Post on 08-Jan-2023
O FEMININO RETRATADO NA CENA BRASILEIRA DE ROCK’N’ROLL: UMA
DISCUSSÃO DE GÊNERO
Angélica Bomm1 Caroline Govari Nunes2
1 Considerações iniciais
A escrita deste artigo surgiu do encontro das autoras com a música e suas interrelações
com a pesquisa, com o devir social, com os desejos e também pelos afetamentos dados pelo
‘ouvir com outros olhos’ às relações da musica e sociedade, bem como da música e educação.
A ideia de relacionar a musica e as questões de gênero (feminino e masculino) construiu-se
através das inúmeras representações dos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, os
quais são representados na cena de rock brasileiro.
Dessa forma, através desta escrita, buscou-se levantar e questionar os papéis
atribuídos à mulher, ilustrando estes através das teorias de gênero, bem como através de
músicas que representam estes movimentos. Sabemos que as questões de gênero
(feminino/masculino), fazem parte de inúmeras pesquisas, havendo assim, ínfimas discussões
sobre o tema. Entretanto, sabemos também que, apesar destas, ainda estamos muito inseridos
em um movimento de (des)construção onde os papéis atribuídos ao feminino e masculino
ainda são (re)escritos, cantados, ouvidos e falados ao longo de muitas gerações.
Assim, o objetivo deste artigo está situado na perspectiva dos Estudos de Gênero, mais
especificamente pelas teorias feministas que se aproximam do pós-estruturalismo, em que as
questões das diferenças entre os sexos são compreendidas e analisadas como uma construção
social, na qual os discursos provindos dos estudos de gênero vão (re)significando esses papéis
e buscando desconstruir essa diferenciação naturalizada, mesmo que ainda vivenciemos e
produzamos essa diferenciação tão demarcada.
É verdade que hoje vivemos um período diferente sobre a leitura das relações de
gênero, mas ainda assim, implicitamente e até mesmo explicitamente, muito ainda se vem
inscrevendo em nossos corpos, sobre quem somos, quem iremos ser e de que forma seremos. 1 angebomm@yahoo.com.br 2 carolgovarinunes@gmail.com
Foucault (2005) denomina estas inscrições sobre os corpos, em como devemos ser e como nos
tornamos alvo de padrões culturais, com a noção de biopolítica, que o mesmo denominou
como uma estratégia de poder que vai direcionar e conduzir uma população, bem como
exercerá uma disciplinarização destes corpos. A noção de biopolítica liga-se ao homem
enquanto espécie, onde este tornou-se, de certa forma, alvo de intervenções políticas na
sociedade ocidental.
Estas inscrições sobre os corpos é que vão delineando modos de ser, se ver e se fazer
em nossa sociedade. A mulher, ao mesmo tempo em que vem conquistando um papel de mais
autonomia, traz consigo também todas as expectativas e modos de ser ditados pela cultura,
pela mídia e, assim, por todos os recursos e informações que atravessa nossa vida. Rita Lee,
através da sua música “Eu e Mim”, expressa as duas faces do reconhecer seu papel, onde
iremos pensar esta escrita, através das questões de gênero.
No espelho não é eu, sou mim. Não conheço mim, mas sei quem é eu, sei sim. Eu é cara-metade, mim sou inteira. Quando mim nasceu, eu chorou, chorou. Eu e mim se dividem numa só certeza. Alguém dentro de mim é mais eu do que eu mesma (LEE, R.; CARVALHO, R., 2003).
Na musica de Rita Lee e Roberto de Carvalho, podemos perceber este “eu” que
precisa do outro para compor-se, este eu feminino que busca no papel masculino sua
diferenciação, onde o “mim” consegue ser inteiro, mas o “eu” ainda é fragmentado. Em
pesquisa anterior, Bomm (2011) encontra um olhar masculino sobre a figura da mulher ainda
muito fixado na diferenciação, ou seja, um olhar pautado exclusivamente no sexo, numa
perspectiva essencialista. Esse tipo de discurso situa e diferencia homens e mulheres numa
perspectiva mais biologicista, sendo a mulher vista com características inatas e naturalizadas,
diferentes da figura masculina (ARAÚJO, 2005).
Assim, ser mulher, vivenciar este papel sem a diferenciação tão demarcada pela
diferença de sexos, ainda é muito difícil de sustentar, existindo o “eu” a partir desta cara
metade, ao mesmo tempo em que “mim” já vive os efeitos desta desconstrução feminista.
Os papéis atribuídos a homens e mulheres estão intimamente ligados e influenciados
por fatores culturais que perpassam as relações e construções de posições sociais para ambos.
Colling (2009) traz que a desigualdade nas relações de gênero tem ocupado muitos
intelectuais e políticos interessados em uma sociedade mais humanizada, pois estes acreditam
que esta questão é significativa numa construção democrática.
Os estudos de gênero, assim, surgiram com o intuito de se olhar para as diferenças
estabelecidas entre as pessoas, entendendo-as em seu contexto histórico e, portanto, sendo
(re)significadas diante do que vem se apresentando. O termo gênero questiona os papéis
construídos e naturalizados entre homens e mulheres que, por sua vez, produzem
determinados tipos de saberes e verdades. A partir desse viés, passa-se a entender que as
pessoas não são produtos de uma condição natural e, sim, de uma construção histórica
(COLLING, 2009).
É sabido que as percepções que colocam em análise as diferenças culturalmente
estabelecidas entre homens e mulheres. Apesar de toda a desconstrução proposta pelos
estudos de gênero, o sexo feminino está conquistando seu espaço, tendo em vista que a
mulher contemporânea ainda enfrenta alguns preconceitos e ainda é vista numa posição mais
passiva diante de algumas situações.
Di Ciommo (2003) acredita que a ligação entre mulher-natureza e o que se atribui a
essa concepção, onde a mesma é colocada em uma posição de inferioridade frente ao homem,
não significa necessariamente um assunto do passado, pois parece continuar a ter-se a ideia de
mulher a partir de uma questão relacionada ao meio ambiente natural, caracterizando a
atividade feminina pelo viés da reprodução. Assim, podem ser compreendidas inúmeras
questões importantes no contexto da relação conjugal sobre as causas da subordinação das
mulheres por intermédio da existência, ainda hoje, de resquícios que asseguram uma
concepção de natureza feminina.
Dessa forma, as questões de gênero e suas atribuições podem ser compreendidas
através da busca por uma ponte com os significados históricos e as questões contemporâneas
que se atravessam nas relações conjugais. Assim, pode-se olhar para essas questões e para os
conflitos ali emergidos sob um viés problematizador, identificando as atribuições e papéis
estabelecidos entre homens e mulheres dentro desse contexto.
Neste sentido, um instrumento de análise, que retrata o caminhar que estamos
vivenciando é a música, mais especificamente aqui, a cena de rock brasileiro. Para isso,
precisamos entender onde esse gênero musical surgiu e de que forma ele se caracteriza.
Considerado um estilo musical que emergiu em uma época pós-guerra e é capaz de
estabelecer vínculos afetivos, Grossberg (1997) enfatiza que a identidade do rock é mais
estrondosa do que sua dimensão sonora. O autor garante que o rock deve ser pensado, antes
de uma prática musical, como uma cultura, relacionando práticas sociais e culturais.
Assim, buscaremos encontrar fatos que dialoguem rock’n’roll e questões de gênero em
canções. Ao mesmo tempo, apresentaremos um contexto explicativo levando em consideração
os dados de realidade e época de tais letras, entendendo que não são apenas “trechos de
canções”, e, sim, uma visão social.
2 O ensejo a fez tão prendada, ela foi educada pra cuidar e servir
Como já contextualizamos anteriormente, as percepções que habitam entre as
diferenças de gênero podem estar interligadas com questões culturais fixadas nas diferenças
entre homens e mulheres numa perspectiva fisiológica, que leva em conta as diferenças
biológicas anatômicas entre os sexos. Para Scott (1995), essa mesma diferença pode ser, em
um primeiro momento, o ponto de partida para essa diferenciação, mas não é somente isso
que deve ser levado em conta quando problematizamos essas questões sob a perspectiva dos
estudos de gênero. As diferenças estão principalmente ligadas a um discurso provindo de uma
organização social, cultural e política sendo então, estas diferenças agregadas ao sexo, uma
expressão cultural.
Pode-se perceber, através de recortes históricos, culturais e midiáticos, a prevalência
de uma percepção masculina sobre as mulheres numa posição de maior passividade, diante da
resolução destes conflitos. Podemos vir a pensar que os resultados levantados na pesquisa,
conforme Bomm (2011), fazem relação à uma concepção masculina, ainda muito ligada e
atravessada por questões de gênero, sendo a figura do feminino, vista numa posição inativa,
onde com maior frequência, diante dos conflitos com seus cônjuges, buscam preservar o
cuidado com o parceiro, de forma a evitar conflitos e chegar a acordos na ocorrência destes.
Louro (1999) ao criticar a noção da sexualidade sob um viés “naturalizado”, nos leva a
pensar que estamos deixando de lado sua dimensão social, política e histórica, assim como a
construção e os discursos emergidos destes aspectos. Portanto, entender a sexualidade como
uma forma natural nos leva a pensar que todos(as) vivemos nossos corpos da mesma forma,
esquecendo-se de os diversos fatores que se atravessam e significam a sexualidade para cada
sujeito dentro de sua determinada cultura.
Portanto, essas verdades que foram se construindo e se naturalizado ao longo da
história, podem ser desconstruídas na perspectiva de gênero. Hoje a mulher tem buscado e
encontrado um espaço social de reconhecimento, como por exemplo, no mercado de trabalho,
onde a mesma desempenha as mais diversas funções, algumas antes atribuídas ao homem, e
isso pode ser devido a essa luta que se estabelece junto à desconstrução das diferenças,
questionando o papel masculino, enquanto dominante da relação. Porém, ainda assim
podemos identificar atribuições e papéis onde a mulher ainda é vista por um viés de
desigualdade em relação ao homem. Assim, para Colling (2009)
O feminino caracterizado como natureza, emoção, amor, intuição é destinado ao espaço privado; ao masculino - cultura, política, razão, justiça, poder, o público. Esta dicotomia constitui uma oposição desigual entre homens e mulheres, caracterizando a sujeição destas aos homens dentro de uma ordem aparentemente universal e igualitária (COLLING, 2009, p. 52).
Compreende-se, neste sentido, que os discursos, em partes, mudaram, mas que a
mulher tem um grande caminho ainda a seguir, uma vez que, mesmo com os avanços nos
estudos de gênero em nosso cotidiano, ainda tem-se muito que buscar, pois mesmo as
mulheres estando inseridas em contextos iguais aos homens existem as questões de
remuneração, reconhecimento e crescimento que se atravessam.
O trecho da música “Desconstruindo Amélia”, que diz “A despeito de tanto mestrado,
ganha menos que o namorado e não entende por que. Tem talento de equilibrista, ela é muitas,
se você quer saber. Hoje aos 30 é melhor que aos 18, nem Balzac poderia prever” (LEONE,
P.; MENDONÇA, M., 2009) representa uma busca pela desconstrução dos valores atribuídos
à mulher, à “Amélia”, trazendo um pouco do olhar contemporâneo, através da inserção da
mulher no mercado de trabalho. Porém, a música nos permite refletir sobre algumas
atribuições que prevalecem na representação desta, onde a mesma ainda está incutida ao papel
de cuidadora, das questões do lar e dos filhos. Assim, mesmo que esta busque se inserir no
espaço antes visto como de ordem masculina, ainda existe certa discriminação, onde a mesma
não entende porque ganha menos que o namorado, se ela tem talento de equilibrista. Ora, se
ela já tem um espaço, por que não é tão reconhecida quanto o homem?
É neste ponto que este estudo traz a questão das diferenças entre os sexos como uma
(des)construção, onde os estudos de gênero nos levam a (re)significar os papéis e assim,
questionar essa diferenciação naturalizada, mesmo que a mesma ainda habite nosso dia-a-dia.
A fim de desconstruir essa diferenciação de papéis, é importante que não deixemos de nos
atentar aos diferentes olhares sobre a mulher, retratados em nossa história. Esse olhar frente à
mulher pode ser expresso através da música: “Mulheres de Atenas”.
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, vivem pros seus maridos. Orgulho e raça de Atenas, quando amadas, se perfumam, se banham com leite, se arrumam suas melenas. Quando fustigadas, não choram, se ajoelham, pedem, imploram mais duras penas; cadenas, mirem-
se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, sofrem pros seus maridos (BUARQUE; BOAL, 1976).
“Mulheres de Atenas” retrata uma concepção sobre uma mulher frágil, que vive sua
relação conjugal como o que de mais importante possui, sendo que estas se reconhecem
apenas quando se sentem amadas, mas perdem seu orgulho facilmente e quando necessitam,
ajoelham-se, imploram. São como uma sombra, onde seu sofrimento é muitas vezes não
chorado e, por outro lado, sofrem por seus maridos, que são, de certa forma, sua identidade.
Chico Buarque e Augusto Boas escreveram essa música em 1976, quando o Brasil
estava ainda vivenciando a ditadura. Porém parece-nos pouco provável que, diante dos
discursos e representações que temos sobre as questões de gênero nos dias atuais e o olhar
sobre estas nas suas relações conjugais, ainda expressas grandes diferenças entre os sexos. É
claro que os discursos em relação a esse contexto em partes mudaram. Entretanto, os
resquícios das “Mulheres de Atenas” ainda estão muito presentes, fazendo com que a mulher
seja vista, em muitas situações, como um indivíduo mais fragilizado e com menos direitos.
Esse conceito pode ser expresso através da música já citada anteriormente, “Desconstruindo
Amélia”.
Já é tarde, tudo está certo, cada coisa posta em seu lugar. Filho dorme, ela arruma o uniforme, tudo pronto pra quando despertar. O ensejo a fez tão prendada, ela foi educada pra cuidar e servir. De costume esquecia-se dela. Sempre a última a sair. Disfarça e segue em frente, todo dia até cansar (LEONE, P.; MENDONÇA, M., 2009).
A mulher ainda tem que dar conta da casa, do filho. Ainda tem que cuidar do lar e
deixar tudo em seu lugar. Assim como as “Mulheres de Atenas”, ela foi educada para servir,
mas hoje ela disfarça e parte firme para sua luta diária de reconhecimento, lutando contra as
diferenças. Para Colling (2004) “as relações entre homens e mulheres, implicam
desigualdades políticas e sociais e configuram papéis diferenciados segundo o sexo, estão
intimamente ligadas aos princípios de hierarquia” (COLLING, 2004, p. 17).
A autora ressalta que existe, ainda, uma necessidade social de diferenciação de papéis,
entre feminino e masculino, onde mesmo não existindo sentidos reais para que se configurem
essas diferenças, além das questões biológicas naturais (que justificaram por muito tempo essa
diferenciação), os sujeitos buscam significar esses papéis, de forma que a mulher tenha que
lutar pelo seu espaço, sem que deixe de cuidar e servir o seu lar.
A partir disso podemos pensar que essa mulher que busca sair de casa, ainda necessita
cuidar dos filhos, servir seu lar. Assim, questionamo-nos, por intermédio dessas questões, se
esta mulher que ainda vivencia todas essas exigências e ao mesmo tempo busca trabalhar fora,
faz isso por uma exigência própria ligada às representações atribuídas ao papel da mulher
numa posição de passividade, do lar. Por outro lado podemos pensar que a mesma exerce
ambos os papéis porque seu par não os exerce, estando este amarrado a representações de
diferenças entre os sexos, como questiona Louro (1999), ao trazer que o olhar para as
questões de gênero de forma naturalizada nos faz entender que todas deste sexo devem
parecer-se, sendo deixados de lado os discursos e representações culturais e históricas que
foram se atribuindo a essa diferenciação.
Ao longo da história, o debate da diferença entre os sexos desenvolveu-se principalmente entre duas perspectivas: a essencialista e a culturalista. O discurso essencialista exalta a “diferença sexual” e defende a existência de uma “essência feminina”. Psicologizando ou biologizando as constatações sociológicas e culturais historicamente produzidas, realizam afirmações universalistas que aprisionam a feminilidade em modelos estruturados, ainda que ideologicamente valorizados (mulher como mãe e esposa). Supõe um feminismo universal e acaba justificando a discriminação das mulheres em função da essência feminina. Na perspectiva culturalista, as diferenças sexuais provêm da socialização e da cultura. Sob esta ótica, a superação da ordem e das leis patriarcais eliminaria as diferenças sexuais. (ARAÚJO, 2005, p. 45).
Como referido acima, ainda temos muito presente em nosso meio esse discurso
essencialista, que traz um conceito único de mulher numa perspectiva biologicista, ainda que
reconheçamos que tais valores são atribuídos por uma questão cultural e histórica, se percebe
a mulher com características naturalizadas e inatas, e a concepção de gênero, nesse sentido, é
difundida num viés de características onde a mulher possui um padrão universal do qual não
pode escapar, e claro, nessa perspectiva é ela quem vai sempre lidar com os desentendimentos
com seu par, uma vez que ocupa o lugar da pessoa sensível, que busca evitar conflitos e/ou
tenta resolvê-los.
Assim, cabe ressaltar que a percepção do homem também está imersa nesse discurso
essencialista, como o ser dominante na relação que, diferente da mulher, não percebe a
necessidade de fazer muitos movimentos diante de conflitos conjugais com esta, uma vez que
estes papéis estão incutidos à sua parceira.
O gênero ainda possui uma questão dualística onde sustenta a imagem de mulher
(ideal) para alguns homens, principalmente os machistas, sendo esta um ser para o outro
(homem) e não um ser com o outro. A mulher idolatrada por esse viés é a que se sacrifica, é
submissa, boa esposa e boa mãe, ou seja, a mulher passiva (GREGORI, 1993).
Essa ideia de mulher passiva vem de longa construção social, política e biologisita. A
história nos mostra, de forma clara, que foi a mulher quem introduziu o pecado por desejar,
por desejar o fruto proibido. Essa mulher, de acordo com o que coloca-se até aqui, sobre a
perspectiva de gênero, é a mulher que ainda teme pela relação, por seu corpo, pelo filho.
Como retratado anteriormente na música “Desconstruindo Amélia”, a mulher teve não só de
agregar uma série de papéis, como precisa manter-se feminina, trabalhar for a e cuidar do lar.
Fugir destes padrões é ainda bastante difícil, como se a mulher ainda estivesse pagando o
preço pelo fruto proibido.
Não é nada disso, alguém fez confusão! Vou dar um tempo, preciso distração. Às vezes cansa minha beleza essa falta de emoção e de sensação Quem foi que disse que eu devo me cuidar? Tem certas coisas que a gente não consegue controlar. Comer um fruto que é proibido, você não acha irresistível? Nesse fruto está escondido o paraíso, o paraíso (LEE, R., 1975).
Neste trecho de “Fruto Proibido”, podemos pensar o quão cristalizado está o papel
feminino, onde ao longo da história construiu-se a ideia de que a mulher tem de se cuidar,
conter-se. Alguns destes resquícios das representações sociais sobre a diferença entre homens
e mulheres apresentam-se nos contos infantis, os ditos contos de fada, que estão presentes nas
primeiras leituras e fazem parte da construção dessa imagem e reforçam que, mesmo diante de
tanta diferença, há o desfecho feliz, naturalizando a mulher como a donzela indefesa do lar,
enquanto o homem é o sujeito que explora o mundo, protege-a e a domina.
Para Pires (2009) a literatura pode ser compreendida como um meio de representação
social, através da qual leitores e escritores vão significando e construindo sua cultura, seja por
ordem da imaginação permitida através da obra, ou pela escrita, onde ambas comunicam
formas de ser e de entender as relações. Essas significações estão atravessadas com as
representações do escritor e também pelo que se agrega ao leitor. Assim, podem representar o
desejado, como indesejado pela sociedade num determinado momento, produzindo novas
percepções, bem como se legitimando a partir destas.
Como dito acima, as relações entre a vida real e a literatura se cruzam e se constroem.
Nessa inter-relação construímos imagens, símbolos e referências para que se possa sentir e
perceber nossas próprias relações, e assim fazer novas narrativas da temática, questões essas
que vão se modificando com o passar do tempo e as diferenças que vêm com este. Portanto, as
idealizações propostas pelos contos infantis, ou demais discursos que circulamos desde muito
cedo, podem gerar expectativas nos homens da mulher donzela indefesa, que evita conflitos e
busca a sua felicidade e de seu par.
A literatura sempre contribuiu muito para a construção sobre os discursos de
masculino e feminino. Mayer (2005) traz em seus estudos sobre as obras de José de Alencar
uma grande representação da masculinidade. A autora refere que a literatura de José de
Alencar transparece o homem como o leão e mulher como a presa, porém também considera o
homem que é seduzido por essa presa. Assim, esta mulher que conquista e é vista pela sua
feminilidade, o que se deve muito mais as seduções entre os sexos, do que um espaço que visa
à igualdade.
Não diferente nos dias atuais, salienta Strey (2004), o cinema traz a figura feminina a
partir de sua sensualidade, podendo esta estar mais perceptível do que o homem pela forma
como se representa, ou seja, a mulher de corpo perfeito, com belas curvas, exibindo-se com
este perfil e trazendo esta representação de mulher como ideal. Neste sentido, essas
representações, não diferem das que José de Alencar transpõe em sua obra3, uma vez que
estão travestidas com outras representações sociais e/ou discursos. Assim, a exemplo do
cinema, como citado acima, a mulher que não está dentro do ‘ideal’, imposto por este e outros
meios de comunicação, acaba por se sentir inferiorizada e assim, como reforça Strey (2004)
“estes sentimentos deixam as mulheres vulneráveis e prontas para serem manipuladas”.
3 Algumas notas para compor outras melodias sobre as questões de gênero
Percebemos que o rock sempre abordou questões de gênero (e outras questões
relevantes) em seu discurso. Dessa forma, esse gênero musical acaba criando uma
identificação e, além disso, estimulando seus ouvintes à reflexão. Acreditamos nesse fato com
base na premissa de que o rock, em nosso caso, o nacional, nos oferece possibilidades amplas
de pesquisa, pois encontramos particularidades nessa vertente que propõem uma gama de
valores e conceitos que se explanam em diferentes formas, reforçando e ampliando a
possibilidade de leituras e interpretações a partir do rock’n’roll.
Nesse sentido, vale afirmar que
[...] a vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo, interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Neste diálogo o homem participa todo e com toda a sua vida: com os olhos, os lábios, as
1 Cabe ressaltar aqui que não julga-se a obra completa, mas sim algumas representações expressas sobre a questão de gênero.
mãos, a alma, o espírito, com o corpo todo, com as suas ações. Ele se põe todo na palavra, e esta palavra entra no tecido dialógico da existência humana, no simpósio universal (BAKHTIN apud. CUNHA, 1997, p.71-96).
Entendemos, em congruência com o pensamento citado acima, que as canções, ao
exporem suas visões sobre o mundo em que habitam, dialogam entre os vários discursos
encontrados nos diversos meios de interação sócio-cultural. Ao mesmo tempo, realizam um
exercício que intercala posicionamentos e subjetividades, interagindo na construção e
(des)construção de conceitos no mundo em que vivemos.
Podemos, através das questões e leituras percorridas neste artigo, (re)pensar as
relações de gênero e como a música as vem representando, de forma a dar visibilidade para as
construções intelectuais e culturais sobre os papéis que vão se delineando ao longo da história.
Assim, cabe ressaltar que mesmo havendo um olhar mais intimo para as questões dos papéis
femininos, também podemos lançar-nos para os papéis masculinos e os efeitos sofridos de
forma igual por todos, diante das demarcações que prezam a diferenciação entre ambos os
sexos.
Ilustramos tal questão através da música “Ah! Se eu fosse um homem” da banda
Ultraje a Rigor, onde os efeitos do masculino e feminino representam-se de forma a
naturalizar padrões, como discorrido ao longo deste artigo, demarcando a mulher num papel
de fragilidade e o homem numa posição mais dura frente às questões da vida.
Ah, se eu fosse homem de aguentar que uma mulher é como um homem e também pensa como um homem e quer sair com outros homens e, apesar de todas as explicações antropológicas, na prática não tem explicação para o tesão e ai, meu chapa, 'cê só pode reclamar pro bispo. Ah, se eu fosse homem! Ah, se eu fosse homem de parar de me portar feito um rochedo indestrutível e infalível, inabalável e imutável previsível e impossível, um computador com músculos, um chefe, um pai, um homem com H maiúsculo, eu seria o homem certo pra você (MOREIRA, R., 1993).
Salientando a necessidade de haver ainda maiores movimentos e discussões em torno
do tema, pois, apesar dos movimentos que já vem acontecendo para desconstruir as diferenças
naturalizadas sobre o feminino e o masculino, muita coisa ainda se vivencia em novas
configurações, com menor ênfase, talvez, mas ainda assim provocando conflitos entre ambos
os sexos e firmando determinadas representações.
Assim, a mulher de fato tem buscado assumir outros papéis fora do espaço privado,
construindo novos discursos e representações ao longo da história. Porém, há necessidade de
muitos outros movimentos para desnaturalizar essas questões, uma vez que o que se agrega às
diferenças entre os sexos vai muito além. Como ressalta Araújo (2005) a maioria das
características atribuídas à diferença entre homens e mulheres não estão ligadas somente ao
sexo, mas também às questões da cultura, educação, classe social, que por sua vez,
repercutem nas expectativas frente à forma como a mulher deve se portar diante da relação
com o parceiro.
Talvez uma possibilidade de desconstrução para com a desigualdade de gêneros pode
ser a educação, uma vez que, independente do sexo, buscamos todos essa instituição. Como
ressalta Colling (2009) tanto homens e mulheres vêm se construindo historicamente, e essa
construção se refere aos papéis atribuídos a ambos os sexos, seja de ordem profissional ou de
papéis sociais. Todos estes sujeitos chegam à escola, e esta instituição possui grande
importância na construção de discursos e representações, sendo então um lugar bastante
significativo para se problematizar as questões de gênero.
Portanto, entende-se que trabalhos nesse sentido devam ser realizados, podendo
colocar em questão o que se agrega ao gênero, de forma a não naturalizar modos de
existência, permitindo às pessoas, a possibilidade de construírem e desconstruírem novos
discursos e representações. Acredita-se, entretanto, que é um assunto muito amplo e nunca
será concluído, pois trata-se de colocar em questão as relações humanas e estas sempre
estarão a ser representadas de acordo com o contexto social vivenciado no momento.
Para finalizar, achamos válido incluir o trecho de uma música de Baby Consuelo, Didi
Gomes e Pepeu Gomes (1983), intitulada “Masculino e Feminino”.
Ser um homem feminino não fere meu lado masculino. Se Deus é menina e menino, sou Masculino e Feminino. Olhei tudo que aprendi e um belo dia eu vi que ser um homem feminino não fere o meu lado masculino. Se Deus é menina e menino, sou Masculino e Feminino (CONSUELO, B.; GOMES, D.; GOMES, P., 1983).
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Maria de Fátima. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psicol. clin. [online]. 2005, vol.17, n.2, pp. 41-52. CUNHA, D.A.C. Bakhtin e a Lingüística Atual: Interlocuções. In: BRAIT, B.(org). Bakhtin, Dialogismo e Construção do Sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
BOMM, A. Diferenças entre homens e mulheres na resolução de conflitos conjugais: Discussões de Gênero. Frederico Westphalen, URI, 2011. COLLING, A. A construção histórica do feminino e do masculino. In: STREY, M. N.; CABEDA, S. T. L.; PREHN, D. R. (Orgs.). Gênero e cultura: questões contemporâneas. Coleção gênero e contemporaneidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. COLLING, A. M. Relações de poder e gênero na formação de professor@s. Revista de Didácticas Específicas, 2009, nº 1, pp. 48-62. DI CIOMMO, R. C. Maternidade e atividade profissional. 1990. (Mestrado em Sociologia) Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Araraquara. Disponível em: <http://www.scielo.br/scieloOrg/php/reflinks.php?refpid=S0104-026X200300020000500011&pid=S0104-026X2003000200005&lng=en>. Acesso em: 28 julho. 2013. FOUCAULT, M. (2005). Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes. GREGORI, M. F. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e práticas femininas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. GROSSBERG, Lawrence. Dancing in Spite of Myself: essays on popular culture. Durham/London, 1997. LOURO, G. L. (1999). Pedagogias da sexualidade. In: G. L. Louro (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. (pp. 7-34). Belo Horizonte: Autêntica. LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. MAYER, E. R. de S. “Mas eu não escrevo um romance, conto-lhe uma história”: As representações de gênero na obra de José de Alencar (Rio de Janeiro 1856-1875). Dissertação. (Mestrado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2005. PIRES, S. M. F. Amor romântico na literatura infantil: uma questão de gênero. Educ. rev. [online]. 2009, n.35, pp. 81-94. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade. Porto Alegre: UFRGS, 1995. STREY, M. N. A “criação” do corpo feminino ideal. In: STREY, M. N.; CABEDA, S. T. L. (Org.). Corpos e subjetividade em exercício interdisciplinar. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. Discografia BOAL, A.; BUARQUE, C. Mulheres de Atenas, faixa 02. In: Chico Buarque, Meus Caros Amigos. Universal Music Brasil, 1976. 1 Disco de vinil.
CONSUELO, B.; GOMES, D.; GOMES, P Masculino e feminino, faixa 01. In: Pepeu Gomes, Masculino e Feminino. CBS, 1983. 1 Disco de vinil. LEE, R. Fruto Proibido, faixa 4. In: Rita Lee & Tutti Frutti, Fruto Proibido. Som Livre, 1975. Disco de vinil. LEE, R.; CARVALHO, R., Eu e mim. In: Rita Lee, Balacobaco. Roberto de Carvalho, 2003. 1 CD. LEONE, P; MENDONÇA, M. Desconstruindo Amélia, faixa 07. In: Pitty, Chiaroscuro. Deckdisc, 2009. 1 CD. MOREIRA, R. Ah, se eu fosse homem, faixa 02. In: Ultraje a Rigor, Ó!. WEA, 1993. 1 Disco de vinil.