ética, e uma demanda pública e até mesmo institucional por conhecimentos
especializados a respeito da ética, tornou-se um aspecto notável do cenário
contemporâneo. É mais fácil, também, entender nesses termos por que alguns temas
weberianos estão atraindo atenção renovada.
(5) O desafio que finalmente emerge – de modo silencioso, mas crescentemente
notável – dessa parte do trabalho de Foucault é a tomada de consciência de que o que
tem aparecido como nova forma de política radical pode, em aspectos vitais, na verdade,
ser encontrado em relação de atraso aos nossos tempos. O próprio Foucault estava
celebrando essa nova política, como resposta à invasão moderna da “biopolítica”
governamental, quando escreveu no último capítulo de sua História da Sexualidade I:
“Pouco importa que se trate ou não de utopia; temos aí um processo bem real de luta; a
9
vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o
sistema que tentava controlá-la” (FOUCAULT, 1988: p.136). Por que, então, as novas
forças que dão corpo a esta escolha foram de tão pouca utilidade à esquerda política ao
longo da última década? Parte da resposta pode estar no fato de que este tema radical do
que podemos chamar de autogoverno de si despontou em conjunto com a re-emergência
do tema do governo tout court. Este tema não foi introduzido pela Esquerda e encontrou
a Esquerda intelectualmente desarmada e despreparada. Os governos neoliberais de
Schmidt, Barre/Giscard e Thatcher, por sua vez, foram todos bem sucedidos em reverter
para sua própria vantagem a configuração do terreno político e capturar para si mesmos
uma poderosa iniciativa de polêmica. Eles foram bem sucedidos por meio de uma
estratégia que empurra a questão do governo para o centro da disputa eleitoral,
afirmando a seriedade e o realismo superiores de sua própria abordagem dessas
questões, e acoplando sua visão de um estilo de governo a um modelo correspondente
de cidadania socioeconômica. Aqui, certa ideia de empreendimento de governo
promove e capitaliza sobre uma concepção – amplamente difundida – da
individualidade como empresa, da pessoa como empreendedora de si mesma. O tema de
uma Lebensführung capitalista reaparece aqui não apenas como estratagema ideológico,
mas como correlato de modificações reais de instituições e práticas, existências e
mentalidades. Tais fenômenos são frequentemente referidos sob a rubrica de “crise do
Estado de Bem-Estar”, um termo que, convenientemente, possibilita que sejam
convertidos em material para o modo habitual das críticas de esquerda ao Estado. Mas
tal estilo de análise tende a reconhecer mal o que poderia ser mais adequadamente
compreendido como uma crise, ou pelo menos como um período de uma mais profunda
mutação na racionalidade governamental.
Weber: Razão de Estado Liberal
O que Weber teria pensado de tudo isso? Como vimos, a maneira com que
Foucault descreve a “racionalidade governamental” como objeto distinto de estudos
históricos está associada a uma perspectiva cronológica que relativiza o limiar entre as
épocas pré-liberais e liberais de governo, e concede uma nova proeminência às práticas
do Cameralismo. Das poucas referências que Weber, decepcionantemente, fez a este
último tópico, emerge uma atitude que se encontra muito mais próxima que a de
Foucault das visões convencionais da economia política e da historiografia, assim como
das visões liberais prevalecentes em sua época. Indubitavelmente, também é uma
10
atitude marcada pela consciência de viver em uma sociedade que mantém muitos dos
traços do Polizei e Obrigkeitsstaat8 Cameralista. A perspectiva de Weber sobre este
assunto é uma área pouco desenvolvida e relativamente difusa no interior de seu
panorama sóciohistórico global. Isso se explica, em parte, por certa falta de coesão entre
as diversas maneiras com que Weber conceituou o fenômeno da racionalização e talvez,
também em parte, por sua dependência residual da formulação de certos aspectos dessa
questão na auto-imagem histórica oficial da economia política. É provável que não seja
coincidência que as duas ocasiões em que Weber faz menção direta ao Cameralismo se
encontram em seu estudo sobre a China – ou seja, num contexto em que Weber está
interessado em identificar variações de racionalização que diferem, em espécie,
daquelas [que ocorreram] no Ocidente moderno e que não são, de modo algum, menos
“racionais” que aquelas ocidentais, mas que, não obstante, são enfraquecidas por
limitações ou defeitos que as desqualificam para prover uma matriz de modernidade ao
modo ocidental. Assim, os escritos sobre o que Weber chama de “Cameralismo Chinês”
de apoio a práticas de laissez-faire, ou sobre a questão do balanço comercial, são
ilustrações de que o governo chinês “não possui política comercial no sentido moderno
do termo” (Weber, 1951: p.79, 136-8).
Tom semelhantemente ambivalente caracteriza a discussão do mercantilismo
(Europeu) na História Geral da Economia. O mercantilismo inglês (Weber credita esta
terminologia a Adam Smith) que emerge já no século XIV é identificado como “o
primeiro traço de uma política econômica racional por parte do príncipe”. Mas então se
segue uma dialética familiar por meio da qual o racionalismo econômico consciente do
Estado, “carregando o ponto de vista da indústria capitalista para a política”, torna-se o
adversário histórico do capitalismo apropriado, opondo um regime de monopólios e
privilégios às oportunidades de mercado. “Pela última vez, entraram em luta, neste caso,
o capitalismo irracional e o racional” (Weber, 1968: p.307). Sem dúvida que aqui
Weber acompanha fundamentalmente Adam Smith, mas há uma diferença nos pesos
dos argumentos de cada um. Smith sublinha a possibilidade e a necessidade de aliviar o
Estado de sua tarefa impossível de monitorar exaustivamente e antecipar os eventos
econômicos no mercado. Weber, por outro lado, denuncia a arbitrariedade e o capricho
inerente a uma política de Estado ativa de tipo mercantilista, que frustra o capitalismo
orientado pelo mercado ao criar condições de comércio imprevisíveis, e que desse modo
8 Isto é de um Estado Policial, conforme definição acima, e Autoritário, como o de Bismarck [N.T.].
11
nega os próprios benefícios da previsibilidade conferida originalmente pelo
racionalismo legal dos primórdios do Estado (WEBER, 1999: p.65). A harmonização
[mercantilista] da “clareza” administrativa com a “certeza” comercial atenuou a
convergência entre os interesses do Estado e aqueles do capitalismo nascente.
Cameralismo e mercantilismo são, assim, aliados próximos. – a despeito de não
serem doutrinas idênticas. Podemos concluir que Weber teria questionado a mera
possibilidade de uma “racionalidade” de governo Cameralista? Nesse sentido – em
contraste ao teor da maior parte das observações de Weber sobre as formas de
racionalidade – deveríamos inferir que a irracionalidade da política
Cameralista/mercantilista é, em sua visão, o correlato de uma insuficiência intelectual,
que corresponde à tese aceita de que um limiar científico decisivo teria separado o
mercantilismo da economia política?
Um indicador indireto na direção dessa conclusão pode ser delineado a partir da
pesquisa sobre a China. Aqui, Weber chama a “razão ‘Confuciana’” de “um
racionalismo da ordem”. Ele comenta o significado Confuciano do conceito do Tao
como conotando “a ordem externa do universo e também o verdadeiro movimento do
universo”, acrescentando que “tal identificação é frequentemente encontrada em todos
os sistemas metafísicos cuja estrutura dialética não foi aperfeiçoada” (Weber, 1951:
p.169, 181-3). Veredito semelhante pode ser inferido em relação a uma concepção de
governo econômico que não faz distinção entre as regularidades que governam os
fenômenos econômicos e o estado de ordem mantido pelas políticas estatais. Tal é,
precisamente, a concepção Cameralista. Como Pasquale Pasquino formulou, o
Cameralismo reconhece a especificidade da economia como objeto de governo, mas não
sua autonomia em relação ao Estado ou à ação de governar. Podemos recordar aqui a
restrição de Weber nas páginas de abertura [do ensaio] “A cidade”, ao uso vulgarizado
do conceito histórico de “economia da cidade” (Stadtwirtschaft) de tal modo que
“categorias relevantes para a compreensão da política econômica se fundem a
categorias puramente econômicas”. Weber objeta isso [afirmando] que “[...] essa
política econômica não representa nenhuma etapa universal da economia” (WEBER,
1999: p.414). Os intensamente regulados regimes de guilda das cidades livres imperiais
na Alemanha do final da Idade Média, que ofereceram excepcional modelo histórico
para a “economia da cidade”, também foram identificados como precursores e
protótipos das políticas regulatórias Cameralistas elaboradas nos Estados principescos
alemães depois do fim da Guerra dos Trinta Anos; políticas nas quais a economia e sua
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regulação são de fato tratadas como uma única e mesma realidade (Oestrich, 1983:
p.161).
Assim como Marx, Weber prometeu um tratado sobre o Estado que não chegou
a viver para escrever; mas pode-se suspeitar, no entanto, que a omissão dificilmente é
fortuita. Weber pode, de fato, ter sutilmente dado conta dos pontos específicos de
convergência histórica entre os cursos do Estado moderno e do capitalismo moderno;
ele pode ter insistido na inevitável interdependência técnica, numa sociedade industrial
desenvolvida, entre estruturas capitalistas e burocráticas; ele pode ter identificado
analogias extensas entre tais estruturas de modo que “Sociologicamente falando, o
Estado moderno é uma ‘empresa’ (Betrieb) idêntica a uma fábrica [...]” (WEBER,1980:
p.17). Mas, não obstante, há uma discrepância pequena, mas crucial, entre o ponto de
vista geral de Weber e aquele [expresso] no ensaio no qual Otto Hintze propôs
responder ao estudo de Weber sobre as fontes calvinistas do espírito do capitalismo com
uma abordagem paralela do “espírito” do estado Prussiano no início dos tempos
modernos. Podemos pensar que Weber poderia quase ter escrito a afirmação de Hintze
que “raison d’état e capitalismo são, afinal, aliados sociologicamente próximos”
(Hintze, 1975: p.94). “O que mais é o capitalismo que não uma moderna raison
d’économie? Raison d’état e raison d’économie derivam da mesma raiz”. Poderíamos
quase supor que Weber poderia estar pronto para atribuir a intenção de “subjugar o
mundo sob domínio e controle ético e racional”, isto é, a objetividade racional do
progresso, não apenas ao empreendedor puritano, mas também ao Estado policial. Mas
nenhuma dessas suposições é realmente sustentável. Weber de fato, veemente e
repetidamente, afirma as reivindicações da “razão de Estado”, mas ele não reconhece
um espírito do Estado, nem chega a propor, à maneira de Alfred Müller-Armack (1944)
– para contrastar com outro acadêmico neo-weberiano da geração seguinte –, a
justaposição de uma tipologia dos diferentes “estilos econômicos” característicos dos
membros de cada uma das igrejas pós-reforma a um estudo de seus estilos
correspondentes de ‘práticas estatais’” (Staatspraxis).
Para esclarecer tais aspectos devemos ter em consideração o contexto, intenções
e antagonistas do pensamento weberiano na Alemanha de sua época. Uma razão pela
qual Weber pode não ter se sentido motivado a escrever um estudo explícito das práticas
estatais do Cameralismo pode ter sido a percepção de que tal genealogia poderia resultar
em um desvio redundante, em uma sociedade que mantinha em seus costumes e
condições cotidianas tantos traços do Polizeistaat. Outra razão, ao contrário, pode ter
13
sido o fato de que as implicações de tais traços, no mundo de Weber e em seu próprio
pensamento, de modo algum corriam em linhas paralelas.
O Weber que desaprova as consequências adversas do desenvolvimento
capitalista de políticas voluntaristas-estatais de tipo mercantilista é também, como
podemos lembrar, o economista que declara que “a ciência da economia política é uma
ciência política” e que “neste Estado nacional, o último parâmetro de valor para a
economia política é a ‘razão de Estado’” (Weber, 1980: p.438). O tom provocativo da
aula inaugural na qual tais afirmações foram feitas não deve obscurecer o
reconhecimento de que sua substância é pouco mais que uma declaração de fatos sobre
a variação de economia política alemã, no século XIX, de que Weber era um expoente
profissional – a Nationalökonomie. A opinião altamente explícita de Weber sobre as
relações entre teoria econômica e os interesses do poder estatal reflete a extensão
conhecida com que a clivagem intelectual entre Cameralismo e estilos liberais de
pensamento estava, muito especialmente no caso alemão, longe de ser totalmente
radical ou direta (Tribe, 1984). Sua escolha de terminologia aqui evoca a demonstração
subsequente de Meinecke, em Die Idee der Staatsräson (traduzida para o inglês em
1957), da continuidade das preocupações alemãs com a razão de Estado entre os séculos
XVII e XX. Foucault homenageia Meinecke no desenrolar de sua própria discussão das
estreitas conexões entre as doutrinas da razão de Estado e da ciência da Polícia; ele
parafraseia essas teorias do século XVII ao definir a razão de Estado – mais
particularmente em seus aspectos econômicos – como “governar de acordo com a força
do Estado”.
Weber é um herdeiro dessa tradição. Mas é necessário lembrar que ele também
é, junto com seu irmão Alfred, um oponente vigoroso e polêmico no interior da
disciplina da Nationalökonomie ao “estado metafísico de homens como Gustav von
Schmoller”, para usar a frase de Roth (1978: p. lix). Como formula Mommsen, “o que
Weber realmente desejava era colocar fim à mistura de ciência social e política
conservadora representada por Schmoller e sua escola, pois tal tipo de ciência social
tinha entre seus efeitos favorecer o tipo de governo semi-burocrático existente na
Alemanha” (1974: p.93). Não há quebra de continuidade entre a perspectiva do jovem
Weber, que vê a razão de Estado como o critério de valor pragmático da disciplina da
economia política e a advertência (muito mais tardia, bem menos citada), no ensaio
sobre neutralidade axiológica contra a deificação do Estado como valor eternamente
supremo e absoluto (Weber, 1992). A razão de Estado é um critério, não um ethos ou
14
uma essência. A adoção da razão de Estado combinada a uma atitude de
desmascaramento do “mito do Estado” em vigor na Alemanha Guilhermina poderia
parecer, por sua vez, uma perspectiva evidentemente conforme à insistência de Weber
em uma caracterização dos traços essenciais do Estado, inconfundivelmente minimalista
e nominalista.
Desde os cuidados do abastecimento de alimentos até a proteção das
artes não existe nenhum fim que as associações políticas não tenham
perseguido, em algum tempo, pelo menos ocasionalmente, e desde a
garantia da segurança pessoal até a jurisdição, nenhum que tenham
perseguido o provimento da subsistência até o patronato das artes,
não existe fim concebível que alguma associação política não tenha,
em algum momento, perseguido todas as associações. (Weber, 1991:
p. 34).
Quase ao mesmo tempo, Schumpeter defendia uma tese similar, de um ponto de
vista político e teórico semelhante, em seu ensaio “A crise do Estado cobrador de
impostos”. A própria suposição da existência de um “Estado” anterior ao início da era
moderna é tendenciosa e anacrônica.
Estamos acostumados a considerar certas funções sociais como
específicas ao Estado e outras como especificamente “privadas”. Mas
não existe fronteira clara ou permanente que define de modo
inequívoco quais assuntos dizem respeito ao Estado: isso seria
pressupor a existência do Estado (Schumpeter, 1954: p.11).
Foucault toma o mesmo tema em seu curso de 1978-1979, em uma chave um
pouco modificada; ele se declara culpado à acusação de ter negligenciado a “teoria do
Estado”, na medida em que tal atividade envolve a dedução de efeitos históricos a partir
de características consideradas essenciais ao Estado. Ele justifica sua abstenção por duas
razões. Primeiro, a história não é uma ciência dedutiva. Em segundo lugar, o Estado não
tem essência; em si mesmo, o Estado não é mais que “o efeito móvel de um regime de
governamentalidades múltiplas” (Foucault, 2008a: p.106).
Foucault segue para argumentar que os problemas políticos no que se refere ao
governo e ao Estado podem ser, na verdade, analisados mais adequadamente por meio
de uma abordagem que evita teorizações essencialistas do Estado. Mais à frente,
sugerimos que alegação correspondente, em sentido um pouco diverso, pode ser feita
em nome de Weber. Mas a postura de Foucault é, em sent1984ido importante, menos
minimalista do que aquela que Weber pode ter sido inclinado a admitir, uma vez que ela
inclui a tese positiva de que o Estado moderno é caracterizado peculiarmente por seu
15
modo de assumir o governo racionalizado de “todos e cada um”: uma prática que
sintetiza e torna simbióticas a “totalização” e a “individualização”.
Weber certamente estava familiarizado com tal ideia de Estado, e com suas
ligações com a herança do Polizeistaat e, de modo mais distante, com a tradição da
Pastoral cristã. Em seus próprios termos, mas ainda assim inequivocamente, ele a
rejeitava. Tal é a implicação, por exemplo, nas “Considerações Intermediárias”, de sua
recusa em aceitar a assimilação do “pragmatismo objetivo das razões de estado”, que
define “todo o curso das funções internas do Estado”, à perspectiva técnica de “todas as
‘políticas de bem-estar social’” no contexto moderno (Weber, 1971a: p.392). “Bem-
estar” implica, na perspectiva de Weber, o compromisso com um critério de
racionalidade substantiva – a consideração do significado substantivo de justiça (ou
“justiça social”) em relação a um único caso individual ou conjunto de casos. Isso
contradiz os princípios de racionalidade formal “sem consideração pela pessoa”, que
Weber tem como indispensáveis tanto à administração burocrática quanto ao
capitalismo. O contraste entre a racionalidade legal formal e a “justiça khadi” (a
avaliação individualizada, racionalista-substantiva, dos casos individuais) é, claramente,
um grande e recorrente elemento na explicação de Weber sobre as condições distintivas
do desenvolvimento econômico ocidental; sua percepção do recrudescimento da “justiça
khadi” na sociedade de seu tempo envolve, de forma correspondente, a premonição da
corrupção ou ossificação da dinâmica ocidental (ver Lash, 1987).
Essa mobilização por Weber de seu contraste entre racionalidade formal e
[racionalidade] substantiva mais dramatiza do que elucida as bases exatas de sua recusa
resoluta da ideia de uma racionalidade política individualizante. Tal recusa tem,
reconhecidamente, uma honrosa proveniência filosófica. A este respeito, Foucault
menciona a discussão de Platão n’O político sobre a concepção pastoral de monarquia,
ou de governo como o cuidado individual do governante em relação a cada sujeito
particular – uma discussão encerrada pela observação de que apenas um deus seria
capaz de governar desse modo. Poderíamos mencionar, no mesmo sentido, a afirmação
de Kant de que “Wohlfahrt hat kein Prinzip” (“o bem-estar não tem princípio”) – isto é,
não pode ser transformado formalmente em uma máxima válida para as tarefas do
Estado (1956, p.145).
As opiniões detalhadas de Weber sobre as controvérsias da política de bem-estar
são, na verdade, mais complicadas do que algumas críticas gerais poderiam sugerir. Ele
endossa os seguros estatais, contra acidentes e de saúde para trabalhadores, criticando
16
de fatos os cálculos mesquinhos que limitaram o escopo das providências de Bismarck
neste campo. Em sentido contrário, a fórmula que ele usa ao ceder ao caráter
essencialmente técnico e consensual de certos domínios de tal política (‘karitativ-
polizeilicher Wohlfahrts- und Wirtschaftspfledge’) quase poderia ter sido escolhida
expressamente para sugerir a possibilidade de profundas reservas implícitas (Weber,
1973: p.153). Sem dúvidas, a sensibilidade histórica de Weber estava agudamente alerta
para as afinidades de significados do “Estado de Bem-Estar” e “Estado policial” – e das
ligações deste último com os resíduos, no caráter nacional, dos traços de servidão –
dominação da Obrigkeit e Untertan. “Diesen Herren Steckt eben die Polizei im Leibe”
(“esses cavalheiros tem a polícia em seus próprios ossos”) é uma fórmula
caracteristicamente weberiana de investida contra algumas práticas autoritárias da
gestão industrial alemã (Weber, 1924: p.396).
Sugeri mais acima que a definição de Foucault de governo como “condução de
condutas” poderia ser vista como consonante ao tema weberiano da Lebensführung. Tal
noção, evidentemente, deve ser agora cuidadosamente qualificada, acrescentando-se que
Weber teria desconfiado fortemente da ideia de uma racionalidade concernente à
condução da conduta de outros. De fato, se ele não realizou um estudo específico do
Estado policial, pode ter sido – para além das outras considerações que já foram
perscrutadas aqui – porque, no máximo, isto teria valido a ele como uma ilustração
delimitada temporalmente de um tema absolutamente universal de sua visão histórico-
mundial; a saber, a perigosa justaposição de certas realizações ocidentais “que nos
satisfazemos em pensá-las como tendo valor universal” com o reiterado destino possível
tanto de uma “domesticação das mãos à instituição do Estado” (Weber, 1971b: p.326)
quanto da sujeição aos poderes seculares e pastorais de uma autoridade religiosa. Tal
dialética é vista em ação até mesmo na era dourada da ética protestante:
O controle eclesiástico-policial da vida do indivíduo, tal como foi
praticado nos territórios das igrejas estatais calvinistas, tocando as
raias da Inquisição, podia ao contrário contrapor-se, por assim dizer,
àquela liberação das forças individuais que era condicionada pela
busca ascética da apropriação metódica da salvação, e de fato assim
ocorreu em certas circunstâncias. E do mesmo modo que a
regulamentação estatal do mercantilismo podia evidentemente fazer
valer sua disciplina desenvolvendo indústrias, mas não, pelo menos
sozinha, o “espírito” capitalista – muito pelo contrário, pois onde
assumia um caráter policial e autoritário ela muitas vezes paralisou o
desenvolvimento deste –, assim também podia surtir o mesmo efeito a
regulamentação da ascese pela disciplina eclesiástica quando
desenvolvia modos excessivamente policialescos [...]” (Weber, 2004:
p.137-8).
17
Parte da explicação de Weber sobre as condições de possibilidade do capitalismo
ocidental envolve o impasse medieval entre os poderes separados e competidores da
igreja e do império ocidentais, que resultou em que nenhuma das duas instituições
alcançaram um poder “Cesaropapista” ou pastoral sobre a vida individual. Foucault
segue Weber ao assinalar a tensão e disjunção permanentes na tradição ocidental entre,
de um lado, a filosofia de governo incorporada no que Foucault chama de “poder
pastoral” e, de outro, no que ele chama de “jogo da cidade” da política democrática
ateniense, baseada na lei, cidadania e espaço público. Isto é contrastado com a cultura
oriental, ortodoxa, com sua fusão entre Estado e igreja e sua imagem do imperador
cristão. A diferença aqui, é claro, é que Foucault credita ao Estado moderno o projeto
“demoníaco” de combinar ou superpor, no interior de um regime secularizado global,
essas duas estruturas radicalmente distintas de dominação. Para Weber, poderíamos
dizer que o problema central das políticas sociais é a manutenção de condições coletivas
que alimentem uma Lebensführung individual ativa, resistindo à subsunção desta última
a uma supervisão e reglémentation da vida coletiva-pastoral rígida e pervasiva. A
abordagem de Foucault cruza a de Weber neste ponto, mas apenas parcialmente; ele
insiste em creditar as diferenças estruturais entre os estilos policial e liberal de governo,
mas insiste igualmente que essas duas epistemes políticas dividem um interesse
fundamental comum ao problematizarem a existência individual como assunto de
Estado. E se retornamos a Weber sob essa luz, talvez possamos reconhecer mais
claramente como todo o seu trabalho, de fato, está focado na condução e na
racionalidade de governo, mesmo que ele não se exprima nesses termos. Se Weber não
é um teórico notável deste assunto, talvez isso se deva ao fato de que ele é um de seus
expoentes mais apaixonado e pragmaticamente comprometido.
A “ciência lateral” da sociologia e a alma do cidadão
Um modo de afiar nossa compreensão acerca desta dimensão das preocupações
de Weber é utilizar algumas observações de Foucault a respeito das transformações
postas em prática pela economia política clássica no que tange à relação entre ciência e
governo. A “ciência da polícia” é um exemplo arquetípico do tipo de prática discursiva
que Foucault denominou como savoir, um conhecimento que é também, e
essencialmente, um “know-how”. Economia e regulação são aqui conhecimentos-
objetos inseparáveis; da perspectiva policial, o conhecimento da economia é idêntico ao
18
know-how da administração. A economia política fratura essa união. Ao mesmo tempo,
na medida em que demostra a finitude inelutável dos meios de conhecimento do Estado
no que se refere a processos econômicos, ela também quebra, em princípio, com a
noção de uma arte de governo que poderia deduzir suas ações particulares de uma
ciência da economia. Para si, a economia política assume a posição de um
“conhecimento lateral”, nos termos empregados por Foucault: um corpo de princípios
que o Estado deve levar em conta ao avaliar as consequências de suas ações, mas que
não é feito para servir como universal axiomático de políticas. Laissez-faire não é, no
fim das contas, um remédio anódino para todos os cuidados do Estado; ele pode
estabelecer limites aos deveres governamentais, mas também deixa uma incerteza
profunda e duradoura quanto aos critérios exatos que irão definir tais limites na prática.
Foucault sugere que um fator decisivo nessa reconfiguração epistemológica é
desempenhado pela introdução de um novo conceito de interesse. A economia política é
inspirada, particularmente em sua qualidade de reflexão sobre a história e a formação da
sociedade civil, por um novo entendimento. A saber: que a população a que a política
mercantilista até então se dirigia como objeto de seu poder e conhecimento era
composta por sujeitos individuais, cada um dos quais – para confusão da argumentação
mercantilista – é também um sujeito de interesses. Desse modo, os sujeitos individuais
são agentes governados por uma racionalidade autônoma de preferências que são
irredutíveis, intransferíveis e – vistas da perspectiva totalizante do conhecimento estatal
– inescrutáveis. De acordo com a hipótese de Foucault, é a heterogeneidade e a
incongruência dessa textura racional da individualidade econômica em relação à lógica
de totalização, bastante diferente, característica da jurisprudência política que doravante
torna insustentável uma soberania econômica total. Ao mesmo tempo, a “ciência
lateral” da economia presta importante contribuição aos recursos do governo liberal por
meio de sua exploração das necessidades e capacidades de uma forma de
individualidade civil, a saber, a do homo economicus, em relação a qual o Estado está
obrigado a abandonar qualquer reivindicação de domínio direto.
A concepção de individualidade econômica endossada por pensadores do
Iluminismo escocês não é de modo algum uma abstração redutiva, é claro, mas um tema
entrelaçado num extenso tecido de reflexões morais, históricas e políticas sobre a
natureza e o caráter humanos. Alguns comentadores contemporâneos lamentaram a
nossa perda subsequente dessa dimensão de conexão entre discursos econômicos,
sociológicos e filosóficos. Weber representa um contra-exemplo importante a tal
19
diagnóstico e, de fato, ele é representante de um traço estabelecido há muito tempo da
Nationalökonomie alemã. Em suas características mais gerais, esta última é uma
investigação das ações individuais socialmente orientadas, uma extensão do “ponto de
vista” econômico de modo a abranger o estudo das condições e dimensões extra-
econômicas das ações humanas. Sem dúvida, é também essa perspectiva especial que
mais claramente diferencia o projeto sociológico de Weber daquele de uma “ciência da
sociedade”9.
Artigos recentes de Wilhelm Hennis enfatizaram tal estrutura das
problematizações weberianas. Centrais aqui são as relações entre um sistema de
formação e condicionamento das forças coletivas sociais – a “arena dos poderes
normativos e de facto” – e um objeto focal, a “economia” (die Wirtschaft), que também
e ao mesmo tempo é percebida como das Wirtschaften, “ação econômica”. Como
Hennis aponta, este último termo, cujas conotações em alemão são apenas palidamente
representadas por sua tradução para o inglês, sintetiza o respeito que a
Nationalökonomie confere à antiga perspectiva de uma Ökonomik (œconomia), uma
doutrina “prático-filosófica” sobre a conduta do lar, da economia doméstica individual
(Hennis, 1984: p.34). Quando lemos as declarações de Weber sobre a razão de Estado
como critério de relevância para a economia política, pode valer a pena recordar ao
mesmo tempo as conexões entre a antiga Ökonomik e o Cameralismo. Como notou
Pasquino, por vezes, na literatura da Polizei, o príncipe é caracterizado como o Wirt, o
marido-dono da casa-empreendedor de seu Wirtschaft-state (Pasquino, 1982: p.88). Tal
noção reflete acuradamente tanto os limites embaçados entre a soberania pública e o
domínio privado (a posição do príncipe como proprietário literal de seu território e
povo) e a desconcertante transformação efetuada por esse novo governo econômico em
relação à tradição do poder pastoral, mais antiga e de matiz teológico: a passagem do
pastor para o criador de gado, de Hirt para Wirt.
Mas, finalmente, a devida apreciação da pertinência dessa herança para
compreender Weber precisa ser acompanhada de um claro reconhecimento do enfático
antagonismo de Weber aos mundos pastoral e policial. Seu tratamento do Wirtschaften e
9 A ideia de uma economia estendida, ou uma aplicação generalizada da “abordagem econômica” ao
comportamento humano pode ser perseguida em direções muito diferentes. Tais diferenças continuam a
estruturar o campo de debates no qual os temas weberianos são debatidos hoje em dia. Consideremos a
distância entre os projetos de Gary C. Becker, de um lado, e de Albert O. Hirschman ou de Amartya Sen,
de outro. Foucault aponta as diferenças marcantes entre o neoliberalismo alemão dos Ordoliberalen e o
neoliberalismo estadunidense da Escola de Chicago. Estes são conflitos que guardam alguma analogia
àqueles dos tempos de Weber entre Schmoller e a Escola Austríaca.
20
“das ordens e poderes da sociedade” – ou, seguindo o emparelhamento de expressões
igualmente expressivo citado por Hennis, da Persönlichkeit e Lebensordnungen,
personalidade e ordens da vida – não se apresenta ao campo público da ação
governamental e da raison d’état como um manual racional de Lebensführung coletiva.
Em vez disso, ele se apresenta como uma “ciência lateral”, como aquela dos
economistas políticos, uma doutrina das condições e consequências necessárias ou
prováveis que a razão de Estado deve levar em conta no curso de suas escolhas
pragmáticas de ação ou abstenção de ação.
Essa perspectiva da pertinência prática de uma sociologia molda a discussão de
Weber como um espaço de debate em vários níveis e direções. De um lado, como nos
estudos agrários sobre a Prússia oriental (cujas recomendações práticas, é claro, situam-
se o mais longe possível de qualquer versão simplista do laissez-faire), Weber se
interessa pelas transformações nas estruturas da agricultura, posse de terras e população
cujas consequências incontroláveis ele acredita serem prejudiciais à força política da
nação alemã, em termos de caráter coletivo e da Lebensführung. No outro extremo, mas
novamente com ênfase particular especificamente sobre as condições alemãs, estão suas
análises da formação e da deformação do caráter da classe dominante nacional (“O
caráter nacional e os ‘Junkers’” e “Parlamentarismo e governo numa Alemanha
reconstruída”10
). O que o próprio Weber chama, entre aspas, de uma “caracterologia”
ocupa um duplo papel no âmbito desses estudos, primeiro como uma dimensão de
apreciação dos efeitos da ação governamental, e em segundo lugar como um fator
(mediado por meio de uma elaborada dialética entre atitudes coletivas e dinâmicas
institucionais) na avaliação do nível existente de capacidade de governo no interior de
uma dada sociedade. Hennis tece aqui um comentário astuto sobre a inclinação
distintiva do pensamento liberal que Weber tem em comum com Tocqueville: “Eles não
estão tão interessados em “direitos” e “liberdades” quanto nas formas de constituição
moral (Seelenverfassung) que correspondem a eles” (1984, p.73).
Hennis dirige nossa atenção a outro indicador crucial do pensamento de Weber
ao notar suas observações sobre as diferentes atitudes de Jacob Burckhardt e Anton
Merger em relação aos problemas colocados pelo papel moderno da imprensa.
Burckhardt expressou inquietação liberal a respeito das influências sobre condutas
individuais envolvidas num modo de vida político público como o da polis grega, que
10
Weber, 1971c e 1980 [N.T.].
21
“condicionou toda a existência do cidadão ateniense até seus aspectos mais íntimos”.
[Tal posição] contrasta com a perspectiva de Menger, publicista socialista, que via a
imprensa numa sociedade futura “assumindo o antigo papel do censor, lidando em seu
fórum com assuntos que não se pode deixar aos tribunais”. Hennis relembra aqui “a
maneira pela qual a antiga instituição da censura – que tanto fascinou Maquiavel,
Rousseau e até mesmo Tocqueville - moldou, supervisionou, advertiu e disciplinou
publicamente a alma do cidadão” (1983, p.166-7). Por detrás da reticência científica de
Weber quanto à direção de sua própria preferência de valor-racional sobre este tópico,
Hennis aposta numa clara, ainda que atenuada, inclinação na direção da posição de
Menger.
Tal sugestão faz bastante sentido. Ela é de fato, a um só tempo, apropriada e útil
para reconhecer a filiação dos temas da “caracterologia” de Weber não apenas às fontes
pré-liberais do Nationalökonomie, mas também ao topos maquiavélico da virtude
cívico-republicana – como evidenciado pela evocação de Weber do “belo trecho” na
História de Florença que elogia “ os cidadãos que colocaram a grandeza de sua cidade
natal acima da salvação de suas almas” (Weber, 1971a: p.150). Sem dúvida é aqui que a
“ética da responsabilidade” se aproxima mais ao que poderia ser imprecisamente
chamado de um “espírito de Estado” weberiano, comparável ao “espírito do
capitalismo”. Tal analogia incipiente poderia ser estendida para recobrir o entendimento
de Weber sobre as ligações paradoxais entre as virtudes da condução da vida e
motivações substantivamente irracionais ou até mesmo quase niilistas; consideremos a
“impassível ‘razão de Estado’ divina” por trás da vocação organizadora do mundo do
Calvinista (Weber, 1999: p.398). Mas o dilema da “censura” também pode ser lido
como síntese da tensão dual [presente] na perspectiva sócio-política de Weber, [aquela]
que confere valor mais duradouramente sugestivo para as reflexões atuais sobre
governo.
Em primeiro lugar, indo ao ponto tão cruamente quanto possível, Weber
certamente se inclina na direção da busca de medidas ativas para o bem-estar da “alma
do cidadão”, como supõe Hennis. Mas [Weber] é igualmente insistente em que não se
pode permitir que tais medidas assumam a forma de um sistema hierocrático/de bem-
estar/policial de arregimentação totalizada. Tanto na forma e, em extensão considerável,
em seu conteúdo particular, tal problemática não é de modo algum peculiar a Weber; ao
contrário, ela condensa um problema liberal de governo que foi colocado durante a
maior parte do século XIX. Pode valer a pena rememorar que a evocação citada acima
22
sobre a censura romana conota, ao menos em sua referência histórica literal, uma
agência controladora específica, distinta em suas bases e em seus quadros de outros
departamentos de controle político. Weber, como muitos liberais antes dele, está a
procura de forças, medidas e processos localizados não no interior das instituições do
Estado, mas no estrato intermediário da coletividade, que serão capazes de modelar e
propagar o tipo de cidadania econômica e política adequada às condições da sociedade
industrial. E aqui, como muitos outros liberais, Weber encontra seu próprio caminho de
a um só tempo respeitar e transcender as restrições governamentais implícitas nos
princípios formais-racionais do Rechstaat11
administrativo.
Desencantamento e transições para a Modernidade
As páginas anteriores procuraram suscitar, por vezes talvez contra o grão
aparente do material, um padrão de contrastes e conexões entre a obra de Weber e o
interesse de Foucault na racionalidade governamental. Agora resta considerar aqui
algumas das conexões estabelecidas por meio do impacto subsequente das ideias de
Weber, que podem ter uma significação mais facilmente demonstrável. Mas primeiro
será necessário mobilizar o apoio de argumentos de Foucault para afastar um obstáculo
remanescente para a apreciação da relevância de Weber para o pensamento
governamental em nossos tempos. Este último problema afeta a compreensão adequada
do que podemos chamar a segunda maior linha de tensão na visão de mundo de Weber:
o tema sintetizado na formula “desencantamento do mundo”. Aqui, mais uma vez,
Wilhelm Hennis mostra sua intuição certeira ao enfatizar tal ponto, porém desta vez será
necessário discordar de suas conclusões.
Apesar de Hennis ser crítico de comentadores anteriores que sugeriam que
Entzauberung (desencantamento) seria o tema principal da obra de Weber, o papel que
ele mesmo atribui [ao tema] em sua discussão sobre a Lebensführung é apenas um
pouco menos crucial. Entzauberung corresponde aqui àquele umbral histórico da
modernidade definido pelas análises de Weber, além do qual os poderes e os valores
orientadores de tal análise devem exaurir sua pertinência explicativa. A sociedade da
burocracia e do mercado é caracterizada pela “inexplicabilidade ética das relações
sociais interpessoais”, “a impossibilidade de valorização ética” das relações humanas no
interior do processo de produção capitalista. A conclusão lógica desse desenvolvimento
11
Estado de Direito [N.T.].
23
é a liquidação das ideias de “vocação” e do “homem vocacionado” cujas definições
formam o coração ético da sociologia de Weber. Hennis imagina Weber,
consequentemente, encontrando-se reduzido ao silêncio no que concerne ao futuro e
limitado à composição de uma “sinfonia de adeus” mahleriana aos mundos perdidos da
Lebenführung (Hennis, 1984: p.26).
Hennis considera que o significado mesmo desse tema em Weber, e portanto o
significado essencial de todo seu trabalho, tornou-se inacessível ao público
contemporâneo (exceto por um esforço especial de reconstrução hermenêutica). Tal
inacessibilidade é creditada aos efeitos das catástrofes morais e culturais que nos
separam espiritualmente de Weber e da antiga civilização europeia cuja dissolução
Weber testemunhou, conscientemente. As conotações éticas do tema de Weber, a
possibilidade de uma esfera cultural de um discurso prático-filosófico e antropológico
(estritamente não-positivista), são inacessíveis ao filistinismo de base tecnocrática das
gerações seguintes de sociólogos.
Talvez Foucault estivesse inclinado a subscrever uma variante ligeiramente
alterada dessa conclusão, acrescentando a ressalva de que um “retorno” proveitoso a
Weber requer que busquemos em nosso próprio presente as formas irreconhecíveis
pelas quais as questões de Weber, não obstante toda crítica cultural desencantada,
retornaram e se renovaram, modificando, por sua vez, as questões que agora nos seria
mais útil propor a Weber.
Mas também podemos conjecturar que Foucault teria, com boas razões,
questionado a adequação das proposições de Hennis sobre os significados do
Entzauberung em Weber. Pois existem fortes bases para duvidar se Weber algum dia
adotou o postulado de uma ruptura histórico-mundial geral separando o universo
(tradicional) da ética de uma vida (moderna) sem ética ou significado ético. De forma
mais plausível, pode-se considerar que o tema mais constante em Weber, não tocado por
nenhum de seus enfrentamentos com as vicissitudes da modernidade, é a relação entre
os componentes eticamente significativos e não significativos da ação social. Isso pode
ser visto assim, por exemplo, no projeto de pesquisa sobre o trabalho industrial12
: até
mesmo fenômenos econômicos que Weber pode ter visto como desprovidos de
significado ético em si mesmos, estimularam seu intenso interesse em relação às suas
consequências éticas possíveis. Em outras ocasiões, e de modo mais evidente, pode-se
12
Weber, 2009 [N.T.].
24
notar que a suposta desaparição do homem vocacionado no mundo moderno admitia
exceções em ao menos duas vocações de enorme interesse para Weber, a saber, aquelas
da ciência e da política, sem mencionar seu esboço suplementar sobre a vocação do
jornalismo.
Muito tem sido falado sobre o sentimento empático e intenso de Weber pelas
angústias provocadas pela racionalização da vida, por vezes à custa de negligenciar suas
respostas ponderadas a tais desafios. Em geral, há poucas bases para atribuir a Weber a
crença de que o desencantamento do mundo teria sido um limiar de mudança que só
pode ser negociada ao preço de sacrifícios morais intoleráveis. Em vez disso, o que ele
parece ter querido transmitir foi que diferentes sociedades acercam-se de tal limiar
dotadas de níveis muito variados de capacidade para uma negociação bem sucedida –
por razões que sua sociologia procura elucidar. Pode ser mais dramaticamente
satisfatório ler o diagnóstico de Weber das condições alemãs como profecias culturais
universais – a cruel particularidade de suas observações sobre o caráter germânico
dificilmente sendo mais palatável hoje do que no tempo em que foram escritas; mas tal
leitura pode ter um alto custo em termos de mistificação. Os “últimos homens” de
Nietzsche, perdidos na tradução de [Talcott] Parsons para a Ética Protestante (“esse
Nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes alcançado”13
) são,
como em Nietzsche, primeiro e antes de tudo alemães. O gume da crítica de Weber está
apontada não tanto contra o processo de Entzauberung como tal, mas contra as
compensações falsas e imaturas do Entzauberung adotadas por seus companheiros
alemães: a reprodução em massa da personalidade Junker do “novo-rico aristocrático”, a
epidemia eclética de buscas privadas por Erlebnis14
. Privar as prescrições e os
presságios mais imediatamente políticos de Weber de seu contexto específico, histórico
e nacional, não apenas os torna alvo fácil para distorções polêmicas, mas também não
faz justiça às potencialidades gerais e duradouras da sociologia de Weber como
ferramenta de diagnóstico. A catástrofe alemã certamente não sinaliza o fim da
expectativa de vida viável dessa sociologia. Em sentido mais amplo, toda a abordagem
de Weber, ao contrário, assume a continuada variação temporal e regional dos
problemas sociológicos.
Tal avaliação é complicada e, ironicamente, nuançada (mas não radicalmente
abalada) quando consideramos a intrigante história, talvez estudada inadequadamente
13
Cf. edição brasileira, Weber, 2004: p.166. [N.T.]. 14
Experiência, no sentido específico de vivência [N.R.T.].
25
desde os tempos de Weber, de termos vitais em seus escritos, como “estilo de vida”
(Lebensstil) e “modo de conduta de vida” (Lebensführung)15
. Sem dúvida o fenômeno
da banalização semântica funcionou aqui, com o qual um crítico teórico pode lidar por
meio de um sarcasmo melancólico e aristocrático. Mas também há o tipo de banalização
que atesta simplesmente o sucesso histórico de uma ideia, seu status alcançado como
uma “palavra-chave” – “modo de vida”: ocidental ou oriental, democrático ou
socialista, um lema no hino de todo aspirante ao poder mundial desde 1945; “estilo de
vida”: a rubrica para a auto-afirmação cultural e comercial de sociedades de consumo de
massa. Os críticos de esquerda a Weber percorreram por vezes distâncias brutais nos
anos 1950 e 1960 para construir pontes de cumplicidade entre a ética e a política de
Weber e o advento do Terceiro Reich. Não podemos senão nos perguntar se tal
iniciativa não foi uma espécie de substituto metonímico em relação ao reconhecimento
de uma continuidade muito mais plausível, a saber, aquela entre as ideias weberianas e o
ethos político coetâneo da República Federal no âmbito da qual tais críticos escreviam.
Talvez a culpabilidade hipotética de Weber frente ao fato do nazismo tenha sido
somente um tipo de sinal simbólico de uma consciência mais profunda – jamais
adequadamente refletida – de uma afiliação weberiana no coração da democracia alemã
no pós-guerra. De todo modo, é curioso quão pouca atenção foi dada até o momento, na
literatura secundária mais recente, à presença de uma demonstrável contribuição de
origens weberianas durante as etapas de fundação da República Federal.
Neoliberalismo weberiano
Foucault discute, em seu curso sobre o governo neoliberal, um grupo de juristas
e economistas alemães que, após 1945, ficaram conhecidos como Ordoliberalen, devido
à sua associação comum com o periódico Ordo: Wilhelm Röpke, Walter Eucken, Franz
Böhm, Alexander Rüstow, Alfred Müller-Armack16
. Alguns de seus membros foram
alunos de Alfred Weber; Müller-Armack, como vimos, engajou-se em uma tentativa
explícita de estender o trabalho de Max Weber. As ideias dos Ordoliberalen forneceram
15
Até aqui temos traduzido Lebensführung como “condução da vida. Alguns tradutores de Weber optam
por “modo de vida”, embora a “conduta de vida” seja o mais aceito na discussão recente. Ver, por
exemplo, a edição brasileira de Antonio Flávio Pierucci (Weber, 2004: p. 7) e a edição crítica de
Francisco G. Villegas, em espanhol, da Ética Protestante (México: Fondo de Cultura Económica, 2011:
p. 259-60). Por razões de precisão, optamos, apenas nessa passagem, pela forma “modo de conduta de
vida”, como meio termo entre a consistência do uso do conceito ao longo do texto e a coerência com a
locução que se segue, entre aspas, no original. [N.R.T.]. 16
Tais pontos são tomados das aulas que Foucault deu em 29 de março e em 4 de abril de 1979 [aulas
que, desde 2004, estão publicadas na edição do curso Nascimento da Biopolítica, cf. nota 4].
26
muitas das bases intelectuais para os princípios de mercado social da política da
Alemanha Ocidental no pós-guerra. O âmago de sua filosofia pode ser descrito como
uma reapresentação vigorosa do tema weberiano das Wirtschaften, em seu sentido
amplo tal como interpretado por Hennis. Nesse modelo, o esquema da empresa é
apresentado não apenas como um modelo para a conduta da atividade econômica, e sim
para a totalidade da ação humana. Cidadãos individuais deveriam ser empreendedores
de si mesmos e de suas vidas; a vida individual deveria ser estruturada como um
agrupamento de empreendimentos, econômicoa e não-econômicos. Rüstow descreve
seu programa para atingir tal meta como Vitalpolitik (“política vital”) e define o
principio interno da democracia liberal como eine menschenwürdige Lebensführung
(“uma conduta de vida digna de seres humanos”), (Rüstow, 1963: p.36, 82). O mercado
econômico, como espaço de liberdade para o jogo competitivo entre empresas, fornece
um argumento aceitável para a regeneração do Estado e é seu promotor e curador: um
motor de prosperidade que, ao mesmo tempo e ipso facto, recria a ordem política e a
legitimidade a partir do vácuo da destruição nacional.
Foucault tece dois comentários interessantes sobre os Ordoliberalen. Um deles
[consiste em] notar o teor construtivista, anti-naturalista de seu pensamento. O mercado
é visto como uma ordem autônoma, mas não autossuficiente. Políticas ativas e
inventivas são mobilizadas para preservá-lo, e tal tarefa deve constituir a racionalidade
básica da ação governamental. Seu segundo comentário se refere ao caráter anti-fatalista
desse neoliberalismo, uma versão do weberianismo notavelmente desprovida do
pessimismo cultural que tantos comentaristas têm notado no tema weberiano do
Entzauberung. Foucault apresenta os Ordoliberalen como veementes opositores da tese
que ele atribui fundamentalmente a Sombart, [qual seja], a de que o vazio moral e a
desorientação das sociedades de massa modernas são consequência direta do sistema
econômico liberal. Ao invés disso, eles sustentam [que] tais fenômenos são efeitos das
políticas anti-liberais praticadas sucessivamente por todos os regimes políticos da
Alemanha moderna.
Em seu livro A crise social do presente, escrito durante o exílio suíço e
publicado neste país em 1942, Wilhelm Röpke escreveu: “o autor sentiu-se impelido a
realizar um esforço desesperado de orientação espiritual”. Tais insinuações éticas e, por
vezes, religiosas [presentes] no neoliberalismo alemão não devem ser descartadas como
fachada filosófica de uma restauração anticomunista. De todo modo, há mais envolvido
em avaliar suas implicações do que uma avaliação do ambiente moral da república de
27
Adenauer, a partir de padrões weberianos ou quaisquer outros. O que a análise de
Foucault tende a confirmar é, primeiro, que há uma continuidade real de estilo e de
convicção entre o pensamento de Weber e o dos Ordoliberalen; em segundo lugar, que
ideias tais como as deles demonstraram uma capacidade inovadora real na era do pós-
guerra, o que se reflete, ao menos em alguma medida, na emergência de um novo
Lebensstil coletivo.
Tais influências são legíveis nos estilos governamentais que recentemente se
tornaram predominantes em várias sociedades ocidentais: a proposta de governos aos
seus cidadãos de um novo ethos de responsabilidade, e a promoção de um “cultura
empresarial” como novo modelo de cidadania econômica e social. As iniciativas
políticas envolvidas nesses desenvolvimentos se originam principalmente (mas não
exclusivamente) desde o centro e para a direita. Mas esse não é necessariamente o caso
no que se refere às forças subjacentes de mudança social. A politização de aspectos da
existência pessoal, a demanda por respeito ou apoio do Estado para exigências
crescentes de autonomia pessoal, tendências sem as quais as políticas neoliberais por si
mesmas teriam alcançado pouco impacto, inspiraram as principais iniciativas atuais nas
políticas de esquerda desde 1968. O próprio Foucault foi, de diversas maneiras, seu
pensador mais representativo. Mas Foucault também sugeriu em 1979 que tais
desenvolvimentos não haviam sido acompanhados por uma reflexão adequada sobre os
princípios de uma racionalidade de governo especificamente socialista, no interior da
esquerda, que – não obstante outras realizações intelectuais do socialismo – não há e
nunca houve tal racionalidade. Anos mais tarde, ele ofereceu algumas poucas sugestões
a respeito de como essa situação poderia ser modificada, buscando modos de renovação
do Estado de Bem-Estar que acrescentariam à provisão de formas básicas de segurança
material uma provisão equivalente de meios para autonomia individual (Burchell et. al.,
1986; Gordon, 1986).
Tanto esse diagnóstico e essa sugestão, dentro de suas possibilidades, podem
agora encontrar crescente consenso. Em sentido amplo, o interesse político das ideias de
Foucault a respeito do tema da racionalidade governamental é a contribuição que podem
oferecer, no contexto dos problemas atuais, na direção da satisfação da demanda de
Weber pela reconciliação de uma ética dos fins últimos e uma ética da responsabilidade.
Confrontar tais ideias com as de Weber pode, como esse [capítulo] procurou sugerir,
ensinar-nos algo novo sobre Weber e sobre nós mesmos.
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