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  • 5 BMJ 430 (1993)

    ACHEGAS PARA A HISTRIADO DIREITO

    PENITENCIRIO PORTUGUS

    SUMRIO

    1. PARTE

    EVOLUO GERAL DAS PENAS

    I A reaco penal e a arquitectura prisional

    A priso como penaTipos de construoOs progressos da tcnica nas construes prisionais

    II Os regimes penitencirios

    A evoluo das ideiasOs diferentes regimesA classificao dos estabelecimentos

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    2. PARTE

    A EVOLUO EM PORTUGAL

    I Os primeiros tempos

    As OrdenaesA vida nas cadeiasApreciao das Ordenaes e abrandamento na aplicao

    da lei

    II O regime liberal

    Os diplomas constitucionaisA abolio da pena de morteA vida nas cadeias

    III Evoluo legislativa

    As primeiras providncias e o Regulamento Provisrio dasCadeias de 1843

    O Cdigo Penal de 1852A Reforma de Barjona de Freitas de 1867O Regulamento Provisrio das Cadeias de 1872A Penitenciria de Lisboa e o seu RegulamentoO Conselho Geral Penitencirio EvoluoA Penitenciria de CoimbraO registo criminal, a liberdade condicional, a suspenso da

    pena e os anormaisO Regulamento das Cadeias de 1901O patronato EvoluoOs postos antropomtricos EvoluoO regime republicanoA Administrao e a Inspeco-Geral das Prises Evo-

    luoA converso da priso em multaO regime progressivo

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    IV Os vadios

    AntecedentesO regime liberalA Lei de 20 de Julho de 1912MonsantoA Colnia Penal de Sintra

    V Os menores

    As OrdenaesO regime liberal e a Casa de Deteno e Correco de

    LisboaVila FernandoO Regulamento da Casa de Deteno e Correco de Lis-

    boa de 1901As Casas de Deteno e Correco do Porto e de Lisboa

    (sexo feminino)A Lei de Proteco Criana de 1911Depois de 1923

    Bibliografia

    Anexos

    Bibliografia

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    INTRODUO

    Isto vem a ser, afinal, uma dessas coi-sas que se fazem para esquecer o abor-recimento de viver, para encher algumashoras vagas que, convenho, poderiam tertido melhor aplicao.

    Mas consola-me a ideia de que, jogandoo bridge no clube, cervejando no caf,discutindo poltica esquina ou coleccio-nando estampilhas, teria talvez sido pior ...

    In J. J. da Gama Machado, Coimbra,1926.

    ALBERTO PESSOA

    Um pouco para matar o tempo e dar ocupao ao esprito, e tambmporque suscitou sempre o meu interesse o estudo do direito penitenciriono perodo que mediou entre a implantao do regime liberal e a Orga-nizao Prisional de 1936, ocorreu-me publicar estes apontamentos, naesperana de que algum possa levar mais longe a investigao.

    Para tanto seriam necessrias pesquisas mais pormenorizadas, dif-ceis para quem as limitaes da idade e da sade impedem longas deslo-caes e demoradas buscas em arquivos e bibliotecas. O problema tanto mais difcil quanto numerosos estabelecimentos desapareceram,outros mudaram de sede ou de destino, determinando a incerteza doparadeiro de registos e documentos.

    Sem desdouro para a Reforma de Barjona de Freitas de 1867, queinfelizmente no chegou a executar-se, dando apenas lugar constru-o de trs edifcios as Penitencirias de Lisboa, Coimbra e Santarm ,o ltimo dos quais nunca funcionou como priso civil por ter sido entre-gue aos Servios de Justia Militar, cumpre enaltecer os mritos da Leide 1936, que, pela primeira vez em Portugal, elaborou um esquemacompleto das instituies necessrias e um programa de construes,seguido de efectiva realizao.

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    Pena foi que a admirao por ela suscitada tenha determinado certoimobilismo, impedindo durante anos a sua actualizao, embora o seuautor, o saudoso Prof. Doutor Jos Beleza dos Santos, tivesse escrito:O que acabamos de dizer no significa, por modo algum, que julgue-mos a Reforma de 1936 completa e que ela no tenha carecido e nocontinue a carecer de ser, por sua vez, completada e reformada. (1)

    Ele prprio elaborou o projecto que deu origem Lei n. 2000, de16 de Maio de 1944, que criou os tribunais de execuo das penas epermitiu entregar ao poder judicial funes tradicionalmente pertencen-tes ao poder executivo, rumo mais tarde prosseguido, e bem, de modo apermitir a fiscalizao judiciria durante toda a fase executiva do pro-cesso penal.

    evidente que o relacionamento do direito vigente entre 1832 e1936, quer com a evoluo geral das ideias, quer com o anterior direitoportugus, quer com o perodo que se lhe seguiu, imps, por vezes, umalargamento do estudo a essas pocas, embora muito sumrio.

    O meu afastamento voluntrio da actividade profissional em 1974marca o limite a partir do qual deixei de acompanhar os problemassurgidos nesta rea e as solues que lhes foram dadas. Disso se res-sentir certamente este trabalho.

    JOS GUARDADO LOPES

    (1) Prefcio do livro Organizao Prisional, pg. 13, dos Drs. Jos Roberto Pinto eAlberto Ferreira.

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    1. PARTE

    EVOLUO GERAL DAS PENAS

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    I

    A REACO PENAL E A ARQUITECTURA PRISIONAL

    A priso como pena

    Como geralmente sabido, a priso como pena s teve aplicaogeneralizada a partir da segunda metade do sculo XVIII, como conse-quncia das ideias filosficas do tempo, importando salientar os valio-sos contributos de Beccaria (2), Howard (3) e Bentham, o ltimo dosquais exerceu notvel influncia na arquitectura prisional (4).

    At a a priso era unicamente o lugar onde o preso aguardavajulgamento ou a execuo da pena normalmente corporal ou patrimonial ,servindo num caso ou noutro como meio de coero para o cumpri-mento das sanes pecunirias. certo que alguns castigos corporaisacarretavam necessariamente a privao da liberdade, tais como os trabalhosforados nas suas variadas formas (gals, minas, pedreiras, etc.), masera somente um meio de execuo da prpria pena.

    Da que as condies dos crceres fossem precrias, variando se-gundo as circunstncias e a categoria das pessoas. A recluso tantopodia ter lugar em castelos ou fortalezas, com todas as comodidades,como em masmorras subterrneas, antros, poos, cavernas e at rvo-res a que se acorrentavam os rus (5). Era frequente o uso de ferrospara evitar as fugas (grilhes nos ps e no pescoo). A sustentao dospresos ficava normalmente a cargo da caridade pblica quando os pr-prios no dispunham de meios para ocorrer ao seu custo.

    Da antiguidade conhece-se a existncia de vrias edificaes pro-positadamente construdas para a deteno. Em Roma o crcere Mamertino,construdo no sculo VII a. C., por Ancus Marcius a que Servius Tulius,cerca de um sculo depois, acrescentou a masmorra subterrnea ondeS. Pedro e S. Paulo estiveram presos nos anos 65-70 d. C., e os ergs-tulos do Coliseu; na Grcia, no ano 400, o Sofronisteiro, para menorestransviados, e o Pritaneu, onde Scrates esteve antes de morrer; em Israel

    (2) Dei Delitti e delle Pene, 1764.(3) The State of Prisons in England and Wales, with Observations and Acount of

    Some Foreign Prisons and Hospitals, 1777.(4) Tratado das Penas e das Recompensas, 1802.(5) J na Bblia se mencionam privaes de liberdade deste tipo. Assim, Jos preso na

    cisterna pelos irmos e, mais tarde, no Egipto, por intrigas da mulher de Putifhar, etc.

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    as masmorras do Palcio de Herodes, onde S. Joo Baptista estevepreso (6).

    Desde cedo, porm, a Igreja sustentou que a pena deveria ter umafuno tica e de emenda. Ora, a emenda, s pode ser alcanada pelapenitncia que conduz contrio, reviso de vida, volta sobre simesmo. Para tanto importava criar condies que a favorecessem, taiscomo o afastamento do bulcio da vida, a submisso voluntria a certodesconforto sem prejuzo de um mnimo de condies de higiene e deuma assistncia moral e religiosa assdua.

    Havia evidentemente alguma confuso entre delito e pecado, cujasfronteiras se no delimitavam bem, sendo certo que o direito cannicoregulava matrias que indubitavelmente pertenciam ao foro temporal.

    Assim nasceram os lugares de penitncia, os penitenciais, dos quaisderivaram, por um lado, os conventos, para quem voluntariamente pro-curava um aperfeioamento espiritual, e, por outro, os penitencirios,para quem tivesse cometido faltas. No sculo VI, S. Joo Escolsticoteria fundado um penitencirio celular prximo do Mosteiro de Raite (7).Nos penitencirios surgiram os problemas postos pela recluso, salien-tados j no sculo XVII pelo abade Mabillon, na sua obra Rflexionssur les Prisons des Ordres Religieuses, escrita depois de visitar mui-tos desses estabelecimentos (8).

    Supe-se que os primeiros estabelecimentos construdos proposita-damente para a deteno de vadios, mendigos, prostitutas e menoresforam as Bridewells, perto de Londres (1555), com grandes dormit-rios de portas e janelas gradeadas, e as Sprinthaus, em Nuremberga(1598). Em Amesterdo construiu-se o Rasphuis, para os homens (1595),e um pouco mais tarde o Spinhuis, para mulheres (1597). Estes lti-mos, alm da separao dos sexos em edifcios distintos, previam jquartos individuais, e casas de trabalho dispostas em torno do ptio quecircundava o pavilho prisional (9).

    Segundo tais princpios se construram na Alemanha, entre 1600 e1630, os estabelecimentos de Bremen, Lubeck, Hamburgo, Dantzig eCastrel (10).

    (6) Bergamini Miotto, Curso de Direito Penitencirio, So Paulo, 1975, pg. 23.Ernest Bertrand, Leons Pnitentiaires, pgs. 8 e 9.

    (7) Miotto, loc. cit., pgs. 598 e 606.(8) Miotto, loc. cit., pg. 30.(9) Thorsten Sellin, Pionering in Penologie.(10) Rodrigues Lima, Arquitectura Prisional, pgs. 9 e 10.

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    Na Itlia citem-se: a priso conhecida por Justia e Clemncia, mandadaedificar, em Roma, pelo papa Inocncio X, em 1655; em Florena, aCasa Pia, para correco de, menores, em 1667; e em Roma, o Refor-matrio de S. Miguel, tambm para menores de 20 anos, mandado er-guer pelo papa Clemente XI, em 1703, segundo plano semelhante ao deRasphuis, mas com celas exteriores, recebendo luz e ventilao directa,alinhadas nos lados de um corredor central (11).

    Na Blgica, em 1773, o burgomestre Vilan mandou construir emGand um edifcio de celas interiores, com galerias de vigilncia exterior,que seguiu pela primeira vez um partido radial (12).

    Os estabelecimentos referidos, destinados especialmente aos quehoje chamaramos associais, constituem os primeiros exemplares de umaarquitectura prisional que no parou de se desenvolver a partir do pri-meiro estabelecimento edificado em Vymondham Norfolk, Inglaterra,em 1785, para os chamados anti-sociais (13).

    Tipos de construo

    A arquitectura prisional evoluiu com as necessidades resultantes dosregimes adoptados, que tambm, em alguns casos, foram por ela pro-fundamente influenciados.

    O regime filadelfiano ou pensilvaniano (14) exigiu estabelecimentoscom celas suficientemente grandes, iluminadas e arejadas para permiti-rem o trabalho em isolamento, ou a existncia de dois tipos de celas,umas para habitao e outras para o trabalho. Em alguns construram--se at pequenos redutos onde cada preso, em completo isolamento,era obrigado a accionar maquinismos, nem sempre destinados a qual-quer actividade til, visto que o trabalho tinha de ser duro mas noprecisava necessariamente de ser produtivo (15).

    Para facilitar a vigilncia surgiu o famoso panptico de Bentham, queconsistia na construo de um ou mais pavilhes circulares (ou poligo-nais) com celas dispostas, a vrios nveis ou andares, ao longo dos muros

    (11) Rodrigues Lima, loc. cit., pgs. 10 e 11, Garca Basallo, Introduccin a Ia Ar-quitectura Penitenciaria, pg. 14, e Miotto, loc. cit., pg. 24.

    (12) Rodrigues Lima, loc. cit., pgs. 12 e 13. Garca Basallo, loc. cit., pgs. 15 e 16.(13) Rodrigues Lima, loc. cit., pg. 15.

    (14) Que consistia essencialmente no isolamento do preso, nocturno e diurno, comalimentao e trabalho na cela.

    (15) No Estabelecimento Prisional de Lisboa, antiga penitenciria, ainda existem es-tes redutos, que se supe destinados ao accionamento das bombas a que se refere o Regu-lamento de 1884, artigo 180.

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    exteriores, formando uma coroa circular, com as faces viradas para ocentro inteiramente gradeadas, abrindo para galerias ou varandas tam-bm gradeadas. Esta disposio permitia, de um .bloco central, completavisibilidade para o interior das celas e que os presos assistissem a cer-tas actividades, como os actos de culto, que tinham lugar nesse bloco.Escusado ser dizer que isto s era possvel com prejuzo de qualquerprivacidade.

    Deste tipo, ou por ele influenciados, se construram, na Amrica ena Europa, vrios estabelecimentos, como as prises de Milbank naNova Inglaterra (1812); Richmond, na Virgnia (1800); Joliet e Stateville,no Ilinis (1819); na Ilha dos Pinheiros, em Cuba (16), e a priso deBreda, na Holanda, que tive a ocasio de visitar.

    Segundo Garcia Basallo, a cela no era, de incio, necessariamenteindividual, e em alguns casos substituram-se as grades por portas (17).

    A este tipo de construo sucedeu o panptico radiado, em leque, Y,T, ou mais vulgarmente em forma de estrela de quatro, seis ou mais raios.

    As celas individuais, construdas a vrios nveis ao longo das paredesexteriores dos diferentes raios, recebem luz e ventilao directa porjanelas pequenas e altas que do para o terreno que medeia entre obloco prisional e o muro de cerca. O acesso feito por galerias panpticas,dando para um corredor central, confluindo todos os corredores numposto nico, donde possvel quer a vigilncia das alas quer o seuaproveitamento para sede das actividades a que os reclusos devessemassistir, isolados, abrindo as portas das celas a 45.

    Obstou-se ao devassamento, substituindo as grades por paredes dota-das de portas macias, com dispositivos de vigilncia e largos postigos,manobrveis do exterior, para a passagem da alimentao e para comuni-cao com o preso.

    Segundo tais princpios se construram numerosas prises, designa-damente as de Pentonville, em Inglaterra (1842), Baden, Berlim, Muntere Breslau, na Alemanha (entre 1848 e 1852) (18), e tambm as deLisboa, Coimbra e Santarm, em Portugal.

    Para cumprimento do regime auburniano (19) segundo algunsimposto pelo traado do edifcio (20) construram-se grandes pavilhes

    (16) Rodrigues Lima, loc. cit., pg. 15.(17) Garcia Basallo, loc. cit., pgs. 29 e segs.(18) Rodrigues Lima, loc. cit., pg. 20.(19) Que consiste no isolamento nocturno e na vida em comum durante o dia, mas em silncio.(20) Paul Cornil, La peine de prison, Boletim da Faculdade de Direito da Univer-

    sidade de Coimbra, vol. XXXI, 1955.

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    rectangulares no centro dos quais se desenvolve um bloco com celas avrios nveis, dispostas em filas duplas, com as paredes posteriorescomuns. Tais celas, servidas por portas com dispositivos de vigilncia epostigos, do para galerias panpticas que correm ao longo do bloco,tambm a vrios nveis, recebendo assim luz e arejamento indirecto celas interiores , que, dadas as dimenses e mais caractersticas,eram imprprias para o trabalho.

    Este, bem como outros servios e actividades, tem lugar em pavi-lhes dispostos paralelamente ao prisional, motivo porque a soluo ar-quitectnica ficou conhecida por de pavilhes laterais.

    Alm da priso de Auburn so deste tipo a de Sing-Sing e outras,nos Estados Unidos (21).

    Outro partido sugerido pelo arquitecto R. H. Poussin para a prisode Fresnes, em Frana (1898), seguido pelo seu colega americano AlfredoHopkins, ficou conhecido por poste telegrfico ou espinha, no qual ascelas exteriores se distribuem por edifcios paralelos, ligados por umcorredor central, tudo rodeado de um muro de cerca.

    Assim nasceram, alm de Fresnes, prises como as de Walkill,Westchester, Berks, Lewisburg, Camp Cook e Terre Haute (22).

    Nestes estabelecimentos, quando se pretende manter o isolamentoem actos que normalmente deveriam ter lugar em comum, como os deculto, necessrio se torna que, no espao a isso destinado, se constru-am, em anfiteatro, pequenos compartimentos individuais com alturas cres-centes quase diria caixotes , com pequenos postigos rasgados nazona sobrelevada de forma a permitir a viso.

    Pode ainda citar-se a soluo arquitectnica que dispe os edifcioscelulares em forma de U ou de ferradura, dentro do enquadramento deoutros, normalmente mais baixos, destinados s diferentes actividades,como em Brandeburgo (1927), na Alemanha (23).

    Para satisfazer as exigncias da Cincia Penitenciria, que, evo-luindo, aconselha a acomodao dos reclusos em grupos cada vez maisreduzidos de forma a permitir regimes diversos e um tratamento maisindividualizado, outra soluo apareceu: a construo de pavilhes inde-pendentes, de pequenas dimenses, permitindo a subdiviso, por forma aalojar grupos de presos com vida autnoma, salvo, evidentemente, nasactividades que, tal como na vida livre, devam ter lugar em comum

    (21) Garca Basallo, loc. cit., pgs. 42.(22) Rodrigues Lima, loc. cit., pgs. 28 e segs.(23) Rodrigues Lima, loc. cit., pg. 36.

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    trabalho, actos de culto, aulas, etc. Nestas, o agrupamento determi-nado por outros critrios.

    Estes pavilhes, bem como as restantes instalaes (oficinas, cape-las, bibliotecas, etc.), aparecem, por vezes, nos estabelecimentos de grandesegurana, ligados por corredores, em alguns casos subterrneos (Su-cia), ou ao nvel do 1. andar (Fleuris-Merogis, Frana), para evitar apresena de reclusos ao nvel do solo e assim facilitar a vigilncia.

    Os progressos da tcnica nas construes prisionais

    Os progressos da tcnica, designadamente o emprego de ao dealta resistncia, de vidro inquebrvel e prova de bala, a utilizao deintercomunicadores nas celas, de alarmes e escutas sonoras, de circui-tos fechados de televiso, de comando distncia dos fechos das por-tas, a alterao do funcionamento das fechaduras a horas predetermi-nadas permitiram abandonar as deprimentes galerias panpticas at hpouco em uso nos edifcios prisionais, qualquer que fosse o seu destino,e a que nem Portugal escapou (24).

    Tambm a segurana exterior evoluiu. Nos estabelecimentos de grandesegurana, os muros de cerca passaram a ser mais altos, encurvadospara dentro (em chapu de chuva) e a penetrarem no solo para dificultaras fugas por tneis (Sucia), ou foram substitudos por duplas redes deao, eventualmente electrificadas, coroadas por rolos de arame farpado,tambm em ao (cavalos de frisa), tudo vigiado por circuitos fechados deteleviso, que potentssima iluminao torna possvel (Inglaterra); entreas cercas utilizam-se, por vezes, ces especialmente treinados.

    De um posto central, junto do piquete de preveno, possvel vigiar,atravs de circuitos de televiso, de avisos sonoros e de intercomunicado-res, tudo o que se passa no interior e no exterior, permitindo rpidainterveno onde se torne necessrio.

    Nos estabelecimentos abertos, j que o regime assenta no pressu-posto da disciplina livremente consentida, as instalaes reduzem-se aum mnimo, constando normalmente de simples abarracamentos, o quereduz consideravelmente o preo de construo.

    Duas tendncias relativamente recentes, embora surgidas em po-cas diversas, importa assinalar.

    Uma a de centralizar numa rea restrita estabelecimentos de diferentesespcies e destinos, formando como que uma pequena cidade penitenciria,

    (24) At na Priso-Escola de Leiria a maior parte dos pavilhes tem galerias panpticas.

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    normalmente dirigidos por um s director assistido por vrios subdirectores.As vantagens parecem evidentes concentrao de servios, com acorrespondente economia de pessoal e equipamento, melhor colabora-o entre os diferentes sectores, facilidade de transferncia de presos,etc. Porm, os inconvenientes superam largamente o lado positivo.

    praticamente impossvel dirigir um complexo tamanho sem gran-des falhas: os dirigentes perdem o contacto directo com os reclusos,sobre os quais tm de prestar informaes e eventualmente propor alibertao ou a continuao do internamento; dificulta-se o contacto destescom a sociedade, designadamente com a famlia; surgem conflitos decompetncia entre os responsveis, e cria-se, inevitavelmente, um climapenitencirio que, com desvantagem, se estende a todos os servios, eat ao exterior.

    So exemplos desta tendncia os complexos prisionais de Fresnes,em Frana (25), onde junto do estabelecimento primitivo se foram sediandonumerosos servios, alguns em instalaes separadas, e o crcere judi-cirio de Roma Rebibia, em Itlia.

    A outra tendncia assinalada pelo reaparecimento do partido radialnas construes, esquecendo os seus inconvenientes (m exposio,deficiente aproveitamento do espao entre os raios, etc.), mas agoraservido por alguns dos apontados progressos da tcnica, que nem sem-pre se mostram eficientes.

    deste tipo a nova priso francesa de Fleuris-Merogis, para a qualse fixou elevadssima lotao, cujo bloco central cercado por edificaesdestinadas aos servios complementares, que o isolam do exterior. Osresponsveis justificavam a lotao com a premncia de alojar elevadonmero de reclusos e com a maior facilidade em arranjar verba paraconstruir um s estabelecimento, embora mais dispendioso, do que paravrios.

    (25) Jos Guardado Lopes, Aspectos da Poltica Criminal em Alguns Pases daEuropa, pgs. 38 e segs. e 78 e segs. Fresnes compreendia, alm do Quartier Gnral parapreventivos e condenados, o Centro Nacional de Orientao (CNO), a Escola Penitenci-ria, o Hospital Prisional, as seces especiais para mes, raparigas e rapazes, alguns aguardandotransferncia para estabelecimentos de menores, o anexo psiquitrico e at um cemitrio.George Armand, Prisons 55, pg. 65, classifica Fresnes como caravansrail pnitentiairee salienta que alguns dos edifcios so separados por muros duplos, que formam divisesestanques.

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    II

    OS REGIMES PENITENCIRIOS

    A evoluo das ideias

    As ideias evoluram, e assim como da vingana privada, a que a Leide Talio veio estabelecer limites, se passou ao exclusivo exerccio dadefesa da sociedade pelo Estado (26), assim as penas infamantes ecruis foram abandonadas, conduzindo preponderncia da priso e damulta. Da o aparecimento do direito penitencirio, cuja autonomia foireconhecida a partir do X Congresso Penal e Penitencirio (Praga, 1930),definido no III Congresso Internacional de Direito Penal (Palermo, 1939)como um conjunto de normas legislativas que regulam as relaes en-tre o Estado e o condenado, desde que a sentena condenatrialegitima a execuo at que a dita execuo se finde, no mais amplosentido da palavra (27).

    Para assegurar aquela defesa, a pena deve prosseguir vrias finali-dades, designadamente a preveno geral e especial, na ltima das quaisse podem enquadrar as funes de emenda e ressocializao.

    A primeira dessas finalidades, que determinou a adopo das penasmais cruis e infamantes, agora limitada por um critrio humanitrio,no parece alis incompatvel com a segunda. De incio exigiu-se umregime prisional severo; estamos na poca do hard labor, hard fareand hard bed de que nos fala Sir Lionel Fox (28).

    O escopo da emenda do criminoso em ordem sua reinsero socialassumiu particular importncia nos pases em que as penas elimina-trias morte e priso perptua vieram a ser abolidas.

    Os diferentes regimes

    Talvez por influncia religiosa, nomeadamente dos quakers, e parapr termo a uma promiscuidade manifestamente inconveniente, surgiuna Amrica um regime penitencirio que consistia essencialmente noisolamento do preso, para dormir, comer, trabalhar, descansar e fazer

    (26) Em 1211, posturas de D. Afonso II procuraram limitar o campo da vinganaprivada. D. Afonso IV proibiu-a expressamente, s a permitindo em casos de excepcionalgravidade, quando o ru andasse fugido h mais de 40 dias. As Ordenaes Afonsinas segui-ram a mesma orientao, ressalvando apenas o caso do adultrio (livro V, ttulo LIII).

    (27) Miotto, loc. cit., 1. vol., pgs. 38 e 58.(28) Lionel Fox, The English Prison and Borstal Systems, London, 1952, pg. 46.

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    exerccio, pois at os recreios ao ar livre tinham lugar em pequenosptios individuais. Temperava-se o isolamento pelos contactos com opessoal, os sacerdotes e as visitas autorizadas (29). Para impedir acomunicao entre os presos exigia-se, por vezes, que estes fora dascelas usassem um capuz. Era, em princpio; uma medida de protecopara evitar a estigmatizao e os conhecimentos inconvenientes.

    Este sistema ou melhor este regime , conhecido por pensilva-niano ou filadelfiano por ter sido adoptado primeiro na priso de WalnutStreet, em Filadlfia, Estado da Pensilvnia, suscitou numerosos defen-sores, que nele viram o antdoto aos problemas postos pela promiscui-dade das prises em comum (30).

    A ele se ops o chamado regime auburniano, por ter sido praticadoinicialmente na priso de Auburn, no qual a vida em comum, em siln-cio, era a regra, ressalvado o isolamento nocturno.

    As polmicas entre os defensores dum e doutro regime foram acesas,e delas se pode encontrar eco, entre ns, no livro de Ayres de Gouveiaquando, para refutar as afirmaes do Prof. de Medicina Joo MariaBaptista Calisto, chega a escrever: A haver de preferir-se o sistemadassociao ao de isolamento, ns, com a peregrina ideia de Sousa Aze-vedo (31), optaramos pela associao de noite e separao de dia (32).

    Ora, se certo que o regime de Auburn no logra pr termo atodos os inconvenientes da priso em comum, por mais cuidadosa queseja a vigilncia e rigoroso o silncio, no menos certo que o deFiladlfia, alm de dificultar uma organizao racional do trabalho, dasactividades religiosas, pedaggicas e recreativas, conduz a desadaptaessociais dificilmente compensveis e s mais graves perturbaes men-tais, pelo isolamento absoluto, impossvel de mitigar com as visitas per-mitidas, necessariamente escassas.

    Os inconvenientes apontados aos regimes pensilvaniano e auburnianoconduziram a um terceiro regime, imaginado, segundo parece, peloMinistro da Marinha francs Hyde Neuville (33), mas experimentadopelo ingls Maconochie, em Norfolk, em 1837, que os procurou combi-

    (29) Dupreel, De la Prison Ducptiaux Ia Prison Moderne, extrait du Buletin delAdministration des Prisons, Janeiro 1954, n. 1.

    (30) Citem-se, a ttulo de exemplo, Ducptiaux na Blgica e Ayres de Gouveia emPortugal. Ducptiaux parece ter adoado o regime, que adoptou na Blgica, autorizandomais visitas. V. Paul Cornil, loc. cit.

    (31) Autor de um relatrio, em 20 de Outubro de 1858.(32) Ayres de Gouveia, A Reforma das Cadeias em Portugal, Coimbra, 1860, pg. 120.(33) Paul Cornil, loc. cit.

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    nar o regime progressivo assim chamado por dividir o cumpri-mento da pena em sucessivos perodos, normalmente trs ou quatro, aque correspondiam tratamentos progressivamente mais favorveis.

    A um primeiro perodo, cumprido em isolamento absoluto, outros sesucediam em que a rigidez da disciplina se ia esbatendo, permitindo deincio a participao em certas actividades em comum, embora em si-lncio, para terminar num ltimo, dito de confiana, em que era permi-tida a livre circulao do recluso no interior do estabelecimento e, porvezes, at a sada ao exterior.

    A cada perodo correspondiam certas regalias: melhor alimentao,mais comodidades no alojamento, aumento do salrio, do nmero decartas e de visitas, etc.

    A ascenso nos perodos era condicionada pela natureza da pena,pelo tempo decorrido e pelo comportamento do preso, expressos fre-quentemente numa escala de pontos, segundo tcnica aplicada e defen-dida pelo irlands Walter Crofton, pelo que o regime muitas vezeschamado irlands (34).

    Este sistema, que durante anos suscitou o entusiasmo dos penitenciaristase que, embora mitigado, foi adoptado pela Organizao Prisional Portu-guesa de 1936, suscita profundas crticas.

    Efectivamente, todas as gradaes da privao de liberdade, comreal importncia e significado, pem em causa princpios de justia ouos resultados que se pretendem atingir.

    No humano nem justo fazer depender a quantidade e a qualidadeda alimentao do perodo do cumprimento da pena; a desigualdadesalarial contraria o princpio de que a trabalho igual deve corresponderigual salrio; no pode nem deve restringir-se o acesso biblioteca, frequncia de cursos, o nmero de cartas ou visitas, sob pena de preju-dicar a formao intelectual e profissional do recluso, de enfraqueceros laos familiares e sociais, to necessrios readaptao social. Oprprio isolamento inicial, quando no imposto por motivos de sade, seprolongado, prejudica a integrao no trabalho e a observao do preso,mais eficazes na vida em comunidade.

    Surgiu assim um novo sistema: o recluso entra desde o incio noregime normal do estabelecimento, quite a retirarem-se-lhe as liberda-des e regalias de que se no mostre merecedor. As tarefas que lhe vosendo atribudas representam frequentemente uma sobrecarga, demonstrativa

    (34) Miotto, loc. cit., pg. 593.

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    de uma confiana acrescida, que lhe permitir, porventura, maiores contactoscom o exterior, favorecendo a sua reinsero social.

    A classificao dos estabelecimentos

    Cedo se verificou a diferente perigosidade dos reclusos, indepen-dentemente da sua situao penal.

    Um condenado a uma longa pena de priso pode representar para asociedade um risco menor do que outro que cumpra uma muito maiscurta; que a criminalidade do primeiro pode ter resultado de circuns-tncias dificilmente renovveis, enquanto a do segundo pode revelaruma personalidade perigosa, uma quase habitualidade, como que umaprofissionalizao. Da concluir-se que a segurana dos estabelecimen-tos pode variar segundo o tipo de delinquentes a que se destina.

    geralmente aceite o seu agrupamento em trs categorias ou tipos,definidos no Congresso de Haia de 1950 e no Congresso das NaesUnidas de 1955 estabelecimentos de grande segurana, estabeleci-mentos de meia segurana e estabelecimentos abertos , com as conse-quentes repercusses na arquitectura, nos custos da construo, nosequipamentos e nos encargos de vigilncia.

    Segundo os referidos congressos: so estabelecimentos de grandesegurana os instalados em edifcios fechados, rodeados de muro decerca defendido e vigiado, ou dotados de outro sistema de defesa ex-terna igualmente eficaz; so de meia segurana os que prevem umregime sem vigilncia contnua dentro dos muros da cerca ou outromeio de defesa externa correspondente, e ainda os que empregam pre-sos em trabalhos exteriores; reputam-se abertos aqueles em que as medidaspreventivas das evases no consistem em guardas ou obstculos ma-teriais mas na submisso voluntria disciplina (35).

    Isto no contraria a necessidade de estabelecimentos especializadospara o internamento de certas categorias de reclusos (menores, semi-imputveis, intoxicados, doentes, etc.), que podem ser de um ou outrodos referidos tipos.

    claro que a distribuio dos presos pressupe um estudo aprofun-dado da sua personalidade e do meio social a que pertencem, alis su-mamente til na fase judicial para a escolha da sano a aplicar.

    A necessidade dos centros de observao, dos anexos psiquitricose dos institutos de criminologia por isso indiscutvel.

    (35) Actas do Congresso de Haia, vol. I, pg. 623.

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    2. PARTE

    A EVOLUO EM PORTUGAL

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    I

    OS PRIMEIROS TEMPOS

    As Ordenaes

    Em Portugal a evoluo no foi muito diferente.A um primeiro perodo em que vigoraram fundamentalmente os di-

    reitos visigtico, romano e cannico, os usos e costumes, as providn-cias reais sob a forma de leis, resolues, cartas de doao e de foral,sucedeu o das Ordenaes, primeiro as Afonsinas (aprovadas em 1446ou 1447), a curto prazo revistas e corrigidas pelas Manuelinas (1521),por sua vez revistas e ampliadas pelas Filipinas (concludas em 1595mas s mandadas observar por lei de 11 de Janeiro de 1603), que, comalgumas leis extravagantes, vigoraram, no campo criminal, at aoCdigo Penal de 1852, e que s muito tardiamente foram totalmentesubstitudas com a publicao do Cdigo Civil de 1867.

    Refira-se ainda a Coleco de Leis Extravagantes e Assentos daRelao, de Duarte Nunes Leo, mandada observar por alvar de 14de Fevereiro de 1569, e portanto anterior s Ordenaes Filipinas.

    Ao lado das Ordenaes continuou a existir, evidentemente, o direitocannico, mas s aplicvel aos casos em que lhe era atribuda especialcompetncia.

    As Ordenaes Afonsinas so fundamentalmente uma compilaodas normas vigentes, transcrevendo na ntegra as fontes anteriores,declarando-se depois os termos em que esses preceitos eram confirma-dos, alterados ou afastados. Contudo, nem sempre se adoptou esse sis-tema. Designadamente, em quase todo o livro I se utilizou o estilo decretrioou legislativo, que consiste na formulao directa das normas sem refe-rncia s suas eventuais fontes precedentes (36).

    As Manuelinas, apesar de algumas alteraes e actualizaes, nooperaram uma transformao radical e profunda no direito portu-gus, mas marcaram, do ponto de vista formal, um progresso detcnica legislativa, que se traduz, sobretudo, no facto de os preceitos seapresentarem sistematicamente em estilo decretrio, ou seja, como sede normas novas se tratasse (37).

    (36) Almeida Costa, Histria do Direito Portugus, Coimbra, 2. ed., 1992, pgs. 272 e segs.(37) Almeida Costa, loc. cit., pg. 280.

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    O mesmo se pode dizer das Ordenaes Filipinas, que procura-ram realizar uma pura reviso actualizadora das Manuelinas (38).

    Ensinava Melo Freire em 1815 (39), seguido por Sousa Pinto (40),que as penas se dividiam em corporais ou fsicas e morais; aquelas fa-ziam mal ao corpo, estas reputao. As primeiras eram capitais ouno capitais, conforme tiravam a vida ou eram somente aflitivas.

    Subdividia as capitais em simples, atrozes e cruis; as no capitaisem aflitivas e no aflitivas, pecunirias, honestas e vis, talio, legtimase arbitrrias.

    Penas capitais simples eram as que tiravam a vida com o menorsofrimento possvel (degolao e forca); atrozes as que eram acompa-nhadas de circunstncias que agravavam a morte mas no o sofrimento(confisco, aoites (!), queima ou esquartejamento dos cadveres, pros-crio de memria); cruis quando mandavam tirar a vida lentamente eno meio de tormentos (queima ou esquartejamento em vida, morte fome ou com veneno, aoites at morte, enterramento em vida, etc.).

    Entre as penas no capitais apontava as mutilaes (privao dequalquer rgo ou membro que deforme), a imposio de sinal indel-vel, a morte civil (privao de todos os direitos civis e polticos, que ,por assim dizer, uma pena acessria, visto supor a aplicao de outra,como o banimento ou o desterro para sempre; no se confundia com adegradao civil, que s privava o condenado de alguns direitos), o desterro,que compreendia o banimento, o desterro propriamente dito e a depor-tao ou degredo, em que se incluam as gals (41).

    Nas penas pecunirias distinguia o confisco, a multa, a restituio,as indemnizaes e as custas.

    Eram infamantes as que tinham esse efeito sobre quem as sofria,como os aoites, o barao e prego (42), a amputao, as gals e ostrabalhos pblicos. No se considerava infamante a degolao (!).

    Havia talio quando a lei fixava um mal do mesmo gnero e esp-cie do produzido pelo crime. A pena era legtima ou arbitrria, consoantefixada pela lei ou pelo julgador.

    (38) Almeida Costa, loc. cit., pg. 285.(39) Melo Freire, Institutiones Juris Criminalis Lusitani, 1. ed., 1815.(40) Lies de Direito Criminal Segundo as Preleces Orais do Prof. Baslio Alberto de

    Sousa Pinto, no Ano Lectivo de 1844-1845, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1845.(41) Pena regulamentada por uma lei de D. Joo III que estabelecia as condies em que podia

    ser aplicada ter mais de 18 anos e menos de 50 e merecer degredo para o Brasil entender ojulgador que a merecia. Eduardo Correia, Estudos sobre a Evoluo das Penas, pg. 49.

    (42) Pena que consiste fundamentalmente na exposio pblica do condenado comuma corda ou corrente ao pescoo e o anncio do motivo da condenao.

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    Quanto priso, Melo Freire acentuava especialmente as cautelasnecessrias ao seu emprego, exigindo mandato do juiz, justa causa eprocesso legal, cautelas essas consignadas nas Ordenaes Filipinas (43) eque j vinham da anterior legislao (44). Ningum devia, pois, ser presosem culpa formada, por factos que no o merecessem ou por ordem dejuiz incompetente. Sousa Pinto distinguia os fins com que a priso podiaser empregue, a saber: como pena, como deteno e como correco.

    Anote-se a anlise que este ltimo fazia dos regimes pensilvanianoe auburniano, salientando as grandes despesas a que a adopo de qualquerdeles daria lugar.

    As penas previstas nas Ordenaes eram de carcter corporal ou pa-trimonial, e quando no capitais podiam ser perptuas ou temporriasse consumadas no acto da execuo ou a prazo certo (45), no eramestritamente pessoais, podendo estender os efeitos aos familiares, e va-riavam segundo a categoria social do acusado e do ofendido. Em mui-tos casos, especialmente quando aquele pertencia s classes superio-res, sustava-se a execuo at ao caso ser levado ao conhecimento dorei. Descriminavam-se tambm as pessoas que, salvo em casos deespecial gravidade, eram escusadas de penas vis (46). Pereira de Sousaaponta seis espcies de penas vis: a forca, as gals, o cortamento de mem-bros, os aoites, a marca a ferro, o barao e prego ou gargalheira (47).

    Aparecem cominadas, conjunta ou separadamente, as penas de morte;morte civil; cortamento de membros; marca a ferro quente; degredopara as gals, para frica, Brasil e ndia, sendo curioso verificar que oprimeiro era considerado menos gravoso e o ltimo o pior (48); desterropara fora de determinada rea (bispado, comarca, cidade, para certa dis-tncia da corte ou para localidade indicada em regra Castro Marim);aoites; aoites com capella de cornos (49); barao e prego; polaina ouenxaravia vermelha na cabea (50); reduo escravatura; priso; penaspecunirias. Referem tambm o banimento (situao em que o conde-

    (43) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo CXIX.(44) Ordenaes Manuelinas, livro 5, ttulo XLII, e Afonsinas, livro V, ttulo LVIII,

    onde se refere legislao muito anterior.(45) Reputava-se perptuo o degredo cujo termo ficava discriminao do rei

    Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, nota 4 ao ttulo CXL.(46) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo CXXXVIII.(47) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, ttulo CXXXVIII, nota 5.(48) Nas Ordenaes Afonsinas o degredo era para Ceuta, livro V, ttulo LXXXX, n. 1.(49) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo XXV, n. 9, aplicvel ao marido compla-

    cente e respectiva mulher.(50) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo XXXII, n. 6, aplicvel s alcoviteiras.

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    nado morte ou outra pena corporal ficava quando julgado revelia,podendo no primeiro caso ser morto por qualquer pessoa do povo) (51).

    As Ordenaes eram prdigas na prescrio de penas capitais, oradesignadas por morra por isso ou morra por ello (52) ora por mortenatural, morte natural de fogo, morte natural na forca, mortenatural na forca para sempre, e queimado feito per fogo em p (53).Certos intrpretes viram no facto de se empregarem diferentesexpresses como referindo-se as primeiras morte civil, em oposios ltimas, que implicavam necessariamente a morte fsica.

    Tal interpretao parece bastante duvidosa, at porque em algunsdestes casos era obrigatrio comunicar a sentena ao Rei, o que s sefazia quando o condenado devia efectivamente morrer. Reconhece-se,porm, que o facto de se empregarem duas formas de incriminao nomesmo ttulo e para crimes de desigual gravidade lhe empresta certabase (54).

    No fundo, parece mais um dos muitos expedientes de que a pr-tica dos nossos tribunais e a doutrina dos nossos praxistas lanavammo para adoar a severidade da lei e para que, na prtica, o quadroda justia penal do chamado Antigo Regime fosse entre ns muito me-nos sombrio que o pintavam as leis e que ficasse sobretudo muito longeda rigidez e dos extremos atingidos no mesmo perodo noutros pasesda Europa, como bem observa o Prof. Braga da Cruz (55).

    A morte civil era, alis, expressamente prevista nas Ordenaes (56).Menos controversa a interpretao dos que opunham a morte natu-ral na forca morte natural na forca para sempre, expresso queparece pleonstica. A diferena encontra explicao na histria da dis-posio e traduz a diferena de tratamento dado ao corpo: enquanto noprimeiro caso a execuo se efectuava no pelourinho e o corpo eraentregue Misericrdia para sepultar, no segundo tinha lugar na forcada cidade ou vila e a permanecia pendurado at cair. S no dia 1 deNovembro de cada ano a Misericrdia podia recolher os corpos parainumao (57).

    (51) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo CXXVI, notas 5, 7 e 8.(52) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulos XIV, XV, XVIII, XXV, etc.(53) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulos III e n. 1, XII, XIII e n.os 1 e 2, XVII,

    XXIV, XXV n. 10, etc.(54) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, ttulo XLI, nota 2, LX e n. 1.(55) Guilherme Braga da Cruz, O Movimento Abolicionista e a Abolio da Pena de

    Morte em Portugal, Lisboa, 1967, pg. 28.(56) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo XLV, n. 1.(57) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, ttulo XLI, nota 2.

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    Esta interpretao encontra plena confirmao nas disposies doprimeiro compromisso da Misericrdia de Lisboa, celebrado a 15 deNovembro de 1517, que regula o enterro dos justiados (58).

    A pena de morte normalmente cumprida por enforcamento podiaser agravada com atazanamento e amputaes (59) ou ter lugar pelofogo (60) e, segundo parece, por degolao, quando se tratava de pessoasde qualidade (61). A condenao morte cruel sem mais especificaesdeixava ao arbtrio do julgador a forma de execuo (62).

    Anote-se que se a condenao morte ou amputao resultassede deciso tomada pelo soberano, de moto prprio, por ira ou senha,a execuo seria espaada at vinte dias, sendo certo que proferidaem processo criminal devia ser comunicada ao ru num dia tarde ahoras que lhe fique tempo para se confessar e executada na manh doterceiro dia (63).

    A amputao era tambm prevista como pena autnoma (64) e pres-crevia-se a marca a ferro quente em alguns casos (65).

    Os aoites, o barao e prego, o desterro, o degredo e as penaspecunirias, quer sob a forma de confisco quer na de perda de partedos bens, multas, obrigao de indemnizar e custas, encontravam larga

    (58) Compromisso. Anexos, documento n. 1. Sobre os pormenores da execuo, Ayres deGouveia, documento n. 2.

    (59) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulos XXXV, n.os 3, XLI.(60) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulos XII e XIII e n. 1 e 2, XVII.(61) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, ttulo CXXXVII, nota n. 4. Degolados

    foram tambm, na vigncia das Ordenaes Afonsinas, o duque de Bragana, D. Pedro de Atade ePro de Albuquerque, que participaram na conspirao do duque de Viseu contra D. Joo II. Garciade Resende, Crnica de D. Joo 11, captulos XLVI e LIV.

    (62) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo VI, n. 9. O exemplo de morte cruel mais recorda-do a execuo dos Tvoras em 1758. Podem igualmente apontar-se as execues de Joo BaptistaPele, em 11 de Novembro de 1775, acusado de atentar contra a vida de Pombal, e a do incendirioda Patriarcal, Alexandre Franco Vicente, que, com barao e prego, foi amarrado cauda de umcavalo, acoitado e queimado, em 1773. Como antecedentes lembrem-se: o suplcio de BaltazarGrard, assassino de Guilherme de Orange, em 1584, que, submetido aos piores tormentos durante18 dias, acabou na roda; os suplcios infligidos ao autor do atentado contra D. Pedro II; a mortede Ravaillac, que assassinou Henrique IV, em 1610; e a de Damiens, que feriu ligeiramente Lus XV,em 1757. Os casos das mortes dos duques de Bragana e de Viseu e tambm a do bispo de vora,no tempo de D. Joo II, bem como a do duque de Caminha, na poca de D. Joo VI, no constituemcasos de morte cruel por no terem resultado de sentena nem terem sido precedidas de tormentos.

    (63) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo CXXXVII, n. 1. A origem desta disposio remon-ta a uma lei promulgada por D. Afonso II, transcrita nas Ordenaes Afonsinas, ttulo LXX.

    (64) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo XXXIX, n.os 1 e 2, e XLIX, n. 3.(65) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, ttulo CM, n. 2, nota 4. Esta pena,

    extinta por D. Joo III, por assento de 27 de Fevereiro de 1523, foi reintroduzida nas OrdenaesFilipinas. Por alvar de 6 de Dezembro de 1612, n. 20, foi determinada a aposio de um sinalcom fogo numa das espaldas aos condenados como ladres que usassem mudar de nome.

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    aplicao. Apontam-se como derivadas do princpio de Talio as dispo-sies do livro III, ttulo LX, n. 5, e livro V, ttulo LXXXV das Orde-naes Filipinas.

    sabida a parte que os degredados tiveram na saga dos Descobri-mentos: a troco de indulto eram encarregados de misses perigosas,frequentemente deixados em terras desconhecidas para estabelecer re-laes com os nativos, aprender a lngua e os costumes, e mais tarderecolhidos, no regresso ou noutra viagem, se ainda fossem vivos (66).

    No relatrio do Decreto-Lei n. 26 643, de 28 de Maio de 1936,escreveu o Prof. Beleza dos Santos: Parece que depois da conquistade Ceuta para ali se enviaram degredados (Ordenaes de 1434 e 1450);mais tarde, em 1484, enviaram-se para S. Tom e Prncipe; para a n-dia em 1650; para o Brasil em 1685; para Angola em 1650 e 1754 epara Moambique em 1797 (67).

    A priso, alm de ter lugar para garantir a comparncia em juzo (68),permitir a instruo do processo (que nos casos mais graves implicavatormentos) (69) e assegurar a execuo da sentena, aparecia muitas ve-zes como meio coactivo para obter o cumprimento de obrigaes pecunirias:coimas, multas, indemnizaes e custas, impostas cumulativamente comoutras sanes, e por vezes constituindo elas prprias as verdadeiras pena-lidades (70). A priso aparece ainda como consequncia necessria deoutras penas, como as gals ou o degredo.

    S excepcionalmente a privao da liberdade era aplicada como pena,e nesses casos por perodos muito curtos (30, 60 ou 90 dias) (71) oupor prazo determinado pela merc do rei (72).

    (66) Damio de Gis, Crnica de El-Rei D. Manuel, captulo XXXVI; Joo Francisco RochaPombo, Histria do Brasil, vol. l., pgs. 159 e segs., Carta de Pedro Vaz de Caminha, de 1de Maio de 1500; Sophus Ruge, Histria da poca dos Descobrimentos, pgs. 113 e segs.

    (67) L-se no relatrio do Decreto-Lei de 9 de Dezembro de 1869: sabido geralmenteque D. Joo II povoou as ilhas de S. Tom e Prncipe com muitos degredados; e que antes delej el-rei D. Afonso V os enviava para os presdios de Ceuta, Arzila e Tanger; e tanto nas Orde-naes Manuelinas como nas Filipinas e nas Leis Extravagantes, publicadas posteriormente, odesterro para as possesses sempre assinalou o pensamento poltico de conciliar a satisfao dajustia com o propsito de coadjuvar a colonizao das conquistas [...].

    (68) Segundo Cornil, loc. cit., um edital de Joo sem Medo, de 1570, considerava a prisocomo uma medida de conservao. Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo CXIX e segs.

    (69) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulos VI, n. 29, XIX, n. 2, LXII, n. 1, e CXXXIII.(70) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulos XXXVI, n. 1, LXV, LXXXI, LXXXV, n. 1, e

    LXXXVI n. 5.(71) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulos XVIII, n. 2, LXXX, n.os 1 e 4, LXXXI, XVIII.(72) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulos CXIV e XLII, n. 1.

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    A priso por dvidas tinha regulamentao prpria no livro IV,ttulo LXXVI e seguintes.

    A vida nas cadeias

    As capturas eram usualmente feitas pelos meirinhos (havia o Meiri-nho-Mor, o Meirinho da Corte, o Meirinho das Cadeias, o Meirinho dasExecues, o Meirinho dos Clrigos e o Meirinho da Correio da Comarca).Competia-lhes, entre outras atribuies, conduzir os detidos cadeia eao tribunal, no devendo consentir que os presos sejam maltratadosnem lhes seja feita qualquer sem-raso por pessoa alguma, e exerciamat fiscalizao sobre os carcereiros (73).

    Quando a privao da liberdade tinha lugar em castelo ou fortalezaos reclusos ficavam sob guarda e responsabilidade dos alcaides, e estesobrigados a guardar o regimento dos carcereiros das cidades e vilas, eo das carceragens da corte (74).

    A lei dispunha: O carcereiro da Corte ha de ter huma cadea demonte (75) e quatro homens para tirarem e deitarem os ferros aospresos. E havendo-se a cadea de mudar, ha de ter cuidado, quando ospresos forem per caminho, de os aprisoar noite, onde chegar, e de osguardar de noite com os homens do Concelho, que os levarem, a quemforem encomendados, at serem entregues onde a cadea houver destar de assento; e indo de caminho ho de ser entregues de Concelhoem Concelho, per onde passarem. (76)

    E mais adiante: E ha de guardar bem suas prises, e os presos, eaprisoal-os segundo os malefcios em que forem culpados, que lhe se-ro ditos pelo Meirinho, ou Alcaide, que lhos entregar, e segundo aqualidade das pessoas. E duas vezes ao dia os buscar e ver se estobem presos e recadados ou se tem feito alguma malcia para se solta-rem. (77)

    Os reclusos, proibidos de praticar jogos de azar e de deter objectosreputados perigosos, eram obrigados a obedecer em todo e per todo aseus carcereiros, no que boa guarda delles e segurana de justiapertencer [...] E quando os presos se sentirem aggravados dos Officiais

    (73) Ordenaes Filipinas, livro I, ttulos XXI, n. 4, XXII, n.os 2 e 6, XXXIII, n.os 2, 3, 6 e 7.(74) Ordenaes Filipinas, livro I, ttulo LXXV, n. 27.(75) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro I, ttulo XXXIII, nota 1. Corrente para condu-

    zir os presos.(76) Ordenaes Filipinas, livro 1, ttulo XXXIII.(77) Ordenaes Filipinas, livro I, ttulo XXXIII, n. 2.

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    da cadea poder-se-ho aggravar ao Corregedor, que os ouvir, e pro-ver com justia (78).

    Na cadea da Corte haver dous ou tres Ministros para fazerem asexecues da Justia, os quais o Carcereiro trar aprisoados, de ma-neira que no fujam, e havero seu mantimento cada mez, segundo lhefor ordenado pelo Regedor. E levaro das pessoas, que morrerem perJustia os vestidos e roupa de cama, que na cadea tiverem (79).

    Como se v, as funes de carrasco no eram muito apetecidas emPortugal, o que levava a recorrer a condenados, mantidos na cadeia, aocontrrio do que se verificava noutros pases (80).

    A lei fixava a importncia que cada preso devia pagar peloencarceramento, pelo uso de acomodaes mais cmodas e pela sol-tura (carceragem), bem como o destino a dar s importncias cobra-das. Esta regulamentao era aplicvel no s ao carcereiro da Cortemas tambm aos das cidades e vilas, e ainda aos alcaides (81).

    Porm, tal imposto facilitava a prtica dos maiores abusos e frau-des, mas curioso notar que, remontando a longnqua antiguidade (82),s veio a ser extinto em 1956 (83).

    Era suposto que o preso proveria sua sustentao, tal como deve-ria pagar a viagem para Lisboa, quando condenado a degredo. Se issono fosse possvel cumpria Misericrdia aliment-lo e Bolsa ou comunidade suportar os encargos da remoo (84).

    A Misericrdia custeava tambm os enterros dos reclusos pobres edos justiados (85).

    (78) Ordenaes Filipinas, livro 1, ttulo XXXIII, n.os 4 e 6.(79) Ordenaes Filipinas, livro 1, ttulo XXXIII, n. 8.(80) Ayres de Gouveia, loc. cit., pgs. 79 e 80. Anexos, documento n. 2. Camilo Castelo

    Branco, em Memrias do Crcere, captulo 16, informa que o ltimo carrasco do Porto morreu,em 1833, s mos do povo, mas lembra outro que morreu velho e estimado. Ayres de Gouveiafala-nos de um, tambm do Porto, de nome Andr Alemo, falecido quase em cheiro de santi-dade. O visconde de Ouguela, em O ltimo Carrasco, refere as suas relaes com Lus Negro,ltimo carrasco do Limoeiro, que segundo parece nunca chegou a executar ningum, e a quemdeixaram de pagar por ter sido eliminada a verba no Oramento.

    (81) Ordenaes Filipinas, livro I, ttulos XXXIV, n. 5, LXXIV, n. 15, LXXV, n. 27,LXXVII, n. 9.

    (82) Ordenaes Afonsinas, livro I, ttulo XXXIII.(83) Decreto-Lei n. 40 876, de 24 de Novembro de 1956, artigo 40.(84) Compromisso da Misericrdia. V. anexos, documento n. 1; Ordenaes Filipinas, li-

    vro V, ttulos CXXXIX, n. 6, CXL, n. 6, CXLII, n. 9.(85) Esta prtica manteve-se at muito tarde, como se verifica do artigo 375. da Organi-

    zao Prisional de 1936, e parece s ter efectivamente terminado com a circular da Direco--Geral n. 15, de 25 de Maio de 1968, que garantiu um enterro decente aos reclusos falecidos.

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    A lei regulamentava minuciosamente a transferncia dos condena-dos das cadeias do Reino para Lisboa, com precaues de seguranasemelhantes s previstas para outras deslocaes. A eram entreguesno Presdio Militar da Cova da Moura, que funcionava como depsitode degredados, aguardando a partida para os seus destinos (86).

    De notar que, salvo raras excepes, os condenados a menos deseis anos de degredo podiam seguir livremente, sob fiana, para o localonde deviam cumprir pena ou para o presdio (87).

    A segurana era a principal preocupao. Nem outra coisa resultado alvar de 28 de Abril de 1681, que instituiu o Regimento dos Carce-reiros, pois, alm de regular o provimento dos cargos, as remuneraese os registos obrigatrios, se limita, na esteira das Leis de 10 de De-zembro de 1602 e 13 de Julho de 1678, a agravar as penalidades a queficavam sujeitos no caso de fuga de presos.

    O regime permitia a mais completa promiscuidade. Os presos deEstado eram encarcerados com os de direito comum, no Limoeiro, nascadeias das diferentes cidades e vilas, no Castelo de S. Jorge, no Bu-gio, na Torre de S. Julio da Barra, na Trafaria e at no Presdio Mili-tar da Cova de Moura quando condenados a degredo (88).

    Na cadeia ficavam sujeitos autoridade dos juzes das prises, de-signados pelos carcereiros dentre os reclusos, juzes que tinham sobsuas ordens o escrivo, o barbeiro, os varredores e o muchingueiro,tambm presos (89).

    Em acomodaes exguas e sem condies de higiene, s quais muitasvezes s se tinha acesso por alapes no tecto, era empilhado um n-mero to excessivo de presos que, no Limoeiro, para dar espao vidadiurna, se removiam as tarimbas para um canto ou para uma das salasda priso, voltando noite a ocupar toda a rea (90).

    Havia, certo, dependncias mais pequenas e at quartos, mas spara os que podiam pagar. Os presos estavam sujeitos a uma verda-deira extorso; para tudo era preciso dinheiro.

    Esta descrio do Limoeiro (91), mas as outras cadeias no deviamdiferir muito, como se depreende do livro de Joo Baptista Lopes (92).

    (86) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo CXLII e seus nmeros.(87) Ordenaes Filipinas, livro V, ttulo CXXXII, n. 1.(88) Joo Baptista Lopes, Histria do Cativeiro dos Presos de Estado na Torre de S. Julio

    da Barra de Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, pgs. 87, 91, 97, 99, 103, 109, 280, 281, etc.(89) Silva Lopes, loc. cit., pgs. 98, 106, 110, 120 e 193.(90) Silva Lopes, loc. cit., pgs. 98 e 102.(91) Silva Lopes, loc. cit., pgs. 98, 99, 102, 107 e 109.

  • 36BMJ 430 (1993)

    Tanto os presos de direito comum como os chamados presos deEstado podiam ter na sua companhia menores, de um e outro sexo,por vezes de tenra idade (93), e, pelo menos os ltimos, no s criadoscomo tambm as esposas (94).

    As despesas com a sustentao, quando, por indigncia, no custeadaspelos prprios, eram satisfeitas pela Misericrdia ou por um abono daIntendncia da Polcia (95).

    De qualquer forma, a estada na cadeia no devia ser agradvel,como resulta das falas do Enforcado no Auto da Barca do Inferno, deGil Vicente, quando afirma equivaler a passagem pelo Limoeiro ao pr-prio Purgatrio (96).

    Apreciao das Ordenaes e abrandamento na aplicao da lei

    Comentando o sistema penal das Ordenaes Afonsinas, afirma Coelhoda Rocha: O legislador no teve em vista tanto o fim das penas, e asua proporo com o delito, como conter os homens por meio do terrore do sangue. O crime de feiticeria e encantos, o tracto illicito de Christocom Judia ou Moura, e o furto do valor de marco de prata so igualmentepunidos com pena de morte. E, mais adiante, acrescenta: Se qui-sssemos ajuizar destas Ordenaes pelas idas do sculo actual, muitohaveria que censurar; porm, se remontarmos era, em que foramcompiladas e nos rodearmos das circunstncias, costumes e mximasque ento vogavam, no s havemos de escusar, mas ainda admirar osseus autores; os quaes, com poucos subsdios e sem modelo, emprehenderameste Cdigo, o primeiro de toda a Europa depois da meia edade (97).

    As Ordenaes que se seguiram, reproduzindo as anteriores, depoisde revistas e actualizadas, merecem igual crtica.

    Diz-se que depois de ver a nossa legislao criminal Frederico IIinquiriu se ainda havia gente em Portugal (98).

    Alis, regimes igualmente severos vigoravam nos restantes pasesda Europa. Benjamim Constant, no elogio de Samuel Romilly, escreveu:

    (92) Silva Lopes, loc. cit., pgs. 109, 136 e 137.(93) Silva Lopes, loc. cit., pgs. 104, 109 e 192.(94) Silva Lopes, loc. cit., pgs. 192, 193, 194, 218 e 244.(95) Silva Lopes, loc. cit., pgs. 276, 289 e 321.(96) Jos Manuel Mereia Pizarro Beleza, Colquio Internacional Comemorativo da

    Abolio da Pena de Morte em Portugal, 1. vol., pg. 402.(97) Coelho da Rocha, Ensaio sobre a Histria do Governo e da Legislao de Portugal,

    pgs. 124 e 125.(98) Sousa Pinto, loc. cit., pg. 10.

  • 37 BMJ 430 (1993)

    Em nenhum pas do Mundo se pune com a perda da vida uma togrande variedade de aces humanas como na Inglaterra, pois at sepune com a pena capital o tirar uma, galinha de um terreiro fechado, eoutros roubos de um insignificante valor, contudo, desde 1807 para 1810,de 1872 pessoas que entraram em processo por estes e outros insigni-ficantes crimes apenas s uma padeceu a pena de morte: (99).

    A lei traduzia o esprito e as convices de uma poca em que aintimidao geral assumia particular relevo.

    Esta severidade, como j se referiu, vinha a ser mitigada pelos cos-tumes, pela jurisprudncia, pela doutrina e at por ordens reais.

    Beleza dos Santos, reproduzindo Pereira de Sousa, refere que: Porestilo das Relaes, como mostra o assento da Relao do Porto de 16de Agosto de 1661, os tormentos caram absolutamente em desuso en-tre ns, antes que o legislador os tivesse expressamente abolido, o quese reconhece e testemunha na Lei de 5 de Maro de 1790. (100).

    Joo dos Santos Ferreira, em memria publicada na Gazeta dosTribunais, n. 164, de 22 de Outubro de 1842, escreve: Por estarazo he que o celebre Alexandre Gusmo da parte de El-Rey de quemera Secretrio, declarou ao Corregedor do Crime que as Leis aindaque muito rigorosas so mais para terror do que para serem aplica-das. (101).

    Por sua vez, Silva Pereira, citando o Desembargador Joo lvaresda Costa, atesta que a pena de mutilao caiu em desuso, tendo j oRey algumas vezes determinado que quando o ru fosse condenado morte no se amputassem as mos (102).

    Esta tendncia fez-se sentir na legislao por sucessivos abrandamen-tos, assim:

    Por Decretos de 20 de Agosto de 1777, 13 de Agosto e 13de Novembro de 1790 exigiu-se o voto de um certo nmerode juzes togados para a aplicao aos militares das penasmais graves, especialmente a de morte;

    O Alvar de 5 de Maro de 1790 limitou a cinco dias aaplicao do regime de segredo;

    (99) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, ttulo LIII, nota 5.(100) Regime jurdico dos menores delinquentes, in Boletim da Faculdade de Di-

    reito de Coimbra, ano VIII, 1923, 1924, em nota.(101) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, ttulo LIII, nota 5.(102) Ordenaes Filipinas, Ed. Gulbenkian, livro V, ttulo XXXV, nota 2.

  • 38BMJ 430 (1993)

    O Decreto de 27 de Janeiro de 1797 mandou perdoar apena de morte ao condenado que se oferecesse para execu-tor da Alta Justia (103);

    O Decreto de 11 de Maro de 1797 autorizou a comuta-o da pena de morte na de degredo perptuo em Moambiqueaos rus com menos de 40 anos de idade, exceptuando oscondenados por crimes atrocssimos; aos condenados a pe-nas mais leves a comutao podia ser na de degredo para andia ou Moambique pelo tempo que os juzes determinas-sem.

    Merece especial relevo o Decreto de 12 de Dezembro de1801, publicado durante o Governo do Prncipe Real, maistarde D. Joo VI, que ordenou a reviso, pela Casa daSuplicao, dos processos de todos os rus presos nas ca-deias, condenados morte ou a outras penas, que poderiamser comutadas na de degredo para as gals, perptua ou tem-porariamente, ou em trabalhos pblicos.

    Porm, s com a implantao do regime constitucional o sistema foiprofundamente alterado.

    (103) De notar que, como resulta do ttulo XXXIII n. 8, livro I, Ordenaes Filipinas,as funes de ministros para fazerem as execues de justia estavam a cargo de condena-dos aos quais o carcereiro trar aprisoados de maneira que no fujam. Recorde-se queGarcia de Resende descreve do seguinte modo a execuo do duque de Bragana: Chegou--se a ele por detrs um homem grande todo coberto de d, que no lhe viram o rosto; oqual se afirma no ser algoz, e ser homem honrado, que estava para o justiarem, e porfazer esta justia em tal pessoa foi perdoado. loc. cit., captulo XLVI. A Reforma Judi-ciria de 16 de Maio de 1832, no artigo 229., disps: O lugar de Executor da Justia serexercido por um criminoso de pena ltima comutada naquele emprego, situao que semanteve na Nova Reforma (artigo 342.) e na Novssima Reforma Judiciria (artigo 1205.).

  • 39 BMJ 430 (1993)

    II

    O REGIME LIBERAL

    Os diplomas constitucionais

    A Constituio de 1822, depois de estabelecer os princpios de nin-gum poder ser preso sem culpa formada, salvo nos casos e pelas ma-neiras previstas na lei, da inviolabilidade do domiclio e da igualdade detodos perante a lei (104), prescreve que toda a pena deve ser propor-cional ao delito e que nenhuma passar da pessoa do delinquente, probea tortura, a confiscao de bens, a infmia, os aoites, o barao eprego, a marca a ferro quente e todas as demais penas cruis e infa-mantes (105), cumprindo assim as directrizes impostas pelo Decretode 9 de Maro de 1821, que vigorou at sua publicao.

    Determina ainda a suspenso do exerccio dos direitos polticos porsentena que condene a priso ou degredo, enquanto durarem os efei-tos da condenao (106) e dispe deverem as cadeias ser seguras,limpas e arejadas, de sorte que sirvam para segurana e no para tor-mento dos presos. Nelas deve haver diversas casas, em que os pre-sos estejam separados conforme as suas qualidades e natureza dos seuscrimes, devendo haver especial contemplao com os que estiveremem simples custdia e ainda no sentenciados. Regula tambm a fis-calizao peridica dos estabelecimentos (107).

    Pouco vigorou esta Constituio, substituda pela Carta Constitucio-nal de 29 de Abril de 1826, s efectiva e regularmente aplicada a partirde 1834, com a vitria do movimento liberal.

    A Carta mantinha os princpios da igualdade de todos os cidadosperante a lei e da inviolabilidade do domiclio; garantia no passarem aspenas da pessoa do delinquente; proibia os aoites, a tortura, a marca aferro quente e todas as penas cruis, bem como a priso sem culpaformada, excepto nos casos declarados na lei; dispunha que as cadeiasfossem seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas paraseparao dos rus, conforme as suas circunstncias e a natureza dosseus crimes; proclamava ainda a no retroactividade da lei e estabele-

    (104) Artigos 4., 5., 6. e 9.(105) Artigo 11.(106) Artigo 24., n. 2.(107) Artigos 208. e 209.

  • 40BMJ 430 (1993)

    cia que ningum pode ser sentenciado seno pela autoridade compe-tente por virtude da lei anterior e na forma nela prevista (108).

    A Constituio de 20 de Maro de 1838, que s vigorou at 10 deFevereiro de 1842, data em que foi declarada novamente em vigor aCarta Constitucional, nada inovou nesta matria.

    Porm, em 5 de Julho de 1852, o primeiro Acto Adicional Cartaveio abolir a pena de morte para os crimes polticos, que j se nousava desde 1834 (109). Esta abolio s veio a tornar-se extensivaaos delitos comuns em 1867 (110). Entendeu-se, todavia, que a pena demorte subsistia para os crimes do foro militar, previstos e punidos emlegislao especial.

    De notar que a pena ltima j no se aplicava a mulheres desde1772 (111) e a homens no territrio metropolitano, desde 1846 (112), eque a sua extino foi precedida pela supresso do salrio do executor,aprovada em sesso da Cmara de 18 de Junho de 1863 (113).

    Contribuiu para essa no aplicao a providncia introduzida naReforma Judiciria de 1832, reproduzida nos diplomas de 1837 e 1841(Nova Reforma e Novssima Reforma Judiciria), que tornou obrigat-rio o recurso clemncia rgia em todos os casos de sentenas im-pondo penas capitais (114).

    A partir de ento, D. Maria II, D. Pedro V e D. Lus comutaramquase sistematicamente todas as penas capitais aplicadas pelos tribu-nais comuns (115).

    De resto, como bem nota Braga da Cruz, o nmero de execuescapitais, que tinha tido, em Portugal, um ligeiro recrudescimemto nosconturbados seis anos de guerra civil, em que a mdia anual dos, sen-tenciados, incluindo os condenados por crimes polticos, foi de cercade 20. Mas, esse nmero logo foi decrescendo sensivelmente de ano paraano uma vez restabelecida a paz interna (116). Mais adiante acres-centa: Quanto aos crimes comuns, no perodo de 10 anos que, precede

    (108) Artigo 145., 2, 6, 7, 10, 12, 18 e 20.(109) Braga da Cruz, loc. cit., pg. 90.(110) Artigo 1. da Lei de 1 de Julho de 1867, que aprovou a Reforma Penal e das Prises.(111) Braga da Cruz, loc. cit., pg. 69.(112) Braga da Cruz, loc. cit. pg. 87.(113) Braga da Cruz, loc. cit., pg. 123.(114) Braga da Cruz, loc. cit., pg. 86.(115) Braga da Cruz, loc. cit., pg. 87. Em 1857 houve uma execuo em Damo Pe-

    queno, nota 161-a, pg. 88.(116) Braga da Cruz, loc. cit, pg. 89. A Conveno de vora Monte de 26 de Maio de 1834.

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    a ltima execuo, a mdia anual tinha-se fixado entre 3 e 4 subidas aopatbulo (117).

    A abolio da pena de morte

    A campanha para a extino da pena de morte foi longa. Nela sedistinguiu Ayres de Gouveia, arcebispo da Igreja Catlica, professor daUniversidade de Coimbra, parlamentar, par do reino e ministro, que toda-via no conseguiu fazer vingar em toda a extenso a doutrina que de-fendia, visto ter continuado a vigorar a pena de morte para os crimesmilitares.

    Sustentavam os seus contraditores a necessidade de uma legislaosevera para garantir a disciplina no Exrcito e apoiavam esta afirmaonos actos que conduziram sua aplicao em casos como o do soldadoAntnio Pereira, condenado em 1848 por homicdio de um sargento, dosoldado Barnab Nunes, que em 1872 assassinara um alferes, e do sol-dado Francisco Antnio, que traio matara um camarada de guarda cadeia civil de Monsanto por este o no deixar falar com os presos.

    A polmica contra a pena de morte por crimes militares assumiuparticular acuidade em 1874, quando da condenao do soldado AntnioCoelho pelo assassnio do alferes Brito (118).

    Os jornais ocuparam-se do caso e sobre ele se pronunciaram vriaspersonalidades marcantes, entre as quais Guerra Junqueiro, na poesiaO crime, inserta no livro A Musa em Frias, Ramalho Ortigo, numcaptulo de As Farpas intitulado A disciplina militar e a pena de morte O caso do soldado Antnio Coelho (119), em que, curiosamente;condena a sua aplicao ao referido soldado por constituir uma mani-festa desigualdade em relao classe civil, mas defendendo-a para oshomicidas. A se escreve: Nunca, desde os nossos mais tenros anosat hoje, pudemos compreender as razes poticas e sentimentais dosque aboliram ou querem abolir para os malfeitores a pena ltima.

    Esta posio faz lembrar Alphonse Karr, que termina o seu livroMessieurs les Assassins proclamando Abolissons Ia peine de mort,mais M. M. les assassins commencent.

    Sob presso da opinio pblica, a pena do soldado Antnio Coelhofoi comutada por Decreto de 29 de Setembro de 1877 e, segundo

    (117) Braga da Cruz, loc. cit., pgs. 90 e 91.(118) Eliana Gerso, Colquio Internacional Comemorativo da Abolio da Pena

    de Morte em Portugal, 2. vol., pgs. 211 a 213.(119) Ramalho Ortigo, As Farpas, 7. tomo, pgs. 103 e segs.

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    parece, a partir desse dia a pena de morte s voltaria a ser aplicadauma nica vez, durante a Primeira Guerra Mundial.

    Eliana Gerso, na sua bem elaborada e completa comunicao, in-forma que de 1881 a 1911 os tribunais militares aplicaram efectiva-mente a pena de morte num nmero restrito de casos.

    Encontrou sete condenaes mas, como refere, no lhe foi possveldeterminar o seu nmero entre 1875 e 1880, por nas estatsticas dessesanos se no indicarem as penas aplicadas. Tambm no pde apurarexactamente o nmero de comutaes, mas conseguiu identificar igual-mente sete (120).

    Coube primeira Constituio da Repblica Portuguesa, de 26 deAgosto de 1911, a honra de, no n. 22 do artigo 3., revogar a pena demorte para delitos militares, pena alis reintroduzida no texto constitu-cional pela reviso de 1916, mas somente em caso de guerra com pasestrangeiro, em tanto quanto a aplicao dessa pena seja indispensvel,e apenas no teatro da guerra (121).

    A Constituio de 11 de Abril de 1933 consignou a mesma doutrina,embora com diferente redaco (122).

    Foi finalmente a Constituio de 2 de Abril de 1976 que, no artigo 25.,aboliu definitivamente a pena de morte para todos os casos (123).

    A vida nas cadeias

    A abolio dos aoites, do barao e prego, de todas as demaispenas cruis e do confisco, determinada pelos textos constitucionais,deixou o quadro das reaces penais reduzido s penas de morte, detrabalhos pblicos, de degredo, de desterro, de priso e de multa, por-que s em 10 de Dezembro de 1852 foi publicado o primeiro CdigoPenal Portugus. A priso assumiu importncia crescente, na medidaem que contra as penas de morte e de trabalhos pblicos se desenha-ram, desde cedo, violentas campanhas, s acalmadas com a sua aboli-o em 1867, tal como em 1931 viria a suceder com o degredo (124).

    (120) Eliana Gerso, loc. cit., pgs. 214 e segs.(121) Lei de 28 de Setembro de 1916.(122) N. 11 do artigo 8.: No haver penas corporais perptuas nem a de morte salvo,

    quanto a esta, o caso de beligerncia com pas estrangeiro, e para ser aplicada no teatro da guerra.(123) O artigo 25., n. l, dispe: A vida humana inviolvel. N. 2: Em caso algum

    haver pena de morte.(124) Despacho de 24 de Dezembro de 1931 do Ministro do Ultramar, que proibiu o desem-

    barque de condenados em Angola; Decreto-Lei n. 20 877, de 15 de Fevereiro de 1932, e artigo56. da Organizao Prisional de 1936.

  • 43 BMJ 430 (1993)

    No notvel relatrio que antecede as primeiras reformas liberais so-bre a Fazenda, a Justia e a Administrao Pblica, consubstanciadasnos Decretos n.os 22, 23 e 24, ainda elaborados em Ponta Delgada epublicados com a data de 16 de Maio de 1832, escreve Mouzinho daSilveira, ento Ministro e Secretrio de Estado dos Negcios da Justia:

    A Administrao tem o direito de punir os indivduos que,achando-se em estado de sade, no quiserem trabalhar, segundo suasforas e inteligncia: as penas sero fixadas no Conselho segundo ascircunstncias, e podero chegar at ao ponto de trabalhos forados,mas nenhuma ser. imposta sem que o indivduo que foge ao trabalhotenha recebido socorros uma vez, ou se prove que anda vadiando.

    Os vagabundos de ambos os sexos de fora da Municipalidade seroremetidos do seu nascimento ou obrigados em pena da sua vadice atrabalhar a meia paga, at que provem que esto habilitados e que tmtido bom comportamento durante o trabalho da meia paga.

    E mais adiante:

    Os presos ou detidos esto debaixo da proteco das Leis, e de-vem ser tratados com humanidade: a superintendncia que exercita nellasa Authoridade administrativa a da authoridade tutelar, e no a de uminspector severo, e ainda menos a de um dspota.

    A deteno no traz consigo mais do que a privao da liberdade,com ou sem communicao no interior da priso, segundo a ordem, oupena do delicto. De modo nenhum poder o preso ser privado de versua mulher, e seus filhos, exceptuados somente os criminosos de parrecidio,de deteno arbitrria ou de attentado contra a liberdade da Ptria oucontra a vida do Rei ou Regente.

    Sendo as casas de deteno e as prises logares de correco, de-vem ter por objecto tornar melhor os detidos e os presos.

    A administrao, o regimen e a polcia das casas de deteno, edas prises, so confiadas a Cidados nomeados de trez em trez mezes,pelas Cmaras das Terras aonde so estabelecidas, e so superintendidaspela Authoridade local administrativa. Os Cidados nomeados do asordens necessrias para a nutrio, habitao e segurana dos detidos,bem como para as medidas de salubridade e emprego do tempo dosdetidos: um dos trez visita alternativamente e por dia as prises, ouveas queixas dos presos e as formadas contra elles, e as julga, salvo orecurso para a Commisso de que faz parte. As funes da Commissoreduzem-se ao melhoramento da sorte fsica e moral dos detidos.

  • 44BMJ 430 (1993)

    Consagravam-se assim conceitos sobre o tratamento de vadios ereclusos ainda hoje considerados vlidos por muitos, embora a tendn-cia dominante parea inclinar-s para a descriminalizao da vadiagemcomo mero estado de perigosidade. Essa no era a orientao seguidano projecto de Cdigo Penal do Prof. Eduardo Correia nem na primeirareviso ministerial.

    Entre a teoria e a prtica cava-se, porm, largo fosso e, apesar dasdisposies constitucionais exigirem as condies necessrias higienee ao bom funcionamento das cadeias, apesar das boas intenes ex-pressas no Relatrio de Mouzinho da Silveira, os estabelecimentos prisionaisportugueses estavam longe de se poderem considerar satisfatrios.

    Ayres de Gouveia afirma, em 1860: As nossas actuais cadeias fo-ram-nos herdadas imediatamente da lnquisio (125), o que mani-festamente inexacto. Nem o Limoeiro (126) nem a Cadeia da Relaodo Porto (127) parecem ter pertencido quela instituio; a priso doCastelo de S. Jorge (128), o Presdio Militar da Cova de Moura (129),

    (125) Ayres de Gouveia, loc. cit., pg. 85(126) Do Limoeiro sabe-se que primeiro tinha sido Casa da Moeda de Lisboa; depois foi

    Pao at ao tempo de el-rei D. Dinis, que fez para sua residncia, o das Alcovas, mas, comoadiante se acrescenta, certssimo que muito depois de o Lavrador ainda ahi continuavam mo-rando personagens reaes. Com efeito, ali foi morto o conde Andeiro, quase na presena, darainha D. Leonor (Jlio Castilho, Lisboa Antiga, captulos XXI e XXII, livro VI, tomo V, apoiadonos testemunhos de Ferno Lopes e de Damio de Gis). Talvez desabitadas desde 1383, e tor-nadas inteis, passaram estas casas a ser sede de estaes publicas. Em 1434 tinham ahi a suaaposentadoria a vereao da cidade e os desembargadores da relao (tudo segundo a mesmafonte). O certo que nos tempos de D. Joo II j funcionava como cadeia (captulo C da Crnicado mesmo rei, de Garcia de Resende, onde se narra a fuga de um preso). Por sua vez, Damio deGis informa que D. Manuel fez de novo em Lisboa, junto da Igreja de S. Martinho, os paos dacasa da suplicao, e do cvel, e cadeia do Limoeiro obra mui magnfica e sumptuosa (Crnica doRei D. Manuel I, captulo LXXXV da 4. parte). No fim do sculo XVI tudo se conservava comotal as cadeias em baixo e no andar de superior as salas dos tribunais. D. Joo V reedificou a cadeia,mas o edifcio, muito atingido pelo terramoto de 1755, obrigou transferncia dos tribunais parao Palcio dos Almadas em 1758. No tempo de D. Maria I chegou a elaborar-se um projecto paraali se instalarem os tribunais e a Cadeia (Lisboa Antiga, loc. cit.). O actual edifcio, construdo nosmeados dos anos 30, depois de um violento incndio, embora posteriormente alargado e melho-rado, era manifestamente inadaptvel ao conveniente funcionamento de um estabelecimento dedeteno, e estava de h muito projectada a sua desafectao (anexos, documento n. 9) quando osacontecimentos subsequentes revoluo de 1974 vieram determinar o seu encerramento.

    (127) No local onde hoje se ergue o edifcio onde esteve instalada a Cadeia da Relao doPorto j funcionavam, desde 1603, esta jurisdio e o estabelecimento prisional. As primitivasinstalaes ruram, e por ordem do Governador das Justia e Armas da Cidade, Joo de Almada eMelo, primo do poderoso Marqus de Pombal, foi iniciada em 1765 a construo de casa condignapara alojar o tribunal e a cadeia, que ficou concluda em 1796 (Monografia sobre os ServiosPrisionais Portugueses, Lisboa, 1961. Jos Sarmento de Matos A Baixa Pombalina e o Porto dosAlmadas, suplemento do Dirio de Notcias).

  • 45 BMJ 430 (1993)

    bem como os restantes fortes que serviram recluso no podiam teraquela provenincia, e no se aceita que isso fosse possvel quanto snumerosas cadeias das cidades e vilas, de que nos falam as Ordenaes.

    O mesmo autor, a anteceder uma condenao, alis merecida dosnossos estabelecimentos, faz uma impressionante descrio da vida queali se levava e da disciplina que vigorava (130), que no diferem subs-tancialmente das indicadas no citado livro de Joo Baptista da SilvaLopes, abstraindo naturalmente das injrias e sevcias determinadas pe-los dios polticos.

    Camilo Castelo Branco pinta a Cadeia da Relao do Porto, queindiscutivelmente conhecia bem, com cores muito diferentes (131). To-davia, bom no exagerar nem esquecer que nas cadeias, legal ouilegalmente, tudo se pagava, e Camilo, com os meios de que dispunha,com as relaes sociais que mantinha e com o seu prestgio, tinha cer-tamente tratamento bem diferente do da maioria dos reclusos.

    Segundo o prprio Camilo relata, D. Pedro V, depois de visitar asenxovias, s quais se tinha acesso por um alapo, os calaboios, osquartos e as enfermarias, exclamou: Isto precisa de ser completa-mente arrasado (132).

    Ea de Queirs, em 1872, confirma a frase, supondo-a proferidaquando o monarca subia a escada (133).

    Camilo informa ainda que S. Majestade visitou segunda vez a ca-deia e que, ao sair, disse sempre a mesma misria (134).

    O pessimismo de Ayres de Gouveia explica-se porque via os servi-os portugueses com olhos de quem acabava de visitar numerosos pasesonde se operava completa renovao tanto da arquitectura prisional comodos prprios mtodos de tratamento penitencirio.

    (128) Jlio Castilho, seguindo Frei Claudino da Conceio, informa-nos que el-reiD. Joo V mandou fazer uma nova cadeia no Castelo (loc. cit., 2. parte, tomo III, cap-tulo VII). Nos tempos das guerras liberais ali estiveram internados vrios reclusos (SilvaLopes, loc. cit., pgs. 105, 256, etc.), e em 1848 ainda o governador do Castelo, GeneralEusbio Cndido Cordeiro Pinheiro Furtado, propunha Municipalidade fazer obras noRossio utilizando os grilhetas (Jlio Castilho, loc. cit., tomo VI, livro VII, captulo XXIV).

    (129) Na Cova da Moura, antigamente Lapa da Moura, comeou a construir-se em1670 a Torre da Plvora, concluda em 1596, que depois foi presdio e mais tarde quartel(Alberto Meyrelles, Lisboa Oriental).

    (130) Anexos, documento n. 3.(131) Anexos, documento n. 5.(132) Camilo Castelo Branco, Memrias do Crcere, captulo XXXII, pgs. 120 e 123.(133) Ea de Queirs, Uma Campanha Alegre, captulo XXVI.(134) Camilo Castelo Branco, loc. cit., captulo XXXII, pg. 124.

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    No se duvida da pssima qualidade de estabelecimentos, instala-dos em edifcios mal adaptados e sem as mais elementares condiespara a deteno, que uma longa guerra civil no tinha certamente con-tribudo para melhorar.

    No conturbado perodo que sucedeu a vora Monte seria certa-mente muito difcil dar prioridade ao melhoramento dos Servios Prisionaisquando, a todo o momento, surgiam tantas necessidades urgentes. Aeste respeito so elucidativas as palavras de Francisco de Almeida, es-critas em 1834 (135).

    Ainda em 1920, um ministro da Repblica apreciava da forma maissevera o estado de boa parte das cadeias (136), e so claras as pginasdo relatrio sobre as nossas prises elaborado em 1939 pelo Prof. Be-leza dos Santos (137), ento presidente da Comisso das ConstruesPrisionais. Eu prprio escrevi a esse respeito em 1956 palavras dasquais resulta que o problema estava longe de se poder considerar so-lucionado (138).

    Tambm o regime interno parece no ter registado grandes alte-raes.

    O quadro que Camilo Castelo Branco nos pinta da vida na Cadeiada Relao do Porto, na poca em que por ali passou (139), no diferemuito das descries de Joo Baptista da Silva Lopes relativamente aoque, anos atrs, se verificava no Limoeiro e no Forte de S. Julio daBarra (140), descontadas, como se salientou, as retaliaes a que acondio de malhados dava lugar em tempo de to exacerbadas pai-xes partidrias.

    Assim, tambm nas Memrias do Crcere a cada passo surgem astenebrosas figuras dos juzes das prises ou das salas, nomeados entreos mais faanhudos presos, nicos capazes de manter a ordem nosseus domnios (141); surge a explorao, exigindo-se dos reclusos, paraalm da carceragem oficial, pagamentos suplementares para obterem

    (135) Anexos, documento n. 6.(136) Anexos, documento n. 7.(137) Anexos, documento n. 8.(138) Anexos, documento n. 9.(139) Camilo esteve internado na Cadeia da Relao do Porto entre 9 e 16 de Outu-

    bro de 1846, por motivos polticos, e entre 1 de Outubro de 1860 e 16 de Outubro de1861, pronunciado pelo crime de adultrio.

    (140) Joo Baptista da Silva Lopes, por motivos polticos, foi preso no Algarve em24 de Maio de 1828, deu entrada no Limoeiro a 26 de Junho do mesmo ano, foi removidopara S. Julio da Barra em 11 de Abril de 1829 e libertado em 25 de Julho de 1833.

    (141) Camilo, loc. cit., captulo XVI, pgs. 145 e 147.

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    melhor tratamento; surge a descarada venalidade, chegando-se ao pontode o carcereiro vender os lugares de juzes das prises a quem, depois,faria pagar caro aos que lhe ficavam sujeitos o dinheiro assim despendido(142); surge a promiscuidade, s tardia e parcialmente corrigida quantoa menores, mas que aos domingos e dias santos se traduzia no recreioconjunto de homens, mulheres e crianas (143).

    As visitas, no nmero das quais se incluem as mulheres, as amantese as criadas, chegavam logo depois da alvorada, por vezes acompanha-das de crianas, podendo entrar nos quartos particulares e nos chama-dos quartos da malta (144), embora mais tarde essa autorizaofosse restringida s mulheres legtimas (145).

    Isto explica como, depois do casamento de um preso com umapresa que se conheceram na cadeia, esta, ainda reclusa, tivesse dado luz uma criana. O marido, j em liberdade, deixou de poder visitar amulher presa, por se tratar de um cadastrado! (146).

    De resto, Ayres de Gouveia afirma que aos sbados era permitida acomunicao carnal com as mulheres ... junto dos companheiros (147).

    Era afinal uma antecipao das visitas conjugais, to reclamadas epraticadas em muitos pases da Amrica Latina.

    Verificava-se tambm a livre circulao dentro da cadeia, pelo me-nos de alguns presos, e at a possibilidade de se realizarem ceias nosquartos com pessoas livres (148).

    Camilo gozava, alis, de um regime muito especial. No s lhe atri-buram, logo que isso foi possvel, o melhor quarto, onde tinham estadoo conselheiro Gravito e o duque da Terceira, como lhe no fechavam aporta nem batiam s grades, para o no perturbar, Tinha consigo largabiblioteca, que utilizava para o seu labor literrio, circulava livrementeno estabelecimento, falava com quem queria, o que lhe permitiu coli-gir as histrias consignadas no seu livro. Por portaria de 24 de Abrilde 1861, subscrita pelo Ministro da Justia Conselheiro Alberto Antnio

    (142) Camilo, loc. cit., captulo IX, pg. 112.(143) Camilo, loc. cit., captulos VI, pg. 83, X, pg. 117, XI, pg. 121, XXIV, pg. 42.(144) Ayres de Gouveia afirma que quando visitou a Cadeia Civil do Porto havia: no 1.

    piso cinco enxovias (uma para mulheres); no 2. piso trs salas (duas para homens e umapara 6 mulheres) e dois quartos individuais; no 3. piso treze quartos de malta, encerrando24 pessoas, e duas enfermarias (uma para mulheres). Resenha das Principais Cadeias daEuropa, pg. 351. Anexos, documento n. 4.

    (145) Camilo, loc. cit., captulos II, pg. 117, XI, pg. 121, XIII, pg. 134.(146) Camilo, loc. cit., captulo XXIV, pg. 43.(147) Ayres de Gouveia, loc. cit., pg. 352.(148) Visconde Ouguellar loc. cit., Camilo, loc. cit., captulos XII, pg. 125, e XVIII, pg. 16.

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    Morais de Carvalho, foi autorizado, atento o estado de sade, a sair apasseio, concesso que largamente aproveitou, por vezes, como ele prprioconfessa, encaracolando um cavalo por essas caladas do Porto, ondenem todos os cavalos se encaracolavam. Foi certamente graas a essaautorizao que pde ir jantar com o seu amigo Dr. Jos Cardoso Vieirade Castro hospedaria onde este pernoitava (149).

    A generalidade dos presos estava, porm, em enxovias, para as quaisse entrava por um alapo, ou em salas que, no dizer de Camilo, ocu-pavam situao interposta aos quartos de malta e s enxovias (150).

    Quando o preso no podia ocorrer sua sustentao recebia umcaldo e broa, fornecidos pela Santa Casa da Misericrdia, que tambmtratava os doentes numa enfermaria a seu cargo (151).

    S muito depois de 1955 a Misericrdia deixou de custear as despe-sas com esta enfermaria.

    Do nvel de vida nas cadeias pode facilmente ajuizar-se por artigoescrito por Ea de Queirs em Julho de 1872, onde se consigna: Dentretantas faltas das cadeias a falta de espao, a falta de ar, a falta depessoal, a falta de segurana, a falta de asseio, a falta de alimento, afalta de moral, a falta de higiene queremos destacar, como diamantede um colar, a falta de roupa, e termina afirmando que na ltima levade presos para o degredo, a 5 de Junho iam todos em trapos, algunsquase nus (152).

    (149) Alexandre Cabral, Camilo Castelo Branco, Ed. Terra Livre, pgs. 150 e 151.Camilo, loc. cit., captulos II, pg. 56, e XII, pgs. 125 e 126.

    (150) Camilo, loc. cit., captulo XIII, pg. 134.(151) Camilo, loc. cit., captulo VI, pgs. 81 e 84.(152) Ea de Queirs, Uma Campanha Alegre, 2. vol., captulo XXVI.

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    III

    EVOLUO LEGISLATIVA

    As primeiras providncias e o Regulamento Provisrio dasCadeias de 1843

    As providncias legais tomadas no incio de regime liberal sobre aboa ordem e disciplina nas cadeias no foram muitas nem muito exten-sas (153). Limitaram-se a determinar a subordinao hierrquica dosservios e a regulamentar as competncias das diferentes entidadespara visitar leia-se inspeccionar os estabelecimentos.

    Para alm da limpeza e conservao do edifcio, da disciplina dosreclusos e da forma como o carcereiro devia exercer as suas funes, ainspeco incidia especialmente sobre o critrio de distribuio dos pre-sos pelas diferentes divises, legalidade das capturas, regularidade dassituaes prisionais e normalidade do andamento do processo. Servia tambmpara suscitar a rpida remoo para Lisboa dos condenados a degredo.

    Cumpria ao Ministrio Pblico determinar quais os reclusos que de-viam ser considerados pobres para receberem o caldo da Misericr-dia. Tudo assuntos j regulados na anterior legislao (154).

    preciso chegar a 1843 para, com a aprovao do RegulamentoProvisrio da Polcia das Cadeias de 16 de Novembro, aparecer umdiploma que, de uma forma mais completa, contemplasse um conjuntode matrias do maior interesse para os servios.

    Este diploma, seguindo orientao que de longe vinha (155), subordi-nava o servio das cadeias Magistratura Judicial, sem prejuzo das

    (153) Os Decretos n.os 18 e 19, de 6 de Setembro de 1826, que criaram uma comisso encar-regada de inspeccionar todas as cadeias e de elaborar um relatrio propondo as providncias queachasse necessrias e que proibiram as prises subterrneas; a Reforma Judiciria de 1832; a NovaReforma Judiciria de 1837; a Novssima Reforma Judiciria de 1841; o Regimento do MinistrioPblico de 1835; os Regulamentos das Cadeias de 20 de Novembro e 20 de Dezembro de 1839.

    (154) Ordenaes Afonsinas, livro 1, ttulos V, n. 24; VII, n. 1; X1, n. 19; XII, n.os 1 e 2;XXXII, n.os 1 e segs., e XXXIII. Regimento dos Carcereiros de 28 de Abril de 1681, OrdenaesFilipinas, livro I, ttulos VII, n. 8; XXII, n. 6; XXXIII; LXV, n.os 19, 37 e 74; LVIII, n.os 14, 20e 36; livro V, ttulo CXIX.

    (155) J as Ordenaes Afonsinas (livro I, ttulo XXIII, n. 22) cometiam aos corregedoresdas comarcas [...] faber as prifoes de cada huu lugar em que guardam os prezos fe fom quaeescumpre de guifa, que os prefos poffam hy feer bem guardados [...] E devem fazer, que os homees,que ouverem de guardar as prifoes fejam bos, e de boa fama, e arreigados terra, e de boscoftumes, e deve-os caftigar que guardem mui bem os prefos, que lhes derem, e que fejam certos,que fe lhes fogirem, que lhes darom por ello grave pena; e os que affim nom fizerem, deem-lhesa pena que o direito manda.

  • 50BMJ 430 (1993)

    funes atribudas ao Ministrio Pblico e s Autoridades Administra-tivas, como se dispunha nos Decretos de 20 de Novembro e 20 deDezembro de 1839, expressamente considerados como parte integrantedeste Regulament