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O IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS NA IMPORTAÇÃO POR
PESSOA FÍSICA PARA USO PRÓPRIO
Rainey Pacheco Lopes
RESUMO
O Supremo Tribunal Federal tem entendido que as pessoas físicas que importam produtos para uso
próprio não podem ser oneradas pelo imposto sobre produtos industrializados em função de não ser
possível a aplicação do princípio da não-cumulatividade. A análise das implicações da não-
cumulatividade passa, então, por saber quais as condições para creditamento e, em havendo, os
requisitos para aproveitamento desses créditos. Essas questões são objeto de repercussão geral.
Palavras-chave: Importação por pessoa física. IPI. Não-cumulatividade.
ABSTRACT
The Supreme Court has held that persons who import products for personal use can not be
encumbered by industrialized products tax as a function of not being able to apply the principle of
non-cumulative. The analysis of the implications of non-cumulative is about knowing what the
conditions for crediting and, upon the requirements, for utilization of these credits. These issues are
the subject of general repercussion in Brazilian Supreme Court.
Keywords: Import by individuals. IPI. Non-cumulative.
1
1 INTRODUÇÃO
A leitura do art. 153, IV, da Constituição Federal de 1988 (CF) não permite extrair de
imediato qual seria a hipótese de incidência do imposto sobre produtos industrializados (IPI). Se
conjugarmos esse dispositivo com o seu § 3º, II, poderíamos dizer apenas que se trata de imposto
sobre operações com produtos industrializados.
Haveria, portanto, necessidade de o legislador infraconstitucional complementar a
estrutura impositiva mínima (regra-matriz)1, definindo não só o critério temporal de incidência e os
consequentes sujeitos passivos, base de cálculo e alíquota.
O Código Tributário Nacional (CTN), por sua vez, previu que o critério temporal de
incidência seria o "desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira" (art. 46, I). Já como
consequente teríamos que os sujeitos passivos seriam, além dos industriais e seus fornecedores, os
importadores e os a eles equiparados (art. 53).
Voltando à CF, temos como caracteres inerentes a esse tributo a seletividade (art. 153, §
3º, I), a não-cumulatividade (art. 153, § 3º, II) e a não incidência quando se trate de exportação (art.
153, § 3º, III).
Por sua vez, o modelo tributário do imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (ICMS), difere do IPI
pelo fato de a seletividade ser uma opção para o legislador e o sujeito ativo ser cada um dos estados
federados e, não, a União.
No entanto, dada a similaridade quanto à não-cumulatividade entre ambos os impostos, o
Supremo se apoiou em precedentes sobre a desoneração do ICMS na importação por pessoa física
para uso próprio2, para considerar que deveria haver desoneração, também em relação ao IPI, em
respeito ao princípio da não-cumulatividade.
Poderíamos dizer, então, que o Supremo partira de 2 (duas) premissas: não haveria
apropriação de créditos na compra ou, em havendo, não haveria aproveitamento do crédito na
revenda. Em quaisquer desses casos haveria desrespeito à não-cumulatividade.
Desdobremos, então, a problemática em 2 (duas) análises: saber se o contribuinte do IPI
na importação pode ser um não-comerciante de produtos industrializados e, em caso afirmativo,
quais as implicações no âmbito da não-cumulatividade.
1TORRES, 2009, p. 377.2Ver o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário (RE) 255.682/RS, Relator Ministro Carlos Velloso, julgado aos 29.11.2005 pela 2ª Turma.
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2 SUJEITOS PASSIVOS DO IPI
Primeiramente, por também não ser cumulativo, façamos um paralelo com o contribuinte
do ICMS.
No Recurso Extraordinário (RE) 203.075/DF, julgado aos 5 de agosto de 1998 pela 1ª
Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), considerou-se que "não sendo comerciante e como tal
não estabelecida, a pessoa física não pratica atos que envolvam circulação de mercadoria".
Entendeu-se que a redação original do art. 155, § 2º, IX, "a", da CF permitiria a
oneração pelo ICMS na importação apenas de comerciantes, já que no critério material de incidência
desse tributo se exigiria que houvesse operações com "mercadorias".
Voto do então Ministro Néri da Silveira no citado RE resume que o contribuinte deveria
pretender realizar o comércio com a mercadoria importada para que pudesse haver ICMS na
importação3:
Esse é o contribuinte, em princípio, do ICMS. Inclui-se, entre os contribuintes do imposto, o
importador, mas, "pessoa física ou jurídica, que realize operação de circulação de mercadoria".
No entanto, diferentemente do que fizera em relação ao ICMS, o constituinte não entrou
em detalhes acerca do aspecto material de incidência do imposto sobre produtos industrializados: se
a tributação recairia sobre insumos, produtos semielaborados, já totalmente acabados ou se
precisaria ser mercadoria.
Bastou, para o constituinte, que houvesse operações realizadas com "produtos
industrializados" (CF, art. 153, IV conjugado com o § 3º, II).
A importação, por se tratar de operação com produto industrializado, poderia, em
princípio, ser tida como contida no critério material de incidência mais abrangente do IPI: realizar
operações com produtos industrializados.
Por essa razão, do ponto de vista da definição do contribuinte do IPI, é harmônico com
a CF o art. 51 do CTN que define também o importador (qualquer que seja, inclusive o "equiparado
legalmente") e, não apenas, o industrial e o comerciante fornecedor como contribuintes.
3O entendimento foi confirmado no RE 298.630/SP, Diário da Justiça (DJ) de 09.11.2001, Relator Ministro Moreira Alves, então da 1ª Turma.
3
A polêmica maior surge, no entanto, quando o importador não é contribuinte do IPI,
devido ao fato de não ser nem industrial, nem fornecedor, fator que impediria o aproveitamento de
eventuais créditos, o que, em tese, desrespeitaria o princípio da não-cumulatividade.
3 A NÃO-CUMULATIVIDADE NO ÂMBITO DO IPI
Considerando o art. 153, § 3º, II da CF, Torres diz haveria 3 (três) requisitos para que
pudesse haver a aplicação da não-cumulatividade por meio do aproveitamento do crédito4.
O crédito é físico, de tal modo que somente as mercadorias efetivamente empregadas na
produção poderiam gerar o direito ao crédito condicionado.
O crédito é real, pois somente o que fora cobrado do adquirente a título de IPI poderia
ser aproveitado na operação subsequente.
Por fim, o crédito só é aproveitável quando haja oneração do produto na saída5.
Havendo débitos e créditos, ocorreria a compensação financeira6.
Veja-se que, segundo Torres, não importa se a desoneração ocorreu na aquisição ou na
venda. Se houve desoneração na aquisição dos insumos ou na venda do produto resultante, não seria
cabível falar em apropriação de créditos ou em seu aproveitamento.
Em sentido diametralmente oposto se encontra Paulo de Barros Carvalho7, segundo o
qual seria inerente à efetivação da não-cumulatividade o aproveitamento de créditos mesmo que se
tratasse da aquisição de insumos não tributados, isentos ou com alíquota zero.
Conforme Torres, seria impossível ocorrer cumulatividade numa única incidência8 do IPI,
tal como se daria na importação para uso próprio por pessoa física.
O IPI devido pelas pessoas naturais na importação de bens que não fossem mercadorias,
transformar-se-ia em custo já que, tratando-se de consumidor final, não haveria uma nova etapa na
cadeia econômica de "operações com produtos industrializados". Não haveria como surgir, então, o
chamado "efeito cascata" que o constituinte procurou evitar.
Tanto a apuração de crédito na aquisição de insumos não tributados, isentos ou com
alíquota zero, quanto o aproveitamento de crédito quando ocorra venda de produto não tributado,
4TORRES, 2009, p. 377.5Em sentido diverso, Torres cita o entendimento do Supremo expresso no RE 212.484/RS, DJ de 27.11.1998.6TORRES, 2009, p. 384.7CARVALHO, pp. 142/166.8TORRES, 2009, p. 384.
4
isento ou com alíquota zero estão com repercussão geral no Supremo.
Inicialmente o Supremo vinha decidindo ser possível se apropriar dos créditos em caso
de aquisição de insumos desonerados, conforme julgado no RE 212.484/RS9. Contudo, o Supremo
não tardou em julgar em sentido inverso, como se pode constatar na ementa do RE 353.657/PR,
publicado aos 7 de março de 2008:
IPI - INSUMO - ALÍQUOTA ZERO - AUSÊNCIA DE DIREITO AO
CREDITAMENTO. Conforme disposto no inciso II do § 3º do artigo 153 da
Constituição Federal, observa-se o princípio da não-cumulatividade compensando-se o
que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores, ante o que
não se pode cogitar de direito a crédito quando o insumo entra na indústria considerada
a alíquota zero. (...)
Finalmente, essa geração de créditos nas aquisições de produtos desonerados voltará a
ser discutida no STF no Recurso Extraordinário 590.809/RS, agora sob o regime de repercussão
geral.
A questão de se aproveitar créditos obtidos nas aquisições quando não haja tributação na
venda é objeto do RE 562.980/SC, pendente de julgamento, mas também com repercussão geral
reconhecida.
A discussão está limitada aos fatos geradores ocorridos antes da vigência do art. 11 da
Lei 9.779/1999, tendo em vista que esse dispositivo admitiu o creditamento a título de, numa visão
da Fazenda Nacional, benefício fiscal.
4 A CONSIDERAÇÃO DAS CONSEQUÊNCIAS NA HERMENÊUTICA
Há um certo preconceito quando se interpretam as normas jurídicas levando-se em conta
aspectos que alguns classificam como extrajurídicos.
Julgam os defensores da tese de interpretação jurídica estrita que sempre seria possível
separar o que seria jurídico do que seria econômico, sociológico ou que tivesse outro caráter
inerente a outra ciência que não a do Direito.
9Posteriormente esse entendimento teria sido estendido pelo Supremo às aquisições tributadas com alíquota zero (RE 357.277, julgado em 2002) conforme PISCITELLI, 2011, p. 5.
5
Não cremos que a linha demarcatória seja perfeitamente clara10. Basta pensar que
aspectos estritamente biológicos, como o excesso de quantidade de álcool no sangue, estaria a
justificar a imputação de crime de trânsito. Ou, por outra, aspectos economicamente subjetivos, tais
como os previstos nos arts. 146-A, 150, § 6º, 165, § 6º, 170, incisos III a V, VII e VIII da
Constituição, orientam o intérprete no sentido de buscar uma exegese o mais harmônica possível
com o sistema, fazendo-se o caminho de uma interpretação literal até o mais alto plano de
significação tantas vezes seja necessário para uma cognição o mais perfeita possível. Tomazini
Carvalho, por exemplo, defende que tal tarefa interpretrativa, em verdade, nunca teria fim, a não ser
por um ato de vontade do exegeta11.
A própria CF é taxativa quando destaca a importância da capacidade contributiva, num
viés estritamente econômico:
Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão
instituir os seguintes tributos:
(...)
§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados
segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária,
especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos
individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do
contribuinte.
(...)
Digamos então, com Piscitelli, que a teoria pura do direito tributário proposta por
Alfredo Augusto Becker merece atualização, ainda que com um enfoque eminentemente jurídico12.
Essa atualização se deve, a uma, pelo fato de a teoria de Becher não admitir argumentos
relacionados à atividade financeira do Estado como embasamento para uma dada decisão judicial,
tendo em vista que o citado jurista não admite que o operador do direito construa a norma jurídica
ao interpretar o ordenamento13.
As consequências de cada modelo hermenêutico que teremos em conta para efeito de
analisar sua adequação ao sistema normativo, em particular na abordagem da não-cumulatividade
10PISCITELLI, 2011, pp. 249/250.11CARVALHO, 2010, pp. 254/255.12PISCITELLI, 2011, pp. 35/36 e 70.13Ibid., p. 110.
6
proposta por Carvalho14 e por Torres15, não são fáticas, dado que implicaria prever o futuro por
meros elementos probabilísticos, como adverte Piscitelli16. Se a decisão para um caso concreto é
resultado de um processo de justificação de aplicação normativa, não poderia ela mesma se
retroalimentar de dados empíricos, ainda inexistentes, para prover novo resultado17.
Então, as consequências que interessam ao presente trabalho são aquelas lógicas
decorrentes de uma argumentação jurídica18.
Piscitelli cita um exemplo de julgado do Supremo que seria digno de crítica. Tratava-se
da declaração de inconstitucionalidade dos prazos decadencial e prescricional estabelecidos nos arts.
45 e 46 da Lei 8.212/91 (RE 556.664). Ao modular os efeitos da inconstitucionalidade, o Supremo
visou proteger as contas da Previdência, em detrimento dos contribuintes que, de boa-fé, recolheram
as contribuições para a Seguridade Social quando, a rigor, já estaria decaído ou prescrito o crédito
tributário. A justificativa para a modulação dos efeitos tal qual se passou, teria sido a “segurança
jurídica”19.
Contudo, em que pese a pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o
Supremo não se utilizou do mesmo argumento (“segurança jurídica”) para modular os efeitos da
decisão em sentido contrário ao vigente enunciado da Súmula 276 do STJ (RE 377.457). Tratava-se
da revogação da isenção concedida pela Lei Complementar 70/1991 às sociedades uniprofissionais e
que viria a ser revogada não por outra lei complementar, mas pela Lei 9.430/1996, art. 5620.
Vê-se, então, que as consequências devem ser tidas em conta na tarefa interpretativa das
normas jurídicas. No entanto, o problema reside em delimitar que tipos de consequência deve-se ter
em conta na argumentação jurídica.
Piscitelli propõe que se considere as que contenham uma lógica inerente e que possa ser
universalmente aceita no meio jurídico, superando uma análise meramente formal21. Em outros
termos, a separação didática do direito tributário não poderia implicar em desconsideração da
finalidade última dos tributos, que é financiar o Estado22, sem que, com isso, seja necessário retornar
a argumentos próprios da Ciência das Finanças23.
Assim, exemplificando, se importa a destinação do tributo arrecadado (CF, art. 167, IV),
14CARVALHO, pp. 142/166.15TORRES, 2009, p. 377.16PISCITELLI, 2011, p. 22.17Ibid., p. 24.18Ibid.19Ibid, pp. 111 a 114.20Ibid, pp. 115 a117.21Ibid, pp. 120/121.22Ibid, p. 132.23Ibid, p. 182.
7
ao menos para as contribuições (CF, arts. 149 e 149-A), poderíamos dizer que há 4 (quatro) espécies
tributárias, se tivermos em conta não apenas as características da hipótese de incidência como
critério classificatório: impostos, taxas, contribuições e empréstimos compulsórios (difere dos
demais tipos por pressupor restituição)24.
No entanto, confirmando que se pode considerar diversos fatores jurídicos
constitucionalmente qualificados para efeito de interpretação, Coêlho classifica os tributos em 14
(quatorze espécies)25, já que tem em conta critérios outros que não as hipóteses de incidência, tais
como a causa e o fim da exação, a atuação estatal pertinente e a respectiva competência impositiva26.
Voltando à visão do direito tributário proposta por Piscitelli, como constituidor e
constituinte do Estado27, 2 (dois) elementos são fundamentais quando se trata de Estado
Democrático de Direito: "limites objetivos ao exercício da tributação" (tais como a anterioridade e a
irretroatividade) e os princípios que veiculam valores, embora sejam de difícil delimitação, como é o
caso do não-confisco28.
Na caracterização de um direito tributário informado pela preocupação de manutenção
de um Estado Democrático de Direito (acrescentaria outro adjetivo - Social), Piscitelli recorda como
princípios fundamentais, além da legalidade, isonomia, anterioridade e irretroatividade, o da
capacidade contributiva. Este princípio se desdobraria em objetivo, segundo eventos escolhidos pelo
legislador como aptos a concorrerem para as despesas públicas, e subjetivo (CF, art. 145, § 1º), por
meio do qual seria analisada a situação concreta do indivíduo com eventual imposição de alíquotas
progressivas, seletivas etc29.
Assim, argumentos consequencialistas que tenham em conta valores protegidos pelos
princípios anteriormente mencionados poderiam ser rotulados como "jurídicos"30, acrescentando-se a
essa visão do direito tributário, com base em seu desenho constitucional, que seu fim último é a
realização da justiça distributiva31.
O que é necessário, no entanto, é que os argumentos que possam ser tidos como
econômicos tenham aptidão para ter aceitação universal, sob pena de sempre a Fazenda se sagrar
vencedora em temas que discutam a forma em que ocorra a tributação, dada a sua condição de
financiadora das obrigações do Estado Democrático (e Social) de Direito32.
24PISCITELLI, 2011, p. 186.25COÊLHO, pp. 397/398.26Ibid, p. 369.27PISCITELLI, 2011, p. 187.28Ibid, p. 192.29Ibid, pp. 210 a 212.30Ibid, p. 213.31Ibid, pp. 214 a 217 e 236.32Ibid, p. 250.
8
5 AS INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS AO ART. 153, § 3º, II DA CF
Vejamos, então, as implicações econômicas da não-cumulatividade de acordo com
Torres, para o qual o crédito seria físico, real e com aproveitamento condicionado, enquanto para
Carvalho haveria 2 (duas) regras-matrizes distintas e independentes33: uma, relativa à apuração do
crédito34, colocando os contribuintes de fato que não fossem consumidores finais como sujeitos
ativos desse direito face ao Estado35, e, outra, relativa à hipótese de incidência, donde ocorrendo o
evento tributário identifica-se o sujeito passivo do IPI.
Imaginemos que participem do processo comercial sucessivamente o fornecedor,
produtor e atacadista equiparado, de tal sorte que o preço cobrado por um, corresponda ao custo do
subsequente ente na cadeia comercial. Consideramos nessa proposta de análise todos os
contribuintes do IPI, à exceção do importador.
Consideremos, ainda, que a alíquota aplicável seja fixa para todos os intervenientes do
ciclo econômico, o que traria a vantagem de se pressupor que a mercadoria ou não teria sofrido
alteração por um processo fabril e teria um tratamento uniforme em todos os Estados ou Distrito
Federal, caso se pensasse em ICMS, ou, caso tenha havido industrialização, o produto resultante
seria de igual essencialidade, já que teria a mesma alíquota.
Vale lembrar que se a hipótese de incidência é a comercialização de mercadoria para o
ICMS, também seria para o IPI quando se tratasse de produto industrializado, como explicitamente
admite a Constituição Federal no art. 155, XI, parte final.
Consideremos, então, para mais fácil visualização, que a alíquota aplicável seja sempre
de 10% (dez por cento) e que cada partícipe das etapas comerciais consiga agregar ao preço final
50,00 (cinquenta) unidades monetárias sobre o custo de aquisição. Esquematicamente, então,
teríamos o quadro a seguir:
TABELA 1 - Demonstração da arrecadação total de IPI na cadeia econômica.
Fornecedor Produtor Atacadista EquiparadoCusto36 Preço Custo Preço Custo Preço
80,00 100,00 100,00 150,00 150,00 200,00IPI(Déb.) IPI(Créd.) IPI(Déb.) IPI(Créd.) IPI(Déb.)
Alíquotas de 10% 10,00 10,00 15,00 15,00 20,00IPI a Pagar37: 10,00 15,00 5,00
33CARVALHO, pp. 157 a 160.34Ibid., p. 154.35Ibid., p. 150.36Perceba-se que, por ora, para o que pretendemos demonstrar, é indiferente que haja ou não creditamento de IPI nas aquisições feitas pelo fornecedor.37Resultado da diferença entre débitos (Déb.) e créditos (Créd.).
9
Adotando-se a interpretação de Torres, se apenas o produtor fosse desonerado de
tributação, o montante final a ser arrecadado pela União seria exatamente o mesmo que na hipótese
de todos serem tributados: 30,00 (trinta) unidades monetárias. Isso porque tanto o fornecedor
quanto o atacadista equiparado não teriam créditos a aproveitar, razão pela qual pagariam 10%
sobre o valor de suas vendas.
Esse efeito prejudicial, tornando sem efeito ao longo da cadeia produtiva uma isenção
dada a um dos contribuintes, também é notado por Schoueri. Esse doutrinador apresenta uma tabela
similar para demonstrar os efeitos em relação à arrecadação do ICMS, quando ocorre uma isenção
na segunda etapa do ciclo econômico38.
Por outro lado, para satisfazer a interpretação defendida por Carvalho, considerando-se
uma desoneração pessoal ou geográfica, tal como a da Zona Franca de Manaus39, para o produtor,
tomemos de empréstimo a alíquota aplicável na venda para a apuração do crédito com base no custo
que fora desonerado de IPI, resultaria, se fornecedor e atacadista fossem os únicos a sofrer a exação:
TABELA 2 - Demonstração da arrecadação total de IPI na cadeia econômica com creditamento
garantido.
Fornecedor Produtor Atacadista EquiparadoCusto40 Preço Custo Preço Custo Preço
80,00 100,00 100,00 150,00 150,00 200,00IPI(Déb.) IPI(Créd.) IPI(Déb.) IPI(Créd.) IPI(Déb.)
Alíquota de 10%41 10,00 10,00 0,00 15,00 20,00IPI a Pagar42: 10,00 -10,00 5,00
Essa aplicação da proposta de Carvalho demonstra que a União arrecadaria apenas 5,00
(cinco) unidades monetárias ao final do processo produtivo. Todavia, arrecadaria menos quanto mais
contribuintes desonerados houvesse na cadeia. Em outras palavras, os créditos se manteriam
intactos, enquanto os débitos poderiam ser reduzidos a ponto de a União nada arrecadar no ciclo
econômico ou mesmo ter que financiar a atividade do particular.
Imagine-se, por hipótese, que também o fornecedor fosse isento. Nesse caso, adotando-
se a proposta de Carvalho de apropriação garantida dos créditos de forma independente dos débitos,
a União chegaria ao ponto de financiar a atividade do particular, já que reconheceria ao produtor
38SCHOUERI, 2012, p. 382.39Tratado no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 40.40Perceba-se que, para o que pretendemos demonstrar, seria economicamente mais gravoso ainda para o Estado caso se admitisse creditamento nas aquisições do fornecedor mesmo quando estivessem desoneradas de IPI.41Alíquota aplicável nas apurações de créditos e, para o atacadista, também na apuração de seu débito.42Resultado da diferença entre débitos (Déb.) e créditos (Créd.).
10
10,00 (dez) unidades monetárias de crédito, ao passo que receberia do atacadista equiparado apenas
5,00 (cinco) unidades, enquanto o fornecedor nada pagaria.
Para evitar esse efeito só haveria uma saída para o Estado, caso quisesse manter o
benefício fiscal para contribuintes determinados sem perder receita: estipular uma alíquota mínima,
simbólica, de modo a evitar a argumentação de aquisição com isenção, alíquota zero ou não-
tributada com apuração de crédito garantida.
Se considerarmos a seletividade exigida para o IPI, pressupondo-se alíquotas
diferenciadas de acordo com a maior ou menor essencialidade do produto, os efeitos econômicos da
interpretação dada por Carvalho ganharia contornos dramáticos em termos de justiça fiscal na
tributação.
Ilustremos com um exemplo em que se distanciam na Tabela do IPI (TIPI) produtos de
máxima e mínima essencialidade. Trata-se dos produtos químicos, de alíquotas baixíssimas, e dos
cigarros, de alíquotas elevadíssimas e que levam muitos desses produtos em sua fabricação.
Gomes cita alguns componentes químicos tóxicos do cigarro43:
A fumaça do cigarro contém milhares de substâncias químicas tóxicas, incluindo:
benzeno, cádmio, chumbo, polônio radioativo, benzopireno, amônia, monóxido de
carbono e nicotina. Essas substâncias causam muitas doenças.
Dado o princípio constitucional da essencialidade no gravame do IPI (CF, art. 153, § 3º,
I), seria de se esperar que os produtos químicos em geral, imprescindíveis ao processo produtivo,
tivessem alíquotas menores.
De fato, conferindo-se as alíquotas aplicáveis a cada bem na TIPI44, constata-se que as
substâncias químicas em geral, e, em particular, as do cigarro, são gravadas com 0% (zero por
cento):
Substância Química Classificação Hipotética
Benzeno 2902.20.00
Cádmio 8107.20.10, 8107.20.20, 8107.30.00 ou 8107.90.00
Chumbo Capítulo 7
43GOMES, 2003, p. 5.44Obtida em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/Aliquotas/TabIncidIPITIPI.htm>. Acesso em: 14 fev. 2013.
11
Substância Química Classificação Hipotética
Polônio Radioativo Posição 28.44 (ver Nota 6, letra "b" do Capítulo 28 da TIPI)
Amônia 2814.20.00
Monóxido de Carbono 2811.29.90
Nicotina 2933.59.13, 2936.29.52, 2936.29.53, 3003.90.12 ou
3004.50.20
Contudo, para que na etapa seguinte o produto resultante pudesse ser pouco gravado,
ou, ainda, desonerado, deveria ser tão essencial quanto os produtos utilizados como insumos.
No entanto, de acordo com a TIPI, para os "cigarros que contenham tabaco", cuja
classificação é "2402.20.00", a alíquota aplicável é de 300% (trezentos por cento), ao passo que os
cigarros "feitos à mão" - com industrialização artesanal, portanto, cuja classificação é exceção (Ex) a
essa regra geral -, possuem alíquota menor, contudo, ainda elevada, de 30% (trinta por cento).
O objetivo da tributação pelo IPI, ao que tudo indica, é dar uma alíquota definitiva para
o produto que deixa de circular sob uma forma (insumos) para circular como outro, o produto semi-
acabado ou acabado (cigarros, no exemplo).
Por essa razão, do ponto de vista dos efeitos econômicos para o Estado, é bastante
discutível a proposta segundo a qual haveria total independência de apuração dos créditos em
relação aos débitos.
A prevalecer a apropriação (e utilização) irrestrita de créditos, a alíquota de 300%
(trezentos por cento) ou mesmo a de 30% (trinta por cento), seria tanto mais inócua quanto menor
fosse a margem de lucro da indústria tabagista, situação em que os custos dos insumos se
aproximariam do preço de venda do produto elaborado.
Consequentemente, caso pudesse haver apropriação irrestrita de créditos no âmbito do
IPI, subverter-se-ia o intuito do constituinte e do legislador de onerar mais os produtos menos
essenciais45.
Assim, aparentemente só haveria uma maneira de atender por meio do IPI aos 2 (dois)
princípios constitucionais de forma concomitante, a essencialidade e a não-cumulatividade: pressupor
que o aproveitamento de créditos, se e quando existir, só é possível quando haja oneração na etapa
anterior e, também, na subsequente.
45CARVALHO, p. 161.
12
6 O CREDITAMENTO E O APROVEITAMENTO DE CRÉDITOS
Investiguemos o sentido do vocábulo "cobrado" empregado pelo constituinte originário
no art. 153, § 3º, II. O pagamento em si seria irrelevante para o fim de se saber se há ou não direito
ao crédito, como de resto diz o CTN no art. 11846.
No entanto, celebrado o negócio jurídico da venda para o contribuinte do IPI, este
precisaria ser informado pelo fornecedor sobre qual seria o montante do crédito a se apropriar, o que
se dá, em geral, por meio de destaque na nota fiscal (Lei 4.502/1964, art. 25, caput conjugado com o
Dec. 7.212/2010, art. 251, caput). A obrigação tributária de um, estampada em documento oriundo
da relação comercial, configura o direito de outro.
Para Carvalho, no entanto, haveria independência absoluta entre a regra-matriz de
incidência tributária e a regra-matriz de direito ao crédito, ainda que não haja a informação de
quanto seria devido pelo vendedor a título de IPI (exemplifica citando as aquisições da Zona Franca
de Manaus). Em qualquer caso o contribuinte do IPI poderia se creditar.
Então, a situação de ser efetivamente exigível o tributo, em que pese o constituinte ter
sido expresso, seria irrelevante para efeito da apuração de créditos47.
Advoga que apesar da similitude na não-cumulatividade entre o ICMS e o IPI48, as
diferenças nas figuras impositivas de ambos justificariam a exceção dada com exclusividade para o
ICMS no art. 155 da Constituição Federal49:
§ 2.º O imposto previsto no inciso II [ICMS] atenderá ao seguinte: (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 3, de 1993)
...
II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações
seguintes;
b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;
...
46CARVALHO, p. 159.47Ibid., p. 160.48Ibid.49Ibid., p. 161.
13
Argui que a exceção prevista no caput desse inciso II do art. 155, § 2º da Constituição
Federal não poderia ser tida como uma disposição implícita aplicável à não-cumulatividade do IPI.
Explica que a alteração constitucional para restringir a aplicabilidade da não-cumulatividade no
âmbito do ICMS teria sido realizada no contexto da guerra fiscal50.
Há, porém, uma outra questão a ser considerada.
Se, suponhamos, a Constituição não autoriza compensação (financeira) como mecanismo
de funcionamento da cumulatividade, quando a operação anterior ou a subsequente não seja
onerada, seja porque é o que consta expressamente dos arts. 153, § 3º, II (IPI) e 155, § 2º, I
(ICMS), seja porque o efeito econômico da cumulatividade não se verificaria, a admissão de créditos
como exceção a essa regra geral se traduziria em benefício fiscal.
No entanto, o benefício fiscal no âmbito do ICMS, ao contrário do IPI, exigiria convênio
para sua implementação (CF, art. 155, § 2º, XII, "g" e Lei Complementa 24/1975). Então, a redação
dada pelo constituinte ao 2º desse art. 155, afastou a necessidade de convênio, conferindo o direito a
cada unidade federativa de decidir se concederia o incentivo ou não para o ICMS.
A Emenda Constitucional 3/1993, então, poderia ser entendida como tendo surgido para
afastar a necessidade de convênio nos casos elencados no inciso II do parágrafo 2º do art. 155 da CF
e, não, propriamente, para tornar a não-cumulatividade do ICMS diferente em relação à do IPI.
Essa interpretação se completa quando se constata que a referida Emenda também
alterou o art. 150, § 6º, tornando mais rigoroso o controle sobre a concessão de quaisquer benefícios
por parte dos entes federados, ressaltando a necessidade de os Estados e Distrito Federal
observarem justamente o "disposto no art. 155, § 2.º, XII, g".
Como os impostos federais estão fora do contexto da "guerra fiscal" travada entre os
Estados, lei ordinária no âmbito da União, nos termos da CF, art. 150, § 6º, poderia conceder o
benefício, como de fato o fez por meio da Lei 9.779/1999, art. 11.
Conclui-se, então, que agora ambos os tributos tem a mesma configuração não-
cumulativa, sendo que, tal como ocorre com a União, a isenção ou não incidência com
aproveitamento dos créditos pode ser concedida a exclusivo critério do Estado legiferante. Não há
mais necessidade de convênio para tanto.
Ambos os tributos admitem – numa interpretação literal mas, nem por isso, descabida –
que cumulatividade pressupõe tributação tanto na aquisição, quanto na venda. Se não for assim em
50CARVALHO, p. 162.
14
termos jurídicos, pelo menos seria em termos econômicos (como cumular tributos quando não haja
mais de um evento tributável?).
7 ANÁLISE DOS MÉTODOS INTERPRETATIVOS
Esperamos ter deixado subentendido que fontes, para o presente trabalho, são apenas as
normas legais vigentes introduzidas no sistema pela autoridade competente. Tendo isso em mente,
para reforçarmos a necessidade de implementação dos valores constitucionais, teçamos breves
considerações sobre os modernos tipos de interpretações jurídicas.
Primeiramente, a teoria cognitiva pressupõe que os enunciados dos intérpretes (“O Texto
T significa S”) seriam descritivos, denotando uma qualidade de verdade ou falsidade51.
A proposição é bastante discutível já que as regras de interpretação constantes do direito
positivo dão mostras que elas próprias estão sujeitas a antinomias. Basta ver que apesar de a Lei de
Introdução às normas do Direito Brasileiro, prever a revogação tácita em seu art. 2º, parágrafo 1º,
convive no ordenamento com a Lei Complementar 95/1998, que pretende que a revogação seja
sempre expressa (art. 9º, alterado pela Lei Complementar 107/2001). Ou seja, as regras
interpretativas não estão imunes à atividade exegética, não sendo garantida sua aplicação certeira,
automática.
Aliás, mesmo que se trate de regras interpretativas, que se poderia supor como tendo
caráter universal no direito, sofrem restrições quando se considera o direito positivo tributário. Para
este, consubstanciado no CTN, arts. 107 a 112, haveria regras de interpretação “específicas”.
Óbvio, então, que estas não poderiam ser aplicadas acriticamente, sob pena de se fazer
uma interpretação disforme do ordenamento52.
Guastini alerta para o que considera “mito da certeza do direito” até hoje presente nas
teses que defendem uma - e somente uma - “resposta justa”53.
Por sua vez, a teoria cética entende que os enunciados interpretativos (“O Texto T
significa S”) não seriam nem falsos, nem verdadeiros, dado que não seria possível se averiguar a
intenção dos legisladores, por serem vários e variarem, além de não ser garantido que o sentido
empregado na palavra proferida pelo emissor será o mesmo que será adotado pelo “usufrutuário”54.
Podemos pensar nas ocasiões em que o legislador define o mesmo conceito em normas
51GUASTINI, 2005, p. 139.52SCHOUERI, 2012, p. 674.53GUASTINI, 2005, p. 140.54Ibid., pp. 140/141.
15
distintas, como é o caso das definições de tributo no CTN, arts. 3º e 5º, e na vigente Lei 4.320/1964,
art. 9º, sem que com isso se possa garantir um consenso sobre a natureza jurídica do que a
Constituição denomina “contribuição” (CF, arts. 149, 149-A e, por oposição, 167, IV) ou mesmo do
empréstimo compulsório (CF, art. 148), que alguns consideram como tendo uma classificação
própria por diferirem das demais espécies no quesito restituição55 56.
Isso para não falarmos em outro aspecto essencial do tributo, a que o CTN e a própria
Constituição denomina de "fato gerador", sem distinguir sua vertente abstrata, hipótese de incidência
(usada nessa acepção pela CF, nos arts. 146, III e 154, I), da do fato em si, concreto (CF, art. 150,
III, "a")57.
Essa corrente não tem em conta certos limites objetivos que delimitam a atividade do
intérprete58. Essa é a questão central na tese de Carvalho, segundo o qual a não-cumulatividade
obrigatória tanto para o IPI, quanto para o ICMS, não seria um mero valor constitucional, sujeito a
deformações pela idiossincrasia de cada exegeta, mas um marco delimitador inafastável.
Por fim, uma terceira teoria interpretativa defende que a produção da norma pelo analista
do direito pressupõe, muitas vezes, uma decisão discricionária59. A problemática residiria, então, em
proporcionar evidências que tal e qual matéria, por um garantido sistema interpretativo, serão
identificadas quando o recurso à discricionariedade estiver permitido60.
Antes de prosseguirmos com a análise dos efeitos da proposta de afastar radicalmente o
vínculo entre a apuração de créditos e de débitos no âmbito da não-cumulatividade do IPI, façamos
uma rápida incursão por um outro método interpretativo importado por Marques para o Brasil, e
que ficou conhecido como “diálogo das fontes”61.
A ideia do método é fazer convergir na aplicação da norma jurídica a um dado caso, não
apenas a lógica de uma fonte (“mono-logus”), mas todas aquelas a cujos valores constitucionais a
análise possa ser vinculada para melhor realização destes62.
O método foi pensado inicialmente para superar a aplicação no âmbito do direito
privado, em benefício do hipossuficiente63, sobretudo o consumidor final, dos critérios clássicos de
solução de antinomias64 (presente na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro):
55Coêlho, concordando com Alfredo Augusto Becker, entende que se trata de impostos restituíveis.56COÊLHO , 2010, p. 411.57SCHOUERI, 2012, pp. 452 a 461.58GUASTINI, 2005, p. 141.59Ibid., pp. 142 a 143.60Ibid., pp. 144.61MARQUES, 2012, p. 21.62Ibid., pp. 26 a 28.63Ibid., pp. 39, 41 e 43.64Ibid., p. 33.
16
anterioridade, com a lei mais nova prevalecendo em relação a outra mais antiga, especialidade,
prevalecendo a norma específica sobre a geral, e hierárquica, norma superior prevalecendo sobre a
inferior.
O objetivo seria obter uma “visão unitária e coerente do direito privado, conforme à
Constituição”65. Em outros termos66:
Para melhor compreensão do assunto, nada mais conveniente do que recorrer a um enfoque
prático. Nesse palmar, observa-se que a Teoria do Diálogo das Fontes tem sido bastante aplicada
em situações que se sujeitam, concomitantemente, a disposições contidas tanto no Código Civil,
quanto no Código de Defesa do Consumidor. No entanto, a solução não advém dos métodos
clássicos, como especialidade, temporalidade ou hierárquico, mas a partir de uma perscrutação,
uma investigação, uma análise da situação fática correspondente em cotejo com as normas
incidentes. É desse conflito que o operador do Direito irá buscar identificar a finalidade e a
essência do bem jurídico, objeto da lide, para formular, num processo simbiótico, a solução que o
caso reclama, de acordo com os parâmetros jurídicos que regem a matéria, em sintonia com as
diretrizes Constitucionais.
Esta norma individual, aqui entendida como a solução jurídica do conflito, apesar de
reconhecer que a relação jurídica em análise é de consumo, poderá, após um juízo de
coordenação, encadeamento e complementariedade entre as várias fontes normativas incidentes,
tomar de empréstimo uma norma prevista no Código Civil e desta extrair a solução jurídica para
a relação de consumo, o que contraria os métodos clássicos de solução de conflitos.
A clássica interpretação de aplicação de lei nova produz lacunas porque a revogação
expressa é incomum67, em que pese a dita previsão do art. 9º da Lei Complementar 95/1998.
Portanto, seria raro se resolver antinomias com base no critério da anterioridade.
Por outro lado, muitas vezes a especialidade de uma lei em relação a uma matéria, como
aquela tendente a carrear recursos para os cofres públicos, não afasta outras que com ela estejam
intimamente ligadas, tais como o respeito à concorrência e a proteção ao mercado e ao emprego
internos. Há entre elas uma relação de coerência, complementariedade, subsidiariedade, havendo
eventualmente necessidade de adaptação e coordenação68.
Miragem alerta para a crítica que se faz sobre o “diálogo das fontes” por ser simples
espécie de uma mera interpretação sistemática, mas alerta sobre uma diferença substancial: a de se
65Ibid., p. 66.66VIANNA, 2011, p. 1.67MARQUES, 2012, p. 34.68Ibid., p. 35.
17
ocupar sobretudo dos resultados de sua aplicação69, devendo levar a um resultado concreto de
implementação de valores constitucionais70.
Há quem critique o método também devido ao fato de conceder ampla liberdade ao juiz,
de tal modo que pudesse escolher as normas que entendesse mais convenientes para a solução do
caso concreto, adverte Miragem71.
Contudo, o equívoco dessa premissa residiria em supor que os dispositivos
necessariamente possuem um sentido único e indiscutível, veiculados por um plexo de dispositivos
pré-determinados para aquela matéria72.
Além disso, mesmo que as técnicas clássicas de solução de antinomias levem a um
resultado facilmente obtenível, este deve implicar uma realização a mais plena possível dos valores
constitucionais73.
Assim, como as técnicas clássicas não resolvem a contento as questões que envolvam
valores constitucionais em confronto, nem mesmo as antinomias infraconstitucionais, o método pode
ser pensado também no âmbito do direito público, entre os quais se inclui o tributário.
Miragem cita um julgado que exemplifica a aplicação do "diálogo das fontes" no âmbito
tributário ou, mais precisamente, no campo processual-tributário. Foi o que se passou no STJ com o
Recurso Especial 1.184.765-PA74.
Tinha-se que o caput do art. 185-A do CTN previa que a Fazenda teria o ônus de
localizar bens do devedor tributário caso, devidamente citado, não apresentasse bens à penhora.
Somente, então, quando ficasse evidente que não haveria bens penhoráveis, é que a restrição do
dispositivo seria plenamente aplicável, quando caberia a indisponibilidade de bens (sic), sobretudo
imóveis e direitos nos mercados bancário ou de capitais.
No entanto, entendeu-se que com a vigência da Lei 11.382/2006, que alterou o art. 655,
I do Código de Processo Civil (CPC), dinheiro em espécie seria equivalente a "depósito ou aplicação
em instituição financeira", razão pela qual a Fazenda estaria dispensada de provar que não encontrara
bens penhoráveis do devedor, já que esses valores seriam os primeiros na ordem de penhora.
Ademais, a Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/1980) preveria em seu art. 1º que a aplicação do
CPC se daria de forma subsidiária75.
69Ibid., p. 91.70Ibid., p. 92.71Ibid., p. 93.72Ibid., p. 95.73VIANNA, 2011, p. 1.74MARQUES, 2012, p. 103.75MARQUES, 2012, p. 104.
18
Assim, se há várias interpretações possíveis para um dado princípio, que se aplique então
aquela que melhor se adeque ao ordenamento como um todo, não se limitando a questões
supostamente tributárias.
8 A OBSERVÂNCIA DE OUTROS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Voltemo-nos para as implicações da proposta de independência de apuração de crédito e
do débito no contexto do IPI.
A CF consagra o respeito à competitividade tributária, de tal modo que exige critérios
específicos para que determinadas atividades econômicas não sofram desequilíbrios na concorrência,
de que é exemplo seu art. 146-A.
Martins76 explica que tal objetivo é decorrente do princípio da "livre concorrência"
previsto no art. 170, IV da CF.
Tendo em conta esses valores, poder-se-ia admitir, do ponto de vista constitucional,
desequilíbrios concorrenciais, privilegiando-se o produtor estrangeiro em detrimento do nacional?
Não resolve a alegação de que não existiria ainda a lei a que se refere o art. 146-A, como
leciona Martins77. Exemplifica comentando que a ausência de regulamentação do art. 102, I, "a", da
CF, não impediu o julgamento das ações diretas segundo rito regimental próprio do Supremo. Tal
regulamentação somente adviria com a Lei 9.868/1999, ou seja, 11 (onze) anos após a promulgação
da CF e sua ausência não impedira o julgamento das referidas ações.
Recentemente, o então Ministro Cezar Peluso, relator para o acórdão, foi além na
aplicação do princípio inerente ao art. 146-A, votando em medida cautelar a favor do fechamento de
fábrica de cigarros que era inadimplente contumaz com a Administração Tributária78. O argumento
utilizado para tão drástica decisão, ainda em sede de cautelar, era a de que os demais fabricantes de
cigarro79 não conseguiam disputar o mercado em igualdade de condições, dada a alta
representatividade do IPI no preço final do produto.
Outro valor constitucionalmente a ser respeitado é o que consta do art. 219, que visa
promover a "autonomia tecnológica do País":
76CARVALHO e MARTINS, 2012, p. 11.77Ibid., p. 12.78Medida Cautelar na Ação Cautelar 1.657/RJ, Relator Ministro Joaquim Barbosa, Relator para Acórdão Ministro Cezar Peluso, julgado em 27.06.2007 pelo Pleno do STF, DJe-092 publicado aos 31.08.2007.79Relação disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/destinacaomercadorias/programanaccombcigarroilegal/estabfabropbrasil.htm>. Acesso em: 27 mar. 2013.
19
Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a
viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia
tecnológica do País, nos termos de lei federal.
No Brasil, há apenas um fabricante de aviões e outro de helicópteros, para não
pensarmos em outros produtos de alto valor tecnológico agregado.
Então, a interpretação que considera possível a apropriação de créditos e a respectiva
utilização de forma irrestrita, tanto em relação ao ICMS, quanto ao IPI, traz um inusitado efeito: é
preferível ao consumidor pátrio adquirir aeronaves ou outros produtos de elevadíssimo valor
agregado (e, portanto, mais caros) no estrangeiro para, dessa maneira, evitar a incidência de IPI.
Uma consequência dessa preferência natural pelo produto importado é prejudicar o pleno
emprego que o constituinte preocupou-se em preservar, conforme arts. 170, VIII.
O fato de o produto brasileiro competir em desigualdade de condições com o importado,
também desrespeita, a contrario sensu, um dos objetivos do constituinte quando excluiu a incidência
do IPI apenas na exportação (CF, art. 153, § 3º, III), que é, como dissemos, proteger o emprego
nacional (CF, art. 170, VIII).
Além disso, a promoção de benefícios fiscais no regime da CF é tratada como exceção
(arts. 150, § 6º e 165, § 6º), da mesma forma que a tributação diferenciada (art. 151, I)80. No caso
que estamos estudando no presente trabalho, privilegiar-se-ia o produtor externo com a não
incidência do IPI (e ICMS81) nas aquisições por importação, em detrimento da produção nacional.
O tratamento diferenciado dessa relação de consumo internacional também não
respeitaria a igualdade de tratamento que deveria haver com o consumo local (CF, art. 150, II), além
de desprestigiar a tributação com base na capacidade contributiva de cada qual (CF, art. 145, § 1º).
Martins explica que equivalência exprime mais abrangência do que comporta a
igualdade82. No caso, a diferença de posição entre produtor estrangeiro e consumidor nacional não
poderia ser tida de forma não equiparada, em termos tributários, a produtor e consumidor nacionais.
O constituinte espera não só que seja considerada a capacidade econômica nas operações
realizadas com "produto industrializado", como presume que tanto maior terá sido a tributação no
circuito econômico, quanto mais supérfluo o bem.
80PISCITELLI, pp. 195/196 e 224.81Conforme o verbete da Súmula 660 do Supremo. No entanto, a discussão deverá ser renovada com a publicação da Emenda Constitucional 33/2001, tendo em vista a redação que deu às alíneas “a” do inciso IX e “i” do inciso XII, do § 2º do art. 155 da CF.82CARVALHO e MARTINS, 2012, p. 15.
20
Do próprio Supremo podemos extrair que nem todos os princípios constitucionais
aplicáveis aos tributos precisam vir diretamente vinculados a eles. Sob o regime da repercussão
geral, entendeu-se, por exemplo, que os efeitos da progressividade (CF, art. 145, § 1º), poderiam
afetar impostos tais como o incidente sobre heranças e doações83.
Se há revelação de capacidade econômica, não se deveria afastar a incidência da
tributação porque não haverá tributação na operação subsequente ou porque não poderá haver
apropriação de um pretenso crédito. Eventos futuros não deveriam impactar a hipótese de incidência
(CTN, art. 118, II).
9 CONCLUSÕES
O critério material de incidência do IPI na Constituição é realizar operações com
produtos industrializados. No Código Tributário Nacional, admitiu-se que o critério material de
incidência incluiria a operação de importação.
Assim, ao contrário do ICMS, não se exige, para caracterizar a hipótese de incidência do
IPI, que o evento recaia sobre mercadoria ou que o sujeito passivo seja comerciante.
Tampouco se poderia falar em cumulatividade de tributos quando a etapa anterior ou a
subsequente seja desonerada. O efeito econômico da tributação em "cascata" simplesmente não se
verificaria.
Em outros termos, se a pessoa natural não será tributada quando da eventual revenda do
produto importado, não há porque presumir que devesse apropriar créditos já que, de todo modo,
não poderiam ser aproveitados.
Ainda que houvesse créditos a apropriar na aquisição, somente traria proveito à não-
cumulatividade se a etapa subsequente fosse tributável, o que não se daria na revenda de produtos
importados por não comerciantes.
O fato de o IPI não incidir na importação por pessoas físicas desrespeita outros valores
constitucionais: o equilíbrio concorrencial (art. 146-A), a proteção ao parque tecnológico nacional
(art. 219), a proteção aos empregos nacionais (arts. 170, VIII conjugado com o 153, § 3º, III), a
situação equivalente entre consumidor que adquire de produtor estrangeiro ou nacional (arts. 150, II
e 151, I), a capacidade contributiva (art. 145, § 1º), a tributação como regra (arts. 150, § 6º e 165, §
83Conforme notícia do "site" do STF: "STF reconhece possibilidade de cobrança progressiva de imposto sobre transmissão por morte" (RE 562.045). Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=230130>. Acesso em: 1º.03.2013.
21
6º), a seletividade que exaspera a tributação sobre produtos menos essenciais (art. 153, § 3º, I).
É duvidosa que uma interpretação sistemática do princípio da não-cumulatividade fosse
incongruente com outros princípios constitucionais, além de indiretamente poder levar ao
financiamento da atividade econômica particular pelo Estado.
Prevalecessem as atuais interpretações das 2 (duas) turmas do Supremo, o mercado
brasileiro restaria prejudicado para a indústria aeronáutica ou demais indústrias de alto valor
agregado e, mais grave, seria muito provavelmente mais econômico o indivíduo consumir produtos
estrangeiros com alta tributação de IPI - tais como os cigarros (alíquota de 300%) ou bebidas
(60%84) - a consumir os produzidos em nosso país, dado que haveria incidência apenas para o
mercado exclusivamente interno.
No entanto, talvez o maior apelo para se respeitar a expressão “será não-cumulativo”
que o constituinte atribuiu como característica inerente ao IPI e ao ICMS seja que se trata de um
limite objetivo. É um limite facilmente identificável, tal como o que “ninguém será obrigado a fazer
ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”85.
Assim, considerar normas principiológicas para afastar tais limites, exigiriam tamanha
demonstração de precisão argumentativa, de modo a afastar valores demasiadamente subjetivos, que
provavelmente não ofereceriam a desejada segurança jurídica. Eventual revisão da matéria por outras
pessoas poderia levar a um tratamento diferenciado dos mesmos princípios valorativos, dado cada
um ter uma ideologia própria e o ordenamento não ser um sistema inteiramente lógico-formal86.
A considerar, porém, se a cumulatividade poderia ocorrer quando houvesse desoneração
para um específico contribuinte ou se deveria ser tomada sempre em relação a todo o processo
produtivo, desprezando-se o vocábulo “cobrado”, exigido pelo constituinte para a etapa econômica
anterior.
Vencida essa questão, inclusive quanto à eventual possibilidade de o Estado financiar a
atividade do particular, restaria avaliar se a seletividade em relação ao IPI não seria um limite
objetivo a considerar também em todo esse ciclo.
De toda sorte, um tratamento científico da matéria estaria a sugerir que o Supremo
adotasse a mesma premissa em todos os julgamentos a respeito de ser possível se falar ou não em
cumulatividade quando houvesse desoneração tributária seja nas aquisições de insumos, seja na
revenda. Somente assim não haveria risco de se julgar distintos RREE, tais como os de nº
84 Para o caso da vodca ou licores, ver a classificação na TIPI para os códigos "2208.50.00" e "2208.60.00", respectivamente.85CARVALHO, 2010, p. 504.86CAPPI, 2004, p. 78/96.
22
590.809/RS e 562.980/SC, ambos sob o rito da repercussão geral, de forma desarmônica.
A partir de então, haverá mais segurança jurídica para as pessoas físicas não
comerciantes no sentido de vislumbrarem se ficariam sujeitas ao IPI na importação de produtos.
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24