011 Os Matem\341gicos Silva - C\363pia

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Jorge Nuno Silva [email protected]

Al. Linhas de Torres, 97, 3º dto.

1750-140 Lisboa Tel./fax 21 758 22 85

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Depósito legal n.º 284556/08 ISBN: 978-989-618-205-2

1ª edição de 250 exemplares Novembro de 2008 Publicação nº 316

Colecção BISCA LAMBIDA, 11 Dirigida por Fernanda Frazão [email protected]

Jorge Nuno Silva é doutorado em Matemática por Berkeley e professor do Departamento de História e Filosofia das Ciên-cias da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. É um dos fundadores e presidente da Associação Ludus (http://ludicum.org), organização vocacionada para a pro-moção dos aspectos culturais e recreativos da Matemática. É director do Jornal de Mathematica Elementar, jornal mensal da Sociedade Portuguesa de Matemática. Tem dois filhos: a Lau-ra e o Manuel.

Para Martin Gardner, o grande Magister Ludi.

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Os Matemágicos Silva actuaram pela primeira vez na Fundição

de Oeiras em 16 de Novembro de 2003. O programa da Feira de Agricultura Biológica que se realizou na antiga Fábrica de Meta-lurgia e Construção Metalomecânica anunciava no seu programa o grupo como Ilusionistas.

O jornal Expresso do dia 22 do mesmo mês noticiava, na sec-ção de Ciência, a participação do grupo na comemoração do Dia Nacional da Cultura Científica, no Museu de Ciência da Univer-sidade de Lisboa, «actuação dos célebres Matemágicos Silva», referia o semanário.

Outras aparições em público se sucederam ao longo dos anos, principalmente integradas em sessões de divulgação matemáti-ca, nomeadamente nas Universidades de Lisboa e Coimbra.

Mas… quem são os matemágicos? O trio é formado pela Laura, pelo Manuel e pelo Jorge Nuno

(todos Silva, naturalmente).

Laura Manuel Jorge Nuno

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Ultimamente, talvez menosprezando a possível carreira artís-tica, a Laura cedeu o seu lugar à Andreia Couto, que encarnou o espírito do grupo e desempenhou sempre a altíssimo nível técni-co e artístico (e reviu superiormente este texto!).

Como o nome indica, a vocação dos Matemágicos é de fazerem

espectáculos de magia, nomeadamente com cartas, mas em que as ilusões sejam sempre baseadas em princípios matemáticos e não em cartas nas mangas ou outros recursos do mesmo tipo.

Na realidade, os melhores artistas internacionais utilizam mui-tas vezes este tipo de ilusão, por serem os mais fiáveis e, muitas vezes, os mais espectaculares. Habitualmente são referidos por «self working tricks» (truques que funcionam sozinhos), por dis-pensarem qualquer malandrice. Basta compreender o respectivo mecanismo e apresentar com cuidado, o resto, que muitas vezes é artisticamente sofisticado, sendo questão de estilo próprio.

Em várias actuações, principalmente quando se encontravam em ambiente escolar, os truques foram discutidos e explicados à assistência. Não exageramos se dissermos que para ensinar a arit-mética binária ou o Princípio do Pombal (entre outros conceitos) nada excede a capacidade de maravilhar própria de um bom tru-que, seguida de uma explicação clara e concisa. Pouco importa que a situação seja particular e utilize objectos, estando assim lon-ge da pureza e generalidade da matemática pura. A abstracção virá com mais naturalidade se a aprendizagem for prazenteira.

Andreia

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Um baralho de cartas é um instrumento óptimo para modelar muitas situações matemáticas, porque é muito estruturado. Cada carta tem duas faces, há duas cores, quatro naipes, treze cartas ordenadas em cada um. A ordenação vulgar vem da numeração. Os números das cartas são o número de pintas e, no caso das figuras, tem-se Valete = 11, Dama = 12, Rei = 13. Num outro local mostrámos um pouco desse poder (ver livro de João Pedro Neto e Jorge Nuno Silva, Jogos Velhos, Regras Novas).

Este livrinho contém uma breve descrição do núcleo do repertório destes artistas. A ênfase será colocada nos truques de cartas, já que sempre foi este o prato forte da sua actuação e esta colecção é destinada às coisas dos baralhos. Assim, ficam de fora alguns truques interessantes e de conteúdo matemático diverso, o que constitui mais uma razão para assistirem a um dos próxi-mos espectáculos do grupo!

Cada número do espectáculo tem um nome próprio. O Efeito é a descrição segundo o ponto de vista do espectador; o Método explica ao leitor como ele pode vir a tomar o papel dos artistas e a Matemática refere um ou outro conceito matemático mais rele-vante para a actividade em questão.

Para facilitar a exposição, muitos truques são descritos com recurso a Voluntários, Ajudantes e Mágicos. Os Voluntários são as pessoas da assistência cuja participação é muitas vezes necessá-ria, os Ajudantes e os Mágicos são papéis que os Silva dividem entre si, o Ajudante prepara e o Mágico remata o número.

Estes matemágicos gostam de conhecer novos truques e de interagir com as suas audiências. Apreciam as discussões de matemática e de magia, entre muitas outras! Aqui fica o convite aos leitores para enviarem emails com comentários (ou qualquer outro conteúdo) para o endereço [email protected].

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Toque Rápido Efeito São colocadas cinco cartas sobre a mesa pelo Ajudante do

Mágico. Um Voluntário escolhe uma, e comunica a sua escolha ao Ajudante. O Mágico entra em cena. O Ajudante toca uma vez em cada carta, por ordem. O Mágico descobre qual a carta esco-lhida pelo Voluntário.

Método As cinco cartas são colocadas na mesa segundo a disposição

das pintas de uma Quina, tendo uma delas de ser uma Quina. Assim, fica definida uma correspondência simples entre cada pinta desta carta e cada uma das cinco cartas. Quando o Ajudan-te tocar nesta Quina, deve fazê-lo de modo a indicar a carta a descobrir.

Pode adaptar-se a sete cartas (em vez de cinco), por exemplo, o que surte melhor efeito. Matemática Temos uma bijecção (isto é, a cada carta na mesa corresponde

uma e uma só pinta na carta que serve de mapa, o que esgota as pintas da carta).

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Dois Voluntários Efeito Dois Voluntários recebem duas metades de um baralho. Bara-

lham cada um a sua parte, retiram uma carta, memorizam-na e trocam-na com o parceiro. Cada um inclui esta nova carta na sua metade e torna a baralhar. O Mágico recolhe as duas metades, junta-as, vira as cartas para cima e retira duas, que cobre imedia-tamente. Pergunta aos Voluntários quais as cartas escolhidas e... voilà! Método Cada Voluntário recebe uma metade especial. Negras-

-Vermelhas seria uma partição demasiado óbvia. A divisão entre números primos (2, 3, 5, 7, J = 11, K = 13) e não primos (A = 1, 4, 6, 8, 9, 10, Q = 12) dá um resultadão. (Os ases podem ser dividi-dos 2-2 para dar contas certas). É muito difícil a um não iniciado compreender imediatamente que as duas metades são tão dife-rentes uma da outra e que qualquer coisa estranha numa delas salta logo à vista… Matemática Relembremos que, entre os números inteiros positivos (1, 2, 3,

4, …), primos são aqueles que têm exactamente dois divisores, a unidade e eles mesmos. Por exemplo, 3 é primo (porque só é divisível por 1 e por 3), enquanto 6 é composto, já que 6 = 2 x 3, portanto 6 tem quatro divisores: 1, 2, 3, 6. O 1, por ter somente um divisor, também não se considera primo.

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Klein Efeito Das quatro cartas seguintes

o Voluntário escolhe uma, retira-a, memoriza-a e devolve-a ao Ajudante, que a devolve ao baralho. O Ajudante baralha e chama o Mágico, que estava de costas. Uma vista de olhos às cartas, viradas para cima, permite ao Mágico descobrir qual foi a carta escolhida. Método O Ajudante roda a carta escolhida pelo Voluntário antes de a

introduzir no baralho. Assim, o Mágico, que conhece as quatro car-tas iniciais, só tem de procurar uma orientada de maneira diferente (repare-se que, na posição inicial, estão todas com os símbolos cen-trais na posição «de pé». O símbolo dos Ouros não sofre alteração com uma meia-volta, portanto, se o Mágico encontrar as quatro car-tas com os símbolos alinhados, a carta do Voluntário será o 9 de Ouros, caso contrário a carta com o símbolo orientado de forma diferente é a carta que procura. Matemática As cartas são rectângulos de papel. Os rectângulos têm mui-

tas simetrias, isto é, há muitas transformações geométricas que transformam um rectângulo nele mesmo. Por exemplo, as refle-xões (como se de espelhos se tratasse) nas rectas assinala

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bem como a rotação de 180 graus em torno do seu centro. Contu-do, as pintas estragam alguma simetria (excepto nos Ouros!). Aqui temos a Quina de Copas antes e depois de ser rodada:

O'Henry Efeito O Mágico retira as 21 primeiras cartas do baralho e afasta as

restantes. Dá-as ao Voluntário e vira-lhe as costas. Diz-lhe para tirar um número qualquer 1 < x < 10 de cartas da parte superior da pilha e as colocar no bolso.

Recolhidas as restantes cartas do Voluntário, o Mágico coloca as 10 primeiras lado a lado, de costas para cima, da direita para a esquerda, após o que pergunta ao Voluntário quantas cartas colocou no bolso, ele dirá: x. O Mágico conta da esquerda para a direita x cartas.

A carta seguinte (sempre da esquerda para a direita) é, assim, a carta «escolhida» pelo Voluntário, isto é, a carta cujo nome o Mágico escreveu num papel antes de a exibição começar, que agora mostra. Vira a carta depois de a anunciar. Método A carta cujo nome se escreveu num papel previamente é coloca-

da na décima posição, a contar de cima, na pilha de 21 cartas origi-nal. Quando o Voluntário tira x cartas, a que estava em décima posi-ção está agora na posição 10-x. É mais dramático colocar 10 cartas na mesa e contar do outro extremo, contabilizando agora 10-x. Matemática Bem... quase nada. Tudo se resume à equação: 10-(10-x) = x.

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Erdös Efeito O Ajudante dá ao Voluntário as cinco cartas seguintes. Este baralha-as e passa-as de novo ao Ajudante, que as coloca

na mesa, em fila, lado a lado, com as faces para cima. O Ajudante vira três das cartas. O Mágico, que estava de costas, aproxima-se e adivinha cada uma das cartas que se encontram viradas para baixo. Método O Mágico conhece as cinco cartas utilizadas desde o início.

O Ajudante vira para baixo três cartas em sequência crescente (da esquerda para a direita). Quando o Mágico chega, não tem dificuldade em identificar as cartas nas suas posições. Matemática Paul Erdös (1913-1996) foi um matemático húngaro muito

famoso. Sem morada fixa, viajava incansavelmente com pouca bagagem e muitas ideias para partilhar com os seus inúmeros cola-boradores. Durante a sua vida publicou mais de 1500 artigos cien-tíficos, o que nunca foi igualado. Um teorema seu garante que, dada uma sequência de cinco números inteiros diferentes, é forço-so que três deles (pelo menos) estejam por ordem (crescente ou decrescente). Por exemplo, em 2, 4, 1, 7, 9, os números 2, 7, e 9 apa-recem por ordem crescente.

Para evitar que os assistentes mais argutos surpreendam uma ordenação demasiado óbvia, os mágicos costumam recorrer a alter-nativas de ordenação. Uma delas, popular em meios de expressão

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inglesa, está condensada na palavra CHaSeD. Relembremos que os naipes Paus, Ouros, Copas e Espadas se designam, em inglês, res-pectivamente, por Clubs, Diamonds, Hearts e Spades. Assim, a ordem definida é (crescentemente) Paus, Copas, Espadas e Ouros.

As cartas que os Silva usavam neste truque eram ordenadas do seguinte modo: Duque de Copas, Quina de Paus, Quina de Copas, Quina de Espadas e Quina de Ouros.

Vejamos uma configuração possível para o Ajudante deixar ao Mágico:

Sabendo que as cartas cobertas têm de estar em ordem cres-cente (a nossa ordem!) o Duque terá de ser a carta mais à esquer-da, seguido pelas quinas de Espadas e Ouros, isto é,

Australiano Usa-se a expressão «baralhar australiano» para designar o

processo em que, com as cartas na mão, de face para baixo, se começa por descartar a de cima, se passa a seguinte para baixo do baralho, a próxima é descartada, a que passar para o topo do baralho coloca-se em baixo, e assim sucessivamente.

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Efeito O Voluntário escolhe um número entre 10 e 30, seja ele x. O

Mágico conta x cartas do baralho, dá-as à vítima para esta efec-tuar um baralhar australiano (relembrar: uma carta para a mesa, uma para baixo, uma para a mesa, uma para baixo...) até que fica só com uma carta. O Mágico adivinha essa carta. Método O Mágico tem de conhecer a carta de cima do baralho.

Depois é preciso calcular o dobro da diferença entre x e a maior potência de 2 menor que x (por exemplo, se x = 25 temos de calcular 2 x(25 - 16) = 18). O Mágico forma uma pilha com esse número de cartas (no exemplo, 18), invertendo a ordem em que se encontravam (primeira para baixo, segunda em cima da ante-rior, etc). Fingindo pouca memória, o Mágico pergunta ao Voluntário: «quantas disse? Ah, sim, x!» e continua até ter a pilha com x cartas (no exemplo, 25), mas desta vez acrescenta as cartas por baixo da pilha já existente. (Se x for uma potência de 2, esta segunda parte não é necessária).

Agora a vítima efectua o baralhar australiano e a última carta é a que se encontrava no cimo do baralho no começo do truque. Matemática Usa-se a base binária. Relembremos que qualquer número inteiro maior do que 1

pode servir para base de numeração. A nossa base habitual, a decimal, usa potências de base 10 para exprimir os números. Por exemplo, quando escrevemos 23654 estamos a condensar

2 x 10000 + 3 x 1000 + 6 x 100 + 5 x 10 + 4= 2 x 104 +3 x 103 + 5 x x 102 + 6 x 101 + 4 x 100

Na base binária o 2 faz o papel do 10. Nesta base tem-se, por

exemplo, que 10 pode ser representado do seguinte modo:

10102 = 1 x 23 + 0 x 22 + 1 x 21 + 0 x 20

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Portanto a cada inteiro positivo está associada uma sequência de coeficientes binários. Note-se que os coeficientes são sempre menores do que a base, pelo que em binário só temos zeros e uns.

Vamos supor que, na base 2, x se escreve 1abc...n. Nestas condições, a carta final, após o baralhar australiano,

corresponde ao número que em binário se escreve abc...n0, que é o mesmo número que se obtém duplicando a diferença entre x e a maior potência de 2 menor que x.

Três australianos Efeito Há três Voluntários: V1, V2, V3. Cada uma escolhe uma carta

c1, c2, c3 e decora-a. O Mágico distribui as restantes 49 cartas do seguinte modo: uma pilha de 10, duas de 15 e fica com 9 na mão. V1 coloca c1 sobre a pilha de 10 e põe algumas cartas da primeira pilha de 15 sobre ela. V2 coloca c2 sobre a nova pilha e põe algu-mas cartas da segunda pilha de 15 sobre ela. V3 coloca c3 sobre a nova pilha e as nove que estavam na mão do Mágico por cima. O Mágico pega agora no baralho, passa 4 cartas de cima para baixo e faz um australiano para duas pilhas, uma descoberta para a direita, uma coberta para a esquerda, e repete com as pilhas de cartas cobertas, até só ter três cartas. São c3, c2 e c1, por esta ordem... Método Queremos a configuração xxxxxxxxxxxxxxc1xxxxxxxxxxxxxxxc2xxxxxxxxxxxxxxxc3xxxxx (14 c1 15 c2 15 c3 5) . Matemática Mais propriedades do baralhar australiano.

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Cinco Cartas Efeito Um Voluntário escolhe cinco cartas quaisquer de um baralho

e passa-as ao Ajudante. Este devolve-lhe uma, que o Voluntário coloca no seu bolso. As restantes quatro são colocadas pelo Aju-dante na mesa, lado a lado, eventualmente com algumas viradas para cima e outras para baixo. O Mágico, que só agora entra na sala, olha para as quatro cartas e adivinha a carta que está no bolso do Voluntário. Método Das cinco cartas, duas são do mesmo naipe (pelo menos

duas). O Ajudante devolve uma carta de um naipe repetido, e coloca uma do mesmo naipe na posição mais esquerda sobre a mesa. O Mágico fica então a conhecer com facilidade o naipe da carta escondida. As restantes três servem para indicar ao Mágico qual a carta exacta. Ordenando as cartas ciclicamente A < 2 < 3 < 4 < 5 < 6 < 7 < 8 < 9 < 10 < J < Q < R < A vemos que, se tivermos duas cartas diferentes, elas estarão, no máximo, a uma distância de seis uma da outra outra. Ao devolver a carta ao Voluntário, o Ajudante entrega a «maior» de duas, relativamente à ordem anterior. As três cartas à direita da que indica o naipe usam-se para, em binário (0 = carta virada para baixo, 1 = carta para cima), dizer quantas unidades se deve «subir» a partir da carta da esquerda para atingir a carta escondida.

Vejamos um exemplo. O Voluntário retira as cinco cartas

seguintes.

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O Ajudante sabe que deve escolher uma das cartas de naipe repetido. Terá de ser uma Copa. Na ordem descrita antes, a Dama está acima do 8, a uma distância de 4 unidades (Dama = = 12), logo o Ajudante dá a Dama de Copas ao Voluntário, que a coloca no bolso.

Das quatro cartas com que fica, o Ajudante coloca a de Copas na extremidade esquerda, para que o Mágico conheça o naipe da carta escondida. Sobram três cartas para dizer qual… Ora na ordenação cíclica descrita acima, temos de subir quatro unidades a partir do 8 para atingir a Dama. Com três cartas podemos, usando numeração binária (costas = 0, face = 1) todos os núme-ros inteiros de 0 a 7:

0

1

2

3

17

7

4

5

6

Assim, o Ajudante deixa ao Mágico a seguinte configuração: O Mágico não tem dificuldade em reconhecer que a carta

escondida, tratando-se de uma Copa, se obtém somando 4 a 8, o que dá 12, que é o número de ordem da Dama.

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Matemática Este truque maravilhoso utiliza dois conceitos matemáticos,

de maneira muito engenhosa. O primeiro é o que garante que em cinco cartas há pelo

menos duas do mesmo naipe. Trata-se do Princípio do Pombal, que, para além de ser utilizado em demonstrações sofisticadas em matemática, também tem aplicações engraçadas. Um dos seus enunciados possíveis é: Se distribuirmos n + 1 cartas por n caixas de correio, então pelo menos uma caixa de correio vai receber mais do que uma carta.

Se imaginarmos quatro caixas, cada uma a representar um naipe, vemos que cinco cartas têm necessariamente de mostrar pelo menos uma repetição.

Uma pergunta de algibeira relacionada: Será que em Lisboa há duas pessoas com exactamente o mesmo número de cabelos? Ora o Princípio do Pombal permite responder afirmativamente. Como ninguém tem mais do que 400 000 cabelos, e Lisboa tem um milhão de habitantes…!

A numeração na base 2 volta a surgir.

Ás, Duque e Terno Efeito O Mágico coloca um Ás, um Duque e um Terno na mesa, da

esquerda para a direita: A, 2, 3. Volta-se de costas e pede a um Voluntário para escolher mentalmente uma destas cartas e virá- -la para baixo. Depois disso deve também virar as duas outras cartas, mas deve, antes disso, trocá-las entre si.

Estão agora as três cartas de costas para cima. O Mágico vira--se e recolhe-as. Baralha-as e coloca-as de novo sobre a mesa, de costas para cima. Pede ao Voluntário um palpite sobre qual será a nova posição da carta que seleccionou. Vira para cima a carta que ele apontar. Agora dá-se um de dois casos:

O Mágico diz: «Acertou, foi essa a sua escolha inicial».

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O Mágico diz: «Não é essa, é esta» e vira a carta que ele esco-lheu no início. Em qualquer dos casos, o Mágico acerta! Método O Mágico pensa nas cartas por números: 1, 2 e 3. Recolhe as

cartas, de modo a que a da direita fique por cima, a do meio no meio, e a da esquerda por baixo. Parte, de modo a passar (uma ou duas de cada vez, em bloco) 10 (ou 13, ou 16, ou 19, ...) cartas de cima para baixo. Após o que coloca a carta de cima no meio, a seguinte à direita e a restante à esquerda, numerando mentalmen-te as posições da direita para a esquerda 1, 2, 3. O palpite do Voluntário consiste em escolher uma carta i que se encontra na posição j. Se i = j, essa é a carta escolhida. Se i ≠ j então a carta esco-lhida é k ≠ i, j. Matemática Este truque é um exercício sobre as permutações de um conjun-

to de três elementos O conjunto de todas as permutações de um conjunto tem propriedades matemáticas interessantes, em particu-lar é um grupo. Uma permutação de um conjunto finito é uma regra que a cada elemento do conjunto faz corresponder um ele-mento (que pode ser o mesmo ou outro) do conjunto de tal modo que todos os elementos têm imagens diferentes. Este conjunto constitui um grupo, isto é, dadas duas permutações, se efectuarmos uma após a outra obtemos ainda uma permutação, para cada per-mutação há uma outra, que tem o efeito exactamente contrário, ou seja, o que uma faz a outra desfaz; a aplicação identidade, que a cada elemento faz corresponder o mesmo elemento, é, natural-mente, uma permutação. É normal representar as permutações por tabelas em que na primeira linha estão os objectos e na segunda estão as respectivas imagens. Por exemplo, a permutação que transforma o 1 no 3, o 2 no 1 e o 3 no 2 representa-se por

312

123

20

No nosso caso, os números 1, 2 e 3 representam as três cartas. O Voluntário efectuou uma permutação, ao trocar as posições de duas cartas. Se descobrirmos qual foi, saberemos a carta escolhi-da. A maneira de levantar as cartas inverte a sua ordem, o que equivale à permutação

Cada corte nas cartas tem o efeito de (A passagem de 10 (ou 13, ou...) cartas de cima para baixo

corresponde sempre a um corte destes). O modo como se colo-cam as cartas na mesa tem o efeito de

(esqueçamos a inversão direita-esquerda por agora). Como a com-posição destas permutações é a identidade, as cartas estão nos lugares 1, 2 , 3, de acordo com a permutação efectuada pelo Volun-tário. Nós sabemos que a permutação em questão se limitou a tro-car entre si a posição de duas cartas, pelo que, se soubermos o des-tino de uma carta qualquer, saberemos imediatamente qual a per-mutação efectuada e, com ela, a carta mistério! A inversão das posições usa-se para mistificar mais um pouco.

Vejamos um exemplo. O Voluntário tem de escolher uma das cartas

312

123

312

123

312

123

21

O Voluntário escolhe o Terno e troca de posições o Ás e o Duque:

De seguida vira as cartas:

O Mágico levanta-as (a 3 para cima, a 2 para o meio, a 1 para baixo). Passa uma ou duas de cada vez de cima para baixo, até totalizar 10. Coloca-as de novo na mesa (a de cima para a posição 2, a seguinte para a 1 e a terceira para a 3, como está ilustrado).

O Voluntário tem como palpite a carta que está na posição 2:

22

O Mágico, vendo o Ás (que tem o número 1) na posição 2, sabe que a carta que procura está na posição 3, e vira essa carta, anunciando, paternalista: «Não é essa, é esta!»

Kruskal Efeito Colocam-se as cartas todas em fila, ou em matriz, ordenadas

linearmente. O Voluntário escolhe um número entre 1 e 10, seja ele x. Conta-se x a partir da primeira, chegando-se a outra carta. Lê-se o valor desta (o Ás vale 1 e as figuras valem 5) e conta-se de novo. A certa altura não se pode avançar mais. O Mágico pre-viu qual era a última carta, tendo escrito essa informação num papel. Método O Mágico faz de Voluntário, após ter disposto em fila umas

vinte cartas. Procede como descrito acima, até chegar a uma últi-ma carta. Esta é, as mais das vezes, a mesma, para as várias esco-lhas de x. Matemática Este truque não é infalível, mas a sua probabilidade de suces-

so é grande (estimada em mais de 80 por cento). A razão é que as sequências do Voluntário e do Mágico tendem a confluir a meio da viagem. Por exemplo, na disposição seguinte, partindo da primeira carta, o Terno de Ouros, contamos 3 e chegamos ao Rei de Espadas, contamos 5 e atingimos a Quina de Espadas, outros 5 e estamos no Ás de Paus, mais uma unidade e estamos no Ter-

23

no de Espadas à qual se segue o Ás de Espadas e a Quadra de Copas. O leitor pode verificar que, se partíssemos da Quadra de Espadas ou de outras cartas do começo da configuração, atingi-ríamos sempre a Quadra de Copas!

Três vezes nove é vinte e sete

Efeito Este truque descreve-se melhor acompanhando um exemplo

desde o início. O Mágico dispõe 27 cartas em nove filas (de três cartas) e três

colunas (de nove cartas).

1 2 3

4 5 6

7 8 9

24

De seguida pede ao Voluntário que escolha mentalmente uma das cartas e que escolha e anuncie uma das posições da tabela (que estão numeradas de 1 a 27 por conveniência nossa). O Voluntário não deve dizer qual a carta escolhida, mas sim a coluna em que ela se encontra. Suponhamos que o Voluntário escolheu a Manilha de Copas (isto é, o Sete de Copas) e a posição 23, anunciando que a sua carta se encontra na terceira coluna.

O Mágico recolhe as cartas por colunas, tendo o cuidado de colocar a terceira coluna entre as outras duas. Admitamos que

16 17 18

22 23 24

11 12 10

14 15 13

19 21 20

27 25 26

25

recolhe primeiro a segunda coluna, colocando-a de face para cima na sua mão esquerda, depois a terceira sobre esta e final-mente a primeira sobre as outras duas. Vira agora as cartas com as faces para baixo e torna a distribuí-las da mesma forma, por linhas de três, da esquerda para a direita, conforme é indicado pelos números na tabela. Obtém então a seguinte distribuição:

1 2 3

4 5 6

7 8 9

10 11 12

13 14 15

16 17 18

26

19 20 21

25 26 27

24 23 22

O Voluntário deve dizer novamente em que coluna se encon-

tra a sua carta (desta vez trata-se da primeira). O Mágico recolhe as cartas por coluna, de face para cima, por ordem 2ª, 1ª, 3ª.

O Mágico distribui as cartas de novo:

6 5 4

9 8 7

11 12 10

1 2 3

27

Desta vez, o Voluntário anuncia que a coluna onde está a sua carta é a segunda e o Mágico recolhe por esta ordem: 1ª, 3ª, 2ª, e distribui de novo:

14 15 13

17 18 16

21 20 19

22 23 24

27 26 25

1 2 3

4 5 6

28

Basta ao Mágico apontar para a posição 23, lá estará a carta

escolhida pelo Voluntário!

7 8 9

10 11 12

13 14 15

16 17 18

19 20 21

22 23 24

25 26 27

29

Método O Mágico vai fazer aparecer a carta escolhida pelo Voluntário

na posição escolhida. O mecanismo é algo delicado, mas não nos deve admirar que seja possível. Na realidade, de cada vez que o Mágico distribui as cartas, o Voluntário diz-lhe em que conjunto de nove cartas (há três colunas de nove cartas de cada vez) ela está. Na totalidade há 27 cartas (27 = 3 x 3 x 3). Imagine-se que se dividiam as 27 cartas em três conjuntos de 9 e o Voluntário dizia em qual é que a sua carta estava. Em seguida pegava-se somente nessas nove e dividiam-se em três grupos de três e repetia-se a pergunta; tínhamos finalmente três cartas para fazer a mesma pergunta… O que se passa neste truque é semelhante, mas o mecanismo está muito bem mistificado.

Quando o Voluntário anuncia a posição na grelha em que a carta vai aparecer, o Mágico conta o número de cartas anteriores (isto é, subtrai uma unidade) e escreve mentalmente esse núme-ro em base 3. No exemplo acima, o Voluntário escolheu 23. Ora

22 = 2 x 9 + 1 x 3 + 1 = 2 x 32 + 1 x 31 + 1 x 30.

Isto é, em base 3, o número 22 escreve-se 211. Lendo da direi-

ta para a esquerda estes números (1, 1, 2) eles dizem quantas colunas vão em cima daquela que contém a carta a adivinhar de cada vez que se recolhem as cartas. Em geral tem-se a seguinte receita

No nosso exemplo, das duas primeiras vezes a coluna que

continha a carta a adivinhar foi a do meio, uma vez foi a de cima (primeira a ser recolhida).

Coeficientes na base 3 Quantas colunas em cima

0 Duas (é a de baixo)

1 Uma (é a do meio)

2 Nenhuma (é a de cima)

30

Este processo é, naturalmente, infalível, mas convém praticar bastante, para evitar enganos. Matemática A numeração em base 3 é análoga à que vimos antes, a biná-

ria. Ela permite escrever qualquer inteiro positivo como soma de potências de 3, que aparecem multiplicadas por 0 (isto é, não aparecem), 1 ou 2. No nosso caso, como os números envolvidos só vão até 27 - 1= 26, bastam as potências 30 = 1, 31 = 3, 32 = 9. Por exemplo, 20 = 2 x 9 + 2 x 1 = 2 x 32 + 0 x 31 + 2 x 30 escreve-se em base 3 com os coeficientes 202.

A seguinte tabela dá-nos todos os números úteis para o nosso truque.

Voltinha da Luísa do Vítor Trata-se de uma variante do Ás, Duque e Terno, mas implica

um pouco de malandrice. Efeito O Mágico coloca um Ás, um Duque e um Terno na mesa, da

esquerda para a direita: A, 2, 3, e explica que as posições das cartas

1 001 10 101 19 201

2 002 11 102 20 202

3 010 12 110 21 210

4 011 13 111 22 211

5 012 14 112 23 212

6 020 15 120 24 220

7 021 16 121 25 221

8 022 17 122 26 222

9 100 18 200 27 1000

são 1, 2 e 3, conforme os seus valores. Volta-se de costas e pede a um Voluntário para escolher mentalmente uma destas cartas e virá-la para baixo. Depois disso deve também virar as duas outras cartas, mas deve antes disso trocá-las entre si. Agora o Voluntário deve trocar várias vezes a posição de duas cartas entre si, comunicando em voz alta o seu procedimento de acordo com as posições em que as cartas se encontram (a 2 com a 3, a 3 com a 1, etc). Quando tiver terminado o Mágico aproxima-se e aponta a carta escolhida! Método O Mágico conhece as costas de uma das cartas. Suponhamos,

sem perda de generalidade, que o Terno está marcado. Dos movimentos comunicados pelo Voluntário, o Mágico segue o percurso desta carta. Por exemplo, se o Voluntário disser: 1 com a 2, 2 com a 3, 1 com a 3, 2 com a 1, o Mágico segue o Terno da sua posição original: moveu-se na segunda troca para a posição 2 e na quarta para a 1.

Quando o Mágico se aproxima procura a sua carta na posição em que a espera encontrar. Se ela lá estiver, é porque não sofreu a troca inicial (a única que o Mágico desconhece) pelo que é ela mesma a carta escolhida. Caso contrário, ela está numa posição diferente, digamos na posição 1, então a carta escolhida está na posição 2 (se o Terno estiver na posição 2 então a carta escolhida está na posição 1). Matemática Este truque também é um exercício sobre as permutações de

um conjunto de três elementos. A posição final da carta escolhida está associada à permuta-

ção inicial. Para descobrir esta basta saber o destino de uma car-ta. Para tal basta seguir o seu percurso e confiar na batota de a reconhecermos de costas…

Vejamos um exemplo. Vamos supor que a carta marcada é o Ás.

O Voluntário tem de escolher uma das cartas

32

3 2 1

3 2 1

3 2 1

1 2 3

O Voluntário escolhe o Terno e troca de posições o Ás e o Duque:

De seguida vira as cartas:

(Repare-se na subtil mancha escura central nas costas do Ás!) O Voluntário diz: 1 com a 2. E tem-se

33

(O Mágico pensa: a minha carta agora está na posição 2). Depois diz 1 com a 3 (que não altera a posição da carta que o

Mágico segue):

E ainda: 1 com a 2 (O Mágico pensa: a minha carta foi para a posição 1):

Agora o Mágico olha e constata que a sua carta, em vez de estar na posição 1, como pensava, está na 3, pelo que a carta escolhida estará na posição 2:

3 2 1

1 2 3

3 2 1

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Vira uma Efeito O ajudante dá as cartas Ás, Duque, Terno, Quadra, Quina,

Sena, Sete e Oito de Espadas e de Copas ao Voluntário. Este escolhe uma carta de Espadas e comunica ao Ajudante a sua escolha. Essa carta é guardada num bolso do Voluntário sendo as restantes cartas de Espadas descartadas. As cartas de Copas (do Ás ao Oito) são dispostas pelo Voluntário numa fila, algu-mas com faces visíveis, outras com costas visíveis, à vontade do Voluntário. O Ajudante vira uma das cartas. O Mágico entra na sala, olha para a fila de cartas e anuncia a que está no bolso do Voluntário!

Método O Ajudante quer comunicar um número de 1 a 8, o que pode

fazer segundo a convenção seguinte. O número será dado por

4A+2B+C Em que os coeficientes A, B e C são 0 ou 1 (aos valores

A=B=C=0 corresponde o Oito de Espadas, as outras correspon-dências são naturais). Vamos associar as oito posições das cartas de Copas a três parâmetros: a, b, c, da seguinte forma:

E tomar A como a soma, módulo 2, do número de “a”s cor-

respondentes a cartas com as faces para cima, e semelhantemen-te para B e C. Por soma «módulo 2» queremos dizer que a soma é 0 ou 1 conforme a contagem habitual der par ou ímpar.

Vejamos um exemplo. O Voluntário escolheu a Quina de Espadas e deixou a seguinte disposição:

a,b,c a,b a,c b,c a b c

1 2 3 4 5 6 7 8

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De acordo com a tabela, temos de contabilizar os a,b,c corres-pondentes às posições 1, 3, 4, 6 e 8, obtendo: a,b,c + a,c + b,c + b + 0, logo A=0, B=1, C=1 o que daria o número

4x0 + 2x1 + 1 = 3

Para obter 5 temos de alterar os valores de A e B, o que se

consegue alterando a carta da posição 2:

A esta disposição correspondem os valores: a,b,c + a,b + a,c + b,c + b, donde A=1, B=0, C=1 e

4x1 + 1 = 5.

Matemática Dado um conjunto de três elementos, X= {a,b,c} sabemos que

ele tem oito subconjuntos: {a,b,c}, {a,b}, {a,c}, {b,c}, {a}, {b}, {c}, {}. A estrutura destes subconjuntos é tal que, para qualquer escolha de alguns deles, é sempre possível juntar outro ou subtrair um deles de forma a que as ocorrências totais dos elementos tenham a paridade pretendida. Se a disposição inicial já nos satisfizer, juntamos ou retiramos o conjunto vazio --- {} --- que também é um subconjunto de X (corresponde a virar a carta da posição 8).

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Índice Apresentação, 3 Toque rápido, 7 Dois voluntários, 8 Klein, 9 O’Henry, 10 Erdös, 11 Australiano, 12 Três australianos, 14 Cinco cartas, 15 Ás, duque e terno, 18 Kruskal, 22 Três vezes nove é vinte e sete, 23 Voltinha da Luísa do Vítor, 30 Vira uma, 34

Jogos Velhos, Regras Novas

O baralho de cartas e amatematica

As cartas de jogar parece terem sido inventadas na China, aindano primeiro milenio. Os chineses foram os primeiros a pro-duzir papel, que utilizavam tambem como dinheiro, em pe-quenos rectangulos, com sımbolos de moedas de ouro. E provavelque tenham surgido primeiro jogos com as notas, e depois setenha criado o baralho para jogar. A origem do naipe de Ourose clara.

Marco Polo descreve esta forma de dinheiro de papel e eno seculo xiv que as cartas chegam a Europa. Em Portugal, aprimeira referencia conhecida e de finais do seculo xv (ver [3]).A pratica dos jogos de cartas sempre foi problematica, muitasvezes proibida, por causa das apostas a que estava associada. Hamuita legislacao e regulamentacao associadas a esta actividade.Nesta altura criou-se um baralho com caracterısticas nacionais,as “cartas portuguesas do dragao”. Os nossos marinheiros fiz-eram chegar este baralho ao Japao, a Indonesia, ao Brasil, aIndia, ...

A Real Fabrica das Cartas de Jogar, criada no seculo xviiipor D. Jose, produziu o baralho de “cartas constitucionais” (ver[2]), que estao bem ilustradas na obra de Egas Moniz (ver [9]),dedicada a historia das cartas de jogar em geral.

Na sua origem chinesa, as cartas e os dominos confundem-se. Ambos eram de papel e tinham o mesmo uso. Hoje, entrenos, os dominos sao feitos de materia mais volumosa e solida(madeira, plastico, marfim) enquanto as cartas continuam a ser

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de papel. Assim, optamos por incluir um jogo que utiliza as 28pecas de Domino (outro sistema de jogos!) dentro do mesmocapıtulo.

Um baralho de cartas e um sistema de jogos maravilhoso.As cartas tem face e verso, quatro naipes, duas cores e cadanaipe tem treze cartas com uma ordem natural (o As pode sera mais pequena ou a maior carta de cada naipe; salvo indicacaoem contrario e a maior). Tanta estrutura permite produziractividades muito interessantes, como os jogos. Mas permitetambem modelar conceitos matematicos, facultando-nos umamelhor compreensao dos mesmos.

Vejamos alguns exemplos, a maioria dos quais foram compi-lados por Martin Gardner em (ver [5]). Aconselhamos o leitor aacompanhar a exposicao com o material didactico apropriado:um baralho de cartas.

Comecemos por arranjar as cartas de um baralho de maneiraa que as cores das cartas alternem. Partamos o baralho em doismontes de forma a que as cores das cartas inferiores de cada umsejam diferentes. Baralhemos estes dois montes juntos uma vez,da forma habitual.

E surpreendente, mas se comecarmos agora a retirar suces-sivamente grupos de duas cartas de baixo do baralho obteremossempre duas cartas de cores diferentes!

A justificacao, que se pode formalizar numa demonstracaomatematica, passa por notar que as duas cartas do fundo do bar-alho vieram do mesmo monte (e sao de cores diferentes porquefoi assim que as arranjamos) ou vem uma de cada monte. Comoadmitimos que estas cores tambem sao diferentes, concluimosque, em qualquer caso, as duas cartas de baixo tem cores difer-entes. Podemos entao passar a analizar o par seguinte e raciocınioanalogo permite concluir que tambem estas tem cores distintas,e assim sucessivamente.

David Gale, matematico de Berkeley recentemente desapare-cido, contribuiu varias perolas para a Matematica Recreativa.Um teorema seu, conhecido por Teorema da boa apresentacao(ver [4]) pode ser ilustrado com cartas de jogar.

Disponham-se 24 cartas aleatoriamente em quatro filas e seis

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colunas. Por exemplo

Ordenemos cada uma das quatro linhas, de forma a que osvalores das cartas nunca crescam da esquerda para a direita:

As linhas estao bem alinhadas, mas as colunas nao. Vamosordenar cada uma das seis colunas de forma a que os valoresdas cartas nunca crescam de cima para baixo.

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Neste ultimo processo tambem alteramos as linhas, mas...continuam bem ordenadas! E este o teorema: se ordenarmosprimeiro as linhas e depois as colunas acabaremos com linhas ecolunas ordenadas.

Este princıpio esta por tras do seguinte truque. Na posicaoSul, distribua quatro maos de quatro cartas cada da formahabitual, distribuindo uma carta a cada mao, pela esquerda.Suponhamos que obtivemos a seguinte distribuicao.

arranjemos por ordem decrescente cada uma das maos, das traspara a frente:

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Virem-se de costas para cima e recolhem-se as maos umaa uma colocando a de Sul sucessivamente sobre as restantes,pela direita (ou por qualquer outra ordem). Formou-se assimuma pilha que se distribui de novo, da forma habitual, pelaesquerda, carta a carta. Esta nova distribuicao da origem asituacao seguinte.

Ordenemos cada uma destas maos e recolhamos colocando a deSul sucessivamente sobre as restantes, pela direita. Procedendoa uma distribuicao como as anteriores obtemos um conjunto dequatro maos diferentes, mas cada uma delas ja esta ordenada!

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Vejamos outro problema. Suponha que tem dois copos, umcom agua, outro com vinho. Nao importa se os volumes sao,ou nao, iguais. Verta uma colher do copo de vinho no copo deagua, agite, e passe uma colher desta mistura para o copo devinho. Pergunta-se: ha agora mais agua no copo de vinho oumais vinho no copo de agua? (Como os volumes iniciais dos co-pos foram repostos, ha tanto vinho no copo de agua como aguano de vinho). Este problema pode ser enunciado com cartas.Separem-se dois montes, um contendo somente cartas vermel-has, o outro so com cartas negras. Passem-se n cartas vermelhaspara o monte negro, baralhe-se e passe-se deste n cartas quais-quer para o monte das vermelhas. Virem-se os montes paraconfirmar que ha tantas cartas negras no monte das vermelhascomo vermelhas no monte das negras.

Tambem conceitos de probabilidades encontram no baralhode cartas um meio apropriado de expressao. Vejamos um ex-emplo, equivalente ao celebre problema de Monty Hall. Es-colha duas cartas negras e uma vermelha. Baralhe-as e coloque-as sobre a mesa, em fila, de costas para cima. Peca a umamigo que coloque um dedo sobre a carta que pensa ser a ver-melha. Quando ele escolher uma, espreite as restantes e virepara cima uma negra (nao podem ser as duas vermelhas...).Pergunte agora ao seu amigo se quer trocar e apostar na cartadesconhecida que ele nao escolheu. Aparentemente, a nova cartatambem devia ter a mesma probabilidade de ser a vermelha epode parecer indiferente a troca.

A questao e mais delicada do que parece a primeira. Quando

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uma pessoa escolhe uma de tres cartas tem, naturalmente, umaprobabilidade de 1/3 de acertar. Mas apos uma carta negra servirada, o restante da probabilidade (1-1/3=2/3) esta na outracarta desconhecida. A decisao sensata e a de trocar de aposta.Nao ha nada como experimentar um numero significativo devezes e confirmar empiricamente que vale a pena trocar.

Uma tabela pode ajudar a compreender a situacao. Imag-inemos que as cartas sao ♣A ♥A ♠A e comparemos as duasestrategias em confronto (trocar e nao trocar). Vejamos os resul-tados obtidos por dois jogadores, um que troca sempre e outroque nunca troca. Um 1 na tabela significa que o jogdor indicadonessa linha acerta na carta vermelha se a sua primeira escolhafor a carta indicada pela respectiva coluna (0 significa que errao palpite).

♣A ♥A ♠A Total

T roca 1 0 1 2Teima 0 1 0 1

Uma maneira de resumir o que se passa e notar que o teimososo ganha quando acerta a primeira e o troca-tintas so perdenessa eventualidade. Como ha tres possibilidades, este ganha2/3 das vezes enquanto o outro somente 1/3.

Suponha agora que retira tres cartas de um baralho e umamigo espreita e vira para cima as faces de duas cartas da mesmacor. Este amigo convida--o a apostar que a carta coberta tem a mesma cor que as de-scobertas. O que faz? Que probabilidade pensa estar associadaa esse acontecimento? Aparentemente a terceira carta e negraou vermelha com a mesma probabilidade, mas nao e assim. Haoito maneiras de retirar tres cartas, se considerarmos somenteas suas cores (Vermelha e Negra), como ilustrado na tabela.

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Carta 1 Carta 2 Carta 3V V VV V NV N VV N NN V VN V NN N VN N N

so em duas delas a terceira carta partilha a cor das compan-heiras. Assim, a probabilidade em questao e 1/4 e nao 1/2.

Nas paginas seguintes apresentaremos jogos de cartas es-peciais, com informacao completa, o que trai um pouco a na-tureza do baralho, tao propıcio aos caprichos da sorte. Contudo,trata-se de jogos engenhosos, que tiram partido da riqueza dobaralho. Alias, um destes jogos e tao popular que nao justifica asua presenca neste livro: o FreeCell, distribuıdo com a maioriados computadores pessoais. Claro que e um puzzle (solitario epaciencia sao as designacoes habituais) isto e, um jogo desti-nado a um so jogador, mas trata-se de um jogo matematico, nosentido em que desde o primeiro momento o jogador conhecetodas as circunstancias do seu desenrolar.

Desgracadamente, por nao cumprir os objectivos que nosimpuzemos (informacao completa), ha um jogo de cartas quetera de ficar de fora, embora seja muito... cerebral. Trata-se doEleusis (ver [1]), jogo diferente de todos os outros, que emula oprocesso humano de descoberta, levantando questoes bem parala de um simples passatempo... Fica para a proxima!

Vamos focar exclusivamente jogos matematicos, i.e., de in-formacao perfeita. Nao havera uso de elementos aleatorios nema utilizacao de informacao escondida. Por exemplo, apesar que aquase totalidade de jogos de cartas possuırem estes dois elemen-tos, e possıvel criar jogos matematicos com um baralho de car-tas. O mesmo com dominos, com dados, com as pecas de Xadreze Damas, sementes do Mancala ou pedras do Go. Trata-se de el-ementos fısicos que nos podem estimular na criacao de novos jo-

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gos de tabuleiro. Seria possıvel escrever dezenas de volumes comregras de jogos matematicos inventados no passado que usamestes tipos de material. No nosso caso, seleccionamos cerca detres dezenas que consideramos serem interessantes. Cada seccaoapresenta as regras do jogo, o material necessario para joga-lo eainda um conjunto de notas com pistas e conselhos para o leitorse tornar um jogador melhor, discutindo, por vezes, conceitos eideias que podem resultar em novos jogos e variantes.

Apesar de serem propostos jogos com material relativamentecomum, e possıvel imprimir os diversos tabuleiros atraves dapagina de um dos autores: http://www.di.fc.ul.pt/~jpn.Quanto as pecas, se nao tiverem em vossa casa alguns dos jogosrequeridos, podem ser usados muitos outros objectos. Confi-amos na imaginacao dos nossos leitores para os encontrar.

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