Post on 02-May-2023
(c) 1996 – LOU CARRIGAN
INDIAN RESERVATION
Tradução de Luiz Osvaldo Cunha
Publicado no Brasil pela Editora Monterey Ltda.
Coleção Chumbo # 121
CAPÍTULO PRIMEIRO
É preciso respeitar um homem da lei
O homem acabou de tomar o café. Pelo menos se
aquecia por dentro. Foi o que pensou. Estava acordando
junto à fogueira e seus olhos contemplavam as montanhas
cobertas de cedros que se espalhavam ao redor. Desde que
se levantara de sua cama improvisada com o cobertor
cheirando a cavalo, estivera vendo os índios. Iam aos pares,
a cavalo. Apareciam e desapareciam pelos declives da
montanha; usando um velho truque que logo foi observado
pelo viajante solitário. Queriam fazê-lo acreditar que
estavam em número maior do que eram na realidade. Mas
não deviam passar de cinco pares. Dez índios ao todo.
Doze, quando muito. Não se aproximavam. Não pareciam
dispostos a atacar. Apenas vigiavam.
— É melhor continuarem assim — resmungou o
homem. — Se chegarem mais perto, vão ficar sabendo
quem é Cain Lukas. E isso mesmo, cães danados!
Levantou-se e foi até a margem do Owyhee onde lavou a
panela, a colher e o bule de café, sempre atento às subidas
das montanhas. Os índios apareceram todos juntos,
finalmente. Os doze ao mesmo tempo. E permaneceram
imóveis em seus cavalos. Deviam estar a menos de duzentas
jardas.
Cain Lukas sacudiu os utensílios e voltou para junto da
fogueira, onde aqueceu as mãos. O dia estava bom e
prometia esquentar um pouco. Mas amanhecem gelados.
Depois de aquecer as mãos, preparou um cigarro. Colocou-
o no canto da boca e dedicou-se a arrumar o alforje.
Encilhou o cavalo e preparou-se para partir. Montou e tirou
o rifle da alça da sela, para verificar se estava carregado e
em ordem. O sol bateu no cano da arma, produzindo um
reflexo alaranjado. Se os índios não fossem tolos,
compreenderiam que aquele sujeito estava com um rifle na
mão, dizendo-lhes que sabia manejar a arma. Se não
compreendessem o aviso, pior para eles.
Cain Lukas estalou a língua e o cavalo iniciou a marcha.
Em direção ao norte. Peter Rawling seguira para lá e Cain
Lukas ia o encontro dele. Estava disposto a encontrá-lo,
mesmo que se escondesse na barriga de um búfalo. Havia
de encontrar aquele porco! E quando isso acontecesse,
diria...
Não. Não diria coisa alguma. Chamaria, apenas: Peter! E
quando Peter se voltasse, bang! Metia-lhe uma bala no
coração. Era assim que tudo se passaria. E Peter sabia. Por
isso continuava fugindo sempre em direção ao norte. O
miserável sabia o quanto Cain Lukas odiava o frio. Que
diabo! O clima do sul era muito melhor! O Texas era
quente, agradável! Peter Rawling não imaginara porém que
Cain o seguisse até às Montanhas Rochosas. Cometia um
grande erro. Porque, mesmo que todas as montanhas
estivessem cobertas de neve, Cain as percorreria, até
encontrar Peter Rawling. Estava disposto a ir até o Canadá,
se fosse necessário.
Os olhos cinzentos de Cain observaram os movimentos
dos índios. Pareciam escoltá-lo. Quatro na frente, quatro na
retaguarda e dois de cada lado. Sim, senhor! Uma
verdadeira escolta. Ou estariam pensando que o levaria
prisioneiro?
Cain Lukas sorriu. Tinha graça doze porcos de pele
vermelha conseguirem aprisioná-lo! Julgavam-no um
rapazola inofensivo e fácil de assustar. Outro erro dos
selvagens. Seria bom que se aproximassem para ver a
fisionomia de Cain mais de perto. Se tal acontecesse,
haviam de deixá-lo em paz. Porque Cain não tinha cara de
tolo, de medroso e muito menos de rapazola inofensivo.
Cain Lukas já passara dos trinta. Seus olhos cinzentos
destacavam-se no rosto bronzeado. Seus dentes alvos
ficavam à mostra quando sorria. Mas nem sorrindo Cain
Lukas se tomava simpático. Tinha sempre um ar de
crueldade e seus lábios finos formavam uma linha fria,
irônica, amarga. Há um ano, pelo menos, que não cortava o
cabelo. Barbeava-se às vezes, quando a barba começava a
incomodá-lo. Só por isso. Era alto, magro e forte. Tinha
mãos muito grandes. Seu revólver ostentava uma série de
marcas. Isso tinha um significado muito sério. Se os índios
vissem aquelas marcas, talvez mudassem de opinião a
respeito do viajante solitário. Mas para tanto precisariam
aproximar-se demais. E não seria conveniente para eles.
Cain era moreno e mau. E a descrição só podia ser esta.
Era mau, pelo mesmo motivo que era moreno. Isto é, por
acaso. Sem explicações.
No fim de uma hora de marcha avistou o acampamento
índio numa depressão de terreno. Isso não lhe agradou,
porque significava confusão e com muito mais de doze
peles-vermelhas. Contemplou as tendas que se espalhavam
lá embaixo, junto a um riacho que parecia de prata. Havia
mulheres e crianças, também.
Cuspiu de lado e sentiu-se melhor. Deu um tapinha na
montaria e prosseguiu rumo ao norte. Outra canalhice de
Peter Rawling. Faze-lo cavalgar entre os índios. Mas o
porco pagaria por tudo ao mesmo tempo, quando o
encontrasse. Que vantagem levaria o safado? Quinze dias,
no mínimo. Perdera muito tempo tratando do ferimento. O
desgraçado metera-lhe uma bala nas costas e deixara-o
caído para servir de pasto aos abutres. Não se atrevera,
sequer, a aproximar-se para ver se ele estava vivo ou morto.
Atirara do alto da colina e desaparecera.
Meia hora depois, sempre escoltado pelos doze índios,
Cain avistou um amontoado de casas. Calculou tratar-se de
um povoado conhecido pelo nome de Owyhee. Um lugar
miserável, com nome indígena. Parou a um quarto de milha
e observou as casas, de testa enrugada. Não parecia o mais
indicado para Peter Rawling se esconder. Peter só pararia
em povoados grandes e movimentados, onde fosse difícil
ser encontrado.
Owyhee era muito pequeno. Vinte ou trinta casas ao
todo. E cercada por uma paliçada. Dava a impressão de um
forte de cavalaria. Os habitantes do povoado, certamente,
temiam ser atacados pelos índios. Por isso trataram de
construir a paliçada como proteção. O enorme portão de
cedro, porém, estava aberto de par em par e não havia
soldados de sentinela. Havia índios. Muitos índios.
Cain Lukas deu outra cusparada e olhou para sua
escolta. Os doze peles-vermelhas estavam parados a alguma
distancia, atentos aos movimentos do cavaleiro que
seguiam.
O viajante solitário manobrou as rédeas e avançou com
decisão. Passou pela paliçada e entrou no povoado. Era
circular, tendo no centro uma grande esplanada. As casas
tinham mais aspecto de tendas. Um casal de índios jovens
saiu de uma delas, acompanhado por duas crianças nojentas.
Amimaram alguns sacos no lombo das mulas e saíram do
povoado. Outros índios que se encontravam nas calçadas de
tábuas contemplaram o forasteiro de um modo irritante e
inexpressivo.
Bufando, numa expressão de aborrecimento, Cain Lukas
tirou do bolso uma placa de metal e prendeu na camisa, sob
o casaco de couro. Olhou ao redor e encaminhou-se para o
prédio maior, onde dois homens brancos acabavam de
entrar. Uma placa de madeira com letras pretas pregadas na
porta informava: Rogerson — Mercadoria Variada.
Cain desmontou diante do prédio e entrou de fisionomia
contraída. Junto ao balcão outros índios esperavam que um
homem branco, muito gordo, bigodudo e de olhos astutos,
examinasse as peles de castor.
— Hei, amigo! — exclamou Cain. — Tem algo que se
beba?
— Um momento — respondeu o bigodudo, sorrindo
para o forasteiro.
— Por que devo esperar? — resmungou Cain.
— Outros fregueses chegaram antes.
— Refere-se aos índios?
— Claro.
— Os índios que vão para o inferno! Atenda-os depois.
Trate de me arranjar qualquer coisa para beber. Também
quero munição e comida. Entendido?
— Entendido. Mas terá que esperar.
Cain abriu sua bocarra cruel, rodeada pela barba negra,
mas não chegou a dizer nada. Um dos homens brancos que
entraram antes dele bateu-lhe no braço e murmurou:
— Hei, forasteiro.
— Que é? — perguntou Cain, encarando-o com um
olhar sombrio.
— Compreendemos seu ponto de vista — admitiu o
sujeito. — Mas você está em casa alheia e terá que esperar.
Todos nós esperamos a vez, pacientemente.
— Estou em casa alheia? Explique-se.
— Isto aqui é uma reserva índia.
— Não diga! — exclamou Cain, surpreso.
— Sim, senhor. Daqui a alguns dias o território será
definitivamente cedido aos índios que vivem nesta região.
São shoshones e não gostam de brigas. Por isso o governo
decidiu ceder-lhes esta reserva. Terá o nome de Duck
Valley. Devemos mostrar que os respeitamos, aguardando a
vez de sermos atendidos. De acordo com a ordem de
chegada, entende? Seja índio ou branco. Mesmo que o
branco use no peito uma placa de xerife.
— Na minha opinião, exatamente por representar a Lei,
deveria dar o exemplo — comentou o outro branco,
sorrindo.
— Tem razão — concordou Cain, arqueando as
sobrancelhas. — E preciso dar o exemplo. Mas os índios
entenderão?
— Entendem, sim — garantiu o que se dirigira a Cain
em primeiro lugar. — Eu me chamo Ganick e este aqui é
Hersholt.
Cain observou rapidamente, fixando sua atenção nos
dois revólveres que traziam à cintura. Olhando para as
prateleiras repletas de mercadoria, viu algo que o interessou
mais. Passou para trás do balcão e afastou alguns objetos,
retirando do esconderijo uma garrafa de uísque.
— Não me olhe assim — exclamou, voltando-se para o
bigodudo. — Pagarei pela bebida. Ela me ajudará a passar o
tempo, enquanto espero a vez de ser atendido, Rogerson.
Você é Rogerson, hem?
— Sim — respondeu o dono do armazém, — E peço-lhe
para não beber diante dos índios.
— Por quê?
— Eles gostam de uísque mas sabem que é proibido dar-
lhes uma gota, sequer. É melhor não beber na frente deles.
— Seria um mau exemplo, xerife — disso Garríck,
soltando uma risada.
Cain Lukas encarou os fregueses, inclusive os índios.
Seus olhos detiveram-se numa índia jovem. Muito jovem.
Devia ter quinze anos. Dezesseis no máximo. Cain
pestanejou espantado. Jamais vira algo parecido em toda a
sua vida. A índia tinha olhos amendoados e brilhantes. A
boca vermelha parecia desenhada por mãos de pintor
magistral. Duas tranças pretas caíam-lhes pelos ombros,
emoldurando o rosto suave e dourado como o sol. Usava
um vestido de couro que mal chegava aos joelhos e que lhe
moldava o corpo escultural. A jovem olhava fixamente para
Cain Lukas.
— Quer? — perguntou ele, abobalhado, estendendo a
garrafa para ela.
A índia não respondeu. Parecia não ter ouvido o
oferecimento. Cain deu de ombros. Desarrolhou a garrafa
com a ponta da faca e tomou um trago, sem tirar os olhos do
rosto alucinante da índia.
— Alguém quer um gole? — ofereceu com ar
zombeteiro.
Os índios trocaram um olhar entre si e deixaram de
prestar atenção no forasteiro. Rogerson, Hersholt e Garrick
ficaram imóveis, observando Cain, em silêncio. O dono do
armazém reiniciou a conversa, uma mistura de shoshone e
inglês, continuando a atender dois índios velhos. Garrick e
Hersholt também se desinteressaram. Cain suspirou e foi
sentar-se a um canto sobre uns sacos de milho.
— Estou procurando um homem — disse de repente. —
Chama-se Peter Rawling. Sabem se está aqui ou se passou a
caminho de outro povoado?
Ninguém respondeu. Charles Rogerson, o proprietário
da loja mais importante da reserva, acabou de atender os
índios. Os peles-vermelhas despediram-se e saíram levando
suas compras. Nenhum deles olhou para Cain. Exceto a
índia, que se voltou da porta para contemplá-lo um instante.
— Não devia ter bebido diante deles — disse Rogerson,
quando os índios saíram.
— Que se danem — riu Cain. — E então? Que me
dizem a respeito do tal Rawling?
— Por que o procura?
— Dê um palpite — murmurou Cain Lukas, apontando a
placa de metal.
— O sujeito fez alguma coisa errada?
— Claro. Passou por aqui?
— Sim. Há muitos dias.
— Quantos?
— Dez ou doze. Não me lembro.
— Seguiu para o norte?
— Não reparei.
— E vocês? — perguntou Cain, voltando-se para
Garrick e para Hersholt.
Os dois deram de ombros ao mesmo tempo, como se
houvessem combinado a resposta.
— Sabem de alguém que possa dar informações a
respeito?
— Não.
— Falta de sorte! — resmungou Cain. — Há um hotel
ou algo parecido por aqui? Gostaria de descansar alguns
dias. Não por mim. Por causa do cavalo.
— Há uma cavalariça no povoado. E um barracão ao
lado, para viajantes como você.
— Ótimo. Bem, voltarei para fazer compras antes de
partir. Por exemplo, ponha a bebida na minha conta. Ah, e
reserve outra garrafa deste uísque para mim, hem? Não é
bom, mas serve. Vou para o hotel. Se por acaso se
lembrarem de alguma coisa e quiserem colaborar com a Lei,
procurem-me. Meu nome é Cain Lukas. Eu disse Cain, mas
não gosto de brincadeiras com meu nome. Quando as
brincadeiras me aborrecem, torno-me um sujeito
desagradável.
— Mais ainda? — sorriu Garrick secamente.
— Muito mais — afirmou Cain, encarando o homem
branco. — Duvida?
Garrick mordeu os lábios e Cain, rindo, encaminhou-se
para a porta do armazém.
— Até logo — exclamou, numa despedida.
Abriu a porta, decidido a retirar-se, mas não chegou a
dar um passo, sequer. Ficou parado no umbral, diante de
uma linda jovem de cabelos vermelhos e de olhos verdes. A
surpresa deixou-o paralisado e levou dois segundos para
reagir. Tirou o chapéu e inclinou-se num cumprimento
cavalheiresco, exclamando:
— Entre, beleza. Esperarei que faça suas compras e
ajudarei a levá-las para casa. Não tenho pressa.
— Agradeço sua boa intenção, senhor — respondeu ela,
encarando-o fixamente. — Não é necessário.
Entrou na loja. Cain tomou a fechar a porta e
acompanhou-a, sorridente, acrescentado:
— Pois eu acho que é. Sabe por quê? Há muitos índios
pelas vizinhanças.
— É mesmo?
— Juro. E os índios vivem sedentos de belos corpos,
como o seu. Com sua licença, direi que possui formas
femininas capazes de fazer qualquer um se sentir feliz por
ter nascido homem. Expliquei-me com clareza?
— Demasiada, Cain — exclamou Rogerson, vermelho
de ódio. — É melhor tomar cuidado com suas palavras,
quando se dirigir à minha filha. Não é uma índia.
— Sua filha? — espantou-se Cain.
— Deixe-o, papai — disse a jovem, passando para trás
do balcão. Afastando a cortina que separava a loja do resto
da. casa, acrescentou: — O senhor Cain pretendeu, apenas,
mostrar-se amável. A seu modo. Não foi?
— Claro! Não tive outra intenção! Você é filha desse
bigodudo, hem?
— Parece — respondeu a jovem, rindo.
— Parece? Compreendo. Acha que sua mãe fez uma
brincadeira com seu pai. Hei, Rogerson, vocês não teriam
por acaso um amigo pele-vermelha que visitava muito a
família, hem? Quando você não estava em casa,
naturalmente.
— Vá para dentro, Judy — ordenou Charles Rogerson,
furioso. — A companhia do senhor Cain não é conveniente
para uma moça da sua idade.
— Papai tem razão, senhor Cain — disse ela, parando de
rir. — Suas últimas palavras não me agradaram.
— Bem, procurei usar outras que lhe agradem mais, em
nosso próximo encontro. Passarei dois dias aqui. Ou quatro.
Podemos dar umas voltas por ai. Que tal?
A jovem sorriu de um modo enigmático e desapareceu
no interior da casa. Rogerson aproximou-se da extremidade
onde Cain se encontrava e murmurou:
— Não se meta com minha filha, Cain. Não quero
arranjar complicações com um federal.
— Quem falou em complicações? Que há de mal em dar
uma voltinha? A propósito, existe algum lugar onde se
possa tomar um banho, cortar o cabelo, fazer a barba, bem?
— Não se preocupava com isso, antes — sorriu Garrick.
— Falou comigo? — balbuciou Cain, voltando-se com
um olhar sombrio.
— Não quero discussões aqui — cortou Rogerson.
— Olhe, Cain, daqui a uma ou duas semanas, as forças
de cavalaria e o delegado desta reserva indígena vão chegar.
Espero não ter que apresentar uma queixa contra você. Seu
comportamento é desagradável, sob todos os aspectos. Seria
melhor ir embora o quanto antes. Você é o tipo do sujeito
que complica a vida dos outros.
— Irei. Daqui a dois dias. Ou daqui a uma semana.
Quem sabe?
Colocou o chapéu, dando um tapinha para ajeita-lo na
cabeça e saiu da loja. Os três homens entreolharam-se num
silêncio bastante significativo.
— Se ficar aqui, vai complicar nossa vida — resmungou
Hersholt, o primeiro a falar.
— Daremos um jeito dele ir embora — sussurrou
Rogerson. — O pior é que está procurando Peter Rawling.
Talvez torne a passar por aqui, se não encontrar uma pista
nos caminhos do norte.
— Podemos acabar com ele — sugeriu Garrick.
— Não. É um homem da Lei. Isso atrapalharia nossa
vida. Precisamos ter paciência, enquanto esperamos o
carregamento. Se na ocasião de Rawling chegar com os
outros, Cain ainda estiver em Owyhee, seremos obrigados a
encontrar um modo de afastá-lo. Mas se pudermos evitar
matá-lo, melhor. Se ele for embora agora, tudo bem. Caso
contrário...
CAPÍTULO SEGUNDO
O brilho de mil estrelas
O banho morno foi um luxo gostoso. Fez a barba mas
não teve coragem de deixar que o encarregado da cavalariça
e do hotel lhe cortasse o cabelo. De qualquer modo, seu
aspecto melhorou bastante. Já não parecia um sujeito tão
desagradável. Conseguira um quarto onde havia espelho.
Contemplava a cicatriz das costas, naquele momento. A
marca destacava-se, acima da cintura. Do lado direito. Se
Peter Rawling o tivesse acertado na esquerda, a bala
atingiria o coração e ele teria morrido na hora. Depois de
examinar a cicatriz, Cain Lukas ficou parado diante do
espelho e chegou à conclusão de que era feio. Sua cara
assustava as pessoas. Quem o olhava julgava estar diante de
um foragido. Bem, paciência. Nem todos podiam ter cara de
gente boa.
Vestiu a camiseta cheirando a suor, a camisa e o casaco
de couro, depois de bater com ele na parede para tirar um
pouco o pó. Tornou a olhar-se ao espelho. Apesar de sua
fisionomia fechada, tinha qualquer coisa que atraía as
mulheres. Certamente porque as mulheres são criaturas
muito espertas.
Verificou se o revólver estava em condições de ser
usado a qualquer momento. Meteu-o no coldre e afivelou o
cinto, prendendo o suporte da arma à coxa, com uma tira de
couro. Cain Lukas sabia que seu aspecto era o de um
pistoleiro e gostava disso. O melhor para se viver sossegado
é ter um aspecto perigoso, pensava ele.
Sorriu, aproximando-se da janela. Preparou um cigarro e
acendeu-o. Arregalou os olhos ao avistar a jovem índia.
Estava parada na calçada em frente e ele seria capaz de jurar
que ela olhava para a janela de seu quarto. Isto é, para ele.
— Você é muito bonita — balbuciou Cain. — Muito
bonita.
Resolveu sair. Quando chegou à rua, tornou a ver a
jovem pele-vermelha. Estava parada na saída da paliçada
feita de troncos de cedro e parecia esperar alguma coisa.
Algum índio nojento, com certeza!
Cain deu de ombros e resolveu ir comer. O dono da
cavalariça e do hotel serviu-lhe ervilhas com ovos fritos e
um pedaço de carne tenra e sangrenta. Quando terminou a
refeição e chegou à calçada, parou surpreso. A índia
continuava junto ao portão da paliçada. Parecia ser dona de
muita paciência. Cain suspirou, achando que depois de uma
boa refeição a melhor coisa do mundo era uma boa sesta.
Voltou para o quarto, portanto, e jogou-se no catre, pegando
no sono com a maior facilidade.
Acordou pouco depois das quatro. O sol brilhava ao
longe e seus raios entravam pela janela aberta. Bocejando,
Cain Lukas sentou-se numa cadeira e enrolou um cigarro,
pensando em Peter Rawling. Haveria de encontrar aquele
safado, para enchê-lo de chumbo. E depois? Que faria após
matar Peter Rawling? Voltaria para o Texas, naturalmente.
Lá, sim, a vida era gostosa, sob um sol abrasador e feroz. O
sol do Texas não se parecia com o daquelas montanhas, que
brilhava mas não aquecia como o do sul.
Seria obrigado a procurar um companheiro melhor que
Rawling para continuar a agir. Mas quem? Depois do que
Peter fizera, Cain Lukas sentia-se incapaz de confiar em
pessoa alguma.
— Diabo! — exclamou baixinho. — A índia está ali de
novo. Parece olhar para cá.
Cain sorriu e ergueu a mão, fazendo um aceno cordial. A
índia piscou os olhos e afastou-se novamente, indo parar na
porta da paliçada, adotando mais uma vez a atitude de quem
espera por alguém. essa!
— Ora — balbuciou Cain, intrigado. — Estará
esperando por mim?
Apesar de parecer uma idéia absurda, vestiu o casaco de
couro e saiu. Minutos depois estava junto ao portão de
troncos de cedro. A índia, ao vê-lo aproximar-se, saiu do
povoado. Foi andando com passos decididos. De vez em
quando voltava a cabeça para verificar se o forasteiro a
estava seguindo.
Cain acompanhou-a, intrigado. Cruzaram com alguns
peles-vermelhas que chegaram a cavalo. De repente perdeu
a jovem de vista. Olhou para todos os lados, tentando
localizá-la, mas foi inútil. Parecia ter desaparecido no ar,
como um fio de fumaça.
Cain Lukas continuou andando em direção ao riacho.
Meia dúzia de índios galopava, um pouco afastada na outra
margem,. De certo modo era fácil compreender aquelas
criaturas. Queriam um cavalo e espaço onde pudessem
galopar à vontade sem serem incomodados. Que diabo! Não
era pedir muito!
Cain sentou-se numa pedra e ficou observando as
manobras dos selvagens. Montavam em pêlo. Sem coisa
alguma para mantê-los firmes no lombo dos animais.
Desviou a atenção dos cavaleiros e respirou fundo,
saboreando a tranqüilidade do local. Resolveu fumar outro
cigarro. Levou a mão ao bolso do casaco para pegar a
sacola de fumo. Mas o que surgiu em sua mão foi o
revólver engatilhado. Com pulso firme apontou-o para a
moita que crescia à retaguarda, dizendo em voz alta:
— É melhor sair daí! Seja lá quem for! Não gosto de
ficar nervoso.
A vegetação moveu-se e a jovem índia apareceu. Cain
enrugou a testa, sem saber o que pensar de tudo aquilo.
Ficaram imóveis, por um instante. Parados, um diante do
outro, encarando-se.
— Então, era você — murmurou ele finalmente. —
Onde se meteu, com todos os diabos?
— Estava à sua espera — respondeu ela. — Mas não
queria que eles me vissem.
Apontou para a subida da montanha. Cain compreendeu.
Ela estava esperando por ele mas não queria que os índios
os vissem juntos.
— Está bem — disse ele, descontraindo a fisionomia. —
Aproxime-se. Que deseja de mim? Passou o dia todo me
vigiando, não foi? Responda! Esteve ou não me vigiando?
A índia deu alguns passos e tomou a parar diante de
Cain. Sentou-se no chão e ficou imóvel, encarando-o com
um olhar estranho que começou a deixar o texano de mau
humor.
— Que aconteceu, pequena? — resmungou ele.— Por
que me olha assim?
— Você fez a barba — sorriu ela de repente. — Parece
mais índio. Melhor agora.
Cain Lukas sorriu como um idiota, ao ver a expressão
suave dos olhos da indiazinha. Suas pupilas brilhavam,
iluminadas por uma luz diferente, intensa, acariciante.
— Hei, vamos com calma. Não me pareço com índio, de
maneira alguma! — protestou ele com um grunhido. —
Entendeu? Somos bem diferentes. Estou sem barba, porque
me barbeei. Só isso. Os índios não têm barba mesmo.
Nunca. Ouviu bem?
— Você melhor agora.
— Não pretendo discutir. Estou melhor agora. concordo.
E pergunto: que quer de mim?
— Vai embora breve?
— Não é da sua conta.
— É — murmurou a índia, baixando os olhos para as
mãos de Cain, que se apoiavam na vegetação rasteira. — É,
sim.
— Verdade? Bem, não precisa dizer mais nada. Eu lhe
agrado, hem? É isso?
A jovem concordou com um movimento, de cabeça,
sempre com a vista baixa, fixa nas mãos musculosas e
grandes de Cain Lukas.
— Esta é boa! — exclamou ele, soltando uma
gargalhada. — Então a senhorita índia tem a audácia de
atrair um texano até a margem do rio, para dizer que gostou
dele? E daí? Que espera, agora? Que pode acontecer? Com
mil demônios! É inacreditável! Explique-se, pequena. De
que maneira eu lhe agrado?
— Vi você e gostei.
— Ah! Ótimo! Só isso, hem? Vi e gostei! Você me
parece esperta demais, amiguinha. Trate de dar o fora
daqui! Depressa! Não torna a me incomodar ou lhe
arrebento a cabeça. Entendeu?
— Não gostou de Tainara?
— Eu sei lá! Você é uma índia porca, Tainara! Isso é
tudo. E pare de olhar minhas mãos. Olhe-me na cara!
Quando uma pessoa fala, é para a cara dela que se deve
olhar.
— Sim. Eu olho.
— Melhorou!
Ficaram encarando-se fixamente, por mais alguns
instantes. Cain soltou um grunhido e recomeçou a preparar
o cigarro. Tainara voltou a olhar para as mãos dele. Em
seguida ergueu a vista para o rosto do pistoleiro.
Lentamente. Como se estivesse gravando na memória cada
traço daquela fisionomia angulosa. Cain acendeu o cigarro e
encarou a pequena, resmungando:
— Vocês são formidáveis! Por que será que as índias
gostam tanto de homens brancos, bem? Por quê? Você
sabe?
— Eu não gosto de homem branco. Gosto de você.
— Está me chamando de índio? Oh, deixe pra lá. Já vi
que não entende mesmo. Vocês não entendem coisa
alguma. Por isso são encerrados em alguns acres de terra,
lhes dão alguns cavalos e deixam-nos correr por aí. Droga!
Que diabo estou fazendo nesta maldita reserva indígena,
afinal de contas?
— Está procurando um homem.
— Ah, espertinha, bem? E parece que tem orelhas muito
afiadas.
— Você é a Lei?
Cain ficou intrigado. Tainara apontou a placa de federal
e ele compreendeu.
— Eu? A Lei? — murmurou, sem conter o riso. — Esta
é melhor ainda!
Cortou a gargalhada ao notar a expressão de espanto que
se estampou no rosto de Tainara e acrescentou apressado:
— Sim, sou a Lei. Não diga, agora, que não lhe agrado
mais e que veio apenas pedir ajuda para resolver algum
problema desses índios nojentos!
— Quer saber onde está Peter Rawling?
Cain piscou várias vezes, arregalando os olhos.
Finalmente, perguntou quase sem voz:
— Você sabe me dizer?
— Ele voltará.
— Peter Rawling voltará para o povoado? Para
Owyhee?
— Sim. Voltará.
— Como pode saber disso?
— O homem que você procura é empregado do senhor
Rogerson. Ele não lhe disse?
— Não. É um safado! Então, Peter Rawling trabalha
para Rogerson e o nojento não me disse nada! Escute aqui,
por que veio contar tudo isso?
— Você é a Lei e eu queria ajudar a Lei.
— Vejam só! Então, não é verdade que lhe agrado?
— E, sim.
— Bem. E para onde foi Peter Rawling?
— Não sei. Ele e os outros empregados do senhor
Rogerson foram comprar coisas. Quando voltarem, o senhor
Rogerson nos vende as coisas.
— Oh, compreendo. Devem ir a uma cidade importante
ou a uma estação de ferro, recolher gêneros. Está certo.
Quanto tempo você acha que Peter Rawling levará para
voltar? Dias? Semanas?
— Dias. Semanas, não. Seis dias. Oito dias. Dez dias.
— Pare. Já entendi. Pelo jeito o porco do Rogerson quis
enganar-me, hem? Claro! Não, não está claro. Afinal, eu
uso uma placa de federal. Devia ter dito a verdade a
respeito de Rawling. Por que mentiu? É perigoso mentir
para uma autoridade que procura um homem. Na certa Peter
fez alguma coisa. E ele só pode conhecer Rawling há duas
semanas. Por que complica a vida tentando encobri-lo?
Seria muito simples dizer a verdade e deixar que Peter e eu
acertássemos nossas contas. Por que Rogerson quis proteger
um homem procurado pela Lei? Diabo! Ou é tolo ou está
tramando alguma coisa, já que mentiu a um federal. Preciso
ter muito cuidado.
Calou-se mas continuou seguindo o desenvolvimento de
seu raciocínio. Tainara olhava fixamente para ele. Mas o
forasteiro parecia esquecido da presença dela. Cain Lukas
deu mais uma tragada e jogou o cigarro nas águas do riacho.
Voltou-se para Tainara, encarou-a com um olhar penetrante
e murmurou:
— Nem uma palavra sobre isso, ouviu? Ninguém deve
saber que estou informado a respeito da volta de Peter
Rawling. Se eu tiver vontade, falarei. Mas você, não. Trate
de ficar de boquinha fechada, entendeu?
— Ficarei de boca fechada.
— Muito bem. Você é uma pequena esperta, Tainara.
Estou muito contente pelo fato de me ter procurado para
contar tudo isso.
— E eu contente de estar com você
— É mesmo? Vou fazer uma confissão: também não me
desagrada olhar para você. É bonita. É índia, bem sei. Mas é
muito bonita, que diabo!
— Eu lhe agrado?
— Bastante — riu Cain. — A filha de Rogerson me
agrada mais. De qualquer modo, você também é atraente.
— Gosta mais da filha de Rogerson porque é branca?
— Claro!
— Então, vá para junto dela!
Tainara fez menção de levantar-se mas Cain, rindo,
segurou-a pelo braço, obrigando-a a sentar-se novamente.
— Espere! Vamos! Não seja bobinha, índia! As coisas
são como são. Mas você me agrada. Não compreende?
— Não.
— Não mesmo? Pois eu explico. Venha. Aproxime-se
um pouco mais — disse ele, enlaçando-a pela cintura e
puxando-a para si. — Explicarei como são essas coisas.
Olhe, se me mandarem escolher entre uma branca e uma
índia, ficarei com a branca. Mas as brancas, às vezes, são
feias. E você é muito bonita. Bem, a branca não é feia.
Muito ao contrário. Mas está longe. Por enquanto, é claro.
Veremos, quando o caso de Peter Rawling terminar, se a
ruiva estará perto ou longe. Mas ainda falta uma semana ou
mais, para isso acontecer. Logo, você e eu podemos ser
bons amigos. Que tal?
— Você e eu amigos?
— Exatamente.
— Por seis dias? Por oito dias?
— É lógico! — cortou Caiu. — Depois, adeus! Que
mais quer? Não é qualquer índia que pode ser amiga de um
branco durante uma semana inteira.
— Uma semana é pouco.
— Acha? Quanto tempo você gostaria de ser minha
amiga?
— Sempre. É, sim. Sempre.
— É, pequena, por que não pede a seu pai que lhe dê a
lua? — rosnou Cain.
— Não quero a lua. Você me agrada para sempre.
Cain analisou-a um instante, divertido e impressionado,
ao mesmo tempo. A índia se apaixonara por ele à primeira
vista. Era tão bonita, tão delicada! Pena ser pele-vermelha.
Se fosse branca, deixaria as outras no chinelo! Seria muito
mais atraente que Judy Rogerson, por exemplo. Judy
parecia uma gatinha maliciosa. Tainara, não. Parecia uma
bela mulher, com os olhos de menina.
— Bem — sorriu Cain. — Você também me agradaria
para sempre, Tainara. Mas não costumo ficar muito tempo
no mesmo lugar.
— Por quê?
— Porque não gosto de ficar sempre num lugar só.
— Também não gosta sempre de uma só mulher?
— Depende da mulher. Você me entende?
— Sim.
— Tem certeza?
— Se você quiser ficar, Tainara vai com você.
Cain Lukas esteve a ponto de mandar a índia embora.
Mas o instante de fraqueza passou logo.
Afinal de contas, ele não era um canalha? Se fosse, o
normal seria fazer canalhice. Passou a mão pela nuca de
Tainara, puxando para mais perto o rostinho cor de cobre,
quase dourado. Com a outra mão estreitou-a pela cintura.
Quando colou os lábios aos dela, esqueceu-se inteiramente
que estava beijando uma índia. Os lábios de Tainara eram
doces, macios, suaves. Seus seios eram lindos também. E os
segredos de seu amor não eram menos misteriosos ou
gostosos que os de uma mulher branca.
A tarde estava morna e silenciosa. O riacho continuava a
correr com seu murmúrio constante. Uma paz absoluta
parecia envolver a terra. Mesmo assim, os canalhas
encontram um meio de mostrar suas habilidades.
E Cain Lukas era um grande canalha.
Quando se despediram, a noite havia chegado. A
temperatura começava a esfriar. Tainara não disse coisa
alguma. Tentou levar Cain, puxando-o pela mão. Mas o
texano soltou-se com um movimento brusco a caminho de
volta para o povoado.
Quando entrou em Owyhee, alguns índios saíam da
paliçada com as mulas carregadas de sacos contendo
provisões trocadas por eles. Ninguém deu a menor
importância ao forasteiro. Cain dirigiu-se ao hotel e
trancou-se no quarto. Precisava ficar sozinho para pensar.
Não estava muito acostumado a pensar em coisas sérias mas
naquele momento era absolutamente necessário fazê-lo.
Mas que acontecerá afinal? Ela não passava de uma
índia. Por que dar importância ao fato?
Jogou-se no catre e ficou deitado, com as mãos cruzadas
sob a nuca, olhando para o teto. Se fechasse os olhos, a
fisionomia de Tainara logo apareceria em seu pensamento.
Levantou-se bruscamente, já de revólver na mão, ao
ouvir passos no corredor. Pouco depois uma silhueta
feminina recortou-se no portal, iluminada pela pouca luz
que vinha de fora.
— Senhor Cain...
— Senhorita Rogerson — balbucjou Cain, sem
conseguir disfarçar seu espanto.
Judy entrou, fechando a porta ao passar. Usava um xale
nos ombros, por causa do frio. Aproximou-se dele e
murmurou:
— Vi quando o senhor voltou. Estava à sua espera.
— Por quê?
— Notei que me tinha achado bonita — respondeu ela,
tirando o xale e jogando-o em cima da cama. —Enganei-
me?
Cain contemplou os ombros nus da jovem ruiva e o
início dos seios que parecia no final do decote ousado.
— Não — balbuciou ele. — Não se enganou. Gostaria
de ouvir-me repetir o que disse antes?
— O senhor é muito atraente. É terrivelmente homem.
Não existem muitos iguais ao senhor aqui em Owyhee. Por
isso, quando o vi, fiquei tentada a retê-lo.
— Não creio que consiga, senhorita Rogerson.
— Era o que eu temia — suspirou ela. — Vai embora?
— Sim. Daqui a seis ou oito dias. Dez, talvez.
— Fala como um índio — riu Judy. — Mas isso não tem
importância, pois sei que não é índio. Nem como os idiotas
que rodeiam meu pai. E se vai embora, melhor.
— Não estou entendendo.
Judy Rogerson ergueu os braços e enlaçou o pescoço de
Cain. Aproximou o rosto do dele e, num movimento
inesperado, beijou-o na boca. Cain afastou-se decidido e
encarou-a fixamente. Os olhos dela pareciam os de um gato.
Não. Pior. Os de um puma.
— Continuo sem entender, senhorita Rogerson. Não
pode ser verdade o que estou pensando.
— Ora, vamos, não seja tolo — sussurrou ela, beijando-
o de novo. — Se vai embora, melhor para mim. A vida aqui
é muito monótona. Nunca acontece coisa alguma. E se
acontecer, que seja com um homem que seguirá seu
caminho. Eu ficarei com minhas recordações de algumas
horas, de algumas noites. Já estou perdendo a paciência.
Sempre aqui, esperando, e nada acontece. Não posso perder
esta oportunidade. O que se passar entre nós terá a menor
importância, quando meu pai finalmente me levar para um
lugar civilizado, para bem longe deste fim de mundo cheio
de índios nojentos. Quando eu estiver em San Francisco ou
em Nova Iorque, estes momentos que passarmos juntos não
contarão mais. Para nenhum de nós.
— Pretende ir para San Francisco?
— Quando tudo terminar, meu pai será obrigado a
cumprir a palavra.
— Quando tudo terminar? O quê?
— Oh, nada que possa interessar-lhe. Coisas nossas; Por
que pensa tanto, Cain? Deve ter ficado surpreso, com minha
visita, bem sei. Mas, que diabo! Trate de aceitar o que lhe
oferecem de bom! Como o que lhe estou dando agora, por
exemplo.
— Que a leva a pensar que esteja oferecendo algo de
bom? — riu ele.
— Não seja louco. Daqui a uma hora ou duas todos
estarão dormindo. Meu pai pensa que eu já estou em meu
quarto.
— Ele pensa?
— Sim. Podemos ficar aqui, descansados.
— Claro. Principalmente eu. Vamos, pequena, trata de ir
dando o fora, sim?
— Como?
— Vá embora, gatinha. Depressa! Saia! Quando eu
quiser alguma coisa com você, irei procurá-la. Com todos
os demônios do Texas! Quem você está pensando que eu
sou?
— Cale-se! Não grite! Podem ouvir.
— Vá para o inferno! E procure outro imbecil que
depois siga seu caminho! Ninguém me usa assim, como um
par de botas, e depois me atira longe, quando não precisa
mais delas! Vamos, dê o fora, pequena!
Segurou Judy pelo braço e empurrou-a até a porta. A
ruiva deu um grito abafado e, num movimento certeiro,
ergueu as unhas, decidiu a deixar sua marca no rosto de
Cain Lukas. Não chegou a atingir seu objetivo mas
conseguiu arranhar a face esquerda do pistoleiro. Cain
assestou-lhe uma violenta bofetada, jogando-a de costas em
cima do catre.
— Fora! — repetiu, furioso. — Quando eu quiser você,
irei buscá-la.
— Quando você quiser, eu não vou mais querer você!
Cain Lukas tomou a segurá-la com firmeza e empurrou-
a para o corredor.
— Quando você me quiser eu não o quero mais —
repetiu Judy, apoiando-se à parede, para não cair de bruços
no chão.
Cain bateu com a porta e fechou o trinco, resmungando:
— Diabos! Com quem essa idiota pensou que estava
lidando?
Tomou a deitar-se, decidindo a reatar os pensamentos. A
cada minuto sentia-se mais convencido de. que precisava
pensar. Pensar muito.
Mas, ao fechar os olhos, surgiu o rosto de Tainara. Os
olhos penetrantes da índia pareciam conter o brilho de mil
estrelas. Um brilho insuportável, que deixava Cain Lukas
inteiramente cego e fora de si.
CAPITULO TERCEIRO
Noite de núpcias
Alguns moradores do povoado reuniam-se à tarde na
loja de Charles Rogerson para uma partidinha de pôquer.
Todos acharam que o forasteiro tinha cara de idiota e
dinheiro no bolso para perder. Tal pensamento passou por
suas cabeças por volta das quatro da tarde. Às seis e meia
pensavam de outro modo. O resultado de duas horas e meia
de jogo fora desastroso para eles.
Cain Lukas era de outra opinião. Tinha diante de si uma
pilha de cédulas e de moedas ganhas em quase todas as
rodadas. O que irritava os parceiros era o fato de terem
verificado que Cain não fazia trapaças com as cartas. O
forasteiro não os estava enganando. Tratava-se de sorte.
Única e exclusivamente sorte.
— Bem, devo ter ganhado mais de trezentos dólares —
exclamou Cain, rindo. — Se alguém tiver tanto dinheiro e
tanta coragem como eu, aposto tudo na carta mais alta.
Talvez algum dos parceiros tivesse tanto dinheiro quanto
ele. Mas coragem, certamente não tinha. Só um louco
aceitaria semelhante proposta.
— Muito bem — murmurou Cain, diante do silencio
total que seguiu suas palavras. — Continuaremos com a
brincadeira de apostar centavos. Eu abro. Cinco dólares. E
se alguém estiver interessado, saiba que pedirei três cartas.
Vamos, senhores! Estou facilitando os cálculos. Abro com
cinco e vou pedir três cartas. Como é? Perderam a língua?
— Está certo — resmungou um sujeito tão feio como
Cain, mas com olhar mais cruel. — Quero saber qual é o
seu jogo, Cain.
— Custarão de entrada cinco dólares.
— Tenho dinheiro. Quero duas cartas.
— Vale. Jogarei fora as três que me sobram e apostarei
mais cinco como receberei, no mínimo, três reis. Os reis são
excelentes. Quando temos alguns na mão, é claro!
Calou-se ao anotar o silêncio sepulcral que dominou a
loja. Não se ouvia o menor ruído ao redor. Como se o
mundo tivesse deixado de palpitar, de respirar. Um silêncio
incômodo, enervante, forçado. Até as mulheres que se
encontravam na outra extremidade da loja, afastadas
daquela onde bebiam os homens, se calaram de repente.
Charles Rogerson também. Todos silenciaram bruscamente.
Cain concentrou sua atenção no exterior. Também nada
se ouvia. Como se o mundo tivesse morrido naquele
instante.
— Que foi? — balbuciou.
Não obteve resposta. Pouco a pouco os olhares dos
jogadores e de todos os presentes se voltaram em direção à
janela. As mulheres reunidas na loja também olharam para a
esplanada central do povoado.
Cain resmungou qualquer coisa e pousou as cartas na
mesa. Levantou-se e foi até à janela. Mal olhou para fora,
sentiu um nó na garganta, ao verificar que não havia um só
branco na esplanada. Índios, sim. Cinqüenta ou sessenta.
Todos a cavalo, empunhando compridas lanças enfeitadas
de penas. Estavam imóveis. Nem os cavalos se mexiam.
Pareciam estátuas de bronze sob o sol morno da tarde. Além
da paliçada havia mais índios, também a cavalo. Ninguém
se mexia. Os shoshones destacavam-se, recortados contra o
fundo das montanhas cobertas de cedros. Só um imbecil não
compreendia que Owyhee estava inteiramente cercada por
duzentos peles-vermelhas, ou mais.
— Que desejam? — murmurou Cain. — Que está
acontecendo?
— Estão furiosos — disse um dos jogadores, no fim de
alguns segundos. — Não sei por que, mas estão furiosos.
Querem alguma coisa.
— Que podem querer, Jesse? — perguntou Rogerson,
aproximando-se da mesa de jogo.
— Não sei. Mas estão irritados, Charles. Querem algo
que, na opinião deles, lhes pertence. A atitude dos
shoshones é de quem foi ofendido. Pelo amor de Deus! Se
não dermos o que eles julgam ter direito, queimarão o
povoado com todos nós aqui dentro! Existem cerca de
trezentos índios no acampamento mais próximo. E perto de
três mil em toda esta reserva. Desejam algo que sabem
merecer. Alguns deles conhecem nossas leis. Sabem,
portanto, que têm direito ao que querem.
— Talvez queiram uísque — sorriu Cain.
— Não. Não é isso. Se quisessem uísque, teriam vindo
antes e nos cortado o pescoço, levando todas as garrafas que
encontrassem na loja de Charles. Não se trata de bebida.
Mostram-se pacíficos até agora. O chefe é o velho
Tabunkah. Tem mais de setenta anos. Parece uma águia
branca. Jamais abre a boca, mas seus guerreiros o
compreendem muito bem. Ele disse, em silêncio, que
desejava a paz e todos guardaram suas lanças. Agora estão
aí fora, esperando.
— Eles não têm rifles? — perguntou Cain.
— Não, não. Graças a Deus! — exclamou Jesse,
suspirando. — Se tivessem, talvez agissem de outro modo.
Michael e eu estávamos pescando perto do riacho, quando
os vimos dirigindo-se para cá. Cavalgavam em silêncio,
seguindo o velho Tabunkan. Rodearam a paliçada mas não
nos incomodaram quando nos viram entrar no povoado. Por
isso repito: querem algo a que julgam ter direito.
— Então não é uísque, porque sabem que a Lei proíbe
vender bebida alcoólica aos peles-vermelhas.
— Quem é esse Tabunkah? — sorriu Cain. — Na
melhor das hipóteses estão querendo que eu meta uma bala
na pança do velhote.
— Cuide de sua vida, Cain — resmungou Charles
Rogerson. — O problema é nosso. É preciso ir buscar
Shohorse. Ele entende esses índios como ninguém.
— Shohorse viajou. Só estará de volta daqui a duas ou
três semanas. Alguém terá que se entender com os índios.
— Posso tentar — balbuciou Rogerson, passando a
língua pelos lábios. — Verei o que deseja o velho
Tabunkah. Por favor, ninguém mostre armas. E nada de
darem tiros. Está bem claro?
Cain sorriu com ironia, enquanto os demais fizeram um
movimento afirmativo de cabeça. Charles Rogerson saiu da
loja e parou a dois metros de distância do chefe indígena.
Trocaram algumas palavras. Outro velho adiantou-se, indo
postar-se ao lado de Tabunkah. Desmontou diante de
Rogerson. A um sinal do chefe, Rogerson deu meia volta,
acompanhado pelo índio velho, e regressou ao armazém.
Quando entraram, Rogerson fulminou Cain com um
olhar homicida. Cain ficou intrigado. O homem que entrara
com o proprietário do armazém estava vestido como um
índio, mas era branco. Branco, de olhos azuis. Rogerson
apontou Cain. O velhote de cara enrugada fez um
movimento com a cabeça. Deu alguns passos, parando
diante do forasteiro e perguntou:
— Cain Lukas?
— Sim. Sou eu — resmungou Cain. — Que deseja?
— Eu me chamo Ira Jason. Sou branco como você mais
vivo com os shoshones há mais de vinte anos. Tenho
mulher e doze filhos mestiços. Minha boca não costuma
abrir-se para dizer tolices.
— Vá para o inferno, você e sua boca! Sua história não
me interessa! Você é um renegado que vive com índios e
procria mestiços.
— Desista, Cain. Não me ofendo com suas palavras —
cortou Jason. — Aprendi, há muito tempo, a ignorar o
desprezo dos brancos. Sim, sou branco e vivo com índios.
Tenho mulher índia e procrio filhos que não são índios nem
brancos. Isso é outro problema. Quero apenas saber se está
disposto a fazer o mesmo que eu.
— Como? — exclamou Cain.
— O homem que se casa com uma mulher índia tem
muitos privilégios. Pode ser um canalha, mas é melhor que
se case.
— De que está falando?
— Você foi visto ontem à tarde, junto ao arroio, em
companhia de Tainara. Tabunkah é pai dela e a interrogou
hoje cedo. Quando um pai índio interroga, quer saber toda a
verdade. Tainara disse a verdade e Tabunkah decidiu que
você deve casar com a filha dele. Hoje. Esta noite.
Entendeu, Cain?
— É mentira dessa índia!
— Calma, Cain. Procure compreender. Tainara não
queria dizer coisa alguma. Não foi ela quem falou. Alguns
índios viram vocês na margem do rio e resolveram salvar a
honra da tribo. Tabunkah foi informado e conversou com a
pequena. Tainara negou-se a falar qualquer coisa, mais o pai
bateu-lhe e obrigou-a confessar. E agora ele quer que você
se case com ela. Bem, seria melhor para todos que a
cerimônia se realizasse.
— Hei, espere aí, velho louco! Está sugerindo que eu me
case com uma índia só porque ela quis ser gentil comigo?
— Pessoalmente, afirmo-lhe que não é tão ruim casar
com uma índia, Cain. Por isso tomei-me um renegado.
Poderá ser feliz com Tainara. Ela é jovem, forte, bonita.
Pode ter muitos filhos. E é trabalhadora. Você fará um bom
negócio, ficando com ela em Luck Valley. Se quiser ir para
outro lugar, ela o acompanhará, naturalmente. De qualquer
modo, seria mais aconselhável aceitar o casamento.
— Vá para o inferno, desgraçado — explodiu Cain,
vermelho de raiva. — Diga àquele índio velho que a filha
dele é uma...
— Espere — interrompeu Rogerson. — Espere, Cain.
Tome muito cuidado com o que vai dizer. Ira Jason é de
confiança. Mas se você enviar um recado, ele o dará a
Tabunkah com todas as letras.
— É o que eu quero — gritou Cain.
— Bem. Você pode querer isso. Mas nós, não. Refiro-
me a todos os moradores de Owyhee. Se você se negar a
reparar seu comportamento com a filha de Tabunkah nós, os
brancos do povoado, o entregaremos aos índios de pés e
mãos amarrados.
— Gostaria de ver isso — sorriu Cain friamente.
— Você sabe lidar com armas, Cain — prosseguiu
Rogerson. — Mas somos mais de trinta brancos. Se os
índios não obtiverem uma satisfação imediata, não sobrará
um só dos trinta brancos para contar a história. Se o
atacarmos, para o entregarmos aos índios, muitos de nós
conseguirão escapar com vida? Entende?
— Está querendo obrigar-me a casar com uma índia?
— A jogada foi sua. Perdeu. Trate de pagar. Procure
compreender, Cain. Ou você se casa com a pequena, ou os
índios transformarão o povoado em cinza. Irá tudo pelos
ares. A vida de um grupo de brancos, dezenas de índios, um
tratado que será assinado dentro de uma ou duas semanas.
Pense um pouco. Afinal, Tainara é uma índia bonita e
atraente.
— Tainara engordará com o tempo.
— Oh, vamos — riu Rogerson. — Não seja tolo, Cain.
Você se casa, acalma os índios, leva a pequena para longe e
pronto. Quando for o marido, tudo mudará de figura. O
marido índio é um personagem muito importante. Poderá
fazer o que quiser: ficar ou ir embora para longe. Ter filhos
ou não. Trabalhar ou ficar na vagabundagem. O que quiser.
Mas tem que casar. Trata-se de uma cerimônia que só é
válida para os índios.
— E se não me casar?
— Nenhum de nós o verá o dia de amanhã.
Cain ficou pensativo. Encarou Ira Jason e verificou que
Rogerson dissera a verdade. Estava pouco se importante
com o que pudesse acontecer aos moradores de Owyhee.
Mas não podia suportar a idéia do que os selvagens fariam
com ele, quando o agarrassem. Conhecia bem os peles-
vermelhas. Não os shashones. Mas conhecia outras tribos.
Os apaches, os hopis. A idéia de morrer nas mãos dos
índios fez seu sangue gelar nas veias. Voltou para a mesa
onde estivera jogando e sentou-se, murmurando:
— Minhas três cartas.
Deram-lhe as cartas. As do parceiro também, que logo
exibiu um belo trio de nove. Mas soltou uma praga quando
Cain exibiu seu full de dez e de rei. Assim é a sorte. Boa por
um lado, regular por outro.
Cain esvaziou o copo de uísque. Recolheu o dinheiro
ganho no jogo, aproximou-se do balcão e pegou um maço
de charutos. Deixou um dólar junto à caixa. Acendeu o
charuto, saboreou a primeira baforada e encaminhou-se para
a porta de onde se voltou para dirigir-se a Ira Jason:
— Convido-o para o casamento.
— O chefe vai querer saber qual o presente que você
dará a ele, em troca da noiva sorriu Jason.
— Hei, isso é brincadeira?
— Não, Cain. Todo chefe, quando dá sua filha em
casamento, recebe um presente do genro. Não complique
sua vida, rapaz.
— Que poderia agradar ao chefe índio?
— Um cavalo deixaria Tabunkah satisfeito.
— Darei dois — riu Cain.
Saiu do armazém. Chegando à esplanada baixou as
pálpebras um instante para acostumar a vista à luz do sol
poente. Sem olhar para os índios, foi andando em direção à
cavalariça. Em menos de dois minutos entendeu-se com o
dono do estabelecimento e comprou dois animais por
oitenta dólares. Uma verdadeira fortuna! Montou o seu sem
se preocupar em selá-lo e saiu, puxando os outros por uma
corda.
— Tabunkah ficará contente — murmurou Ira Jason,
que o aguardava do lado de fora da cocheira. — Você dá
provas de que será um bom filho.
— Diga a Tabunkah que, se não fosse pelo mal que ele
poderia causar a este povoado, eu o mandaria para o
inferno.
— Direi que seu amor por Tainara vale dois cavalos —
cortou Jason secamente. — É melhor, acredite. Venha
comigo. Se for um pouco inteligente, não abra a boca.
Dirigiam-se para o ponto onde o chefe da tribo os
aguardava com seus guerreiros. Ira Jason trocou algumas
palavras com o velho shoshone e mostrou os dois cavalos
comprados por Cain. Tabunkah fez um movimento
afirmativo com a cabeça e um sinal com a lança. Todos os
índios manobraram os animais e iniciaram a retirada.
— Que disse o velho asqueroso? — perguntou Cain.
— Disse que você é um filho bem-vindo — traduziu Ira
Jason. — E que o neto que ele espera do ventre de Tainara
será um bravo guerreiro. Valente, honrado e generoso.
Como o pai. Ou seja: como você.
— Diga a esse idiota que ele está sonhando. Hei, Jason!
Que neto é esse?
— Seu filho e de Tainara.
— Está louco? Só nos vimos ontem!
— Foi o suficiente. As índias entendem bem desse
assunto, Cain. Dentro de nove luas Tabunkah terá mais um
guerreiro, um pouco mais claro que os outros netos,
naturalmente. Mas isso não fará diferença para o velho. Ah,
e disse que se Tainara não fizer você feliz, ele devolve os
cavalos. Agora, feche sua boca imunda e venha conosco.
Entendido, Cain?
— Está bem. Diabos! Que tipo de moralidade tem esses
índios nojentos?
— Uma moralidade excelente. Você se casa e tem filho.
E uma esposa. O que fizer com os dois é problema seu. Mas
saiba do seguinte: os índios podem bater nas mulheres mas
são humanos tambem. Se o mal está feito, a solução é
legalizá-lo. Se você não casar e tocar num fio de cabelo de
Tainara, a tribo o esquartejará. Quando for o marido, porém,
pode espancá-la se quiser. Ninguém o impedirá. Afinal, ela
é sua mulher.
— Terei paciência. Essa índia vai aprender o que é um
texano de alma negra.
Ira Jason não fez comentários. Encarou Cain com um
olhar sombrio, manobrou a montaria e foi colocar-se à
retaguarda do velho Tabunkah, que cavalgava
orgulhosamente, puxando os dois cavalos presenteados pelo
futuro genro.
Quando entraram na tenda de pele de búfalo os tambores
ainda tocavam do lado de fora, acompanhados pelos gritos
dos índios que dançavam alegremente. A lua cheia clareava
a noite e o céu estrelado. Fazia frio, mas a alegria
esquentava os corações.
Tainara deixou cair o pedaço de pele que servia de porta
da tenda nupcial e ficou parada, olhando timidamente para
Cain. Estava mais bonita que a própria lua. Parecia uma
menina. Ira Jason dissera a Cain, pelo caminho, que vira
Tainara nascer. Tinha pouco mais de quinze anos e era
considerada a flor mais bela da tribo. Era menina, sim. Mas
Cain sabia que naquele corpo se escondia uma mulher
apaixonada.
— Meu esposo quer fumar? — perguntou ela, submissa.
— Seu esposo quer quebrar suas costelas — exclamou
Cain. — Você foi atrás de mim, ofereceu-me tudo. E depois
veio contar para o papai! Disse que sou um branco mau e
que a maltratei.
— Não disse nada, esposo — atalhou ela, cortando as
acusações de Cain. — Fomos vistos.
— Podia ter negado.
— Nunca menti a meu pai. Tentei me manter calada.
Mas ele me bateu. E tinha razão. Fui obrigada a dizer a
verdade. Se meu esposo não está contente, comigo, pode
bater-me. Não reclamarei.
— Posso bater, não é?
— Pode.
Cain ficou imóvel, contemplando Tainara. Durante uma
fração de segundo tomou a sentir “aquilo”. A mesma
pontada no peito, do lado esquerdo. Aquela pontada que
sentira na primeira vez que vira Tainara, na loja de
Rogerson. Uma sensação diferente e esquisita. Que parecia
quebrar qualquer coisa dentro dele.
Tolice — pensou, sacudindo a cabeça. — Não existe
nada suave em mim. Com certeza estou doente. Só pode ser
isso.
(...)
O ruído dos tambores e das vozes cessou
repentinamente. Um silêncio dominou o acampamento.
Quatrocentos índios de ambos os sexos ali se encontravam,
comemorando o casamento de Tainara. Mas todos se
imobilizaram. Pareciam estátuas escuras, na noite
enluarada.
Ao montar a cavalo, Cain esbarrou com o olhar fixo de
Ira Jason. Compreendeu a mensagem enviada pelos olhos
do renegado. Não deu importância ao conselho mudo do
homem branco. Esporeou a montaria e saiu do
acampamento. Não houve protestos, nem perguntas. Se o
marido ia embora, devia ter razões para isso.
Só houve um movimento na porta da tenda nupcial. Cain
voltou a cabeça para lá e viu Tainara parada. Ninguém se
preocupou com ela. Nem mesmo quando ele a cavalo e ela a
pé iniciaram a jornada em direção ao povoado.
Cain esporeou o animal e chegou muito antes. A
esplanada estava deserta. Foi para o hotel e entrou em seu
quarto. Acendeu o lampião. Tirou do bolso do casaco um
dos charutos comprados à tarde. Aproximou-o da chama e
soltou uma baforada, sentindo-se mais tranqüilo.
Despiu o casaco, tirou as botas e pendurou num prego da
parede o cinturão com o revólver. Sentou-se no catre e ficou
fumando, pensativo. Bem, estava casado. Salvara a vida dos
moradores de Owyhee. Ninguém poderia queixar-se. O
casamento índio não tinha valor legal. Logo, considerava-se
um homem livre.
Lembrou-se de Tainara, coberta de peles, e do feiticeiro
dizendo uma porção de tolices. Todos sorriam. Alguns
índios jovens o contemplavam com inveja.
Ficou ali sentado durante muito tempo, perdido em seus
pensamentos. Os olhos brilhantes de Tainara pareciam
dançar diante dele.
Acabou o charuto e foi até a janela jogá-lo fora. A ponta
acesa passou por cima de alguém sentado no alpendre. O
vulto ergueu a cabeça. Dois olhos brilhantes fixaram-se em
Cain.
E ele viu lá fora, na noite escura, os olhos brilhantes de
Tainara. Estava sentada no chão, exposta ao frio da
madrugada. Mas impassível. Sem se queixar. Aceitava tudo
que o marido lhe impunha.
CAPÍTULO QUARTO
Convite para um funeral
Na manhã seguinte encontrou-a encolhida no alpendre, à
espera do esposo. Cain passou por ela e foi tomar café na
sala de refeições do hotel. Resolveu ir pescar para passar o
tempo. Procurou Jesse, pediu um caniço e um anzol e
seguiu para o riacho. Tainara, como uma sombra, sem dizer
uma palavra, acompanhou o marido a alguns metros de
distância.
No dia seguinte, tudo se passou do mesmo modo.
Com a diferença que Cain preferiu ir a cavalo. Tainara
acompanhou-e sem protestar. Caie começou a sentir-se
irritado com aquela passividade. Quando voltava a cabeça
deparava com os olhos brilhantes da índia e isso o deixava
perturbado.
Passava as tardes jogando pôquer. Mas a sorte já não se
mostrava tão favorável, Os parceiros sorriam e acolhiam-no
com boa vontade, decididos a recuperar os dólares perdidos
nas outras partidas.
No terceiro dia, quando estava pescando, o texano
lembrou-se que Tainara não comia há três dias. Pelo menos
ele não a tinha visto comer.
Procurou distrair-se, pensando em outra coisa, mas não
conseguiu. Pescou mais uma truta e deixou-a no chão a seu
lado. Ao mover a cabeça, esbarrou com o olhar dócil de
Tainara, sentada junto a uma árvore.
Continuou pescando até meio-dia. Espreguiçou-se e foi
até a sela, onde estavam amarrados os utensílios de cozinha
que usava durante as viagens.
— Não está com fome? — perguntou, voltando-se para a
índia.
Ela fez um movimento afirmativo com a cabeça.
— Não comeu nestes três dias?
— Não.
— Você é uma idiota!
Pegou a panela e jogou junto da mulher, exclamando:
— Prepare os peixes e coma!
Tainara não esperou segunda ordem. Com uma presteza
inacreditável ocupou-se dos peixes. Acendeu uma pequena
fogueira e começou a fritá-los.
— É verdade que você vai ter um filho? — perguntou
Cain.
A índia respondeu, balançando a cabeça e entreabrindo
os lábios num sorriso de satisfação.
Cain afastou-se. Foi deitar-se à sombra de uma árvore,
mergulhando em suas reflexões. Peter Rawling estava para
chegar. Depois de matá-lo, voltaria para o Texas. Sozinho,
naturalmente. Não pretendia arrastar aquela índia em seus
calcanhares pelo resto da vida. Nem a índia, nem o filho,
meio branco, meio selvagem. Sentou-se ao sentir o cheiro
do peixe preparado por Tainara. Cain estremeceu, ao notar
que pensava na mulher. Pensava que ela precisava
alimentar-se, já que ia ter um filho.
— Coma — disse ela, aproximando-se com o prato.
— Vá para o inferno. Só como quando tenho vontade —
gritou ele, furioso com a gentileza de Tainara em levar-lhe
os primeiros peixes. — Não preciso que uma índia cozinhe
para mim, Ouviu?
— Está gostoso — murmurou ela, sorrindo.
— Pois engula tudo e deixe-me em paz! Ou lhe quebro
os ossos!
Tainara afastou-se com o prato e começou a comer
lentamente, olhando para o homem com quem estava
casada. Cain virou-se para o outro lado, a fim de fugir do
sorriso da índia e de seus olhos negros e brilhantes. Minutos
depois, pegou no sono, vencido pelo esforço de pensar
durante tanto tempo.
* * *
Acordou assustado e sacou o revólver, apontando-o para
o índio montado que se encontrava do outro lado do riacho.
Firmou a vista e resmungou um palavrão. Não era índio, era
Ira Jason. Atrás do regenerado estavam alguns shoshones
firmes em suas montarias.
— Não fique nervoso, Cain — sorriu Ira Jason. —Você
tem excelente ouvido, hem?
— Que quer agora?
— O irmão de Tabunkah acaba de morrer.
— Enterrem-no! Que tenho eu com isso?
— Tabunkah achou que seus filhos gostariam de receber
a notícia.
— Que filhos?
— Você e Tainara.
— Ah, é? Pois não estamos absolutamente interessados
em saber de coisa alguma. Pode ir voltando para junto de
seus queridos índios. Já dei o recado.
— Eu sou branco, Cain, e compreendo você. Não passa
de um porco sem coração. Mas isso não me impressiona.
— Tome cuidado com o que diz, renegado! — gritou
Cain levantando-se de um salto. — Em menos de um
segundo posso encher seu corpo de chumbo.
— Sua reação não me assusta, já disse. Outra coisa:
quando quiser expulsar alguém de um lugar, certifique-se
primeiro se esse lugar lhe pertence. Nem você, nem
ninguém, nos pode expulsar da reserva. Nós, sim, podemos
expulsá-los, se quisermos.
— Este lugar ainda não é de vocês — atalhou Cain,
furioso.
— Mas será, muito em breve. Um destacamento de
cavalaria encaminha-se para cá, trazendo um oficial e o
encarregado de firmar o tratado. Até lá o governo dos
Estados Unidos ordenou que ninguém nos incomodasse.
Você é um federal. Devia saber disso. Há um ponto que me
intriga a seu respeito, sabe? Quem teria sido o louco que lhe
deu essa placa?
— Uma coisa você não aprendeu com os índios, Jason.
A ficar de boca fechada.
— Tabunkah convida os filhos para a despedida do
espírito de seu irmão que partirá para o reino de Manitu.
Que respondo a ele?
— Diga que ele e o irmão podem ir para... Entendeu?
— Perfeitamente. Não permitirá que Tainara compareça
à cerimônia?
— Ela pode ir aonde quiser! Gostaria mesmo de perdê-la
de vista durante algum tempo. Leve-a. Se quiser, fiquem
com ela por lá.
O renegado abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas
conteve-se. Preferiu dirigir-se a Tainara com suavidade.
Conversaram alguns minutos no idioma dos peles-
vermelhas. Cain reparou que Tainara comera e limpara a
panela e os pratos. Devia ter cuidado de tudo enquanto ele
dormia. A sela também estava mais limpa que antes e o
cobertor balançava-se num galho de árvore, apanhando o
sol da tarde.
Ira Jason manobrou a montaria e preparou-se para ir
embora.
— Que foi? — perguntou Cain. — Não vai levar a
índia?
— Ela não quer ir, se você não for. Disse que o lugar
dela é ao lado do marido. E tem razão. Adeus, Cain.
O renegado e os índios afastaram-se em silêncio pela
margem do rio. Cain continuou parado um instante. Em
seguida teve um acesso de raiva e, voltando-se para a
mulher, perguntou:
— Por que não foi com eles, índia?
— Vou com você.
— Vá para o inferno! Dei permissão para ir!
— Só vou com você.
— Vai fazer o que eu ordenar! Ou não?
— Sim — murmurou Tainara, baixando a cabeça.
— Pois ordeno que vá assistir à partida do espírito de
seu tio.
— Só vou com você. Sozinha, não vou. Não ficaria bem.
— Quer que eu a acompanhe, hem?
— Quero.
— Pois não tenho vontade de ir.
— Eu sei.
— Escute aqui — explodiu Cain, perdendo o resto de
paciência que ainda tinha. — Prefere ir ou levar uma surra?
— Só vou com você.
Cain encarou a esposa. Os olhos dela brilhavam com a
mesma intensidade de sempre. A pontada tomou a
pressionar o peito dele. Ficou imóvel, petrificado, durante
meio minuto, vendo os milhares de estrelas que se refletiam
nos olhos escuros de Tainara.
— Eu disse que vai — murmurou Cain, destacando as
palavras, — Encilhe meu cavalo.
Tainara levantou-se rapidamente. Afastou-se para
preparar a montaria. Pouco depois estava de volta, trazendo
o cavalo. Parou diante do marido para entregar-lhe as
rédeas, Cain sentiu o calor dos dedos suaves da índia, ao lhe
passar o animal. Fulminou-a com um olhar severo. Ela
porém não se alterou.
— Muito bem — disse ele com um sorriso seco. —
Você vai ver seu tio.
Montou e deu um tapinha no pescoço do cavalo. Seguiu
a correnteza a trote e partiu em direção ao acampamento
dos shoshones, levando atrás de si a esposa, a pé.
Determinara que ela devia comparecer ao enterro e ela
compareceria. Que diabo! Era mulher dele! Devia obedecer!
CAPÍTULO QUINTO
Não gosto que tirem o que é meu
O irmão de Tabankah estava na pira funerária armada
numa clareira. Haviam fincado no chão quatro estacas,
sobre as quais construíram uma plataforma de troncos. Ali
se encontrava o cadáver.
— Fazem assim para que as feras não cheguem até o
corpo — explicou Ira Jason. — Quer ver o morto, Cain?
— Não. Nunca senti interesse por índios mortos. Nem
vivos!
— Bem, você veio — prosseguiu o renegado. — E
Tabunkah está contente, embora um pouco triste. Quis fazer
a vontade do irmão que pediu para ser cremado. Daqui a
pouco acenderão a pira.
— Que esperam?
— A ordem do chefe.
Cain voltou-se para o índio velho e enrugado.
Certamente não demoraria muito a ir juntar-se ao irmão.
Tabunkah parecia um galho seco. Mas sabia manter-se
firme em seu cavalo, tendo cinqüenta e tantos índios à
retaguarda. O resto da tribo estava de pé rodeando o túmulo.
Cain ouvira dizer que existem inúmeros túmulos como
aquele, espalhados pela planície. Mas não era comum
queimarem o morto.
Alguns índios observavam o marido de Tainara.
Nenhum deles fizera comentários ou demonstrara espanto
ao vê-lo chegar com a mulher. Nem mesmo o velho
Tabunkah mudara de expressão ao recebe-los. Tainara
juntara-se às outras índias que ficaram separadas dos
homens. Apesar de estar afastada, continuava com os olhos
fixos, acompanhando todos os movimentos do marido.
O sol escondia-se lentamente por trás das montanhas.
Quando a noite estava quase chegando, o velho Tabunkah
ergueu a lança e os tambores começaram a tocar. Alguns
índios aproximaram-se, carregando tochas e atearam fogo
aos galhos colocados sob a plataforma onde se encontrava o
cadáver. As chamas elevaram-se com rapidez e o crepitar da
madeira ecoou nitidamente quando os tambores cessaram de
tocar a um sinal de Tabunkah. Outro sinal levou os índios a
rodearem a fogueira. E os tambores reiniciaram suas
batidas.
Cain olhou para o grupo das mulheres reunidas a um
canto. Na meia luz do crepúsculo, teve a impressão de que
estavam chorando.
Quando se afastaram, o túmulo não passava de um
monte de brasas que arderia durante o resto da noite.
Naquele instante, porém, o espírito do irmão de Tabunkah
já devia estar cavalgando pelas maravilhosas pradarias do
reino de Manitu.
As mulheres foram as primeiras a voltar para o
acampamento. Depois os índios mais jovens. Atrás deles
seguiu Cain, refletindo sobre a imbecilidade dos peles-
vermelhas, mas admitindo que aquele tipo de túmulo era
uma grande invenção. Tabunkah e os mais velhos foram os
últimos a afastar-se da pira. Ira Jason encontrava-se entre
eles. Mas afastou-se para emparelhar sua montaria com a de
Cain. O rosto do texano tinha um aspecto assustador, com
barba de vários dias. A angulosidade de suas feições
ganhava um realce estranho na pouca claridade da noite.
— Não devia ter saído de lá tão cedo, Cain — informou
Jason. — Enfim, como não conhece os costumes dos índios,
paciência.
— Não conheço nem estou interessado em conhecer.
Mas foi um bonito enterro. Sou obrigado a confessar.
— Gostou?
— Claro. Uma coisa é certa: os vermes não comerão
esse índio.
— Naturalmente — sorriu Ira Jason. — Os índios não
gostam de vermes.
— Ninguém gosta de vermes, renegado — respondeu
Cain, irritado. — Todos nós deveríamos ser queimados.
Hei, está puxando conversa comigo, é? Tem alguma coisa
para me dizer?
— Nada especial. Você não é pessoa com quem se possa
conversar, Cain. Por que não se modifica?
— Que quer dizer com isso? — perguntou Cain,
surpreso.
— Você é jovem, tem saúde e não parece tolo. Não deve
ser, já que o nomearam federal. Chegou aqui em busca de
um homem. Não pode ser um bom sujeito. Se fosse, a Lei
não o estaria perseguindo. Mas você vive esses momentos
como se existisse uma trama preparada para derruí-lo.
— Não entendi uma palavra.
— Está certo. Acabe com o mal. Cumpra sua obrigação.
Mas viva sua vida também, aproveitando o que ela lhe
oferece de bom.
— Você fala como se a vida me tivesse oferecido coisas
boas! — exclamou Cain, dando uma gargalhada. — Cite
algo bom que haja em minha vida e eu lhe ficarei
agradecido, Jason.
— Pelo jeito de falar, seu caminho tem sido meio
complicado, bem? Talvez pior que o meu. Desejo-lhe
melhor sorte no futuro. Gostaria de conhecer minha mulher
e meus filhos?
— Não — respondeu Cain.
— Compreendo. Se um índio me desse semelhante
resposta, eu me espantaria. Mas de você tudo se pode
esperar. Bem, não o aborrecerei mais.
Ira Jason manobrou o animal e dirigiu-se a uma tenda
onde uma mulher ainda jovem e robusta o aguardava,
rodeada por um bando de crianças de vários tamanhos. A
índia tomou as rédeas da montaria do renegado e esperou
que ele desmontasse. Cain deu uma cusparada, pensando:
— Mestiços nojentos!
Continuou avançando e deteve-se diante da tenda mais
confortável do acampamento: a de Tabunkah. A mesma
cedida na noite do casamento para servir de tenda nupcial.
Tainara estava na porta cercada por algumas índias velhas.
Cain desmontou e ficou surpreso ao observar que havia
lágrimas nos olhos da esposa.
— Que foi? — perguntou ele, irritado. — Seu tio está
morto. Por que chora? Está morto e transformado em
cinzas. Suas lágrimas não vão trazê-lo de volta.
Tainara continuou chorando, cercada pelas índias mais
velhas.
— Pare, com isso — gritou Cain, furioso. — Não gosto
de vê-la chorar. A vida da gente acaba. Ninguém é eterno!
Olhe, eu preferia ser queimado como seu tio a acabar
devorado por um animal qualquer ou com uma bala nas
costas.
Tainara continuava chorando. Cain olhava para ela sem
saber que atitude tomar. De repente, notou o silêncio pesado
que dominava o acampamento. Voltou a cabeça
instintivamente, levando a mão ao revólver. Tabunkah
estava parado, olhando para ele, do alto do cavalo. À
retaguarda, cercando-o como uma guarda de honra, vinham
os índios mais velhos da tribo. Pareciam realmente
vermelhos, sob o reflexo das chamas das fogueiras. Um
índio mais jovem apareceu, trazendo dois cavalos
amarrados a uma corda. Aproximou-se da tenda e ficou
imóvel, segurando os animais.
— Pode ir com os cavalos — disse Tabunkah.
Cain não compreendeu as palavras do chefe shoshone.
Ira Jason abriu passagem e foi colocar-se junto ao marido
de Tainara, a quem explicou:
— São os que você deu de presente a Tabunkah. Ele os
está devolvendo.
— Por quê?
— Todos nós sabemos que não está satisfeito com
Tainara. Sabemos que ela não monta com você e que dorme
fora de seu quarto. Sinal de que ela não soube satisfazê-lo.
Por isso Tabunkah devolve o presente, pede perdão e
recupera a filha.
— Está brincando, Jason? — balbuciou Cain.
— Os índios não costumam brincar. Pelo menos com
estas coisas. Pode ir embora com seus cavalos, Cain.
Cain enrugou a testa. Afastou a mão da coronha do
revólver e voltou-se para Tainara, que continuava chorando
em silêncio. Tomou a voltar-se para Ira Jason e murmurou:
— Assim? Sem mais nem menos?
— Exato.
— É uma boa solução para mim, não acha?
— Você jamais saberá quanto a sorte o protegeu, Cain
— respondeu Jason com um sorriso frio. — Não me refiro
ao fato de ter recebido Tainara como esposa. Falo de modo
geral. Dê graças a Deus por Tabunkah e quatro mil
shoshones terem decidido viver em paz.
— Nunca tive motivos para agradecer a Deus —
resmungou Cain.
— Tenho pena de você. Até os índios têm um Deus.
Seria bom se você encontrasse o seu, Cain. Tenho certeza
de que Ele sempre esteve à sua espera.
— Hei, você é pregador, por acaso?
— Vá embora — disse Jason, quase sem voz. — Sou
velho. Por isso me contenho. Além do mais, não quero
estragar a hospitalidade de Tabunkah. Mesmo assim, sendo
velho, se tomar a insultar-me quando nos encontrarmos de
novo, eu o matarei.
— Que acontecerá com Tainara? — perguntou Cain.
— Não se preocupe com ela. Acabará encontrando outro
marido. Um marido melhor, sem dúvida.
— Alguém se casaria com ela? Está esperando um filho.
— E daí?
Cain Lukas contraiu ainda mais a fisionomia. Observou
os índios ao seu redor. Voltou-se e tomou a contemplar
Tainara. Sentiu outra vez a pontada no peito.
Decididamente estava enfermo. Talvez morresse breve. Mas
só depois de matar Peter Rawling. Fechou os olhos. A
figura de Tainara continuava em seu pensamento. Ergueu as
pálpebras e encarou Ira Jason, murmurando:
— Escute aqui: diga a seu chefe índio que Tainara é
minha. Comprei-a por dois cavalos e não tenho a menor
vontade de devolvê-la. Diga com todas as palavras, hem? Se
algum índio a deseja, que apareça e venha tirá-la de mim.
Não quero desfazer o trato. Logo, vão todos para o inferno e
deixem-me em paz!
— É absurdo agir desse modo. Se não ama Tainara.
— Amar? — exclamou Cain, soltando uma gargalhada.
— Está louco!
— Devo dizer a Tabunkah que fica aqui esta noite? Ele
lhe oferece hospitalidade, naturalmente.
— Por que não? — rosnou Cain. — Agradeça a ele e
diga para deixar de me aborrecer.
Entrou na tenda do chefe da tribo como se fosse o dono
e sentou-se num monte confortável de peles arrumadas a um
canto. Tirou do bolso um charuto. Quando ia cortar a ponta
com os dentes, Tainara entrou, já de olhos enxutos.
— Parou de chorar? — perguntou Cain.
Tainara foi sentar-se diante dele e ficou imóvel,
contemplando-o. Cain guardou o charuto, segurou a índia
pelos ombros e puxou-a para si. Quando a beijou, sentiu o
corpo macio e dourado da mulher tremer de satisfação.
Afastou-a novamente, murmurando entredentes.
— Não gosto que tomem o que é meu.
A índia sorriu.
— Se quiser separar-se de mim, não faça cerimônias.
Caso encontre um índio.
— Fico com você — atalhou ela, cortando a frase de
Cain.
— Está bem — balbuciou ele, engolindo em seco.
— Já entendi. Ficará comigo.
Tomou a beijá-la, pensando que talvez fosse bom para
aquela estranha doença que o estava atacando. Acariciar o
corpo bem feito e suave de Tainara talvez aliviasse aquelas
pontadas no peito que tanto o incomodavam.
CAPITULO SEXTO
O duelo
Cain passou alguns dias no acampamento índio. Não
sabia explicar por que ficava ali. A verdade é que não sentia
a menor vontade de ir embora. O que mais o irritava eram
os olhares sorridentes de algumas índias e uma aprovação
idiota estampada na fisionomia dos índios. Por que
adotavam aquela atitude? Afinal, que há de extraordinário
no fato de um homem passar a noite numa tenda com sua
mulher? Ou que dormissem a sesta sob a sombra acolhedora
de uma árvore? Ou que se beijassem seguidamente, como
ele e Tainara faziam?
A índia parecia mais bonita do que quando a conhecera
há uma semana.
Tabunkah convidou-o para fumar cachimbo com o grupo
de velhos guerreiros da tribo. Aceitou, a primeira vez,
pensando divertir-se com a experiência. A segunda, porque
teve vontade. Sentia-se bem, sentado de pernas cruzadas,
em silêncio, soltando baforadas de fumaça. Na segunda
noite mostrou-se generoso e distribuiu charutos entre os
índios, deixando-os de boca aberta diante de semelhante
prova de cordialidade.
Ira Jason procurou-o uma tarde para dizer que a esposa
mandava convidá-lo a participar da refeição em sua tenda.
Cain abriu a boca para xingar o renegado mas não teve
tempo de articular uma só palavra, porque Tainara aceitou o
convite. Cain ficou furioso, achando que índia alguma podia
tomar decisões por ele. Em seguida, pensando melhor,
resolveu concordar com o que a mulher dissera e decidiu ir
jantar com Ira Jason e sua família.
Conheceu Paipa, a robusta esposa do renegado. Era
bonita e simpática. Sorria muito e parecia contente por estar
casada com Jason. As crianças ficaram quietas, como se
fossem estátuas de cobre.
Mas o sossego durou pouco. Descobriram logo que o
homem branco não era tão mau como parecia. Trataram de
mostrar ao convidado seus brinquedos e só o deixaram em
paz quando Jason os mandou saírem da tenda. Cain sorriu
ao ver os doze indiozinhos afastarem-se obedientes. Passara
momentos divertidos brincando com as crianças. Índios ou
não, gostara deles.
Na terceira manhã, quando ele e Tainara estavam na
margem do riacho, abraçados, em silêncio, contemplando a
paisagem, chegou a notícia. Um índio aproximou-se e disse
algumas palavras no dialeto da tribo.
— Que foi? — perguntou Cain, quando o mensageiro se
afastou.
— O homem a quem você procura está chegando —
informou Tainara com uma sombra de preocupação
empanando o brilho de seus olhos.
— Peter Rawling? — exclamou Cain, petrificado.
— Sim. Está chegando com carroças e outros homens,
trazendo coisas.
— Compreendo.
Cain Lukas levantou-se. Assoviou, chamando o cavalo.
Quando o animal se aproximou, pulou para a sela, voltou-se
para a mulher e determinou:
— Você ficará aqui. Tainara.
Esporeou a montaria e partiu a galope. Depois de
liquidar Peter, voltaria ao acampamento para recolher seus
pertences e iria embora para bem longe daquela região.
Depois de percorrer um quarto de milha olhou para trás
e estremeceu. Tainara o seguia. A pé. De cabeça erguida.
Procurando andar o mais depressa possível, para não perdê-
lo de vista.
— Volte! — gritou Cain.
Não ouviu a resposta. Mas a atitude da índia parecia
dizer: “Irei com você!”.
Cain deu de ombros. Muito bem. Se quisesse segui-lo,
paciência. De repente percebeu que já não se sentia doente
como a dois dias. A pontada no peito desapareceu e um
novo ânimo o dominava.
Continuou galopando, sem pressa. Esperara um mês e
meio por aquele encontro mais alguns minutos não faria
diferença. Serviriam para saborear o prazer que o invadiria
ao matar Peter Rawling.
Pouco depois avistou Owyhee. A caravana estava
entrando no povoado. Cain refletiu um instante e chegou à
conclusão de que Tainara encarregara os índios de vigiarem
a chegada de Peter Rawling.
Respirou fundo e entrou no povoado diminuindo a
marcha do cavalo. Do galope passou a um trote cada vez
mais lento. Soltara a presilha que mantinha o revólver no
coldre quando cavalgava. Estava, portanto, pronto para
sacar a arma a qualquer momento.
Viu as duas carroças pararem diante do armazém de
Charles Rogerson. Os dois homens que as tinham
conduzido desceram e entraram na loja. Os quatro
cavaleiros que serviram de escolta encaminharam-se para a
cavalariça, levando os animais pelas rédeas.
Rogerson os acompanhava. Cain reconheceu um
daqueles homens e sorriu. O proprietário do armazém
voltou-se um instante e avisou Cain Lukas Cochichou
qualquer coisa ao ouvido de Peter. Certamente prevenindo-
o da presença do inimigo.
— Peter Rawling — gritou Cain, decidido a sair
vitorioso daquele combate ansiosamente esperado.
Um silêncio repentino tomou conta do povoado. Alguns
brancos pararam de repente, petrificados, ao ouvirem aquele
grito. Os índios que tinham vindo a Owyhee fazer compras,
voltaram-se na direção daquela voz e pararam para
contemplar a cena. O problema era entre brancos. Eles
apenas assistiriam. Sem tomar partido.
Rawling voltou-se lentamente. Estava pálido. Parecia
não ter apanhado sol durante a viagem. Os três homens que
levavam os cavalos também se voltaram, contraindo a
fisionomia. Rogerson tratou de afastar-se. Após uma ligeira
hesitação, os três cavaleiros fizeram o mesmo. Rawling
ficou sozinho no meio da rua, segurando as rédeas de sua
montaria.
Cain viu quando o adversário passou a língua pelos
lábios. Desmontou e começou a caminharem direção a
Rawling. Sem pressa. Com a mão direita bem perto da
coronha do revólver. Não havia a menor crispação em seus
dedos. Estavam soltos, relaxados. Quando chegasse o
momento mostrar-se-iam ágeis e flexíveis.
Cain parou a poucos metros de Peter Rawling e
exclamou, com um sorriso sinistro:
— Olá, safado.
— Cain — murmurou Peter. — Escute, por favor.
— Por que não, Peter? Tenho tempo. Fale.
— Olhe, aquilo foi um erro. Um erro! Explicarei tudo!
— Ah, não — cortou Cain, enrugando a testa. — Se tem
coisas divertidas para contar, estou pronto a ouvir. Mas se
pretende convencer-me de que não queria matar-me quando
atirou em mim, poupe suas forças. Fale! Mas diga coisas
alegres, divertidas e verdadeiras. Estou ouvindo.
Rawling tomou a passar a língua pelos lábios. Baixou a
cabeça como um homem que se conforma com as
disposições do Destino. De repente, com uma agilidade
espantosa, pulou para o lado, sacando o revólver. Uma
faísca brilhou junto ao quadril direito de Cain e a bala
enterrou-se no peito de Rawling. Do lado direito. Obrigou-o
a fazer uma pirueta estranha. Ainda estava girando, quando
Cain tomou a abrir fogo. Desta vez acertou o coração de
Peter Rawling. Pelas costas. Numa das voltas daquele balé
inesperado.
Cain continuou imóvel, vendo o inimigo cair de bruços,
fulminado. Aproximou-se do cadáver e contemplou-o um
instante. Virou-o de barriga para cima, empurrando-o com a
ponta da bota, e comprovou que se tratava realmente de
Peter, o homem a quem procurava. Muito bem. Ali estava
ele. Morto. Liquidara-o, como havia jurado.
Haviam sido amigos durante algum tempo. Trabalhavam
juntos. Até o dia em que Peter resolveu fazer jogo sujo com
o companheiro, decidindo ficar com todo o dinheiro do
último assalto. Para apoderar-se do produto do roubo não
encontrara solução mais simples que meter uma bala nas
costas de Cain Lukas. Em casos desse tipo, se a vítima não
morre, passa o resto de seus dias ansiando pelo momento da
vingança.
Cain guardou o revólver e levantou a cabeça. Olhou ao
redor. As pessoas voltavam ao normal, pouco a pouco. Viu
Tainara a alguns metros de onde ele se encontrava. A
mulher vira tudo, sem a menor dúvida. Devia estar ali, à
espera de vê-lo montar a cavalo, disposto a voltar para a
margem do riacho e dormir a sesta, como havia feito nos
dias anteriores.
— Vá embora — exclamou Cain, dirigindo-se à índia.
— Volte para o acampamento. Obedeça!
Tainara continuou imóvel, com os olhos fixos no
marido. Cain bufou de raiva e encaminhou-se para o
armazém de Charles Rogerson. O proprietário e alguns
índios estavam parados no alpendre. Os três cavaleiros que
haviam acompanhado Peter Rawling ocupavam-se do
cadáver. Com certeza enterrariam o companheiro fora do
povoado e ali terminava a história.
— Quero outra garrafa — disse Cain, segurando o
bigodudo Rogerson pelo braço.
— Sim, senhor Cain.
Cain fulminou-o com um olhar de desprezo. O
negociante tratava-o de “senhor Cain”. Claro! Depois de tê-
lo visto liquidar Rawling numa demonstração espantosa de
sua superioridade no manejo das armas, era natural que se
mostrasse tão respeitoso.
Cain entrou, acompanhando Rogerson. Parou junto ao
balcão e esperou que o dono do armazém lhe trouxesse a
garrafa de uísque. Aproveitou o tempo para repor as balas
gastas no duelo. Quando terminou, em lugar de guardar a
arma no coldre, deu uma pancada com o cano do revólver,
acertando a mão de Charles Rogerson, que o contemplava,
espantado.
— Está louco? — gritou o comerciante. — Por que fez
isso?
— Porque estava de boca aberta, senhor Rogerson. Por
quase ter estragado meus planos. E, principalmente, por ter
mentido a respeito de Peter Rawling. Sabia que ele ia voltar
e não quis dizer-me. Por quê?
— Não sabia que ele ia voltar.
— Sabia, sim. Você não me agrada. É um sujeito
asqueroso e safado. Está tramando alguma coisa e vou
descobrir o que é. Tome cuidado quando se dirigir a mim.
Bem, ponha mais esta garrafa na minha conta. E não me
aborreçam enquanto bebo ou se arrependerão. Preciso
pensar. Entendido?
Foi para o outro lado do armazém, onde ficava a mesa
de jogo. Estava vazia, pois as partidas de pôquer só
começavam quase no final da tarde. Quem queria beber
sossegado, livre dos olhares invejosos dos peles-vermelhas,
ficava em casa. Cain porém não se preocupou com o fato
dos índios o contemplarem enquanto saboreava o uísque.
Sentou-se numa cadeira, esticou os pés em cima da mesa e
começou a beber pelo gargalo.
* * *
Estavam reunidos no telheiro atrás do armazém de
Charles Rogerson. Garrick, Hersholt, Deker e Malcolm, os
condutores das carroças e os três cavaleiros que cavalgavam
ao lado de Peter Rawling, escoltando a pequena caravana.
Chamavam-se Burzage, Crowford e Donat.
— Esse camarada não pode saber de coisa alguma —
assegurou Garrick.
— Mas anda desconfiado — retrucou Rogerson. —Esse
federal é um demônio e está se tomando um perigo para
nós. Aproveitemos para conversar, enquanto ele bebe.
Continua lá no armazém. A índia está sentada na beira da
calçada, esperando por ele. Precisamos combinar tudo, sem
perda de tempo.
— Claro — afirmou Hersholt.
— Descobriram a data exata da chegada do esquadrão de
cavalaria, com o oficial e o encarregado da reserva índia?
— perguntou o comerciante.
— Claro. Estarão aqui no dia que já sabemos —
respondeu Donat.
— E a carroça com as armas e o uísque?
— Está no lugar combinado — informou Deker,
sorrindo. — Não se preocupe, Chames. Esse camarada não
poderá atrapalhar nossos planos. Foram bem traçados.
— É um sujeito perigoso, já disse — repetiu Rogerson.
— Ora — riu Crawfort. — Que fez ele, afinal de contas?
Sacou um revólver e atirou. Rawling agiu com muita
lentidão. Só isso. Além do mais, se esse sujeito deixa você
tão preocupado, Charles, podemos cuidar dele.
— Não — protestou Rogerson. — Se matarmos um
federal, a situação se complicará. Vamos deixá-lo beber e ir
embora quando quiser.
— Podemos matá-lo de um modo casual. Depois iremos
cuidar da carroça e esperaremos o instante da realização da
última parte do plano — sugeriu Crawford, com um risinho
maldoso.
— Não será fácil liquidar esse camarada — suspirou
Rogerson.
— Duvida de nossas habilidades, Charles? — perguntou
Donat, esboçando um sorriso. — Eu e Crawford nos
encarregamos de eliminar o federal.
— Boa idéia — apoiou o outro pistoleiro. — Vou buscar
o rifle. Façam o sujeito sair do armazém. Quanto a você,
Rogerson, volte para a loja e fique tranqüilo. Procure agir
com naturalidade.
— Está bem — concordou o comerciante. — Mas não
falhem. Ele sabe que vocês trabalham para mim. Se escapar
do atentado, irá à minha procura para ajustar contas.
— Descanse, amigo — murmurou Donat. — Cain Lukas
pode considerar-se um homem morto.
* * *
Cain continuou saborenado o uísque, trago após trago. A
bebida, além de dar coragem, ajuda a afugentar
pensamentos sombrios. Enquanto refletia sobre isso, Cain
observava o que se passava no exterior do armazém.
Estranhou, não vendo Tainara sentada na calçada onde a
deixara ao entrar na loja. Em lugar da esposa, deparou com
dois homens parados no alpendre. Dois dos que haviam
chegado com Peter Rawling.
Cain os viu sorrir, cochichando qualquer coisa e olhando
para o chão. Um deles inclinou-se de mão estendida. Dois
segundos depois, Cain viu Tainara segura pelo braço do
sujeito. Os dois homens riram, divertindo-se e querendo
abraçar a índia ao mesmo tempo. Tainara debatia-se,
tentando libertar-se das mãos que a agarravam com firmeza.
Ao ver a esposa cair no meio da rua, Cain Lukas teve a
impressão de receber uma pancada na cabeça.
Pousou a garrafa na mesa, levantou-se e foi até a janela.
Sacou o revólver lentamente, com os olhos fixos na cena
que se desenrolava à sua frente. Tainara tinha caído no
chão. Um dos homens preparou o pé para chutá-la, mas não
teve tempo de faze-lo, porque Cain atirou por trás do vidro.
Burzage recebeu a bala no meio da testa e recuou,
empurrando por uma força invisível. Como se tivesse
recebido o coice de um cavalo selvagem.
Burzage ainda não havia tocado a poeira do chão quando
Crawford se voltou para o armazém, sem acreditar no que
estava acontecendo. Cain Lukas nem sequer vinha para a
rua a fim de enfrentá-los. Atirava de onde se encontrava,
com a maior facilidade do mundo.
Crawford ainda não completara a meia volta e outro
faiscar espatifou o vidro da janela. O pistoleiro mal teve
tempo de perceber o que acabara de acontecer. Recebeu um
impacto no ventre e caiu de joelhos levando as mãos ao
buraco aberto pela carga de chumbo saída do revólver de
Cain. A segunda bala cravou-se no coração de Crawford,
enviando-o para o mundo dos mortos, de onde ninguém
volta.
O texano deu alguns passos em direção à porta mas
parou de repente. Tainara continuava caída no chão,
olhando para ele. Fez um gesto para a esposa, chamando-a.
A índia levantou-se e foi para o alpendre do armazém.
— Não saia daí — ordenou Cain.
Tomou a entrar. Da loja passou para a parte que servia
de residência a Charles Rogerson. Judy estava na cozinha,
petrificada, junto ao fogão. O pai, de rifle em punho,
apontava para o texano, gaguejando:
— Não se aproxime! Não se aproxime!
Cain sorriu. Meteu o revólver no coldre e avançou
tranqüilamente para o canto onde se encontrava Rogerson.
Sem se alterar, tomou-lhe o rifle das mãos. Verificou se
estava carregado. Sempre sorrindo, olhou ao redor. Viu a
porta dos fundos. Abriu-a e saiu, deixando pai e filha
paralisados. Pouco depois, seus passos ecoaram no telhado.
— Esse federal deve ter parte com o demônio —
balbuciou Rogerson. — Como adivinhou que Donat estava
no telhado?
Quinze segundos de silêncio seguiram-se às palavras do
comerciante. Um tiro de rifle ecoou, acompanhado por um
grito angustiante. Novamente, Cain Lukas reapareceu.
Entrou pela porta dos fundos ainda com um sorriso nos
lábios. Continuou sorrindo, ao se aproximar de Charles
Rogerson. Não para devolver a arma e sim para lhe dar um
golpe com a coronha, obrigando o dono do armazém a cair
de joelhos.
Judy correu paia afastar Cain e impedi-lo de bater no
pai. O texano já esperava por aquela reação da ruiva.
Voltou-se um instante e recebeu-a com o rifle preparado.
Judy recuou sem fôlego, ao receber a pancada no estômago,
e nada mais pôde fazer.
— Cain — arquejou Rogerson. — Espere. Podemos
chegar a um acordo. Você é um federal. Não pode matar-
me assim.
Sempre sorrindo, Cain tirou a placa e jogou-a em cima
do comerciante, exclamando:
— Tome! Fique com ela. Use-a, se quiser. Tem o
mesmo direito que eu.
— Não compreendo.
— Sou tão federal como você, Rogerson. Essa placa
pertenceu a um sujeito a quem eu e Peter matamos há algum
tempo. Fiquei com ela e usei-a várias vezes. Foi muito útil.
Ajudou-me a procurar Rawling. Não imagina como as
pessoas se tomam amáveis e informativas quando quem faz
as perguntas usa esse distintivo no peito.
— Você não é um federal?
— Não. Muito ao contrário. Oferecem três mil dólares
por minha pele, lá no Texas. Ou por minha cabeça. Dá no
mesmo. Estou dizendo tudo isso, Rogerson, para você não
se iludir nem recorrer a honradez ou à piedade de um
federal. Não sou um homem da Lei. Desconfio, portanto,
que você vai passar maus pedaços, amigo.
— Você é um foragido?
— Dizem. E tenho mau gênio. Gosto de saber por que
querem matar-me. Ou pretende dizer que tudo isso foi
vingança dos companheiros de Peter? E tem mais. Por que
prepararam tudo tão bem ? Por que aqueles dois sujeitos
tentaram abusar de Tainara? Era uma armadilha para mim?
Queriam provocar-me a reagir, não é mesmo? Por quê?
Responda! Só por que eu bati em sua mão com o cano do
revólver, Rogerson?
— Cain, se você não é um federal e sim um foragido,
trate de me ouvir. Quer ganhar dois mil dólares?
— Dois mil? — exclamou Cain, arregalando os olhos.
— Posso dá-los agora mesmo. Quando acabar o
trabalho, receberá mais três mil.
— Cinco mil por um trabalho? — murmurou Cain,
intrigado. — Não gosto dessas brincadeiras, Rogerson.
— Não é brincadeira. Você matou quatro de meus
homens. E eles sabiam manejar as armas com perfeição.
Pois bem, tendo-o comigo, poderemos resistir ao ataque dos
índios.
— Índios? Que ataque?
— Os shoshones nos atacarão.
— Refere-se a Tabunkah e sua gente?
— Sim.
— Por que iriam atacar?
— Porque me interessa, Cain. Quer os dois mil dólares
agora? É um adiantamento. Aceita trabalhar para mim? O
dinheiro está em meu quarto.
— Vá buscar — respondeu Cain, mantendo o rifle
apontado para a cabeça de Judy, que continuava gemendo
no chão.
Rogerson voltou pouco depois com o dinheiro e
entregou-o a Cain. O texano pousou o rifle na mesa e
guardou os maços de cédulas sem se alterar. Quando
terminou, voltou-se para o comerciante e murmurou:
— Havemos de nos entender, Rogerson. De que se trata?
— E um assunto delicado.
— Que pretende? Assustar-me? Por cinco mil dólares
farei qualquer trabalho. Já matei por muito menos. Só quero
lembrar um detalhe: Rawling fez jogo sujo comigo e não se
deu bem. Éramos sócios, entende?
— Farei jogo limpo. Juro. Você é o homem de quem
preciso. O melhor que podia encontrar.
— Não se mostre tão entusiasmado. Isso poderá custar
mais mil dólares. Fale de uma vez! E mande sua filha
apanhar uma garrafa de uísque. Agora!
Rogerson fez um sinal a Judy e a ruiva saiu da cozinha.
Pouco depois Cain bebia de uma garrafa nova, observando
pai e filha.
— Que diria, se eu mandasse você matar Tabunkah? —
perguntou Rogerson, meio hesitante.
— Por que eu iria matar aquele índio velho?
— Porque é preciso.
— Matar Tabunkah? E para isso me dará cinco mil
dólares?
— Já lhe dei dois mil.
— Não compreendo. Por que tudo isso? Não me importo
de liquidar aquele índio encarquilhado. Até de graça poderia
despachá-lo. Mas por quê?
— É melhor explicar tudo, papai — sugeriu Judy num
sussurro. — Ofereça mais cinco mil dólares e Cain fará o
que o senhor mandar. Ele é o mais indicado para ajudá-lo,
acredite. Não é mesmo, Cain?
— Por dez mil dólares posso matar a tribo inteira, se me
pedirem — sorriu Cain.
— Não é preciso tanto — riu Rogerson, sentindo-se
mais confiante. — A cavalaria dos Estados Unidos se
encarregará dessa tarefa. Ouça com atenção. Vou lhe dizer
qual é o meu plano. Tenho uma carroça carregada de armas
e de uísque, esperando o momento oportuno. Quando a
cavalaria e o encarregado de negociar com os peles-
vermelhas estiverem perto daqui um de meus homens virá
prevenir-me. Terá chegado a hora de eliminar o velho
Tabunkah. E mais alguns índios, talvez. A carroça será
levada por meu pessoal para as imediações do
acampamento shoshones. Quando virem homens brancos,
os selvagens atacarão. Meus homens fugirão, abandonando
a carroça. Imagine a surpresa dos índios, quando virem que
está carregada de armas e de bebida! Que acontecerá?
— Diga você mesmo — balbuciou Cain.
— Tabunkah e alguns índios terão sido assassinados há
duas ou três horas. O shoshones vão querer vingá-los.
Pegarão as armas e as munições. E o uísque, também.
Começarão a beber e o sangue deles irá esquentando. Não
levarão muito tempo para nos atacarem. Chegarão
embriagados, furiosos, sedentos de vingança e cheios de
álcool.
— E nos aniquilarão a todos.
— Não — riu Rogerson. — Os brancos que estiverem
dentro da paliçada resistirão ao ataque. Pelo menos, até a
chegada do esquadrão de cavalaria. Depois, nada mais
teremos a temer.
— E que ganharemos com tudo isso? — perguntou Cain,
procurando disfarçar seu espanto.
— O tratado oferecendo esta reserva aos shoshones não
será firmado. Estas terras não passarão a pertencer aos
índios. Haverá guerra com os selvagens e nossas tropas os
aniquilarão, empurrando-os para o Canadá. Quando a calma
voltar a reinar, compraremos bons pedaços de terra ao
governo. E poderemos explorá-las.
— Pretende enriquecer pescando trutas? — sorriu Cain.
— Não. Elas são muito gostosas, mas existe coisa
melhor. Ouro, rapaz. Estas montanhas estão cheias de ouro.
Por que dá-lo aos índios? Se não provocarmos o ataque,
eles ficarão com a fortuna que se esconde nessas terras onde
se instalará a reserva. Que prefere? Dez mil dólares por seu
trabalho, daqui a uma semana, ou cinqüenta mil, daqui a
alguns meses? Ou cem mil, quem sabe?
— Iria para San Francisco e veria que eu valho muito
mais que aquela índia — balbuciou Judy, rancorosa.
— Quando devo matar Tabunkah? — perguntou Cain,
encarando pai e filha.
— Receberá o aviso. Até lá, seria conveniente continuar
vivendo no meio deles. Vá ganhando a confiança dos
shoshones. Na hora indicada terá facilidade para liquidar
Tabunkah e os guerreiros mais perigosos para nós. Volte
para cá, voando e pronto. De acordo, Cain? Poderá mesmo
tomar-se nosso sócio, se quiser. Minha filha sente muita
simpatia por você.
— E eu por ela — murmurou Cain, contemplando a
ruiva com um olhar cobiçoso. — Contanto que me deixe
tornar a iniciativa. Entendeu, pequena?
— Sim — sorriu ela, aproximando-se do texano e
rodeando-lhe o pescoço com os braços bem torneados. —
Saberei esperar. Só peço uma coisa, Cain. Quando matar
Tabunkah, mate também Tainara.
— Tainara? — sussurrou Cain, voltando a sentir a
pontada no peito.
— Que tem ela que eu não tenha? — exclamou Judy,
erguendo a cabeça com altivez.
Cain sorriu e, sem se importar com a presença do pai,
tomou a ruiva nos braços e beijou-a demoradamente.
Primeiro no pescoço. Depois nos lábios, apertando-a com
suas mãos grandes e musculosas, fazendo-a gemer de
satisfação por, finalmente, poder colar seu corpo ao daquele
homem que despertara seus instintos.
Enquanto Judy gemia de prazer, Cain Lukas murmurava,
entre um beijo e outro:
— Ficarei esperando as instruções. Você não se
arrependerá.
CAPÍTULO SÉTIMO
Pensar é perigoso
O ruim em ficar aguardando instruções é que dá tempo à
pessoa para pensar. E pensar nem sempre é bom. O fato é
que Cain chegou a uma conclusão no fim dos dois dias em
que pensou muito sobre o assunto. Pensou e chegou a unia
conclusão: por que dividir um tesouro com os outros? Só
um idiota faria isso. Quem tem um cavalo não deve dar
metade ao companheiro. Meio cavalo não é nada. Logo,
dividir é uma grande tolice.
Na tarde do segundo dia, quando a cabeça de Cain
estava quase soltando fumaça de tanto pensar, um cavaleiro
se aproximou da margem do rio. O texano fumava
pensativo. Tainara dormia despreocupada, depois de se
terem amado à sombra de uma árvore.
A índia acordou quando o cavaleiro parou junto deles.
Sentou-se, inquieta... Afastaram-se, ficando fora do alcance
auditivo de Tainara. Sentaram-se numa pedra. Charles
Rogerson tirou do bolso um maço de charutos e deu-os a
Cain Lukas, sorrindo. E um garrafa de uísque, também, pois
o texano não podia passar sem bebida.
— Todos sabem que nos tomamos amigos, Cain — disse
o dono do armazém. — Se os índios nos virem conversando
aqui e estranharem, diga a eles que seu amigo Charles
Rogerson veio trazer-lhe charuto e uma garrafa de uísque.
— Está bem — respondeu Cain.
Calaram-se um instante. Rogerson respirou fundo e disse
num fio de voz.
— É para esta noite.
— Já?
— O esquadrão de cavalaria chegará amanhã à tarde.
Recebi informações precisas de meu vigia. Se você matar
Tabunkah esta noite, ateará fogo à pólvora.
— Sim. E a carroça com as armas e o uísque?
— Está tudo preparado. Mate Tabunkah e fuja para
Owyhee. Pouco depois meus homens com a carroça
tentaram passar pelas imediações do acampamento. Serão
atacados e fugirão, deixando as armas e a bebida nas mãos
dos peles-vermelhas. Os selvagens se embriagarão logo,
pode ter a certeza. Ao amanhecer eles, inteiramente
bêbados, atacarão o povoado.
— Isso significa que o povoado deverá resistir, pelo
menos, durante umas doze horas?
— Exato. Saberemos agüentar. Algumas pessoas talvez
morram. É o que nos convém.
— Com mil demônios, Rogerson — exclamou Cain. —
E eu estava convencido de que era um dos homens mais
cruéis de todos os tempos, eh?
— Como vê, sempre existe alguém pior, Cain. Isso o
preocupa?
— De modo algum. Os moradores daquele povoado
nojento não passam de imbecis. Merecem morrer. Pois que
morram!
— Bem, já sabe como deve agir.
— Descanse. Chegarei ao povoado três horas depois do
pôr do sol. Está bem assim?
— Perfeito. Como pensa matar Tabunkah?
— Deixe de ser tolo, Rogerson — rosnou Cain. —
Tenho um revólver, não é mesmo?
— Sim, e sabe usá-lo como ninguém — riu Rogerson.
— Bom, preciso ir embora. Mais algum esclarecimento?
— Não. Mato Tabunkah e fujo. Quando estiverem
furiosos contra mim, aparece a carroça com as armas e o
uísque. Os homens fogem e os índios se apoderam de tudo.
Ao amanhecer atacam o povoado. Eu estarei lá, é claro.
Resistiremos até a chegada da cavalaria. Ela se incumbirá
de afastar os peles-vermelhas. Perseguirá os shoshones e
acabou-se. Resultado: nova guerra com os índios e a reserva
ficará livre. Você a compra daqui a alguns meses e nos
tomaremos sócios.
— Parentes. É melhor falar assim. Minha filha está
obcecada por você, Cain.
— Pois bem. Dentro de pouco tempo poderei chamá-lo
de sogro, não é mesmo?
Charles Rogerson tomou a rir e acrescentou:
— Meu pessoal não gostou muito de saber que você está
do nosso lado. Mas eu sei como agir. Bem, é só, por
enquanto.
— Diga a Judy que chegarei logo à noite.
Despediram-se com um cordial aperto de mão. Cain
esperou Rogerson se afastar e foi para junto de Tainara. Fez
um sinal a mulher e montou a cavalo, exclamando:
— Vamos para o acampamento.
Estendeu o braço. Tainara segurou-se a ele e, num pulo
ágil, acomodou-se à garupa do animal. Enlaçando a cintura
de Cain Lukas com os dois braços, equilibrou-se, enquanto
ele esporeava o animal, iniciando um galope que só
terminaria no acampamento dos shoshones.
* * *
Ira Jason saiu da tenda espreguiçando-se e encarou o
texano, perguntando de mau humor:
— Que deseja?
— Tenho uma proposta a lhe fazer, renegado.
— Cuidado com essa palavra, Cain. Você está a
caminho de imitar-me.
— Não diga tolices.
— Qual é a proposta?
— Dinheiro. Muito dinheiro. Montanhas de cédulas.
Sacos e sacos de ouro.
— Ouro? — balbuciou Jason, incrédulo. — Já pensei
nisso uma vez. Há muito tempo. Para que preciso de sacos e
sacos de ouro, Cain?
Cain acendeu um charuto. Ofereceu fumo a Jason.
Sentaram-se perto da tenda, de pernas cruzadas. Tainara
sentou-se à entrada da tenda de seu pai, contemplando os
dois homens com um olhar suave. Para ela, tudo que o
marido fizesse, estava bem feito.
Cain conversou demoradamente com Ira Jason. Quando
acabou de contar tudo a respeito dos planos traçados por
Charles Rogerson e seus cúmplices, sem ocultar a proposta
que lhe havia feito. Jason empalideceu. Ficou branco como
um cadáver. Deu uma cusparada e balbuciou com
dificuldade:
— Devo estar louco. Ou é você quem está, Cain.
— Tudo que acabei de contar é verdade, Jason.
— Esse sujeito é o maior canalha que já existiu sobre a
face da terra. Irei agora mesmo a Owyhee.
— Devagar — atalhou Cain, sorrindo. — Calma,
renegado. Não deixarei você estragar os meus planos.
— Seus planos? Quais são?
— Bem. Estive pensando e cheguei a uma conclusão.
Tudo isso pode ser resolvido de outro modo. Bem diferente
do que Rogerson espera. O ouro solucionaria muitos
problemas dos índios, não acha?
— Claro. Os invernos são duros por aqui. A caça toma-
se difícil. Vivemos da venda das peles.
— Se tivessem ouro, o frio não complicaria a vida dos
peles-vermelhas. Enganei-me?
— Não. Está certo.
— Sendo assim, todos vocês dependem de mim.
— Não compreendo.
— Vou dizer o que pensei nestes dias. Posso partir para
Owyhee daqui a algumas horas. Direi a Rogerson que matei
Tabunkah, conforme havíamos combinado. A carroça com
as armas e o uísque aparecerá perto daqui. Você se
encarregará dela, impedindo que os índios toquem na
bebida e no carregamento de rifles. Não podem tocá-la,
entendeu, Jason? Deixem-na onde os brancos a
abandonarem.
— E depois?
— Chego ao povoado e digo a Rogerson que correu tudo
bem. Em seguida os homens da carroça aparecerão,
informando que a parte deles também foi feita. Fugiram, por
terem sido atacados pelos índios. Não saberão,
naturalmente, que você terá tomado conta da carroça e que
os shoshones não atacarão Owyhee. Claro, uma vez que eu
não matei Tabunkah.
— E que mais?
— Depois eu mato Rogerson e seus cúmplices e dou o
fora do povoado sem que os índios tenham aparecido e
muito menos atacado. Quando a cavalaria chegar,
encontrará a carroça abandonada. Isso mostrará ao
encarregado das negociações que os índios não querem a
guerra. Quando entrarem em Owyhee serão informados de
que um camarada chamado Cain Lukas andou matando uma
porção de gente por lá. Mas isso não terá a menor relação
com os índios. Talvez resolvam procurar-me. Antes, porém,
o tratado com os shoshones será assinado e a reserva
passará a pertencer definitivamente a Tabunkah.
— E você?
— Fugirei para longe. A situação continuará tranqüila,
pois não haverá guerra com os índios. Charles Rogerson e
seus cúmplices estarão mortos. Ninguém mais saberá a
respeito do ouro e vocês poderão viver sossegados.
— E o final da história?
— Quando eu voltar, trataremos de extrair o ouro das
montanhas. Os índios terão ouro, você terá ouro e eu terei
ouro.
— Teria, se seguisse os planos de Rogerson.
— Não. Teria muito menos. E eu quero a maior parte.
— Por isso trai Rogerson?
— Claro — riu Cain.
— Tainara sabe disso?
— Não. Não discuto essas coisas com mulheres.
— Bem. Mas eu terei que discutir com Tabunkah. Ele é
o chefe.
— Não perca tempo.
Ira Jason levantou-se e entrou na tenda do chefe. Tomou
a sair no fim de meio minuto e chamou Cain.
— Tabunkah quer que você entre comigo.
Os dois entraram na tenda de pele de búfalo.
Tabunkah estava recostado, com o peito nu. Jason
explicou a situação ao chefe dos shoshones. Quando
terminou Tabunkah disse qualquer coisa em sua língua e o
renegado traduziu para Cain:
— Tabunkah quer saber se você, agora, ama Tainara.
— Muito — respondeu Cain.
Jason traduziu a resposta do homem branco. Não
reparou que o próprio Cain Lukas ficara espantado, não só
com a resposta que dera à pergunta, como com a rapidez
com que expressara seu pensamento.
— Tabunkah quer fazer-lhe uma pergunta — disse
Jason, cortando as reflexões de Cain.
Cain voltou-se para o índio e ouviu-o perguntar com sua
voz rouca e abafada, num inglês razoável:
— Não haverá brancos mortos? Nem índios mortos?
— Não — respondeu Cain. — Brancos maus, sim.
Morrerão.
— Por que faz isso? — insistiu Tabunkah.
— Amo Tainara e os shoshones. Quero ouro para nós.
— Para os shoshones também?
— Também.
— Cain é meu filho. Pode fazer o que quiser — disse o
chefe, depois de dar uma chupada em seu cachimbo. — Se é
para o bem dos shoshones, pode fazer. Mas sem índios nem
brancos mortos. Sem guerra e sem luta com uniformes
azuis. Paz, sim.
Jason explicou a Tabunkah o plano de Cain. Quando
terminou, o chefe fez um sinal, concordando.
— O chefe deixa tudo por sua conta, Cain — disse Ira,
depois de trocar mais algumas palavras com o índio. —
Devemos ir embora e deixá-lo fumando sossegado.
Saíram da tenda principal. Jason afastou-se e Cain foi
para a sua. Entrou, sentou-se sobre as peles de búfalo e
começou a pensar. Tainara entrou atrás dele e sentou-se aos
pés do marido, em silêncio. O olhar de Cain Lukas foi
mudando pouco a pouco. Tainara compreendeu a
mensagem dos olhos do esposo. Deslizou até ele e ergueu a
cabeça, oferecendo os lábios. Cain Lukas contemplou-a e
mais uma vez comprovou que a índia tinha nos olhos o
brilho de milhares de estrelas.
* * *
Cain vestiu o casaco de couro. Afivelou o cinturão.
Por último colocou o chapéu. Voltou-se para Tainara,
que o contemplava, fascinada, ainda estendida nas peles,
como ele a deixara após algumas horas de amor.
— Vou embora, Tainara — disse ele, com voz suave.
— Você deve ficar até minha volta. Entendeu?
— Vou com meu esposo.
— Não. Desta vez, não. Vai ficar. Eu a matarei, se você
me seguir. Está claro?
— Sim — sorriu a índia.
— Muito bem.
Cain saiu da tenda. Assustou-se ao ver mais de duzentos
índios esperando do lado de fora. Ira Jason parou diante
dele mas não abriu a boca. Ninguém disse uma só palavra,
enquanto Cain encilhava seu cavalo.
O silêncio prosseguiu quando ele montou. Sacou o
revólver e deu um tiro para o ar. Os índios permaneceram
imóveis. Cain manobrou as rédeas e afastou-se. Ao chegar à
saída do acampamento, aumentou a velocidade, partindo
num galope alucinado em direção a Owyhee.
CAPÍTULO OITAVO
A traição
Cain Lukas entrou no povoado a todo o galope. Pulou da
sela diante do armazém de Charles Rogerson. O proprietário
abriu a porta para recebe-lo e perguntou:
— Feito?
— Sim — respondeu Cain, arquejante.
O texano entrou na loja. Enrugou a testa ao deparar com
Garrick, Hersholt e os condutores das carroças de
mercadorias.
— Malcom e Deck — apresentou Rogerson, impaciente.
— Tudo bem, Cain?
— Sim. É melhor mandar esses dois vigiarem a paliçada
— aconselhou Cain.
— Impossível, rapaz. Ainda não sabemos oficialmente
de coisa alguma — protestou Malcom.
— Se não ficarem vigilantes, morreremos todos.
— Vão — ordenou Rogerson. — Vigiem
disfarçadamente mas com atenção. Um de vocês dará o
sinal de alarme quando os índios atacarem. Mas não se
esqueçam, hem? Antes dos peles-vermelhas. chegarão os
que foram levar a carroça com as armas e o uísque. Deixem
Janney, Trevor e Walter passarem sem problemas,
entendido? Todos serão úteis até a cavalaria chegar.
— Alguém se aproxima — informou Garrick, que estava
perto da janela. — A cavalo. É uma índia.
— Quietos todos — exclamou Cain, contendo os
homens que já corriam para a porta. — Deve ser Tainara,
minha mulher.
— Não a matou? — perguntou Rogerson, aborrecido.
— Não estava por perto. Eu não podia perder tempo
procurando-a, depois de ter dado um tiro em Tabunkah.
— Compreendo. Podemos matá-la agora.
— Não — atalhou Cain. — Isso mostraria aos outros
brancos do povoado que fomos os agressores.
Acalme-se, Rogerson. Deixe a índia chegar até aqui.
— Está bem. Mas você sabe o que deve fazer com ela.
— Sei perfeitamente. Vou buscá-la.
Cain esperou que Tainara desmontasse e chamou-a com
um gesto autoritário. Segurou-a pelo braço, furioso, e
empurrou-a para a loja, gritando:
— Então você me seguiu, bem? Veio vingar a morte de
seu pai?
Tainara arregalou os olhos, assustada. Cain impediu-a de
falar, dando-lhe uma bofetada.
— Mate-a de uma vez — rosnou Rogerson.
— Isso mesmo — apoiou Judy, aparecendo na porta do
interior da casa.
— Tenho uma idéia melhor — disse Cain, com um
sorriso enigmático. — É melhor conservá-la viva. A
cavalaria pode afastar-se e Tainara nos servirá de refém. Se
os shoshones aparecerem, ameaçaremos matá-la, caso eles
ataquem o povoado. Com isso estaremos garantindo nossa
sobrevivência.
— Tem razão — concordou Rogerson.
Cain levou Tainara para os fundos da loja e voltou para
o armazém. Os homens estavam reunidos a um canto,
confabulando. Judy abraçou-se ao texano, oferecendo os
lábios. Ele a beijou rapidamente e murmurou:
— Calma, pequena. Teremos tempo, depois.
— Vamos para o meu quarto.
— Não, Judy. Os índios podem chegar a qualquer
momento.
Afastou-se e foi juntar-se aos homens. Rogerson estava
perto da janela, vigilante, de rifle em punho, esperando pelo
sinal de alarme dos homens que enviara para a entrada do
povoado.
* * *
Trevor, Walter e Janey chegaram quase duas horas
depois. Informaram que tudo correra de acordo com os
planos traçados por Rogerson. Haviam abandonado a
carroça com as armas e o uísque ao serem atacados por um
bando de índios alucinados.
— Ótimo — murmurou o comerciante, esfregando as
mãos de alegria. — Mais um pouco e tudo estará terminado.
Cain, venha comigo até a cozinha. Precisamos acertar
nossas contas.
Cain acompanhou Rogerson aos fundos da loja. Tainara
estava sentada no chão. Judy, da cadeira de balanço,
apontava o rifle para a índia, com um olhar carregado de
ódio.
— Como está ela? — perguntou Cain.
— Bem — sorriu a ruiva. — Parece uma estátua. Quer
café?
— Boa idéia. Dê-me o rifle. Eu vigiarei minha mulher.
Tainara olhava para os dois, sem compreender. Judy
serviu café ao texano e ao pai. Enquanto o tomavam,
Rogerson sorrindo, murmurou:
— Tudo em ordem, Cain. Vou entregar os três mil
dólares, antes de você sair.
— Sair? Eu?
— Claro! Não vamos ficar com um homem aqui dentro,
quando haverá luta lá fora. A cavalaria só chegará daqui a
quatorze ou quinze horas, não se esqueça.
— Tem razão — balbuciou Caio, preocupado. Charles
Rogerson entregou os três mil dólares a Cain Lukas. O
texano guardou-os no bolso do casaco. Lançou um olhar a
Tainara e murmurou, antes de sair:
— Não matem a índia, hem? É o melhor trunfo para nós.
— Vá descansado — sorriu Rogerson, empurrando-o
para a porta da loja.
Cain saiu. Atravessou o armazém e deu um passo para a
calçada.
— Não devia ter dado o dinheiro pai — reclamou Judy,
ao ouvir a batida da porta da frente.
— Não se preocupe, filha — sorriu o comerciante, com
um olhar satânico. — É o pagamento dos homens que vão
matar Cain, assim que ele pisar no alpendre.
Ao ouvir aquelas palavras, Tainara deu um pulo de seu
canto, tentando arranhar o rosto gorducho de Rogerson. O
dono do armazém recuou, defendendo-se, e imobilizou-se
ao ouvir uma descarga de rifles. Tainara e Judy também
ficaram paralisadas.
— Seu esposo — riu Rogerson, encarando a índia. —
Planejei tudo muito bem. Sabe o que acontecerá quando a
cavalaria aparecer? Diremos que ele matou seu pai e que
nós o matamos para entrega-lo aos shoshones. Está tudo
correndo muito bem.
Um tiro de revólver quebrou o silêncio da noite,
acompanhado por um grito prolongado.
— Não conseguiram matá-lo com a primeira descarga
— rosnou o comerciante. — Esse homem é um demônio!
Mais dois tiros de revólver ecoaram. O grito foi mais
agudo. Um terceiro tiro ainda. Novos disparos de rifle e de
revólver, acompanhados sempre por gritos apavorantes,
continuaram a chegar aos ouvidos das três pessoas que se
encontravam na cozinha do armazém. Roger olhou para o
alto, ouvindo algo rolar pelo telhado e murmurou:
— Esse foi Hersholt. Estava no telhado. O desgraçado
conseguiu matá-lo também.
— Precisa agir, pai — balbuciou Judy, aflita. — Saia
pelos fundos e cerque-o. Mate Cain pelas costas.
Rogerson fez um movimento afirmativo com a cabeça.
Avançou para a porta dos fundos mas não chegou a abri-la.
Tainara agarrou-o pelo pé derrubando-o de bruços. Ao cair,
Charles Rogerson bateu com a cabeça na mesa e desabou
sem sentidos. Judy correu para junto do pai, gritando,
desesperada:
— Índia maldita! Eu a mato!
Estendeu a mão para apoderar-se do revólver do pai. Ao
voltar-se para Tainara, empalideceu. A índia apossara-se do
facão de cozinha e, num movimento espantoso, enterrou-o
no peito da rival, sem que Judy tivesse tempo sequer de
apontar a arma. Sem perder tempo, Tainara arrancou o
revólver da mão crispada da ruiva e correu para o armazém,
chamando:
— Cain! Cain! Vou ficar com você.
Dois segundos depois da saída da índia, a porta dos
fundos escancarou-se e Cain Lukas entrou cambaleante,
com o rosto coberto de sangue e o braço esquerdo
pendurado, inerte. Mas o revólver continuava firme na
direita. Aproxime-se dos dois corpos caídos no chão.
Empurrou o cadáver de Judy. Charles Rogerson começava a
voltar a si. O texano agarrou-o pelo pescoço, perguntando:
— Onde está ela? Onde está minha mulher?
Uma descarga de rifle ecoou na rua. Um grito estridente
de mulher chegou ao ouvido de Cain Lukas. O texano
ergueu-se com os olhos arregalados, gemendo:
— Não! Não!
Rogerson começou a rir. Cain voltou-se para ele,
apontou o revólver e puxou o gatilho sem a menor
hesitação, apagando para sempre aquela risada sarcástica.
— Tainara — gritou Cain, correndo para o armazém.
Abriu a porta da frente mas estacou petrificado ao
deparar com os três homens que se aproximavam de rifle
apontado. Tainara estava caída no chão, no meio da
esplanada. Cain correu para junto dela, sem se preocupar
com os adversários sobreviventes. Foi uma imprudência,
pois os três últimos inimigos abriram fogo contra ele. Cain
Lukas não se intimidou. Continuou avançando e caiu de
joelhos, rolou de lado, tomou a erguer-se, avançou
encolhido, aos saltos, como se dançasse um estranho
bailado.
A cada movimento, a cada reviravolta, seu revólver
cuspia chumbo e as balas partiam em direção àqueles três
vultos que os olhos do texano quase não podiam distinguir.
Por causa do pó e por causa das lágrimas.
O que aconteceu parecia inacreditável. Impossível. Mas
foi a realidade. Cain Lukas atirava por puro instinto. Suas
balas, entretanto, alojaram-se nos alvos a que se
destinavam. Malcom foi o último a morrer. Caiu junto ao
cadáver de Walter. Trevor estava alguns metros à
retaguarda.
— Tainara — balbuciou Cain Lukas, perdendo as forças
e caindo a alguns passos do ponto onde se encontrava a
índia.
— Cain — gemeu ela. — Estou bem.
— Eu também estou, índia — disse ele, arrastando-se
para chegar até ela. — Podemos ir juntos para qualquer
lugar... porque... porque... eu...
— Cain, eu irei com você... Sempre!
Foram suas últimas palavras. De nada adiantaria ter
continuado a falar. Cain também não a podia ouvir.
EPÍLOGO
Ao anoitecer do dia seguinte, o chefe shoshone recebeu
em sua tenda a visita do tenente de cavalaria e do
encarregado dos assuntos índios.
Diga-lhe que não viemos para falar sobre o tratado —
murmurou o encarregado ao ouvido de Ira Jason. —
Estamos aqui para apresentar nossos sentimentos pela morte
da filha de Tabunkah.
Ira Jason trocou algumas palavras com o velho chefe dos
shoshones e voltou-se para os brancos, informando:
— O chefe Tabunkah sabe que o governo dos Estados
Unidos não é o culpado pela morte de sua filha. Foi uma
questão entre brancos. Tainara era esposa de um deles.
Segundo ouvimos dizer, senhor Foster, tudo não passou de
um problema de dinheiro.
— Ninguém nos soube informar o que aconteceu em
Owyhee, senhor Jason — murmurou Foster. — Nada tem a
nos dizer?
— Não, senhor. Cain Lukas casou-se com Tainara e
viviam felizes, Só os mortos podem saber o que se passou
ontem no povoado.
— Também não sabe informar a respeito da carroça com
armas e uísque? — perguntou o oficial de cavalaria.
— Que carroça? — exclamou Jason, espantado.
— Encontramos uma. Oh, não importa — cortou o
oficial. — Vocês não sabem de nada. Bem, parece que por
aqui está tudo em ordem.
— Exatamente. Esperamos pelos senhores amanhã cedo,
para a assinatura do tratado. Agora, queiram desculpar-nos,
mas temos um funeral duplo.
Os brancos despediram-se. Ira Jason acompanhou-os até
a saída da tenda. Voltou para junto do chefe da tribo.
Contemplou-o um instante, notando seu abatimento e
murmurou:
— Não fique triste, Tabunkah. Sua filha evitou uma
guerra entre os cara-pálidas e os shoshones.
— Cain também — balbuciou o velho.
— Sim. Ele também. Não sei como, mas é a verdade.
Cain Lukas não era um homem bom. Era desses que os
brancos desejam pendurar numa corda. Conheci-o bem,
Tabunkah. Ele era mau. Mas amava Tainara. E os dois
evitaram uma nova guerra. Não fique triste. Cain Lukas
nunca fez nada de bom.
— Não estou triste — disse o chefe da tribo.
O oficial da cavalaria parou um instante e voltou-se na
sela. Gordon Foster imitou-o. O resplendor de uma fogueira
elevava-se contra o céu avermelhado do entardecer.
— Cain Lukas está sendo cremado — balbuciou o
tenente. — Não acha isso terrível, senhor Foster?
— Por quê? Existem brancos, em lugares civilizados,
que também querem ser cremados.
— Não sabemos se esse tal Cain Lukas gostaria de
acabar assim.
— Não. Não sabemos. Mas isso não é conosco, tenente.
Viemos para assinar um tratado de paz e conceder uma
reserva aos índios. Cumprimos nossa missão sem
dificuldades. Isso é o que importa, porque representa
centenas, milhares de vidas poupadas. Tenho certeza de que
esta reserva será uma das melhores e mais tranqüilas.
— Disseram-me que Tainara era uma índia jovem e
muito bonita — prosseguiu o tenente. — E que o tal Cain
era um sujeito estranho. Repulsivo e simpático ao mesmo
tempo. Calmo e agressivo. Um camarada feito de
contrastes.
— Isso não conta mais, tenente. Os dois estão mortos.
Amavam-se e viveram felizes durante certo tempo. Seus
espíritos devem estar unidos, neste momento, em algum
lugar. Os índios acreditam num mundo para onde os
espíritos dos mortos são transportados. Chama-se Manitu.
Reiniciaram a cavalgada, deixando para trás o clarão das
piras funerárias de Tainara e de seu esposo branco, Cain
Lukas.
Do alto de uma encosta, um cavalheiro solitário com o
braço numa tipóia equilibrava-se precariamente sobre sua
montaria. Um sorriso amargava suas feições curtidas pelo
sol incremente do oeste. Não era de bom agouro assistir ao
próprio funeral. Então puxou o cabresto do cavalo e partiu a
trote lento, rumo às últimas luzes do ocaso.
A seguir: A MOEDA DO ÓDIO