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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
Seminário de Metodologia do Trabalho Científico em História
As noções de imperium e de império informal aplicadas à
realeza Anglo-Saxónica: o caso de Emma da Normandia como
regina e conlaterana regis
Ana de Fátima Durão Correia
Mestrado em História
Área de Especialização de História do Género
1
2014
Resumo
Durante a Idade Média, o papel e poder da mulher como
rainha não é só ambíguo e limitado mas também em permanente
fluxo de transformação. Para uma rainha do século XI como
Emma da Normandia (Emma Ælgifu), a afirmação do seu status,
tanto real como social, dependia, não só da sua identidade
como individuo consagrado e detentor de um cargo, mas
também do ofício desempenhado ao lado do rei, com vista a
uma partilha de poder régio. Tendo em conta as dificuldades
de análise e a multiplicidade de papéis e facetas das
rainhas da Idade Média, são necessárias abordagens
inovadoras para decorrer sobre esta partilha de poderes e
títulos entre rei e rainha. Pretende-se explorar alguns
conceitos que foram reaproveitados e reconfigurados para
designar novas realidades vigentes e estão directamente
relacionados com a época de Emma, nomeadamente “império
informal” e imperium, e a sua aplicação aos domínios de
Cnut. Pretende-se ainda correlacionar tais conceitos com o
título de regina e conlaterana regis na pessoa de Emma para
demonstrar a rainha como sendo não só uma identidade
individual mas também uma extensão do corpo do rei e, dessa
forma, detentora informal dos seus títulos.
2
Palavras-chave: “império informal”, imperium, conlaterana regis,
Emma da Normandia
Abstract
During the middle Ages, the role and powers of women as
queens suggested not only ambiguity and limitation, but
also a permanent flux of transformations. For a queen in
the eleventh century as Emma of Normandy (Emma Ælgifu), the
confirmation of her status, both royal and social, relied on
her identity as a consecrated individual and owner of an
office. It also depended on how that office was carried out
at the king´s side, aiming for an equal share of regal
power. Difficulties of analysis and the multiplicity of
roles and faces of middle ages’ queens call out for
creative approaches especially in subjects of power and
title-sharing between king and queen. This paper aims to
explore some notions that were salvaged and used to suit
new realities during Emma´s time, in particular, “informal
empire” and imperium, and its applicability to Cnut´s
dominions. It is also the purpose of this paper to draw a
parallel between those notions and Emma´s designation as
regina and conlaterana regis to demonstrate the queen not merely
as an individual identity but as an extension of the king´s
body and, thus, informally entitled.
Key – Words: “informal empire”, imperium, conlaterana regis, Emma
of Normandia
Introdução
3
O papel da mulher e o poder da rainha no século XI não são
só ambíguos e limitados, mas também sofreram um permanente
fluxo de transformações. É difícil compreender se os
relatos do poder feminino são imagens construídas e
apoiadas em ideias centrais masculinas ou uma manifestação
de uma autoridade per se. Emma da Normandia é uma das
primeiras rainhas a evidenciar os paradoxos do feminino. O
acesso ao cargo tornara-se progressivamente independente
mas desenvolve-se interligado com o do rei. Porém, em Emma,
é visível uma progressão a par do rei e não totalmente
submetida a este. O desempenho de papéis registados pela
tradição e as representações dessas tradições encobrem por
vezes o poder e autoridade que possuíam em concreto. Em
Emma, poder e autoridade como mulher e rainha é autêntico,
ambíguo, e com uma dimensão dual ao partilhar o cargo e a
dignidade régia com o marido Cnut. Cnut possuía imperium
militar mas também detinha um “império” político; a
primeira interpretação é associada à vertente bélica
associada ao sexo masculino, e a segunda com a anexação das
coroas da Noruega, Dinamarca e Inglaterra. Emma, como
esposa do monarca, partilharia do segundo estatuto por
união matrimonial.
4
Império e ”império informal” como extensões de imperium
Quando falamos de império, tendemos a não esquecer de que a
sua existência implica um imperador, um monarca único, que
garanta a harmonia do mesmo. Apesar de o último imperador
romano ter sido deposto em 476, o Império Romano continuou
a moldar a imaginação mesmo quando deixou de ter um papel
principal no cenário político. Durante a Idade Média e
inícios da Idade Moderna, ocorreu uma fusão entre a matriz
cultural e política do Império Romano com o Cristianismo,
tendo por base uma natureza sagrada de governo na pessoa do
imperador ou rei que, à semelhança de Jesus Cristo, fora
escolhido por Deus para ser chefe na terra. O império de
Carlos Magno (742-814) foi o modelo de transmissão desta
ideologia, apesar de a proclamação de um novo império do
Ocidente ter sido mais por consequência directa da expansão
do reino franco e das conjunturas em Itália e em Roma, com
o Papa Leão III a ter de recorrer à ajuda e protecção do
rei franco para manter o trono papal, e o rei franco
5
procurando afirmar o seu prestígio e autoridade.1
“Império”, na concepção romana, sugeria uma reivindicação
de uma soberania universal sob a égide de um único núcleo
de poder (Roma). Era determinado pelo controlo exercido sob
todos os territórios conquistados e não pela área que
cobria as províncias anexadas. A conquista e subsequente
anexação dos territórios implicavam a capacidade e poder de
exercer autoridade sob outros. Este controlo podia ser
exercido de forma formal – presença efectiva – e/ou
informal – comércio, ideologia, conquista, dinastia comuns.
Para tal efeito, poucos conceitos foram tão fundamentais
para o governo romano como o de imperium. Na sua essência,
imperium era a forma suprema de poder e comando militar, e
quase exclusivamente utilizado para além das muralhas de
Roma por um imperator, um general do exército. Dentro
destas, todos os magistrados ou membros da cúria romana
eram definidos pela sua potestas, um poder de natureza civil
e política, pelo que o exercício de imperium não faria muito
sentido. Com o tempo, o conceito passou a ser utilizado
tanto no foro militar, como jurídico, legislativo e
político, encorajando a uma interpretação universal de
imperium como a principal fonte de poder e autoridade no
mundo romano. 2 A ideia de imperium foi tão persuasiva que
1 Sobre as razões que levaram Roma a colocar-se sob a protecção
de Carlos Magno, vide Jacques Heeres, “Capítulo III - O Império
de Carlos Magno”, O Mundo Medieval, Lisboa, edições Ática, 1976, em
especial, pp.38-41.2 A propósito das várias formas de imperium, vide o artigo de Fred
K. Drogula, “Imperium, Potestas, and the Pomerium in the Roman
Republic”, Revista Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte, Nº 56, H-4, 2007,6
foi utilizada para descrever o território governado pelos
romanos –Imperium Romanum – e os seus governantes –
imperatores.
O exercício da autoridade de um sob outros como
manifestação de imperium transitaria para a época medieval e
seria utilizado conforme os interesses, tanto na esfera
espiritual como na espiritual3. Para o Cristianismo, e mais
concretamente, para a Igreja Católica, a utilização de
termos como Imperium Dei tinham por base Deus como detentor
de um imperium superior a todos os poderes terrenos e,
consequentemente, Rei dos reis. Apesar de a Igreja aceitar
a autoridade dos governos seculares, exigia-se aos líderes
o reconhecimento prévio da existência deste “direito
divino”, para então, tendo como vínculo a autoridade
religiosa, fazerem uso do imperium na terra. A unção e as
cerimónias de coroação podem muito bem ser demonstrações de
tal influência e compromisso. Porém, não reflectem uma
aparente subordinação à autoridade religiosa. De facto, o
poder secular sempre procurou deter o seu próprio imperium,
especialmente após o ressuscitado Império Romano do
Ocidente com Carlos Magno no século IX. imperium foi
novamente reaproveitado para descrever o território onde o
poder de uma soberania, na pessoa do imperator (imperador),
predominava, interligando-se com sacrum para sustentar a
tese de um imperium christianum - um só chefe no céu como na
terra. Ao reino de Cristo correspondia o de Carlos Magno,
pp. 419-452. 3 A mesma divisão em dois tipos de imperium ocorrera no Império
romano, com imperium militiae a pertencer ao domínio do poder real, e
imperium domi ao poder dos magistrados. Vide idem, ibidem, p. 421.7
escolhido por Deus, para defender e propagar a fé. Neste
cenário, o monarca, à semelhança dos imperadores romanos
desde o reinado de Augusto, detinha imperium espiritual e
secular, exercendo o comando do exército e assumindo-se
como intendente da Igreja. Por outro lado, a Igreja
Católica recorreu à Donatio Constantini para demonstrar que a
Santa Sé agregava tanto imperium terreno (na figura do
Papa) como divino. A rivalidade entre as duas esferas de
poder e a reivindicação da soberania de uma sob a outra
marcou toda a Idade Média.
“Império” podia indicar o exercício de poder de forma
formal ou informal, pudendo ser uma questão de anexação
(soberania formal) ou de controlo (soberania efectiva). O
papel de Atenas na Liga de Delos é um dos exemplos deste
controlo informal. A relação entre os aliados sofreu
alterações quando as contribuições destes se tornaram de
carácter obrigatório, e a retirada da liga, impossível.
Apesar de independentes em nome, os aliados foram
submetidos a um império – um império informal, controlado,
na constituição de uma relação imperial com Atenas.4 A
concepção de “império informal” não implica uma anexação
per se mas antes o possuir imperium sob uma variedade de
indivíduos, uma soberania de facto, pelo estabelecimento de
relações que podem ser de cariz comercial, ideológico,
4 Vide Thucydides, History of the Peloponnesian War, tradução de Thomas
Hobbes, Londres, Bohn,1843; A existência de um ethnos comum foi
frequente justificação por parte de Atenas para manter a Liga e
a hegemonia sobre os restantes membros. Sobre o assunto, vide
Jonathan M.Hall, Polis, Community and Ethnic Identity, Cambridge,
Cambridge University Press, 2009, p 52-53. 8
dinástico ou de conquista. A Inglaterra Anglo-Saxónica
viveu semelhante situação durante os séculos da Heptarquia
(VI a X d.C.). 5 Mesmo antes da unificação de Edgar, “the
Peaceful”, em 958, existiu uma certa coesão e unidade
política no território. A Crónica Anglo-Saxónica e a
História Eclesiástica do povo inglês (Ecclesiastical
History of the English people ou Historia Ecclesiastica gentis
Anglorum) de Beda fazem menção a reis como Offa, Ceonwulf e
Redwald do século IX e VIII que conseguiram dominar a
totalidade ou maior parte dos restantes reinos, apelidando
estes chefes que possuíam imperium para além das fronteiras
do seu território de Breatwaldas.6 A sua autoridade encontra-se
presente nos códices e leis pelos títulos posteriormente
adoptados – rex Anglorum, basileus e imperator.7 Imperium, por sua
5 A Heptarquia Inglesa consistiu num conjunto de sete reinos
ingleses - Mercia, Sussex, Wessex, Kent, Essex, Northumbria e
East Anglia – que dividiam geograficamente o actual território
inglês entre os séculos VI e IX. Reinos como Mercia e Wessex
detinham mais poder do que os restantes e seriam ambos que
viriam a disputar, no século X, a égide do governo anglo-
saxónico. 6 Vide The Anglo-Saxon Chronicle nas entradas correspondentes aos anos
de 823, 827 e 828, p.44-45. Compare-se com a obra de Beda,
Ecclesiastical History of the English People, tradução de Thomas Miller,
Ontario, Cambridge Press, 1999, p. 51-52.7 Todas estas denominações foram utilizadas arbitrariamente
pelos monarcas anglo-saxões, apesar da designação de Rex Anglorum
ter sido a mais frequentemente utilizada. Os vários títulos são
usados por diversos reis. A Florentii Wigorniensis monachi Chronicon ex
chronicis e o Codex diplomaticus aevi Saxonicim apontam Æthelstan como o
primeiro rex Anglorum. Variações de rex Anglorum são comuns em todos9
vez, seria utilizado para designar principalmente o
território sob a influência do monarca, afastando-se
novamente da concepção original de poder militar, ainda que
por vezes fosse utilizado para assinalar essa vertente. 8
O título de imperator seria utilizado em toda a extensão
medieval do termo9 por Cnut. A Inglaterra ficou sob a
alçada definitiva do rei dinamarquês em 1016 após a morte
do primeiro marido de Emma, Æthelred II, e a eliminação de
todos os descendentes do príncipe herdeiro, Edmund
Ironside. De 1018 em diante, Cnut encabeçou um império que
abrangeu territórios banhados pelo mar do Norte – Noruega,
Dinamarca e Inglaterra. Na primeira acta oficial como
soberano inglês, Cnut identifica-se como “Imperator Knut, a
Christi Rege regum regiminis Anglici in insula potitus”10,
os códices e crónicas - rex Anglorum et euragulus totius Bryttanniae
(Æthelstan), Rex Anglonim gubernator et recto (Eadred, em 949; por
Eadwig em 958; por Æthelred II em 1002) ; basileus e imperator
assumem uma designação idêntica - tocius Britanniae basileus, Anglorum
basileus, Basileus Anglorum et imperator regum gentium. Porém, até Cnut
(1017/1018), encontram-se situações em que imperator serviria para
designar tanto “comandante do exército”, aproximando-se da
concepção original de imperium como poder militar, como
“imperador”ou rei. Isto verifica-se em Basileus Anglorum et iinperator
regilu gentiurn e Basileus, imperator et dominus (por Eadgar, em 964) ou em
Famosus totius Brittannicae insulae imperator (por Aethelred II, em 1013). 8 Vide Codex diplomaticus aevi Saxonici,p.211. 9 Entenda-se imperator como aquele que rege um império (imperador)
e império, conjunto de territórios ou povos diversos sob uma
autoridade/soberania única.10 Vide ibidem, p.304. A morte do irmão Harald II da Noruega
permitiu a Cnut reclamar a coroa para si, anexando-a à da10
justificando a sua autoridade sob o território de
Inglaterra como algo de origem divina, tendo o seu poder
sido conferido por Deus.
O império de Cnut consistia mais em uma acumulação de
suseranias do que uma estrutura unitária e território com
um núcleo centralizado. Tal domínio “multicultural”
implicou um respeito pelas tradições nativas de cada facção
e, consequentemente, das elites. A consciência das várias
dimensões da sua suserania é visível na persistente
denominação das diversas coroas e povos como entidades
separadas mas unas – rex Anglorum et Danorum de 1018 a 1030,
rex Anglorum, Danorum et Norwegarum em 1030, e rex Anglorum,
Danorum, Norwegarum et partis Suenorum11 Esta ideia parece figurar
Dinamarca e Inglaterra.11 Vide Florentii Wigorniensis monachi Chronicon ex chronicis, pp-181-185 ;
sobre o segundo título, vide “Leges Regis Cnuti”, Ancient Laws and
Institutes of England, Great Britain, Record Comission,Benjamin Thorpe
- Editor , 1831 , em especial, p.521.; existe controvérsia
quanto ao povo ou território referido como “Suenorum”. Rex
Anglorum, Danorum, Norwegarum et partis Suenorum é uma saudação
utilizada numa carta supostamente redigida por Cnut aos
habitantes ingleses, datada de 1027. Mas não existem registos
contemporâneos, e documentos e crónicas como a Florentii Wigorniensis
monachi Chronicon ex chronicis são posteriores. “Suenorum” é commumente
traduzida por “suecos” mas a existência de um território e
fronteiras sueco não é anterior a finais do século XI. Tais
argumentos apontam para um erro na tradução. Assim, “suecos”
seriam antes “slavic”, eslavos. Como rei da Dinamarca, Cnut terá
tido pretensões a territórios da costa do Báltico, uma vez que
antecessores seus haviam feito expedições nessas zonas. Algumas
sagas inglesas e escandinavas fazem eco dessas tentativas. Sobre11
no título com que Cnut figura na lei saxónica. O uso de
nomes associados exclusivamente ao universo anglo-saxónico
– rex Anglorum, rex Brittonium, ou até basileus totius Albionis 12–
fortalecem esta separação. A manutenção de tão vastos
territórios deveu-se igualmente a uma política de boas
relações com a Igreja local como com Roma. O seu poder e
títulos são reconhecidos em 1027 quando é convidado para se
deslocar a Roma pelo próprio Papa e testemunhar, ao lado
dos mais importantes reis do século XI, a coroação de
Conrad II como Imperador do Sacro Império Romano. Os laços
entre ambos seriam mais tarde fortalecidos pelo matrimónio
de dois filhos.13
Emma da Normandia (ou Emma Ælgifu) casou com Cnut em 1017.
O Encomium Emmae Reginae descreve a união como um acordo
celebrado entre o futuro casal. A viúva do defunto rei
anglo-saxão Æthelred II terá oferecido a sua própria mão a
Cnut, permitindo ao conquistador forjar elos com a antiga
este assunto vide Laurence Marcellus Larson, “Chapter VI – The
Beginnings of Empire – 1019-1025” , Canute the Great And the Rise of
Danish Emperialism During the Viking Age, edição de W.C. Davis, New York,
The Knickerbocker Press, 1912.12 Referente a Albion, o nome mais antigo para a ilha da Grã-
Bretanha. O nome provém do britónico, antiga língua celta.13Vide Laurence Marcellus Larson, ibidem, pp.228-229. Este facto é
confirmado pela Crónica Anglo-Saxónica, apesar da entrada que
refere a ida a Roma ser datada do ano de 1031. Não é possível
averiguar o motivo para tal discrepância na Crónica mas a Carta
de Cnut , escrita após a sua partida de Roma, e a própria data
de coroação de Conrad II sugerem 1027 como o ano mais provável
para a viagem. 12
dinastia assim como com a Normandia.14 Esta acção parece
ter assegurado a sobrevivência dos filhos do primeiro
casamento de Emma, Alfred e Edward (futuro Edward, O
Confessor) mas estes aparentemente não figuravam nos seus
planos; permaneceram exilados na Normandia e ignorados pela
mãe. Se algum filho surgisse da união com Cnut, Emma
parecia determinada a assegurar para a descendência de
ambos a totalidade dos dominios: “(...), unless he would
affirm to her by oath that he would never set up the son of
any wife other than herself to rule after him, if it
happened that God should give her a son by him.” 15
Emma afirma-se como regina e domina durante os dois
reinados. Em termos de poder efectivo, Emma possuía
imperium em territórios sob a sua jurisdição. No reinado de
Æthelred II, por união matrimonial com o rei, Emma recebera
o condado de Exeter e o de Winchester. Após o casamento com
Cnut, Emma receberia igualmente propriedades nas West
Midlands e Wessex, exercendo a sua autoridade sobre todos
os habitantes, propriedades e mosteiros contidos nesses
territórios. Somente os contingentes armados permaneciam
sob o comando de Cnut. Nestas terras, e a quem as concedia,14Emma é referida na Gesta Normannorum Ducum como filha do Duque
Richard I da Normandia e de Gunnora, de uma família nobre
dinamarquesa, conferindo a Emma uma ascendência nórdica. Veja-se
Emma (…) apud J.-M. Toll, Rnglands Beziehungen zu den Niederlanden bis
1154 (Historische Studien, 145), p. 41; sobre a vida de Emma e
os matrimónios contraídos com Æthelred II e Cnut, vide o
capítulo dedicado a Emma da Normandia na obra de Mrs. Matthew
Hall, Lives of the Queens of England before the Norman Conquest, [s.l.],
Blanchard and Lea, 1854, pp 394-395.15 Encomium Emmae Reginae , p.33
13
Emma era domina /hlæfdige (do inglês antigo hlæf, “pão”, hlæfdige,
“a que distribui pão”), com total autonomia e independente
de qualquer monarca.16 No reinado de Cnut, assume
plenamente o título de regina, condição que melhor a descreve
de 1018 a 1032, como detentora de um cargo que lhe confere
poder e autoridade e membro da nobreza e da família real,
assinando imediatamente depois do monarca nos documentos da
época.17 Isto traduz uma submissão ao rei, apesar de
noutros planos ser visível uma independência da rainha,
nomeadamente quando é a própria a conceder mosteiros ou
terras. Estas concessões são sempre, no entanto, dentro dos
seus domínios, evidenciando a separação das duas esferas.
Todavia, todo o título masculino sugere um equivalente
feminino: rex/regina, domino/domina, pater regis/mater regis, o que
indica partilha de certos estatutos e poderes, ou o acesso
aos mesmos mediante uma união entre ambos. Serve de exemplo
o título de conlaterana regis, utilizado para designar Emma no
reinado de Æthelred. 18 “Aquela que estava ao lado do rei”
ou simplesmente “ a mulher do rei” é um título de cariz
duplo. Por um lado apela a uma ideia mais explícita da
relação sexual entre os monarcas e da rainha como parceira
do rei no leito. Por outro, a rainha, como mulher do rei,
devia de partilhar o leito com o soberano mas como legitima
coniunx (esposa legitima). A mulher como parceira sexual era
a faceta menos poderosa e legítima, a representação
16Vide supra, pp..56-59.17 Vide Diplomaticum anglicum aevi saxonici 18 Vide Cambridge Library, Chronicon Monasterii de Abingdon, Volume I:
From the Foundation of the Monastery until the Norman Conquest, edição de
Joseph Stevenson, Cambridge University Press, 2012, p.421 14
explícita de uma realidade sexual e do seu sexo. A
distinção do corpo real do corpo feminino era fundamental,
inserida na dicotomia público/privado, sendo que a união
sexual ficava conferida ao domínio da segunda esfera.19
Conlaterana regis designava uma rainha como uma extensão do
corpo do rei, isto é, que partilhava do seu status. Æthelred
era rex, e Emma, na qualidade de sua mulher legítima,
partilhava do seu status de rex como esposa. Embora referida
como regina no reinado de Cnut, e tal designação acarretar
uma pluralidade de novos poderes, de natureza
exclusivamente feminina, assim como associações com o
sagrado, Emma não deixou de ser também conlaterana regis do
monarca. Seguindo esta linha de pensamento, e utilizando
uma lógica dedutiva apoiada nas ideias referidas e
analisadas, Emma poderia muito bem deter o título de
imperatrix. Decerto de maneira informal, sem nunca com
recurso a tal designação, evocando antes outros conceitos
próprios do seu status que confirmassem a sua autoridade,
como uma extensão da de Cnut, e dependente do título do
mesmo. Os títulos de regina e imperatrix não são sinónimos de
realeza feminina, mas de “queenship”. Descrevem mulheres
que governaram como esposas ou mães e não como “reis
femininos”. O caso de Emma insere-se neste paradoxo: a sua
posição deriva de uma relação de intimidade que mantém com
o corpo do monarca, um corpo que é, por si, paradoxal – um
físico e um corpo “oficial”, rei e “kingship”, realeza –
19 Acerca das dimensões da rainha como conlaterana regis, vide Pauline
Stafford, Queen Emma and Queen Edith: Queenship and Women´s Power in the
Eleventh Century England, Oxford, Blackwell Publishers, 2001, pp.59-
61.15
conferindo-lhe tanto poderes quanto limitações ao uso e
usufruto dos mesmos na sua relação com o masculino20. A
rainha é, assim, uma mulher com os poderes e restrições de
uma mulher nobre da sua camada social; ao mesmo tempo ela é
a esposa do rei ou mãe deste, cuja relação de intimidade é
com o corpo do próprio soberano. Os poderes de Emma, porém,
enquadram-se tanto na óptica do poder para e por usufruto
próprio (domina) como relacional (pela ligação a Cnut). Não
existem indícios que indiquem que Emma era somente regina
Anglorum. Cnut não contraiu matrimónio ou formalizou outras
uniões extraconjugais pelo que a rainha seria, pela sua
relação com Cnut, igualmente regina Anglorum et Danorum e, mais
tarde, regina Anglorum, Danorum, et Norwegarum em 1030. A auto-
intitulação de Cnut como Imperator em 1017 nunca mais seria
referida nos documentos posteriores, pelo menos nos anglo-
saxões. Contudo, a continuação do império informal do Mar
do Norte encabeçado pelo dinamarquês até à sua morte em
1035 tornavam-no candidato ao título informal de imperador.
Se Cnut teria direito, porque não Emma?
Conclusão
A discussão e apresentação destes conceitos são importantes
para o estudo da realeza feminina em contexto anglo-
saxónico bem como dos poderes associados ao estatuto da
rainha durante o século XI. Para uma melhor entendimento do
papel de Emma no reinado de Cnut, é necessário verificar as
várias dimensões e realidades abrangidas pelo seu cargo. A20 Vide idem, “Emma: The Power of the Queen”, Queens and Queenship in
Medieval Europe, edição de Anne Duggan, Woodbridge, Suffolk, The
Boydell Press, 1997, p.9-11.16
relação da rainha com o marido era um elemento muito
importante na construção da personae pública dos dois como
indivíduos e das respectivas autoridades, ao manifestar
intimidade e influência. De facto, a base da afirmação do
poder de Emma foi Cnut. Contudo, sem Emma, Cnut não teria
conseguido criar os elos necessários com as elites anglo-
saxónicas para assegurar a coroa inglesa. Tentou-se
demonstrar como uma dessas extensões está directamente
ligada não só pelo casamento mas pela igual presença na
esfera do corpus público e privado do rei. A legitimidade do
poder de um servia de base para o outro. As imagens do
masculino e do feminino são contrapesos complementares no
caso de Emma e Cnut. Emma administrava os seus domínios mas
permitia a Cnut imperium nos mesmos. Da mesma forma, os
domínios de Cnut, ao formarem um império informal pela
anexação de três coroas e a manutenção de forças militares
que controlavam os territórios do mar do Norte e Báltico,
faziam do monarca um imperador, e do seu par, imperatriz.
17
I. Fontes e Bibliografia
Fontes impressas
Ancient Laws and Institutes of England Comprising Laws Enacted Under the
Anglo-Saxon Kings from Aethelbirth to Cnut, edição de Benjamin
Thorpe, London, Lightning Source Lt, 1831.
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Miller, Ontario, Cambridge Press, 1999, p. 51-52.
Chronicon Monasterii de Abingdon, Volume I: From the Foundation of the
Monastery until the Norman Conquest, edição de Joseph Stevenson,
Cambridge University Press, 2012, p.421
Codex diplomaticus aevi saxonici, edição de Johannis M. Kemble,
Tomo III, Londres, Sumptibus Societatis, 1839.
Diplomaticum anglicum aevi saxonici, tradução de Benjamin Thorpe,
Londres, Macmillan & Co, 1865.
Encomium Emma Reginae, edição de Alistar Campbell, Camdem
Third series, Volume LXXII, London, Royal Society, 1949.
18
Florentii Wigorniensis monachi Chronicon ex chronicis, edição de Benjamin
Thorpe, Londres, Sumptibus Societatis, 1848.
The Anglo Saxon Chronicle, edição e tradução de J.A.Giles,
London, G.Bell and Sons, 1914.
II. Bibliografia
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Empires, New York, Cambridge University Press, 2005
HALL, Jonathan M., Polis, Community and Ethnic Identity, Cambridge,
Cambridge University Press, 2009
HEERS, Jacques, O Mundo Medieval, tradução de Pedro Moacyr,
volume 2, Lisboa, Edições Ática, 1976
NELSON, Janet L., “Early Medieval rites of Queen – Making
and the Shaping of Medieval Queenship”, edição de Anne
Duggan, Woodbridge, Suffolk, The Boydell Press, 1997.
PETIT, Paul, O Mundo Antigo, tradução de Pedro Moacyr
Campos, volume 1, Lisboa, edições Ática, 197619
STAFFORD, Pauline, “Emma: the Power of the Queen”, Queens
and Queenship in Medieval Europe, edição de Anne Duggan,
Woodbridge, Suffolk, The Boydell Press, 1997.
_______________, “The Portrayal of Royal Women in England.
Mid- Tenth to Mid- Twelfth Centuries”, Medieval Queenship,
edição de John Carmi Parsons, Nova Iorque, St. Martins
Press, 1993.
1.2. Sitiografia
DROGULA, Fred K. “Imperium, Potestas, and the Pomerium in
the Roman Republic”, Revista Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte, Nº
56, H-4, 2007, pp. 419-452. Disponível em
http://www.jstor.org/stable/25598407. Acedido a 27 de
Dezembro 2014.
HALL, Mrs. Matthew, Lives of the Queens of England before the Norman
Conquest, Blanchard and Lea, 1854, pp 394-395. Disponível em
https://archive.org/details/livesqueensengl05strigoogg
20
LARSON, Laurence Marcellus, Canute the Great And the Rise of Danish
Emperialism during the Viking Age, edição de W.C. Davis, New York,
The Knickerbocker Press, 1912. Disponível em
http://www.gutenberg.org/files/38945/38945-h/38945-h.htm
MATTINGLY, David J., “From Imperium to Imperialism: Writing
the Roman Empire”, Imperialism, Power, and Identity: Experiencing the
Roman Empire, [s.l.], Princeton University Press, 2010.
Disponível em
http://press.princeton.edu/chapters/s9329.pdf. Consultado a
29 de Dezembro 2014
Thucydides, History of the Peloponnesian War, tradução de Thomas
Hobbes, Londres, Bohn, 1843. Disponível em
http://www.perseus.tufts.edu/ Acedido em 7 de Janeiro 2015.
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