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Revista Discente Expressões Geográficas, nº 07, ano VII, p. 11 - 31. Florianópolis, junho de 2011. www.geograficas.cfh.ufsc.br
DA GEOGRAFIA ÀS IMAGENS DO CINEMA: UMA DISCUSSÃO SOBRE
ESPAÇO E GÊNERO A PARTIR DE PEDRO ALMODÓVAR
Karina Eugenia Fioravante
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG)
karina_frr@hotmail.com
Sergio Ricardo Rogalski
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG)
sérgiorogalski@yahoo.com.br
Resumo
O objetivo desse artigo é trazer algumas considerações acerca das espacialidades e de suas relações com as performances de gênero a partir do filme Todo sobre mi madre, produzido pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Elegemos esse filme devido a dois motivos. Primeiramente por ter sido um filme de grande repercussão, tendo ganhado diversas premiações especializadas alcançando, da mesma forma, uma grande audiência. Também devido às especificidades de gênero e espacialidade serem centrais na construção da trama. Nossa perspectiva metodológica é analisar as relações conceituais desses dois elementos com a obra escolhida. Concluímos que a construção das vivências cotidianas e da mesma forma, a construção das performances de gênero dos personagens apresentados, têm intrínseca relação com a espacialidade na qual estão inseridos. Nesse filme viajamos por duas espacialidades urbanas, as quais são construídas mediante a representação da personagem central da trama. Em Madrid, observamos uma clara normatividade espacial a partir da construção regrada da personagem. Já a Barcelona que nos é apresentada, é subversiva, marginal. Observamos, portanto, que as representações dos papéis de gênero, e suas espacialidades são desconstruídos e reconstruídos em um incessante jogo representacional.
Palavras – Chave: Geografia; cinema; espaço; gênero; Almodóvar
Abstract
The purpose of this essay is to bring some considerations towards the spatialities and its relations with gender performances construct by the movie 'All about my mother' produced by the Spanish filmmaker Pedro Almodóvar. We chose this particular movie for two reasons. First, it was a movie with big repercussion, reaching this way, a large masse of people. Also because this specificities of
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gender and spatiality are central all long the construction of the movie. Our methodological perspective is analyze the conceptual of this two elements with the film elected. We concluded that the construction of daily experiences, and similarly, the construction of gender performances of the characters presented are intrinsic related to the spatiality to which they belong. In this film we traveled through two urban spatialities, which are built by the representation of the central character in the plot. In Madrid, we observed a clear spatial normatively ruled from the building‟s character. Instead, Barcelona is shown as subversive, marginal. We observed, therefore, that the representation of gender roles, and their spatialities are desconstructed and reconstructed in a non-stoping representacional game. Key Words: Geography; cinema; space; gender; Almodóvar
INTRODUÇÃO
Este artigo tem por objetivo trazer algumas reflexões sobre a construção das
performances de gênero e de suas espacialidades a partir da película do cineasta
espanhol Pedro Almodóvar – „Todo sobre mi madre’. Para tanto, dividiremos essa reflexão
em dois eixos específicos de análise. Em um primeiro momento discutiremos o conceito
de espaço geográfico, uma vez que, na perspectiva desse ensaio, este aparece enquanto
condição imprescindível para desenvolvimento das tramas cinematográficas. Esperamos
também, obter êxito no sentido de demonstrar que o espaço e as espacialidades
produzidas pelo cinema são um interessante viés de discussão para os geógrafos. Num
segundo momento estaremos argumentando especificamente sobre as categorias de
análise que elencamos, ou seja, baseados no filme escolhido, estaremos discutindo as
perspectivas de gênero e sexualidade na Geografia.
Nesse artigo vamos explorar duas filiações epistemológicas pouco abordadas na
ciência geográfica. Primeiramente, o diálogo que pode ser imbricado entre o cinema e a
Geografia. Da mesma forma, as discussões acerca do conceito de gênero e suas
representações espaciais, as quais vêm sendo colocadas em segundo plano nas análises
da Geografia.
As obras de Almodóvar são desafiadoras, subversivas. O chamado „diretor de
mulheres‟ vem criando em seus filmes verdadeiras espacialidades de transgressão,
espacialidades onde o mais improvável e extraordinário é apresentado como natural,
parte imprescindível de suas tramas. Escolhemos uma obra da produção fílmica do
cineasta espanhol Pedro Almodóvar devido à peculiaridade de suas criações, as quais
vêm despertando o interesse de cientistas sociais das mais diversas áreas. A produção
fílmica de Almodóvar é um campo riquíssimo para o qual podemos direcionar nosso
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interesse geográfico. Compartilhamos das idéias de Cosgrove (1989) quando o autor
afirmou que a geografia está em toda parte. No universo criado por Almodóvar a
Geografia, ou se podemos colocar dessa forma, as geografias se exacerbam.
Para apoiar nossas discussões trazemos as perspectivas de geógrafas/os
engajadas/os com as correntes feministas da ciência, bem como de outros pesquisadores
que vêm direcionando seu olhar para essas problemáticas que envolvem noções de
gênero e sexualidades, tais quais, Silva (2009), Rose (1993), McDowell (1999), Lauretis
(1987). Da mesma forma, discutimos com geógrafos como Massey (2009) e Gomes
(2008) para compreender as espacialidades produzidas pelas imagens fílmicas. Para o
último, o conceito de cenário se apresenta enquanto uma interessante possibilidade
metodológica de análise para as imagens produzidas pelo cinema. Sendo assim, é a partir
desse conceito que pautamos nossas reflexões neste artigo.
Não nos interessamos por discutir qual era a intenção específica de Almodóvar. O
que gostaríamos de evidenciar é que a filmografia desse cineasta, e em especial esse
filme, é um interessante caminho de reflexão e de diálogo entre a Geografia e as
performances de gênero e sexualidades. É isso que demonstraremos no decorrer de
nossa reflexão.
DA GEOGRAFIA E O CINEMA: UM DIÁLOGO ENTRE ESPAÇO E IMAGENS
FÍLMICAS
Nós geógrafas/os somos treinados a direcionar nosso interesse para assuntos e
fenômenos que tenham, intrínseca ou explicitamente, relação com o espacial. Os filmes,
as imagens produzidas pelo cinema podem ser vistas da mesma forma. O que queremos
dizer com isso? Que a Geografia pode, e se não deve, contribuir de forma ativa nesse
processo, pois, sem a espacialidade construída pelos cenários fílmicos, não existe trama.
Essa relação é indissociável. Sendo assim, defendemos que este assunto, além de
pertinente, pode ser um interessante viés para nós, geógrafas/os, abrirmos o nosso leque
de interesse. Esse artigo contribui de duas formas; trazendo as discussões espaciais das
produções fílmicas, demonstrando, dessa forma, sua potencialidade para a Geografia,
bem como, trazendo discussões relacionadas às questões de gênero e sexualidades.
Abordagens de outras ciências já direcionaram seu interesse pela produção fílmica
de Almodóvar, especialmente para o filme que discutiremos nesse artigo. Entretanto, a
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Geografia pode alimentar e provocar ainda mais discussões em um sentido único, o
espacial, pois este engloba de certa forma, todos os outros já tratados por outras áreas co
conhecimento, como violência, preconceito, drogas, questões de HIV, entre outras.
Quando analisamos as produções fílmicas com um olhar crítico geográfico
percebemos o quanto a Geografia vem perdendo em não demonstrar o devido interesse a
essa temática. Observando a história do pensamento geográfico percebemos que a
Geografia tem sido uma ciência que tem tradição a depositar seu interesse em
determinadas temáticas.
Entretanto, nos últimos anos estamos observando a difusão de uma série de
trabalhos que se intitulam pertencentes a uma corrente chamada de Nova Geografia
Cultural. Esta linha está pautada em uma visão crítica às proposições da „Geografia
Cultural Tradicional‟, identificada com a Escola de Berkeley e da mesma forma, com as
proposições de Carl Sauer. É pregada, então, a ruptura com o positivismo e com a noção
de cultura enquanto conceito material e superorgânico. O foco dessa nova corrente
passa, então, a ser as sociedades contemporâneas urbanas, deslocando o enfoque para
manifestações culturais não materiais, como a pintura, a arte e o cinema, por exemplo. O
artigo de Duncan, publicado em 1980, intitulado The Superorganic in American Cultural
Geography passa a ser um dos principais pilares das críticas realizadas à Geografia
Cultural Tradicional. O autor nega a noção de uma cultura que possa governar as ações
dos indivíduos,realizando uma severa crítica a então abordagem vigente, a qual tendia a
apresentar explicações reificadas de cultura.
Com o desenvolvimento da Nova Geografia Cultural surgem novas possibilidades
investigativas, as quais podem ser discutidas com legitimidade e principalmente, com um
ponto de vista especificamente geográfico. A abertura que esse sub-campo nos confere é
um extraordinário estímulo de valorização a problemáticas de pesquisas até então
negligenciadas. Temáticas ousadas e inovadoras são relevantes na medida em que
incitam o processo de renovação das discussões já estabelecidas e até mesmo criam
novas metodologias originais (GOMES, 2008).
O desafio desse artigo é pensar geograficamente imagens e significações
produzidas por filmes. O interesse da Geografia pelo cinema é recente, tendo maior
expressividade ao longo da década de 2000. Em pesquisa realizada na Biblioteca Digital
Nacional de Teses e Dissertações no portal do Instituto Brasileiro de Informação de
Ciência e Tecnologia – IBICT – e do Banco de Teses da Coordenação de
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Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior – CAPES – com as palavras chave
„Geografia e Cinema‟, verificamos apenas treze trabalhos relacionados com a temática.
Quadro 1 – Levantamento das produções sobre cinema e geografia
Título Ano Nível Instituição
Uma Geografia do cinema: imagens do urbano 2008 Mestrado PUC – SP
Cinema e Geografia: a idealização do rural 2005 Mestrado UFRGS
A geografia dos cinemas do lazer paulistano contemporâneo: redes e territorialidades dos cinemas de arte e multiplex
2009 Mestrado USP
Fronteiras híbridas nas geografias imaginárias do cinema gaúcho: o exemplo de “cerro do Jarau” (2005), de Beto Souza.
2010 Mestrado UFRGS
Vila – Floresta – Cidade: território e territorialidades no espaço fílmico
2009 Doutorado UNICAMP
Cenas de um público implícito: territorialidade marginal, pornografia e prostituição travesti no cine Jangada
2005 Mestrado UFC
Fronteiras da fala – bala: Geografia do universo ficcional de cidade de Deus
2007 Mestrado UFMG
Espaço público, imagem da cidade: uma análise geográfica do filme de Eric Rohmer (“o signo do leão”França, 1959)
2007 Mestrado UFRJ
Gravando o Rio! A indústria do cinema e a metrópole do Rio de Janeiro
2009 Doutorado UFRJ
Os dois Orfeus, representação da paisagem, favela no cinema: o olhar estrangeiro e o olhar de pertencimento
2009 Mestrado UERJ
Rio de cinema – made in Brazil, made in everywhere: o olhar norte americano construindo e singularizando a capital carioca
2004 Mestrado UFRJ
Por uma geografia pobre: personagens geográficos e a contraposição de espaços de cinema
2008 Doutorado UFRJ
A trilogia sobre a paisagem carioca na obra de Nelson Pereira dos Santos
2006 Mestrado UERJ
Fonte: IBICT e CAPES Organização: Fioravante, K. E., Rogalski, S. R., 2011
Como podemos observar no quadro acima, as produções fílmicas permitem aos
cientistas realizar as mais diversas abordagens. As temáticas que podem ser discutidas a
partir do cinema são plurais. O que gostaríamos de evidenciar é que apenas um desses
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trezes trabalhos publicados englobam questões relacionadas às sexualidades. Esse fato
demonstra a impermeabilidade da ciência geográfica brasileira a essas discussões.
Entretanto, percebemos que todos esses trabalhos trazem um importante viés para a
Geografia, ou seja, o debate espacial.
Da mesma forma, em nossa reflexão, o espaço se apresenta de forma central, uma
vez que entendemos que é condição essencial para que as tramas fílmicas aconteçam. O
conceito de espaço teve diversas abordagens ao longo da história da ciência geográfica,
tendo sido desprezado e revalorizado de acordo com o contexto científico vigente.
Compreendido enquanto matriz, simbólico, campo de lutas e condição social, foi muitas
vezes confundido com a evolução da própria ciência geográfica (CORRÊA, 1995). As
abordagens sobre espaço sempre foram plurais, mostrando assim, que a razão dessa
pluralidade é a mesma da existência da ciência (GOMES, 2010). Em nossa reflexão
vamos compreender o espaço através dessa noção de pluralidade, de multiplicidade.
Entendemos o conceito de espaço construído a partir de duas categorias, uma
física – material – e uma simbólica. Ou seja, produzido pela distribuição das coisas, de
fatos, bem como, pelas ações que se orientam em relação a essa distribuição (GOMES,
1997). Utilizamos também as discussões de Massey (1999), a qual nos apresenta três
proposições através das quais podemos compreender o espaço/espacialidade. Pensar o
espaço como sendo produto de inter-relações, ou seja, construído por meio de interações
que vão do global até o intimamente pequeno. Da mesma forma, considerar o espaço
como a esfera que possibilita a existência da multiplicidade, ou seja, a esfera na qual
diferentes trajetórias coexistem e finalmente, pensamos o espaço sempre em construção.
O espaço não é concebido aqui como pronto, um receptáculo para identidades pré-
constituídas e sim, como o espaço da possibilidade, sempre em devir, pois,
parafraseando Massey (2008) se o espaço for aberto, o futuro também o será.
Os espaços fílmicos, se assim os podemos chamar, se apresentam dessa forma.
São construídos e desconstruídos constantemente mediante incorporação de novos
simbolismos, de novas corporalidades, sempre estando conectado com seus
personagens. Nos filmes criados por Almodóvar isso é facilmente observado. As
espacialidades criadas pelo cineasta são cenários onde diferentes sujeitos coexistem, em
harmonia ou não.
Parece comum as críticas apontarem que os personagens criados por Almodóvar
são „marginais‟, ou seja, em suas películas permeiam sujeitos como: homossexuais
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casados, mulheres com tendências homicidas, travestis, transexuais, lésbicas com
estereótipos destoantes, freiras drogadiças entre outros. Outra característica central do
cineasta é trazer às telas uma espacialidade urbana que nos é apresentada de forma
singular. Por que dizemos de forma singular? Pelo fato de que o urbano que nos é
apresentado parece se entrelaçar perfeitamente com os seus personagens „marginais‟. É
possível mergulhar em um mundo onde as diversidades, além de serem aceitas, são
necessárias.
A Academia tem dado pouca relevância à espacialidade de determinados sujeitos.
As discussões trazidas pela Nova Geografia Cultural e pelas Geografias Feministas têm
como um de seus maiores méritos a incorporação de temáticas de pesquisa que vêm
sendo esquecidas pela ciência. As Geografias Feministas são plurais apresentando um
grande escopo de interesse. No começo da década de 1990, surgem os chamados
estudos Queer, um sub-campo das Geografias Feministas o qual contempla temáticas
que até então vinham sendo deixadas em segundo plano pelos pesquisadores feministas.
Apoiados principalmente nas idéias desconstrucionistas de Jacques Derrida (1974) e
Michel Foucault (1976), os pesquisadores conseguem abraçar temáticas periféricas
dentro do campo de poder acadêmico.
As/os pesquisadoras/es engajadas/os com esse sub - campo se interessam por
temáticas relacionadas às questões de sexualidades e suas representações no espaço.
Essa abordagem leva à compreensão de culturas sexuais, bem como evidencia a
exclusão e marginalização de determinados grupos sociais, frutos da homofobia nas
atividades econômicas e políticas. Interessante recordar que a produção geográfica
relacionada às sexualidades nos países anglo-saxões esteve centrada em grupos de gays
e lésbicas, sendo raras as abordagens espaciais de outras identidades sexuais, como
transexuais, transgêneros e assim por diante.
Sendo assim, as/os geógrafas/os engajadas/os com as correntes feministas
passam então a pensar um espaço mais complexo, composto por processos múltiplos,
apontando sempre a relatividade das escalas de análise (SILVA, 2003), pois como aponta
Castro (1995), quando alteramos a escala de análise de um fenômeno, o próprio
fenômeno se altera. O conceito de gênero, elemento trazido pelas/os geógrafas/os
feministas, aparece como importante ferramenta metodológica, na medida em que surge
como uma interessante possibilidade de subversão da visão hegemônica e universal da
ciência moderna.
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Em nossa reflexão, compreendemos o conceito de gênero enquanto um
mecanismo, uma ficção reguladora através da qual se naturalizam as noções de
masculinidade e feminilidade. Butler (2003) argumenta contra a idéia determinista, na qual
significados culturalmente construídos são inscritos em corpos anatomicamente
diferenciados de homens e mulheres. Esses corpos passivos a inscrição cultural criam, na
visão de Butler (2004) destinos tão fixos e inexoráveis quanto à própria visão biologizante
contra a qual as feministas lutavam. Ela argumenta, então, que as normas de gênero são
incorporadas pela sociedade, regendo dessa forma a inteligibilidade social das ações
humanas.
Butler (1990) afirma que essa visão dualista é prejudicial, na medida em que as
identidades que não se encontram dentro dessa matriz binária tornam-se abjetas. A
autora aponta, então, que a linearidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual é uma
falácia, pois os seres humanos, em sua vivência concreta, transitam entre esses
elementos, instituindo complexidades permanentemente abertas e em constantes
transformações. Utilizando essa perspectiva, Butler (2003) consegue dar visibilidade a
sujeitos que até então se encontravam invisíveis.
Defendemos que os corpos regidos pelas normas de gênero não estão limitados a
executar os padrões hegemônicos de feminilidade e masculinidade, ao contrário, são
maleáveis. Essa é a perspectiva que adotamos em nossa reflexão. Pensamos o gênero
não apenas em sua variação entre „masculino‟ e „feminino‟, mas sim, como uma
ferramenta capaz de dar visibilidade a performances múltiplas, pluriversais.
O engajamento de geógrafas/os com as discussões feministas se deve ao fato de
que o espaço é vivenciado de forma antagônica por diferentes sujeitos, e que a questão
de gênero, com todas suas interseccionalidades, como raça, etnia e classe, por exemplo,
tem influência central nisso. Também pensamos que a espacialidade interfere de forma
ativa na construção das performances de gênero.
Entendemos o gênero como uma performance, diferenciado espacial e
temporalmente. Ou seja, se institui mediante ações contínuas que, se de um lado
expressam as normas de gênero, por outro comportam a sua desconstrução no processo
de atuação, gerando configurações fora dos eixos restritivos da bipolaridade e da
heterossexualidade compulsória.
Essa idéia também foi central no momento de toda construção do questionamento
desse artigo. Seria impossível conceber a pluriversalidade criada por Almodóvar nos
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apoiando em idéias binaristas presentes na matriz heterossexual. Optamos por considerar
essas três performances de gênero, pois todas têm representações espaciais muito
próprias na produção de Almodóvar. Dizemos muito próprias devido ao fato de que na
grande maioria das vezes são desconstruídas. O estereótipo feminino incorporado
socialmente de fraqueza e submissão é subvertido. Até mesmo a comum associação da
mulher aos espaços privados é negada, pois em Almodóvar, as mulheres aparecem como
figuras centrais nos espaços públicos.
Pedro Almodóvar é aclamado pela crítica como um diretor intimamente ligado às
questões femininas e conhecido pela audiência devido a sua abertura a questões relativas
às sexualidades, sendo estas, na grande maioria das vezes, apresentadas de forma crua
e chocante. No filme Todo sobre mi madre, a linearidade execrada por Butler (2003) é
mais uma vez subvertida pelo cineasta quando ele nos apresenta Lola, travesti que ao
longo da trama, é pai por duas vezes.
Lauretis (1987) traz que o gênero é uma representação, como já afirmamos
anteriormente. A autora também defende que a construção do gênero também comporta
sua desconstrução. Essas idéias não são inovadoras para quem está em contato com a
bibliografia anglo - saxã contemporânea, entretanto o que é inovador em Lauretis (1987) é
a interessante associação com o que ela chama de „tecnologias do gênero‟. Segundo a
autora, existem tecnologias que são capazes de produzir e reproduzir essas
representações, sendo os filmes uma delas. Na sociedade contemporânea, globalizada,
essas novas tecnologias de linguagem visual são interiorizadas de forma rápida. Um claro
exemplo disso são as tendências de publicidade lançadas em telenovelas ou em filmes de
grande repercussão. Para Lauretis (1987) as representações de gênero são interiorizadas
da mesma forma.
A Geografia tem dedicado pouco interesse pelas questões visuais. Rose (2001)
alerta para o fato de que nós, cientistas sociais, necessitamos desenvolver a capacidade
de interpretar e compreender imagens, uma vez que elas se constituem em importantes
meios através dos quais a vida cotidiana se desenvolve. As imagens estão presentes em
todas as formas de relações sociais, sendo em determinadas situações, utilizadas na
substituição de palavras. Entretanto, a autora defende que não devemos esquecer que as
linguagens visuais, na qual ela inclui as produções fílmicas, não são inocentes, muito pelo
contrário, são construídas mediante uso de várias práticas, tecnologias e conhecimentos.
Apresentando vários métodos capazes de dar inteligibilidade a uma imagem, a autora não
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se posiciona, apenas defende a importância de consideramos o „agenciamento da
imagem‟, ou seja, como já dito, sua capacidade de intervir no mundo, considerando as
práticas sociais e os efeitos que elas produzem.
Vários autores como, Duncan e Ley (1997), Cosgrove e Daniels (1988) e Panofsky
(1979) vêm nos apontando metodologias de interpretação de produções visuais que vão
desde uma iconografia da paisagem até noções de semiologia e aproximações
antropológicas com a pertinência social das imagens. Compartilhamos das idéias de Rose
(2001) quando a autora nos traz que não existe um método que se sobreponha a outro.
Existem sim, metodologias que são mais apropriadas aos estudos de determinadas
imagens, sempre levando em consideração o objetivo de pesquisa.
Gomes (2008) traz o conceito de cenário como possibilidade explicativa, bem
como, enquanto uma possível interconexão entre a Geografia e o cinema. Para o autor,
esse conceito serve como ferramenta para revelar o conjunto de figurações espaciais e
suas relações com a estrutura narrativa. O autor defende que, toda e qualquer referência
a ordem espacial deve ser considerada, pois é expressiva, ou seja, agrega significação à
trama. Em suas palavras,
“(...) queremos a partir da palavra cenário reconectar a dimensão física às ações, ou, em outras palavras, queremos associar os arranjos espaciais aos comportamentos e, a partir daí, poder reinterpretar suas possíveis significações.” (GOMES, 2008, p. 200)
Enfim, a compreensão de como se estabelecem as representações espaciais
constituintes das performances de gênero e sexualidades produzidas por meio da
produção fílmica de Pedro Almodóvar é um grande desafio teórico e metodológico, pois
aborda dois elementos pouco comuns nas análises geográficas: os cenários fílmicos e as
representações de gênero. Nesse sentido, o artigo contribui no sentido de valorizar dois
campos conceituais pouco explorados.
DA PELÍCULA TODO SOBRE MI MADRE: ESPACIALIDADES E PERFORMANCES DE
GÊNERO
A obra fílmica de Pedro Almodóvar é constituída por dezessete filmes, os quais
apresentam peculiaridades e lembranças da vida pessoal do cineasta. Traremos a seguir
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uma breve apresentação de sua filmografia, a fim de contextualizá-lo, bem como sua
produção. Seu primeiro longa - metragem, construído de maneira irônica e irreverente,
Pepi, Luci, Bom y otras chicas de montón1 (1980) caracteriza esse contexto. A película
questiona os clássicos comportamentos sociais e urbanos presentes na sociedade
espanhola da época.
Em 1982, lança Laberinto de Passiones nos apresentando uma Madrid divertida e
selvagem, cenário da história de amor entre uma jovem ninfomaníaca e um árabe
homossexual. Entre Tinieblas é lançado em 1983, nos apresentando um universo de
freiras católicas que não abriram mão da cocaína, dos bordéis e de outros hábitos
destoantes a seu contexto cotidiano. O quarto filme do cineasta, ¿Qué he hecho yo para
merecer esto?, de 1984, nos traz a espacialidade doméstica construída pela visão de uma
divertida diarista viciada em calmantes, a qual se questiona ao longo de toda a trama
sobre o motivo de sua preocupação com a família. Matador é lançado em 1986, trazendo
o encontro de Diego Montes, um toureiro aposentado precocemente com María Cardenal,
uma advogada criminalista que admira a arte dos matadores.
La ley del deseo, de 1987, traz a história de um diretor de teatro homossexual e
seus dilemas em criar uma peça para sua irmã transexual que muda de sexo para manter
um caso incestuoso com o pai. O sétimo filme do cineasta, Mujeres al borde de un ataque
de nervios (1988), é comumente apontado pela crítica como o filme de maior prestígio de
Almodóvar. Dele, conhecemos Pepe, uma mulher que vê sua casa invadida pela mulher e
filho de seu amante, pela namorada de seu filho e por uma amiga que está
amorosamente envolvida com um terrorista. Nessa película conseguimos observar de
forma clara o olhar contestador do cineasta, provocando os valores morais e a estética -
padrão da classe média.
Pedro Almodóvar se encaixa no movimento cinematográfico que críticos de cinema
classificam como a „Movida’ espanhola, ou seja, um movimento de jovens artistas que
sacudiram culturalmente a Espanha pós - franquismo. Nos anos seguintes lança, ¡Átame!,
em 1990, Tacones lejanos, em 1991, Kika em 1993, La flor de mi segredo em 1995 e
Carne Trémula, em 1997. No primeiro, Almodóvar traz um jovem que após receber alta de
um hospital psiquiátrico deseja reencontrar uma atriz de filmes pornográficos com quem
passara uma noite do passado. Após relutância da jovem, ele a amarra em uma cama e
1 Todas as informações relativas à filmografia de Almodóvar foram extraídas do livro STRAUSS, Frédéric.
Conversations avec Pedro Almodóvar. Paris: Cahiers du Cinema, 2007.
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decide soltá-la somente quanto aprender a amá-lo. Tacones Lejanos mostra a tentativa de
reconciliação de Becky com a filha que abandonou há muitos anos, o único problema é
quando descobrem que dividem o mesmo amante.
Kika constrói a história de uma maquiadora que é chamada para embelezar um
defunto. Depois de descobrir que o defunto está vivo, vivem uma história de amor
formada por uma rede de intrigas e assassinatos. La flor de mi segredo traz os dilemas de
uma escritora que ganha à vida escrevendo romances de pouca qualidade e de grande
alcance. Em Carne Trémula, conta a trajetória de Victor, jovem que vai preso injustamente
e após sua estadia na cadeia sai para reencontrar Elena, mulher com quem teve um caso
ocasional e que reluta em vê-lo.
No ano de 1999 é lançado Todo sobre mi madre. Podemos dizer que essa película
foi construída a partir de uma intensa „estética do excesso‟. A cidade de Barcelona que
nos é apresentada é a dos transgressores, dos sujeitos marginalizados e periféricos.
Nessa Barcelona se passa a história de Manuela, mãe que tem o filho morto no dia de
seu aniversário e sai à busca de Lola, travesti pai de seu filho. Nesse filme podemos
perceber claramente a desmistificação e desconstrução dos estereótipos de gênero e
sexualidades. Ao longo da trama surgem personagens únicos, como a travesti Agrado e a
freira grávida Rosa.
Após Todo sobre mi madre, o cineasta nos apresentou Hable con Ella, em 2002 e
La Mala Educación em 2004. O primeiro, com forte influência do cinema - mudo, conta a
história de Benigno, enfermeiro apaixonado por uma jovem em coma e sua amizade com
Marco, amante de uma toureira que, após acidente, também entra em coma. Em La Mala
Educación, Almodóvar nos traz um filme que é construído a partir de outro filme. Através
dessa mistura de espacialidades, o cineasta traz a trajetória de outro cineasta, o qual se
vê salvo de sua crise de criação por seu colega de colégio e também primeiro amor de
sua vida.
As duas últimas produções do cineasta são Volver em 2006 e Los Abrazos Rotos
em 2009. Esses dois últimos filmes são paradoxais entre si, pois, uma vez que a figura
feminina é idealizada em Volver, Almodóvar nos apresenta em Los Abrazos Rotos,
possivelmente o personagem masculino mais interessante de toda a sua filmografia. Não
pretendemos nos deter demasiadamente em uma apresentação de cada filme do
cineasta, apenas trazer um panorama sobre sua trajetória no cinema. Seus personagens
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marginais, desajustados se complementam de forma harmônica com a espacialidade
criada por Almodóvar.
Como já afirmamos, o filme que elegemos como foco de nosso interesse Todo
sobre mi madre, foi lançado em 1999, nos trazendo uma trama que está intrinsecamente
envolvida com duas das principais cidades espanholas, a capital Madrid e a cidade catalã
de Barcelona. A personagem principal dessa trama é a enfermeira e mãe, Manoela, que
devido à morte do único filho, tem sua vida completamente mudada. O que podemos
observar ao longo da história do filme, ou se assim podemos dizer, da história da vida da
personagem, é a apresentação diferenciada de suas múltiplas vivências espaciais. O que
queremos afirmar com essas vivências espaciais? Que ao longo do filme, essa
personagem transita entre duas espacialidades urbanas, que são apresentadas de
diferentes formas.
Obviamente, como nos traz Corrêa (1995), cada cidade apresenta determinadas
características e especificidades, as quais podem estar entrelaçadas com questões
econômicas, políticas, culturais, entre outras. Não desconsideramos a importância dessas
abordagens, entretanto, o que percebemos no filme em questão é que essas
espacialidades diferenciadas estão intimamente relacionadas com as performances de
gênero de cada personagem.
Gostaríamos de começar nossa análise apontando primeiramente que nossa
reflexão está pautada em uma característica fundamental da personagem central
Manoela. Ou seja, ao longo de toda a trama do filme e mediante sua vivência das
diferentes espacialidades construídas, uma de suas facetas performáticas de gênero
esteve sempre presente, com maior ou menor intensidade, a faceta materna. Podemos
fazer um interessante link com a idéia de interseccionalidade trazida pelas/os
geógrafas/os feministas. Mediante a vivência de distintas espacialidades, a personagem
exacerba ou reprime esta característica, mas nunca a descarta, exercendo-a de uma
forma ou de outra.
No início do filme, a personagem Manoela vivencia o urbano de uma Madrid que
denominaremos de „normativo‟. Por que a utilização desse termo? Pelo fato de que essa
espacialidade foi construída a partir de uma idéia clássica de sociedade. Optamos por
esse termo, uma vez que nossa idéia é demonstrar as articulações espaciais criadas por
Almodóvar, analisando o paradoxo existente entre as duas cidades utilizadas na
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construção da trama fílmica, ou seja, Madrid e Barcelona, bem como as representações e
construções das performances de gênero.
Na espacialidade madrilense criada por Almodóvar, observamos que todos os
elementos estão dentro de determinados padrões de convenção social. A vivência da
personagem Manoela se passa da mesma maneira, na medida em que os espaços de
sua vivência se restringem a hospitais e a pontos turísticos da cidade. Como nos lembra
Silva (2009), o espaço, ou se podemos colocar, as espacialidades, são constituídas por
meio de especificidades de gênero. Da mesma forma, os personagens apresentados,
elementos constituídos e também constituintes da espacialidade de Madrid apresentam
performances de gênero concordantes com a normatividade de gênero já discutida
anteriormente.
O que podemos concluir é que a espacialidade construída de Madrid se dá de
forma concordante com as normatividades de gênero. Não observamos em nenhum
momento personagens que podemos chamar de „marginais‟ vivenciando essa
espacialidade. Silva (2009) nos traz que alguns espaços se apresentam de forma interdita
para determinados sujeitos. Pelo termo interdito a autora objetiva trazer a seguinte noção:
não são espacialidades nas quais as pessoas são proibidas formalmente de ter acesso,
mas sim, são induzidas, por comportamentos sociais de todos os envolvidos, a se
retirarem. Em seu estudo com as travestis da cidade de Ponta Grossa, Paraná, a autora
observou que, geralmente esses sujeitos não têm acesso a espaços como escolas,
faculdades e sofrem resistência em espaços como hospitais e unidades de saúde.
Observamos isso no contexto do filme, pois no momento em que a personagem Manoela
vivencia a Madrid „normativa‟, não aparecem personagens interditos à espacialidade
construída.
Nesse contexto, é possível concluir o quanto o cineasta consegue „geograficizar‟ o
filme, bem como o fato de que suas escolhas espaciais interferem de forma decisiva na
trama construída. Podemos ir mais além ao sentido de nos questionarmos o quanto essas
escolhas por determinadas espacialidades pode influenciar a maneira como a audiência
constrói sua imagem em relação a elas.
Ao longo do filme, Almodóvar vai mostrando de forma gradual o seu estilo de criar,
trazendo a cada nova cena elementos que vão se tornando cada vez mais subversivos,
até nos apresentar o auge do „não – convencional‟, a espacialidade de Barcelona. Em
busca do pai de seu filho, Manoela se vê em uma Barcelona criada e constituída por
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espaços subversivos e personagens discordantes. É interessante observamos no filme
que, da mesma forma em que existem espacialidades próprias de subversão da
normatividade de gênero, esses sujeitos, personagens criados pelo cineasta permeiam
por todas as outras espacialidades do filme. Podemos observar uma dessas
espacialidades de subversão às normas de gênero na figura a seguir.
Figura 01 – Espacialidade de Subversão Travesti na cidade de Barcelona. Fonte: Filme „Tudo sobre minha mãe‟.
A figura demonstra a espacialidade travesti de Barcelona construída por
Almodóvar de forma subversiva e dinâmica, ou seja, diferenciada das espacialidades
estudadas pela Geografia no Brasil. Em pesquisa realizada por Ornat (2008), é
evidenciada que a prostituição travesti no Brasil, geralmente, ocorre nos espaços públicos
urbanos ou, mais raramente, em espacialidades restritas como boates e casas noturnas.
Na Barcelona construída no filme, isso se passa de forma diferenciada, pois como
podemos observar na figura 01 essa prática se dá fora da espacialidade urbana
„normativa‟, sendo realizado em um espaço periférico e isolado, o que também nos leva a
crer que não existem participantes ocasionais nessa dinâmica. Ou seja, os sujeitos
envolvidos estão participando de forma ativa e consciente do contexto, bem como, que o
conceito de interdição de determinados sujeitos a determinadas espacialidades se
encaixa perfeitamente.
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Outra espacialidade subversiva apresentado no filme é a Organização Não
Governamental de apoio as vítimas de HIV/AIDS. Nessa casa de apoio são atendidos os
chamados grupos de risco da época, como: homossexuais, travestis, usuários de drogas
injetáveis e prostitutas. Almodóvar mostra no filme que são espacialidades carregadas de
preconceito e interdições, nas quais Manoela transita, nos demonstrando o quanto nossa
corporalidade interfere na maneira como somos „lidos‟ socialmente. Utilizamos o termo
„lido‟ de forma proposital fazendo referencia a idéia proposta por Duncan (2005) de que a
cidade pode ser lida, interpretada como um texto. Complementando sua idéia, afirmamos
que, da mesma forma, os corpos são lidos no espaço. Goffman (1989) discute que nossa
corporalidade é interpretada pela sociedade e, da mesma forma, leva a sociedade a
esperar certos comportamentos relacionados a esses corpos. Este é um interessante link
com as idéias das perspectivas feministas, pois o gênero também é evidenciado dessa
forma.
Pensando as performances de gênero a partir dos três eixos analíticos já
comentados, podemos apresentar as seguintes análises. Primeiramente, a feminilidade é
construída de forma não convencional. Podemos observar isso ao longo de todo o filme,
entretanto, utilizaremos uma cena especifica para ilustrar essa dinâmica, a qual está
representada na figura a seguir.
Figura 02 – Espacialidade feminina em Barcelona. Fonte: Filme „Tudo sobre minha mãe‟.
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A figura representa uma cena do filme que se passa na casa de Manoela, onde
estão reunidas quatro das principais personagens que constituem a trama. Podemos
observar que essas quatro mulheres têm performances espaciais completamente
diferenciadas entre si. Ou seja, Almodóvar traz a mãe, a freira, a profissional e a travesti.
Antes de continuarmos gostaríamos de esclarecer que incluímos a personagem travesti
„Agrado‟ nessa análise, pois apesar de seu corpo biológico ser masculino sua
performance de gênero é feminina.
A feminilidade é desconstruída por Almodóvar não somente através da vivência
cotidiana espacial dessas personagens, mas também através de seus discursos. Nessa
cena observamos um comportamento discordante com os padrões de gênero pelas falas
e ações das personagens, uma vez que seu vocabulário é vulgar e marginalizado.
Com relação à questão das masculinidades, Almodóvar, busca demonstrá-las de
forma implícita, ou até mesmo, em segundo plano. Observamos que, ao longo do filme,
essa construção se dá de forma paradoxal, pois em determinadas espacialidades, como o
espaço público a noção de força masculina é exaltada, como observamos no pôster
apresentado ao longo de todo o filme da peça re-criada pelo cineasta „Um bonde
chamado desejo‟. Nesse pôster observamos um homem que segura uma mulher pelos
braços demonstrando seu domínio e força em relação a ela. Entretanto, em outras cenas,
e defendemos que a espacialidade é crucial nisso, a dinâmica, bem como a
performatividade da masculinidade, se altera. A figura apresentada a seguir é um
exemplo.
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Figura 03 – Masculinidades.
Fonte: Filme „Tudo sobre minha mãe‟.
Nessa cena, a desconstrução se dá de forma explícita nos discursos dos
personagens envolvidos. Em um diálogo com a personagem travesti Agrado, o ator Mario,
em uma espacialidade privada, demonstra interesse pela performance feminina da
travesti a tal ponto de se disponibilizar a troca de papéis sexuais para obter o que deseja
da personagem. Provocamos o leitor com alguns questionamentos que possam vir a
surgir a partir dessa dinâmica. Se o personagem masculino estivesse vivenciando a
espacialidade pública, ele adotaria o mesmo comportamento com relação à travesti? Isso
demonstra que a espacialidade na qual os sujeitos estão inseridos e a qual constroem
intervêm de forma ativa nas performatividades de gênero.
As travestilidades, perspectiva trazida pela Geografia Queer permeiam toda a
trama fílmica, e também são construídas de forma peculiar. Nossa sociedade, como já
discutimos anteriormente, é condicionada a esperar determinados papéis de
determinados corpos. No filme, Almodóvar traz um elemento totalmente destoante do
estereótipo cultural do sujeito travesti, a paternidade. Essa especificidade é central, pois
toda a trama fílmica está conectada a ela. Observamos também que, independente da
espacialidade, a imagem travesti é associada à prostituição, ou seja, mesmo fora da
atividade profissional e exercendo outras funções a imagem de prostituta ainda emana da
personagem.
Constatamos, por fim, que Almodóvar constrói um verdadeiro jogo de performances
de gênero e de suas espacialidades, elementos estes que não devem ser ignorados ou
subestimados, pois são uma fonte riquíssima para análises geográficas. Ou seja, nós
geógrafas/os podemos encontrar no cinema um campo de informações imenso para
pesquisas, nos oportunizando a abertura de novas frentes de interesse.
PALAVRAS FINAIS
As tramas fílmicas vêm despertando, nos últimos anos, o interesse de certo
número de pesquisadores, os quais apontam que essas produções são um interessante
caminho para expandirmos o hall de interesses da Geografia. A Nova Geografia Cultural e
as Geografias Feministas se apresentam enquanto uma das mais desafiadoras e
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inovadoras áreas do conhecimento geográfico, trazendo temáticas ousadas e inovadoras.
É interessante atentar para o fato de que existem várias metodologias para analisarmos
um filme, nas mais diversas áreas do conhecimento. Na Geografia isso se dá mesma
forma. Nossa perspectiva metodológica é identificar possíveis associações conceituais
com a trama construída, as quais conferem inteligibilidade, bem como cientificidade, ao
contexto fílmico.
Como já afirmamos anteriormente não objetivamos trazer uma discussão única
acerca das representações de performances de gênero e suas espacialidades na obra
Todo sobre mi madre. Apenas trazer algumas discussões, as quais se baseiam em um
ponto de vista específico. Deixamos dessa forma a provocação e a sugestão de que
outros pesquisadores direcionem seu olhar para a filmografia de Pedro Almodóvar.
Observamos com esse artigo que a filmografia de Pedro Almodóvar se apresenta
enquanto um fértil campo para análises geográficas. Em sua filmografia, e em especial no
filme que elegemos como referencial, a película Todo sobre mi madre, podemos observar
especificidades de gênero, concluindo da mesma forma, que essas performatividades têm
intrínseca relação com um „fator‟ espacial, se assim podemos colocar.
Evidenciamos da mesma forma, que o espaço, ou de outra forma, a espacialidade
é agente ativo na construção e representação das performances de gênero. Podemos
conceber as espacialidades criadas por Almodóvar, utilizando Massey (2008), como
esferas que possibilitam a existência da multiplicidade, sempre em construção por sujeitos
plurais, os quais coexistem em harmonia ou não.
A partir desse filme podemos viajar por dois espaços urbanos que são construídos
de formas muito diferenciadas. As cidades de Madrid e Barcelona são recriadas na
película levando em conta a representação que Almodóvar objetivou evidenciar da
existência da personagem central da trama. Sendo assim, concluímos que a construção
das vivências cotidianas dos personagens tem intrínseca relação com a espacialidade na
qual estão inseridos. Suas performances de gênero, portanto, não fogem dessa relação.
A Academia ainda encontra constrangimentos na discussão de determinadas
temáticas. Da mesma forma, a construção da ciência, embebida em nítidas relações de
poder, acabou por tornar determinadas temáticas invisíveis, silenciando os discursos de
determinados grupos. As reflexões trazidas nesse artigo são uma tentativa de dar maior
visibilidade às discussões sobre gênero e sexualidades na ciência geográfica, uma vez
que demonstramos que suas construções e representações estão intimamente ligadas
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com o espaço. Lembramos da mesma forma, que a Geografia, assim como todas as
outras ciências, deve manter-se atenta às transformações sociais, reconstruindo-se e
remodelando-se para ser capaz de abarcar novas demandas e novas temáticas.
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