10 metamanifestos iluminados

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METAMANIFESTO DA ILUMINAÇÃO SÚBITA (d’aprés V. Pomar e A. Carneiro) À imagem de Altamira, a arte tem sido uma masmorra onde se contorcem xamãs em visões de predação e sexo e morte. Ou a saída da masmorra para um mundo que desalucina este mundo? O artista contenta-se em ser aquilo que o torna carrasco. Depois, autentica-se em re-naturamentos como utente de uma natureza que se projecta como ansiedade de mais qualquer-coisa. Consegue residir nalguma alegria com as suas renas e as unhas estéticas. Recria pela memória para tornar sólido o aqui-agora feito de ausências. Por vezes precipita-se em supostas relações estruturais, numa de possessão, como se fosse um visitante reversível dos infernos. Depos o artista faz-se iogui. Mas faz-se iogui como quem aprofunda e extrai o suco dos fluxos do mundo e dos estados da consciência, e não como quem os suprime. A suposta supressão dos fluxos da consciência regressa (quer se queira quer não) com o restante reprimido. Nada é suprimível e tudo é metamorfoseável. O iogui que ignora que tudo é mutuação está no inferno garantido. A arte do iogui é a canção da mutação: o absoluto é mutação, a não-dualidade é mutação, a espontaneidade é mutação, o vazio é mutação, a mutação é uma mutante. Mutatis mutandis. Como uma puta post-apocaliptica. A unidade e a pluralidade também são mutações reciprocantes. Mutação que não sai do seu sítio. A natureza renasce nos templos. O grande templo é o corpo-consciência. Não há perfeição natural sem as falsas imperfeições do corpo-consciência.

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METAMANIFESTO DA ILUMINAÇÃO SÚBITA (d’aprés V. Pomar e A.

Carneiro)

À imagem de Altamira, a arte tem sido uma masmorra onde se contorcem

xamãs em visões de predação e sexo e morte. Ou a saída da masmorra

para um mundo que desalucina este mundo?

O artista contenta-se em ser aquilo que o torna carrasco. Depois,

autentica-se em re-naturamentos como utente de uma natureza que se

projecta como ansiedade de mais qualquer-coisa. Consegue residir

nalguma alegria com as suas renas e as unhas estéticas. Recria pela

memória para tornar sólido o aqui-agora feito de ausências. Por vezes

precipita-se em supostas relações estruturais, numa de possessão, como se

fosse um visitante reversível dos infernos.

Depos o artista faz-se iogui. Mas faz-se iogui como quem aprofunda e

extrai o suco dos fluxos do mundo e dos estados da consciência, e não

como quem os suprime. A suposta supressão dos fluxos da consciência

regressa (quer se queira quer não) com o restante reprimido. Nada é

suprimível e tudo é metamorfoseável. O iogui que ignora que tudo é

mutuação está no inferno garantido. A arte do iogui é a canção da

mutação: o absoluto é mutação, a não-dualidade é mutação, a

espontaneidade é mutação, o vazio é mutação, a mutação é uma mutante.

Mutatis mutandis. Como uma puta post-apocaliptica. A unidade e a

pluralidade também são mutações reciprocantes. Mutação que não sai do

seu sítio.

A natureza renasce nos templos. O grande templo é o corpo-consciência.

Não há perfeição natural sem as falsas imperfeições do corpo-consciência.

Essas imperfeições são perfeições em transição, deliciosas e complexas.

Penso, logo sou liberdade pura. Repetir isto, como um mantra.

Podes pensar que és a Shakti ou o Shiva ou um bom buda muito nirvanado.

Alegras-te com o teu absoluto a que estás condenado. Entras e sais do

samadhi como quem apanha autocarro. Com um pouco de astúcia tornas-

te gúru para depressa compreenderes que o gurú se torna escravo de ter

discípulos, do seu prestígio samsárico e das vaidades que se insinuam por

detrás das deontologias da santidade. Mata o gurú no gurú, meu!

O teu aqui-agora é a história-natureza com os seus significados a fazerem

strip-tease até ficarem nús. Aprofundas na pele a existência de um

“environment” caótico. Desembaraças-te desse aprofundamento como uma

cobra da velha pele. Mas não te desembaraças da tua naturalidade. A pele

que largas eras tu, em mais uma desvairada mascarada. Na dissimulação

nunca deixas a autenticidade.

Desconfia de quando te falam de desapego. O maior apego é a conceitos

e preconceitos. O gurú apimenta a sua relação com o discípulo impondo-

lhe provas descomunais e objectivos estapafúrdios. Ele superará ou falhará

e viverá a ansiedade do processo. Outras provas lhe serão impostas com a

mesma acutilante impostura. Desapego a apimentar provas. Livra-te dos

preconceitos. Livra-te de preconceitos contra os preconceitos. Livra-te das

teorias e da relutância para com as teorias. O que é delicioso na teoria é a

sua obscuridade ou o seu caracter lírico e privado. Palavras que se

encadeiam como quem canta livremente, sem destinação.

A arte ecológica é uma presença física que não precisa de estéticas futuras.

Relaciona-se com a estética tal como com um fantasma que não existe. A

arte ecológica autentica-se no desconhecido, semeando-se, plantando-se,

regando-se, cuidando-se dela. Não se compreende, desfruta-se. E colhem-

se-lhe os frutos… no tempo apropriado!

A arte em “tibetano”, é a passar de algures para algures sem saír da sua

autolibertação.

A arte ecológica é a presença ou rigpa — a casa desfaz-se — tudo é

cohabitação no grande tempo. Assume-te como Shiva, ò Manel, mas não

te esqueças de dançar nú no alto da colina!

Tens que foder a natureza toda, tantricamente. Meditas, desmeditas.

Ritualizas, desritualizas. A hipercomplexidade do mundo é a

espontaneidade do artista, trepidando, em extase ou em quietude, nas suas

incertezas luminosas, na sua consciência enamorada dos fluxos,

embriegada das suas acessibilidades.

Nas estéticas os valores urbanos sacodem-se. Desenrolam o pathos do

quotidiano. O velho poeta chinês arrasta-se como um verme e arranca os

seus cabelos brancos. Folheia revistas pornográficas de animes. “Apenas

apropriações profundas de um reconhecimento súbito das espontaneidade

de tudo.”, comenta o artista iogui com bocejo antes de mijar no bacio da

avózinha.

A história que podemos assumir serve para entreter! Une saison en

Samsara, diria Rimbaud, a propósito da “história das suas loucuras”!

A liberdade do que nos é dado designarei por excelência. Não há

excelência sem liberdade. Mesmo o desentendido a cimenta como se fosse

um progresso. Mas até esse desentendido é apenas um regresso a essa

excelência da qual nunca saímos.

A liberdade é o caminho duma inquietação que desinquieta para uma

quietude.

O ornamento é exuberância, é saber, e a prova dos nove de uma

libertação consumada há muito.

Há factores dentro do desapego que apimentam a demora em chegar

aonde nunca saímos. Não há nada que nos possamos apegar que sejá

apegável, resmunga o monge budista, porque tudo é ausência e vacuídade

contínuamente, metamorfose ébria de coisas às quais é impossível

apegarmo-nos. O apego é apenas um nome irónico para a farsa, e o

desapego um duplo burlesco dessa ironia.

Saberás concerteza que o gurú do desapego se apegará e desapegará ao

pito mais próximo com o seu corpo sagrado. Foderá, mas não tão

divinalmente quanto isso. Esperemos que as técnicas sexuais estejam bem

estudadas!...

A iluminação de lata. Com citações, a propósito da miséria da existência, e

da liberdade condicional. O incondicionado está fora do prazo, rosna o

filósfo apostata. Regozija-se também o nosso artista-buda com a sua não-

dualidade com acentos líricos, contemplando as suas obras-de-arte

naturalíssimas e voltando a citar o Manuel Vieira — “a revolução social e a

moda na Holanda não serão a mesma coisa?” ou “os budas não servem

para nada”. Mas servem-se no nada do nada. Ah, divinas inutilidades!

Mas mesmo neste nada caímos, ó ilusão, para o lado da parte ecológica,

para o partido das árvores, com uma simpatia sempre sexuada,

pornoecológica. A limpidez original também é sexuada, não é

Samanthabhadra?

Se eu sou tu, então todos somos todos. Somos todos na consciência a

fazer-se presença. Isto é arte? Não há lugares para obstáculos, como na

arte. Podemos resfolegar, refrescar a percepção, mudar as representações,

sem termos que ser perniciosos demiurgos de opereta com barba grande

ou patética pança.

O espaço é o ser entendido, estendido, ou como o velho filósofo grego

apenas diremos que É. Que os mal-entendidos resultem daí, estamo-nos

nas tintas!

Estamos na excelência da excelência, sem ser em caricaturas, ou na mais

miserável das humilhações, cá em baixo, como o Al Hallaj. Ah! Coisa

luminosa!

A história põe-se a provar o espaço no seu íntimo. Não há nenhuma

vertigem do Criador porque tudo é criador criando. Não há nada no

espaço que não seja consciência divina. O robot palita os dentes e

pergunta: “e eu, também tenho consciência divina?”

Uma flecha atinge muitos conhecimentos de “libertação científica”. A

ciência liberta?

Não estou em frente à arte, porque não há arte, mas numa coisa que é

muito mais gira e vasta e menos pateta que a arte. Pelo menos bem menos

pretensiosa na conversa e mais pretenciosa no alcance.

Não faço a mínima ideia do que é o sujeito e o objecto. Sou frique. As

drogas fumam-me. Estou rodeado de tipos tibetanos vestidos de um

vermelho intenso. É capaz de ser uma visão.

A iluminação assola e assusta. Dizem-te que tens que te fazer asceta ou

monge. Prometem-te martírios. Vão-te falsificar a solidão. Andarás

beatamente a bater com a cabeça. Querias a santidade, mas caíste na

estupidificação.

--------------- o gosto até à exaustão --------------

Um lingam a fazer trepidar a razão, como algo que a subentende e dela se

desvia. Algo muito fresco à sombra de uma àrvore muito esperta. Anda-se

a saborear ou experiênciar árvores?

O iogui-artista rasteja através do mundo-pensamento.

Não percas tempo com o coiso e tal. Caga na ideia de que a consciência é

apenas uma montagem de fluxos de energia (também o é?). A memória

está nela como um acidente necessário? A consciência nua é

inevitávelmente libidinosa? É polimórfica? Si, pues, cojones!

Seremos capazes de excluir os "bluffs" que se insinuam na consciência do

artista-iogui? Não será a arte infantil, inábil e sem conceito, mais profunda,

eficaz e libertadora do que muita arte acumulando camadas de “bluff”, de

conceitos ineptos, de justificações e legitimações que apenas levam a um

cul-de-sac?

Consumidores de paixões e de não-saber?... Queres usar as muletas do

não-ser e do não-saber? São a prova do místico? Ou os alicerces de uma

sofística que teatraliza os estados místicos? Serão o não-ser e o não-saber

apenas pregas no tecido do saber e do ser, o outro lado, mais escuro, mais

espaçoso, e com um ar mais desconhecido? Ou serão apenas passos de

recuo, ou gestos de quem se desembaraça de coisas acumuladas, atiradas

silenciosamente ou ruidosamente para fora, para o nenhures, para esse

outro lugar mítico, o lixo, o ruído, onde a arte, a novidade e a libertação,

acabarão por voltar a recolher certos detritos?

Eis-nos no espaço sempre deslumbrante do que nos está ser, no qual nos

somos e o somos — espacialidade que é o caminho de toda fabricação.

Espacialidade ajardinada onde podemos verter risos alarves e lágrimas de

intensidade.

Estou aqui etiquetado com a minha bodeídade, mas com a estupidez do

aluno disposto a aprender — inépcia vulcânica que já não espera extras

para além daqueles a que sempre se deu? A libertação artística assume-se

para além do mundo que tarda.

A equanimidade cansa? Talvez não. Mas a iluminação também pode ser a

paixão desenfreada — espiritua-se numa chuva miúda, vertidamente, sem

"modelos".

Sou um utente informal, um consumidor desta arte-realidade, de uma

presença que transmigra perpétuamente para outras presenças, mesclando-

se nelas,

exorcizando através do metamórfico o metafísico, desconfinando o

supostamente “irremediável”. E no meio disto surge a “graça”, estonteante,

na ondulação de um animal, no pitoresco, num sorriso, na maneira como o

divino se verte em “arte”.

Muitos podem invocar valores seguros, ou o sentido da tradição, venerável,

eficaz como uma santa local, capaz de fazer chover a troco de um ritual ou

de uma dádiva. Mas a iluminação súbita dá-se para além deste comércio,

de exercícicios mnemónicos ou de contorcionismos silogísticos. E a arte é o

local onde se vilumbra de uma forma radical o espirito em suas manobras,

suas identificações e desidentificações, seus malabarismos de sentido,

combinatórias aleatórias e derivas insensatas.

Transcreves a palavra libertação como um "namedropping", associada pois

a nomes de jocosos e atestados místicos: tantrismo, zen, mahamudra,

dzogchen, com suas anedotas feitas de fabuloso e frontalidade. Belas

palavras em linguas obscuras (de preferência mortas) ajudam ao fascínio. E

há o amor, pois é! E a devoção, candida, com ou sem ego posto nela, a

adocicar ou a odiar. Condições ideais para a “inspiritualidade”. Podes

começar a recitar mantras poderosos e catitas e queimar incenso às

carradas (é mais alucinogénio!). A tua bodeídade passa ao lado como uma

agulha que espera uma cáfila.

Poderemos ir "teorizando" como quem desconhece, e nesse senso da

consciência (porque a consciência está cheia de efluvios sensoriais, basta

ler Proust) vamos sabendo-lhe os meandros, tomando consciência da

consciência, despedindo juízos prévios, inventando errâncias improváveis.

Podemos usar o “senão” como possibilidade de esticar os hálitos auto-

libertadores? O caminho-visão vai formando à superfície o ser que o

habita!

Dirão, só para chatear: tudo isto não passa de uma balela interpretativa —

deixai o corpo com as suas inextricáveis misérias violentamente a uivar! O

“vislumbre nu da natureza do espírito” não te livra dos bicos de papagaio

nem do cancro do pulmão, acrescenta o refutador. Mas transforma-o

naquilo que nunca deixou de ser, uma plenitude que se desdobra e

enriquece em episódios cruéis, em sambas samsaricos. Sente-se nas

paixões a refazer a economia emocional, sente-se nas artes a exorcizar as

dores do mundo como uma alegria cada vez maior.

REPOR HOJE A ARTE. MESMO PARA PARVOS. MESMO ENTRE

RUÍDOS.

REPOR AS LENDAS E SUAS INVISIBILIDADES E SUAS

SOLIDARIEDADES.

ORKHEIDOLON = VIB-RATIO

TODA ARTE É DIZER /LIQUIDAR/DESCOMPACTAR SIÃO

DISSEMINAR EM PRAZER É SEGUIR SIMULTANEAMENTOS DA

FRAUDE!

SO HOMEOSTÉTICAL, SO BOTANICAL!

ENCONTRAR/DESENCONTRAR A METALINGUAGEM PARA NOS

SITUARMOS NO INTERIOR DA NOSSAS PINTURAS

A FÉ É UM ASSUNTO DE FÍGADO.

AFIXA A (TUA) TEORIA PARA QUE PAREÇA MAIS ESTÚPIDA.

“OS HOMEOSTÉTICOS SÃO UMA FRAUDE” — O QUE IMPLICA A

MULTIPLICAÇÃO DE PREMISSAS E DE DIÁLOGOS. UMA FRAUDE

QUE SE DIZ FRAUDE PODE SER FRAUDE?

A VONTADE É ASSEXUAL. (DIZ VIEIRA)

ENCONTRAR MITOS ENTRE CARNES.

A NOSSA PINTURA DESMASCARA OS IDIOTAS (DIZ PORTUGAL)

O CAMINHO QUE NOS FOI DADO É O PRAZER DO MAL –

AQUELE QUE SE MISTURA COM O BEM SEM QUERER (DIZ O

CABRITA)

MISTURAS DE SOLIDARIEDADES.

A NOÇÃO DE ELEMENTAR SERVE PARA A CONCILIAÇÃO DA DÔR.

OS HOMEOSTÉTICOS SÃO "MOLES" (DIZ BRITO)

O QUE EU MAIS GOSTO EM ARTE É SEGUIR A MODA ANTES DELA

APARECER:

A ARTE TORNOU-SE A DISCUSSÃO DE UMA DISCUSSÃO DE UMA

DISCUSSÃO

METAMANIFESTO EM MEMÓRIA DO ANGELO (via ernesto/herberto)

… pois há algo que comicha ao fundo

da insensata obliquidade das coisas…

ah o amar sem a desculpa do ridículo

amparado por budismos sem não-ser

acima da perfeição

está o ser directo

sem desculpas a ter que defender

com dentes e unhas e armas de matar

porque as defesas não deixam ver as coisas

e as coisas são o indefensável

e o injustificável

para além dos deuses e das libertações

Adélia Lapa

Falemos das geografias, com flores dentro ou fora, espantando,

marcando, agitando.

Da altura das convenções urdimos renovados projectos, a coisa

minimal de despojar a casa até que fique a linha contundente da

nossa inocência, a limpeza de não ter outras obrigações que não

sejam o de servir o essêncial (sem essências), com honesta sageza e

imbalável convicção. Limpeza contra a mania das limpezas, longe da

higienização das sensações.

Esbracejamos na glória fotográfica. Consideramos o vermelho como

um trabalho a revelar. A revolução desoculta-se fotográficamente?

Falemos do que nos denuncia, de formas para silêncios altos, do seu

secreto trabalho durante as influências.

Livremo-nos dos comissários, do parasitismo de quem organiza por

fora, fechadamente, com as suas razões estrangeiras, e voltemos ao

entusiasmo algo desorganizado dos detonadores estéticos (ó Lapa, ó

Ernesto!), operadores que oscultam e desocultam a revolução e que

preferem à hipócrita encenação mental a glória dos sentidos, mesmo

que imperfeita, no corpo a corpo, na luta incerta.

Digamos o esforço, mesmo no que se vai adiando, errância serial,

exercício à pata, minimal na paleta mesmo que pateta no paleio.

Retórica outra sem banhas ou supositórios.

Onde está a miséria demarcante da melancolia?

Damos atenção a alguma ordem com desordens adjacentes e

celebramos a beleza no seu coração atabalhoado. O mundo deixa-se

fotografar numa torrente dialectica. Graças à fotografia, na doçura

das pinturas, surge a cor extrema das amoras.

Ah! Este unanime grito paleolítico!

Falemos dos grandes rios da arquitectura, dos esquemas narrativos,

das famílias de formas que se arrastam ao longo dos séculos, com as

suas caudas fecundas. Falemos da corrente borburante das

convenções plásticas — onde se consuma o estreito ósculo do gosto

e os patetas desvarios do criticismo.

O pintor e o escultor tornaram-se espécies denunciadas porque

caminhavam com a doçura no fundo. Havia que extingui-los através

de misérias teóricas. Será que o conseguiram?

Invenção da descontinuidade pelas casas-coisas? E a beleza que

desmancha as sagacidades revolucionárias?

desorganizando,

junto a humanas coisas?

reorganizando,

junto ao horror do esquecimento?

Eu até atravesso as explosões eróticas experimentalmente, para

ampliar as vanguardas, com a luxuosa perplexidade de quem tem que

expandir os antigos graus zeros, com os afectos da militância e os

deuses postiços. Porque há que re-detonar todo o estético, para que

das suas ruínas possa desabrochar o homeostético.

E há um certo deslumbramento. Como fotógrafos mostramos a

bebedeira de fotografar — indiciando-se em casamentos… de

imagens.

Chafurdar na investigação, chafurdar no humor negro para recolher a

experiência da história, flor canibal com caninos líricos.

Alguém viera libertar o espaço. Com as suas musas? Comprando nas

lojas do quotidiano? Não. Livrando-se do seu catálogo metódico!

Protege-te das colaborações com os estéticistas, diz o cuco.

Espantam-se os anos nos corpos enquanto comemos amoras muitas

— lá fora sussurra o entusiasmo, num serão revolucionário, com flores

(pouco inclinadas flores) e o regresso dos indomados pelos senhores

da história. Ao invés dos “grandes homens”, sem servilismos aos

poderes.

Nos slides passam doces mãos com suas mães. Há assim um rigor de

vermes na doçura do quotidiano.

Falemos das máquinas últimas, das implícitas esculturas onde se

refunda a suposta matéria do real. E falemos dos títulos profusos que

rondam as coisas construídas.

Alguém viera com a uma cabeça para-o-povo. Fez-se poster.

Achincalhou-se em slogan. Povou-se na originalidade. Era uma

cabeça que procedia a uma investigação rigorosa, serial. Era alguém

cheio de si mesmo e dos deuses. Ou vazio de ambos. Com uma

vacuídade despida de budas ou sugestões de nirvanas. Com a sua

preocupação descomprometida.

Nessa face corriam-lhe dois rios. Em ambos os rios a arte opunha-se

à vanguarda. Soubeste então que a vanguarda também foi um dos

nomes da vacuídade, de grandes caminhos de contrapassagens. Ou

um instrumento para legitimar inépcias. Ou algo quieto para

descrever a irrequietude do metamórfico — não se sabe se a

sensualidade se alarga por aqui… nome profuso de enigmatismo na

epiderme das paisagens…

E as águas desses rios foram prenúncio de casas, arquitectos

dadivosos (e duvidosos) vertendo-se nos signos primitivos, breves,

comovidos, da oralidade.

Falemos de quadros, difíceis, e de Mallarmé, da propiciante

imaginação. Falemos do Espaço-ferramenta, para além dos

inventários, das listas, dos modus operandi. Fascinante anti-

fascinante? A escala descompacta os conteúdos. O conteúdo é a

descompactação nas diversas escalas.

Casas, livrando-se dos arquitectos, sorrindo num discurso histórico,

rigoroso, sorrindo o seu espaço moderno, para-o-povo, para o povo

se aristocratizar. Casas descobertas para as crises sucessivas do

homem. Casas para saír para fora delas. Labirintos Gestuais. Narcisos

políticos a gerir a sua autonomia, a caçar a primeira teoria de si-no-

mundo.

O pórtico, o átrio, o pátio, o claustro… são o espaço-negativo,

comprimindo futuros, envolvendo os envolvimentos modernos — as

casas querem-se como inspiração mais impura. E aí a ciência de si

explode-se. Longa evolução a desnaturar a natura, violentamente, a

caçar o Paraíso. Perdido? Reconhecido no tempo de contagem

através da consciência dos números. A ciências das searas, das

colheitas. O Deus-gestalt. Balbuciamento neolítico. Uma abstracção

que desliza como uma serpente arteira — deslização feita filosofia.

Comunicação globalista atraíndo o vácuo: idade de magia das

intimidades. A arte animal tem a carne doce e o novo põe-se nas

mulheres, na alma, construtor violento na oralidade. Humanifesta

letargia inevitável dos (quase) sinónimos.

O cinema é o sonho do deus-manofactura que atravessa a morte,

com todos os ritos humanos polvilhados de horror e vazio.

Horror da página branca enamorado de si mesmo. Podíamos apenas

estruir todos e implacáveis…).

Porque Deus foi apenas a grande imitação da geometria. Veste

matemática do tempo. Série a extender o Grande Tempo em múltiplas

séries de sub-tempos. Fazer conhecimento é fazer-se divino, é tornar-

se o tal demiurgo, deus-artesão cheio de tesão. Um demiurgo que

gosta de se auto-profanar.

E foi pela pintura que (re)nasceu essa nova história, sono dos gestos

individuais, catharsis, abstracção sexuada que aplaude a revolução

com os seus trajes figurativos. Discurso humano eivado de paleolíticos

de neolíticos, depois da disciplina branca.

Estamos perdidos apenas a viver um sentido Conscientífico. Diga-se a

táctica dessa contra-história. Do horror dos homens aos homens

medonhando-se. Talvez de passagem.

sempre o arrastador e o militante,

sempre a vanguarda e a infância,

sempre a revolução sem solução,

sempre a solidariedade com binóculos

E o alvor da história é o seu sentido sonoro.

Revolucionário é ampliar a Cidade palacianamente, é torná-la uma

imensa cidade-jardim com as mãos. Com as formas ao alcance de

todas as mãos. Com as mãos ao alcance de todas as formas.

O Homeostético é o arrastador e o indiferente aos prestígios do

estético: a pseudo-vanguarda faz o pseudo-militante, enquanto a

cidade acelera o génio. Os olhos frente ao actual mergulham-se nele.

E assim chegamos ao fim na infância:

METAMANIFESTOS DOS GRITOS PÂNICOS

1 (a partir de kurt schwitterz via CesarinY)

A resposta anda pelas bocas das deusas.

Do grito futurista à arte conceptual perdeu-se o essêncial!

Na musa a medrosa medusa medita.

A arte é livre de se surpreender no seu presente. Reza-se em confidências.

Caga-se em manifestos. Reencontra-se contra a sua supressão e o bafio

das sucessivas propagandas.

Ela instaura-se sobre as palavras, mas contamina todas as coisas mais cedo

ou mais tarde. É uma dimensão que compreende o vazio, o não-ser, como

algo que exterioriza os interiores e interioriza os exteriores. Além disso há

cortinas de cena para tudo isso. Mas, as coisas são (pois são!). Cicatrizes

de petizes.

O ritmo insinua-se na arte e destina-se como desvio dos arquétipos feudais

para chegar a cernes mais poderosos e inquietantes. Cimos onde os

profetas se besuntam de cremes e se oferecem de corpo nú às estrelas.

Há quem queira encher o túmulo infinito de coisas como hieróglifos, que se

depositam para uma eternidade oh sob o olhar vigilante de sucessivos

sumo-sacerdotes uh. A mim apetece-me atirar pedras ao futuro, mas sei (e

tu sabes também!) que há muitas criaturas (incluindo bicharocos!) a

aguardar cá fora por palavras com afetos que lhes possam devolver a

liberdade que nunca ninguém lhes tirou, e que se roça constantemente

nelas como felinos pequeninos.

A poesia destina os pedaços históricos à presentificação não-histórica. O

poeta que anda a polir para a história da poesia, ou outra qualquer, tem

merda até ao pescoço. Julga que a desaprova, mas ela é a amargura que

o ensombra como gloria poética demolidora, mesmo que clandestina.

Abandonou os seus objectos, porque eram como espectros de uma

inexistente intimidade.

A poesia modela certas inter-relações a explodir. Elas explodem no seu

sossego — è um sossego com cacos e cactos. Mas é na mesma um

sossego.

Podemos deitarmo-nos na linguagem, muito metafóricos, com pele

camaleónica, a resguardar sinceridades. Ou a regar insinceridades

sinceras.

A construir o túmulo infindo, liberto palavras que se sentem sem saber que

se sentem. Parto o túmulo a pontapé e vou fazer rabiscos para o sopé de

uma montanha chinesa. Fazer riscos torna a alma mais brava.

Nas nossas humildes cosmogonias, elegíacas, aterrorizadas,

autolibertando-se e transformando essas pressões, a arte encena príncipios

que não foram, para que os mitos agucem as futuras consciências.

Construir o espaço vivido. Viver o espaço construindo, reconstruíndo, ou

refazendo respigadamente. Com as calinadas e as inseguranças.

Desde Homero e Ésquilo que o riso e os banhos de sangue são os pólos da

poética. Caiam-se com ramos de oliveira depois, estas paredes de casas

manchadas de vermelho vivo. E vai para lá morar um casalinho muito à

espera de ser harmonioso.

A poesia está cheia de camadas, mas as de cima não são menos secretas

que as de baixo. Faz-me lembrar um bolo indiano, a bebinca.

A poesia é aquilo que se desnuda como problema, pseudo-aporia a

intoxicar a espacialidade. Nessa espacialidade não é preciso encher

chouriços.

Antes andaste a explicar os simulacros sem te dares conta que és fiado por

dissimulacros, por coisas que se misturam bem mais do que se reproduzem,

por ondas em transformação, muito heterogéneas e a derivar para sítios

muito diferentes.

A poesia do profético é um empréstimo do tempo para ser pago em

prestações.

As palavras procuram uma certa autonomia parecida com a natureza, mas

degradam-se muito mais depressa. Outras vezes as palavras vão a

lavagens rápidas onde são ensaboadas e saiem muito mais brilhantes.

É claro que ditas interiormente certas palavras que cochicham e rondam —

depois passas o perfil das grandes sombras para o papel, e começas a

apedrejar os sentidos òbvios, para ver se as palavras sabem ser esquivas.

Atira pedras do deserto às palavras molhadas, pode ser que façam splash!

Andas a bordar angústia com composições palavrosas, e dás conta que os

ecos da ângustia desaparecem sempre que a agulha entra pelo tecido

adentro.

O melhor, e mais presente na poesia, é o ridiculamente ridiculo, actos de

auto-humilhação, recatos, com ou sem deuses, musas estapafúrdias (que

não merecem). O glorioso mete medo. O presente é o que não tem pressa

e apanha bofetadas. O poeta sente-se húmido como uma donzela. Mas

falta qualquer coisa para o orgasmo. Timidez finória, rico refúgio de

explendores — ah, toca-me com muito geitinho!

As palavras sobre papel apetecem-se em desenho, porque o desenho é a

maneira mais natural das coisas se entranharem nos papeis.

A poesia do presente trágico integra o “sem” nos seus vestígios de valores.

A poesia do presente é onde te envergonhaste (e eu também) e fugiste da

inter-relatividade das palavras e do grande fulgor heróico, e sentiste a tua

utilidade instantânea de truta rio acima (ai o “nostos”!), até ao coração da

complexidade.

Ele dá às palavras as funções do intermédio, de coisa a servir como luta

pelo regresso ao explendor sexual genésico, mesmo que a tia que escreve

sobre poesia diga: “voltaste abanando o foedus tenebroso, e cheiras mal!”.

A poesia nasce de uma oposição das palavras ao seu uso utilitário ou

didático. Preposição wittegensteiniana transmudada em rima de santos

populares. A filosofia em manjericos cheira melhor.

A necrópole poética põe-se a regorgitar mortos, com ritmo, e ela é.

Nas primevas penínsulas assiste às formações espontaneas de aglomerados

poéticos já adulados pelo eco das vindouras transgressões.

Ela põe as inter-relações a explicar os heróis. O heroísmo é intersticial.

Parece surgir fora do baralho, mas tem as cartas todas contadas.

Como agente secreta a poesia do presente abandonou os as

correspondências quotidianas e preferiu clandestinidades voluptuosas,

investigações convulsivas ou o luxo (asiático) da ascese e da não-acção.

Ela dá às palavras a sua experiência larvar delas — miniatura rapsódica do

presente, que não é, nem por sombras, surreal.

Ela dá às palavras a experiência dos deuses que o pessoalizam (ao artista,

ao poeta), assim como os que crescem dentro dele — deuses tão distantes

do hieratismo e das estátuas, pois explendem na sua caprichosa

espontaneidade.

Necessidades de falso filosofismo não fazem mal aos poetas senão aos pés

em bicos dos mesmos.

2 (a partir de Almada)

Transmissível, o ser arrebata o acessível a cada um.

Desde os rumores até aos nomes, o homem sucumbe à sua auto-

escravização. A poesia anterioriza-o a esse estado, desescravizando-o,

desencravando-o.

O futurismo irrigou-nos de rumores. Mas eram maquínicos. Os rumores

têm que vir das vísceras e dos orgãos adjacentes. A arte conceptual tentou

intelectualizar o que era essêncialmente visceral. O visceral não tem que ser

expressionista, caramba!

Não é senão para cada homem que a Poesia fica. É criação que iguala

porque se diz de igual-para-igual e não de diferente-para-diferente. O

dever de cada poeta é o de igualar o vibrato poético dos que o

precederam, mais alto, sem sombrancerias.

O Intransmissível das coisas que estão a ser transmitidas, é a prova dos

nove do transmissível, e a presença (intuitiva) do não-ser. Na poesia a

transmissão do intransmissível dá em arremedo e riso. O riso dá-se na

crueldade das lacunas. E as lacunas são a montra do Intransmissível.

Conselho do V. Pomar (ou algo parecido): aceita o desconhecível, mais do

que o desconhecido.

Poeta: os pensadores congregam-se nesse homem; a linguagem co-habita-

se nele como fluxo. Deixa-se jorrar, como se fosse único. É chamado para

emergência. Assegura a confluência das simpatias. As simpatias são o fogo

sexual do que une. A unidade suposta só pode ser esse ardor absoluto

hiper-sexuado quem vem pulverizado nas simpatias. A simpatia é vibrátil, e

pode parecer comicheira. As geometrias não são isentas dessa comicheira

(já o referia Platão).

A simpatia não se conclui, é sempre para já. A poesia, no acabamento das

suas formas, dá vazão ao inconclusível.

É insuficiênte o lastro poético caber só em linguagem. Sobra-se a todas as

linguagens, e gosta-se de passar de uma linguagem à outra. É o dom de

rabiscar, de pôr as mãos no fogo. O desenho e a escrita são dois fogos

muito concretos. É como os escritores que são determinados a atacar as

teclas. Batuque. Fúria de bater com as teclas.

O poeta cultiva o seu lugar e aventura-se no seu não-lugar. O seu

ondeando. Ondeia-se longe da atração das palavras por uma suposta

essência. Saca-lhes o suco. Os desocultamentos sucessivos do poético são

desocultamentos para que haja mais desocultamentos. Não que haja algo

“oculto”. É no desocultar que desessencializa. Não há ontologia que se

ajuste ao poético candimante. Não há tautologia que não possa a diferir

de si. Não é só na negação do ser que o ser passa a ser, mas também nas

predações inconsequentes e nos desvios. Pensar é libertar os atavios,

mesmo quando esta libertação desfideliza.

O homem ao homem insatisfaz. Mas há a lingua. Afiada, equívoca, doce,

apetecível. Não quero uma lingua demasiado “honesta” (excepto no

sentido gastronómico), não quero uma vivência demasiado “pura” (tudo é

puro!) — quero-me híbrido. Misturável, transgressível. Também me quero

duchar, escovar os dentes, ter a casa arrumada.

O fascismo é anal na sua limpidez. O capitalismo é anal na sua hipocrisia.

A poesia não sabe exactamente o que quer, mas sabe que está nas

antípodas de muita pureza e de mais dinheiro.

O poeta, ainda que desenganado com a convencionalidade dos seus

sujeitos, a consistirem-se, a inconsistirem-se, a multiplicarem-se contra eles

mesmos, não se apoquenta com a sua autoria. Ela não lhe está como

postiçagem que o inflama juricamente. A autoria amaneira-o. Ele conduz o

carro da autoria. É descapotável. Vai por falésias. O vento bate-lhe na

cara. Isso sabe-lhe bem.

O homem percebe o nunca do seu lugar. A sua revolta pela negatividade,

a sua impossibilidade no tempo.

Mas a sua maneira é uma: ficou. Vai ficando. Sentada ou ventosa. Janela

aberta.

Poesia nem sequer é passiva ou radical — vem já indestinada para as

coisas, vem conviver como algo inconcluso, aberto, que se aparenta ao

concluso do passado, mas o passado não nos chega fechado e as suas

portas estão sempre a abrir-se dentro do labirinto. Por outro lado podemos

dizer que a poesia distrai, há milénios — mas os seus cornos vestão sempre

lá.

Nenhum pavor. Quem quer pavor? Pavor é o deus que oprime no

fechamento da igreja. A cúpula provoca falta de ares.

O poeta reencontra-se com a pilosidade dos animais, no afago generoso.

Edifica duas babeis (uma Babel não lhe chega!) e passeia entre uma e

outra sobre numa corda.

O Poeta espetou todos milénios no som da morte.

O homem embarga-se. Despe-se da creatividade. Passa ao lado da

criação, e caça através dos milénios misérias.

Mas com astúcia reencontra a terra e a sua Antiguidade.

Sai, por cima da morte; na sua totalidade, erecto.

A criação é captada onde o individual se faz mais individual, e se multiplica

em singularidades distintas para si mesmo.

A Poesia, está nas coisas viscerais, genitais e geniais do ser. Está no som

que capta as acessibilidades do silêncio e se desvia da morte; sem via

única, chamando o não-aonde nas suas passeatas. Na poesia, ao contrário

do que diz Confúcio, a saída não é pela porta. Pode ser por um buraco,

pela chaminé ou pelas janelas.

A sibilinidade domina-a mais que a unidade.

Cheia da obra e do seu aonde são as Antiguidades Pessoais, arrematadas,

as Antiguidades que não são exactamente as dos antigos mas a pele

renovada que se antiqua no poeta. Há milénios de antiguidades por forjar,

por traduzir, por pôr a vibrar.

Com a astúcia da sua obra o homem chega ao seu advento. Ao onde a

mão se conclui. Mãos à obra em homem. Saídas que comunica,

continuando.

Nada na Poesia prepara fuga alguma. É o clamor unânime da Terra

especto que é traduzido em dialetos. O pavor do absoluto atrasado é

traduzido.

Estamos feitos deuses. Desde sempre. A resposta anda pelas deusas.

Chamamos-lhes musas como se fosse uma mecanica evidente. Mas não é

uma mera operação técnica mas uma consequência da sobredosagem do

entusiasmo.

E o homem, desde o lugar em que se enreda na habitabilidade, subjuga o

animal e subjuga-se no seu aquietamento. O próprio de Poesia passa-o

para o Fogo.

As esfinges pegam no arado e rasgam a terra. Os poetas semeiam e saram

as feridas da terra.

Em nenhum comunicação poética se dementa o aonde. Outra direcção,

sempre outra direcção — não quermos ir por onde se anda a ir,

carneiramente, jamais.

Estamos inóspitos na genialidade dos deuses.

LAMA LAPA SUTRA

proporciona-te o prazer em todo o tipo de actos

Mahabudha da Tangória

……………………………………………………………

até aqui vos mostrei oh os não-limites

dessa luminosa e simples auto-libertação —

não aceito que se escriture a sobredita liberdade

não aceito vindas anunciadas

nem o reconhecimento que só se escritura

que não toca nos olhos —

ele realiza-se aí mesmo no modo do prazer,

na libertação para além dos incómodos textos

da liberdade com ou sem essência.

Alienados textos, duvidosos nas relações

ah erram oh nos olhos —

pois pela intiligência da dedução e da determinação

falsificas o espírito

mas ao falsificares não te vês livre dele,

mesmo na sua negação suprema.

O que passa ao lado continua a ser realidade

e consciência inalienável dessa realidade!

A libertação emerge por todo lado

incorrendo numa constante e identica evidencia.

Não indicam as palavras que os limites e os fundamentos

são o imaginar? Como intiligência natural da liberdade!

Os alienados anulam a sua determinação

de poderem ser inacção

porque há a maestria da estranheza,

e caíem no seu inventário pelo espírito.

Os ensinamentos inatos dos fenómenos

vociferam a certeza básica

como a criança que morde de raiva.

E vossês anulam-se no absoluto

em plena directa, no real inapercebido

que agita a sua cauda

e com as vossas vocações traficam o concebível.

Como ascetas afincam-se aos limites e aos fundamentos

na suspeita liberdade de uma meditação

que se faz mais uma vez objecto a passar por infalível

a equacionar a reprodução do limitado

a fazer o inventário do despertar

na redução e estreitamento do espírito,

quando é a não-limitação do espírito-natureza

que leva à elucidação geral — aceita

o intransformável a cada mutação,

abandona a liberdade circunstâncial pela liberdade

que indetermina, e nessa incerteza escuta!

Nenhum ensinamento é viável

nenhum equacionar é autentico —

a vida é a digestão do absoluto-ausência

habitada liberdade sem dharma a manipular,

sem precauções conteudísticas —

não se entra na Grande Libertação

porque nunca se sai dela!

Paralisas porque queres ir longe,

comprometes-te com firmes determinações

que anulam o natural — e desnudas-te até à medula

para realização de uma treta com nome exótico e esotérico

quando estás sempre desnudo, sem precalços

como um recem-nascido

perante o borbulhar luminoso da consciência

sem segredos ou iniciações

sem disciplina sistemática

sem proclamações, loas, propagandas.

Cada um dos teus estados é «auto-retratos»,

e os teus «dogmas» são a libertação a passear-se,

a repousar na sombra dos tempos

enquando sente a «vida». É a felicidade?

Podes dizer que vem de uma fremência,

de um tremeluzir, luminosidade

e que é apenas “isso”?

Nada de relicários!

Cada momento é o «sublime»,

como uma serpente de luz

como símbolo ou nem por isso.

É a essa clareza do Absoluto que abunda.

Borbulhante. Descouraçada.

Senta-te e põe os teus sentidos atentos.

A tua consciência é qualquer deus

e liberta-se em Luz, sem restrições?

Ficção interna, dirão alguns…

A Base desta aptidão é a liberdade dos limites

e a clareza do espírito

mesmo quando se vê como baço impuro —

não há nada para polir

nem canones a que afincar

nem ensinamentos que encaminhem

porque o caminho nunca foi abandonado.

A pintura é a exploração da espacialidade.

O isso do teu próprio espaço vazio,

no mínimo-máximo.

A teoria não tem que ser revolta

porque o seu estado é a não-repressão,

reproduzindo as montagens ininterruptas

do pensamento na sua espacialidade.

Não existe aqui nenhuma teoria

que não seja com o corpo

desprovido de substância — riso

entornando-se e desmanchando generalidades.

Ou apatia derivada de empatia

a significar transacionalmente

como algo aderente ou receptivo —

feminino em vias de…

Fica ciente por si só.

Que isso incorporar-se-á na obra —

como ideal, serenidade

transmissiva no seu silêncio e quietude,

como vibração da vacuídade.

A Glória segura-te onde não te afincas à significação

no gosto decorador, ornamental

sem aquisição, sem investigação,

como reprodução do espírito!

Visão — natural

encontrarás

luminosa, despida

como função — desoriente

sem folclores.

A história é sabedoria

que encena o teu nada

fluindo, cintilando, sem exemplos

meritórios.

Fica, segura-te, na visão do vazio.

Que isso é o teu próprio espírito!

VIEIRISMOS PROENÇAIS (com teoria de paisagem pandémica)

A cada paisagem és um deus a mais,

falido, transviado, tramado

com ou sem dor de corno e rabo assado.

Imaginas a cidade-jardinagem

e o que aparece é o enigmático em opera,

ou o exílio com mendigos a comer figos

enquanto os polícias esfregam na esquadra

as mãos com pedra-pomes

para se livrarem de crimes perfeitos

e da pornografia pateta.

Ela é toda interacções. Ela é a paisagem

mulher-deusa-puta e uma porra.

Pã caiu na armadilha.

Pôs-se em fuga do local do crime.

Há muita água na história, e muita merda na arte.

A Arcádia aguarda a invasão poluente das cidades.

E o asceta lambe a pintura observado pelas Moiras

enquanto o deus da guerra ameaça ou agride…

Sentes-te pastoril? A paisagem suga-nos as forças.

Batemos-lhe à porta — truz! truz!

Na cidade não quero ficar, diz o icárico amante

que não sabe ao que vai mas cai.

As nuvens passam sobre as ruinas antigas

com Propécio e os eternos ventres antigos

de matronas fodilhonas.

Idílica lascívia das Lívias.

Queres pôr as mãos na paisagem

e sondares com a lingua a sua cona, a sua vagem,

o seu jardim, as suas hortas húmidas.

Queres fazê-lo em boa pintura ou em música

com refrões que façam ferver?

Galopa nas pedras, nos ventres,

sempre a resfolegar por toda a arcádia —

com cataratas e sátiros de pacotilha em fuga

longe da vista de aldeões ciosos.

E a paisagem? É exponência sensorial,

pessoal? Somos sempre demasiado bons prás gajas,

diz o marialva do Lamborghini.

Assim é a poética pelas redondezas pós-modernas.

A paisagem dá-se e cai.

Pã deve refrear os cálculos.

Há uma paisagem para a paisagem?

Há alguma diferença entre os eternos bosques

e as interacções intelectuais ou eróticas?

A pintura vai pelos canaviais do Nilo

e entra nas pirâmides para consolidar a solidão dos mortos.

Mastabas zeppelinescas quero quero, diz Brito.

Espero ser o cavalo fusiforme

a cavalgar em arte experimentalista

as carnes da natureza. Diz Pã.

A cidade não me satisfaz 100%, acrescenta.

Espero num zigurate tosco mulheres

inconsoladas com ar de bicho sofrego.

Mas a paisagem está entregue à sua sorte,

despida, mas sempre por aprofundar,

dissimulada e com acessos de violência.

Somos sempre uns cabrões quanto às gajas,

diz o modernista ressabiado a punhetar-se.

Passando junto à camélia como numa má pintura,

quero ou não quero pintelhinhos pintelhinhos

oh citação de poche e paninhos quentes

encharcados na tromba.

Preferes gajas farfalhudas ou rapadas?

Lambo as pinturas na perseguição de Actéon.

Ele quis que Diana lhe fizesse um broche

e fodeu-se.

Pandemia e mimetismo — a paisagem

vê o cisne deslizar num limado verso de abismos

enquanto a revolução na cidade prossegue

e se distrai Virgilio com métricas duras

(e o godemichê ficou preso na dentadura).

Sim, o informe, ou o nú, com o cu

passivelmente académic e bolista.

Somos sempre demasiado sensoriais

e infalivelmente pessoais.

Ovídio sabia-a todinha.

E depois há o pastoril, a aura paisagística

sem Turner, e o elétrico 28

a partir dos Prazeres para a Baixa e para a Graça.

Falam-te da entropia/neguentropia

e da erotização da guerra.

Recordas-te de velhas batalhas,

de cidades bombardeadas,

de sonoros almirantes

de arredores severos desolados por obuses

e da designação técnica dos campos de batalha.

Estas interacções resguardam a “natureza”?

Desta sorte se faz a transmissão da história.

Nas costas da minha mamuda musa

enceno diversas teorias embriagado.

Do antigo só noto a re-encenação — a cidade, Pã

sem chapéu, ou Syrinx, sem colans.

Galopo no luxuriante, na esteira da pintura surrealista.

Três mil quiómetros de associações livres

a aproveitar para refrões de fados fatais.

Do mergulho na pintura nasce a paisagem.

Da negação da paisagem surge a rata rapada

em Le Queu, como paisagem revolucionária.

A Origem do Mundo de Courbet é o retour a la nature.

Mas é rapadíssima que a coisa ressurge

no ètant donné.

Há uma Grécia com terebentina

Babestial — a luxúria de um antigo novo

e meias tradições no caos da retórica

a dispensar comentários e a evitar video clips.

Falam-nos da moda na Holanda outra vez.

É recuando que se avança, diz o gurú

em pastiche de Lenine.

O invisível não é indiferente a operações plásticas.

Sou o bardo das tuas maminhas de silicone, diz Pã.

Tenho uma apetência de terebentina

mas quero ir para férias, por aí, sem retória

para uma “cabana” contigo,

foder muito, sofísticamente talvez

com adereços ecológicos

e morder-te a nuca enquanto lês.

Quero renascer depois da ekphrasis.

Quero uma arquitectura onde se possa “arejar”.

Não quero a paisagem chinesa

pois faz frio e parece distante, sublimada

mas deve ter uma rata canalha e sádica. Mmmmm…

Ponho um pé na civilização

e acho a arquitectura aborrecida.

Conhecedores do Mundo uni-vos!

Mas para quê?

O triângulo correu, beijou o primeiro plano.

Muita figuração a dar nas vistas…

Daí a porné e outros “casos” de pitoresco.

Róseos elefantes vão para hospícios

como dantes. Venho por trilhos de Itália

com o Renascimento atulhado nas costas.

Hei-de triunfar, ó deuses!

As cabrinhas riem-se à passagem

pois tenho uma cicatriz que me faz feio —

pareço um bode taoísta

que percorre o mundo a pé sem saber porquê.

O triângulo é o corpo/cidade/paisagem.

Locus amoenus, locus amante.

Pelo posterior o desfrute da natureza

é refinada mutabilidade, etc.

A seiva dos queridismos é decorativa

malicia greco-romana. A espontaneidade

ressurge nas maminhas da tradição.

No Céu azurino manchado de civilização

instalam-se as bacantes para escapar

às matemáticas da existência.

Aturas ao lado uma democracia cénica:

um petit cabaret de iluminuras

com os sete penedos originais — ah outra vez

os “casos” bicudos de paisagem. Linhas de fuga

para Ulisses desfrutar seus mecanismos.

Ela vem-se com um lavagante num sofá.

Ele quer-se emancipar numa boa mamada.

O que há é o que há.

Podes começar com uma pintura do Lapa

e um piteu de S. Mateus —

é o acaso a coser as coisas

a soprar onde a coisa é soprável

ou a invocar aquilo que achas giro pá.

São as vozes do Mundo a medusar

a arte, a levá-la ao himeneu com o Museu.

Rumbas nupciais e cores bestiais

sublinham o contrato perfeito

com jardins japónicos adjacentes

onde se lê Agemben e se fazem minetes

ao rallenti e ao relento.

Performa textos no White Cube

uma Anabela ou uma Florbela

a chicotear o Camões que escreve epopeias

sadomasoquistas. As elites circumnavegam

náufragas náufragas de sucessivas crises

Precisas do caracter “mágico” da aspirina,

pertinaz boomerang da medicina.

Pã Pã Pã

o cão mordeu o velho Deus Pã

o que tinha sede do Mundo

e o que corria como uma besta

pela agressividade da paisagem adentro

com o gosto do orvalho no caralho.

Frescos happenings madrugam —

o land artista arrasta-se pelas vielas

em busca de amantes recicladas.

Animais extraordinários babam-se

na parafrenália de misses.

O pobre Carraci trauteia a velha cantiga!

Os canticos batem-nos em português

mais aurorais. Giorgione toca viola da gamba

e as sombras projectam-se sobre Ferrara.

Spinoza apanha a melancolia do De Chirico

através da Bíblia impressa em ladino.

As paisagens são engolidas pela geometria

já que cada homem traz em si

a cor entesoada do Mundo.

Julgas-te alexandrino pois eres tu puerco

personagem na furda do futebol

apesar da alta cilindrada.

Mi puerco é o Anibale Carraci.

Berdade berdadinha — chorai arcadas

despedaçadas de van gogh

a comer bananas em Cannes.

A cor entrou num período crepuscular e ritmíco —

os ornamentos aproximam-se do agora

predador sexual em meditação anal.

A vida do pensamento tem eco

até ao paisagístico se desmoronar

ao som do reco-reco.

Onde vogam as agruras de Pã?

Campos de citações e alusões a alusões.

E quando passa uma bela escuteira pergunto:

onde é que se põe o amor na arte

para além das mulheres que queres comer

com molho de Picasso ou De Kooning?

É do mar Homérico que é feita a vontade de foder?

Qu’é do riso espumoso de Afrodite?

O Arthomem é a vanguarda

à procura de um novo sublime

com ou sem picos.

Tenta fazer passar a paisagem pelo passe-vite —

pontes aladas de pesadelos.

Um nova religião é feita com anedotas

de pintores em post-ite.

Tudo é sentimento e ilusão e

e eu irei com as manas fazer-lhes tudo

mas tudo o que eles querem e pedem

o porco mais porco das artes.

Não te esqueças de indagar o Tarot

quanto a esta outra saison en enfer

(a culpa não é do Rimbaud?).

O Arthomem rapa os pelos

aos quadros antigos, desembaraça-se

da macaca pré-histórica.

O Arthomem recorda o rosto roto de van gogh

que despeja a violência dos campos

sem concertos campestres.

Depois ata a ultima amante de estimação

e esfrega-lhe a coca na caca

com o dedicado dedo indicador.

Cego sigo, com Cipralex

através da mancha bruta e primordial do Novo

com esta inabilidade técnica e o tesão do Turquestão

para novos amores.

Donzelas provam pepinos primordiais.

Fico na fronteira, na teia interior

das psicologias, sentinela que se imagina sã

e se ergue para horizontes enigmáticos

e paixões outra vez insensatas.

O pânico cavalga os meus diálogos filosóficos

catrapum catrapum

e deixa a poeira invadir as estepes.

O cuco retem a memória da Realidade.

Jardinam-se pelo artista os porcos.

Lavam-se com detergente as retretes.

DESENHO E LOGOS (OUTRO METAMANIFESTO) para (e a partir) de

Bfonte

Vós sois deuses. (João 10:34)

Essa era a luz, a verdadeira,

que ilumina todo homem

vindo no mundo.

Ela estava no mundo,

e o mundo fazia-se por ela,

e o mundo não a conheceu. (João prólogo)

Que assim seja, que assim seja, digo-vos,

o que crê em mim e nas minhas obras,

esse também fará obras maiores que as que eu fiz,

porque para o pai vou. (João 14:12)

Este é o meu corpo sendo-vos dado.

Façam isto como minha anamnése. (Lucas 22:19).

O sopro do antropodaimon desenha-se para que todos se reconheçam

como deuses autofabricando-se. Ou: o desenho é a errância do sopro para

que os outros se reconheçam nos tracejar do sopro como deuses. A

carnalidade do desenho é inseparável do sopro, desde sempre. Os deuses

e a terra são o mesmo.

Desenho: introduz-se como um bicho nas cores de que o espaço está im-

pregnante. Expande-se a transparência, mesmo na ocultação, nas pregas

em que se dissimula. Entre a clarificação e o obscurecimento o corpo-sopro

autoteatraliza a sua respiração; doce drama que se estica no prazer

narrativo ou na absolução da fecundidade narrativa através da absorção

numa plena espacialidade. A luz vem fremente, em micro-espasmos. A pele

freme e mimetiza, dentro e fora, os espaços que a tentam caçar e que a

envolvem. O desenhador sabe que ele é a fonte bárbara da luz que deixa.

O poética sussurra a convicção de que não sais nem do pensamento nem

da carne. Nem tu nem o Deus que se refaz Logos-Carne. A carne é uma

maneira de dizer o Logos. A metamorfose dá-se como auto-variação da

Carne-Logos. Não há abstracção que não seja forma, eriçada nas coisas,

pegajosíssima. A poética é a respiração sempre carnal, sopro-forma que

antecede e sucede. O desenho mostra o que era òbvio — a imanência

permanente do absoluto. O absoluto não se auto-transcende. Mas pode

iludir como sensação de absoluto ou de “relativo”. O desenho sucumbe a

essas ilusões sabendo que são o jogo do ilusório desfrutando das ilusões.

Não há metafísica, porque a metalinguagem é física, as categorias são

físicas, o pensamento é corpo. Nada se despega do que é físico.

Elasticidade da fisicidade. O espaço já é dado como desenho, tintura,

pictórico desde sempre, como um pano encharcado de arco-iris. As

palavras também são ofertadas como algo que se depreende da fremência,

da vibração desenhante do mundo. Som-sentido a intencionar e a

desintencionar, a caprichar nos sentidos latentes/emergentes, nas imagens

circundantes e nas imagens imagináveis. Não há diferença entre a palavra

e o desenho senão como polos de uma elasticidade que produz interfaces

pela interiorização/exteriorização. Nos seus confins, a pseudo-oposição

entre a palavra (a conceptuar-se) e a imagem (a definhar-se em “coisas”)

produz metamorfoses diversas a que podemos chamar (roubando o termo a

Duchamp) “aparência alegórica”. A força criadora é ubiqua e

cromática/claro-escura. A força criadora é o corpo inteiro a agigantar-se

na ponta da lingua. A fremência do Logos rebaixa-se no som ou avoluma-

se para estender a sua Doxa, a glória divina que se desenrola sobre tudo

como a tenda do prólogo do livro de João. A aparente mudez do desenho

é sonorização, como o são as desenhadas partituras. O desenho ouve-se.

Não é um túmulo mas um tumulto. É multidão onde assoma o múltiplo.

Formas que não são guardiãs nem de outras formas nem de outros sentidos

porque não há nada a proteger já que no desenho tudo é oferenda

musicante e nada é cativo de uma guarda vigilante. Entre-acolhem entre-

sentidos. Sonorizam a sua vulnerabilidade desmonumentalizando. Frágeis,

reabrindo como um lótus a presença dos espaços em “ricercare” — célere

ostinato e ornamentação. Exotérica exuberância dos envolvimentos.

As palavras nos meus desenhos e pinturas tagarelam, calam-se, sonorizam-

se, escutam o silêncio polvilhado de rumores, porque não há silêncio,

porque há sempre restos de borburinhos, crepitações, vivas impurezas

sonoras. Presenças frugalmente simbolizantes. Pelo exagero conectam. Pela

conectividade que se mostra despoletam processos que arrastam relações

exteriores. Emparewlham-se os universos paralelos nas supostas realidades

a desbrocharem. Heterautismo. Co-presentes. Híbridos de imagem-ideia-

som que insistem em revelar-se, em autolibertar-se. Falantes e a serem

metamorfoseados em outras falas, nem que seja através dos apagamentos

que o metamórfico impõe. Mesmo no estar calado não se deixa de dizer,

mesmo que esse dizer seja o dizer que não se diz, ou um dizer que nada

diz, ou um dizer que diz que nada diz dizendo-o. Sentido abertíssimo e

propensão para acolher sentidos. Não há almas ou espíritos para salvar,

porque o pensamento na medida em que pensa é pleno, mais do que salvo

antes de qualquer salvação ou burlesca redenção. As virtudes do que seria

silêncio são uma inclinação de se dar em canto, recato da respiração entre

o que inspira e expira, espacejamento das apneias internas e externas, o

que os ioguis chamam khumbakas.

O desenho é a selva a despontar em todas as partes da lingua. Um rizoma

impuro e obsceno que mostra e dissimula o tagarelar. Os rumores que

fremem são a natureza de todos os corpos na vida-morte do desenho. Vida

feita de morte feita de vida. Lugar de passear-se que actualiza o poetar.

Não havendo gaiolas, não há ideias para escapar, mas possibilidades que

voam e pousam. As palavras em desenho são ricas na sua determinação-

indeterminmação, na sua transparência-opacidade. Porque a palavra é

concreta no como faz mover os pulmões e as cordas vocais, de como

muitas vezes todo o corpo, os olhos, as mãos, o balancear, o menear da

cabeça, a vibração sonora que assoma na pela e nos orgãos internos,

tudo, tudo faz ressoar a palavra. Mesmo quando é insonoro o pensamento

repercute-se e estende-se a variadíssimas partes do corpo. As palavras

inscrevem-se por todo o corpo como desenhos que rápidamente (ou

lentamente) desaparecem. Não sabemos se são dialogais ou vociferantes

ou mudas essas palavras. Se mordem os outros, se lhes chamam a

atenção, se se entregam em sacrificio ou em leve oferenda. São pulsões

que são punções. Fluxos de emotivo atractivo e repulsivo. As palavras tal

como os desenhos, procuram emanecipar-se de si mesmas. Nomeiam o

inaudível, o invisível, o indecifrável e o indescritível como espécies de não-

possibilidade de certas sensações por vir e que podemos resumir através da

intuição. O intuitivo é o avanço pelo desconhecido, tal como o exagero, o

aforismo, o poético — arranques em riscos.

O rumor do desenho é um silêncio que comicha em superfícies, porque é

um rumor anterior aos sons que se actualiza como algo ressurrecto. O

desenho dá testemunho da divindade. E a divindade é uma capacidade. A

divindade torna-se evidente na confluência da filosofia com a mitologia. “O

mitológico deve tornar-se filosófico e o filosófico mitológico”, dizia

Holderlin mais ou menos assim.

É próprio do desenho o desenrolar-se, o estender-se, mesmo quando é

duro e profundo, como nos rolos chineses que se deixam ensopar, que

chupam àguas que já foram diluvianas, acinzentando ou enegrecendo para

que as brancuras se evidenciem mais. A elasticidade do desenho é uma

caça, um capricho. As coisas ficam elásticas nos terramotos. Na violência

da transformação as coisas tornam-se flexíveis e desfazem-se.

O desenho descontextualiza porque procede a montagens inauditas onde

os tempos são sobrepostos, recuperados ou destroçados. É como os

romances a desfazerem-se da intriga. No romance e no conto a espera é o

sumo de toda uma atenção. No desenho, tal como no inferno de dante, há

que abandonar toda a esperança, porque é puro extase das origens,

anterior ao paraíso. É o sentar-se de todas as potêncialidades, o príncipio

do “em princípio”. O desenho, que é mais imediato do que a pintura, é o

súbito. Por isso os desenhadores que escrevem apenas sabem verter em

palavras a intensa monotonia de um luxuoso extase.

O desenho é também a anamnése do Corpo que é dado. Não há

diferença entre o corpo de Deus e o nosso corpo, porque o nosso corpo

sempre foi o corpo de Deus. A comunhão é conscencialização desse corpo

único e múltiplo que nos é permanentemente re-oferecido. O que o tempo

faz é proceder a re-montagens destas anamnéses. Como o sentido no

desenho não vem tão codificado, o desenho descodifica e repoetisa as

palavras, tornando-as mais vulneráveis, passeáveis, ambiguas. O vai-vem

de recordações, metamorfoses, fragmentações, desfragmentações, gera os

seus vazios, os seus condensados, e ecos que se infiltram em partes

angulosas e que regressam polifónicos como múltiplos boomerangues.

O que poetiza nos desenhos é o ritmo, o saber espacejar, ou enredar, ou

gerar continuidades, mesmo quando o desenho é dado como uma espécie

de totalidade. Tal como na pontuação, são as pequenas formas

intervaladas que tornam as coisas mais coisas. Muitas coisas num desenho

transformam em irrelevante aquilo que possam designar, seja um objecto

ou uma linha. Poucas coisas tornam pertinentes essas coisas. Uma linha é

mais linha sózinha. A interface entre os desenhos e as imagens é a

experiência da co-habitabilidade. A co-habitabilidade é o que gera a

comunidade, o espectador, assim como a comunhão diferida entre o que

desenha e vê. As palavras abrem os desenhos como portas secretas que

dão para outras palavras e outros desenhos, percorrendo escadas,

corredores, claustros, catacumbas. O rumor entre o desenho e as palavras

forma animais, híbridos, monstros. Essa hibrídez é de novo a intuição de

uma força maior que agrega e que resiste a ser designada. Parece-se com

o silêncio e é uma propensão — a própria inclinação barroca do mundo.

Por isso as palavras não se transformam em novos silêncios, mas

mascaram-se de falsos silêncios, que são a preparação do desvelar da

natura.

O rumor do desenho é o de fazer ajoelhar com “os joelhos da alma

flectidos” (Casanova). Os joelhos da alma também se ajoelham em corpo.

Rumor quase silêncioso que inunda e limpa. O templo do corpo é mundo

regressado à sua infância, ao seu banho inaugural. Jardinagem de

geometrias, horto que vibra com a música que o vento toca nos buracos da

terra.

Desenho e palavra desigualam-se no trabalhar-me — vocábulos do não-

intencional a prolongar a minha suposta subjectividade — um eu em

construção, em expansão, incerto, a roçar o não-eu, a reconhecer-se

como consciência da consciência. Depois dou conta que não existem letras

senão numa certa gula de metamorfose tipográfica. Essa fome tanto pode

ser caligráfica, quanto colagem ou construção. A letra não é menos

desenho mas repete-se mais até à naúsea. A escrita é mais neurótica na

sua grafia. Uniformiza as interrogações do corpo e limita a sua

desintegração. A escrita é mais “civilizada” que o desenho. O desenho na

criança é a pura pulsão que ainda não foi domesticada pela redundância

do escrever. O desenho permanece na sua intensidade como algo revolto,

espontâneo, que ainda não foi apanhado pelas convenções do mundo. É

mais nú, mais corpo, mais fluxo. Por isso o corpo se dá e se auto-recebe no

desenho. Por isso a experiência de desenhar abre o apetite e a experiência

de escrever torna mais abstracto e vago, mesmo que persista o

encantamento. A escrita civiliza o desenho. Mas a escrita do desenhador

solta o que é civilizado na escrita para que o desenho seja o cervo ou o

gamo que salta solto sobre os montes bíblicos dos salmos e da canção de

salomão.

Nos meus desenhos as palavras e as imagens desconversam-se

reciprocamente, como se se tratasse de um diálogo de mudos que

dispersasse a atenção. Quer as palavras quer os desenhos desarrumam as

ideias, tagarelam, fazem entrever intensidades, mas tiram-lhes os tapetes.

Tecem um clima que é feito de apontamentos e desapontamentos. Há neles

um apetite por mais linguagem, por mais desenho, por mais imersão na

multiplicidade de fluxos de imagens e desenhos. Descontemplativos.

Desmeditativos. Descentramento que parece respigar aqui e acolá algum

sentido. Aceitação de que os processos de produzir os encharcam, os fazem

borburar. Andam a abanar o nirvana.

Substituí a necessidade de acreditar pelo entusiasmo que religa o deus

interior à carne e às coisas. É o Logos que desbrava a possessão da sua

carnalidade como ritmo e desejo. Errância de cohabitações que faz jorrar o

lírico. Recitação que não se sabe de onde vem.

Sei que o desenho condensa sopros diversos e que é atravessado pelo

errância de deuses pré-históricos, dos quais não sabemos nomes, e dos

deuses únicos ou não, que protagonizam as demiurgias e a grande ordem

do mundo.

O desenho desabstractiza abstractizando. Não se dá como metalinguagem

ou teoria, mas protagoniza teatralmente o Absoluto com as forças terriveis,

eróticas e jocosas que o acompanham. É no fazer-se actuar mascarado de

Absoluto que se entende o desnudamento deste no mascaramento, e o

mascarar-se no desnudamento. Dizia Nietszche: A Natureza é um Carnaval

Divino. O Absoluto carnavaleia-se como natureza. O próprio da natureza

indistinguível da arte é o seu riso divino. A relação do Logos-Carne a

extremar os seus polos de abstracto e de concreto, de forma e de informe é

um florido carnavalar-se, onde a sensação de riso coincie com a do choro

— oh vulnerabilidades à flor da pele. Sabe-se que a escrita e o desenho

emergem do mesmo fundo que é o da inscrição, mas é só na actividade da

sua prática interiorizante que se desenvolvem certas capacidades de

percepção, pensamento e meditação. Fora do acto de inscrição as

possibilidades e as experiências abundam, mas no inscrever numa

superficie é a introversão que se aprofunda extrovertendo-se em signos

como algo mágico que fica como um legado. A acção desses signos quer

perpétuar-se. Tanto fala, como resposta, a contemporâneos e mortos (e

fala mais a mortos do que a contemporâneos), como se abre

“místicamente” aqueles de que ainda não se sabe nada e que serão

fecundos interpretantes circunstânciais. Não é tanto o “mim” que se extende

e projecta para os outros, mas uma torrente criativa de habilidosos escribas

que passa por uma consciencia personalizada, autobiografante,

enamorada ou não da sua ocasional singularidade, que resfolega na

toxicidade da invenção.

O inscrever é a vocação de sermos deuses na terra, de sermos

terrosamente deuses e divinamente terrosos. Talvez isto seja o fruto de uma

educação liberalmente cristã e de leituras mitológicas na infância que me

levavam os deuses egípcios para a cama e os deuses gregos para a praia.

Nada pode separar os deuses da terra nem da arte, no sentido em que há

uma eclosão na arte que é uma resposta divina, ainda que imperfeita, às

eclosões perfeitas e crueis da natureza, porque tudo o que surge é a

crueldade de substituir algo. Mas no que substitui nem sempre esquece e

muitas vezes absorve. Por isso os “factos” renovam a experiência do mundo

se dar em terra-deuses-arte, e o desenho e a escrita testemunham nas

margens a factualidade e o acesso ao absoluto pelas mais banais

experiências.

A figura que extende os meus múltiplos modos (polposos) de subjectivação

resulta da espontaneidade do pensamento-carne a braços com os

acontecimentos, refrescado pela espacialidade interna/externa. Rituais,

métodos, vozeações, técnicas de extase, intensificam , mas também iludem

o caracter dado, fácil, espontaneo, à flor da pele. Como dizem diversas

correntes budistas, a busca do buda mata (ou adia infenidamente) o buda

inalienável. Em nada distinto é o “kairós” de Picasso, o encontro certo no

momento certo. A arte de propiciação é a de fragilização, de

vulnerabilização. O desenho é apenas a recepção, fecundada pelo

entusiasmo, dos encontros que o tempo dá.

No caos das mutações o desenhador retira o tapete e abandona a

meditação e entra como um bicho rasteiro (uma raposa?) no emaranhado

de altos arbustos. É astuto? Pede algo? Não reza, porque a reza é um

comércio com os deuses, seja na imploração, seja na humilhação, seja no

lamento. Mas repete sons, como se os sons agarrassem o mundo. Latejam

as energias sonoras como se fossem um capricho religioso, uma

panglossalia que teima em arrastar-se lentissimamente. Poesia sonora que

ecoa cantos trovadorescos, mantras, preces de linguas mortas.

Já não há nada para analisar por necessidade. Dança desritualizada.

Abismos que passeiam pensamentos vagos ou poéticos. Vazio que se

humedesse do húmus adocicado do humano. Acolhe o legado dos

humilhados como exponenciação do enobrecimento.

A relação desenho/palavra recicla os gritos pânicos em algo terno.

Desocultadas as violências do trágico com as negras Keres, desfeitas as

paródias, as comédias, os cinismos e as ironias, o desenho acede ao que é

dado a corpo ao nascer — a capacidade para ir florescendo em

espontaneidades vindoras, mesmo nos desajeitos, nos recatos, mas também

nas exuberâncias, na grande tranquilidade e no frenesim do extase.

FONTES BARBARAS (variações sobre “a palavra e o desenho de b font)

…coisa e inclinação da anomia. Forçar o não-silêncio, em branco —

branco que une as imobilidades do homem à espera da matéria. Matéria

que quer entrar nos livros para ser lida na materialidade da leitura.

Misturalização da forma, espacejando, abrindo, abrindo, abrindo.

Escrevo, em pano negro as formas das palavras impróprias combinadas

com o vazio. Aos homens-deuses, escrevo-os, a esses que se contêm na

sombra dos pensamentos.

Assisto ao súbito redivino com uma orquídea saíndo da jarra.

Desfizemo-nos das formas a desenhar outras formas. Entramos a abraçar

questões, afastando as omoplatas. Questões mais nossas a entrar como

feras em locais priveligiados. A consciencia solta o chicote. Algo é

domesticado. Mas as feras lambem as inclinações das metáforas. O vazio

volta a interessar-se por ti e pelas orquídeas que reinventam os deuses. O

desejo insiste com o corpo. É uma presença a forçar a novidade que se

quer ir em coisa. Há mais desenhos a entrar à força na terra.

Desfizemo-nos de pronuncias obscuras, e fomos nas conectantes palavras

que te despacham para a teatralidade. Ou: é apenas um Deus na

consciência do teatro do desenho. É um deus-homem-desenho. As suas

ideias vão mascaradas de silêncio.

As palavras não são silêncio. São a lingua e os dentes à espera. Autistas.

São uma fome a que chamas abstrato. São uma assimetria. Insegura e

imediata. Desconetadas da redivindade a reconectarem-se. Curtas.

Deus transforma o silêncio em túmulos. Túmulos a respirar a obscuridade.

O desenho tenta apanhar o gesto que te faz mortal. A mortalidade é para

ser polida. A sintaxe do metamórfico é a inclinação onde a mente vem

transubstanciar.

Desenhar, retocar, mimar, continuamente em reparação do metafísico —

toco na terra como se fosse um instrumento musical agreste.

Todos os túmulos se abrem para que sejamos mais ressurrectos e inteiros.

Espacejamo-nos como ecos da sobrenatureza. Os homens não sabem o

que é que hão de fazer com esta espécie de silêncio.

Todos os sons. Retomados em pano negro dum compêndio.

Transubstanciam numa vigorosa sintaxe. E caímos na afasia e nos

solecismos. Os ioguis, criam no inspirar-expirar. A renaturar. Pelo silêncio

procuram salvar as metamorfoses, na divinização da sombra.

Com o branco tudo é divinização na bicicleta da metáfora?

Deixa-se de ser presa da força da crença, assim como do significar ou do

metafísico. Transubstituem-se as relações. Os híbridos cercam.

Uma peça de mutações. Deus de corpo informulado. Transformação a

(des)naturar

Do silencio dos livros tomamos as presas dos deuses. Os deuses gostam de

caçar através da leitura. A sintaxe liberta continuidades. Sequencia

descontinuidades. O branco é tingido pelo que as letras sugerem. Ler é

desenhar sem papel. Misturas de livros com livros lidos. São livros que

desenham — e deleita-se a consciência.

A sintaxe anda a ser polida pelos desenhos que a cercam.

As folhas de papel respiram o silêncio que fica na parte detrás dos

apocalipses.

O desenho é o vazio enamorado do metamórfico.

O ornamento é um estender de forças, imatura exibição do meu corpo

vivo, pingando em indeterminação no tempo-história, ele mesmo marcado

pelo obsceno que surge enquanto polverosa.

Faço literaturas em preces continuas.

Todos ramificam na incerta sintaxe dos reais, informando, abrindo, em

carne pura e incerta, tombada para ser polida.

Tens que polir o desenho várias vezes antes de desenhar.

A virtude é o ser prenhe. É um local priveligiado onde estão os

antropodaimons — onde se faz a humana divindade do homem.

Deleito-me em compêndio de ti para me tornar outra divindade, pelos

desenhos, na transformação a consciêncializar-se.

A essência do desenho é a vibração do primaveril.

A riqueza do do decorativo, o desenho perpétuo, particular. O

erverdecente, o gracioso, o ligeiro — mas não falado.

O silêncial: o ornamento perpétuo, particularizando climas. As palavras

dialogais e embriagantes.

Estendes a poesia como tempo-espaço-homem. A Doxa ecoa. Os ecos da

glória de Deus formam arquitecturas.

Um ramo florido é a fremente atenção partindo do meu corpo que se

constata perpétuo. Todo o desenho é fremêncial.

A riqueza do tempo gotejando a essência da essência nas particularidades.

Coser o diálogo intenso das coisas memoraveis. Folhear o Todo.

Chamo a florida ausência, a vibração do alucinado, a ideia do prazer, os

contornos que amparam as emergências.

A transformação pulverisa, para que se deseje o retorno, o “nostos”, em

que os deuses regressam ao Eros primordial.

Unhas a enegrecer degraus.

O corpo corrige a pontuação. Em redor há cuecas, tripés, gatos.

Estou num abismo simbólico em transformulação, com a minha delicadeza

malévola.

A partilha do “incorpo” é o selo do poético.

Tinta para molhar omoplatas — desenho para cicatrizar onomatopeias.

As omoplatas são primas das onomatopeias.

Bárbaros a molhar o momento do existir no tinteiro da obscuridade.

Adeptos metidos no pantano do desenho

Afinar o vazio no corpo — poéticas que se enchem de nós.

Tornamo-nos aspetos de um deus riscador sobrevivendo às sombras.

Sentes? Penetra em nós uma autoanálise animal.

…temporais que escapam na atenção ao poder do tempo…

Qualquer silêncio a cheira as interpretações e a indeterminação poética.

Qualquer silêncio transforma e potencializa a minha língua-tromba

segurando na ponta arborescente do espaço-homem.

O silêncial — a ausência de impossíveis — vazio malévolo embrulhado em

literaturas de panglossalia.

As cúpulas das igrejas estão enamoradas da anamnése de Deus. É

anamnése o passado através da sua tradução?

Estas frases apanham os restos, mas a oferta continua.

E a delicadeza surge entre o punho e o braço…

O meu corpo é anamorfoses de coisas em vinha d’alhos — questinando-se

no aparecer do pensamento.

Visões vomitadas no descalçar-me, no desafogar — erro que se veste de

ideias certas.

O elefante como poético, com seus duros pelos desenhantes.

Afino-me num saber que seca cá fora.

Revisito na retranca a luz.

…e com um manto desenham…

Revisito a marca dos dias de drama, a recusa dos inadaptados, o erro que

seca.

Tornei-me desenho na real-intensão da reza, mesmo que esta seja

insuficiente.

Poetizo em eco eterno o porlongamento dos passados — enchem-se os

desenhos de traduções.

A figura híbrida da brancura híbrida entre deus e as suas sombras.

Morder maluquico do pensamento indo por aí, a provar o visível que

desfaz o incontestável.

O poder de um deus na terra é o estar grávido do Grande Desenho e das

Pequenas Palavras.

Faço literatura: ficam mamas.

Traír a luz da salvação? — qualquer legado será alvo de invejas

intermináveis.

Tal como aprendeu das maçãs genésicas veda-se a escutar sons insensatos.

Inveja o invisível banhado em branco! — com a delicadeza de uma

educação católica…

A figura vem porventura para partir tudo.

Chegam os bárbaros na materialização do existir em branco — criadores

para tapar as memórias com o ferro e o fogo — e a solidão dos guardiães

da antiguidade fica preciosa

o elefante a folhear, a namorar

É com o corpo, como bicho inteiro, que invejas nas anamnéses

No onde se apoiam, as civilizações suprimem o seu lugar.

Nascia-me, correndo, a realidade no fragor das civilizações.

Correndo verei Aquele cujo exílio tumultua a ocultação do sacrifício

humano?

O que tens, ó minha alma, para que eu te mencione, ó minha alma,

esverdeces na separação das luzes e das escuridades, e cornuda te expões

na confusão do Deus vivo?

Mas no horror do meu Deus vivo planto as minhas rectas, as minhas linhas

rectas, que agem infinitamente na sua urbana face.

Os tijolos são lágrimas? As arquitecturas choram?

Porquê gemer e não cantar Aquele onde estremece o divino?

Cresces-me. Estremeces no que me enlouquece.

Onde está o Deus vivo, que se apoia nas água, nos ecos e significa para

um povo natural?

Os tijolos agem infinitamento no seu lugar.

A gazela brame cornuda — é a experiência do cervo. É o coração no exílio

tumultuoso.

É na audácia do corpo

que se apoiam as tuas faces?

Crescem-me os montes

e caem-me as faces

na sede de melancolia?

Porquê gemer e existir?

METAMANIFESTO DA FOTOGRAFIA COMO ROMANESCO (último dia de

Setembro)

Na fotografia fingimos que estamos felizes. Tudo parece uma superfície unida,

insubstituível, memorável, mas o pseudos é mais pseudos quando se parece

demasiado com a verdade.

Procuramos amparo na fotografia, porque julgamos que a fotografia é cinema

parado, condensação de uma deslocação. Mas a fotografia só fixa a atenção e

procura ver. O cinema é uma irrequietude e uma desatenção.

O tom azeitonado é a cor original da fotografia. A cor fotográfica é um grande

barrete.

O conteúdo da fotografia é como o das nuvens, projectivo. Por isso precisa do

amparo do romanesco. A fotografia diz o que já aconteceu. O romanesco é a

habitação de uma espera. Ambos se compensam.

Não há fotografias colectivas. A fotografia é a colecta de algo incolectavel. A

fotografia aspira a ser qualquer coisa, mas desconfia de si mesma e não sabe se

se convence.

Savinio disse que Flaubert era um fotógrafo de provincia, a preto e branco.

Imagino Flaubert mascarado de espanhol comendo pimentos padron. Deve-se ler

sobretudo Flaubert para entender o que é a fotografia. O Bouvard et Pecuchet é

um tratado de fotografia perfeito.

Um labirinto pigmentado. Não sei porquê.

Fotografias opacas, como as memórias. A memória tende a ser corrigida pela

fotografia. Mas vais ao local de infância e está tudo errado, quer a memória quer

a fotografia.

Jamon ibérico. A fotografia sonda carnes mortas penduradas.

A fotografia não sabe se é uma declaração de impotência se uma deslocação em

direcção à vítima. Mais uma vez esta salva-se pela literatura. Quem? A

fotografia? A vítima?

A escrita torna a fotografia mais nobre, mesmo a fotografia pornográfica.

O ideal da fotografia é ser reproduzida em album, o que a trai em grande escala,

uma vez que introduz descontinuidades. Mas a fotografia sempre se destinou a

albuns de fotografias, a narrativas talvez familiares que assentam em

reconhecimentos que tornam a coisa interessante e picante.

Os ilustradores cientificos sabem que as fotografias estão cheias de zonas cegas

que eles têm que restituir através do desenho.

Há uma grande fotografia que vive da canibalização de extravagâncias

geométricas.

A fotografia tenta descartar os eventualmentes com interlúdios de exactamentes.

O cinema não tem tamanho exacto. Isso em parte distingue-o da fotografia que

se julga destinada a ser impressa num determinado formato. É por esta razão que

o cinema ou o video não podem ser 24 fotografias por segundo.

A escolha do tamanho de impressão fotográfica é ditado por quê? É uma

pergunta que se deve fazer antes de fotografar.

Ao abandonar a sua vocação romanesca de se integrar num album a fotografia

aspira a ser muito parecida com a pintura, e destinada a museus, salas de

exposição, colecções. Procura amparo em algo que a continue a legitimar como

arte, com todas as pretensões imagináveis.

O arquivo, antes de desempenhar uma função oficial, era uma acumulação,

acompanhando num status.

Os retratos de familia são parecidos com os bustos das villas romanas. A

fotografia foi, e é, o grande veículo que permite alicerçar em algo concreto o

culto dos antepassados.

Aquilo a que alguns querem chamar série, é pouco mais que um acaso a tentar

repetir-se.

A fotografia é uma raquete? (que estupidez!)

A fotografia escolhe o que se lhe opõe. Enamora-se do peso do documental.

O formato ideal da fotografia é o postal?

Não sinto nada de gestual na fotografia. Pode-se porem simular algo gestual

nela.

A transparência está a desaparecer da fotografia. Agora temos uma opacidade

incongruente e impermanente.

O romancista procura na fotografia algo entre o crime e o extase, mas sabe que

não vai encontrar muita coisa.

Quando me desloco não pinto. A pintura, diz Picasso, é uma coisa sentada. A

fotografia, mesmo em estúdio, é pedonal.

Somos as respectivas sombras de que nos enamoramos nas fotografias.

Repousamos nessas sombras como numa cama antes de adormecer.

Cheiro? A fotografia retinha o cheiro dos processos de revelação e impressão. A

fotografia digital é inodora.

Rio de películas. A paisagem alterou-se.

A fotografia tem-se constituido mais ambiente que a tipografia. A vitalidade da

tipografia estagnou. Por outro lado a fotografia parece invisível no “geral”.

Ortografia de amarelação.

A fotografia, com o telemóvel, tornou-se uma extensão do telefone. Uma extensão

hiperdemocrática, uma facilidade e uma comodidade.

Manipula-se uma camera digital com o polegar, rápidamente, como quem

escreve SMSs.

Havia um itinerário de fotografia para guiar adolescências preplexas.

Fórmulas, em cacos.

A arte anda metida na sua máquina fotografica à espera de novos totalitarismos.

Existem fórmulas, acima da cabeça, para mais uma vida normal, referidas

irónicamente ao telemóvel.

Havia uma criança que se alimentava de velhas listas telefónicas.

André Malraux tentou condensar a arte na fotografia. Benjamin estava convicto de

que a fotografia garantia a supressão da aura. A fotografia acolhe as sombras

que a aura da arte projecta. Pseudo supressão?

Quando penso em fotografia e politica ocorrem-me imagens de blindados.

O ideal da fotografia seria o o de conseguir levar a cabo o lema pessoano, e

fazer “sentir tudo de todas as maneiras”.

O livro de Brassai sobre Picasso é sobretudo um longo tratado de fotografia —

menos envergonhado que a Autobiografia de Man Ray.

Interessam-me as fotografias como fundos para ilustrações.

As memórias das famílias são as fotografias. As familias não escrevem memórias,

só se fazem fotografar. O dominio da familia é o da oralidade e dos retratos de

grupo, antes de todos se irem embora.

Tive uma aluna que encontrava estranhissimas fotografias na feira da ladra, e que

em quase tudo eram preferíveis à maior parte das fotografias “artísticas” ou

comerciais.

A fotografia introduziu na arte mais «bexigas», mais borbulhas, mais sinais — tudo

ingredientes de um romanesco que poderia ser stendhaliano. Retratos para uma

pessoa se apaixonar ou decepcionar. Fetichismo das cicatrizes.

Inspirava-se em Döblin e Schwitterzs.

Interessa-me o lado encenado dos actores fotográficos — a fotografia é um palco

onde podemos assumir a condição momentânea de deuses, se o quisermos.

O ideal do actor fotográfico é Groucho Marx. Ou Beckett.

Gosto da palavra baratucho como extensão de uma ideia que é ao mesmo tempo

económica e fotográfica.

Penso na fotografia como reinvenção do exílio e da diáspora.

É a pintura barroca que em quase tudo antecipa a fotografia. A pintura barroca é

um cenário para se tocar música.

Não sei se Courbet foi influênciado pela fotografia, mas na sua pintura, mesmo

que tudo seja construido, trata-se de captar algo na sua súbita aparição. Como

se fosse fotografia.

A fotografia apanha as coisas acabadas de ser paridas.

O amadorismo da fotografia é a sua essência, no sentido erótico do termo.

Fotografa-se para se seduzir (ó cliché). A pintura é mais cega. Pinta-se para se

foder, como pura devoração e falsa devoção.

Cromos, multiplicidades, para catalogar.

Sentimo-nos mais fotógrafos em hóteis do que em casa porque estamos perdidos

e pensamos em voltar não se sabe para quê.

Ler Eduardo Batarda é o conselho que eu daria a um fotógrafo jovem.