Alvorada de Contos para os amigos
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ALVORADA DE CONTOS
Contos – Ricardo Porto
Contos cenarizados na cidade de Alvorada – RS – Brasil.
Primavera de 2010
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Alvorada - RS
Para Thommy e Hundllo, razões de viver e as
esperanças de um futuro melhor.
(Ricardo Porto)
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(O Autor)
Ricardo Porto já amassou muito chão desse Brasilsão,
desde seu nascimento no Uruguai, até se estabelecer em
definitivo em Alvorada. Completou aqui seu meio século de vida, e certamente
aqui escreverá sua última história. Até lá, dedica as horas que
não está a serviço da comunidade escolar exercendo sua profissão de eletricista da SMED, com sua eterna utopia no
CLUBE DOS ESCRITORES DE ALVORADA. É nessa
entidade — que ele ajudou fundar — que faz sua batalha pessoal: fazer com que outros amantes de literatura tenham as
chances que ele não encontrou na juventude.
Hoje, qualquer autor iniciante que se ache disposto a
enfrentar o crivo dos leitores, tem nesse eterno aprendiz, um parceiro, um guerreiro por seu lugar ao sol.
Talvez como obrigação, ou sentimento de dever, traz à
tona este antigo projeto: Criar contos de ficção, cenarizados em Alvorada.
As histórias deste livro foram inventadas por ele. Mas
bem que poderiam ser reais (talvez algumas sejam). Pelo
menos, os poucos que leram seus rascunhos acreditaram nelas. A idéia deste autor não é contar a história de Alvorada,
muitos bons escritores já fazem isso. O que ele quer realmente
é fazer da sua ficção parte de um movimento que deixará sua marca na cultura desta cidade.
Talvez um dia, ele consiga.
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Debatia com o Ricardo questões diárias, dessas que
a gente ouve ou vê, comenta e depois de algum tempo de
conversa vira num emaranhado de outros assuntos, e no
fim, fala-se de tudo um pouco e de nada em especial. Em
resumo: jogávamos conversa fora. E, foi dentro daquele
espaço da pausa, breve, onde após tanta ―falação‖ perde-
se o fôlego e busca-se nova inspiração: rumo qualquer
para reiniciar, que recebi surpreso e agradecido o convite
para escrever o prefácio deste Alvorada de Contos.
Está aí no título parte da explicação por sentir-me
agraciado: Contos que retratam o cotidiano urbano,
dentro da cidade onde moro e apreendo valores
constantemente. Mas, se fosse apenas a temática, muitos
outros autores escreveram ou tencionam escrever a
respeito, pois Tolstoi mesmo disse: ―canta tua terra e te
tornarás universal.‖ Não, não é somente o tema que
cativa e envolve, há algo a mais: o escritor, a visão dele
sobre o tema. E nisso Ricardo Porto é mestre.
Fixe os olhos e apure os sentidos, aperte bem o
cinto e prepare-se: a excursão começará. A viagem,
aparentemente ao universo ―nosso conhecido‖ pode
surpreender na primeira curva ou sinal vermelho.
Aproveite a paisagem: ela está lá para satisfazê-lo.
(ANDERSON VICENTE)
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CONTO OU NÃO CONTO?
Conto. Um dos grandes escritores do Brasil, Sérgio
Santana, inicia um dos seus contos enunciando a
indecisão entre iniciar ou não o texto, ―em manchar o
sublime branco do papel‖. A dúvida do autor vai-se
instalando no leitor que pergunta-se ―será que isso é um
conto‖? Mas essa dúvida não importa; o que vale é que o
autor consegue fazer com que o leitor tente descobrir, e
com isso tem o seu texto lido — grande objetivo da
literatura (e das demais artes).
Com os contos de Ricardo Porto acontece o
mesmo. Os textos são ambientados na cidade em que o
autor mora; em ruas que podemos conferir no mapa e,
melhor ainda, visitar, ou seja, o universo da cidade que
está ali (aqui) nesses contos. Mas as pessoas existem
mesmo? Os fatos aconteceram realmente? Não conto.
Leia o livro e tente descobrir.
O autor dá uma pista: ―Eu juraria que os fatos que
vou descrever são verídicos...‖. Mas quem diz isso é o
autor (ou um personagem criado por ele?) — pessoa que
não se caracteriza por expressão fiel da verdade (por
ironia e por ofício). Quer saber? Eu conto.
Conto que você tem nas mãos um livro cheio de
surpresas. Um livro de alguém que acredita na arte e luta
por ela, despendendo uma energia que ultrapassa as
barreiras de uma sociedade que fez uma opção
meramente científica (basta ver os currículos das
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escolas), na pior definição de ciência — aquela que
despreza a cotidianeidade das pessoas.
Neste Alvorada de Contos temos o mistério e a
beleza dessa cotidianeidade ressuscitada pela arte
literária; melhor seria dizer ―reinventada‖, pois ―A beleza
morre na vida, mas não na arte‖, como diria Leonardo da
Vinci. Uma arte que não é contemplação, e sim de um
―ideal sentido com profundidade e expresso com beleza‖,
retrucaria um Castelar.
Mas o que Ricardo Porto persegue nas suas
narrativas não é um ideal pré-existente, e sim um ideal de
busca de sentido, de beleza, de arte. Por isso é literatura
— e boa literatura.
Um conselho: não leia os contos na ordem. Comece
por Sorte de Pescador, vá para Um Tipo Suspeito, depois
mais para o fim, volte para o começo. Fuja da
linearidade. Quer saber por quê? Não conto.
Conto que você tem nas mãos o livro de um
escritor de talento. E sobre escritores, Paulo Mendes
Campos, do Diário da Tarde, escreveu que há escritores
para leitores (Dumas pai, por exemplo); há escritores
para escritores (Mallarmé, por exemplo); há escritores
para professores (São Tomás, por exemplo); há escritores
para leitores, escritores e professores — quer que eu
conte um exemplo? — conto: Ricardo Porto.
(SÉRGIO VIEIRA BRANDÃO)
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Depois de tantos dias e tantas noites, surge:
ALVORADA DE CONTOS.
Para mim, foi uma honra participar desta
apresentação do livro do meu colega, que escolheu
Alvorada para viver, e agora lança estes contos, todos
cenarizados nesta cidade, mostrando uma ficção que
poucos esperavam, transbordada de mistérios e fantasias.
Uma excelente obra literária, que deve ser lida por
todo alvoradense.
Parabéns a você Ricardo Porto, você tem muito para
colher do que plantou.
(Nelmar Silveira Batista)
Agradecimentos do autor: À minha
família, aos amigos, ao CEA e a todos
que ajudaram na publicação deste livro.
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ÍNDICE IRMÃOS ........................................................................................ 12
VALENTIA .................................................................................... 15 SORTE DE PESCADOR ................................................................ 18 A BONECA E A BOLA .................................................................. 20 CACHORRO LOUCO .................................................................... 22 HORA DE TOMAR ATITUDE....................................................... 24 MAL ESTAR SÚBITO ................................................................... 26 CHUVA PASSAGEIRA ................................................................. 28 AS MÃOS DO APOSENTADO ...................................................... 30
GRILO ........................................................................................... 33 UM TIPO SUSPEITO ..................................................................... 34 MOEDAS ....................................................................................... 37 MEIO SÉCULO .............................................................................. 39 A LOURA DO JARDIM AO LADO ............................................... 41 PAPAI GIGANTE .......................................................................... 43 ...E A DOUTORA SUMIU .............................................................. 45 MAIS UM SUPER-HERÓI COMUM.............................................. 47
MAIS UM CONTO DE NATAL ..................................................... 49 AS GATAS..................................................................................... 51 COMPROMISSO DE HONRA ....................................................... 53 CONFISSÃO .................................................................................. 54 A ÚLTIMA HISTÓRIA .................................................................. 56 GRITOS ......................................................................................... 58 O TERCEIRO OLHO ..................................................................... 60 MEU AMIGO JOSÉ ....................................................................... 63 SEM MOTIVOS ............................................................................. 65
IMAGEM ....................................................................................... 67 A DONA DO SÍTIO ....................................................................... 69 CEM CRUZEIROS ......................................................................... 71 INÉDITO........................................................................................ 74 O TERCEIRO RAIO ....................................................................... 77 MELODIA ..................................................................................... 80 PRIMEIRA TPM ............................................................................ 83 PERDA .......................................................................................... 85
NOITE DE TRABALHO ................................................................ 87
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A maioria das personagens destas
histórias é fictícia, qualquer semelhança
com fatos verídicos deverá ser interpretada
como mera coincidência. Os lugares, datas
e cenários são verdadeiros.
CLUBE DOS ESCRITORES DE ALVORADA
Rua Cedro N.º 206 – B. Cedro
C E P: 94828-140 – Alvorada – R S
Fone: (51) 3044-3744 [email protected]
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IRMÃOS
Eu juraria que os fatos que vou descrever são
verídicos. Poderia apostar minha índole que esta história
realmente aconteceu. Não farei isso. Não só porque ache
desnecessário, mas também pelo fato de que minha
intenção é apenas entreter quem venha a ler estas linhas,
ou delas ouvir falar.
O caso todo ocorreu em um fim-de-semana
chuvoso, em meados do abril de noventa e sete.
Eu estava morando há menos de dois meses em
Alvorada, cidade para onde fiz minha mudança depois
que deixei a de Rio Grande, no litoral sul do estado. Sem
ter ainda conseguindo emprego fixo, eu estava fazendo
uns bicos, sendo motorista de táxi ali na praça da
prefeitura.
A noite de sábado estava calma – calma demais
para nós, taxistas – apesar do grande movimento da
gurizada tomando caminho para as festas.
Perto da meia-noite peguei uma corridinha para
levar duas gatas até o Radar. Na volta, recoloquei meu
carro na fila e desci para fumar um cigarro. Foi quando
tive uma agradável surpresa: Meu irmão Maurício estava
me esperando na esquina
E que saudades eu estava do Mano velho. No dia
que mudei para cá, ele tinha viajado – era caminhoneiro
há muito tempo. A gente estava sem se ver, já há quase
três meses.
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— Báá, guri! É muito bom te ver assim faceiro.
Saístes tão depressa, que nem deu tempo para a gente se
despedir, lá em casa.
— Pois é, mano. Temos que correr atrás, não dá
para ficar parado. E tu, andas perdido por estas bandas?
— Estou fazendo uma viagem lá para cima, e
consegui um jeitinho de passar aqui, para, pelo menos,
me despedir, não agir igual ao que fizeste comigo.
Viajar lá para cima. Eu também havia trabalhado de
caminhoneiro, e sabia o que queriam dizer essas palavras.
Lá para cima; é o norte do país, o nordeste. Cargas para
Salvador, Natal, Manaus, e até para Boa Vista. São as
melhores viagens apesar de mais longas; por isso mesmo
as mais bem pagas. Conhecem-se lugares incríveis,
apesar das dificuldades encontradas pelas estradas.
Enquanto conversávamos, meus companheiros
puxavam o meu táxi até a ponta. Já teria que levar algum
passageiro. Pedi para Maurício esperar; que eu faria uma
corrida rapidinha e continuaríamos nossa conversa na
minha volta.
— Tudo bem, se for rápido eu espero, mas não
posso demorar. Tenho um horário para cumprir. Por mim
já valeu, queria mesmo era me despedir de ti, Guri. Fica
com Deus e te cuida no volante.
Um abraço bem forte e um até logo. Mas a corrida
que eu peguei não foi logo ali. Tive que levar um casal
até a Vila Elza. Lá mesmo, peguei uma família e
carreguei até um apartamento do Onze de Abril, quando
ia voltar para meu ponto, apanhei um bebum na esquina
da Rua Cedro para levar na Estrada da Palha. Pronto,
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demorei demais, quando cheguei na praça meu irmão já
havia partido.
Coitado, mesmo querendo, não poderia se demorar.
Eu sei como são essas viagens lá para cima. É correria o
tempo todo.
O movimento melhorou bastante na madrugada, e
pude segurar a vontade que estava de contar em casa que
meu irmão mais velho tinha me visitado.
A noite começou fraca, mas domingo pela manhã
eu tinha feito uma boa féria e estava chegando contente,
com uma comissão razoável.
Ao chegar em casa, minha esposa esperava ansiosa
no portão.
— Ligaram ainda a pouco de Rio Grande – pelo
olhar úmido e a voz embargada, senti que ela ia me dar
uma notícia ruim – o teu irmão Maurício, teve um
acidente ontem à tardinha, na Serra da Anta, e faleceu.
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VALENTIA
Se eu conhecia o João Patada? Claro, desde
criança. Estudamos juntos no São Marcos. E ele sempre
foi do mesmo jeito: um valentão nato. Desde pequeno
gostava de tirar vantagem, por ser maior que os outros
meninos de sua idade.
Na adolescência, frequentou uma academia de
boxe, lá pros lados da Assis Brasil, onde ganhou o
codinome. Aí sim, ninguém mais o aturou, vivia
distribuindo porradas. O que mais gostava era provocar
brigas e mostrar sua perícia em dominar pela violência.
Depois de prestar o serviço militar em Porto
Alegre, ele atingiu o auge da fama de brigão – e
prevalecido. Adorava uma barbada, quando via que o
oponente era mais fraco, ele o humilhava até se cansar.
Eu sempre fui do tipo franzino, mas me mantinha
envolvido com esportes, principalmente o futebol, onde
nunca aceitei ser o perna-de-pau que me chamavam. Eu
não perdia um fim-de-semana, ali no campo do
Palmeirinhas. E também nunca tinha fugido de uma
briga, embora jamais tenha provocado uma.
Volta e meia ouvia falar de mais alguma façanha
do grandalhão do Patada. Aquilo me deixava fulo da
vida, mas desde os tempos de escola, quando ele tinha
me dado uns cascudos, nunca mais tínhamos nos visto.
Até aquele dia, ou melhor, a noite de São João, em
que ele apareceu lá na Salomé. Quando estávamos perto
da fogueira cantando ao som do violão do Pedroca,
gurizote de uns quinze anos que estava arranhando o
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instrumento para a gente se divertir, o João chegou, e foi
logo pegando a cabeça do garoto. Mandou que ele
parasse aquela e tocasse uma música que ele queria
ouvir. O menino disse que não conhecia.
O Patada, que parecia estar meio chapado, pegou o
violão dele e jogou na fogueira. Quando o garoto se
levantou para reclamar, o valentão deu um tapa na
cabeça dele, que o derrubou na hora.
É claro que eu não poderia ficar quieto, diante de
tamanha covardia. Levantei de um pulo e dei um
empurrão no cara que era considerado o número um das
redondezas. Acho que o grandalhão tropeçou em alguma
coisa e desandou no chão.
A gargalhada geral fez o sangue ferver nas veias
do homem. Até hoje, ainda lembro de ter visto quando
seus olhos me fitaram. Pude ver que refletido neles, o
brilho da fogueira parecia as chamas do inferno, tal foi a
força daquele olhar.
Ele levantou bufando, com uma expressão no rosto
que não pude decifrar se era um sorriso de escárnio ou o
trincar de dentes, querendo me deixar ver sua vontade de
mastigar meus ossos.
Na fração de segundo que fitei aquele olhar, me
senti minúsculo; mas ao mesmo tempo, achei que
poderia ser o Davi daquela história – se conseguisse
lembrar dos golpes que via o Bruce Lee aplicar nos
adversários, nos filmes.
Foi acreditando que o bem sempre vence o mal,
que milagrosamente desviei do soco que aquele animal
enfurecido atirou na minha cara. Calculei que ele, por
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estar meio alto, ficaria com os reflexos um pouco lentos,
e talvez mais fraco.
Curvei o corpo um pouco para o lado quando
consegui desviar da mão dele e preparei um contra-
ataque, visando surpreendê-lo.
Na certa, ele não acreditaria que eu pudesse atacá-
lo. Ninguém que o conhecesse o faria.
Nessa hora, ele deu razão ao apelido. Acertou-me
um pataço no pé da orelha.
Dizem que meia Alvorada pode ouvir o estalo do
meu pescoço.
Foi assim que eu fiquei tetraplégico.
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SORTE DE PESCADOR
Quando falamos em histórias difíceis de acreditar,
um dos primeiros personagens em quem pensamos é o
pescador. A fama de mentirosos os leva ao primeiro
lugar.
Um deles, amigo meu há muitos anos, certa vez me
contou uma aventura que não posso deixar de
transcrever. Ele, claro, jura pela mãe que o fato
realmente aconteceu.
Foi há muito tempo atrás, quando o Gravataí ainda
era um rio de águas limpas e os cardumes proliferavam
em abundância, dando sustento a muitas famílias.
Esse meu amigo costumava ir pescar no local
exato onde passa hoje a ―Free-Way‖. Naquele tempo, o
barranco ali existente era o ponto preferido dos
caniceiros de fim-de-semana – ele dizia não passar
disso.
Ao entardecer aquele recanto ficava apinhado de
esperançosos pescadores. Cada um sonhando em pegar a
maior e mais gorda traíra do dia ou um dos enormes
jundiás que todos juravam ter por ali.
Contou-me que num certo fim de tarde apenas ele
estava dando banho na minhoca, fato difícil de acontecer
naquele barranco – e muito conveniente para a história –
quando finalmente sentiu uma beliscada firme. Ficou
tenso, pelo jeito era um dos grandes.
Depois do bicho roubar a isca uma dúzia de vezes,
e de ter sido quase fisgado em duas ou três
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oportunidades, finalmente meu sortudo amigo conseguiu
trazer o peixe para fora d’água. Disse que suou um
bocado.
Nem vou comentar o número de quilos que meu
camarada contou que pesava a traíra, porque não vem ao
caso. O interessante é que esse meu amigo, contente com
o resultado da pescaria, se deu por satisfeito e resolveu
eviscerar ali mesmo o seu peixão, e levá-lo de uma vez
para casa.
Qual não terá sido seu espanto, quando cortou o
bucho do pescado e viu o que tinha dentro: um relógio
de pulso; grandão, bonito, folhado a ouro. Até aí, tudo
bem. O incrível foi que ele jurou ter perdido esse
presente do pai, ali mesmo enquanto tomava banho,
quase quinze anos antes, quando aquele lugar era muito
usado como piscina natural da rapaziada das redondezas.
Como escrevi antes, ele jurou por todos os santos
que a história é verdadeira.
Só esqueci de lhe perguntar se o relógio ainda
estava funcionando.
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A BONECA E A BOLA
Quando eu era moleque, morava há uns trezentos
metros de onde hoje é a prefeitura. A rua se chamava
Sete de abril, depois trocaram para Alberto Pasqualini.
Em frente à minha casa ficava o campinho de futebol
preferido pela gurizada da nossa zona. Existiam muitos
outros naquela época, mas ali ficava o mais plano, tinha
até traves.
Certa tarde de verão apareceu uma menina por lá, o
que era muito raro. Naquele tempo, as meninas se
reuniam umas nas casas das outras para brincarem de
casinhas e comidinhas. A rua, os campos, eram coisas de
meninos. Meninas não jogavam bola.
Mas ela estava lá, parada perto da goleira do nosso
time. A menina era uma gracinha, parecia uma boneca.
Uns dez ou onze anos, no máximo. Usava uns sapatinhos
pretos de fivela e meias até os joelhos. O vestido, todo
trabalhado em borderí, a fazia parecer que tinha recém
saído da missa (talvez tenha vindo de lá, mesmo), o laço
de fita mimosa segurava os cachos dos longos cabelos
negros. Parecia uma boneca.
Nós não conseguimos parar de rir, quando ela pediu
para jogar. Onde já se viu; meninas não jogavam futebol.
Não lhe demos bola e continuamos jogando. Até que a
dita-cuja caiu perto dela. O nosso goleiro tentou pegar a
bola, mas a garota foi mais rápida, deu um drible nele e
correu em direção à outra goleira. Todos nós resolvemos
entrar na brincadeira e tentar tirar a bola dela. Só
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tentamos, porque entre chapéus, lençóis e rasgadinhas,
ela chegou até a marca do pênalti, parou a bola, e, com
um chute que fez inveja a todos nós, colocou a bola bem
no ângulo.
Nem sequer sujou seu vestidinho branco, apenas
empoeirou os sapatos e o orgulho da molecada. Ninguém
queria acreditar no que tinha visto.
Depois de passado o deslumbramento, discutimos
para ver em que time ela iria jogar. Eu, sendo o dono da
bola, decidi que seria no nosso time, os com-camisa; por
motivos óbvios.
Os sem-camisa perderam o jogo por oito a zero.
Ficamos embasbacados com o jogo da menina, que
marcou seis gols e deu o passe para os outros dois.
Marcamos outro jogo para o dia seguinte, mas ela
nunca mais apareceu.
A bonequinha que jogava futebol ficou sendo
apenas mais uma história de Alvorada, que pouca gente
acredita.
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CACHORRO LOUCO
E a história do cachorro louco, quem não lembra?
Essa é famosa em toda Vila Formosa, se me permitem o
vil trocadilho. É que o fato aconteceu lá. E não faz tanto
tempo assim. Aposto que muita gente ainda lembra dela.
Ali, na Rua Colômbia morava o seu Arquibaldo.
Ouvi dizer que ele era um sargento reformado da
Brigada, mas isso não vem ao caso. Importante era a
fama que tinha de odiar cachorros (as más-línguas
afirmavam que era medo). O certo é que ele não podia
conviver perto deles. Estava sempre implicando com os
tais bichos. E, parece que depois da pinga, era seu maior
prazer, senão o único.
Certa feita (como de costume) estava o valente ex-
policial voltando do fim-da-linha, mais precisamente, de
um dos barzinhos que vendem uma cachacinha à noite
toda, ali em frente à garagem da SOUL. Subiu a Rua
Hermes da Fonseca, e entre uma cambaleada e outra,
chegou à rua de sua casa. Faltavam menos de duas
quadras para chegar, quando se deu de cara com um
cachorrão enorme no seu caminho – tem quem diga que
era um Bassêt, outros juram que foi um Pequinês.
Ele, que estava bem chumbado, botou os olhos na
fera e a primeira coisa que viu foi a espuma na boca do
animal. Não deu outra. Tentou passar longe, correr,
fugir; mas da sequência, nada conseguiu. Quando sentiu
que os dentes do cão encontraram a parte mais carnuda
de sua retaguarda, não encontrou outra saída. Botou a
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boca no mundo. A gritaria do noctívago aposentado
acabou acordando todos daquele quarteirão. A notícia do
cachorro louco se generalizou. Gente saindo à rua,
gritando, discutindo, exigindo providências.
Resultado: nosso herói, o dono do cachorro
enraivecido e mais alguns exaltados, tiveram que
acompanhar os policiais que alguém chamou, até a
delegacia. Foram todos a pé, discutindo pelo caminho.
Seu Arquibaldo, claro, teve que ficar lá até de
manhã, depois de ser levado ao hospital para receber
meia dúzia de pontos na parte atingida pela fúria do
animal (e a ameaça das vinte e oito injeções ao redor do
umbigo, caso o cão estivesse mesmo com raiva).
Lá pelas nove horas da manhã seguinte, o velhote
atravessou a Praça Central e tomou a Avenida Getúlio
Vargas à procura de um boteco, para dar uma calibrada,
antes de ir a casa pegar o revólver para matar o cachorro,
que na noite ninguém conseguiu botar os olhos. Nem
conseguiu chegar em casa. A vizinhança (por azar dele,
era um Sábado) e a gurizada estavam lá, em peso,
esperando por ele. Só para dizer – e dar umas boas
risadas na cara dele – que o cachorro não estava com
raiva, coisa nenhuma. Tinha sido só uma molecagem dos
meninos, que deram creme de barba para ele comer.
Na semana seguinte, seu Arquibaldo mudou de
Alvorada, ninguém sabe para onde. O cachorrinho, pomo
de toda discórdia, dizem que mora lá, até hoje.
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HORA DE TOMAR ATITUDE
Mal chegou ao consultório, recebeu o fax. Ficou
estarrecido. Garatujou um ―já volto‖, pendurou na
maçaneta e saiu quase correndo, sem se importar com a
fila na sala de espera (a maioria era do SUS mesmo).
Desceu aos saltos, os quatro lances de escada.
Dali da Avenida Getúlio Vargas até a Couto de
Magalhães foi um pulo, não mais que cinco minutos. Na
verdade, cinco longos minutos.
Encontrou a porta entreaberta, entrou na sala e
vislumbrou a moça sentada no chão, nua. Antes da falta
de roupas, o que notou nela foi que estava com sangue
nas mãos. Reparando bem, viu que o tapete parecia
ensopado no líquido escuro que escorria do corpo da
mulher.
No íntimo, não queria acreditar que ela fosse capaz
de atitude tão extrema (esperava que não). Afinal, nunca
teve notícias de que alguém mandasse, via fax, uma carta
com a derradeira despedida.
Se bem que esses aparelhos modernos...
Ela cumpriu mesmo a macabra promessa. Cortou
os próprios pulsos, conforme prometera, e ele se viu
obrigado acreditar nela. Os sentimentos que jurara eram
mesmos intensos, e a atitude radical provou uma
personalidade forte, que ele por muito tempo não notara.
Médico que era, sabia exatamente o que fazer, e
salvar a vida daquela que tencionava demonstrar seu
amor de maneira tão insana. Teria tempo; bastaria um par
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de torniquetes, levá-la às pressas para o hospital,
felizmente perto, encontrar um lençol, pegar o carro dela,
subir a Maringá e...
Abaixou-se ao lado da jovem que havia decidido
que a própria vida, sem o amor correspondido, não teria
nenhum sentido. Ela, sem forças, se deixou cair nos
braços do dono de seu destino, olhou nos olhos do
amado, e com o cansaço dos últimos instantes de lucidez,
implorou:
— Dê-me seu amor. Ou me deixe aqui.
O doutor retribuiu o olhar com carinho. Com
delicadeza, largou os pulsos que pressionava, deu-lhe um
beijo na testa, deitou-a gentilmente no chão
ensanguentado e caminhou com pequenos passos em
direção à porta de saída. Não teve coragem de dar uma
última olhada na mulher que morreria por um amor
impossível.
Alguém que cruzasse com o médico, no momento
que saiu da casa da amante, poderia notar nele, um leve
sorriso.
Quem sabe, ouvir um longo suspiro.
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MAL ESTAR SÚBITO
Tudo aconteceu no ônibus. Consegui, por
milagre, um lugar para sentar (a linha Passo da
Figueira, as seis e meia da manhã, está sempre
superlotada). Apertei o nó da gravata, coloquei os
óculos e fechei os olhos, como sempre fazia, na
tentativa de colocar os pensamentos em ordem para
enfrentar mais uma segunda-feira.
As segundas, àquela hora da manhã, eu ainda
estava meio sonado pelo pouco tempo de repouso no
final de semana. Geralmente, eu só ficaria totalmente
acordado quando o ônibus já estivesse em Porto
Alegre, lá pela altura da Farrapos, perto do meu ponto
de descida.
A mulher ao meu lado falou alguma coisa, eu
abri os olhos, mas não consegui enxergá-la. Senti a
visão embaçada, como se uma névoa tivesse invadido
o coletivo.
Esfreguei os olhos, por baixo das lentes, mas
não adiantou. Agucei a vista nas pessoas a minha
volta, vi todos fora de foco. Insisti, e as imagens se
duplicaram. Por mais que eu tentasse, não distinguia
ninguém.
Senti um início de pavor. Algo estranho estava
acontecendo comigo. Tentei verificar minha pulsação,
mas uma pressão nos ouvidos me impediu. Suei frio.
Sempre fui muito covarde para doenças, e já
imaginei um ataque cardíaco, ou quem sabe até um
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derrame cerebral. Tentei me acalmar, não sentia dores
no peito nem na nuca (dizem que são os piores sinais),
e exceto as mãos tremendo e a dor nos olhos, não
sentia mais nada. Só não conseguia ver nada direito.
Por mais que tentasse, só via um monte de imagens
confusas e distorcidas. Eu não distinguia nem minhas
próprias mãos.
Limpei o suor, que parecia jorrar da minha testa.
Não adiantou balançar a cabeça, ao contrário,
começou doer também, senti a tontura aumentar e
resolvi descer ali mesmo. Quem sabe, um pouco de ar
fresco...
Levantei-me apalpando até encontrar a cordinha
do sinal para parar. Cambaleando e quase caindo,
consegui descer as escadas do ônibus e fiquei parado
na calçada. Bati no poste da parada e me agarrei nele.
Mal reconheci onde estava, só notei ainda estar em
Alvorada, por vislumbrar o enorme anúncio do
supermercado da entrada da cidade. Respirei fundo,
tirei os óculos e permaneci alguns instantes quietinho,
com os olhos fechados e respirando acelerado.
Quando me senti aliviado, abri os olhos. Aí sim
as coisas mudaram. O mal-estar passou e eu já podia
ver tudo claramente. Graças a Deus.
Foi aí, só aí, que eu olhei o par de óculos em
minhas mãos. Era do meu irmão, com uma dezena de
graus a mais que o meu.
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CHUVA PASSAGEIRA
Para os outros foi apenas uma chuva passageira.
Para ele, entretanto, pareceu um prenúncio do caos.
Primeiro foram as goteiras, depois, ao tentar trocar a
cama de lugar, deixou-a cair sobre o pé esquerdo.
Justamente o pé que suportava todo o seu peso. É que o
outro estava engessado desde que o ferro de passar caiu
em cima dele. Agora, de novo, lá se foi outro metatarso,
no mínimo.
Depois, foi a vez do taxista. Chamou um carro pelo
telefone; o único ponto que atendeu, foi o da Quarenta e
Três, o motorista chegou com o taxímetro ligado e não
quis sair do veículo para ajudá-lo. A chuva estava forte,
até chegar ao carro, sem ajuda, tomou o maior banho. E o
taxímetro rodando. Até o hospital foi um dinheirão. Mal
entrou na sala de espera, a chuva parou. (Grrr)
Um bom tempo na triagem – o hospital de
Alvorada está sempre lotado, imaginem durante uma
borrasca. Depois de atendido (raios-X, analgésicos e uma
injeção para baixar a pressão arterial), recebeu a ordem
para engessar o pé. Lá no IOA. Depois de mais táxi, mais
chuva, mais taxímetro, mais filas. Conseguiu ser liberado
(já com gesso nos dois pés), voltou para casa. Mal o carro
saiu da clínica, recomeçou a chuva, um pequeno toró.
Engarrafamento, os pés doendo, o taxímetro rodando,
falta de luz. Sem sinaleiras, o trânsito ficou caótico, e
caro. Para chegar em casa, outra fortuna. Ainda bem que
29
nessa vez, o motorista ajudou-o entrar em casa. Pelo
menos isso.
Lá dentro, o caos em toda sua magnitude. Tudo
molhado, e ele sozinho em casa. Sem roupas secas, sem
cama seca para dormir, e no escuro. Será que havia
alguma vela em casa? A geladeira desligada, na certa
deixaria estragar o que tinha. A noite chegara naquela
amostra grátis de dilúvio que se tornara sua casa. E ele
ali, sentado na poltrona ensopada, sem saber o que fazer.
O último a engrossar as fileiras de sua falta de sorte foi o
telefone. Quando resolveu pedir ajuda para alguém, o
desgraçado ficou mudo. As goteiras pareciam coelhos, tal
era a velocidade que se multiplicavam. O sofá parecia
querer fugir dali nadando. Se ele pudesse, iria junto.
E a incompetente da moça da tevê disse que seria
uma chuva passageira. Passou só no meio da noite. A
maioria para dentro da casa dele. Mas tudo bem, restava
uma saída. Com a estiagem, ele arriscou ir até a casa do
irmão, lá na Americana, pedir guarida.
Foi o que fez. Com um par de muletas, e muita
paciência, ficou sendo molhado pelos carros que
passavam, enquanto esperava um táxi passar. A chuva
recomeçou, mas ele não se importou, já estava molhado
mesmo. Chegou ao lugar que seria sua salvação, no
momento em que as luzes da cidade voltavam. A chuva
estava parando.
A manhã seguinte foi ensolarada, mas a garota do
tempo disse que as novas chuvas passageiras...
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30
AS MÃOS DO APOSENTADO
Seu Antônio mora até hoje na Vila Nova
Americana, ali, pertinho do CTG. Foi ele mesmo que me
contou esta história, numa fila do Banrisul, onde ele
recebe o seu benefício de aposentado.
O começo foi exatamente esse; ele queria receber a
pensão que tinha direito, após perder as duas mãos (eu só
esqueci de perguntar, de que jeito, mas isso não tem
importância agora).
Ele foi para Porto Alegre, na madrugada do dia
marcado. Depois de mofar na fila, chegou ao guichê.
— Por favor, eu vim fazer a perícia para requerer a
aposentadoria.
— Tudo bem. Pegue estes formulários. – A moça,
mesmo olhando o paciente, lhe estendeu uma pilha de
papéis – Preencha, me devolva e espere na fila, que em
seguida será chamado.
Pegar, escrever e entregar. Fácil. Seria; se ele
tivesse mãos. Claro que teve que contar com a
solidariedade de algum colega de martírio, porque os
funcionários não podem prestar esse tipo de serviço.
Finalmente, conseguiu ser chamado para a tal
perícia. O ―em seguida‖ demorou três longas horas.
— Muito bem Seu Antônio, qual é o seu problema?
– O mais magro dos três médicos sentado atrás de uma
grande mesa, lhe indicou uma cadeira à frente deles –
porque o senhor quer se aposentar?
31
— Caso o senhor não tenha notado, nem lido na
ficha que deve ter em suas mãos, eu perdi as minhas.
Nessa altura do campeonato, seu Antônio já estava
ficando ―de saco cheio‖ da morosidade daquela
repartição. (porque aquela seria diferente? Era um
serviço público, não?).
— Claro, claro – O médico trocou olhares com os
colegas e continuou com as perguntas – e o senhor acha
que agora não precisa mais trabalhar. É isso?
— Por favor, olhe para mim. Eu não tenho mãos,
vou trabalhar em quê?
— Ora, por isso não, eu tive um paciente que
também perdeu as mãos e hoje é taxista em São Paulo.
Continua trabalhando. É um cidadão normal.
— Eu não sou motorista. E acho que, mesmo
aposentado, continuarei sendo um cidadão.
O doutor magricela trocou um sorriso de
cumplicidade com os colegas e continuou a inquisição.
— Muito bem seu Antônio. Profissão?
— Eu sou cantor em casas noturnas.
— Arrá! Vai-me dizer que canta com as mãos?
— Quem vai contratar um cantor que não tem as
mãos? Um clube de cegos?
— Ora, hoje em dia, até os cães cantores estão
fazendo um tremendo sucesso.
— Muito obrigado. Vai continuar com as
gracinhas, ou vão assinar logo a papelada, para que eu
possa voltar para casa?
— Calma seu Tônho. É só um papo para
descontrair. Seus documentos já estão prontos. Nós
32
sabemos que o senhor vai quebrar a regra que diz que
todo aposentado ganha dinheiro para ficar coçando o
saco. Mesmo sem podermos apertar sua mão, nós lhe
desejamos boa sorte. Tenha um bom dia. Próximo!
Seu Antônio voltou para Alvorada sem saber se a
sensação que sentia, era de alívio, por ter enfim
terminado sua odisséia em busca da mísera pensão, ou se
estava ―P da vida‖, por ter servido de alvo da
descontração dos doutores, que deviam ter esperado anos
por uma oportunidade de desembuchar aquelas piadinhas
tão infames.
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33
GRILO
Numa tarde dessas, vinha eu andando pela rua
Vinte e Três de Dezembro, pensando sei lá o quê, quando
uma cigana agarrou o meu braço e desandou uma
falaçada sem fim. Eu estava meio distraído e quando dei
por mim, ela já estava lendo a minha mão. Puxei-a para
sair andando, ela apertou mais e falou a única coisa que
entendi.
— A tua mulher tá te traindo. Com teu melhor
amigo.
Saí, meio apressado, de perto daquela mulher. Eu
nunca acreditei nessas bobagens de previsões, mas ela foi
tão clara e rápida, que fiquei o caminho todo até minha
casa, com aquele grilo na cabeça. Esperando não ser nada
pior. Lembrei da velha piada e cheguei em casa louco
para matar o cachorro. Para sorte dele, há tempos moro
num apartamento dos Sobradinhos do Onze de Abril e
não tenho mais nenhum animal de estimação.
Peguei a lista de compras, que tinha esquecido, e
fui até o Supermercado Oliveira, lá na parada Meia Um,
só para espairecer um pouco. A cigana não me saía do
pensamento. E agora? Como tiraria aquela dúvida da
cabeça? Uma moreninha, caixa do mercado, que há
tempos vinha me dando bola, é que me fez lembrar de
uma coisa muito importante.
Eu não tenho mulher alguma. Sou solteiro.
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UM TIPO SUSPEITO
O homem está encostado junto à parede, sob a
marquise da loja, ali na esquina. Da janela em frente, no
outro lado da rua, ela pode ver que ele está usando
jaqueta de couro e calça Jeans meio desbotada. Os
cabelos longos e os óculos escuros não a deixaram
reconhecer o rosto dele. Mas não parece ninguém
conhecido. Não de suas relações.
Ela notou que ele esteve ali, parado, nas últimas
três horas. Por quê? Embora esteja chovendo, não
poderia estar só se abrigando até agora. Não por tanto
tempo. O quê aquele homem estará fazendo ali? Já está
quase anoitecendo e ele não arredou dali um minuto
sequer. Boa coisa não deve estar tramando. Ninguém se
dá ao trabalho de permanecer estático por tanto tempo
sem uma boa razão. Esse homem só pode estar com
alguma intenção maligna. Só pode.
Ela tentou avisar. Por várias vezes falou para a
família que aquela não era uma boa zona para morar. O
bairro Onze de Abril, embora bem associado – talvez por
isso mesmo – é muito visado pela bandidagem. A
vizinhança ali seria da pesada. Mas eles ouviram? Claro
que não. Alegaram que o apartamento estava à venda por
um bom preço, era bom, a gente se acostuma com o
lugar, e blá, blá, blá...
Agora taí ó. Ela precisa sair, ir até o armazém fazer
compras para o jantar. Mas como? Com um sujeito
suspeito, rondando em volta? Com que coragem? E o
35
pai? Justo hoje, foi avisar que chegaria mais tarde. A
mãe! A mãe está pra chegar. Vai descer do ônibus no
Paradão e passar por ali, do lado do bandido. Sim,
porque esse homem só pode ser um marginal, deve estar
aguardando uma oportunidade para atacar alguém.
Talvez deva chamar a polícia. Não dá, o telefone ainda
não foi instalado, e sair à rua é muito perigoso.
Os pensamentos dela já estão querendo
sobrecarregar o cérebro, já está beirando algum ataque
nos nervos. Está parecendo algum bicho na jaula. Vai da
janela até o quarto, da janela até a cozinha, da janela
até... Não consegue ficar quieta. Também...
Se não relaxar um pouco, vai ter alguma síncope.
Está muito preocupada por estar sozinha em casa. E a
mãe? Não está demorando muito? Será que... Não, o cara
ainda está no mesmo lugar.
Que horas são? Não, está cedo ainda, a mãe dela
está no horário, ela é que está dramatizando um pouco.
Se bem que uma moça sozinha em casa, neste bairro, é
mesmo muito perigoso. A vizinhança aqui é da pesada.
Lá vai ela para a janela de novo. Ela deveria ficar...
Lá vem vindo a mãe. A filha já viu, abriu a vidraça
e está acenando para chamar a atenção da mãe, mas a
senhora nem olhou para o lado que ela está.
A mamãe da nervosinha chegou à esquina, vai
passar pelo homem suspeito, pelo bandido. Ele nem se
mexeu. Passou por ele. Não. Ele está atacando a mãe dela
pelas costas, está batendo nela. Os dois caíram no chão.
Meu Deus! A moça também caiu, ela desmaiou. É
natural, ela estava pressentindo a desgraça...
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A mãe está entrando em casa. Está com o cabelo
desarrumado, ofegante, tem um sapato na mão. Entrou na
sala, viu a filha caída, se ajoelhou junto à garota e tomou-
lhe a pulsação. Levantou e foi até a cozinha, pegou um
copo com água, voltou à sala e salpicou no rosto da filha.
Parece que funcionou, ela está voltando a si.
— Mamãe! Meu Deus, o que aconteceu com a
senhora? Eu estava na janela, e vi o...
— Não foi nada, minha filha. Você desmaia à toa.
Não me aconteceu nada de ruim. Quando eu dobrei na
esquina esbarrei num manequim e ele caiu por cima de
mim. Na queda, eu quebrei o salto do sapato. Foi só isso.
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MOEDAS
Duas horas da madrugada. Já era sexta-feira
quando o taxista, voltando de uma corrida até a Gleba,
avistou um passageiro perto da ponte. O homem de
sobretudo pesado fez sinal para que parasse.
— Por favor, suba a Oscar Schick até o cemitério.
O velhote, de ralos cabelos brancos e usando uma
gravata-borboleta, parecia apressado.
O motorista, por força da profissão e o poder
econômico, não poderia recusar uma corrida, mas bem
que gostaria.
―Cemitério? Há essa hora? Eu, hêim?‖
Ia parar o carro em frente às capelas, por causa do
hábito, mas o passageiro pediu para seguir mais adiante.
— Faça o favor de parar em frente ao portão
principal. Vou lá dentro pegar o dinheiro. – o condutor
do táxi esperou o usuário com o motor ligado. O cenário
não era muito agradável. Nem dos mais seguros.
―Tudo bem, deve ser o zelador‖
O profissional do volante tentou, com pouco
sucesso, convencer a si mesmo, da naturalidade da
situação.
O homem voltou, meio constrangido, com um
punhado de moedas douradas.
— Desculpe-me, não consegui encontrar os dez
reais. Será que isso aqui serve?
O motorista estendeu a mão e agradeceu rápido.
— Claro senhor, obrigado. Boa noite.
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À noite, em frente ao cemitério, ninguém discute.
Muito menos, numa madrugada de sexta-feira.
As moedas pareciam de ouro. Mas, mesmo que não
fossem, eram bonitas. Serviriam de suvenir.
No dia seguinte, à tarde, o taxista, antes de sair
novamente para o trabalho noturno, passava os olhos pelo
jornal do dia, quando leu a notícia. “Encontrado, em baixo de uma
ponte, na cidade de Alvorada, o corpo
de José da Silva, procurado há mais de
dez anos, pelo assassinato de um
ancião da região. O cadáver foi
encontrado com a cabeça separado do
corpo. A mesma forma que ele usou para
matar o cidadão, na residência da
vítima, quando efetuou o latrocínio,
para roubar uma caixa de moedas de
ouro que a vítima colecionava”.
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MEIO SÉCULO
Esta história eu não vou assinar. Não fui
testemunha e nem ao menos a criei. Eu a ouvi de alguém
que – claro – me garantiu que é verdadeira e aconteceu
com parente bem chegado. Vou apenas fazer como
dizem: vender o peixe pelo mesmo preço que comprei.
Talvez eu vá dar uma enfeitada, aqui e ali, para o caso
ficar mais agradável, mas a essência será a mesma. Será a
verdade segundo a nossa testemunha anônima.
No fim dos anos cinquenta do século passado,
Alvorada ainda era um distrito da cidade de Viamão,
chamado Passo do Feijó. Pois contavam que no local que
hoje chamam Vila Americana existiam várias fábricas de
tijolos – algumas estão lá até hoje. Em uma delas (agora,
não interessa qual) havia uma moça muito bonita
chamada Maria Hortênsia, filha de um empregado da
olaria. Diziam que parecia muito com a flor da qual
roubara o nome. Não no tamanho por certo, que de gorda
ela não tinha nada. Talvez por algum outro motivo, que
agora não vem ao caso. O certo era que falavam que em
toda Viamão não encontrariam moça mais bela.
Exageros à parte, pretendentes não lhe faltavam.
Mas a menina dizia para todos que ainda não se sentia
pronta para a vida adulta, apesar de seus dezessete anos,
idade casamenteira na época.
Contaram que certo dia apareceu por aquelas
bandas – finalmente – um rapagão, um caixeiro-viajante,
como naquele tempo chamavam os revendedores.
40
Foi aí que a bela com nome de flor da serra
conheceu o tal do amor. E foi aí também que sentiu a
força da ira dos pais. Um motivo, que hoje pode parecer
frívolo – aliás, está até na moda, agora – mas que
naqueles idos dias, foi suficiente para que o mundo
desabasse sobre os sonhos de menina que enfim resolvera
desabrochar.
O rapaz era mulato, situação que naquele tempo
impedia qualquer pai de família de liberar a mão de uma
filha. Mentalidade retrógrada remanescente dos séculos
anteriores, mas que ainda estava em voga naquela
década, e que ainda iria perdurar por mais um bom
tempo.
Há cinquenta anos, moça alguma se atreveria
desobedecer a uma proibição dos pais. Com nossa
personagem não foi diferente. Submeteu-se à vontade do
pai e não levou adiante os sentimentos que sentia pelo
rapaz, que a contragosto partiu com a promessa – ou
ameaça – de um dia voltar para buscá-la.
Decepada de sua paixão, Maria Hortênsia jamais
atendeu aos pedidos da família para que casasse. Viveu,
até o ano passado, como titia cuidando dos filhos dos
irmãos e de si mesma.
Foi no ano que chegou um carrão na Vila
Americana. Dele desceu um velhote altivo e com ares de
importante. Parou em frente a casa do oleiro,
perguntando:
— Onde está Maria Hortênsia? Vim buscá-la.
Dessa vez, ela foi.
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A LOURA DO JARDIM AO LADO
Eu procurava uma casa para comprar. Quando fui
visitar uma proposta no Jardim Algarve, uma casa recém
construída no Porto Verde, cheguei sem muito
entusiasmo. Eu já estava prevendo a canseira que daria
viajar no L2, todos os dias até a prefeitura, onde trabalho.
Mas antes mesmo de entrar no pátio, vislumbrei a mulher
regando flores, na casa ao lado. Mulher? Era um
monumento. Alta, esguia, loura; e me sorriu com uns
lábios que...
O jardim dela era perfeito. Flores, grama, canteiros;
tudo bem cuidado. A sebe, milimetricamente aparada. Se
for verdade que uma boa cerca faz bons vizinhos, então
nós nos daríamos muito bem. Se bem que eu, como
jardineiro, não tinha tanto esmero. Meus conhecimentos
de botânica deixavam muito a desejar.
Nem examinei a residência. Quando ela entrou na
casa e me deu uma última olhada, por sobre os ombros,
saí direto para a imobiliária e fechei negócio.
Nas três semanas seguintes, repartia o tempo entre
colocar em ordem minha mudança e espiar por cima da
cerca-viva; na esperança de avistar minha vizinha
gostosa. Poucas vezes tive oportunidade de colocar meus
olhos em cima dela. Pareceu que tinha um horário
diferente do meu; quando eu chegava em casa, logo em
seguida ela saia. Toda arrumada, linda, rebolando. Eu
quase podia sentir seu perfume.
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Certa noite, ouvi o barulho de uma freada de carro.
Saí à rua e vi que era ela chegando. Ficou alguns
instantes atrás do volante, com as mãos no rosto, depois
saiu devagar do veículo novinho e importado que dirigia.
Notei que seu vestido parecia rasgado (na verdade, estava
igual aos tais frangalhos) e deixavam à mostra um par de
pernas que...
Corri em sua direção e ofereci ajuda, que foi aceita
com o silêncio cortado apenas por indisfarçáveis soluços
que faziam estremecer seu corpo morno e perfumado
igual as flores que cuidava com tanto carinho.
Amparei-a através do jardim até dentro de sua casa,
onde afinal contou para o meu queixo caído, (com uma
insuspeitável e grave voz) que havia sofrido agressões de
um cliente, na boate onde se apresentava com
transformista.
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43
PAPAI GIGANTE
Minhas mais antigas memórias de infância são de
uma casa de madeira, na Rua da Pedra. Bem pertinho da
rocha que lhe deu o nome, distante duas quadras da
Frederico Dhill, onde a Kombi da empresa que meu pai
trabalhava, deixava-o todos os dias no mesmo horário.
Nos dias que me portava bem em casa (se não
fizesse nenhuma arte), minha mãe me deixava ir esperá-
lo naquele local. Eu ia lá e pegava uma carona na
cacunda dele até em casa. Ele gostava daquela
brincadeira tanto quanto eu.
Ele fazia tudo para me surpreender, me alegrar.
Sempre conseguia. Uma vez, chegou em casa disfarçado
de Papai Noel. Estava gordo e de vermelho, mas a barba
branca desgrudava o tempo todo.
Ele era grande; enorme. Eu mal enlaçava suas
pernas. Era forte, me protegia, me segurava e jogava para
o alto, tal qual o filhotinho que eu era. Deixava que eu
brincasse com sua enorme cabeleira negra. Éramos o
brinquedo favorito um do outro.
Depois, ele foi diminuindo, ficou quase o meu
tamanho. Já não brincávamos tanto. Eu, sem tempo para
ele; ele, sem forças para me acompanhar.
Na minha formatura, tive que me curvar para lhe
beijar a ampla testa calva. Meus dedos tocaram apenas
alguns fios de cabelo branco, que ainda teimavam,
inutilmente, lhe cobrir a nuca.
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Hoje, quando tenho vontade de pegá-lo no colo,
beijá-lo e jogar para o alto seu corpo miúdo, consumido
pela doença, já não posso.
Só me resta lhe dar um beijo no pálido rosto
enrugado. O rosto sorridente, que tantas vezes me
mostrou que um sorriso é sempre o melhor remédio, o
homem que me ensinou a sorrir e confiar no pai, agora
me mostra que não é só com a presença física; tem que
ter um espírito, um enorme coração, para que um filho
continue adorando o pai. (que para mim, sempre será um
gigante), por todo seu exemplo, sua grandeza.
Seu carinho sempre me acompanhará. Ele sempre
fará parte da minha felicidade, mesmo agora, depois que
o deixei neste asilo.
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45
...E A DOUTORA SUMIU
A casa ainda está vazia. Fica ali na Mário Totta,
logo após a Itararé. Depois de tantos anos, ninguém
conseguiu encontrar a dona para negociar o imóvel.
Quando era habitada pelo jovem casal estava uma beleza;
agora, o mato e o tempo estão fazendo-a parecer cenário
de filmes de terror.
Aqueles que os conheceram, dizem que sempre
formaram um casal politicamente normal. Alguns anos
de casamento, sem filhos, dois profissionais com cargos
importantes, trabalhando cinco dias por semana. Ele, era
um funcionário do segundo escalão da prefeitura. Ela,
professora na UFRGS. Casa bem cuidada, jardim
impecável, carros do ano. Bem sucedidos e bem
relacionados. Um casal exemplar.
Até aquele dia. Ela chegou mais cedo do trabalho,
acontecimento muito raro para ela.
Os que ainda lembram o acontecido, afirmam que
naquela tarde choveu muito, por isso ela chegou
molhada, a pé. Na verdade, isso em nada influiu para o
desenrolar dos acontecimentos, mas alguns ainda teimam
que foi o pomo da discussão.
O certo, segundo me contaram, é que quando ela
mal havia entrado em casa, ele começou uma falaçada
sem fim. Certamente ela não acreditou no que estava
vendo, tampouco conseguiu forças para interromper o
marido e exigir dele alguma explicação.
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A vizinhança até hoje ainda fala que em nenhum
momento ouviram a voz dela; só a dele, aos gritos.
Alguns arriscam dizer que nesse dia, que foi o último em
que alguém viu a jovem doutora, ela trazia uma caixa de
presente na mão, mas nunca foi encontrado nada
parecido.
O revólver também, jamais descobriram de quem
seria. Os que ouviram os tiros, quando lá chegaram, a
mulher já havia sumido.
Só encontraram os corpos dos dois homens nus, no
chão do quarto, entre a cama e a penteadeira que até hoje
guarda a moldura de prata com a foto de casamento do
casal.
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MAIS UM SUPER-HERÓI COMUM
José era um cidadão comum. Do trabalho para
casa; um chopinho num dos bares do Fim-da-Linha,
de quando em vez, ou uma parada para levar um
espetinho, quando sobrava algum troco no bolso. Da
casa para o trabalho.
Raramente, um cineminha em Porto Alegre, com
a patroa ou uma saída com os filhos até a pracinha da
Quarenta e Oito.
José sempre se sentiu um cidadão comum.
Funcionário da IBF, ali na Frederico Dhill. Ônibus
pela manhã e à noite, marmita, vale quinzenal, essas
coisas...
Até que um dia aconteceu com ele, uma coisa
parecida ao que houve com Peter Parker, que foi
mordido por uma aranha radiativa e se transformou no
Homem-aranha.
Nosso personagem também foi picado por um
aracnídeo.
Uma aranha chamada desemprego. Os
agravantes da idade avançada e a pouca escolaridade
foram os fatores fundamentais para mantê-lo preso à
teia, na condição de parte da massa de maior expansão
de nosso país, e principalmente em Alvorada, onde a
indústria não consegue se instalar com força
suficiente.
Hoje, já conseguiu dominar a revolta, e usa os
novos poderes que precisou desenvolver, para limpar a
48
casa, as roupas e cuidar das crianças, enquanto a
companheira, obrigada a voltar ao mercado de
trabalho, traz o sustento da família, invertendo o papel
de chefe-de-família.
José, um cidadão cada vez mais comum, sempre
que pode, encontra um tempinho para se dedicar à arte
de inventar histórias, buscando na ficção o poder
perdido abruptamente na realidade.
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MAIS UM CONTO DE NATAL
Naquele ano, ele ficou eufórico como nunca.
Disseram-lhe que o Papai Noel viria pessoalmente
entregar os presentes de natal. Puxa! O Papai Noel de
verdade. Agora sim, ele iria receber o presente que
tanto queria. Demorou, mas o menino estava tão
ansioso que não deixou o sono dominá-lo. Finalmente,
quase à meia-noite, o velhinho apareceu.
Não entrou pela chaminé; até porque o fogão à
lenha estava assando um casal de perus. E também, o
cano de lata seria estreito demais. Claro que ele sabia
que ali na Vila São Pedro, ninguém possuía uma
daquelas chaminés que apareciam nos filmes da
televisão. Chegou pela porta mesmo. Era bem gordo,
de vermelho, mas a barba branca não grudou direito e
já estava caindo de um lado (e parecia mais um
chumaço de algodão).
Naquele natal, era a vez da casa dele sediar a
reunião anual da família. Ele já não lembrava da
última vez que os parentes se reuniram naquela
casinha da Álvaro Chaves, mas achou que não caberia
todo mundo; não todos que foram ano passado na casa
da tia Cotinha. Sabe-se lá como, mas couberam. Todo
mundo foi, até a tia Fininha que não se dava com a
mãe. Duas avós, um avô, uma dúzia de tias e tios e um
monte de primos. Seus irmãos, a mãe e ele.
Todo mundo. Menos o pai, mais uma vez, ele
não estava presente.
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E o tal Papai Noel da barba caindo. O saco de
presentes era enorme. Também... Pacotes para aquele
mundaréu de gente...
Pijama – como sempre – para o vovô, toalhas e
chinelas para as avós. Montes de louças para as tias.
Bebidas – é claro – para os tios. E brinquedos para as
crianças. Um montão deles. Carrinhos, bonecas,
joguinhos, Digimons, Póquemons, bonequinhos de
heróis – a maioria de alguma loja de um e noventa e
nove.
Todos ganharam presentes. Até o Papai Noel –
era só o tio Carlinhos, fantasiado.
Quando chamaram o nome dele, ganhou um
caminhãozinho-tombadeira (nem tirou do plástico).
Não era esse o presente que ele queria. Tinha pedido
ao bom velhinho – incontáveis vezes – a mesma coisa
dos últimos três anos, mas parece que o Papai Noel,
outra vez, esqueceu de trazer de volta o seu papai.
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AS GATAS
Elas eram duas ―gatas‖. Uma morena, alta, linda,
etc... etc... Ele a conheceu por acaso, durante o longo
trajeto que percorre o Vila Elza desde o centro de Porto
Alegre, onde ele pegava o ônibus para casa, todos os
dias, depois de viajar do trabalho, da zona sul da capital.
A outra, uma dessas louras de parar o trânsito, ele
viu-a no caixa eletrônico do Banco do Brasil, não resistiu
e puxou conversa... Para não espichar as descrições, eram
as duas mulheres mais belas que ele já havia mantido
qualquer espécie de contato.
E ele estava ―ficando‖ com as duas. Claro que
nenhuma delas sabia da outra. Nem se conheciam. Até
que – lógico – ocorreu o inevitável, o que ele esperava
nunca acontecesse: Uma soube da outra e a outra ficou
sabendo da uma.
Civilizadas, e sem querer abrir mão do amor que
sentiam, ambas resolveram provar para a rival, e para o
amado, que eram o grande amor de sua vida.
Ele, que ficou sem saída e não queria magoar
nenhuma das suas ―gatas‖, topou continuar o romance
com as duas até decidirem com quem faria par.
E por algum tempo os três ficaram juntos. O trio
desfilou várias vezes por lugares comuns; restaurantes,
cinemas, parques e em todos os lugares que podiam.
Até que o passo fatal foi dado. Combinaram ir a um
motel. Os três juntos, naturalmente. O táxi deixou-os
juntos ali na Piratini.
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Foram grandes momentos de prazer para a trinca.
Ele se sentiu o máximo, achando que as duas mulheres
estavam cada qual fazendo tudo o que podiam para
convencê-lo de ser ela a mulher que ele deveria escolher.
Mas ele, obviamente, não estava com nenhuma pressa de
tomar alguma decisão ou exigir uma postura heterogênea
de qualquer uma delas.
Deliciou-se a mais não poder, até notar que entre as
duas houve um aumento significativo de carícias,
deixando claro que elas descobriram carinhos entre si que
o deixaram à margem.
Para falar a verdade, elas nem notaram quando ele
saiu do quarto.
Na volta para casa, pegou sozinho o L2.
De vez em quando ele ainda as visita, afinal, são
duas ―gatas‖.
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COMPROMISSO DE HONRA
Esta história é muito conhecida, aconteceu aqui
mesmo em Alvorada. Muita gente até hoje duvida, mas
os que presenciaram ainda não conseguiram esquecer.
Alguns ainda vivem e podem confirmar o acontecido.
Ela já estava na igreja – que nem preciso dizer qual
era a mais imponente da época – invertendo o papel na
cerimônia. Filha de uma daquelas famílias fundadoras do
então Passo do Feijó. O noivo, um tenente da Força
Aérea, viria direto da Base em Canoas, para o casamento
marcado há mais de um ano.
Chegou atrasado, quase correndo, mas sem perder a
elegância no uniforme de gala.
Ajoelhou-se ao lado da noiva, agarrou sua mão e
sussurrou.
— Vim cumprir minha palavra. Você está linda.
O padre realizou o ritual, e logo depois o casal
descia a escadaria, sob a chuva de arroz.
O tenente deu um beijo e uma desculpa para a
esposa, voltou para dentro da igreja e sumiu pela
sacristia. Ela ficou esperando na charrete.
Meia hora de preocupações depois chegou um Jeep
da FAB, com dois oficiais informando que algumas horas
atrás, o avião do piloto havia caído em águas
internacionais.
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CONFISSÃO
Estávamos, pela primeira vez, no banco traseiro do
meu carro, estacionado numa travessa do Jardim Algarve,
quando ela colocou a mão entre nossos lábios, e
sussurrou, baixando a cabeça.
— Amor, preciso ter confessar uma coisa.
Quando ela falou isso, toda lânguida, eu pensei: Tá,
é hoje. Mais cedo ou mais tarde, todas as mulheres
acabam tendo que confessar um ou outro segredinho. Eu
já sabia isso de cor. Apostei comigo mesmo que ela ia me
dizer que antes de me conhecer, tinha sido noiva e... Ou
então que o tio dela, no ano passado... Talvez não fosse a
história de que a família precisava de dinheiro e que ela
teve que... Eu esperava que ela não confessasse que fazia
programas, seria demais, ela era tão linda e tão jovem.
Preferi não dizer nada. Deixei-a tomar coragem e
falar de uma vez. Eu não queria forçar nenhuma barra;
afinal, aquele estava sendo nosso primeiro passeio
realmente a sós, depois de alguns encontros no Radar, e
um jantar em casa de alguns amigos, na Vila Formosa.
Ela estava muito nervosa. Isso me pareceu que realmente
se importava com a minha reação. Bom para o meu ego,
eu gostava muito dela. Segurei suas mãos e esperei
desabafar. Finalmente conseguiu murmurar, sem olhar
nos meus olhos.
Estava tão trêmula, que só conseguiu gaguejar as
poucas palavras que disse.
— É que eu... Bem... Eu sou... Virgem.
55
Báá! Por essa eu não esperava. Eu estava preparado
até para ouvir qualquer tipo de história esquisita. Que era
lésbica, ou que iria ser freira. Casada ou filha adotiva de
pais gays. Qualquer coisa, menos aquilo. O que eu iria
dizer para ela? Que bom, não faz mal, sinto muito ou
parabéns?
Optei por não dizer nada, tentar reverter o quadro e
acabar com aquele dilema.
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A ÚLTIMA HISTÓRIA
Não o conheci pessoalmente, apenas o seu
trabalho. Ele era um escritor, e dos bons. Eu lia seus
livros com a mesma regularidade com que eram
lançados; tinham histórias espetaculares. Eu era seu fã.
Tínhamos um amigo em comum, um taxista dali
da Quarenta e Oito, que o conhecia muito bem. Disse-
me que era um sujeito miúdo, de aparência cansada e de
poucas palavras, muito poucas. Embora já estivesse
classificado como meia-idade, nunca quis – ou não teve
oportunidade – casar-se. Vivia quase o tempo todo em
frente a algum livro; lendo ou escrevendo.
Além do estúdio na casa dele, o lugar mais fácil de
encontrá-lo era a Praça João Goulart, a Central em frente
à prefeitura, ali perto da casa dele. Por vezes, passava o
dia inteiro sentado em um dos bancos daquela área
central, onde tem sombra, escrevendo, lendo ou apenas
observando os passantes. Dizia que as pessoas que
transitavam por ali eram uma grande fonte de
inspirações. Ele via um casal, uma criança ou um grupo
de amigos, e presto, já bolava uma história. Tinha
escrito várias dessa maneira. Considerava as melhores.
Certa tarde, um sábado talvez, ele estava como de
costume no banco da praça. Ao lado, a inseparável meia
dúzia de livros. No colo, o grosso caderno espiral em
que esvaziava as cargas de suas Bics, compondo os
manuscritos que virariam seus livros de contos.
57
Estava sentado ali por muito tempo, e ainda não
tinha manchado a alvura da folha com nenhuma letra. É
possível que não estivesse num dia muito inspirado, ou
entretido com o movimento do Brique.
No meio da tarde, alguém sentou na parte do
banco que não estava ocupada por seus livros. Uma
mulher; morena, com óculos de lente cheia de graus.
Pequenina, bonita – dessas tipo mignon. Olharam-se. Os
livros entre os dois serviram de pretexto para
começarem um assunto. A conversa durou até
perceberem que já estava anoitecendo.
O resto da noite serviu para se conhecerem
melhor. Jantar, um vinho, uma caminhada até a casa de
um deles. Um licor, um café. Conheceram-se.
O resumo é que naquele dia ele não escreveu a
história que pretendia. Não escreveu nenhuma. Em vez
disso, viveu uma. O que no final das contas, deve ter
achado uma experiência muito melhor.
O porquê ninguém ficou sabendo, mas desde
aquele sábado, ele nunca mais escreveu história alguma.
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58
GRITOS
— O último que pular é mulher do padre!
O grito de guerra era infalível, assim que a
gurizada chegava à beira do Gravataí (naquele tempo,
era um rio cristalino).
Lembro como se estivesse ouvindo agora – parece
que estou. Quase ouço a gritaria alegre do bando de
moleques que éramos, durante as férias escolares.
Também posso ouvir, mais uma vez, os gritos do
Zequinha, um garoto magricela de seus onze ou doze
anos, pedindo ajuda. E nós, todos nós, pensando que era
brincadeira. Não era, mas no meio do burburinho,
parecia.
Foi a primeira vez que vi alguém morto. E não era
um alguém qualquer. Não, era um garoto, como eu,
quase a mesma idade, colega da mesma escola na Vila
Americana. Era quase eu. Poderia ser eu. Foi meu último
banho de rio. Jamais tive coragem de entrar n’água de
novo
Os outros meninos continuaram tomando banho lá,
todas as tardes de verão. Eu não, nunca mais fui. Não era
o medo, eram os gritos. Parecia que eu os continuava
ouvindo, o tempo todo. Ouvia gritos, cada vez que
lembrava do Gravataí.
— Mulher do padre. Ajudem-me. Ajudem.
Socorro.
Continuei ouvindo o Zequinha por muito tempo.
Às vezes ainda ouço. Igual a hoje, ouço agora.
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— Me ajudem. Socorro. Mulher do padre.
O riacho, o Zequinha, os gritos, a mulher do padre.
Essas sombras têm povoado minha cabeça, provocando
pesadelos, desde o verão dos meus dez anos.
Os gritos suplicantes pedindo socorro e o brado
alegre dos meninos, com o passar dos anos se mesclaram
em minha mente, se tornando uníssonos, como se fossem
a mesma súplica.
— Socorro, me ajude, mulher do padre.
Hoje, depois de já quase esquecidos, voltam a ferir
meus tímpanos, qual marretadas simétricas e contínuas.
Terrivelmente sonoras e ecoantes.
— Socorro, me ajudem. Socorro.
São gritos desesperados, angustiantes. Tão
distantes e, num instante, tão presentes.
— Me ajude mulher do padre, socorro.
Eu devia ter continuado indo ao riacho.
— Socorro, me ajudem.
Eu deveria ter aprendido a nadar. Não estaria agora
ouvindo esses gritos, outra vez.
— Mulher do padre, socorro.
Gritos tão estranhos, e tão conhecidos, tão
diferentes e tão iguais, que quase nem reconheço neles o
som da minha própria voz.
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60
O TERCEIRO OLHO
Era uma vez, um garoto com três olhos. Ele não
nasceu assim; no dia em que completou nove anos,
acordou com aquele olho extra bem no meio da testa,
para seu próprio desespero e da família.
Nunca alguém conseguiu explicar. Os pais,
apavorados, procuraram médicos, especialistas, e até
parapsicólogos. Nada, nem uma resposta, nem uma
explicação. Os maiores cientistas do mundo usaram os
mais modernos aparelhos, testes, exames
computadorizados, e nada explicava o porquê do menino
ter três olhos, e de como foi que ele nasceu, assim, da
noite para o dia. Era um olho normal, sob o ponto de
vista técnico, tinha tudo que um olho comum deveria ter,
exceto que estava no lugar errado; e aumentando a
quantidade.
Revistas, jornais, e principalmente a televisão;
todos queriam ver, escutar e falar sobre o garoto que
tinha três olhos. Todos queriam provas.
Opiniões estavam formadas em todos os cantos.
Uns diziam que era um extraterrestre, outros, uma
mutação, uma aberração da natureza. Foi associado com
santos, deuses e o diabo.
Começaram dizer que ele podia enxergar muito
além da visão humana, falaram que podia predizer o
futuro, e que aquele terceiro olho lhe dava o poder da
cura.
61
Que bastava ser olhado por ele, e pronto, qualquer
que fosse a doença sumiria na hora. Foi dito que talvez
finalmente tivesse chegado o novo messias.
A historia das curas ganhou proporções
astronômicas. Iniciou uma romaria até a casa para onde o
menino voltaria, depois que os cientistas da capital o
liberassem.
A pequena cidade de Alvorada já não estava
comportando mais ninguém. Milhares, talvez milhões de
pessoas, estavam acampadas para esperar o garoto. De
todas as partes do mundo chegavam romeiros, curiosos e
mais noticias do menino.
Falava se que já haviam descoberto que o terceiro
olho teria um tal poder hipnótico sobre as pessoas, que
elas faziam tudo que o menino mandasse.
Ele já teria convocado os maiores lideres do país
para uma reunião, mandaria que acabassem com a
corrupção, a fome e a violência.
Ele convocaria depois, uma assembléia com os
governantes do mundo inteiro. Queria acabar com as
guerras, a pobreza e a criminalidade em todos os cantos
do mundo.
O garoto devia ser mesmo um santo. Contaram que
ele viria para casa; e faria um discurso pela televisão,
para o mundo, dizendo que aquele olho podia ver tudo,
saber tudo. E se não fizessem o que ele mandasse, só
com o olhar do menino poderiam acontecer terremotos,
furacões e tudo que ele quisesse. O mundo teria que
viver em paz; sob o olhar vigilante do menino de três
olhos, senão, atiçariam a ira dele.
62
As notícias continuavam chegando. O garoto já
havia sido liberado pelos cientistas, que o examinaram
em vão. Iria voltar para casa.
O mundo inteiro parecia estar ladeando a estrada
por onde passaria aquele ser tão especial. De Porto
Alegre, onde esteve por tanto tempo sendo estudado, até
sua casa. A Baltazar, a Getúlio Vargas e várias ruas
transversais, até a Rua Cedro; até uma das últimas casas,
onde morava o menino. Milhões de pessoas
acotovelavam-se ao longo do caminho, na esperança de
receber um olhar do terceiro olho do menino milagreiro.
A família privilegiada vinha toda em cima do
caminhão de bombeiros, que levaria aquele que já era
considerado o prometido da nova era, até a residência,
antes uma humilde casinha, e já transformada em
santuário.
O pai vinha abraçando o filho, enquanto abanavam
para a multidão lá em baixo. De repente, o homem sentiu
que o filho lhe foi arrancado dos braços e jogado para
trás. Em meio ao tumulto que se fez, alguém descobriu o
que tinha acontecido. Um tiro. Ninguém ouviu, mas uma
bala acabou com a vida do garoto.
Um tiro certeiro, bem no meio da testa, no centro
do terceiro olho.
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63
MEU AMIGO JOSÉ
Nos meus tenros anos tive um amigo inseparável.
José era mais velho que eu – só um pouquinho. Era
quem me aconselhava, protegia e convencia fazer tudo
que eu queria, devesse ou não.
Foi junto com ele que aprendi as letras e li os
primeiros livros. Com ele a meu lado, descobri as
maravilhas de Monteiro Lobato, Irmãos Grinn e
Andersen. Nós lemos e vivemos aquelas aventuras
centenas de vezes, de centenas de maneiras diferentes.
A primeira vez que fomos a um cinema – uma
matinê de domingo – no Cine São Jorge, a primeira sala
de cinema de Alvorada. Mais tarde o nosso cinema
trocou de endereço, e até de nome, mas a nossa estréia
foi lá na primeira casa, onde hoje é a Loja Radan. Só nós
dois, escondidos de meus pais. Ele adorou o Robin
Hood, disse que quando crescesse, queria ser o Richard
Greene. A sétima arte se tornou um vício para nós. As
fugas também, sempre que aparecia um filme novo na
cidade, lá estávamos na primeira fila. Quando terminava
a seção saíamos correndo, para brincar com o tema da
historia. Éramos os maiores espadachins, caubóis,
astronautas, policiais e até monstros, de todo o mundo
Quando crescemos um pouco, apareceram as
primeiras namoradinhas. Ele dava a coragem que eu não
tinha para falar com as meninas e inventava todo o papo
que eu lançava em cima delas.
64
Crescemos mais, e ele sempre me ajudando. No
estudo, nos pequenos trabalhos que fazia, para ganhar
uns trocados a mais, para comprarmos mais livros e ir
mais ao cinema, para viver novas aventuras.
José e eu ainda brincávamos de viajar, em frente às
fotos das revistas que mostravam lugares maravilhosos,
reais ou não, onde vivíamos aventuras imaginárias. Nós
dois corremos o mundo da fantasia várias vezes. Sempre
voltando prontos para outras viagens, mais incríveis,
mais fantásticas. Afinal, nós éramos inseparáveis, nada
poderia impedir nossa amizade.
Quando comecei namorar sério, no tempo do
Ginásio, lá no São Francisco, ele ficava por perto, para
me avisar o momento certo para avançar o sinal. Ele
escolhia as sorveterias e as flores para as garotas, eu era
muito tímido para isso.
A única coisa que ele nunca aprovou foi a
profissão que escolhi. Quando eu reclamava, sempre
ouvia a voz dele: eu não disse? Mesmo assim, foi ele que
escolheu o terno de formatura.
Quando casei, ele sumiu. Visitou-me algumas
vezes, depois nunca mais o vi.
Hoje, sinto saudades do Zezinho.
Onde andará o meu amiguinho imaginário?
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65
SEM MOTIVOS
Não posso concordar com a opinião dos senhores,
de que eu não tinha motivos. Vou repetir, pela enésima
vez, o que aconteceu.
O Júnior estava sentado na calçada em frente a
nossa casa, (os senhores já sabem, na Rua Porto Alegre)
quando apareceu o grandalhão. Não sei se Júnior fez
alguma coisa pra ele, mas mesmo que fizesse, não
poderia se igualar com a fúria que o loiro grandão
desferiu com o pontapé na cabeça do coitado. O
pobrezinho caiu na hora, nem conseguiu se levantar, mas
o alemão, não satisfeito, pulou com os dois pés em cima
do Júnior.
Eu já estava chegando, tinha ido ao armazém, logo
ali, na Flores da Cunha, e ouvi o barulho dos ossos se
partindo. Aquilo foi demais. Com a garrafa que trazia na
mão, bati na cabeça do bandido. Ele cambaleou, eu fiquei
com o gargalo da garrafa na mão e enfiei na cara dele.
Ele gritou de dor, enquanto seu rosto se enchia de
sangue. Aproveitei sua falta de visão e empurrei o pedaço
da garrafa na barriga dele.
Tinha que ser rápido, o polaco era muito maior que
eu. Não tive dúvidas, quando ele se ajoelhou, cravei o
vidro nele, dessa vez, no pescoço, fiz um giro com o
pulso e acho que lhe cortei a jugular. O sangue dele
jorrou no meu rosto. O grande covarde caiu para trás, eu
peguei uma pedra e bati na cabeça dele, várias vezes.
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Peguei Júnior no colo e sentei ao lado do seu
assassino. O corpo ensanguentado do meu pequeno
amiguinho ainda estava quente. Seu sangue inocente se
misturou com o do seu carrasco, em minhas mãos. Fiquei
ali sentado na poça de sangue do rapaz, que de uma hora
para outra, decidiu por desgraçar três vidas, até que a
polícia chegou.
Fiz o que tinha que fazer. Aquele homem era um
animal. Não tinha o direito de viver. O que ele fez com o
Júnior, eu fiz com ele. Não me arrependo de matá-lo.
Ele não podia ter matado o Júnior.
O Júnior era meu amigo.
Ele não podia ter matado o meu cachorro.
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IMAGEM
Ela está na sua frente, falando sem parar. Nisso não
mudou nada, sempre foi tagarela.
Conheceu-a no Colégio São Francisco, enquanto
cursavam o Segundo Grau, quase trinta anos atrás.
Desejou-a durante os dois últimos anos do curso. Mas,
quem dera; ela vivia rodeada de amigos, admiradores e
colegas. Era o centro das atenções pela fala fácil e a
beleza, que encantavam a todos.
Ele, um magricela que vivia com a cara enfiada nos
livros. Quase nem tinha amigos, namorar então, nem
pensar, era tímido demais para isso. Ficava só de longe,
sonhando sozinho, amando-a.
Depois da escola, não a viu mais. Por longos anos,
viveu sob a sombra daquele platônico amor passado. Até
hoje. Ela agora está ali, na sua frente.
Ele, como que revivendo a juventude, calado. Não
consegue dizer nada, está apenas olhando-a, sonhando.
Sonhando com o tempo em que eram trinta anos
mais jovens, e ela, o mesmo número, em quilos a menos.
Bonita ainda está. Perdeu, claro, o brilho da adolescência,
mas ainda se nota traços da beleza de outrora. Leves já,
mas ainda presentes.
Ele acha difícil conceber, mas a verdade está ali na
sua frente, falando sem parar. A mesma mulher de há
muito tempo, mas não a mesma aparência, nem a
conversa. A fala fluída e solta, admirada por todos na
época em que a idolatrava, se tornou um derramar de
68
queixas e reclamações. Para com os ex-maridos, os
muitos filhos, o atual companheiro, o trabalho, a vida, o
mundo.
O senhor magricela ouve em silêncio a gorda
derramar seu rosário de lamúrias. De quando em vez,
balança a cabeça, concordando ou não, com as
ruminâncias da mulher que ele se nega conhecer, ou
reconhecer.
Por anos, ele se queixou do azar de não ter
conseguido ser um dos eleitos de uma das mais desejadas
daquela escola. Durante muitos anos, sempre que passava
pelo colégio da Quarenta, indo ou vindo da Americana,
onde sempre morou, lembrava dela. Da colega do
ginásio; não dessa mulher à sua frente.
Hoje, enquanto assiste a tão degradante espetáculo,
fica calculando a sorte que teve, em ficar fora da vida
daquela que se tornou tão patética figura.
Mas não será o peso da atual imagem da musa de
seus dourados anos que tirará a força de suas memórias,
de sua fantasia sobre a garota do ginásio. Sobre a sua
mulher ideal, seu amor inacessível.
Entre xingá-la, acusá-la por tentativa de destruição
de sonhos, e abater aquela coisa a tiros, optou por lhe
virar as costas. Afinal, a figura endeusada da colega de
escola, será sempre a mesma.
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69
A DONA DO SÍTIO
Antes de vir morar em Alvorada, alguns anos atrás,
eu estava em dúvidas sobre a casa que iria comprar.
Tinha duas opções finais. Uma na cidade de Guaíba; um
casarão antigo, muito bem conservado, de paredes duplas
de madeira de primeira. A casa ficava no centro de meio
hectare de mata nativa, muito bem cuidada. Era um
verdadeiro sítio de lazer. Ideal para o aposentado que eu
me tornara.
Minha segunda alternativa era uma casa de
alvenaria novinha em folha, bem no centro da cidade de
Alvorada. Uma escolha bem diferente da outra. Como
não poderia deixar de ser, a patroa e eu resolvemos ficar
com a casa de madeira. No dia que fomos à Guaíba para
fechar o negócio, encontramos uma mulher sentada na
escadinha da varanda da nossa casa. Nem chegamos falar
nada. Ela foi direto ao assunto.
— Vocês não podem morar aqui. Esta é a minha
casa, se outras pessoas vierem para cá, eu a queimarei até
as cinzas.
Minha mulher nem queria mais entrar na casa, mas
eu insisti. Passamos ao lado da senhora – que pela
aparência, não dava idéia de ser uma maluca qualquer – e
demos mais uma olhada rápida no interior da nossa futura
moradia. Queríamos apenas confirmar a certeza de
termos tomado a decisão certa. Confirmamos.
Quando saímos à rua outra vez, já não avistamos
mais a doida. Na casa do proprietário nos informaram
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que ele viajara por motivo de doença na família, mas que
à noite já estaria de volta. Saímos com a disposição de
voltar no dia seguinte para encerrarmos o negócio com o
sítio.
No dia seguinte, bem cedinho, o dono do sítio de
Guaíba, o lugar que tínhamos escolhido para passar os
últimos dias de nossas vidas, ligou avisando que o
casarão tinha sido consumido pelo fogo na noite anterior.
Havia queimado até às cinzas.
Pela descrição, a tal mulher sentada seria a antiga
moradora da casa, já falecida. Ou poderia ser apenas
alguém com maus instintos.
Ficamos com a outra opção e moramos até hoje em
Alvorada.
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CEM CRUZEIROS
Há muitos anos, quando nos casamos, por razões
econômicas minha esposa e eu viemos morar onde hoje é
a Vila Intersul. No início do loteamento, ainda poucas
pessoas se aventuraram ir morar no lugar que viria ser
um dos bairros-cidade de Alvorada.
Em uma das primeiras vezes que saímos à noite,
resolvemos voltar para casa, a pé.
Desde que saímos da estrada, onde agora é a
Avenida Frederico Dhill, uns seis ou sete quarteirões
atrás, não avistamos sequer um guarda-noturno, um
bêbado, ou qualquer outro tipo de ser humano. Pareceu-
nos estarmos caminhando em uma cidade-fantasma.
Cidade também é maneira de falar, aquelas dúzia e meia
de casas estavam longe disso. Não se via vivalma. Até os
cães aderiram aquele estranho e silencioso toque de
recolher. Nem gatos pulando cercas ou ratos cruzando o
aterro espalhado que se fazia passar por rua. Nada vivo se
movia.
Nas poucas casas, todas às escuras, aqui e ali se via
alguma lâmpada acesa numa varanda, e só. A rua, sem
nenhum tipo de calçamento, só era distinguida por nós
pelos barrancos que a ladeavam. Depois da décima
terceira quadra as casas estavam dando lugar, cada vez
mais, aos terrenos baldios e se distanciando mais e mais
uma das outras, que já eram bastante raras. Nem
iluminação pública naquela época havia, para nos dar o
ânimo da claridade.
72
A última a aderir à escuridão foi a lua, sendo por
fim encoberta por grossas nuvens. À nossa frente, só o
breu que se tornara a noite, sombreada pelas enormes
pedras, que faziam parte da bruxelante paisagem.
Ansiávamos por avistar alguma luz ao longe, mas
sabíamos ser pouco provável. Começamos sentir medo.
Da rua deserta, da escuridão, de que gente ou algum
animal nos atacasse. Medo de cair em um buraco ou pisar
e algo que nos ferisse. Medo provocado pela solidão de
nós dois, daquela rua deserta e escura. Escura igual ao tal
breu.
Caminhávamos apoiados um no outro. Parando,
estremecendo a cada ruído de algum arbusto, ou diante
da silhueta mal delineada de algum moirão ou árvore, ou
das fantasmagóricas silhuetas das rochas que pareciam
brotar do chão à nossa volta. Estávamos com muito
medo. Seríamos vítimas fáceis para assaltantes,
assassinos, ou qualquer um que aparecesse. O silêncio só
aumentava nossa angústia. Nem um pio de coruja, um
latido ou um miado. Nenhuma criatura dava sinal de
vida. Só nós, tentando caminhar na escuridão.
Quanto valeria para nós, uma lanterna, ou a
continuação dos postes de luz, que só eram encontrados
na estrada principal, a Rua Getúlio Vargas, lá embaixo,
na entrada da cidade? Nosso destino era ali perto, mas
pareciam ser vários quilômetros.
O tempo parecia parado, cada segundo iludia ser
um punhado de horas. O medo fez com que passássemos
o pior pedaço de nossas vidas. Nunca mais pensaríamos
em repetir aquela jornada. Nunca mais repetimos.
73
Que sufoco, que suador, que arrependimento, por
querer economizar os cem cruzeiros do táxi.
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INÉDITO
Quando o foro de Alvorada foi mudado para o
prédio novo, na Rua Victor Brum, ali, atrás da praça
central, o acervo dos processos do antigo tribunal teve de
ser todo recatalogado e rearquivado. Foi assim que
encontraram, fazendo parte de um auto, uma pérola de
depoimento; que foi resumida assim:
―O meu nome é Fulano De Tal. Não, eu não estou
tentando permanecer incógnito, o meu nome realmente é
esse. A minha irmã chama-se Cicrana e o meu irmão
caçula tem o nome de Beltrano. Somos todos De Tal.
Fomos registrados no cartório de Viamão, quando nossa
cidade ainda era um distrito daquele município, por nosso
pai, que na época achou interessante chamar os filhos por
nomes tão originais. Eu estou aqui para fazer uma
reivindicação. Nosso pai entrou com um processo nesta
corte, solicitando ao meritíssimo senhor juiz desta
comarca, que autorize nossa família a trocar os nossos
nomes. Papai ficou sabendo há pouco tempo, que existe
uma lei que permite a qualquer cidadão trocar, ou retirar,
o nome com o qual não esteja satisfeito, por estar de
alguma maneira sendo prejudicial a sua condição de
cidadão, indicar ou sugerir alguma conotação pejorativa à
sua pessoa ou a de outrem. Sabendo disso, resolveu
assumir a posição de arrependido por ter usado, dentro da
sua ignorância, os filhos, para de uma maneira, por assim
dizer, inédita, chamar as atenções para si. Querendo
corrigir hoje o erro que julga ter cometido antes, quer
75
agora que Vossa Senhoria autorize ao cartório, alterar as
certidões de seus três filhos, dando-lhes agora, nomes
comuns. Por isso estou hoje aqui, representando meus
dois irmãos e a mim próprio, para fazer um pedido
formal a esta corte: Que antes de dar o veredicto final
estude os vários aspectos que irão influir em vossa
decisão, que sei, será bem analisada. Tenho plena
consciência que meus irmãos e eu ainda estamos sob a
condição de menores de idade. Eu, sendo o mais velho
dos três, ainda tenho apenas quinze anos, e, por causa da
idade somos dependentes socialmente de nosso pai,
embora nós três, até meu irmão, o mais moço com apenas
doze anos, já trabalhemos fora de casa, e,
consequentemente, damos apoio financeiro à nossa
família. Sei também, que perante a lei, isso não pode
influir no pátrio-poder que nosso pai tem sobre nós, e que
oficialmente, nem seria permitido que menores da nossa
idade, trabalhassem; que o pai tem o direito de dispor da
lei para até mesmo trocar o nome dos filhos, se achar
necessário ou conveniente. O que nós estamos querendo
é que esta corte não veja apenas o lado técnico da
questão. Lembrar que existe também, e para nós
sobretudo, o lado social. Nós usamos por muitos anos os
nossos nomes, os que nos foram dados ao nascermos.
Estamos usando os nomes pelos quais todos nossos
parentes e amigos nos conhecem. Nomes que, ao
contrário do que possa parecer, não fazem nós nos
sentirmos envergonhados, mesmo quando
ocasionalmente ocorra algum episódio envolvendo a
estranheza que alguns possam sentir inicialmente, ao
76
ouvi-los. Nomes que nos acostumamos, e mais que isso,
nos afeiçoamos e que gostaríamos de encarecidamente
solicitar que nos permitam ficar com eles. Sem mais nada
a declarar, Fulano De Tal e irmãos, agradecem a esta
corte pela atenção.‖
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77
O TERCEIRO RAIO
O raio caiu a menos de cem metros. Eu poderia ter
jurado que foram apenas quatro ou cinco, mas não teria
conseguido. Por um longo instante fiquei sem voz e sem
movimentos. Nunca, nos muitos anos de minha vida, eu
tinha visto um raio cair assim pertinho, quase a meus pés,
bem na minha frente.
O velho eucalipto, já quase morto, ainda vinha
tentando sobreviver, deixando aflorar alguns brotinhos
novos, aqui e ali. Mas parece que daquela vez ele teve
sua derradeira manhã. Quando cheguei perto do tronco
seco, ainda restavam labaredas no interior daquela árvore
que eu conhecia desde garoto.
Muito tempo atrás, quando meu pai nos contou que
havia comprado um sítio nos arredores da cidade, no
município de Viamão, num lugar chamado Passo do
Feijó, disse que era um lugar muito bom. Ficava perto da
capital, mas era descampado, havia poucas fazendas,
muita área verde; perfeito para descanso.
Mamãe, minhas duas irmãs e eu ficamos eufóricos,
mas só até vermos o lugar. Eram apenas dois hectares de
mata rasteira e capoeiras de gravatás. Nem árvores de
frutas, nada. Até a cerca que limitava a propriedade, a
única coisa que se destacava, era um pé de eucalipto,
jovem, solitário e florido, como se adivinhasse as
esperanças daquela nova família que chegava.
Aos poucos, todo fim de semana, durante muito
tempo, deixávamos nossa casa na cidade e fazíamos um
78
mutirão familiar para limpar aquilo que papai prometia
que viria a ser o refúgio da família Porto.
O que por fatalidade se tornou real, quando naquele
fatídico verão, um raio igualzinho a este (poderia ser o
mesmo? Não, claro que não), levou nossa casa na capital
e nossa mãe de uma só vez. Fazendo com que nossa
família, então decepada de sua maior porção, tivesse que
juntar as lágrimas ao esforço de continuar lutando na
chacrinha, que havia sido comprada para lazer, e que
serviria de abrigo, primeiro temporário, depois
permanente; porque nenhum de nós quis voltar para o
lugar que nos separou de nossa maior parenta.
Ficamos, e nos criamos, minhas irmãs e eu, com o
sacrifício de nosso pai, que mais que cuidar de três filhos
sentia o peso de suportar a ausência da companheira. O
que na verdade, foi a maior causa de sua morte
prematura.
Minhas irmãs casaram e viveram longe daqui.
Nunca mais vieram sequer visitar o nosso refúgio. Só eu
permaneci aqui, agarrado a um sonho, o de meu pai, de
fazer deste lugar um lugar alegre para a família. Mas eu
nunca consegui.
Agora, o descampado virou uma cidade,
emancipada há quarenta anos já. Hoje, Alvorada, o nome
que ganhou este jovem município, tem quase duzentos
mil habitantes à nossa volta. Aqui, na nossa casa, a
família não aumentou, muito pelo contrário, o que sobrou
dela, sou eu. Só eu. Até o velho eucalipto, testemunha de
toda uma vida, já não existe mais. Esse outro raio, igual
ao que levou minha mãe, acabou com ele.
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MELODIA
Eu não posso mais ficar aqui...
Quando acordei naquela manhã, esta velha canção
do Roberto já estava tomando conta da minha cabeça.
Sempre gostei dessa música, mas há muito tempo nem
sequer ouvia, não sei como foi que, de repente, ela se
alojou no meu cérebro tão intensamente, que não
consegui tirá-la do pensamento.
Preciso acabar logo com isso...
E eu tentei. Liguei o rádio do carro enquanto ia
para o trabalho. Não adiantou. Cheguei na repartição
assoviando; é claro, a melodia composta pelo Erasmo.
Minha sombra me acompanha...
Durante o cafezinho meus colegas já estavam
curtindo com a minha cara, por causa do assovio que não
parava. Expliquei que não conseguia parar, e me deram
um chiclete, talvez de boca cheia...
É, parei de assoviar, mas acharam o hum, hum,
hum... pior ainda. Deram graças quando chegou o meio-
dia, teriam duas horas de folga para os ouvidos.
Vejo caminhões e carros apressados...
A tarde me pareceu ser quatro semanas. Tive
dificuldades para me concentrar no trabalho. A maldita
melodia não me deixava em paz. Sem falar na bronca do
chefe (funcionário público, assoviando no trabalho?).
Finalmente chegou o fim do expediente. Talvez na rua,
eu conseguisse me livrar da canção.
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Foi na saída do estacionamento que eu vi o carro da
loira. Primeiro eu vi o carro. Importado, japonês,
novinho. Depois vi aquela mulher ao volante. Loiríssima,
bela. Sorria; não um desses sorrisos gentis, que todos
dão, ao trocar um olhar. Não, foi um gesto malicioso, que
na hora eu classifiquei como convidativo. Sorri também.
Ela fez um pequeno movimento com a cabeça. O
movimento universal que quer dizer: siga-me.
Eu não posso mais ficar aqui sozinho...
Claro que a segui, eu estava precisando de alguma
coisa diferente para tirar a música da cabeça. Ela pegou a
estrada da Vila Elza em direção a Viamão. Quando
alcançou a RS 40, em direção às praias, acelerou mais. E
eu indo atrás, não queria nem saber onde ela estava me
levando. Eu a segui bem de perto, podia ver pelo
retrovisor dela, que de vez em quando conferia para ver
se eu ainda estava atrás dela. Estava, claro.
Carros, caminhões, poeira, estrada...
A certa altura, ela ligou a seta, dando sinal que
dobraria à direita. Imitei-a e entramos em uma estrada de
terra. Deixei-a tomar a dianteira, para fugir da nuvem de
poeira que o carrão dela fazia.
Eu já estava imaginando para que tipo de lugar
estaria me levando. Deveria ser uma fazenda, um sítio,
ou quem sabe, ela encostaria o carro e...
Esperando a vida inteira por você...
Quando ouvi o tup-tup inconfundível do carro é
que eu caí na real. Estava sem combustível; numa
estrada de terra há muitoscentos quilômetros de lugar
nenhum. A danada da canção que não saiu da cabeça, não
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me deu tempo de raciocinar direito, e eu esqueci que
deveria abastecer o carro ao sair do trabalho.
Esse sol que queima o meu rosto...
A loirosa deve ter pensado que eu desistira, e
continuou seu caminho, mas eu não tive tempo de me
lastimar. A escuridão já começava chegar, e, para meu
gosto, estava vindo depressa demais. Nem quis pensar
que poderia chover, porque aí sim, o meu sufoco estaria
completo. Não adiantou reprimir os pensamentos. A
chuva começou de mansinho, depois apertou.
Vem a chuva, molha meu rosto...
Eu estava ali, sentado à beira de um caminho, com
a chuva molhando o meu rosto e se misturando com as
lágrimas do meu pranto. Choro de raiva; da minha
burrice. Como pude deixar aquela melodia idiota me
colocar naquela fria? Mas eu não poderia ficar ali, a
esperar. Abandonei o carro e tratei de caminhar de volta,
em direção da estrada que tinha abandonado, muitos
quilômetros ao longe. Com um pouco de sorte, chegaria
até ela, antes do amanhecer.
Aquilo nunca havia me acontecido antes, mas eu
estava com alguma coisa me dizendo que aquela situação
era de alguma maneira, muito familiar.
Um resto de esperança, de ao menos ver de perto...
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PRIMEIRA TPM
Uma das primeiras diligências que participei depois
que fui transferido pela Brigada Militar para a cidade de
Alvorada, foi para atender um chamado no Porto Verde,
um novo condomínio que estava se formando.
Eu, jovem e com pouco tempo ainda de corporação,
tive uma das minhas primeiras experiências
traumatizantes. Talvez a mais dolorosa da minha carreira
de brigadiano interiorano e emotivo.
Vez em quando lembro da cena que presenciei
naquela casa recém construída, ainda com cheiro de tinta
fresca pairando no ar. E nunca consegui achar um sentido
para aquele fato tão doloroso.
Ela não assinou a página, apenas escreveu.
―A insignificância do ser humano é enorme. O
sentido da vida é inexistente. Não existe razão no nascer,
parir e morrer.
Apenas alguns anos destruindo um planeta
maravilhoso, que por causa disso não será eterno.
As espécies se dizimam mutuamente sem um
porquê, além da sobrevivência minúscula, num parco
espaço de tempo de uma vida egoísta e inútil.
Nem bem destruiu a terra, o homem já procura
outros planetas para extinguir suas espécies, poluir suas
naturezas e se tornar dono de mais outra parte de um
universo já contaminado pela raça humana.
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O homem auto-endeusa-se, assumindo o poder
sobre quem vive e quem não. Só pensa em eternizar sua
espécie, mesmo em detrimento de outras.
Até quando?
Não existe razão em nascer, parir e morrer.‖
O alto calibre do revólver do pai fez com que
algumas gotas do sangue da adolescente mal-
acentuassem algumas palavras de sua última carta.
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PERDA
A ansiedade, o medo, já duravam dias. Culminou
naquela sala de espera do Pan-8, onde passou – pareceu-
lhe – uma eternidade. Até ouvir o nome que não queria.
O seu.
Entrou na sala branca e iluminada. Mesmo sem
entender o que o médico falava, se instalou abaixo dos
refletores. Achou-os enormes, fortíssimos. Emanavam
muito calor.
A taquicardia aumentou. Tanto pavor fazia-o
parecer calmo, calado. Mas se remoía por dentro,
pensando que estava ali, para extirpar um pedaço do seu
corpo. Um pedaço doente, podre; mesmo assim, uma
parte de si. Ainda não se conformara com a idéia de ser
subtraído de uma porção sua. Suava.
Não pôde deixar de notar a indiferença do doutor, a
seu lado, manipulando-o, como se fosse, – e era – apenas
mais um. Mais um cliente daquele negócio. A rapidez
dos gestos, a precisão ao manusear os instrumentos
cirúrgicos, a fala pausada, estritamente profissional,
provavam que ele era apenas mais um que deitava ali.
Anestesia. O começo de tudo. A prova da
irreversibilidade da operação. Não dava mais para voltar
atrás, se pudesse, voltaria. Já não dava tempo. Sentia na
boca o amargo da dormência, que parecia atingir-lhe o
cérebro.
Estava ouvindo, ampliado quase mil vezes, o
barulho dos bisturis, das ferramentas que cortavam sua
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carne, dilacerando de maneira hábil, precisa e sem
sentimentos.
O raio-x havia previsto, seria preciso cortar parte
do osso. Serrar. Foi o que fez a máquina, rápida e usando
todos os decibéis estridentes que podia. Felizmente para
ele, rápida.
Alavancas, alicates e outros instrumentos fizeram o
seu trabalho. Ele não os viu, não teve coragem de abrir os
olhos. Só podia senti-los. Não teve dor, mas percebia as
ferramentas arrancando parte de si. Por breve momento
olhou o médico, enquanto ele preparava a sutura. Agulha
e linha. Iria ser costurado; qual um trapo, um boneco de
pano ou uma bola de futebol, das antigas.
O cirurgião bateu-lhe no rosto, falou alguma coisa
que ele não entendeu e afastou-se. Estava feito. Tinha
perdido um pedaço de seu corpo. Uma parte que já não
lhe servia mais, mas que ele nunca esqueceria. Não seria
o mesmo sem ela. Nenhuma prótese seria igual.
A ansiedade, o medo; começou tudo de novo.
Semana que vem, terá que voltar á enfrentar a
madrugada, na esperança de conseguir uma das escassas
fichas do SUS.
Semana que vem, terá que voltar ao dentista.
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NOITE DE TRABALHO
— Paiê! Chegou um parquinho legal, ali na parada
cinquenta e seis, na esquina da Rua Cedro. Você me leva
lá? Eu quero andar no Barco Viking.
— Claro, meu amor, qualquer dia desses, nós
damos um pulo lá.
— Qualquer dia não, pai. Eu quero ir é hoje. Tem
promoção, vão dar brinquedos grátis.
— Sinto muito filho. Hoje papai não pode sair; tem
que trabalhar. Noutro dia, a gente vai.
Meu filho de cinco anos saiu acabrunhado do meu
escritório. Minha atitude me dói muito, mas esta noite eu
estou mesmo assoberbado. Na minha profissão não posso
me dar ao luxo de obedecer a horários, muito menos,
programar folgas ou passeios. Quando o trabalho aparece
tenho que executá-lo o quanto antes, sob o risco de
perdê-lo. Se não aproveitar na hora...
E para mim, esta será uma longa noite. Primeiro,
tenho que matar a sogra do juiz, depois o ladrão que
assaltou o casal de turistas. Ainda preciso encontrar um
meio de me livrar da tutora da garotinha aleijada, para
que ela possa finalmente dispor do dinheiro da herança.
Sem contar com o cachorro da dona Zizi (acho que vou
ter que matar ele também).
Tenho que me livrar urgentemente da amante
Argentina, que há tempos vem me atormentando. E ainda
não tenho idéia de como arrumar dinheiro para aquele
cara que está devendo para máfia japonesa.
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Ainda bem que já adiantei o caso do estuprador. A
polícia vai achá-lo num beco, sem a genitália. Nunca vão
descobrir quem fez o serviço.
Mas eu acho que o mais urgente é descobrir o que
fazer com o açougueiro que bate na filha. Acho que vou
aproveitar, já que ele trabalha com carne...
Ufa! Não sei se vou conseguir realizar todos esses
trabalhos antes da madrugada.
Então, vamos levar as mãos à obra. Primeiro, vou
dar um jeito na sogra do meritíssimo, porque já está tudo
engatilhado. Vai ser com veneno mesmo.
Só preciso lembrar, de não repetir o processo; pelo
menos, não tão cedo.
É, não é fácil para um escritor iniciante, querer
trabalhar em vários romances ao mesmo tempo.
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Eu poderia ter escrito uma autobiografia. Poderia ter contado
a história do menino que ia ser concebido, mas sua mãe (a filha de
um próspero fazendeiro do Uruguai) estava ―naqueles dias‖, então
seu pai o colocou na barriga da filha de um brigadiano, e fez ele
nascer num castelo.
Poderia publicar um livro com as peripécias e desventuras de
um jovem que cresceu junto a maior praia do mundo, e, quando se
julgou um homem feito partiu para a vida com um saco de sonhos e
um violão nas costas.
Poderia contar porque um homem resolve que vai ser escritor
e vem morar em Alvorada. Deveria ter feito igual a muitos, que procuram a melhor maneira de ser reconhecido, tornando-se um
político ou cantor de Rap.
Mas não, a realidade é muito chata. As histórias reais não são
aquilo que as pessoas acreditam. Nós gostamos é de ler sobre
sonhos, possíveis ou não de serem realizados. Os sonhos é que
movem o mundo.
Então, decidi que deveria prestar uma homenagem à cidade
que o destino fez me adotar, e mostrar para o resto do Brasil, quiçá
do mundo, que nós, alvoradenses temos sangue de guerreiros, índole
de lutadores, dos que não se deixam envolver pela fama difamatória
que se abate sobre nossa cidade. Quero contribuir com os que pretendem mostrar para o resto
do mundo, que apesar dos ―diários‖ da vida, nossa comunidade é
feita de gente que é do bem, que em Alvorada existem pessoas (a
esmagadora maioria delas) que fazem da cidade uma extensão do seu
lar, de sua família. Nós, alvoradenses (eu me incluo, por achar que
mereço. Afinal, é aqui que eu vivo, crio meus filhos, e, certamente
aqui vou escrever minha última história) somos o retrato do que é
nossa cidade.
ALVORADA DE CONTOS é um livro de ficção, mas, em
sonhos, essas histórias poderiam acontecer de verdade em Alvorada,
ou em qualquer outro lugar do mundo. (Ricardo Porto)
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A A L V O R A D A
Todas as cidades do mundo
Londres, Xangai, Rio, Paris
Maravilhosas, todo mundo diz
Só para quem lá vive é verdade
A nós não adianta de nada
Para nós, maravilha é ALVORADA
Não temos arranha-céus nem montanhas
Nem turistas o ano inteiro
Não temos nenhum Tejo ou De Janeiro
Nem mesmo um tão belo sol poente
Mas temos o povo, nossa gente
Que pela força do trabalho foi chamada
Há muito tempo POVO DA ALVORADA
Alvorada é o começo, é o novo
O início de uma jornada
É de onde parte o caminho
De quem tem no peito a certeza
Que faremos um mundo melhor
Mais humano, com mais carinho
O povo desta terra tem algo mais
Luta, labuta, igual grande cidade
Sem perder a esperança jamais
Mesmo partindo do começo
Que outros acham quase nada
Sempre teremos a qualquer preço
A certeza de voltar para ALVORADA